Os livros de artista de Vera Chaves Barcellos

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES VISUAIS

BACHARELADO EM ARTES VISUAIS

Caroline Grhs

Os livros de artista de Vera Chaves Barcellos

Porto Alegre, dezembro de 2014

Caroline Grhs

Os livros de artista de Vera Chaves Barcellos

Trabalho de Concluso de Curso apresentado como requisito parcial e obrigatrio obteno do ttulo de Bacharel em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Orientao: Prof. Dr. Paulo Antnio de Menezes Pereira da Silveira

Examinadoras: Profa. Dra. Ana Maria Albani de Carvalho e Profa. Dra. Maria Ivone dos Santos

Porto Alegre, dezembro de 2014

Caroline Grhs

Os livros de artista de Vera Chaves Barcellos

Trabalho de Concluso de Curso apresentado como requisito parcial e obrigatrio obteno do ttulo de Bacharel em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Conceito:

Data:

_____________________________________ Prof. Dr. Paulo Antnio de Menezes Pereira da Silveira

Orientador

_______________________________________________ Profa. Dra. Ana Maria Albani de Carvalho

Examinadora

_______________________________________________ Profa. Dra. Maria Ivone dos Santos

Examinadora

Para minha me,

Denise Lampert.

AGRADECIMENTOS

A Deus, esta energia que move o universo.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pela oportunidade da

graduao.

Ao meu professor orientador, Paulo Silveira, pela leveza e pela simplicidade,

mas tambm pela inspiradora dedicao e pelo imprescindvel incentivo.

A Vera Chaves Barcellos, razo de existir deste trabalho, pela ateno e

pela gentileza com que me recebeu quando precisei.

minha famlia, especialmente minha me, Denise, por muitas vezes ser

pai e me, por sempre incentivar-me leitura e aos estudos e, principalmente, pelo

carinho e pela fora. minha v Terezinha, pelo amor incondicional. Aos meus

irmos Gustavo e Maurcio, meus exemplos de disciplina. Ao meu irmo Felipe, por

mostrar-me gentilmente outros pontos de vista sobre os mais variados assuntos,

capacidade que considero, em tempos atuais, uma preciosidade.

Aos meus queridos amigos, pela tolerncia e compreenso em razo das

minhas muitas ausncias durante o ano de 2014, pela motivao e por acreditarem

em mim, mesmo nos momentos em que nem eu mesma conseguia acreditar. Aos

colegas de trabalho, em especial ao meu ex-chefe e amigo, Gustavo, por ser uma

das pessoas mais humanas que eu j conheci e com quem tenho a oportunidade e o

prazer de conviver. chefe atual, Cristina, pela condescendncia e pela confiana.

E, por fim, a todos os funcionrios, os professores, os colegas e os amigos

que fiz no Instituto de Artes, que transformaram esses anos de graduao em uma

experincia sensacional e mpar na minha vida.

RESUMO

O objetivo desta pesquisa delinear a produo de livros de artista de Vera

Chaves Barcellos, realizada ao longo de sua carreia, desde os anos 1970. Essa

produo ainda pouco documentada e ser analisada a partir dos exemplares

existentes na coleo da artista no acervo da Fundao Vera Chaves Barcellos, bem

como dos registros de exposies e de performances realizadas, em livros, revistas,

peridicos, catlogos e dissertaes. O estudo visa identificar os traos formais e

conceituais dessa produo que, embora seja pequena, diversificada com relao

aos temas, aos processos de criao, aos aspectos formais e s propostas de leitura

oferecidas aos seus espectadores.

Palavras-chave: Vera Chaves Barcellos. Livro de artista. Arte Conceitual. Arte

contempornea.

ABSTRACT

The goal of this research is to delineate the production of Vera Chaves

Barcelloss artist books, held throughout her career, since the 1970s. This production

is still poorly documented and will be analyzed from existing specimens in the artist's

collection of Vera Chaves Barcelloss Foundation, as well as from the records of

exhibitions and performances held in books, magazines, periodicals, catalogs and

dissertations. The study aims to identify the formal and conceptual features of this

production which, although small, is diversified with respect to the issues, the

processes of creation, the formal aspects, and the reading proposals offered to its

viewers.

Keywords: Vera Chaves Barcellos. Artists book. Conceptual art. Contemporary art.

LISTA DE IMAGENS

1. Vera Chaves Barcellos ao piano, nos anos 1950. Fonte: Soulages, p. 10 ___________ 14

2. Reportagem do Correio do Povo, edio de 24 de junho de 1962 sobre o curso de

litogravura ministrado por Marcelo Grassmann no Atelier Livre. Fonte: Soulages, p. 75 __ 17

3. Priso, 1972. Xilogravura. Fonte: catlogo O Gro da Imagem, p. 123 _____________ 20

4. Trptico de permutaes, 1967. Fonte: Soulages, p. 81 _________________________ 23

5. Uma das imagens de Testarte I, 1974. Fonte: Soulages, p. 96 ___________________ 27

6. Documentos diversos do Nervo ptico, apresentados na exposio O Gro da Imagem,

2007. Fonte: catlogo da exposio, p. 89 _____________________________________ 29

7. Per(so)nas, 1980. Algumas imagens da srie. Fonte: catlogo O Gro da Imagem, p. 87

_______________________________________________________________________ 30

8. Retratos, 1992-1993. Algumas imagens da srie. Fonte: catlogo O Gro da Imagem, p.

35 _____________________________________________________________________ 33

9. Sede da Fundao Vera Chaves Barcellos, em Viamo. Fonte: http://fvcb.com.br ____ 35

10. Parte da exposio O Gro da Imagem, no Santander Cultural, 2007. Fonte: catlogo da

exposio, p. 10__________________________________________________________ 36

11. Delacroix, Caderno de viagem ao Marrocos, 1832. Fonte: http://livrosdeartista-

intermidia.blogspot.com.br/ _________________________________________________ 39

12. Ed Ruscha. Twentysix gasoline stations, 1963. Fonte: http://www.tate.org.uk/ ______ 41

13. Wlademir Dias Pino, A ave, 1956. Capa e vrias aberturas. Fonte: http://oei.nu/w/2-

3.html __________________________________________________________________ 42

14. Julio Plaza e Augusto de Campos, Poembiles, 2010. Reedio. Fonte:

http://sibila.com.br/ ________________________________________________________ 43

15. Julio Plaza e Augusto de Campos, Poembiles. Algumas aberturas. Fonte:

http://sibila.com.br/ ________________________________________________________ 44

16. Artur Barrio. Livro de carne, 1979. Fonte: http://article.wn.com/ __________________ 46

17. Catlogo da 1 Exposio Nacional de Livro de Artista, 1983. Fonte: Silveira, 2008, p. 56

_______________________________________________________________________ 49

18. Lygia Pape. Livro de criao, 1959. Fonte: http://cadernosafetivos.blogspot.com.br/ _ 50

19. Ciclo, 1974. Soulages, p. 92 _____________________________________________ 53

20. Sinais do homem, 1973 ( esquerda). Fonte: Soulages, p. 91 ___________________ 55

21. Sinais do homem II, 1973 ( direita). Fonte: Soulages, p. 91 ____________________ 55

22. Ciclo, 1974. Algumas pginas. Fonte: Soulages, p. 94-95 ______________________ 56

23. Visual-tctil, 1975. Fonte: Soulages, p. 115 _________________________________ 57

24. Testartes III Visual-tctil, 1975. Alguns painis. Soulages, p. 104-105 ___________ 58

25. Visual-tctil, 1975. Livro de artista. Algumas Pginas. Soulages, p. 115 ___________ 58

26. Habitat, 1975. Detalhes de fotografias e recortes de jornal. Fonte: Soulages, p. 116-117

_______________________________________________________________________ 59

27. Pequena histria de um sorriso, 1975. Detalhes de pginas, em sequncia, e livro aberto

na primeira pgina. Fonte: Soulages, p. 118-119 ________________________________ 61

28. Vera Chaves Barcellos. Epidermic scapes, MAM/RJ, 1982. Fonte:

http://www.verachaves.com/ ________________________________________________ 63

29. Epidermic scapes, MAM/RJ, 1982. Fonte: http://www.verachaves.com/ ___________ 63

30. Epidermic scapes, 1977. Duas aberturas. Fonte: Silveira, 2008, p. 116 ____________ 64

31. Keep smiling, 1977. Livro de Artista. Fonte: Caroline Grhs (CG) ________________ 65

32. A respeito do sorriso. Boletim Nervo ptico, n. 7, edio de outubro de 1977. Fonte:

http://fvcb.com.br _________________________________________________________ 66

33. Da capo, 1979. Detalhe da numerao de exemplares. Fonte: Soulages, p. 119 ____ 67

34. Da capo, 1979. Pgina 4 DIA. Fonte: https://colecaolivrodeartista.wordpress.com/ _ 68

35. Da capo, 1979. Pgina final. Fonte: Soulages, p. 119 _________________________ 68

36. Momento vital, 1979. Pgina final da primeira edio, com texto completo. Fonte:

Soulages, p. 121 _________________________________________________________ 70

37. Momento vital, detalhe da encadernao da segunda edio. Fonte: CG __________ 71

38. Vera Chaves Barcellos, performance com Momento vital, no Espao NO, 1979. Fonte:

http://fvcb.com.br ________________________________________________________ 71

39. Vera Chaves Barcellos, performance com Momento vital, durante programao da 5

edio da Tijuana Feira de Arte Impressa, em So Paulo, 2013. Fonte: http://fvcb.com.br 72

40. Ateno I, 1980. Fonte: Soulages, p. 158 ___________________________________ 74

41. Ateno I, 2 verso, 2007. Fonte: Schenkel, capa ____________________________ 74

42. Ateno II, 1980. Detalhe do verso da capa. Fonte: CG ________________________ 75

43. Ateno II, 1980. Fotografia que acompanha o livro. Fonte: Soulages, p. 159 _______ 75

44. Ateno II, 1980. Algumas pginas. Fonte: Soulages, p. 159 ____________________ 76

45. O grito, 2006. Livro de artista. Duas aberturas. Fonte: Soulages, p. 269 ___________ 78

46. Arroio dilvio, 2013. Fonte: CG ___________________________________________ 79

47. Consum, 2013. Fonte: CG _______________________________________________ 79

SUMRIO

INTRODUO ___________________________________________ 10

1 APRESENTAO RESUMIDA DE VERA CHAVES BARCELLOS _ 13

2 APROXIMAO TERICA AO LIVRO DE ARTISTA ___________ 38

3 IDENTIFICANDO A PRODUO DE LIVROS DA ARTISTA ______ 52

CONSIDERAES FINAIS _________________________________ 80

REFERNCIAS ___________________________________________ 82

10

INTRODUO

A presente pesquisa tem como tema a produo de livros de artista de Vera

Chaves Barcellos. Essa escolha deveu-se importncia da obra e da atuao da

artista nos cenrios culturais, local e internacional, desde o incio de sua trajetria,

carncia de estudos e pesquisas que renam especificamente informaes e

anlises crticas sobre esse recorte da sua produo e, principalmente, ao fato de

tratar-se de obras inquestionavelmente instigantes.

