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ADRIANO PEREIRA SANTOS OS MERCADOS DA AGRICULTURA FAMILIAR, SUAS INSTITUIÇÕES E AS HABILIDADES SOCIOECONÔMICAS DOS AGRICULTORES Dissertação apresentada à Universidade Federal de Viçosa, como parte das exigências do Programa de Pós- Graduação em Extensão Rural, para obtenção do título de Magister Scientiae. VIÇOSA MINAS GERAIS-BRASIL 2014

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ADRIANO PEREIRA SANTOS

OS MERCADOS DA AGRICULTURA FAMILIAR, SUAS INSTITUIÇÕES E AS

HABILIDADES SOCIOECONÔMICAS DOS AGRICULTORES

Dissertação apresentada à Universidade

Federal de Viçosa, como parte das

exigências do Programa de Pós-

Graduação em Extensão Rural, para

obtenção do título de Magister Scientiae.

VIÇOSA

MINAS GERAIS-BRASIL

2014

ii

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente aos meus pais, Ilda e José Carlos e a minha tia Ireny

tanto pela formação cultural que me proporcionaram como pela confiança, amor,

carinho e apoio incondicional.

À professora e amiga Nora Beatriz Presno Amodeo por ter acreditado em mim e

em meu potencial e pelos ensinamentos e conversas sempre muito ricas e inspiradoras

Gostaria de agradecer também aos agricultores e agricultoras de Viçosa que me

receberam sempre com muita atenção e solicitude, tornando a pesquisa de campo um

momento de muito aprendizado com conversas agradáveis e enriquecedoras para minha

formação pessoal e acadêmica.

Agradeço especialmente à minha companheira Marcella, uma mulher

maravilhosa, que me inspira e da forças, e com quem compartilho momentos de alegria

e felicidade. À razão do meu viver – Alice, o grande presente que o universo me deu,

um pequeno ser cheio de luz que faz com que cada instante vivido ao seu lado seja

repleto de alegria e amor.

À UFV, por todos os espaços de formação intelectual, profissional e pessoal nela

vivenciados. Aos colegas do Programa de Pós Graduação em Extensão Rural, aos

funcionários Carminha e Romildo e aos professores, especialmente à Ana Louise pela

confiança em mim depositada e pela enorme contribuição que suas aulas e ensinamentos

me proporcionaram nessa caminhada.

Agradeço também a todos meus amigos que estão sempre ao meu lado, me

dando forças e compartilhando alegrias e angústias, especialmente ao Tommy, Ramom,

Victor, Vinicius, Yuri, Luisa, Grazi e à pequena Iara que só nos faz sorrir.

Também devo agradecer a Capes pelo financiamento dos meus estudos, o que

me possibilitou dedicação exclusiva às atividades mestrado.

Finalmente à ITCP/UFV pelo companheirismo e aprendizado proporcionado, e

pela compreensão do coletivo por minha ausência na reta final deste trabalho. Agradeço

também a professora Bianca por todo o apoio e contribuição para meu aprimoramento

profissional.

iii

BIOGRAFIA

Adriano Pereira Santos. filho de Ilda Pereira dos Santos e José Carlos dos

Santos, nasceu em 08 de maio de 1987, em Guarulhos-SP

Aos dezessete anos ingressou no curso de ciências econômicas na Universidade

Federal de Viçosa, graduando-se em setembro de 2011.

Durante o período da graduação participou do Estágio Interdisciplinar de

Vivência do estado de Minas Gerais (EIV-MG), experiência essa que abriu os caminhos

para o interesse nas questões agrárias do Brasil.

No ano de 2006 iniciou seu estágio no programa de extensão Incubadora

Tecnológica de Cooperativas Populares, no qual permaneceu até julho de 2010, tendo

vivenciado experiências de trabalho junto a grupos populares que tiveram uma grande

contribuição para sua formação acadêmica e humana e profissional.

Ao final de 2011 vivenciou a marcante experiência de se tornar pai, com o

nascimento da Alice Cordeiro Costa Santos. No ano seguinte ingressou no Programa de

Pós Graduação em Extensão Rural iniciando sua trajetória como pesquisador, com

interesse em questões relacionadas a agricultura familiar, mercados e sociologia

econômica.

iv

SUMÁRIO

LISTA DE SIGLAS .......................................................................................................... vi

RESUMO ........................................................................................................................ vii

ABSTRACT ................................................................................................................... viii

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 1

1.2. OBJETIVOS .............................................................................................................. 3

1.2. METODOLOGIA ...................................................................................................... 5

2. A CONSTRUÇÃO SOCIOECONÔMICA DOS MERCADOS DA AGRICULTURA

FAMILIAR ........................................................................................................................ 7

2.1. AGRICULTURA FAMILIAR E MERCADOS. ............................................... 7

2.2. MERCADOS: DA PERSPECTIVA ECONÔMICA À SOCIOLÓGICA ....... 11

2.3. AS ESTRUTURAS, INSTITUIÇÕES E OS CAMPOS DA

COMERCIALIZAÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR ............................................. 18

3. OS MERCADOS DA AGRICULTURA FAMILIAR DE VIÇOSA ............................. 28

3.1. A FEIRA MUNICIPAL ..................................................................................... 32

3.2. O PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO ESCOOLAR (PNAE) OU

A “MERENDA ESCOLAR” ............................................................................................. 36

3.3. OS MERCADINHOS, RESTAURANTES E SUPERMERCADOS LOCAIS 41

3.4. O PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS (PAA) ......................... 44

3.5. A VENDA DIRETA E OS ATRAVESSADORES ............................................ 48

3.6. A REDE DE PROSSUMIDORES RAÍZES DA MATA ................................... 50

v

4. AS HABILIDADES SOCIOECONÔMICAS E AS ESTRATÉGIAS DE

COMERCIALIZAÇÃO DOS AGRICULTORES FAMILIARES.................................... 57

4.1. PRODUTIVA .................................................................................................... 61

4.2. CLIENTIZAÇÃO ............................................................................................. 68

4.3. ASSOCIAÇÃO E COOPERAÇÃO ................................................................. 72

4.4.GESTÃO EMPREENDEDORA ....................................................................... 77

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 82

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................ 85

vi

LISTA DE SIGLAS

ACSA: Associação Córrego Santo Antonio

ACVA: Associação Comunitária de Vista Alegre

ATER: Assistência Técnica e Extensão Rural

CAE: Conselho de Alimentação da Educação

CAEAF: Compra Antecipada Especial da Agricultura Familiar - Doação simultânea

CDAF: Compra Direta da Agricultura Familiar

CDLAF: Compra Direta Local da Agricultura Familiar

CNPq: Conselho Nacional de Desenvolvimento de Pesquisa e Tecnologia

CNPJ: Cadastro Nacional de Pessoa Física

CONAB: Companhia Nacional de Abastecimento

CPR – Estoque: Formação de Estoques pela Agricultura Familiar

DAP: Declaração de Aptidão ao Pronaf

EMATER: Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural

FL: Feira Livre de Viçosa

FLV: Frutas, Legumes e Verduras

FNDE: Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação

GAO: Grupo de Agroecologia e Agricultura Orgânica

IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IED: Investimento Estrangeiro Direto

IPCL: Incentivo à Produção e Consumo de Leite

ITCP/UFV – Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da UFV

MDA: Ministério do Desenvolvimento Agrário

NSE: Nova Sociologia Econômica

OMC: Organização Mundial do Comércio

PAA: Programa de Aquisição de Alimentos

PNAE: Programa Nacional de Alimentação Escolar

POA: Perspectiva Orientada aos Atores

PROEXT: Programa de Extensão Universitária

PRONAF: Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar

SAUIPE: Grupo de Saúde Integral em Permacultura

SENAES-MTE: Secretária Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho

e Emprego

STR: Sindicato dos Trabalhadores Rurais

vii

RESUMO

SANTOS, Adriano Pereira M. Sc., Universidade Federal de Viçosa, junho de 2014. Os

mercados da agricultura familiar, suas instituições e as habilidades

socioeconômicas dos agricultores. Orientadora: Nora Beatriz Presno Amodeo.

Estudos recentes evidenciam o significativo papel que a agricultura familiar

desempenha no tocante a oferta de alimentos para a população brasileira. No entanto,

muitos são os desafios que esses agricultores encontram para acessarem os diversos

mercados que estão ao seu alcance nos dias atuais. A literatura especializada ressalta a

diversidade que as práticas de comercialização assumem, sugerindo ainda a existência

de lacunas no tocante a compreensão das relações que os agricultores familiares

desenvolvem com os mercados. Nesse sentido, essa pesquisa objetivou identificar as

características e racionalidades típicas ao campo da comercialização da agricultura

familiar do município de Viçosa-MG, bem como analisar as diferentes habilidades

exigidas aos agricultores para o acesso aos canais de comercialização de sua produção.

Sob o intuito de possibilitar as classificações necessárias a esta análise, optou-se por

trabalhar especificamente com os mercados de frutas, legumes e verduras (FLV),

segmento que envolve grande parte dos mercados e dos produtos da agricultura familiar

no município. Utilizando a metodologia de estudo de caso, a partir do mapeamento dos

principais mercados deste segmento, foi possível identificar os atores sociais

responsáveis por realizar as transações econômicas nestes espaços e, por meio da

aplicação de entrevistas semiestruturadas e observação participante e não participante,

foram levantadas as principais habilidades desenvolvidas pelos agricultores para

obterem êxito em suas relações comerciais. As habilidades foram agrupadas em quatro

principais categorias, a saber: produtiva, clientização, cooperação e associação, e gestão

empreendedora. As quatro instituições sociais de mercado apresentadas por Fligstein

(2003), ou seja, os direitos de propriedade, as estruturas de governança, as concepções

de controle e as normas de transação constituíram as categorias utilizadas para a análise

dos mercados. Contudo, sobre o dilema que envolve a relação entre as práticas dos

atores e as estruturas sociais que as condicionam, os resultados levantados indicam um

aumento do repertório da ação daqueles, embora tenha sido verificado também a

existência de restrições formais que limitam o poder dessa atuação, de forma que tanto

as habilidades como as instituições se influenciam mutuamente.

viii

ABSTRACT

SANTOS, Adriano Pereira M. Sc., Universidade Federal de Viçosa, June of 2014.

Markets for family farmers, their institutions and farmers’ socioeconomic skills.

Adviser: Nora Beatriz Presno Amodeo.

Recent studies highlight the significant role that family agriculture plays in relation to

food supply for the Brazilian population. However, many are the challenges for these

farmers to access the various markets that are within their reach today. The literature

stresses the diversity that marketing practices assume, even suggesting the existence of

gaps with regard to understanding the relationships between farmers and markets.

Therefore, this research aimed to identify the characteristics and rationalities of the field

of marketing of family farming, in Viçosa-MG,, and to analyze the different skills

required for farmers to access marketing channels for their production. In order to allow

the necessary classification for this analysis, it was decided to work specifically with

markets of fruits and vegetables (FLV), segment that involves large part of the markets

and products from family farms in the county. Using the methodology of case study,

from a mapping of the main markets for this segment was possible to identify the social

actors responsible for the economic transactions in these spaces and, through the

application of semi-structured interviews and participant and non-participant

observation, were surveyed key skills developed by farmers to be successful in their

business relationships. The skills were grouped into four main categories, namely:

production, clientization, cooperation and association, and entrepreneurial management.

The four social institutions of markets presented by Fligstein (2003), ie, property rights,

governance structures, conceptions of control and rules of the transaction, were the

categories used for the analysis of markets. However, on the dilemma involving the

relationship between the practices of the actors and the social structures that condition

them, the results collected indicate an increased repertoire of action of actors, although

it was also found that there are formal restrictions that limit the power of this

performance, so that both the skills and the institutions had influenced each other.

1

1. INTRODUÇÃO

A inserção produtiva e econômica da agricultura familiar1 brasileira assume um

papel cada vez mais significativo para o desenvolvimento econômico do país, e as ações

voltadas ao fortalecimento desse segmento ganham assim mais atenção tanto das

autoridades públicas, quanto do meio acadêmico e da sociedade civil como um todo. No

entanto, o escoamento da produção dos agricultores familiares apresenta-se ainda

enquanto um dos principais desafios à vida econômica destes. Diversas são as

estratégias desenvolvidas para a criação ou ampliação de espaços de comercialização

capazes não só de absorver a produção agropecuária familiar, como, muitas vezes, de

desencadear o surgimento de relações e ações específicas e intimas a cada um desses

mercados. O foco deste trabalho encontra-se então no universo dessas relações

desenvolvidas entre as pessoas ou as unidades produtivas que as circunscrevem e os

mercados em que compram e vendem.

