Os lusíadas
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Os Lusíadas
CAMÕES – A consciência de um século
(…) nunca Camões é um narrador neutro, objetivo, não comprometido. A sua epopeia
obedece ao intuito de dignificar o Homem na sua real grandeza, que resulta da sua
vitória permanente sobre a sua congénita fraqueza - e todo o Poema lá está a dizer-nos isso
mesmo, a vitória do homem sobre o “Céu sereno”, sobre o medo,(…) sobre Neptuno e
Baco, sobre as dificuldades sérias do “caminho da virtude”, “alto e fragoso / Mas, no fim,
doce, alegre e deleitoso”.
Esta vitória do Homem sobre a Natureza e – o que é mais – sobre si mesmo –,
abandonando o egoísmo, o gosto da vida fácil, é a vitória também contra o cepticismo de
quem acredita inviável a vitória final e, o que é mais, profetiza a queda, a desgraça, a
miséria final. É a vitória sobre o seu elemento natural – a Terra – para ser dono dos
outros elementos – a Água – e, quem sabe, talvez um dia também do Fogo querido por
Prometeu ou do Ar desejado por Ícaro.
É, portanto, uma profissão belíssima de fé a que Camões nos oferece.
Mas esta profissão de fé, perfeitamente enquadrada no espírito da época
renascentista, vai a par com a constatação muito clara de que os homens seus
contemporâneos vão progressivamente sendo abandonados pela fé nas suas possibilidades,
pelo ideal de heroicidade que Camões celebra. A pátria, a sua pátria, diz Camões com
amargura
… está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza
(X, est.145)
Daí a necessidade de fazer sentir como o Homem é grande, recordando feitos
gloriosos e incentivando os contemporâneos a partir para novas tarefas, capazes de fazer
reconquistar a fé perdida, a virtude. É esta, a meu ver, a principal mensagem d’Os
Lusíadas e o verdadeiro sentido das invectivas a D. Sebastião, o rei que então reinava em
período de “austera, apagada e vil tristeza”. Daí o sentido da generalidade dos excursos
moralizadores existentes no Poema, sobretudo nos finais de Canto. Ergue-se do conjunto
desses excursos uma teoria, uma ideologia, um conjunto de valores ético-políticos que
representam, sem dúvida, uma mensagem capaz de reerguer à grandeza o homem seu
contemporâneo.
O ideal de homem virtuoso é, para Camões, e ele di-lo claramente, o daquele que,
como ele, for possuidor de
…honesto estudo
Com longa experiência misturado
E também de “engenho”.
Como atingir este ideal?
Recusando uma vida ociosa, à sombra dos antepassados, no meio do luxo e do
conforto, (…), sendo forte na guerra; desprezando as “honras vãs” e o dinheiro fácil que
corrompe as consciências; difundindo a fé de Cristo; promovendo a europeização do
mundo; (…) protegendo e cultivando a poesia e demais artes; recusando a lisonja, o
egoísmo (…); a ambição de ocupar bons lugares para melhor se exercer a corrupção, (…)
Que os homens sejam justos em tempo de paz e isso significa a recusa da tirania,
da exploração dos pequenos; que sejam valentes em tempo de guerra.
Aos poetas compete celebrarem estes valores, dar-lhes o prémio merecido da
imortalidade; (…)
Portanto, há, da parte de Camões, um ideal bem definido de grandeza, a par da
consciência inquieta e amarga de que o seu tempo não é já tempo de grandeza. Daí o
seu grito de alarme e de esperança que não quer morrer, mas ser revivificada.(…)
Como, mais tarde, diria Fernando Pessoa, “É a hora!” (…)
Amélia Pinto Pais, Para Compreender Os Lusíadas, Areal Editores, 1981