A carreira da artista, nascida em Porto Alegre em 1938, iniciou-se h cerca

de cinquenta anos e conta com produo em diversos campos de atuao, com

utilizao de diversificados suportes e processos de criao, como desenho, pintura,

gravura, serigrafia, vdeo, instalao, performance, etc. Dentre esse universo de

procedimentos e resultados, Barcellos investiu tambm na produo de alguns livros

de artista, a partir dos anos 1970, criando seus dois ltimos livros em 2013.

A artista continua, como se v, em plena atividade de produo, mas

tambm atua promovendo e divulgando a arte, por meio da Fundao que leva o

seu nome, fundada em 2005, da qual Diretora Presidente. A instituio uma

entidade cultural privada e sem fins lucrativos, cuja misso a preservao, a

pesquisa e a difuso da obra da artista, assim como o incentivo criao artstica e

investigao da arte contempornea. Entre as metas da entidade esto a

realizao de uma programao regular de exposies e o estmulo pesquisa, a

debates, a seminrios e a projetos editoriais. Alm da coleo Vera Chaves

Barcellos, o acervo da fundao conta tambm com a coleo Artistas

Contemporneos.

A importncia da obra e da atuao da artista Vera Chaves Barcellos

incontestvel, no s no cenrio brasileiro de artes visuais, como tambm no cenrio

internacional. principalmente reconhecida pela sua produo em desenho,

gravura, pintura, fotografia, vdeo, performances e instalaes, mas tambm possui

uma produo de livros de artista no menos instigante, embora pouco

documentada e menos conhecida.

11

Sua produo de livros de artista, embora pequena, relevante e

interessante, uma vez que perpassa diferentes momentos da sua carreira e revela

traos dos movimentos artsticos e do contexto histrico em que inserida quando da

concepo de cada uma dessas obras. Ainda que haja publicaes sobre a artista,

sua biografia e sua carreira, bem como sua produo, h carncia de publicao

especfica sobre seus livros. Assim, diante do desafio e da oportunidade de analisar

e documentar o resultado da atuao da artista nessa hoje j consolidada categoria

artstica, lancei-me a essa pesquisa.

Portanto, o objetivo deste trabalho proporcionar ao leitor a reunio de

informaes sobre um recorte da produo da artista seus livros analisando

especificamente essas obras em seus respectivos contextos, relacionando-as a

outros projetos, procedimentos e questes da artista. Especificamente, os objetivos

so identificar e contextualizar a produo de livros de artista de Vera Chaves

Barcellos, coletar dados raramente consultados, eventualmente desprezados em

outras pesquisas, discutir aspectos formais dessa produo e apresentar uma

possibilidade de abordagem dessa categoria especfica.

No primeiro captulo, sero apresentados dados biogrficos, salientando

aspectos relevantes da trajetria pessoal e momentos determinantes da sua

carreira, apontando suas principais exposies individuais e coletivas, bem como

suas participaes em eventos de arte, sua formao acadmica e viagens de

estudos ao exterior, os prmios recebidos, suas atuaes como professora e como

curadora, sua participao no grupo Nervo ptico, no Espao N.O., na Galeria Obra

Aberta e na Fundao Vera Chaves Barcellos, dentre outras particularidades,

contextualizando-as a fim de ambientar e aproximar o leitor do universo verstil da

artista.

No segundo captulo, sero expostas algumas obras consideradas entre

precursoras ou influenciadoras do surgimento da categoria livro de artista, as

denominaes utilizadas at o estabelecimento do termo, alguns dos

acontecimentos ligados ao desencadeamento de um novo comportamento na arte a

partir do sculo passado, em que se buscava experimentar novos procedimentos e

extrapolar as convenes tradicionais do meio, com suas consequncias e

desdobramentos, como a apario de novas formas de expresso, incluindo-se a o

12

livro de artista. Ser apresentado um breve histrico sobre o assentamento dessa

categoria, algumas caractersticas e particularidades, assim como as dificuldades

tericas para definio de seus limites.

Por fim, no terceiro captulo, ser apresentada especificamente a produo

de livros da artista, optando-se pela demonstrao das obras em ordem cronolgica,

a fim de facilitar a compreenso dos contextos de suas respectivas concepes e

produes, em consonncia com o exposto no primeiro captulo, bem como suas

relaes com os demais projetos da artista, com os quais, no raro, encontram-se

intrinsecamente associados. Busca-se assim articular o entendimento de algumas

questes formais e conceituais que povoam o ambiente artstico de Vera Chaves

com o tpico principal deste estudo: seus livros.

A fim de alcanar os objetivos deste trabalho, buscou-se pesquisar as fontes

primrias, com visita diretamente sede da Fundao Vera Chaves Barcellos, em

Viamo, estado do Rio Grande do Sul, que conserva a coleo da artista, contando

com boa parte da sua obra, coletando-se dentre esse material e trazendo-os ao

trabalho aqueles que so pertinentes ao tema, elucidativos, ou que revelam

aspectos interessantes da carreira ou da obra da artista, possibilitando a

aproximao do leitor a esse universo.

Alm disso, tambm se procura orientar e fundamentar esta pesquisa a

partir de referenciais tericos, por meio de um apanhado dos trabalhos j existentes

sobre o tema abordado, dentre livros, artigos, monografias, teses, filmes, mdias

eletrnicas e outros materiais cientificamente confiveis, a fim de se verificar de que

forma os diversos aspectos do assunto em questo, porventura, j tenham sido

pesquisados ou estudados.

13

1 APRESENTAO RESUMIDA DE VERA CHAVES BARCELLOS

Para adentrar na obra de Vera Chaves Barcellos, objeto deste estudo,

inicialmente conveniente que se atravesse o longo perodo que corresponde no

s sua carreira, mas tambm sua vida, a fim de apontar os fatos, os

acontecimentos e as circunstncias que a levaram a ser uma das artistas gachas

de maior projeo nos cenrios culturais nacional e internacional. Portanto, o intuito

deste primeiro captulo justamente munir o leitor para a experincia de leitura dos

captulos seguintes. Embora, por vezes, algumas informaes aqui trazidas possam

parecer excessivas ou impertinentes ao tema, acredita-se que, ao revelar esses

aspectos e histrias sobre a vida, a carreira e as suas relaes pessoais e

profissionais, instrumentaliza-se o leitor para a apreenso e o entendimento dos

captulos seguintes.

Vera Chaves Barcellos nasceu em Porto Alegre, em 1938, mas passou a

infncia no meio rural, na cidade de Carazinho, na regio noroeste do estado do Rio

Grande do Sul, municpio do qual seu pai foi um dos fundadores e o primeiro

prefeito. Ainda em Carazinho ela iniciou seus estudos de piano, aos sete anos de

idade, continuando-os em Porto Alegre, para onde sua famlia mudou-se quando ela

tinha nove anos. Desde muito nova, recebeu estmulo cultural por parte dos seus

pais, especialmente pelo seu pai pessoa que a artista descreve como aberta e

sensvel.

Em 1956, ela concluiu o curso de Msica no Instituto de Belas Artes (IBA),

atual Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IA/UFRGS),

instituio de ensino administrada, poca, por Tasso Corra, diretor que

reformulou o currculo, introduziu novas disciplinas e projetou o Instituto em mbito

nacional, durante sua gesto de dezoito anos, tornando-o referncia para o estudo

acadmico de arte. Concomitantemente ao curso de Msica, cultivando suas

habilidades demonstradas desde criana, Barcellos cursou desenho com o professor

particular Carlos Alberto Petrucci, pintor, desenhista e gravador autodidata que

poca convivia com artistas como Vasco Prado e outros intelectuais de esquerda.

Nessa poca ela tambm aprimorou seus conhecimentos de lnguas estrangeiras,

14

estudando francs, na Aliana Francesa, e ingls, no Instituto Cultural Brasileiro

Norte-Americano.

1. Vera Chaves Barcellos ao piano, nos anos 1950.

Alguns anos aps, abandonando a ambio de tornar-se uma concertista,

Vera Chaves Barcellos retornou ao Instituto de Belas Artes para ento cursar Artes

Plsticas, tendo frequentado aulas de desenho com Cristina Balbo, primeira mulher

a formar-se em Escultura no Estado, tambm pelo Instituto de Belas Artes, e

professora que orientou grande parte dos alunos do Instituto da metade dos anos 40

at 1987, quando se aposentou.

Em 1960 fez sua primeira exposio de desenhos na galeria de arte da

Associao de Cultura Franco-Brasileira (Aliana Francesa), ao lado de Berenice

Gorini, artista tambm oriunda do Instituto, participando com dez trabalhos. Foi

nesse mesmo ano que ela se casou com o arquiteto Antnio Chaves Barcellos,

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alterando o seu nome de nascimento, Vera Tubino Guerra, passando a utilizar o

sobrenome pelo qual ela posteriormente viria a ser reconhecida. No ano seguinte,

ela fez sua primeira viagem Europa, na companhia do marido, onde ela deu

continuidade aos seus estudos de arte. Logo na chegada Paris, ela viu a

exposio Les Sources du XX Sicle: les arts en Europe de 1884 1914 (As Fontes

do Sculo XX: as artes na Europa de 1884 a 1914), no Petit Palais, que lhe serviu

como aula sobre as origens da modernidade. A partir de ento, sua relao com a

arte comeou a mudar.