Assim, pretende-se analisar as maneiras ainda incipientes, porém cada vez mais

pertinentes de compreender os processos de comercialização, as instituições e os fatores

que regem a ação econômica dos atores sociais envolvidos nos mercados da agricultura

familiar. A ideia é analisar como as práticas mercantis, balizadas tanto por uma

racionalidade econômica como por disposições culturalmente ou socialmente

incorporadas, podem diferenciar-se substancialmente diante do contexto e arranjo de

relações sociais intrínsecos a cada mercado acessado. Para tanto, faz-se necessário

identificar as habilidades necessárias aos agricultores para o acesso a esses diversos

canais de comercialização.

A opção por realizar um estudo sobre os processos de comercialização na

agricultura familiar e a relação destes com as estratégias desenvolvidas pelos

agricultores deve-se ao intuito de compreender o mercado em sua totalidade, como um

espaço de interação humana, capaz de traduzir a ampla gama de possibilidades da ação

1 Entende-se por agricultura familiar, a atividade econômica predominante praticada por

trabalhadores que se encaixam na classificação indicada pela lei nº 11.326/2006 na qual agricultor

familiar é aquele que pratica atividades no meio rural e atenda aos seguintes requisitos: não detenha,

a qualquer título, área maior do que quatro módulos fiscais em hectares; utilize predominantemente

mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou

empreendimento; tenha renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas

vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento e dirija seu estabelecimento ou

empreendimento com a família.

2

sócio-econômica. Essa pesquisa intenta assim trazer uma nova perspectiva analítica para

a identificação dos processos de comercialização da agricultura familiar, ao relacionar

as estruturas de mercado com as habilidades requeridas aos agricultores para sua

inserção nestes.

Nesse sentido, é importante destacar que desde a década de 1990 até os dias

atuais houve um processo inédito de direcionamento de políticas públicas para o

segmento da agricultura familiar, assim. O surgimento de instrumentos como o

Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) que promove a compra direta de produtos

alimentícios de associações e cooperativas da agricultura familiar e o Programa

Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) o qual é afetado pela lei nº11947/09, que

determina que no mínimo 30% do orçamento que é destinado para a alimentação das

escolas municipais e estaduais deve ser para a aquisição de produtos da agricultura

familiar. Juntos, os dois programas atendem tanto a agricultores individuais quanto

àqueles associados ou cooperados e contribui para a construção dos chamados mercados

institucionais..

Cabe lembrar, ainda, que políticas de incentivo à comercialização dos

empreendimentos de economia solidária, como projetos de criação de pontos fixos de

comercialização e de fomento iniciativa de redes solidárias e grupos de consumo,

ganham espaço crescente, por meio de projetos desenvolvidos pela Secretaria Nacional

de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego (SENAES/ MTE).

Políticas essas destinadas ao segmento caracterizado pelo modo solidário de

organização produtiva, o qual, muitas vezes, abrange grupos formais, ou não, de

agricultores familiares. Essas recentes possibilidades de comércio acessíveis aos

agricultores familiares brasileiros contrastam, em tese, com as formas convencionais de

organização das vendas que podem acontecer tanto por meio de atravessadores como

pela participação em feiras livres ou outros espaços de comercialização, nos quais as

habilidades e práticas exigidas diante das incertezas e oscilações de tais mercados

diferenciam-se substancialmente das novas configurações possíveis.

Assim, como se pretende discutir a partir das informações aqui levantadas a

elaboração de estratégias de ampliação da renda dos agricultores familiares, diretamente

ligada ao aumento da comercialização destes, podem ser melhor compreendidas ao

lançarmos mão de uma análise que transcenda os aspectos de natureza estritamente

econômica. Adotando uma perspectiva capaz de captar os elementos culturais, sociais e

3

simbólicos que interferem nas dinâmicas dessas novas estruturas mercantis ao alcance

dos agricultores.

Contudo o estudo detalhado das características principais dos diferentes espaços

de comercialização da produção da agricultura familiar apresenta-se fundamental para

compreensão das dinâmicas e praticas mercantis desses agricultores, bem como permite

a explicitação dos fatores que balizam as escolhas de tais atores em acessar uma ou

outra forma de venda. Nesse sentido o presente trabalho busca então compreender:

quais habilidades os agricultores familiares necessitam desenvolver para acessar os

distintos canais de comercialização ao seu alcance?

1.1 OBJETIVOS

Nesse contexto, o objetivo principal desta pesquisa consiste em analisar as

características e racionalidades típicas aos mercados da agricultura familiar no

município de Viçosa-MG, bem como identificar as diferentes habilidades exigidas aos

agricultores para o acesso aos canais de comercialização de sua produção.

Para tanto se faz necessário também identificar quais são esses canais de

comercialização mais significativos para o escoamento da produção da agricultura

familiar no município, bem como diagnosticar os mecanismos utilizados para a

operacionalização das etapas que envolvem o ato de compra e venda de cada um dos

canais de comercialização estudados.

Buscou-se ainda caracterizar as habilidades de ordem sócio-econômica

desenvolvidas pelos agricultores para conseguirem participar dos mercados e ampliarem

tanto suas possibilidades de comercialização quanto as quantidades comercializadas.

Assim como verificar quais as racionalidades que orientam as práticas mercantis da

agricultura familiar viçosense.

Por fim este estudo teve também como objetivo identificar as estratégias e a

organização produtiva utilizada pelos agricultores familiares estudados, procurando

verificar os padrões produtivos adotados.

A justificativa principal para a realização desta pesquisa encontra-se na

contribuição desta para a ampliação do escopo analítico utilizado para compreender os

mercados da agricultura familiar e as interfaces estabelecidas entre os agentes

econômicos que nela atuam. A intenção é saber como os agricultores desenvolvem

práticas produtivas, organizacionais, sociais e cognitivas que relevam as

4

particularidades locais e culturais. Dessa forma esta pesquisa pretende fornecer

subsídios para estudos posteriores que intentem aprofundar as análises sobre as

especificidades aqui apontadas no tocante o acesso a mercados da agricultura familiar.

Destaca-se ainda que a discussão proposta aqui possibilita também esclarecer o

dilema de cunho teórico conceitual sobre qual é o sentido da relação causal entre as

estruturas dos mercados e a ação dos agricultores familiares, ou seja esta determina

aquelas ou vice-versa

Posto isto, excluindo-se esta introdução, a presente dissertação encontra-se

dividida em cinco capítulos. Na seção seguinte será apresentada a metodologia utilizada

para a definição e coleta dos dados e para a realização das análises pertinentes, e para a

sistematização dos resultados da pesquisa.

Posteriormente, pretende-se definir os principais conceitos e proposições do

arcabouço teórico e conceitual utilizado nesta pesquisa, a saber, a agricultura familiar

sua conjuntura política e o contexto da relação histórica desses agricultores com o

mercado e a Nova Sociologia Econômica e sua abordagem do enraizamento social e da

construção social dos arranjos econômicos, como o mercado.

A identificação das instituições observadas nos mercados da agricultura familiar

de Viçosa, bem como a caracterização da operacionalização destes espaços e a análise

das exigências ao seu acesso consistem no objeto do capítulo seguinte. Propõe-se nesse

momento contrastar as peculiaridades e especificidades típicas a cada um desses

mercados.

O capítulo posterior pretende dar conta da analise das habilidades verificadas

junto à prática mercantil dos agricultores, para tanto foram criadas categorias que

permitiram a uma visão sistêmica dos processos relacionados ao desenvolvimento

dessas habilidades apresentam-se diretamente ligadas com aos contextos sócio-

econômico dos mercados acessados.

Culmina com as considerações finais, onde será apresentado um panorama geral

dos resultados das análises realizadas em cada um dos capítulos, bem como se pretende

tecer as devidas conclusões a cerca do modo como as habilidades dos agricultores

familiares estudados também condicionam o acesso exitoso aos mercados do município,

e, portanto as ações de assessoria, fomento e apoio a comercialização desses sujeitos

deve considerar e potencializar essas habilidades.

5

1.2 METODOLOGIA

De acordo com os objetivos apresentados, o presente estudo de caso empregou

uma abordagem exploratória, descritiva e analítica Para tanto foram utilizados métodos

quantitativos e qualitativos para a análise das informações levantadas. Assim, as

práticas mercantis dos agricultores familiares constituíram o objeto deste estudo e as

unidades de análise foram os agricultores familiares e os mercados que absorvem sua

produção no município de Viçosa, Minas Gerais.

Primeiramente foi realizada uma pesquisa exploratória com o intuito de obter

informações secundárias sobre a comercialização da agricultura familiar no município,

identificando os principais mercados. Numa etapa posterior, através das entrevistas

semiestruturadas, foram indagadas as estratégias, bem como as habilidades econômicas

e sociais utilizadas pelos agricultores familiares no tocante ao acesso a diferentes

mercados e suas formas de funcionamento e normas de comercialização

correspondentes.

Na análise qualitativa das informações expressas nas falas dos agricultores

foram identificadas as relações sociais desenvolvidas entre os atores para a participação

nos diferentes mercados. O aspecto qualitativo tratado aqui remete à necessidade de se

compreender os significados “efetivamente vividos e os conteúdos comunicados” a

partir da interpretação e da avaliação com base na intencionalidade dos agricultores e na

influência do contexto que os envolve (MINAYO, 1992, p.222). Dessa forma, foram

estabelecidas categorias de análise que subsidiaram a discussão do conteúdo expresso

pelos atores sociais estudados, permitindo assim, fazer inferências.

Sob o intuito de captar a diversidade expressa nos mercados da agricultura

familiar no município de Viçosa, foram realizadas entrevistas tanto com agricultores,

como com técnicos de extensão rural, comerciantes e cozinheiras das escolas que

recebem os produtos de agricultores familiares.

Para a definição do número de agricultores entrevistados, foi utilizada uma

amostra não probabilística definida com base na técnica “Bola de Neve”. Ele é método

utilizado em pesquisas sociais no qual, de acordo com (ALBUQUERQUE, 2009), é

selecionado um número inicial de indivíduos que indicarão outros sujeitos com os quais

se relacionam que também estejam dentro da população-alvo, no caso os agricultores

familiares de Viçosa que comercializam sua produção. Ou seja, inicialmente foram

identificadas pessoas de referência (chamadas de “sementes”) entre as redes sociais

6

correspondentes ao circulo de relações em cada um dos mercados mapeados, essas

pessoas indicavam outros agricultores que também comercializam sua produção nos

mercados do município (as “filhas”). Esse procedimento é repetido até que os nomes

comecem a se repetir, chegando-se ao ponto de saturação das cadeias. Essa abordagem,

amparada na ideia de cadeias de referência, possibilitou a seleção de informantes

qualificados para que se pudesse alcançar os objetivos desta pesquisa: identificar as

habilidades dos agricultores familiares para acessarem os mercados ao seu alcance.

Assim, foram trinta e quatro (34) os agricultores familiares entrevistados.

Também, foram entrevistados informantes chave sendo: dois (2) técnicos que atuam

como mediadores do acesso aos mercados (um deles da EMATER, e outro de um

projeto de extensão universitária), oito (8) comerciantes do varejo local e duas (2)

cozinheiras de duas escolas municipais que rebem os produtos referentes às entregas do

PNAE. Totalizando assim quarenta e seis entrevistas (46). Cabe ressaltar que foram

encontrados outros agentes atuando nos mercados estudados, por exemplo, na Feira

Livre, que não correspondiam ao foco desta pesquisa: agricultores familiares do

município de Viçosa, razão pela qual não foram incluídos nesta pesquisa.

Foi realizada também, observação não participante em duas reuniões para as

definições da chamada pública e do projeto de entregas para o PNAE, e uma atividade

de uma das associações que entregam produtos para o PAA, e a observação participante

em três atividades de entrega de produtos na Rede Raízes da Mata e em cinco Feiras

Livres.

A análise documental incluiu os contratos que dispõem sobre a regulamentação

das entregas ao PNAE entre os anos de 2012 e 2013; os projetos finais das entregas do

PAA, do ano de 2012, correspondentes às duas associações que comercializam no

programa, os que foram obtidos através da EMATER; bem como os documentos que

contém as normas gerais que condicionam o acesso a esses dois programas. Esses

documentos foram utilizados para complementar a análise desses mercados, com a

ajuda da revisão bibliográfica correspondente.

7

2. A CONSTRUÇÃO SÓCIO-ECONOMICA DOS MERCADOS DA

AGRICULTURA FAMILIAR

2.1 AGRICULTURA FAMILIAR E MERCADOS

Apesar de todo o debate conceitual oriunda das diversas controvérsias teóricas

que circunscrevem o seu significado e utilização, a expressão agricultura familiar

encontra-se hoje consolidada tanto nos documentos oficiais que regulam as políticas

públicas do estado brasileiro como também nas universidades e centros de pesquisa que

trabalham para compreender os fenômenos subjacentes ao universo rural e até mesmo,

cada vez mais, no vocabulário dos próprios agricultores que enquadram-se na genérica

caracterização delimitada pelo termo.