Entre 1961 e 1962, no perodo de pouco mais de um ano em que esteve na

Europa, frequentou a Central School of Arts and Crafts e a Saint Martin's School,

ambas em Londres, onde estudou litografia e pintura, a Academie van Beeldende

Kunsten, em Roterd, na Holanda, onde estudou linoleogravura e gravura em metal

e onde teve aulas de pintura, e a Acadmie de la Grande Chaumire, em Paris,

onde estudou desenho, gravura e pintura. Durante essa estada na Europa, realizou

tambm diversas viagens, Esccia, Alemanha, Itlia, Blgica e

Escandinvia, visitando diversas cidades e importantes museus, onde ela pode

entrar em contato com a obra de grandes mestres, como a pintura expressionista do

Grupo Cobra1, na Holanda, as telas rasgadas de Lcio Fontana2 e as retrospectivas

de Mark Rothko3 e Ben Shahn4, que lhe causaram grande impacto. Sobre esse

perodo, Barcellos falou Glria Ferreira5:

Foi muito importante. Viajei, havia casado. Meu marido, que era arquiteto, tinha uma bolsa de estudos. Fomos para a Europa e, chegando em Paris, a primeira coisa que vi foi uma exposio chamada Les Sources du XXme Sicle praticamente as bases do modernismo. Uma exposio extraordinria [...]. Foi uma grande lio de histria da arte, que me abriu um mundo. Eu era uma mocinha de provncia, estava comeando, nem fazia gravura nessa poca. Havia feito duas vezes no primeiro ano no Instituto de Belas Artes, em Porto Alegre, era uma principiante, mas j

1 O Gupro CoBrA (1948-1951) foi um movimento artstico da vanguarda europeia, influenciado pela arte popular nrdica, pelo Expressionismo e pelo Surrealismo. 2 Lucio Fontana (1899 - 1968) foi um pintor e escultor, nascido na Argentina. Foi um dos integrantes do movimento da arte povera. Em 1947, publicou o Manifesto blanco, que influenciou muitos artistas abstratos a partir da dcada de 1950. 3 Mark Rothko (1903 - 1970) foi um pintor norte-americano, classificado como um expressionista abstrato, embora ele tenha rejeitado esse rtulo. Resistiu aceitar, tambm, a classificao de "pintor abstrato". 4 Ben Shahn (1898- 1969) foi um muralista, ativista social, fotgrafo e ilustrador norte-americano, principalmente conhecido como um dos representantes do realismo social. 5 Entrevista publicada em Imagens em Migrao: uma exposio de Vera Chaves Barcellos, de 2009, realizada pela curadora Glria Ferreira, doutora em Histria da Arte pela Sorbonne, crtica de arte e curadora independente.

16

estava definida [...]. Visitei pela primeira vez Veneza e Roma, a arquitetura romntica e catedrais gticas, foi ver um mundo sobre o qual eu tinha extrema curiosidade, at por causa do meu pai, que falava muito na Europa. Ele nunca foi Europa, mas falava muito na Europa, [...] ele tinha aquele culto da cultura europeia, que transmitiu pra mim, eu acho.

Quando retornou ao Brasil, ainda em 1962, sua postura j havia mudado: de

estudante de artes passou a entender-se artista, compreendendo que deveria

definitivamente seguir a sua vocao e encontrando o caminho que passaria trilhar.

Fixou seu ateli em Viamo, cidade da regio metropolitana, trabalhando muito,

envolvendo-se cada vez mais com o meio cultural local e produzindo intensamente

desenhos, pinturas e litografias, ainda em uma linha figurativa. O reconhecimento

aconteceu rapidamente, com diversas exposies e participaes em eventos

culturais. Passou tambm a frequentar o recm-criado Atelier Livre da Prefeitura

Municipal de Porto Alegre, situado poca no Mercado Pblico, passando a

conviver com artistas como Francisco Stockinger, gravurista, fotgrafo, chargista,

artista grfico e gestor cultural, consagrado como um dos principais escultores

modernos no Brasil.

O Atelier Livre, criado em 1961, oficialmente chamado Atelier Livre Xico

Stockinger, assim denominado por meio de Lei Municipal de Porto Alegre, de 2012,

uma das mais importantes escolas de arte no universitrias do Brasil. O artista

homenageado foi o fundador e o primeiro diretor da instituio, criada aps um

clebre debate, realizado no Teatro de Equipe6, no qual Iber Camargo um dos

artistas brasileiros mais importantes do ltimo sculo criticou o marasmo cultural

vivenciado no meio artstico local, apresentado a proposta de criao de um ateli

livre.

No mesmo ano, Barcellos participou no Atelier Livre de curso inaugural de

litografia, com Marcelo Grassmann, um dos desenhistas brasileiros mais premiados,

para o qual foram convidados especialmente doze artistas, entre eles, Regina

Silveira7, Alice Soares8, Zorvia Bettiol9 e Avatar Moraes10. Dedicou-se a essa

6 O Teatro de Equipe foi um grupo teatral de Porto Alegre, em atividade entre 1958 a 1962. Sua abrigou exposies de jovens artistas plsticos, apresentaes musicais, sesses de cinema de arte e reunies da comunidade cultural. 7 Regina Silveira (1939) uma artista gacha, pioneira da videoarte no pas. 8 Alice Soares (1917-2005) foi uma artista gacha e professora no Instituto de Artes da UFRGS, onde recebeu prmio de professora emrita, em 1980.

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tcnica por algum tempo, adquirindo uma prensa que fora da Livraria do Globo,

equipando assim seu prprio ateli grfico, em Viamo. Recebeu tambm seu

primeiro prmio, uma meno honrosa no IX Salo de Artes Plsticas do Rio Grande

do Sul, organizado pelo IBA, pela gravura em metal Favela, realizada com as

tcnicas de gua-forte e gua-tinta, e cuja temtica da favela seria depois explorada

com mais profundidade no seu livro de artista Habitat, de 1975. Em setembro,

realizou sua primeira exposio individual, na Galeria da Aliana Francesa de Porto

Alegre, com xilogravuras, litogravuras e desenhos. Em novembro, integrou uma

mostra coletiva de artistas vinculados ao Atelier Livre, no Salo da Biblioteca de

Curitiba.

2. Reportagem do Correio do Povo, edio de 24 de junho de 1962 sobre o curso de litogravura ministrado por Marcelo Grassmann no Atelier Livre.

9 Zorvia Bettiol (1935) uma artista premiada e arte-educadora gacha, trabalha com artes grficas, arte txtil, pintura, design de joias, design padro de superfcie, murais, instalaes de arte, performances, entre outros. 10 Avatar Moraes (1933-2011) foi um artista gacho que se dedicou inicialmente gravura e pintura e que, na dcada de 1960, passou a seguir a tendncia de superao dos suportes tradicionais (pintura e escultura) em proveito de estruturas ambientais e objetos, realizando trabalhos na forma de caixas.

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No ano seguinte, 1963, participou de mostra coletiva na Reitoria da UFRGS,

ao lado de artistas como Vasco Prado11, Zorvia Bettiol, Alice Soares e Cristina

Balbo, entre outros. Em junho, integrou a Exposio Coletiva de Artistas de Rio

Grande, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), de carter itinerante,

passando pelo Rio de Janeiro e por So Paulo. De acordo com Soulages (2009, p.

64): a imprensa local ressaltou um aspecto ainda indito no meio artstico: a

existncia de um catlogo da exposio. Realizou sua segunda exposio

individual, que obteve boa repercusso na imprensa local, no espao expositivo do

Instituto Cultural Brasileiro Norte-Americano, na qual apresentou dez desenhos e

quatorze litografias, listadas em um catlogo que, poca, como era usual, continha

somente os dados da exposio, um breve currculo e os ttulos das obras,

especificados por tcnicas, sem outras informaes ou imagens. Obteve seu

segundo prmio de Gravura no XVIII Salo de Belo Horizonte. Nesse mesmo ano,

integrou ainda o I Salo Cidade de Porto Alegre, institudo por lei a fim de integrar as

comemoraes da Semana de Porto Alegre12.

Embora tenha realizado desenhos e pinturas nesses primeiros anos aps o

retorno da Europa, a obra de Vera Chaves Barcelos se deu principalmente na

gravura, as quais ganharam destaque. Realizou-as inicialmente em preto e branco, a

partir de uma nica matriz, depois em cores, com vrias matrizes, cada uma para

uma cor, ou por meio de uma tcnica empregada por Picasso, em que uma nica

matriz trabalhada num processo de eliminao progressiva, demandando preciso

e bom conhecimento da tcnica pela artista. A respeito desse incio da carreira e da

evoluo na tcnica, a artista afirmou: Na verdade, poderia dizer que comecei pela

gravura, porque foi com gravura que pude j me considerar algum que dominava

uma forma de expresso13.

Assim, desenvolvendo as suas pesquisas nas diversas possibilidades de

experimentao da gravura e diversificando suas tcnicas, Barcellos pode tomar

conscincia a respeito do que uma matriz e tiragem mltipla, percepo que

11 Vasco Prado (1914-1998) foi um artista gacho, um dos fundadores do Clube da Gravura e um dos mais importantes escultores do pas. 12 Evento comemorativo do aniversrio da cidade, fundada em 26 de maro de 1772. 13 Entrevista publicada em Imagens em Migrao: uma exposio de Vera Chaves Barcellos, de 2009, realizada pela curadora Glria Ferreira.

19

posteriormente viria a enriquecer o seu trabalho de fotografia, tcnica que comporta

de forma diferente o matricial e o mltiplo.

Em 1964, seu trabalho evoluiu para uma abstrao mais disciplinada e

construtiva. Realizou sua primeira xilogravura em cores, em formas quase abstratas

e em tons pastis. Participou de exposies coletivas em Porto Alegre, Belo

Horizonte, So Paulo, Washington. Foi selecionada para a primeira Exposio da

Jovem Gravura Nacional, no Museu de Arte Contempornea da Universidade de

So Paulo (USP), na poca, dirigido por Walter Zanini, historiador, crtico de arte e

curador, incentivador das produes experimentais, sobretudo aquelas ligadas

videoarte e arte postal. O catlogo dessa exposio listou 81 obras, de 30 artistas,

reproduzindo apenas quatro trabalhos, entre eles a xilogravura Paisagem com

rvores, de Vera Chaves Barcellos. Em uma reportagem publicada no jornal Correio

do Povo, em 6 de setembro de 1964, Barcellos afirmou: Arte, para mim, uma

linguagem, um meio de comunicao com os seres humanos, capaz de superar o

tempo. O que pretendo? Trabalhar o mais possvel. Participar de mostras coletivas,

pois o artista deve expor.

Sobre a evoluo de seu trabalho nos anos 60, a artista falou14:

Iniciadas em 1964, de uma forma mais contida, essas abstraes, que de certa forma no incio se referiam a formas de paisagem ou ritmos que eu poderia observar na natureza, foram evoluindo para uma expresso mais abstrata e emocional. Isso em 1966 e 1967. Para mim, simbolizavam ento o antagonismo homem-natureza. Em 1968, comearam a ficar mais sucintas e econmicas, terminando por se transformarem em trabalhos de um quase minimalismo e nos objetos que chamei de Combinveis (j em 1969 e 1970) que, como os Permutveis, esse ainda com formas mais orgnicas, que eu havia feito dois anos antes, contavam com a participao do espectador e ofereciam um grande nmero de possibilidades e variantes.

A partir de 1965, abandonando a pintura a leo e a litogravura, e dedicando-

se exclusivamente xilogravura, tcnica que possibilitou o aumento das dimenses

de seus trabalhos, sua obra comeou a apresentar formas mais livres, com

influncias do expressionismo. At 1972, produziu centenas desenhos e pinturas

sobre papel, os quais serviam de estudos para suas gravuras. Nesse ano, Barcellos

recebeu o Primeiro Prmio na seo de Gravura, do II Salo Cidade de Porto

14 Entrevista publicada em Imagens em Migrao: uma exposio de Vera Chaves Barcellos, de 2009, realizada pela curadora Glria Ferreira.

20

Alegre, com a obra Abstrao IV, e o Primeiro Prmio do XX Salo de Belo

Horizonte, com a xilogravura Razes.

Em 1966 integrou a Mostra de Gravadores Brasileiros no Japo, promovida

pela International Society of Plastics and Audio-Visual Art. Realizou uma exposio

individual, a primeira no Rio de Janeiro, na Galeria Goeldi, pertencente a Clarival do

Prado Valladares, historiador e crtico de arte, na qual apresentou aproximadamente

20 xilogravuras, que receberam crticas favorveis, publicadas nos jornais O Globo e

Jornal do Brasil. A partir de ento, comeou a viajar ao Rio de Janeiro e So

Paulo com frequncia, entrando em contato com as vanguardas brasileiras e

tambm com a arte internacional, atravs das Bienais, em um cenrio marcado pela

atuao de artistas como Antonio Dias15, Pedro Geraldo Escosteguy16, Carlos

Vergara17, Rubens Gerchman18.

15 Antonio Dias (1944) um artista multimdia paraibano, da vanguarda dos anos 1960 e 1970.

3. Priso, 1972. Xilogravura.

21

O cenrio artstico-cultural da dcada de 1960 foi marcado pela percepo

contempornea de seus protagonistas quanto emergncia de uma nova arte e

necessidade de abertura a novas formas de expresso. No Brasil, em virtude da

conjuntura histrica particular do pas, que foi governado sob regime ditatorial militar

fechado de 1964 a 1985, essa ideia do novo, aliada a um esprito coletivo de seus

protagonistas, fez-se recorrente em quase todos os movimentos culturais ento

emergentes: Bossa Nova, Cinema Novo, Teatro Novo e Arquitetura Nova.

Nas artes plsticas, foi a partir da realizao da exposio coletiva Opinio

65 que uma srie de eventos e manifestaes culturais coletivas sucedeu-se. A

mostra gerou grande impacto na cena artstico-cultural brasileira, representando no

s um marco de ruptura ruptura com a arte do passado e com uma esttica

cmoda, em referncia pintura abstrata, como escrevera Ceres Franco no

catlogo da mostra mas tambm representou o marco de um novo ciclo que se

abria no mbito cultural do pas: de intensos e apaixonados debates, de atividades,

de performances e de exposies coletivas. Alm disso, ela abriu caminho para

outras exposies, consideradas como seus desdobramentos, como Opinio 66, no

Rio de Janeiro, Propostas 66, em So Paulo, Vanguarda Brasileira, em 1966, em

Minas Gerais, e Nova Objetividade Brasileira, no Rio de Janeiro, em 1967.

O objetivo dos idealizadores e organizadores da Opinio 65, o marchand e

proprietrio da Galeria Relevo no Rio de Janeiro, Jean Boghici, e a crtica de arte,

residente em Paris, Ceres Franco, era apresentar e analisar a produo artstica dos

jovens artistas brasileiros, estabelecendo um contraponto entre a produo nacional

e a estrangeira, de modo a avaliar o grau de interlocuo da arte brasileira, pela

radicalizao das experincias estticas e do embate poltico, ressaltando a

atualidade e o vigor criativo dessa jovem gerao de artistas.

Em So Paulo, este clima de entusiasmo e discusses acerca deste novo

realismo nas artes tambm se refletiu. Os paulistas deram sequncia discusso de

questes ento levantadas, e em especial acerca do carter e da funo da

16 Pedro Geraldo Escosteguy (1916-1989) foi um mdico, poeta, contista, pintor e escultor gacho. 17 Carlos Vergara (1941) um gravador, fotgrafo e pintor gacho. 18 Rubens Gerchman (1942-2008) foi um artista carioca, ligado a tendncias vanguardistas como a Arte Pop e influenciado pela arte concreta e neoconcreta.

22

vanguarda brasileira, em Propostas 65, realizada na Fundao Armando lvares

Penteado (FAAP), em dezembro do mesmo ano.

Para Vera Chaves Barcellos, o final dos anos 1960 e incio dos anos 1970

configuraram-se como um perodo de mudanas na sua prtica artstica e de

rupturas com relao ao seu modo de pensar e fazer arte. Segundo Soulages (2009,

p. 30):

[...] em 1965, Vera Chaves Barcellos para de fazer quadros esses quadros eram, para alguns, fortemente marcados pela abstrao ou expressionismo. Mas ela continua a desenhar, principalmente para preparar suas gravuras. Ela cessa de fazer desenho como obra autnoma em 1968. Desenhos que ela no expe, desejando significar com isso que eles so, antes de tudo, estudos preliminares para suas gravuras.

Em 1967, com a obra Trptico para permutaes, inaugurou um novo tipo de

relao entre seus trabalhos e os respectivos espectadores. O trabalho trata-se de

um misto de gravura e objeto, cujas imagens foram impressas em seis placas de

acrlico, as quais por sua vez podiam ser encaixadas em um suporte de madeira

com diferentes possibilidades de composio final, pelo prprio espectador, que

no mais se restringia a admirar e contemplar a obra sem a tocar, passando,

segundo Soulages (2009, p. 32), do mundo da interdio Tu no deves tocar

nisso ao mundo da autorizao em sua forma mais aberta Tu podes modifica-

la ou ao mundo da ordem em sua forma mais dogmtica Tu deves modifica-

la., ou seja, ao mundo da autorizao. O trabalho foi concebido num momento

histrico no qual muitos artistas procuravam a participao direta do espectador em

suas obras, incorporando, assim, o conceito de obra aberta, estudo de Umberto

Eco19, autor popular na poca entre artistas experimentais, que respondia

diretamente s inquietaes nesse sentido, pois era uma tentativa terica de

apreender as manifestaes artsticas de orientao experimental e

comunicacional, cujo trao unificador foi a tendncia a romper com a barreira da

obviedade na arte, com o uso inovador de materiais, mtodos e tcnicas,

valorizando a combinao de gneros, de estilos, de linguagens e de meios,

diferenciando-se da arte tradicional, sobretudo, pela tendncia a fazer a

experincia esttica resultar no do reconhecimento final da forma, mas sim do

19 Umberto Eco (1932) um escritor, filsofo, semilogo, linguista e biblifilo italiano.

23

reconhecimento daquele processo continuamente aberto que permite individualizar

sempre novos perfis e novas possibilidades de uma forma.

4. Trptico de permutaes, 1967.

Tambm em 1967, Barcellos participou da IX Bienal de So Paulo, com oito

trabalhos em xilogravura, entrando tambm em contato com a obra de Edward

Hopper, pintor realista norte-americano, e de artistas da Arte Pop, movimento

artstico que procurava representar com suas obras a massificao da cultura

popular, o poder da imagem e a combinao do homem tecnologia.

Em 1968 ano que ficou conhecido como o ano que no terminou, devido

grande movimentao em diversas esferas polticas e sociais e ao acontecimento

de uma srie de protestos em todo o mundo, contra os governos repressivos,

contra a guerra do Vietn (nos Estados Unidos), pelas liberdades civis, contra o

racismo, a favor do feminismo, contra armas nucleares, entre outros Barcellos

fez uma viagem aos Estados Unidos, onde visitou museus e colees de arte

contempornea em Nova York, Washington e Filadlfia. Entre as exposies que

viu, The Art of the Real (Arte do Real), no Museum of Modern Art (MoMA), foi uma

das que mais a marcou, pois aguou seus sentidos para as questes concernentes

ao real e ao conceito de realidade cuja pesquisa nortearia seu trabalho a partir

da explorao da imagem fotogrfica algum tempo depois por meio dos trabalhos

24

de artistas minimalistas e, tambm, alguns outros abstratos, como os de Jackson

Pollock20. Sobre essa exposio, a artista comentou21:

E o que era a arte do real? Eram uns minimals. Quer dizer, o artista cria uma realidade e, no momento em que ele cria qualquer objeto artstico, ele real, mesmo que no tenha nenhuma relao com o que a gente visualiza no mundo exterior. Era muito interessante, foi uma coisa que me marcou muito. O nome dessa exposio... maravilhoso. O nome e a exposio, que tambm era maravilhosa.

Nesse mesmo ano, ela iniciou a produo da srie intitulada Combinveis,

composta por conjuntos de gravuras-objeto em serigrafia, cujos mdulos

possibilitavam inmeros rearranjos e que, assim como Trptico para permutaes, do

ano anterior, foi concebido sob a inspirao de obra aberta, contando com a

participao direta do espectador.

Para Barcellos, esse foi um perodo, como se v, em que alguns fatores

internos e externos a ela foram determinantes no percurso conceitual que seu

trabalho tomaria a partir de ento. Outra influncia importante para a sua ruptura

com o que se pode chamar de fase modernista com a gravura, foram suas leituras

sobre novas formas e modalidades de arte e referenciais tericos.

Ela foi introduzida psicologia analtica de Jung22 por Anna Bella Geiger23,

estudo que englobava a anlise da mente humana em sua integridade, na sua vida

em comunidade, nunca isolado do contexto sociocultural e universal, e cujos

conceitos eram imbudos de um simbolismo profundo. Em 1970, ela comeou a

lecionar na Faculdade de Belas Artes da Feevale, em Novo Hamburgo/RS,

experincia marcante, pois colaborou para a aproximao da artista com a arte

conceitual, uma vez que para dar aulas precisou atualizar-se sobre o que acontecia

no mundo. Durante os sete anos em que lecionou, ela leu muito, experimentou

muito, refletiu muito sobre a arte e, principalmente, sobre o que desejava fazer.

Acumulou informaes que foram transformando seu trabalho.

20 Jackson Pollock (1912-1956) foi um pintor norte-americano e referncia no movimento do expressionismo abstrato. 21 Entrevista publicada em Imagens em Migrao: uma exposio de Vera Chaves Barcellos, de 2009, realizada pela curadora Glria Ferreira. 22 Carl Gustav Jung (1875 - 1961) foi um psiquiatra e psicoterapeuta suo, fundador da psicologia analtica. Props e desenvolveu os conceitos da personalidade extrovertida e introvertida, arqutipos, e o inconsciente coletivo. 23 Anna Bella Geiger (Rio de Janeiro, 1933) escultora, pintora, gravadora, desenhista, artista intermdia e professora.