Navarro (2010) assinala a existência de uma dupla origem do termo, a saber, a

norte americana e a europeia ressaltando a associação entre a adoção da expressão e o

desenvolvimento da chamada agricultura moderna, que se consolida nos países

desenvolvidos, e torna-se hegemônica caracterizando um modelo técnico-produtivista

na organização da produção agrícola. O autor salienta ainda uma substancial distinção

entre os agricultores familiares, ou farmers estadunidenses intensamente integrados ao

mercado e ao modus operandi da economia capitalista, e os camponeses europeus e o

longo processo histórico que marca a organização da produção e do modo de vida

destes.

O economista Ricardo Abramovay (1992), entretanto, compreende a unidade

familiar como a base sobre a qual a estrutura social da agricultura se desenvolveu nos

países ricos, gerando inclusive prósperos resultados produtivos no setor de alimentos e

na produção de fibras. O autor enaltece ainda o peculiar caráter desse segmento que,

contrariando uma imagem associada ao atraso, ou ao primitivo, constitui-se enquanto

familiar não apenas sob a ótica da propriedade em si, como também da gestão, de

maneira que:

"O peso da produção familiar na agricultura faz dela hoje um setor

único no capitalismo contemporâneo: não há atividade econômica em

que o trabalho e a gestão estruturem-se tão fortemente em torno de

vínculos de parentesco e onde a participação de mão-de-obra não

contratada seja tão importante." (ABRAMOVAY, 1992, p.209)

8

O aparente paradoxo do qual nos fala o autor pode levar ao questionamento

sobre como essa unidade familiar de produção no campo consegue integrar-se aos

padrões tecnológicos e produtivos, em constante transformação, e simultaneamente

manter relações de trabalho (e em muitos casos a organização da produção) distantes

daquela preconizada pela racionalidade dos retornos crescentes de escala. Nesse sentido,

Wanderley (1996) atenta para o fato de que o caráter familiar representa não apenas um

simples detalhe descritivo, mas apresenta-se capaz de desencadear processos

diferenciados que fundamentam uma atuação social e econômica específica, que

abrange características como a diversidade de culturas e atividades e uma maior

integração comunitária.

A origem dese termo remete então às intensas transformações direcionadas para

a modernização da agricultura brasileira que solapa o meio rural a partir de meados da

década de 1960 (modernização esta enviesada para a integração na dinâmica produtiva e

mercantil do capitalismo industrial) a unidade familiar se preserva e o que antes era tido

por formas camponesas origina a chamada agricultura familiar (ABRAMOVAY, 1992).

No entanto tais transformações não representam uma ruptura total com as práticas

anteriores mas, de forma dialética, produzem um agricultor que mantém certas tradições

e adapta-se ao novo padrão sócio-econômico em curso (WANDERLEY, 1996).

Em meio a essa suposta dicotomia característica aos agricultores familiares, um

olhar científico para esse segmento requer também a análise de outras dimensões, além

da econômica, que permitam uma perspectiva mais completa de suas nuances. Os

sistemas de contraprestações e retribuições típicos às relações entre filhos e netos, pais e

avós e as obrigações que envolvem a reciprocidade e a dependência pessoal entre os

membros familiares, constituem-se como exemplos de fenômenos intimamente ligados

ao universo familiar e que, por sua vez, interferem significativamente no desenrolar de

suas atividades econômicas (MARTINS, 2003).

O estudo das práticas e dinâmicas dos agricultores familiares devem portanto

edificar-se sob o olhar para a totalidade de suas ações enquanto indivíduos sociais que

são, e que encontram-se intimamente ligadas ao espaço que ocupam. De forma que:

"Educação, cultura, produção, trabalho, infra-estrutura, organização

política, mercado etc, são relações sociais constituintes das dimensões

territoriais. São concomitantemente interativas e completivas. Elas

não existem em separado. A educação não existe fora do território,

assim como a cultura, a economia e todas as outras dimensões. A

análise separada das relações sociais e dos territórios é uma forma de

construir dicotomias "(FERNANDES,2006, p.29)

9

No Brasil, é fato inegável a evidente associação que se tem entre a difusão do

termo agricultura familiar por meio da execução de políticas públicas de incentivo

produtivo a esses atores e sua adoção enquanto autodenominação para os (nem sempre)

pequenos produtores rurais que ocupam os campos brasileiros. Logo, falar sobre a

realidade econômica dos agricultores familiares brasileiros, a partir da década de 90,

implica, invariavelmente, levar em conta o papel do Estado na construção dos

significados e no aporte de incentivos a esse segmento.

Destaca-se que até então as ações do estado na agricultura limitaram-se aos

setores mais capitalizados, produtores de commodities, que apresentavam condições de

contribuir para sanar os desequilíbrios da balança comercial que desestabilizavam a

macroeconomia brasileira (MATTEI, 2005). A agricultura familiar entra na pauta do

disputadíssimo orçamento público apenas em 1996 com a criação do Programa

Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), que surge sob um

contexto em que a escassez de crédito e o alto custo de produção eram tidos como os

principais entraves à atividade dos agricultores familiares (GUANZIROLI, 2007).

Sem adentrar nos detalhes e especificidades da execução do programa, o

direcionamento do PRONAF para a concessão de crédito e modernização produtiva dos

agricultores familiares, parece, entretanto deixar uma lacuna quanto ao aspecto da

comercialização dessas novas mercadorias impulsionadas por aquele. Guanziroli (2007)

e Kageyama (2003) apresentam estudos avaliativos que sugerem a eficácia do programa

no tocante a intensificação da utilização de recursos tecnológicos e aumento da

produtividade dos estabelecimentos familiares, e por outro lado, não observam

associação do programa com aumentos significativos de renda para o segmento.

Nesse sentido nota-se que o escoamento da produção familiar enfrenta

constantes desafios até os dias atuais, seja pela dificuldade de competir com

estabelecimentos de maior escala que apresentam maior facilidade de abastecer os

mercados, ou pela dificuldade de integrar-se em redes para viabilizar uma logística

eficaz. Dificuldades essas mitigadas parcialmente tanto por instrumentos de políticas

como o Programa de Aquisição de Alimentos, e o Programa Nacional de Alimentação

Escolar2 que, por meio de compras públicas diretas criam mercados reais que têm

contribuído cada vez mais para o incremento da renda dos agricultores familiares como

também por iniciativas ligadas a mobilização de agricultores e consumidores como

2 No capítulo seguinte esse programa será apresentado mais detalhadamente.

10

cooperativas e redes de consumo solidário que visam ter acesso a produtos livres de

agrotóxico e produzidos pelo segmento familiar.

Assim, os desafios que envolvem a relação entre a agricultura familiar e o acesso

a mercados repousam tanto em características específicas à organização sócio-

econômica desses atores sociais, haja vista, a combinação de atividades agrícolas com

atividades não agrícolas (pluriatividade), e a perspectiva de uma dinâmica de integração

entre agroindústria e agricultura familiar, como também nas transformações que os

mercados de bens agropecuários tem sofrido, principalmente a partir da década de 1990.

Em relação a essas ultimas transformações, Wilkinson (2008) destaca três

principais tendências para a agricultura familiar, a primeira diz respeito a abertura

comercial e integração regional decorrente do desmoronamento da intervenção estatal

nos mercados o que desencadeou profundas mudanças na regulação, organização e nas

formas de acesso a mercados; a segunda remete ao surgimento de novos nichos de

mercados como os de produtos orgânicos, comércio justo, entre outros que inicialmente

apresentavam oportunidades de inserção do segmento familiar, entretanto suas

exigências “em termos tecnológicos e mais ainda mercadológicos representam barreiras

para os agricultores tradicionais”; a terceira tendência assinalada compreende a

intensificação da contradição que se manifesta por um lado através da pressão por maior

escala e menor custo no ramo das commodities e de outro lado por uma crescente crítica

do ponto de vista ambiental e da especialização econômica ao modelo dominante, de

maneira que os modelos produtivos baseados na agricultura familiar passam a ganhar

espaço e visibilidade no contexto da economia mundial e seus mercados

agroalimentares (WILKINSON, 2008, P.14)

A partir deste cenário os desafios do acesso a mercados por parte dos

agricultores familiares são muitos e envolvem tanto o desenvolvimento de capacidades

e habilidades individuais e coletivas para a construção de novas formas de

relacionamento com estes mercados como inovações organizacionais e produtivas que

possibilitem incrementos nos níveis de qualidade e soluções logísticas e operacionais

capazes de abrir cada vez mais espaço para os produtos da agricultura familiar no vasto

universo que compreende os espaços de comercialização em nível local, regional e até

mesmo internacional.

11

2.2 MERCADOS: DA PERSPECTIVA ECONÔMICA À SOCIOLÓGICA

O estudo dos conceitos subjacentes ao tema da mercantilização e funcionamento

dos mercados tem se apresentado mais amplo e complexo do que sugerem as

abordagens que focam seus olhares sobre o ato da compra e venda, e no processo de

formação de preços, sem adentrar os fenômenos que compõem o seu contexto. Diversas

são as definições, desde as mais próximas às ciências econômicas até aquelas que

utilizam instrumentos sociológicos de análise, que demonstram o esforço teórico

encontrado nos trabalhos sobre mercados, mercadoria e mercantilização.

Com efeito, tais conceitos foram até o momento, objetos de estudo mais de

economistas do que de outros cientistas. Os mercados foram estudados, sob o

pensamento econômico dominante, como um espaço autônomo e impessoal onde se

realizam as trocas entre os agentes, assumindo assim uma posição tangencial dentre os

conceitos e variáveis cernes dos modelos econômicos. Em uma célebre frase, North

(1977) apud Abramovay (2004) ilustra essa posição que parece ser contraditória até

mesmo com os pressupostos da ortodoxia liberal: “É curioso que a literatura de

economia e história econômica contenha tão pouca discussão sobre a instituição central

em que se fundamenta a economia neoclássica – o mercado”.

Assim os economistas clássicos, neoclássicos e liberais tratam o mercado

basicamente como um espaço que deve assegurar o funcionamento do mecanismo de

determinação de preços e quantidades de bens e serviços capaz de equilibrar o sistema

econômico. O foco dos trabalhos recai então sobre as preferências e restrições dos

agentes econômicos traduzidos pelas funções matemáticas de utilidade que, tomadas em

distintos modelos explicam as escolhas de consumidores e produtores que interagem

nos mais variados mercados.

Recentes trabalhos sobre o tema levantam, entretanto, formas alternativas de

estudar os mercados, compreendendo-os enquanto “espaços de interação humana que

replicam conhecimentos” (STORR, 2008, p.136 apud AGNE&WAQUIL, 2011, p. 155)

enraizados pelos contextos sociais no quais estão imersos. Dessa forma, os mercados

não surgem como algo externo às pessoas, mas sim construídos pelas pessoas e suas

dinâmicas culturais, sociais e políticas que dão sentido às suas relações.

A mercadoria por sua vez, foi historicamente definida pelos pensadores da

ciência econômica como algo que essencialmente surge para ser comercializado ou

12

intercambiado. Marx (1982) complementa ainda que as mercadorias devem ser

analisadas atreladas ao equivalente geral, ou seja, o dinheiro, sua representação

quantitativa que permite que esta, quando comercializada nos espaços de trocas,

transforme valor de uso em valor de troca. Vale lembrar que essa leitura de Marx

possibilita a compreensão de um mercado impessoal que torna independente das

pessoas o resultado de seu trabalho, abordagem essa aparentemente incompleta quando

contrastada com seus escritos sobre o fetichismo da mercadoria que revela uma visão

mais institucional dos mercados (CONTERATO et alli, 2011).

Também influenciado pelo pensamento marxista, Karl Polanyi (2000) argumenta

que tomar elementos como terra, trabalho e dinheiro enquanto mercadorias representa

uma ficção, pois, mesmo que estes estejam subordinados às forças de compra e venda

que se materializam nos mercados reais, são muito mais amplos e complexos do que

simplesmente produzidos para o intercambio, assim:

Ao dispor da força de trabalho de um homem, o sistema disporia

também, incidentalmente, da entidade física, psicológica e moral do

homem ligado a esta etiqueta. [...] Os mercados de trabalho, terra e

dinheiro são essenciais para uma economia de mercado, entretanto,

nenhuma sociedade suportaria os efeitos de um tal sistema de

grosseiras ficções [...] (POLANYI, 2000, p. 95)

Como uma extensão dos debates relacionados ao conceito de mercadoria, o

termo mercantilização pode ser tratado sob duas principais óticas: aquela definida como

um processo quase mecânico em que os mercados simplesmente transformam valores

de uso em valores de troca e outra que o compreende como um processo dialético que

envolve atores sociais com interesses por vezes conflitantes, ou seja, próximo à visão

mais relacional dos mercados.