25

Outra autora marcante dessa poca para Barcellos foi Catherine Millet,

editora da revista francesa Art Press, que deu muito apoio arte conceitual na

Frana, mais especificamente o artigo sobre arte conceitual Lart conceptuel comme

semiotique de lart, publicado na revista VH 101, editada em Zurique, em 1970, que

Barcellos ainda guarda, com cpia do texto traduzido por ela mesma, tamanha a

importncia que a ele a artista atribuiu. Nessa mesma revista, a artista leu o texto

Note Introductive, de Joseph Kosuth24, no qual ele abordou esse aspecto de arte

como ideia, mas, segundo Barcellos, de forma muito mais radical, em defesa de um

puro conceitualismo25. Kosuth defendia que questionar a natureza da arte a

prpria natureza da arte, que no sobre beleza, mas sobre conceito, e que o valor

dos artistas depois de Duchamp poderia ser medido de acordo com o quanto

questionaram a natureza da arte. No s suas ideias, mas tambm seu trabalho

influenciou Barcellos, com a questo da imagem de um objeto, da definio de um

objeto e sua comparao com o objeto real. Sobre sua experincia como professora,

ela afirmou26:

Em 1970, eu entrei para a Feevale para dar aula, ento eu tive que reciclar bastante meus conhecimentos, eu j tinha nessa poca um interesse bem grande por arte conceitual. Dar aulas me obrigou muito a ler, a atualizar minhas informaes sobre o que estava acontecendo no mundo da arte, ento realmente isso me ajudou bastante na atualizao do meu prprio trabalho. Se bem que eu viajava, eu ia para So Paulo ver as bienais, j tinha visto muita coisa tambm. Em 68 eu tinha ido aos Estados Unidos, e tal. Mas o conceitual vem aparecendo nessa poca, mais ou menos. Eu tambm comprei l um livro sobre Duchamp e todas essas coisas. Ento as informaes foram se acumulando e transformando meu trabalho. Acho que as leituras ajudaram bastante, Catherine Millet, Joseph Kosuth...

Podem-se ainda citar outras influncias conceituais ou inovadoras dessa

poca, como o trabalho de Cildo Meirelles27 artista que, segundo Barcellos, nasceu

conceitual, a realizao do curso terico-prtico sobre a criatividade e o conceitual,

chamado Proposies Criativas, ministrado por Jlio Plaza28, em 1971, a convite do

24 Joseph Kosuth (1945) um influente artista conceitual norte-americano. 25 Entrevista publicada em Imagens em Migrao: uma exposio de Vera Chaves Barcellos, de 2009, realizada pela curadora Glria Ferreira. 26 Entrevista realizada por Camila Schenkel, em Porto Alegre, em 2010, publicada em sua dissertao de mestrado Distenes da Imagem, publicada em 2011. 27 Cildo Meireles (Rio de Janeiro, 1948) um artista conceitual. 28 Julio Plaza (Madri, 1938 So Paulo, 2003), foi um artista visual que trabalhou com serigrafia, gravura, arte postal, esculturas, poesias manipulveis e impressos diversos. Foi professor e terico crtico das estruturas garantidoras do sistema das artes.

26

Instituto de Artes da UFRGS. O artista que influenciado pelas prticas concretistas

realizou trabalhos que uniam as artes grficas ao texto, a fim de emprestar

tridimensionalidade palavra sacudiu a cena local com seus postulados

inovadores. Em vez de estimular o produto artstico como objeto acabado, esttico e

atemporal, as ideias de Plaza conduziam os alunos a uma forma artstica no

objetal, processual e temporal, portanto efmera. O artista destacava tambm a

importncia do desenvolvimento da criatividade em atividades no espao urbano, o

que causou grande impacto nos alunos.

Com relao s suas prticas, outra causa importante para ruptura de

Barcellos com suas razes em uma tradio moderna e sua mudana de

posicionamento em relao arte foi a utilizao da fotografia e as consequentes

reflexes acerca das representaes da realidade, das diferentes relaes da

imagem com o real e com as realidades humanas e sociais. Em 1969 ela j

fotografava, contudo foi em 1972 que Barcellos utilizou pela primeira vez a imagem

fotogrfica como um dos elementos de sua obra. Aos poucos ela foi abandonando a

gravura e incluindo a fotografia na sua prtica artstica, que acabou por se instalar

como elemento constitutivo mais importante de seu trabalho. Sobre a utilizao da

fotografia a artista comentou:

Creio que nesse momento [final dos anos 60] j estava em mim um germe de inquietao que me levaria a mudanas mais radicais, que viriam depois, com o uso da fotografia. A partir de 1973, a fotografia se instala como meio mais importante do meu trabalho, com uma potica de anlise da realidade, passando pelas projees de realidades internas e pessoais at a documentao superficial da pele. Creio que todos esses trabalhos pertenciam a uma forma investigativa e o que mais me interessava nesse perodo, muito mais do que a obra acabada, era o que certos estmulos poderiam despertar no espectador, em seu imaginrio e em sua forma de olhar.

Essa introduo da fotografia ocorreu naturalmente, em decorrncia das

influncias que vinha recebendo, bem como do interesse pela imagem fotogrfica

que nutria desde a infncia, herdado do pai, que chegou a ter um laboratrio

fotogrfico29.A artista passou a explorar em seus trabalhos os diversos recursos e

possibilidades da fotografia, combinados na maioria das vezes a outras tcnicas,

como serigrafia, pintura, desenho e texto. Fotografando ela mesma os objetos de

seu interesse, educando assim o seu olhar, aguou suas reflexes sobre o processo 29 Entrevista concedida Glria Ferreira, publicada em Imagens em Migrao, p. 16.

27

da percepo e sobre a apreenso do real, que se desdobraram na explorao de

ampliaes, cortes, redues e outras modificaes na elaborao de imagens e

suas respectivas reflexes, acompanhando o perodo da virada conceitual da artista.

Em 1973, em seu primeiro livro de artista, Ciclo, Barcellos utilizou serigrafias

feitas a partir de imagens fotogrficas com o intuito de provocar o processo analtico

acerca das prprias imagens e dos fenmenos vividos pela coisa representada. Em

1974, essa reflexo sobre a percepo culminou com a realizao do primeiro dos

trabalhos da srie Testartes, que mais uma vez contava com a participao ativa do

espectador. Entretanto, diferentemente dos trabalhos realizados em gravura

anteriormente, cujos espectadores eram instados a manipular elementos formais,

desta vez eles eram instigados a olhar para as imagens apresentadas e responder

perguntas sobre elas, sobre

que atitudes tomariam em

cada uma das situaes

expostas, o que revelava a

projeo do imaginrio de

cada um sobre a imagem,

com certo teor psicolgico.

Esse primeiro

trabalho foi apresentado em

forma de envelope,

contendo sete imagens,

cada um com uma breve

descrio da situao

seguida de uma pergunta,

distribudos s pessoas a

fim de que respondessem a

si mesmas, em silncio.

Depois a artista produziu

mais sete trabalhos da

srie, o ltimo em 1980.

5. Uma das imagens de Testarte I, 1974.

28

Em 1975, Barcellos recebeu uma bolsa de estudos do British Council30,

optando ir para o Croydon College, em Londres, por recomendao da amiga

Theresa Miranda, que l estivera um ano antes. Nessa segunda estada na Europa,

j mais experiente do que na primeira vez, e j com um trabalho mais conceitual,

aprofundou seus conhecimentos em fotografia e sua aplicao s tcnicas grficas.

O ano seguinte foi emblemtico: a artista participou da Bienal de Veneza,

com o trabalho Testarte I, na verso em italiano e, de volta ao Brasil, participou da

redao e da difuso do Manifesto crtico ao sistema das artes publicado na

imprensa local e divulgado na exposio Atividades Continuadas, no MARGS

assinado tambm por Carlos Asp, Carlos Pasquetti, Clvis Dariano, Jesus Escobar,

Mara Alvares, Romanita Disconzi e Telmo Lanes, todos eles ento jovens artistas de

Porto Alegre. O grupo tinha comeado a se reunir com o objetivo de trocar ideias

sobre o prprio trabalho e debater problemas da arte em geral, como as

possibilidades de atuao profissional e cultural na cidade, as polticas culturais das

instituies oficiais e a distribuio de verbas pblicas para o setor cultural, reunies

que culminaram com a redao do manifesto e a assuno de uma posio pblica

crtica ao mercado da arte, o que afastou alguns participantes originais do grupo. O

coletivo se reunia no estdio de Clvis Dariano, onde desenvolviam ideias,

propostas e realizavam experincias com fotografia. Em consequncia dessas

reunies, o grupo de artistas editou em abril de 1977 o primeiro boletim Nervo

ptico, como forma de concretizar a divulgao de seus trabalhos, o qual era

distribudo gratuitamente em livrarias, faculdades e galerias, e remetido via postal a

crticos de arte em outros centros no Brasil e no exterior. Nos doze meses seguintes

foram editados mensalmente mais doze cartazetes, at setembro de 1978.

Durante o perodo de atuao do Nervo ptico, Barcellos fez viagens a

diversos pases da Europa e aos Estados Unidos, realizando diversas sries

fotogrficas, entre elas On ice (Amsterd, 1977), em parceria com Flvio Pons e

Cludio Goulart, que foi publicada no Nervo ptico n. 11, de maio de 1978. Sobre

essa viagem ela comentou31:

30 O British Council uma instituio pblica do Reino Unido, uma organizao internacional para relaes culturais e oportunidades educacionais. 31 Entrevista publicada em Imagens em Migrao: uma exposio de Vera Chaves Barcellos, de 2009, realizada pela curadora Glria Ferreira.

29

Em fins de 1977 at maro de 1978, fiz uma viagem de uns quatro meses. [...] Quase todos os artistas que visitei me deram catlogos sobre suas obras, material esse que est hoje em nosso arquivo, na Fundao [Vera Chaves Barcellos]. Fui tambm a muitas e excelentes galerias, e o que via agradava-me muito. Era o auge da arte conceitual. [...] Essa viagem foi muito enriquecedora pra mim.

6. Documentos diversos do Nervo ptico, apresentados na exposio O Gro da Imagem, 2007.

Em 1979, a artista exps Muros ou homenagem a Leonardo, sua primeira

instalao, em Buenos Aires, Argentina. No mesmo ano, aps a dissoluo do

coletivo Nervo ptico, Vera Chaves Barcellos e Telmo Lanes, remanescentes do

grupo, Ana Torrano, Heloisa Schneiders da Silva, Karin Lambrecht, Regina Coeli e

Simone Basso, oriundas do Instituto de Artes da UFRGS, e Cris Vigiano, Rogrio

Nazari, Milton Kurtz, Mario Rohnelt, Carlos Wladimirsky, Ricardo Argemi e Srgio

Sakakibara, artistas vinculados ao teatro, msica, arte postal ou arte xerox,

idealizaram e criaram o Centro Alternativo de Cultura Espao N.O., lugar destinado

veiculao de variadas manifestaes artsticas, nos campos das artes, da msica,

do teatro e da dana, com o objetivo de difundir e promover a produo cultural cuja

concepo fosse voltada ao experimentalismo, principalmente aquela que no tinha

respaldo junto ao mercado ou instituies culturais oficiais, por meio da organizao

e divulgao de eventos, cursos, palestras, intercmbios, etc. A sala que abrigou o

Espao N.O. foi cedida por Vera Chaves Barcellos e localizava-se no prdio da

30

Galeria Chaves, no centro de Porto Alegre, tendo sido reformada para adequar-se

s diversificadas propostas de exposies, performances, instalaes, cursos e

demais mostras que por ali passaram.

A reorganizao de um grupo de artistas em torno de um objetivo comum

surgiu a partir de uma rede de contatos estabelecida, entre outros, por Cludio

Goulart, Karin Lambrecht, Ana Torrano, Vera Chaves Barcellos e Ulises Carrin,

artista responsvel pela Other Books and So, livraria em Amsterdam especializada

em livros de artista, arte conceitual e experimental, e pela publicao Ephemera, que

em 1978 circulou com um encarte do cartazete Nervo ptico n. 10.

O Espao N.O. permaneceu em funcionamento at 1982, tendo sido

desativado em razo das dificuldades dos organizadores em manter o padro de

qualidade sem que precisassem dedicar-se integralmente s atividades de

organizao e administrao, em detrimento s suas carreiras individuais,

incumbindo Barcellos a responsabilidade de manter o arquivo documental do

centro.

Segundo Soulages (2009, p. 38), a aventura de Vera Chaves Barcellos no

Nervo ptico e no Espao N.O. capital para sua vida e sua obra: ela adquire

assim uma total maturidade. Os anos 70 so, efetivamente, decisivos para ela, tanto

no plano pessoal como no plano artstico. De fato, aquela interao entre os artistas

foi muito produtiva e enriquecedora, pois possibilitou a abertura e o dilogo com

outros centros culturais do pas e do mundo, bem como incentivou a interseo entre

diversas formas de expresso cultural no Estado, no momento em que predominava

certo conservadorismo artstico.

A partir dessa experincia com os grupos, Barcellos se manteve bastante

produtiva e articulada com outros centros, preocupada em movimentar o circuito

artstico local. Nos incio dos anos 1980, produziu, entre outros trabalhos, a srie

Ateno, processo seletivo do perceber, com a qual deu continuidade s pesquisas

sobre a percepo, e sries fotogrficas, como Per(so)nas, em que aborda o tema

feminino, com a qual participou da I Bienal de Havana, em Cuba, e Detalhes, srie

em que retratou recortes de pessoas, chamando a ateno para detalhes do corpo,

dos gestos ou de suas vestimentas.

31

Nos anos 1980, com a abertura poltica e a redemocratizao do pas,

ocorreu no meio artstico o fenmeno chamado de retorno pintura, uma

movimentao artstica vinculada ao ambiente de liberdade ps ditadura e apoiada

pela crtica, que enfatizava seu carter emocional em detrimento da frieza das

linguagens conceituais e minimalistas que estiveram em evidncia ao longo dos

anos 1960 e 1970, e acolhida pelos interesses mercadolgicos de galerias, museus

e demais instituies legitimadoras da arte, sob o rtulo de Gerao 80.

Os artistas como Barcellos, que tinham o currculo ou boa parte dele voltado

para as pesquisas conceituais, privilegiando a ideia em vez do objeto, e para a

crtica voracidade do mercado de arte que compelia os artistas a produzirem

compulsivamente produtos vendveis, dispersando sua concentrao e a

capacidade reflexiva, os anos 80 apresentaram-se como mais um desafio. Sobre

esse assunto a artista falou32:

32 Texto Trajetria, de Vera Chaves Barcellos.In: O Gro da Imagem, 2007.

7. Per(so)nas, 1980. Algumas imagens da srie.

32

Nessa poca, me senti deslocada do contexto brasileiro, quando a pintura voltara a ser praticada quase como uma moda obrigatria, e a fotografia, central em meu trabalho, no era levada em conta pelo poder dominante na arte brasileira dessa poca. A partir de 1986, passei a residir tambm em Barcelona, Espanha. Produzi a srie Cadernos para colorir I, inmeras variantes a partir de uma nica imagem fotogrfica e meios de manipulao e reproduo, forma irnica de comentar a pintura reinante na dcada de 80 e a questo da cpia.

Nessa poca, ela seguiu perseguindo a pesquisa irnica e crtica da pintura

e do objeto de arte nico, em diversos outros trabalhos, em sintonia com as

pesquisas anteriores sobre a percepo da imagem, uma vez que, de certa forma,

enfatiza e chama a ateno para os detalhes, recortando a imagem e fazendo-a

perder o sentido por meio dessa fragmentao. Para Soulages (2009) ela

desencadeia, ento, um processo de cpia da cpia da cpia para um projeto final

que uma caricatura da pintura, mostrando geralmente imagens duplicadas a partir

de diferentes tratamentos.

Desde sua mudana para a Espanha em 1986, com o companheiro Patricio

Faras, artista chileno, ela mantm ateli e atividades profissionais no Brasil e na

Espanha, conquistando a nacionalidade espanhola, em 2004. Seu trabalho tornou-

se uma ponte cultural entre os dois pases. Em Barcelona, ela trabalhou durante

muitos anos na Galeria Artual, at seu fechamento em 1996, onde fez trs

exposies individuais. Foi l que apresentou pela primeira vez a instalao Dones

de la vida, em 1992, que faz parte da srie Memorial, em que retomou a temtica

feminina. Sua primeira exposio individual em Barcelona ocorreu na galeria Art

Ginesta, em 1987, em que apresentou Cadernos para colorir II, srie de imagens

fotogrficas manipuladas, cujo ponto de partida foi um ensaio intitulado O jardim,

que a artista fez de esttuas que ornamentam jardins e que segundo a artista,

copiavam de maneira grotesca e primitiva figuras-chave da histria da arte

clssica33.

No Brasil, em 1987, a artista participou da mostra coletiva itinerante Misses

300 Anos: a Viso do Artista, a convite do crtico Frederico Moraes, com a instalao

Em busca da cabea, em busca do corao..., decorrente de projeto desenvolvido

na regio das Misses Jesuticas. A partir de ento passou a explorar com

33 Idem.

33

profundidade os trabalhos realizados em trs dimenses, sem abandonar a

fotografia como elemento primordial de sua pesquisa, e realizando ainda, alm das

instalaes, muitas sries oriundas de manipulao de imagens fotogrficas. Ela

segue revisitando temas explorados nos perodos anteriores, os quais reaparecem

modificados pelo emprego de novos materiais e pela composio de novos arranjos.

8. Retratos, 1992-1993. Algumas imagens da srie.

Algumas outras importantes obras dos anos 1980 e 1990 so: Mos na

praia, de 1986, srie fotogrfica em que capturou mos de banhistas em uma praia

de Barcelona; Jogo de damas, de 1986-1987, srie de trinta e duas variaes da

mesma imagem atravs da fotocpia; O peito do heri, instalao com a qual

participa da XX Bienal de So Paulo, em 1989; Retratos, de 1992-1993, srie

fotogrfica que retrata mulheres de costas; Enigmas, instalao exposta pela

primeira vez na Galeria Artual, em 1996; O que restou da passagem do anjo,

34

instalao que integrou a 25 edio da exposio Panorama da Arte Brasileira, no

Museu de Arte Moderna de So Paulo, em 1997, e pela qual recebeu o Prmio de

Aquisio; e Cegueses: o caminho de Tirsias ou reflexes sobre a cegueira: um

ensaio sobre cinco artistas brasileiros, tambm de 1997, que integrou o evento

internacional multidisciplinar Cegueses, no Museu DArt de Girona, que teve como

fio condutor mltiplas interpretaes ou metforas sobre a cegueira, apresentadas

por meio das artes visuais, da literatura e de um ciclo de palestras. Nesse trabalho

ela vendou trinta e seis janelas do mezanino do museu, denominado El Mirador, com

textos sobre as obras de Lygia Clark, Hlio Oiticica, Antonio Dias, Cildo Meirelles e

Waltrcio Caldas. De acordo com Carvalho (2004)34, esta operao subverte a

funo original deste local, que normalmente visitado como um mirante, a partir do

qual se descortina uma vista panormica da cidade.

Em 1999, com os artistas Carlos Pasquetti e Patricio Farias, fundou a

Galeria Obra Aberta, que funcionou at 2002, dedicada produo de arte

contempornea e sediada na Galeria Chaves, espao (passagem) comercial no

centro de Porto Alegre. A galeria abrigou mais de vinte exposies de artistas de

projeo nacional e internacional, como Karin Lambrecht, Begoa Egurbide, Antoni

Muntadas, Lia Menna Barreto, Lcia Koch, Nick Rands, Luiz Carlos Felizardo, entre

outros.

Em 2000, Barcellos teve seu trabalho presente na mostra Territrio

Expandido II a Foto, em So Paulo, com a obra Os nadadores, instalao que j

havia exposto pela primeira vez em 1998, em Barcelona. A obra se constituiu a partir

de uma imagem apropriada de jornal, que retratava quatorze nadadores amadores

participando de uma competio, que ela recortou, manipulou e transformou em

oitenta outras imagens, com as quais, na primeira verso, preencheu um carretel de

projetor de slides, que projetou em um aqurio, em uma sequncia que sugeria

movimento. Em outra verso, ela exibiu as oitenta imagens em uma plotagem35 de

dezessete metros. Em 2001, integrou a mostra coletiva Sem Fronteiras, que

inaugurou o Santander Cultural, em Porto Alegre, importante centro cultural da

34 Carvalho. Ana Maria Albani. Vera Chaves Barcellos: uma obra contempornea de seu tempo.

35 Tcnica de impresso em larga escala, por meio de um equipamento chamado plotter.

35

cidade, dedicado a incentivar as artes visuais, o cinema, a msica e o conhecimento

por meio de atividades diversificadas e frequentes.

Em 2004, com a doao de sua coleo particular, criou a Fundao Vera

Chaves Barcellos, uma entidade cultural privada e sem fins lucrativos, que tem como

misso a preservao, a pesquisa e a difuso da obra da artista, assim como o

incentivo criao artstica e a divulgao e investigao da arte contempornea,

instituio por meio da qual Barcellos continua participando ativamente da animao

cultural local. Entre as metas da instituio esto: a realizao de uma programao

regular de exposies, o estmulo pesquisa e a realizao de debates, seminrios

e projetos editoriais. Sua programao conta com exposies regulares e gratuitas,

acompanhadas de atividades paralelas, com o intuito de dar suporte ao debate da

arte contempornea. A Fundao dispe ainda de um acervo documental sobre arte

contempornea, aberto pesquisa pblica desde 2008, quando aumentou sua

coleo, atravs da aquisio de livros e catlogos e iniciou um processo de

intercmbio com outros centros de pesquisa do Brasil e do exterior.