Interessa-nos aqui adotar esta perspectiva relacional que compreende a troca

como uma interação social que acontece em contextos sociais e institucionais

específicos capazes de influenciar substancialmente os processos mercantis.

Destarte, em meio a esse debate, vale destacar os trabalhos de Appadurai (2008)

e Kopytof (2008), nos quais ambos autores evidenciam a dimensão sociocultural e

política da mercantilização e atribuem à troca, com todas as relações políticas e

institucionais que ela envolve, a real fonte de valor das coisas.

Assim, reconsiderando a teoria de valor marxista:

Appadurai afirma que o valor é antes uma projeção das pessoas e não

uma objetividade exterior. Disso decorre sua investidura na proposta

de uma política de valores. A insistência na política e nos processos

13

culturalmente localizados volta à atenção da mercantilização como um

processo não linear [...] (CONTERATO et alli, 2011)

Em síntese a discussão apresentada na citação anterior sugere a compreensão da

mercantilização como um processo amplo e diverso em que a “intersecção de fatores

temporais, culturais, políticos e sociais faz com que algumas coisas transitem no estado

de mercadoria” (APPADURAI, 2008).

Entretanto, a relação das pessoas com os mercados, sofreu sucessivas

transformações ao longo da história. Correntes de pensadores, economistas entre outros

cientistas sociais intentaram, em vários momentos, definir formas ideais que deveriam

orientar a atuação dos agentes em determinados mercados a fim de alcançar um

desenvolvimento da economia e da sociedade como um todo.

No tocante ao espaço agrário, os economistas, principalmente os partidários da

corrente liberal, como Theodor Schultz, argumentam que “o problema do

desenvolvimento capitalista na agricultura estava associado aos entraves à completa

racionalidade por parte do agricultor no uso dos fatores de produção” (SCHULTZ, 1964

apud CONTERATO et alli, 2011, p.73). Essa racionalidade completa é caracterizada

pela ideia de que a crescente inserção dos produtos da agricultura nos mercados leva

invariavelmente a maiores níveis de desenvolvimento.

A perspectiva da commercialization, representante das ideias apresentadas

acima, defende a passagem de um modo de produção simples de mercadorias para uma

forma de produção mecanizada e tecnificada capaz de alcançar altos índices de

produtividade. É essa a visão liberal que traz uma concreta proposta de

desenvolvimento das forças produtivas do campo sob o modo capitalista de produção.

Nesta concepção, tornou-se corrente (mainstream) o entendimento de

que modernizar a agricultura tradicional significava integrá-la e inseri-

la ao mercado via aumento da comercialization – a montante através

da absorção de inputs externos como insumos, sementes e fertilizantes

e , a jusante pela ampliação dos chamados cultivos comerciais

(CONTERATO et alli, 2011, p.72)

A principal crítica a essa vertente é levantada pelo conjunto de trabalhos que

posteriormente se convencionou como “the comoditization debate” (LONG et

alli,1986). Os teóricos da mercantilização aproximam-se da perspectiva da economia

política ao assumirem que o processo de mercantilização não é uniforme, linear e muito

menos completo, sendo incapaz de garantir inequivocamente, o desenvolvimento e a

melhoria de vida dos agricultores.

14

A perda da autonomia dos agricultores que se inserem em mercados altamente

competitivos que, segundo os autores da economia política, caracterizam o

desenvolvimento capitalista no campo, não é levada em conta pelos teóricos da

commercialization Assim surge o argumento de que as implicações dos fatores sociais e

políticos que envolvem a mercantilização da agricultura devem assumir uma posição

relevante na compreensão das dinâmicas produtivas e comerciais do espaço agrário.

Como defende Nierdele (2006), a mercantilização sugerida pela dependência dos

agricultores aos mercados está condicionada a um contexto externo, no qual é possível

uma dinâmica em que os agricultores negociem a inserção em diferentes circuitos de

troca, tendo em vista suas próprias condições e interesses dos demais atores. Tal noção

abre espaço para estudos que exploram o papel dos fenômenos e relações sociais na

construção dos mercados agrícolas, e permite compreender a atuação dos agricultores

não apenas como meros receptores, totalmente passivos e subordinados a uma lógica

externa, mas também enquanto sujeitos históricos ativos dotados capacidade de

intervenção nas dinâmicas mercantis.

Próxima a essa perspectiva, a chamada Nova Sociologia Econômica (NSE) surge

como uma formulação teórica que procura integrar, num mesmo arcabouço conceitual,

teorias sociológicas e econômicas ao propor um olhar para as interações econômicas dos

indivíduos sob a lente das relações sociais entre os mesmos. Termo cunhado nos

Estados Unidos, onde autores como Richard Swedberg (2004) e Mark Granovetter

(2003) expõem a corrente americana da sociologia econômica e introduzem uma nova

perspectiva de compreensão dos fenômenos econômicos a partir de olhares

metodológicos e conceituais da sociologia que direcionam-se para as noções de

“enraizamento” do comportamento econômico, de formação das redes sociais e de

construção social dos mercados.

Essa vertente de pensamento trata da ação econômica socialmente enraizada,

bem como, da forma através da qual essa compreensão permite um melhor

entendimento das interações existentes entre os indivíduos, seu ambiente e os arranjos

institucionais sob os quais estão envolvidos (VINHA, 2001).

Steiner (2006) aponta como sendo objetivo da NSE o estudo da construção

social das relações que se desenvolvem nos mercados e a investigação quanto à origem

sociológica dos fenômenos econômicos. Para tanto o autor propõe a compreensão da

NSE a partir de três dimensões principais:

15

[...] 1) as relações sociais influenciam as ocorrências econômicas

(construção social das relações econômicas). Mostram, por exemplo,

como as relações sociais (domésticas, principalmente) redefinem

sensivelmente o uso da moeda conforme a origem da renda. 2)

dimensão analítica na explicação sociológica das variáveis mercantis.

Mostra, por exemplo, o poder das relações sociais na busca pelo

emprego. 3) a sociologia econômica comporta uma dimensão cultural

e cognitiva (STEINER, 2006, p.50).

Polanyi (2000) é um dos principais autores a problematizar algumas das

premissas básicas da ciência econômica tradicional, mais especificamente, a ideia do

mercado autorregulável e do conceito de homo economicus. Ele também é o primeiro a

evidenciar a distinção de dois significados encontrados no termo economia, ou seja, o

significado formal, que foca sua analise na alocação eficiente dos recursos escassos e

outro significado substantivo que compreende o processo de busca pela satisfação das

necessidades materiais dos indivíduos (VINHA, 2001).

Este autor argumenta assim, que o desenvolvimento da economia liberal

ocasiona o surgimento de uma esfera estritamente econômica, separada de outras

instituições da sociedade e regulada por um imperativo mecanismo de mercado que

torna todo o “resto” da sociedade subordinado a essa esfera e consequentemente a esse

imperativo (POLANYI, 1976).

Essa esfera econômica autônoma tem como mecanismo regulador um mercado

sobre o qual a teoria econômica liberal discute apenas as formas de obtenção de preços

e quantidades de equilíbrio, sem aprofundar as investigações relacionadas às interações

práticas que acontecem nesse espaço. Assim, a ordem na produção e na distribuição de

todos os tipos de bens em uma economia é assegurada apenas pelos preços, componente

fundamental do mercado autorregulável (POLANYI, 2000).

A proposta da NSE consiste, então, em abordar os mercados como estruturas

sociais, baseadas em relações padronizadas entre os indivíduos de forma a imergir a

esfera econômica dentro de uma esfera social.

Nessa perspectiva Abramovay (2004, p.02) aponta que:

[...] sua compreensão faz apelo à subjetividade dos agentes

econômicos, à diversidade e à história de suas formas de coordenação,

às representações mentais a partir das quais relacionam-se uns com os

outros, a sua capacidade de obter e inspirar confiança, de negociar,

fazer cumprir contratos, estabelecer e realizar direitos. Aqui os

atributos serão muito mais particularizados, obtidos por métodos

16

fundamentalmente indutivos e apoiados, sobretudo na recomposição

de narrativas históricas.

A obra de Polanyi retoma conceitos apresentados anteriormente por trabalhos de

antropólogos (MAUSS,2003;MALINOWSKY,1978) lançando uma nova aplicabilidade

ao mesmos no sentido de corroborar com a critica e a proposta teórica assinalada pela

NSE. Reciprocidade, redistribuição e domesticidade são esses conceitos chave,

enquanto o primeiro diz respeito à ideia de um circuito de prestação e contraprestação,

capaz de regular as transações entre agentes em uma dada sociedade, o segundo remete

a existência de uma entidade centralizadora à qual é atribuída a função de realizar a

distribuição dos recursos materiais de maneira mais equitativa possibilitando a

coordenação das relações entre os agentes, e a domesticidade associa-se a noção de

produção para a utilização própria, ou doméstica oposta ideia de produção de

excedentes visando retorno financeiro.

Os teóricos da NSE buscam de certa forma, a superação do paradigma conceitual

que sustenta que cada ator social age racionalmente, exclusivamente baseado em seu

autointeresse (homo economicus). De acordo com esse paradigma os agentes

econômicos respondem de maneira mecânica e atomizada aos estímulos do ambiente

que os cercam.

Nessa mesma linha de interpretação da vida econômica, Mark Granovetter

(2003) salienta o conceito de enraizamento do comportamento econômico que permite

observar o progressivo distanciamento da economia em relação às outras dimensões

sociais da sociedade moderna. As transações deixam de ser definidas pelas obrigações

sociais e familiares dos indivíduos e passam a ser explicadas sob a ótica do cálculo

racional do lucro individual.

Este autor defende, portanto que:

Os atores não se comportam como átomos fora de um dado contexto

social, nem aderem como escravos a um guião determinado por uma

intersecção específica das categorias sociais que, por acaso, ocupam.

As suas tentativas de realizar ações com finalidade estão, pelo

contrario, incrustradas em sistemas concretos e continuados de

relações sociais (GRANOVETTER, 2003, p.74).

Granovetter (2003) ainda evidencia o papel fundamental da confiança nas

relações econômicas entre os indivíduos e discorre acerca da possibilidade de arranjos

sociais, pautados em acordos coletivos, serem interpretados enquanto soluções

eficientes para determinados problemas econômicos. O autor destaca também que, por

17

outro lado, o alto grau de confiança entre indivíduos que se relacionam

economicamente, pode permitir ainda mais atos de má fé por alguma das partes sendo

que “a confiança que nos é depositada por outra pessoa coloca-a em uma posição muito

mais vulnerável que a de um desconhecido” (GRANOVETTER, 2003, p.77).

O autor defende a existência de múltiplas racionalidades que podem direcionar a

ação econômica. Contudo, critica as visões que colocam a motivação baseada em

interesses econômicos como sendo racional, enquanto que outros motivos de naturezas

distintas sejam tratados como não racionais. A proposta é a de uma abordagem que

releve uma observação não apenas baseadas em objetivos econômicos como também na

sociabilidade e nas estruturas sociais nas quais os sujeitos encontram-se imersos para

compreender a racionalidade e o instrumentalismo por trás da atuação econômica dos

agentes.

Em meio a esse contexto de reivindicações conceituais e teóricas levantadas

pelos novos sociólogos econômicos, cabe lembrar a importância envolta na tentativa de

reunir essas duas ciências que o tempo separou, a sociologia e a economia, sob o

objetivo de possibilitar uma compreensão dos fenômenos sociais e econômicos de

maneira menos fragmentada. Da mesma forma que os economistas precisam assimilar

melhor a interferência das dinâmicas sociais sob a ação econômica os sociólogos

também devem se emprenhar no entendimento de como o interesse individual influencia

processos, como por exemplo, o de formação dos preços nas diversas transações

econômicas que acontecem em uma dada sociedade (SWEDBERG, 2009).

Este estudo permite então explorar as características das interações que balizam

os diversos interesses, conflitantes ou confluentes, em jogo nos mercados da agricultura

familiar brasileira. Assim, os entendimentos coletivos materializados por hábito ou

acordos explícitos ou tácitos podem ser analisados sob a luz das categorias indicadas

por Fligstein (2003)

De forma geral a NSE, intenta, portanto levantar elementos relacionados ao

contexto social sob o qual os fenômenos econômicos encontram-se envoltos que

suprimam os inúmeros distanciamentos, encontrados na teoria econômica convencional,

entre os pressupostos teóricos e a observação da evidencia empírica no tocante a vida

econômica de uma sociedade.

O mercado torna-se então um conceito ainda mais atraente aos olhares dessa

nova corrente de pensamento, não apenas pela maneira como se formam os preços ou

18

pelo seu volume financeiro, mas também pelas inequívocas interações e relações sociais

que pressupões sua existência.