9. Sede da Fundao Vera Chaves Barcellos, em Viamo.

Na sede de Viamo, na regio metropolitana de Porto Alegre, esto

localizadas a Sala dos Pomares, um prdio de 400 m construdo especialmente

para abrigar a programao de exposies e de atividades, com reas expositivas e

salas multiuso e de trabalho, e a Reserva Tcnica, que abriga o acervo de obras da

36

instituio. Em 2005, a exposio Enigmas deu incio s atividades da Fundao, no

Espao 0, localizado na Galeria Chaves, mesmo local que j abrigara o Espao N.O

e a Galeria Obra Aberta e que abrigou exposies at a inaugurao da Sala dos

Pomares, em Viamo, em 2010, com a exposio Silncios e Sussurros.

10. Parte da exposio O Gro da Imagem, no Santander Cultural, 2007.

Entre maio e julho de 2007, o Centro Cultural Santander apresentou a

exposio O Gro da Imagem: uma Viagem pela Potica de Vera Chaves Barcellos,

uma retrospectiva dos quarenta anos da trajetria da artista, com cento e quatorze

obras selecionadas pelos curadores Fernando Cocchiarale, Moacir dos Anjos, e

Agnaldo Farias, com consultoria de Ana Maria Albani de Carvalho e Neiva Bohns,

que reuniram obras realizadas desde os anos 1960 e, inclusive, trabalhos inditos,

como No a la guerra, vdeo feito sob o impacto da Guerra do Iraque em 2003, que

mostra a artista recebendo tapas imaginrios no rosto, alternadas com imagens da

guerra, apropriadas da mdia impressa, ou ainda no apresentados no Brasil, como

Dones de la vida.

37

Em 2009, a Zouk Editora publicou o livro Vera Chaves Barcellos: obras

incompletas, com um ensaio do crtico francs Pierre Soulages, uma cronologia

comentada e um caderno com imagens de obras da artista, produzidas entre 1963 e

2007.

Na dcada de 2000, realizou alguns trabalhos, entre eles Meus ps, srie

fotogrfica em processo, iniciada nos autos 1970 e retomada nos anos 2000, em

que captura ps de pessoas, inclusive os seus prprios, Casasubu, de 2006, um

jogo de imagens de casas captadas na praia de Ubu, no estado de Esprito Santo, e

Silhuetas, de 2005, srie de fotografias de figuras humanas desfocadas, na

penumbra do anoitecer, que caminham na praia de Garopaba, em Santa Catarina.

At os dias atuais, Vera Chaves Barcellos continua ativa profissionalmente e

desempenhando papel importante na animao cultural local e, tambm, no

intercmbio no meio artstico devido s suas atividades no exterior e relaes com

artista e pessoas ligadas arte em diversos pases do mundo.

38

2 APROXIMAO TERICA AO LIVRO DE ARTISTA

A categoria livro de artista permanece ainda hoje situada em um campo

aberto de significaes para teorias de arte. Para que se possa entender de que

forma o suporte livro originou-se e consolidou-se como campo de atuao no

universo de possibilidades artsticas, poderamos retornar quase indefinidamente na

Histria. Contudo, destaca-se aqui o momento da popularizao desse objeto,

ocorrida a partir da Idade Moderna, em razo da impresso com tipos mveis, do

uso mais difundido do papel e da portabilidade que passou ento a proporcionar.

quando os cadernos assumem gradualmente a funo de registro de processos

criativos, como desenhos de observao, esboos, anotaes do cotidiano artstico

e existencial, de viagens, de passeios ou de ideias, tornando-se, por vezes,

autobiogrficos, mas sem muito comprometimento formal, podendo deles resultar

objetos de intimidade e de vulnerabilidade do seu criador, pois no concebidos para

serem expostos ao pblico.

A manuteno desses dirios difundiu-se com o passar do tempo e com o

aumento das facilidades tecnolgicas de seus materiais, passando a simbolizar o

preldio de novos projetos e revelando a dinmica interior da criatividade de artistas

dos mais variados mbitos. Contudo, foi somente no sculo XX, consubstanciando-

se a partir da segunda metade desse sculo, que surgiu a disposio para

apresentao de tais objetos como obras de arte, no intuito de uma proposio

conceitual, deliberada pelo prprio artista. Tanto que um termo muito comum para

designar esse tipo de produo, antes da consolidao do termo livro de artista, era

justamente cadernos. De acordo com Luna (2012):

Neste sentido, sua valorizao se dar por apresentarem aspectos mais vulnerveis de seus/suas criadores/as, por revelarem infncias criativas de posteriores genialidades maduras. Sero como os bastidores de uma produo a ser exposta (no necessariamente mais bem acabada) [...].

Apontam-se aqui algumas aparies marcantes no sistema de artes como

referncias para o livro de artista contemporneo e que ajudam a elucidar as

caractersticas dessa linguagem, como os famosos cadernos de Leonardo Da Vinci,

feitos no sculo XV, que eram folhas de anotaes e rascunhos concebidas soltas e

39

posteriormente agrupadas em volumes, os cadernos de viagem ao Marrocos de

Delacroix36, feitos em 1832, e algumas experincias de Marcel Duchamp37, como a

Caixa verde, de 1934.

11. Delacroix, Caderno de viagem ao Marrocos, 1832.

A partir dos anos 1960-1970, a explorao mais conceituada desse suporte,

j ntimo do meio artstico, sinalizou a complexa relao que se desenvolveria entre

as produes relativas ao livro, em todas as suas possibilidades formais e

conceituais, e as artes visuais, engendrando o que viria a ser o livro de artista,

produto da arte contempornea, inclusive como objeto de controvrsias

inconciliveis. De acordo com Castleman (1972, p. 206-207 apud Silveira, 2001, p.

32):

O livro pode apresentar-se como livro-objeto, como livro de artista ou livro de artista artesanal; pode fazer parte dos livros de biblifilo ou manifestar-se como documento de performances, de trabalhos conceituais ou experincias de land art; pode assumir a forma de livro ilustrado por artistas ou de livro-objeto, livro-poema ou poema-livro, e outras denominaes, as quais podem diferir a partir da concepo do referido objeto. Em realidade, no esto claros os limites entre o que um livro de artista e o que no , pois existem diferenas conceituais de autor para autor.

36 Eugene Delacroix foi um pintor francs que, em 1832, participou de uma misso diplomtica no Marrocos e realizou os registros de sua viagem nos Cadernos de viagem ao Marrocos. 37 Marcel Duchamp (1887-1968) foi um pintor, escultor e poeta francs, cidado dos Estados Unidos a partir de 1955, e inventor dos ready made.

40

Essa transformao progressiva acompanhou o desejo das atitudes

artsticas desse perodo, que visavam ampliar e buscar novos caminhos para a arte,

questionando os espaos expositivos do circuito comercial oficial e propondo uma

mudana na experincia esttica proporcionada aos espectadores, rompendo com a

contemplao restrita visualidade, vinculada s instituies de arte consagradas,

e, no raro, convidando-os, incitando-os ou induzindo-os a interagir com a obra ou

com a manifestao artstica apresentada.

Nos Estados Unidos, os primrdios do livro de artista esto relacionados s

publicaes do Fluxus, movimento artstico de cunho libertrio, caracterizado pela

mescla de diferentes artes, inicialmente das artes visuais, mas tambm da msica e

da literatura, dos quais um dos organizadores foi o artista e compositor John Cage38,

que viria a inspirar Vera Chaves Barcellos na produo de sua srie Ateno,

processo seletivo do perceber, iniciada em 1980, com a frase o mundo muda de

acordo com nosso foco de ateno. O movimento teve seu momento mais ativo

entre as dcadas de 1960-1970, declarando-se contra o objeto artstico tradicional

como mercadoria e proclamando-se como a antiarte.

Outra referncia importante acerca das origens da produo artstica de

livros Edward Ruscha, artista ligado Arte Pop e muito citado por crticos e

pesquisadores do tema, a quem se atribui o crdito de demonstrar que o livro pode

ser um veculo primrio para expresso artstica individual (Silveira, 2001, p. 46).

Ele publicou, em 1963, o livro que para alguns pode ser considerado o marco inicial

desse tipo de produo, embora a maioria dos autores, como Johanna Drucker39,

prefiram no estabelecer uma obra pioneira, uma vez que se trataria de uma

categoria que simplesmente emergiu com muitos pontos de origem e originalidade.

Esse trabalho foi chamado de Twentysix gasoline stations, nele o artista apresentou

uma srie de vinte e seis fotografias de postos de gasolina capturadas ao longo da

extinta Route 66, estrada que atravessava os Estados Unidos e ligava Chicago, no

Illinois, a Santa Mnica, na Califrnia, totalizando 3.755 km. Essa publicao, feita

pela editora National Excelsior Press, de propriedade do prprio artista, estava em

consonncia com uma cultura emergente e interessada nas possibilidades de uma

38 John Milton Cage Jr. (1912-1992) foi um compositor, terico musical, escritor, admirador anarquista e artista dos Estados Unidos. 39 Johanna Drucker (1952) artista e escritora, criadora de livros de artista e professora universitria nos Estados Unidos.

41

arte independente, que possibilitasse o acesso fcil e a distribuio da produo em

arte, o que a portabilidade do livro, associada s possibilidades de reproduo de

baixo custo, permitia.

82. Ed Ruscha. Twentysix gasoline stations, 1963.

No Brasil, o perodo entre o fim dos anos 1940 e a dcada dos 1950 foi

particularmente frtil na cultura brasileira, segundo Silveira (2003):

Para as artes plsticas, que viviam a indita multiplicao de galerias de arte, era a poca do incremento do dilogo entre as produes regionais com a produo do centro do pas [...]. O Museu de Arte de So Paulo (MASP) havia sido inaugurado em 1947 e o Museu de Arte Moderna (MAM), em 1949. Confirmava-se o deslocamento do centro artstico do Rio de Janeiro [...] para So Paulo [...]. Os artistas figurativos perderam terreno e consagrou-se a abstrao. O prazer geomtrico, os experimentos perceptivos, a pesquisa da linguagem e uma particular vocao pela leitura espacial seriam o sedimento da cultura visual superior no Brasil. A poesia concreta e o poema-processo seriam os principais produtores de livros de artista at o final dos anos 70.

Nesse terreno de experimentaes, com relao s origens do livro de

artista no Brasil, o movimento do Concretismo configurou-se para alguns como

inaugurador desse campo de atuao, por meio das pesquisas visuais com a

42

palavra iniciadas por poetas e escritores e levadas ao campo artstico por meio de

interseces e de parcerias com artistas.

Alm disso, uma das primeiras obras plenas realizadas, ou seja, sem a

dvida de sua condio, foi A ave, de Wlademir Dias Pino, concebido a partir de

1948 e publicado em 1956, com tiragem de 300 exemplares. O trabalho

considerado precursor e inovador porque planejado e executado integralmente por

um nico artista e, tambm, por sua fruio depender da sequencialidade das

pginas, cuja estrutura exige o manuseio contnuo como parte integrante do poema.

Como resume Silveira (2003), a obra existe porque existe o livro.

93. Wlademir Dias Pino, A ave, 1956. Capa e vrias aberturas.

Outro nome que se destaca nesse perodo o de Julio Plaza, artista

espanhol que a partir da dcada de 1970 desenvolveu suas atividades profissionais

e construiu sua vida artstica e acadmica no Brasil. Ele frequentemente associado

aos irmos Augusto e Haroldo de Campos, poetas, tradutores e fundadores do grupo

Noigandres40, formado em 1952, em So Paulo, com o tambm poeta e tradutor

Dcio Pignatari, responsveis pela criao do movimento da Poesia Concreta, com

interesse em produzir mudanas radicais na forma de elaborar poemas visuais, que

acaba reverberando nas demais reas de produo artstica de vanguarda. A eles

juntaram-se posteriormente os cariocas Ronaldo Azeredo e Jos Lino Grnewald.

As atividades do grupo resultaram na publicao de uma revista homnima, entre os

40 A palavra noigandres aparece em um dos poemas do trovador provenal Arnaut Daniel de Riberac (1180-1210) e tem sentido incerto, podendo significar noz moscada. A palavra foi citada no Canto XX do poeta e crtico literrio norte-americano Ezra Pound (1885-1972), em que narra um dilogo com Emil Lvy, provenalista alemo, a quem questiona o seu significado.

43

anos de 1952 e 1962, onde apresentavam os resultados de suas experimentaes

artsticas, textos explicativos e poemas visuais.

Plaza participou de inmeros eventos relacionados com arte e tecnologia no

Brasil, seja como artista/criador, seja como organizador, curador (atuando na seo

sobre arte postal da XVI Bienal de So Paulo, em 1981) ou crtico. Como professor,

ofereceu cursos e oficinas de criao, como Proposiciones Creativas, ocorrida em

Porto Alegre, em 1971, do qual Vera Chaves Barcellos participou. Alm disso, deu

sua contribuio terica escrevendo alguns textos sobre o tema livro de artista.

Realizou trabalhos individuais e, interessado na pesquisa criativa sobre

livros, atuou tambm em colaborao com os poetas concretistas. Da parceria com

Augusto de Campos nasceram trabalhos inovadores e engenhosos, pelos quais se

notabilizou: o livro Poembiles, de 1974, poesias manipulveis e desdobrveis

constitudas a partir de textos sintticos e de dobraduras em papel, definidas por

Plaza como livros-poema ou livros-objeto, Caixa preta, de 1975, e Reduchamp, de

1976.

O que caracteriza o livro-poema a explorao das caractersticas fsicas do

livro como parte integrante do poema, de forma que ambos coexistam em uma

relao simbitica, interdependente.

104. Julio Plaza e Augusto de Campos, Poembiles, 2010. Reedio.

44

15. Julio Plaza e Augusto de Campos, Poembiles. Algumas aberturas.

Embora a histria do livro de artista no Brasil se relacione diretamente

poesia concreta, poesia visual e ao poema-processo, esse campo de atuao

emerge de muitos pontos simultneos de origem, sendo, portanto, um campo que

recusa noo linear de histria. Das experincias concretistas, de fato,

desdobraram-se pesquisas posteriores relacionados ao livro, contudo, produes

paralelas, como as pesquisas de Alosio Magalhes41 nas oficinas dO Grfico

Amador42, em Recife, nos anos 50; o trabalho de Wlademir Dias Pino, j citado; e a

fecunda produo experimental da neoconcretista43 Lygia Pape44, com suas

pesquisas que tensionaram as fronteiras das categorias tradicionais da arte, e deram

origem, por exemplo, ao Livro de criao, em 1959; tambm podem ser entendidas

como pioneiras e influenciadoras dessa categoria, alm de diversas outras

produes individuais que se configuraram como ponto de confluncia de

experincias que desencadearam inmeras pesquisas posteriores relacionadas ao

campo do livro de artista.

41 Alosio Srgio Barbosa de Magalhes (1927-1982) foi um designer grfico brasileiro considerado pioneiro na introduo do design moderno no Brasil, tendo ajudado a fundar a primeira escola superior de design no pas, a Escola Superior de Desenho Industrial do Rio de Janeiro (ESDI). 42 O Grfico Amador foi uma grfica particular fundada em 1954, no Recife, por artistas e intelectuais pernambucanos. 43 O neoconcretismo foi um movimento artstico-literrio surgido em 23 de maro de 1959, com o lanamento do Manifesto Neoconcreto, na abertura da I Exposio de Arte Neoconcreta, no Rio de Janeiro, assinado por Ferreira Gullar, Ligia Clark, Ligia Pape, Amlcar de Castro, Franz Weissmann, Reynaldo Jardim e Theon Spanudis, como uma forma de reagir aos excessos trazidos pelo concretismo 44 Lygia Pape (1927- 2004) foi uma gravadora, escultora, pintora, professora e artista multimdia brasileira, identificada com o movimento conhecido por neoconcretismo.

45

Assim, com o passar dos anos, e com mais fora durante os anos 1970, a

vertente concreta iria fazer-se acompanhar pela vertente conceitual que se

manifestava de diversas formas. As influncias vinham de todo o mundo, atravs do

conceitualismo, da arte postal, do movimento Fluxus, da arte povera45 e de outras

manifestaes alternativas aos meios plsticos tradicionais. Foi nesse momento que

a opo pela utilizao do livro como suporte passou a operar no espao conceitual

de forma autoconsciente a respeito de sua forma e de seu significado, pressupondo-

se a intencionalidade, um projeto.

nesse contexto que se insere Vera Chaves Barcellos, artista que teve a

oportunidade de viajar e enriquecer seus reportrios terico e visual, conhecendo de

perto artistas, grupos e movimentos, como Joseph Beuys46, grupo CoBrA47, Ulises

Carrin, entre inmeros outros. Quando perguntada por Silveira48 sobre o momento

em que entendeu que deveria agregar a forma do livro no desenvolvimento do seu

projeto artstico, ela respondeu:

Nos anos 70, eu acho que era uma coisa que estava, vamos dizer, no ar, dos artistas que estavam trabalhando numa linha mais conceitual, e principalmente uns que estavam utilizando a fotografia, no ?, de fazer, de utilizar essa forma que se chama o livro de artista. Ento eu tambm nem sei se me lembro bem quais foram as razes que me levaram a fazer, mas talvez uma vontade... E principalmente eu trabalhei sempre com... nunca me forcei a fazer as coisas, no ?, mas eu acho que como existia um clima, assim, e que se viam coisas feitas nesse sentido, eu comecei a ter ideias que eram apropriadas para livro de artista [...] isso , para essa sequencia de pginas que formam um todo, ento eu comecei a fazer.

Ainda que no prprio campo das artes o livro seja objeto de inmeras

manifestaes contraditrias e at mesmo contestatrias, essas discusses sobre

os limites e as dificuldades impostas por essa nova categoria estenderam-se a

outras reas de conhecimento, externas ao campo das artes visuais, como a

45 Movimento artstico que se desenvolveu originalmente na segunda metade da dcada de 1960 na Itlia. Os seus adeptos utilizam materiais no convencionais, como areia, madeira, sacos, jornais, cordas, terra e trapos, com o intuito de "empobrecer" a obra de arte, a fim de reduzir as barreiras entre a Arte e o quotidiano das sociedades. 46 Joseph Heinrich Beuys (1921-1986) foi um artista alemo que produziu em vrios meios e tcnicas, incluindo escultura, happening, performance, vdeo e instalao. considerado um dos mais influentes artistas alemes da segunda metade do sculo XX. 47 O grupo CoBrA foi um movimento artstico da vanguarda europeia, criado em 8 de novembro de 1948, influenciado pela arte popular nrdica, expressionismo e surrealismo e atuante entre 1948 e 1951, embora reconhecido internacionalmente, principalmente nos Estados Unidos e na Europa na dcada de 1960. 48 Entrevista concedida em 1999, publicada em A Pgina Violada, 2008, p. 276.

46

biblioteconomia, responsvel por reunir e classificar informaes e conhecimentos,

pois impuseram certos obstculos de definies e catalogao e tambm a

necessidade de utilizao de novos mtodos; a literatura, arte de composio e

exposio escrita, intrinsecamente atrelada ao livro, por tratar-se de uma forma de

expresso que no raro coexiste com o contedo visual ou conceitual artstico em

uma obra, em um jogo sutil de predominncias e de intenes; e a comunicao

visual, que se utiliza de elementos visuais, tais como imagens, signos, grficos,

vdeos ou desenhos para expressar uma ou mais ideias e garantir a absoro

imediata da informao, cujos recursos passaram a ser explorados na arte

conceitual que visava passar mensagens ao espectador, e por consequncia nos

livros de artista, a fim de explorar a potncia comunicacional da obra livro-referente,

transformando-a justamente um veculo de comunicao.

116. Artur Barrio. Livro de carne, 1979.

Com relao definio, muitas foram as controvrsias nascidas com a

categoria livro de artista, principalmente em sua acepo mais abrangente, que

abarcaria, por exemplo, livros-objeto, espcimes nicos, como o Livro de carne, de

Artur Barrio, de 1978, como obra que desafia nossa viso usual de como um livro

parece, para o que serve e do que feito. Sobre esse trabalho, Barrio anotou em um

caderno-livro49:

49 Obras em forma de registro e anotaes que se afastam das linguagens tradicionais.

47

A leitura deste livro feita a partir do corte/ao da faca do aougueiro na carne com o consequente seccionamento das fibras/fissuras, etc., etc., assim como as diferentes tonalidades e coloraes. Para terminar necessrio no esquecer das temperaturas do contato sensorial (dos dedos), dos problemas sociais, etc. e etc................Boa leitura

Para Vera Chaves Barcellos50, o entendimento do livro se d principalmente

a partir da explorao que a sequencialidade que essa estrutura de pginas permite:

O livro normalmente funciona em sequencia de pginas. Ento j obriga, vamos dizer, a um tipo de ateno parecida com um leitor de um livro normal, ou comum. A pessoa tem que saber o que disse a primeira pgina, para associar com a