Em um dos principais manuais de microeconomia com os quais se depara boa

parte dos estudantes, o mercado é definido claramente enquanto um “grupo de

compradores e vendedores que, por meio de suas interações efetivas ou potenciais

determinam o preço de um produto ou de um conjunto de produtos” (PINDYCK &

RUBINFELD, 2007, p.07).

Fica evidente nessa passagem a função atribuída ao mercado como o espaço que

permite a alocação eficiente dos recursos produtivos em uma sociedade. Essa

perspectiva utiliza, principalmente, métodos matemáticos para a determinação das

curvas de utilidade dos indivíduos a fim de compreender suas preferências para então

determinar as quantidades e preços que equilibram o sistema econômico. Tem-se assim

uma perspectiva ideal que deve tanto dar significado quanto determinar os valores e

princípios capazes de reger as atividades mercantis ao seu ponto máximo em termos de

utilização dos recursos econômicos.

Por outro lado um olhar da sociologia econômica aos mercados deve partir de

uma análise histórica destes ao longo do tempo de forma a permitir o entendimento de

como eles funcionam na vida real, e qual suas consequências para o modo de vida do

homem de forma geral. A ideia é quebrar com a artificialidade dominante nas definições

sobre mercados que marcam o olhar dos economistas e assim inspirar o surgimento de

novos conceitos e definições. (SWEDBERG, 2005)

Seguindo esse pensamento as tarefas iniciais de um estudo de mercados deve ser

identificar quais os tipos de mercados existentes em uma dada realidade social bem

como quais os valores, interesses, acordos e instituições impulsionam as trocas em cada

um dos mercados

2.3 AS ESTRUTURAS, INSTITUIÇÕES E OS CAMPOS DA

COMERCIALIZAÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR

Diversas perspectivas, sejam as mais centradas nas disposições individuais ou as

que se apoiam nos sistemas estruturais de relações e coesão social, de Weber a Marx,

buscam dar conta da compreensão das práticas e do comportamento do homem em seu

convívio social. A íntima relação entre a ação individual e a coerção estrutural, objeto

de estudo de muitos autores clássicos sob inúmeros contextos, será tratada neste estudo

19

a fim de compreender as ações e disposições inerentes ao ato de compra e venda

praticado por agricultores familiares e a relação destas com as normas bem como as

características operacionais dos mercados onde tais ações ocorrem.

Dentre os esforços envidados para a criação de uma visão sociológica dos

mercados, Fligstein (2003) desenvolve uma perspectiva conceitual das instituições

sociais que os compõem. O argumento central é que as relações sociais inter e intra

unidades produtivas representam elementos fundamentais para o entendimento de como

a estabilidade dos mercados é alcançada.

Este autor assinala a existência de quatro principais formas que as instituições de

mercado assumem: direitos de propriedade, estruturas de governança, concepções de

controle e normas de transação. Estas instituições “permitem que os atores envolvidos

nos mercados se organizem e desenvolvam entre si relações de competição, cooperação

e transação (FLIGSTEIN, 2003, p. 198).

Um pré-condição básica para o acontecimento das trocas entre os agentes em

uma determinada economia é justamente a propriedade privada. Esta acarreta uma

relação social capaz de excluir a utilização de alguns bens ou serviços por parte dos

indivíduos e cria a necessidade de transações que possam satisfazer diferentes

necessidades materiais dos sujeitos na sociedade (SWEDBERG, 2009). O

desenvolvimento do modo capitalista de produção passa, invariavelmente, pela

legitimação da propriedade privada não só na esfera social, econômica e política como

também no âmbito do Direito. Dessa forma, os direitos de propriedade são capazes de

determinar quem são os agentes produtivos e para onde vão os lucros auferidos nesse

processo.

Há, entretanto, apontamentos que sugerem ser a constituição dos direitos de

propriedade um processo político contínuo e por vezes controverso, não

necessariamente resultado de uma alocação eficiente dos fatores produtivos. Com efeito,

até os dias presentes vários atores sociais, mobilizados em organizações ou não,

frequentemente procuram questionar e influenciar os direitos de propriedade que estão

dados em nossa sociedade. Assim, a compreensão de tais direitos surge como uma

premissa fundamental para o entendimento dos diversos arranjos mercantis encontrados

na economia.

As estruturas de governança correspondem, para Fligstein (2003), “às normas

gerais que, numa sociedade, estabelecem as relações específicas de mercado acerca do

20

modo como as empresas devem estar organizadas”. Ou seja, são os acordos, leis ou

práticas informais institucionalizadas que determinam como se dá a competição em um

mercado específico. A Organização Mundial do Comércio (OMC), por exemplo, é um

organismo que busca mediar os interesses de diversos competidores dos mercados

internacionais, estabelecendo, diretrizes, e regras com o intuito de regular a competição,

em um sistema multilateral de comércio.

As economias de mercado desde o século XIX até os dias atuais são orientadas

também por peculiaridades locais, valores sociais, formas de hierarquia dentre outros

que podem, em alguns casos, cercear ou redirecionar as ações dos agentes em suas

transações econômicas. Como nos mostra o historiador Thompson (1988), que em seu

livro Costumes em Comum relata episódios em que os costumes ou as práticas sociais

institucionalizadas, mesmo das classes econômicas menos abastadas são capazes de

limitar ou até mesmo inibir a expansão de certos aspectos insurgentes com a expansão

da economia de mercado na Inglaterra do dos séculos XVIII e XIX, como as revoltas

dos preços dos pães.

Esses aspectos culturais e históricos que desencadeiam práticas e regras

específicas ao seu meio e que, por sua vez, conseguem interferir significativamente nas

relações entre produtores consumidores e trabalhadores em um dado mercado Fligstein

(2011) define como concepções de controle. O autor afirma ainda que tal concepção

pode também ser pensada como um ¨conhecimento local¨ e o Estado pode ou ¨contribuir

para a criação ou pelo menos não se opor às concepções de controle¨ (FLIGSTEIN,

2003).

No que concerne ao universo das trocas em si, uma ultima forma de instituição

de mercado assinalada também por Fligstein (2003) são as normas de transação, ou seja,

as regras que condicionam a realização das transações na economia como os aspectos

relacionados ao transporte, pagamento, seguro e cumprimento de contratos. Assim tem-

se um conjunto de categorias de análise utilizadas como direcionamento para o olhar do

pesquisador durante a pesquisa de campo.

Diferentes mercados, com os mais diversos formatos e instituições no sentido

exposto aqui, surgem em alta velocidade, especialmente da década de 90 à atualidade.

Influenciados por novas tecnologias da informação e comunicação, por um intenso

processo de globalização de culturas locais e por uma perspectiva dominante no

pensamento econômico que incentiva cada vez mais o crescimento das exportações e a

21

diminuição de barreiras comerciais entre os países, a estrutura dos mercados

agroalimentares vem sofrendo significativas transformações.

As transações internacionais envolvendo gêneros alimentícios, que crescem

significativamente a partir da adoção de políticas de crescimento econômico via

exportações, alinham-se então a exigências e padrões de novos mercados globais nos

quais barreiras, tarifárias e barreiras de qualidade sanitárias ou técnicas limitam a

participação e o acesso de pequenos produtores dos chamados países em

desenvolvimento. Sob um cenário no qual a busca por investimento estrangeiro direto

(IED) por esses países (tida como a solução para aumentar a insuficiente poupança dos

mesmos) acontece via exportações de commodities, após sucessivas quedas de preços

dessas mercadorias durante a década de 90 surgem circuitos alternativos de comercio

como o fair trade, entre outros que exploram a demanda por produtos não tradicionais

(WILKINSON, 2008).

Destarte, quanto à estrutura dos mercados nacionais, Wilkinson (2008), aponta

para a tendência de adequação destes com o modelo internacional, no qual crescem as

exigências relacionadas às barreiras técnicas e sanitárias. Nesse sentido eleva-se

também a participação das grandes redes de supermercados e hipermercados que

transformam as formas de coordenação da distribuição e comercialização de alimentos

em nível regional. O autor afirma ainda que:

¨Com ritmos diferentes dependendo das condições locais, a grande

distribuição subistitui os canais tradicionais de distribuição com a

montagem de centrais próprias de distribuição (CD), por país ou

região e também substitui fornecedores tradicionais, operando com

um número limitado de fornecedores especializados que atendem às

especificidades de entrega, leque de produtos e qualidade. Não

predominam contratos formais, mas os fornecedores precisam fazer

parte do registro de fornecedores e obedecer a rígidos critérios de

qualidade, sujeitos a inspeção periódica.¨(WILKINSON, 200, p.157)

A agricultura familiar, diante desse cenário apresenta notável capacidade de

suprir essa nova demanda mercantil, baseada em sistemas integrados de distribuição,

uma vez que esses agricultores, de acordo com o Censo Agropecuário realizado pelo

IBGE em 2006, correspondem a 84,4% dos estabelecimentos rurais, e ocupam apenas

24,3% da área total dos estabelecimentos rurais sendo os responsáveis por 87% da

produção nacional de mandioca, 70% do feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do

arroz, 21% do trigo, 58% do leite, 59% do plantel de suínos, 50% das aves e 30% dos

bovinos. Entretanto esses agricultores encontram também constantes desafios para

22

inserirem-se nos circuitos mercantis cujas exigências estão mais próximas a realidade de

produtores com altos níveis de capital e escala produtiva, aspectos distantes muitas

vezes da estrutura de estabelecimentos menores que apostam na diversidade e na

superioridade da base artesanal. Assim, os agricultores familiares organizados buscam

também criar novos padrões mercantis que estejam mais compatíveis com sua realidade

técnica, financeira e estrutural.

Uma abordagem teórica que intenta relevar o poder de atuação desses

agricultores consiste no objetivo da chamada Perspectiva Orientada aos Atores (POA),

que tendo como principais expoentes os autores Norman Long (2012) e Jan Douwe Van

der Ploeg (2012) representa uma tentativa de superar os esquemas estruturalistas de

entendimento dos processos de mudança social que abarca a discussão sobre

mercantilização. Os processos de inserção de agricultores em mercados, sujeitos

inegavelmente e predominantemente, a fatores externos é analisado aqui sob um prisma

que se funda em um paradigma orientado aos atores que busca superar a limitação

teórica subjacente ao conceito de determinação externa.

Destaca-se então a necessidade de pensar as interfaces dos produtores com as

estruturas e os dispositivos dos grupos que se relacionam nos mais variados tipos de

mercados. Assim como a NSE, os repertórios culturais como noções de valor, discursos,

ideias de organização, símbolos e rituais são tidos como elementos que podem orientar

a prática dos agentes econômicos. Tal perspectiva parece distanciar, entretanto, da NSE

ao centralizar em sua proposta conceitos e definições próximas de um arcabouço teórico

microssociológico, dialogando substancialmente com as ciências antropológicas

explorando o universo que compreende a ação individual dos atores.

Parte-se do pressuposto de que a intervenção externa invade necessariamente o

mundo da vida dos indivíduos e dos grupos sociais afetados de maneira que possam ser

mediadas, transformadas e resignificadas por esses mesmos. Assim como ilustra a

seguinte passagem:

“Os atores sociais não são vistos meramente como categorias

sociais vazias (baseadas na classe ou em critérios de classificação) ou

recipientes passivos de intervenção, mas sim como participantes

ativos que processam informações e utilizam estratégias nas suas

relações com vários atores locais, assim como com instituições e

pessoas externas. Os caminhos exatos da mudança e seu significado

para os envolvidos não podem ser impostos pelo exterior, nem podem

ser explicados em termos da prática de uma estrutura lógica

inexorável [...]” (LONG & PLOEG, 2011, p. 24)

23

Fica evidente assim, o enfoque que reconhece a capacidade de intervenção dos

atores sociais no curso do desenvolvimento de suas vidas mesmo frente a estruturas

sociais rígidas e incisivas intervenções do meio externo.

O fato de os agricultores mobilizarem uma ampla gama de recursos fora dos

mercados reflete a existência de “espaços de manobra” e estratégias criadas para manter

uma autonomia relativa da unidade de produção. Neste sentido, é equivocada tanto a

percepção de que a mercantilização induz à perda total da autonomia, quanto de que

este processo possa ser completo, uma vez que persiste um amplo conjunto de recursos

mobilizados fora dos circuitos mercantis (NIERDELE, 2006).

“Os projetos dos agricultores não são simplesmente reações

àqueles que são, à primeira vista, impostos por atores externos mais

poderosos. Eles são ativamente gerenciados como respostas

diferenciadas às estratégias e circunstancias geradas por outros, as

quais modificam, transformam, adotam e/ou contrapõem.” (LONG &

PLOEG, 2011, p.35)

Uma outra contribuição relevante para uma abordagem que contemple o

universo de intermediação ativa dos agricultores nos mercados é apresentada pelo

sociólogo Pierre Bourdieu (1989), que mesmo tido por muitos acadêmicos com um

teórico de linha estruturalista, lança mão de conceitos interessantes para a investigação

das práticas mercantis dos agricultores familiares que podem também serem

compreendidas partindo de seu conceito de habitus, o qual, segundo este autor,

representa as “disposições incorporadas” que evidenciam as “capacidades criadoras,

ativas, inventivas do habitus” (BOURDIEU, 1989, p.61). A noção de habitus pretende

então dar conta da relação de “mão dupla” entre as “estruturas objetivas” e “estruturas

incorporadas” (BOURDIEU, 2005) revelando assim o caráter relacional marcante no

arcabouço analítico do autor.

Tal perspectiva permite apreender as “diferenças reais que separam tanto as

estruturas quanto as disposições (os habitus)”, de maneira que o princípio dessa relação

reside nas “particularidades históricas coletivas diferentes” (BOURDIEU, 2005, p.15).

Assim, as atitudes exigidas aos agricultores familiares para o acesso a diferentes

estruturas mercantis – seja a participação em cooperativas, o transporte da produção a

um local específico, ou até a cumplicidade e reciprocidade com um eventual

atravessador – podem ser objetivamente analisadas a partir desses conceitos.

Os habitus dos agricultores familiares, serão tomados aqui a partir das atitudes e

inclinações interiorizadas por estes no tocante a necessidade da comercialização de seus

24

produtos. Assim, buscar-se-á agrupar em tais ações os condicionantes e os princípios

conscientes e inconscientes que dão certa unidade a um conjunto de comportamentos

específicos a cada espaço de comercialização.

Fica evidente, pois, o senso locacional presente no habitus que

aponta também para as estruturas interiorizadas tanto nos princípios e

valores como nas posturas e disposições corporais em um momento e

contexto específico, que denota práticas “distintas e distintivas”

inerentes às posições das quais são produto . Ou seja, opõe-se a visões

microssociológicas que permitem atentar-se à parte esquecendo-se do

todo, e afirma que “todo o ponto de vista é à vista de um ponto

socialmente localizado” (SCHENATO, 2011, p.36)

O autor encadeia o conceito de habitus (dentro de sua perspectiva relacional) ao

conceito de campo enquanto um universo relativamente autônomo de relações

específicas (BOURDIEU, 2005). Destarte, ao indagar sobre as práticas e disposições

dos agricultores familiares no âmbito de suas relações comerciais, faz-se necessário

identificar a estrutura de relações objetivas que circunscreve e até mesmo produz tais

práticas.

A teoria do campo aponta para a existência de atores sociais que constroem um

conjunto de praticas comuns capazes de estabilizar seu universo de ação. Nesse sentido,

o grupo de atores dominantes busca reproduzir as circunstâncias que lhe garantem

vantagem em uma dado campo, ou estrutura social, e para tanto utilizam-se das mais

variadas estratégias e habilidades que permitem determinar os princípios, os valores a

estrutura hierárquica predominante desse espaço social.

Ao tratar os mercados enquanto campos deve-se ter em mente como identificar

os, não apenas os valores e princípios subjacentes ao mercado, como também as

instituições e estruturas que determinam o seu funcionamento, ou o campo em análise,

como afirma Fligstein (2001):

¨To apply the theory of fields to market society, it is necessary to

define what kind of fields markets are, and what types of social

organization are necessary for stable ¨markets as fields¨ to exist.

Economic exchange ranges from infrequent and unstructured to

frequent and structured. Markets are social arenas that exist for the

production and sale of some good or service, and they are

characterized by structure exchange. Structure exchange implies that

the actors expect repeated exchange for their products and that,

therefore they need rules and social structures to guide and organize

exchange.¨(FLIGSTEIN, 2001, p.30)

Pretende-se então explorar as características das interações que mediam os

diversos interesses, conflitantes ou confluentes, em jogo nos canais de comercialização

25

da agricultura familiar brasileira. A maneira por meio da qual os agricultores podem

assumir um papel ativo diante dos desafios impostos pelos mercados ser também objeto

de estudo desta pesquisa, bem como, intenta-se também identificar quais habilidades

econômicas e sociais são requeridas para a participação mercantil desses atores. As

habilidades serão compreendidas sob o âmbito da capacidade de agir e da ação

intencional visando um determinado resultado. (MORGAN, et all, 2010).

Ao adentrar no universo teórico e conceitual que envolve o estudo da ação

individual socialmente orientada cabe destacar a contribuição de Fligstein (2009), que

propõe a utilização do conceito de habilidade social, reivindicando uma concepção da

ação alternativa às visões sociológicas dominantes. O autor defende uma compreensão

dos atores a partir de elementos endógenos que podem direcionar a ação dos indivíduos

nos processos coletivos nos quais se inserem.

Surge assim uma abordagem dedicada “à criatividade e a habilidade necessárias

para que os indivíduos, como representantes das coletividades, atuem politicamente em

relação aos outros atores para produzir, reproduzir e transformar os equilíbrios

institucionais.” (FLIGSTEIN, 2009, p.81)

O estudo do campo da comercialização da agricultura familiar proposto nesta

pesquisa pretende utilizar-se de conceitos ligados as habilidades econômicas e sociais

que os atores são impelidos a desenvolver para acessar os diversos subcampos

correspondentes aos canais de comercialização nos quais interagem.

Assim, como assinala Fligstein (2009, p.86):

A habilidade social funciona como uma microestrutura para

compreender o que os atores fazem nos campos. Para começar, é a

combinação de recursos, de regras preexistentes e das habilidades

sociais dos atores que funciona para produzir campos, estabilizá-los

periodicamente e produzir a transformação.”

A ideia de campo pode ser aplicada a universos sociais distintos, desde que se

identifique um conjunto de práticas e valores inerentes a cada contexto, capaz de

produzir disputas, produções e reproduções, conservadoras ou subversivas por parte dos

agentes que o compõe. Assim, Shenato (2011) esclarece que o campo social pode ser

compreendido como um espaço de lutas e forças entre os agentes, e que determina as

condições, regras, limites e possibilidades que balizam os conflitos sociais do campo

que reproduzem.

26

Como resposta a esses conflitos, os agricultores familiares buscam diferentes

estratégias para satisfazerem suas necessidades em meio às disputas que envolvem os

mercados que acessam. Muitas vezes essa disputa ocorre nos espaços institucionais de

definição dos critérios e exigências de acesso a algum mercado, ou ainda em meio às

orientações, não só técnicas como políticas também, que estabelecem os padrões

sanitários e produtivos de outra gama de mercados.

Bourdieu (2001) propõe também, dentro de seu arcabouço analítico, a existência

de diferentes formas de capital, além daquela comumente utilizada pela teoria

econômica, a saber: o capital cultural e o capital social, que como demonstra na seguinte

passagem:

[...]capital can present itself in three fundamental guises: as

economic capital, which is immediately and directly

convertible into money and may be instituitionalized in the

form of property rights; as cultural capital, which is convertible,

on certain conditions, into economic capital and may be

institucionalized in the form of educational qualifications; as

social capital, made up of social obligations (“connections”),

which is convertible, in certain conditions, into economic

capital and may be institucionalized in the form of a title of

nobility.”

As noções dos capitais citados acima invoca-nos a estudar as práticas mercantis

dos agricultores imersas em um conjunto de fatores ligados à estrutura de costumes e

valores culturalmente incorporados, ou as instituições do tecido social que circunscreve

esses agentes. Movidos pela necessidade de perpetuação do mana (elementos de

prestigio e honra da coisa dada) ou do hau (espírito da coisa), não são apenas os

aborígenes melanésios, como nos descreve MAUSS (2003) quem realizam trocas como

formas de manutenção da organização social e cultural de um determinado povo ou

sociedade.

O antropólogo Clifford Geertz (2001) em sua etnografia sobre as relações de

troca em um mercado do Marrocos, também expõe as formas de manifestação cultural e

coerção social que se traduzem nas trocas praticadas nesse mercado. De acordo com

Servilha (2008, p.32 ) a troca para aquele autor é tida como “todas as relações onde dois

ou mais indivíduos trocam algo, envolvendo ou não dinheiro, o que inclui as relações de

compra e venda diárias”.

Nesse contexto o mercado é compreendido enquanto um sistema diferenciado

que conecta a produção e o consumo de forma culturalmente e socialmente enraizada.

Assim, as capacidades de agencia e a interação dos agricultores com as estruturas

27

formais que condicionam sua participação nos mercados, apresentam-se como categoria

chave para o entendimento dos mercados disponíveis aos agricultores familiares,

sujeitos dessa pesquisa.

Portanto neste trabalho pretende-se dar forma às habilidades econômicas, sociais

e culturais desenvolvidas e praticadas pelos agricultores familiares de Viçosa, sob o

pressuposto de que tal categoria de analise não é contemplada pela perspectiva do

pensamento dominante que assola a ciência econômica, cujos instrumentos de

investigação dos mercados não conseguem captar.

28

3. OS MERCADOS DA AGRICULTURA FAMILIAR DE VIÇOSA

O caráter local da distribuição de gêneros alimentícios foi sempre predominante

nas sociedades humanas, seja pela perecibilidade destes produtos, pelas características

climáticas ou pelas particularidades culturais que determinam as preferências culinárias

de um povo. Essa dinâmica local, entretanto, sofre uma progressiva perda de espaço

concomitante ao avanço do modo de produção capitalista, e ao consequente advento da

economia de mercado tanto em escala regional, internacional e nacional - sendo que esta

última teve ainda desdobramentos de ordem geopolítica para a consolidação dos

Estados Nacionais europeus, de acordo com o que nos relata Polanyi (2000).

Em meio a esse processo histórico, sob o qual o mercado assume um papel de

regulador chave dos recursos produtivos de uma sociedade, o ideário da maximização

dos ganhos direciona os agentes econômicos a inserirem-se em uma dinâmica mercantil

altamente competitiva que deve fundar-se no imperativo de que a escolha racional entre

diversas alternativas deve ser aquela preconizada pelos modelos econômicos baseados

nas curvas de indiferença. Nesse sentido, os métodos de análise utilizados pelos

cientistas econômicos passam a distanciar-se cada vez mais dos estudos que relevam os

fenômenos sociais subjacentes às trocas mercantis de uma economia.

Entretanto, não há como negar que mesmo em face do imperativo do livre

mercado competitivo e da racionalidade do homo economicus, existem ainda, nos dias

atuais, diversas racionalidades que orientam uma infinidade de formas de transações

econômicas, sejam materiais, simbólicas, monetárias ou não, nas sociedades ao redor do

planeta (GRANOVETTER 2003, SWEDBERG 2001, ZELIZER 2003). A presente

seção tem por objetivo então desvendar o funcionamento dos principais mercados

acessados pelos agricultores familiares residentes no município de Viçosa, buscando

identificar como acontece a operacionalização dos atos de compra e venda nesses

mercados e quais são as principais exigências e características que envolvem a inserção

nestes.

Recentes trabalhos de autores como Wilkinson (2008), e Ploeg (2008) indicam

as transformações que os mercados alimentares vêm sofrendo no mundo todo, diante de

um novo quadro institucional decorrente de diversos acordos multilaterais e da

adequação das políticas domésticas de comércio exterior às exigências de padronização

do acesso a mercados de exportação sob o intuito de angariar investimento estrangeiro

direto, principalmente nas chamadas economias emergentes.

29

Nessa pesquisa optou-se por trabalhar especificamente com os mercados de

frutas, legumes e verduras (FLV). Em nível nacional e também internacional esse

mercado foi um dos mais afetados pelas transformações supracitadas, de maneira que a

comercialização desses gêneros passou a ser vista como um grande potencial de

negócios para as grandes redes de distribuição varejista que passam então a impor

padrões organizacionais e institucionais que, em muitos casos exclui aqueles

agricultores pouco intensivos em capital e tecnologia. (BELIK & MALUF, 2000). Por

outro lado, como Wilkinson (2008, p.157) aponta, no contexto de pequenos

estabelecimentos varejistas, “com sistemas de abastecimento pouco desenvolvidos no

segmento de FLV, as perspectivas das associações de pequenos fornecedores parecem

ser mais alentadoras.”

Entretanto, essa padronização decorrente de uma maior modernização, e o

subsequente alinhamento dos pré-requisitos de participação nos mercados aos moldes

das tendências observadas pelos grupos transnacionais que dominam a grande

distribuição em escala global, não parece ainda ter chegado nessa medida aos mercados

agroalimentares viçosenses. Assim sendo vale lembrar que ao mesmo tempo em que se

manifesta a tendência do ajustamento aos padrões internacionais mencionada, existe

também o crescente surgimento de novas formas de comercialização baseadas em

experiências que visam a aproximação entre a produção e o consumo de alimentos

(SCHIMITT, 2011) que, sob um caráter local, imprimem uma gama de acordos e

padrões de inserção definidos também localmente.

O município de Viçosa possui 72.220 habitantes, de acordo com o censo

demográfico do IBGE de 2010, sendo que destes 4.915, ou 6,8% são residentes da zona

rural. O censo agropecuário de 2006 indica ainda a existência de 874 agricultores

familiares e de acordo com dados fornecidos pela EMATER atualmente existem 412

Declarações de Aptidão ao Pronaf (DAP) ativas no município. Cabe destacar,

entretanto, que em relação ao segmento de frutas legumes e verduras (FLV), de acordo

com o censo agropecuário, apenas 55 estabelecimentos rurais produzem esse tipo de

produtos (14 banana, 13 laranja e 28 mandioca), entre os 1.088 totais existentes no

município. Esses dados sugerem ainda que a produção de FLV no município não é o

principal foco dos estabelecimentos rurais, sendo que a criação de bovinos (496

estabelecimentos) e equinos (259 estabelecimentos), e a produção de café (247

30

estabelecimentos), e feijão (224 estabelecimentos), envolve um número muito mais

significativo das propriedades do município (IBGE, 2006).

A coleta de dados realizada nessa pesquisa permitiu identificar oito principais

canais de comercialização utilizados por agricultores familiares de Viçosa, a saber: a

Feira Livre (FL) municipal, o PNAE, os mercadinhos e supermercados locais o PAA, a

venda direta (na qual os produtos podem ser entregues tanto na casa do comprador,

como no próprio estabelecimento), os restaurantes, a Rede de Prossumidores Raízes da

Mata, e os atravessadores.

Embora existam 412 DAPs ativas no município, o número de entrevistados foi

determinado a partir da população identificada em cada um desses mercados, ou seja, o

número de agricultores que comercializam frutas legumes e verduras (FLV) que

acessam esses canais de escoamento. Assim na Feira Livre, dentre uma população de 32

agricultores, foram entrevistados 20; no PNAE, no ano de 2013, 33 agricultores

realizaram as entregas, desses entrevistou-se 17; nos mercados locais foi deixado uma

lista a ser preenchida pelos agricultores em 8 estabelecimentos comerciais, obtendo-se o

número de 31 agricultores residentes em Viçosa, destes foram entrevistados 19; em

relação a venda direta, restaurantes e atravessadores, houve dificuldade em obter um

número da população total, no entanto, foram identificados, e entrevistados nesta

pesquisa 15 agricultores que praticam essas formas de comercialização; por fim na Rede

Raízes da Mata, no ano de 2013 foram identificados apenas 4 agricultores familiares

residentes em Viçosa que comercializam através desta, sendo entrevistados todos eles

nesta pesquisa

Assim, o número de 34 agricultores entrevistados aparentemente pequeno,

apresenta-se significativamente relevante ao tomarmos por base tanto o número de

estabelecimentos que produzem os gêneros alimentícios que aqui interessam, quanto a

população de cada um dos mercados que pretendemos estudar. É importante lembrar

ainda que durante a pesquisa foi possível observar uma forte sobreposição entre os

mercados, haja vista, a identificação de 23 combinações relativas à diferenciação de

mercados entre os entrevistados, como demonstra o número de 87 respostas totais sobre

o mercados acessados, obtidas na pesquisa de campo.

O gráfico a seguir detalha porcentagem dos agricultores entrevistados que

acessam cada um desses mercados mapeados.

31

Gráfico 1- Mercados Acessados pelos Agricultores Familiares de Viçosa

Fonte: dados da pesquisa

A feira livre é o canal de escoamento da produção que a maioria dos

entrevistados utiliza, em seguida aparecem os mercados locais, o PNAE e o PAA. No

entanto é importante lembrar que existe uma forte intersecção entre os conjuntos

relativos a cada um dos mercado, pois a grande maioria dos entrevistados (91%)

acessam dois ou mais espaços de comercialização.

Esse cenário envolve uma pluralidade de racionalidades, regras de

funcionamento, sistemas de operacionalização e outras características que poderão ser

melhor visualizadas com a caracterização detalhada e específica de cada um desses

mercados.

Sob o intuito de amparar a análise dos mercados em categorias que permitam

uma visão ampla das instituições3 presentes identificadas nestes, será utilizado o

arcabouço analítico proposto por Fligstein (2003). Como evidenciado no capítulo

anterior, este autor identifica quatro agrupamentos para as instituições de mercado, a

saber:

1) Direitos de Propriedade: “constituem relações sociais que definem quem tem

direito aos lucros de uma empresa. Grupos organizados de empresas, trabalhadores,

3 O conceito adotado aqui será o mesmo exposto por Fligstein (2003, p.198) que assinala que as

instituições consistem em “regras partilhadas sob a forma de leis ou entendimentos coletivos,

mantidas por hábito, acordo explícito ou acordo tácito”.

32

agências governamentais e partidos políticos procuram influenciar a constituição dos

direitos de propriedade” (FLIGSTEIN, 2003, p.198-199).

2) Estruturas de Governança: Representam as formas legais e informais que os

agentes encontram para controlarem o funcionamento do mercado, “correspondem às

normas gerais que, numa sociedade, estabelecem as relações de competição e

cooperação, bem como as definições específicas de mercado acerca do modo como as

empresas devem estar organizadas. ”(FLIGSTEIN, 2003, p.199).

3) Concepções de Controle: Referem-se às impressões dos agentes em relação

“aos princípios que presidem à sua organização interna, táticas de competição ou

cooperação, e espelham a hierarquia de status que ordena as empresas num dado

mercado”(FLIGSTEIN, 2003, p.199).

4) Normas de Transação: devem considerar “as tarefas de transporte, os

pagamentos, o seguro, o intercâmbio de dinheiro e o cumprimento dos contratos

(FLIGSTEIN, 2003, p.200).

Isto posto, dividiremos este capítulo em subseções correspondentes a cada

mercado estudado, de forma a identificar como essas instituições se manifestam nesses

espaços. Sob o objetivo de tornar esta apresentação mais dinâmica será agrupado na

seção 3.4 os mercados locais e os restaurantes e, na seção 3.6 a venda direta junto a

venda aos atravessadores.

3.1 A FEIRA MUNICIPAL

A Feira Livre municipal existe há cerca de 47 anos e, segundo a secretaria de

agricultura da Prefeitura Municipal conta com a participação de aproximadamente 115

feirantes divididos em setores de acordo com os produtos comercializados

(hortifrutigranjeiros, derivados, industrializados, artesanato e alimentos para consumo

imediato), dos quais 63 são residentes em Viçosa. O setor de hortifrutigranjeiros, que

mais nos interessa para fins da presente pesquisa, é aquele que dispõe da grande maioria

das barracas desse espaço, ao todo setenta e quatro registradas. Dentre o segmento de

FL, entretanto, restringindo-nos aos feirantes de Viçosa, chegamos ao número de 32

barracas4, número esse utilizado como base para a coleta de dados deste trabalho.

4 Número obtido a partir da observação participante realizada durante as cinco Feiras Livre entre

os meses de janeiro e fevereiro de 2014.

33

A participação nesse mercado requer a demonstração de interesse aos órgãos

responsáveis, que então avaliam a disponibilidade de espaço e a “reputação” do

interessado para realizar seu cadastro e conceder-lhe um “lote” na Feira, de acordo com

o relato de um informante qualificado na Prefeitura. Dessa forma, não há restrições

formais que delimitam os direitos de propriedade nesse espaço, produtores pequenos,

grandes, médios, familiares ou não, podem participar igualmente deste mercado.

As trocas praticadas na Feira Livre entre os sujeitos da pesquisa acontecem

predominantemente de forma material, intermediada monetariamente. No entanto os

vínculos pessoais, de amizade, companheirismo e reciprocidade entre os feirantes,

frequentadores e fregueses manifestam-se de várias maneiras e desempenham um papel

chave para a manutenção das relações sociais e econômicas observadas no

funcionamento deste mercado.

Isto pode ser observado na articulação que ocorre para o transporte de

mercadorias até o local da Feira Livre, pois os agricultores feirantes residentes em uma

mesma comunidade valem-se dos laços de vizinhança para realizar uma locação

conjunta de caminhões, ou caminhonetes para conseguir viabilizar sua participação a

um custo menor. Nesse sentido um agricultor informou-me também que “aqui a gente é

igual família, quando acontece algum problema de carro quebrar, ou alguma coisa do

tipo sempre tem alguém que eu posso chamar pra me ajudar a trazer as coisas.” (José

Antonio). Outro agricultor também relata que já precisou da ajuda de seus colegas para

conter um estudante bêbado que o desafiou e o desrespeitou, após passar por cima de

suas mercadorias, demonstrando assim como as relações pessoais existentes entre os

feirantes contribui para assegurar as regras de bom funcionamento desse mercado.

Nesse sentido as estruturas de governança identificadas na Feira Livre, remetem

tanto aos mecanismos sociais que asseguram a cooperação mútua entre os feirantes,

como citado acima, quanto às regras informais responsáveis pela estabilidade dos preços

decorrente do elevado grau de competitividade verificado nesse mercado.

A coleta de dados realizada na pesquisa evidenciou também que os preços dos

produtos do segmento FLV nesse espaço apresentam-se, geralmente, inferiores aos

praticados em outros espaços do varejo municipal. Essa defasagem consiste em um dos

principais diferenciais desse mercado, que, embora avaliado pelos agricultores de forma

negativa, alguns, entretanto, notaram a via de mão dupla que essa situação impinge, pois

34

os preços menores garantem maior liquidez, de maneira que, como nos relata um

agricultor:

“Todos [os mercados] são importantes, mas pra mim

acaba que a feira é um pouco mais, porque por mais que a

gente vende mais barato, a gente vê o dinheiro né? Todo

sábado é garantido entrar um dinheirinho, e mesmo um ou

outro sendo fiado, a maioria a gente recebe na

hora.”(Fabiano)

Não apenas este agricultor, como a maior parte dos entrevistados,

principalmente por motivos ligados á liquidez, regularidade ou confiança, declararam

ser a Feira Livre municipal o principal mercado acessado pela família, como nos mostra

o gráfico a seguir:

Gráfico 2 - Mercados mais importantes para os agricultores familiares de Viçosa.

Fonte: dados da pesquisa

Contudo deve-se ter em mente que a Feira Livre corresponde a um mercado no

qual os preços desempenham um papel fundamental para o equilíbrio desse mercado, de

maneira que boa parte dos feirantes define seus preços por comparação, de acordo com

os preços e qualidades das barracas mais próximas às suas, fazendo as devidas correções

em relação à apresentação (tamanho e aparência) de suas mercadorias.

Sob esse aspecto a noção de embeddedness, ou incrustação postulada por

Granovetter (2003) pode ser utilizada para explicar a persistência e permanência dos

35

agricultores familiares e seus padrões produtivos num espaço como a feira, no qual as

redes sociais construídas entre os comerciantes, prefeitura municipal e consumidores

demonstram como a ação econômica encontra-se devidamente enraizada no tecido

social de um determinado contexto cultural e político. Como fica evidente ao

observarmos que embora exista um alto grau de concorrência, seguida de competição

pela via dos preços entre os feirantes, há também a cooperação, e a troca de favores e

“auxílios” culturalmente e socialmente incrustados, de forma semelhante à proposta de

que “os comportamentos e instituições em análise são tão condicionados pelas relações

sociais, que conceitualizá-los como elementos independentes representa um sério

equívoco” (GRANOVETTER, 2003, p.69).

Assim, os efeitos supostamente benéficos do modelo da concorrência perfeita

defendido pela teoria neoclássica, como pressões baixista sobre os preços finais aos

consumidores e o incremento da liquidez aos produtores, acontecem na Feira Livre

simultaneamente às relações que envolvem a troca de tempo de serviços e de produtos

como nos relata: “[...] tem vez que eu to com muita salsinha por exemplo, e a Dona

Francisca não tem, então ela pega um pouco da minha pra vender na barraca dela e eu

faço do mesmo jeito com ela também” (Seu Nem).

Por outro lado, pode-se considerar também que, nesse caso, a incrustração difere

da construção social desse mercado que, como evidencia Wilkinson (2008, p.95), este

último conceito amplamente utilizado nas discussões da sociologia econômica, refere-se

aos esforços de “adaptação às transformações e aos critérios de regulação dos

mercados”. Ou seja, como verificado durante a pesquisa de campo, os agricultores

feirantes buscam sempre se adaptar às referências de qualidade e preços de seus

concorrentes, como mostra o relato de um agricultor que ao ser questionado sobre como

decide os preços de seus alimentos em cada feira, disse:

“Quando chego [na feira] eu dou uma olhada no preço dos meus

vizinhos né. Se ele tá pedindo R$ 1,00 no alface daquele maior, eu

coloco o meu desse aqui [ele pega um alface nitidamente menor do

que o do vizinho] a R$ 0,70, e assim vai com as outras mercadorias

também” (Paulo Gomes).

Fica claro aqui uma das táticas utilizadas pelos agricultores que se encontram na

posição de tomadores de preços de mercado, bem como os entendimentos da

36

organização interna e dos fluxos de poder de mercado que se manifestam nesse

mercado. Ou seja, suas concepções de controle.

Outro aspecto importante a ser destacado em relação à Feira Livre é a

inexistência de qualquer tipo de exigências de caráter sanitário, de padrão produtivo,

preço, ou de controle de qualidade dos produtos. Nesse espaço a proximidade entre

comerciante e consumidor e o aval desse último é o que determina o sucesso das vendas

daquele. Ou seja, o critério básico de acesso a este mercado é (excluindo o cadastro

prévio junto à Secretaria Municipal de Agricultura) ter uma boa apresentação visual dos

produtos, e manter boas relações com os clientes.

A observação sob um olhar científico desse espaço plural que representa a Feira

Livre de Viçosa permitiu-nos identificar uma diversidade de racionalidades que

orientam as transações nesse espaço. A racionalidade de maximização de ganhos em um

contexto de intensa competição pode ser verificada pela dinâmica dos preços

supracitada. Não há como negar a existência do cálculo racional do ganho individual

traduzido nas práticas dos agricultores nesse mercado, bem como não há como afirmar

que este é o mecanismo ordenador do funcionamento da Feira. A construção social

desse mercado imprime uma ampla diversidade de relações e práticas, evidenciada

também ao analisarmos as normas de transação desse mercado assinaladas aqui

(acordos para o transporte, para a efetivação das trocas e acordos pré-estabelecidos).

Há aqueles que buscam a liquidez, como aqueles que buscam se divertir e se

entreter junto aos seus pares, como os que têm na feira a única ou a principal fonte de

escoamento de sua produção. Todos esses objetivos traduzem-se assim, em ações que

refletem essa pluralidade de racionalidades que, por sua vez, faz com que esse espaço

continue sendo atrativo tanto aos compradores quanto aos vendedores,

independentemente das transformações vividas nos mercados de FLV, nos âmbitos

local, nacional ou internacional.

3.2 O PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR (PNAE), OU

A “MERENDA ESCOLAR”.

O PNAE consiste em um dos programas sociais mais antigos na área de

alimentação e nutrição do Brasil. Sendo criado no ano de 1955, o programa ganha

37

ênfase com a constituição de 1988 que determina o papel do estado no atendimento

adequado à alimentação escolar das escolas públicas. No entanto, é apenas em 2009 que

o programa sofre uma significativa alteração que leva aos desdobramentos relevantes

para esta pesquisa, haja vista que a lei nº11947/09 e a resolução 38 do Fundo Nacional

de Desenvolvimento da Educação (FNDE) estipulam “que no mínimo 30% do

orçamento das prefeituras que é destinado à alimentação escolar sejam utilizados na

compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar, com dispensa de licitação”

(ITCP-UFV, 2012).

Sob o objetivo de atender às necessidades alimentares dos alunos da educação

infantil, ensino fundamental e médio das escolas públicas ou daquelas mantidas por

entidades beneficentes de assistência social, o funcionamento do programa tem início no

repasse de recursos do FNDE às prefeituras municipais, seguido então pelas etapas de

realização da chamada pública, elaboração do projeto de vendas dos proponentes,

seleção e aprovação dos projetos, compra dos produtos e recebimento dos produtos.

Vale ressaltar que essas etapas são assessoradas tanto pelos agentes de ATER (até a

elaboração do projeto) como pelo Conselho de Alimentação da Educação (CAE), de

acordo com o fluxograma abaixo:

Figura 1- Fluxograma do PNAE

Fonte: ITCP/UFV, 2012.

38

Em Viçosa esse programa começou a ser acessado no ano de 2012 e, segundo

relato do presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, foi ele próprio quem levou

a proposta à Prefeitura e à EMATER. Ele nos informa que, após participar de atividades

e eventos relacionados à agricultura familiar no estado de Minas Gerais, pode observar

as vantagens de acessar o programa, e também a forma de operacionalização do acesso,

e isso o inspirou a trazer a proposta para Viçosa.

Nesse município, o programa é executado a partir de duas chamadas anuais, uma

para cada semestre letivo das escolas da rede municipal, essas chamadas são articuladas

conjuntamente pela Prefeitura Municipal, representada pelo Secretário de Agricultura e

por um funcionário da Secretaria de Educação, pela EMATER de Viçosa na figura três

técnicos e por uma representante do CAE.

Num primeiro momento é convocada uma reunião que conta com a presença dos

representantes de cada uma das entidades articuladoras e dos agricultores familiares

interessados em entregar para o que eles denominam “merenda escolar”. Nesse encontro

são definidos então quais agricultores serão contratados, e discutem-se questões

operacionais relativas a entregas, definição de preços e prazos em geral.

Durante a pesquisa de campo se teve a oportunidade de participar da reunião

para a contratação dos alimentos para o primeiro semestre letivo de 2014. Nesta

atividade foi encaminhada uma tabela a cada um dos agricultores, solicitando

informações sobre a descrição, quantidade, período de disponibilidade dos produtos a

serem entregues para o programa. Ficou acertado também que dessa vez eles não iriam

entregar essa tabela para a EMATER, mas que os técnicos desta visitariam cada uma

das propriedades para resgatar a tabela preenchida e verificar se na propriedade havia

capacidade para a produção que estava sendo declarada.

Essa nova forma de controle sobre a elaboração dos projetos de venda,

aconteceu com o intuito de fiscalizar as propriedades, pois segundo relatos de

informantes, estavam acontecendo situações em que os agricultores compravam

produtos de terceiros para entregar ao programa. A forma de estabelecimento dos preços

também foi discutida nessa reunião, ocasião em que foi deliberada uma comissão

formada pelos próprios agricultores que teria a responsabilidade de realizar uma cotação

em três lugares diferentes para então ser realizada a média que irá definir os preços que

constarão nos contratos.

39

Aqui podemos utilizar, sob a forma de categorias de análise, três das instituições

de mercados postuladas por Fligstein (2003): a primeira diz respeito aos direitos de

propriedade praticados nesse mercado, o que fica explícito no próprio contrato onde

consta que a aquisição de gêneros alimentícios da agricultura familiar, ou seja, os

agentes produtivos a serem beneficiados, se restringem ao segmento das unidades

produtivas familiares, daí alguns autores optarem por utilizar o termo mercado

protegido em referência tanto ao PNAE como ao PAA, que apresenta o mesmo critério.

Dentre as normas gerais que estabelecem a organização e atuação dos

agricultores para a entrega ao PNAE, a avaliação das cozinheiras das escolas ou, como

são conhecidas, “as merendeiras” é um fator importante no que diz respeito às estruturas

de governança identificadas nesse mercado. O CAE é o órgão que transmite essa

avaliação aos agricultores nas reuniões para elaboração do projeto de vendas. Durante a

reunião observada nessa pesquisa, a representante deste conselho relatou que as

merendeiras estavam reclamando dos tomates e das bananas que estavam chegando

muito maduros, desencadeando significativas perdas. Outra avaliação colhida junto às

merendeiras de uma das escolas foi a de que, de uma forma geral, os produtos eram

bons, mas alguns como as cenouras, por exemplo, eram muito menores do que as que

vinham antes da execução da chamada lei dos 30%, e que isso acarretava em um

incremento do tempo de trabalho necessário para o seu preparo.

Assim, como os fatores históricos lembram, antes da referida lei, os agentes

produtivos que acessavam este mercado consistiam em grandes redes de distribuição ou

de produção consolidadas e capazes de atender a requisitos formais, exigidos,

(praticando também táticas de competição de preços) para as compras públicas

demandadas a esse setor. Essas redes funcionam com base em formas de produção

convencionais, que apresentam substanciais distinções quanto à organização e ao

modelo produtivo familiar, assim a “herança” deixada por esses agentes tem ainda

diversas implicações em relação aos costumes, práticas e regras próprias aos atores que

recebem e transformam essas mercadorias no produto final: a merenda escolar.

Essas informações permitem também considerar que o PNAE promove o

surgimento de concepções de controle presentes no mercado da alimentação escolar,

uma vez que o Estado é quem define os mecanismos de controle da competição, por

meio das condições de acesso e definição de preços e quantidades máximos.

40

Outra instituição observada remete às normas de transação. Constam no contrato

realizado entre os agricultores (contratados) e a Prefeitura (contratante) cláusulas que

dispõem sobre os prazos e procedimentos para as entregas dos produtos e os

recebimentos dos pagamentos, além das quantidades e preços referentes às entregas de

cada um dos agricultores, tudo isso determinado previamente nas reuniões para a

elaboração do projeto de vendas. O custo do transporte fica a cargo dos agricultores, e

diferentemente da feira, a possibilidade de um rateio entre vizinhos para custear a

locação de um mesmo veículo é reduzida devido à logística das entregas ao programa

por meio da qual, geralmente, cada agricultor acorda entregar em escolas diferentes, e

em horários específicos. Isso implica em uma exigência de acesso que impossibilita

ainda a participação de alguns interessados. De acordo com os resultados da pesquisa,

dos entrevistados que declararam dificuldades para comercializar seus produtos, 67%

apontaram a falta de um veículo de transporte próprio como a principal, e 25% disseram

ter mais problemas com as más condições das estradas. Ou seja, pode-se afirmar que a

norma de transação relativa ao transporte das mercadorias no PNAE não se apresenta

condizente com os recursos da maioria dos entrevistados.

Gráfico 3 - Principais dificuldades da comercialização dos agricultores familiares de

Viçosa.

Fonte: dados da pesquisa.

.

41

Contudo, por ser uma possibilidade adicional de comercialização (inexistente dois anos

atrás), e devido ao “bom preço” pago pelo FNDE, esse cenário apresenta-se animador

para boa parte dos agricultores familiares do município (24% das preferências dos

agricultores entrevistados), bem como para a Prefeitura, EMATER e demais entidades

envolvidas na viabilização desse mercado que atualmente corresponde a 66% da

demanda municipal, e segundo relatos do presidente do STR tem servido de modelo

para os municípios ao seu entorno.

3.3 OS MERCADINHOS, RESTAURANTES E SUPERMERCADOS LOCAIS.

Os mercadinhos, restaurantes e supermercados locais que se abastecem de

gêneros alimentícios oriundos da agricultura familiar do município foram analisados

conjuntamente devido à verificação de dinâmicas de funcionamento, exigências e

padrões extremamente similares entre si. Nesta pesquisa foram entrevistadas pessoas

ligadas a oito estabelecimentos dessa classificação: todos os grandes supermercados que

atuam na cidade, bem como os varejistas especializados em FLV de maior volume.

Com exceção de um deles, a origem da maior parte de suas mercadorias advém do

CEASA de Belo horizonte/MG, sendo que todos também compram produtos mais

perecíveis como verduras e algumas frutas e legumes da agricultura local, não só a

familiar, e também não apenas a de Viçosa.

À exceção citada acima designaremos com o nome fictício de Mercado do José,

o qual apresenta um papel significativo no abastecimento de boa parte dos outros

estabelecimentos dessa categoria. De acordo com o relato de um dos sócios-

proprietários, a família dispõe de uma unidade de produção agrícola bem consolidada

que atualmente consegue dar conta de praticamente todas as mercadorias

comercializadas no estabelecimento. Este mesmo informante declarou ainda que vende

também na Feira Livre e a vários mini-mercados localizados nos bairros.

Os direitos de propriedade observados em meio a essa categoria de mercado

garantem a participação de uma vasta e heterogênea parcela de produtores rurais, de

forma que os beneficiários dos rendimentos auferidos abrangem pequenos, médios e

grandes produtores sem restrições quanto a padrões produtivos, nem sanitários. No

entanto, é evidente que aqueles agentes produtivos que detêm maior capacidade de

42

escala acabem construindo relações mais duradouras com os grandes varejistas. Esse é o

caso de dois grandes supermercados da cidade, cujos setores de FLV são terceirizados

para uma empresa de logística especializada nesse segmento, cuja unidade de

distribuição mais próxima encontra-se no município de Juiz de Fora-MG.

Ao identificarmos as estruturas de governança presentes nesse mercado, pode-se

compreender que as relações estabelecidas que determinam a organização dos

produtores no tocante as definições de preços e quantidades repousa nos critérios que

atendem a eficiência da distribuição praticada pelos varejistas que, na maioria dos casos,

dispõe de capacidade financeira e poder de barganha superior ao dos produtores.

Há também uma relevante diferença entre as possibilidades da agricultura

familiar local e as grandes redes de distribuição de alimentos. Essa diferença fica

explicita ao verificarmos que empresas de logística como a citadas anteriormente, ou as

encomendas de mercadorias do CEASA-BH apresentam uma capacidade de entrega

permanente de uma ampla lista de produtos diversos, nacionais e importados, bem

distante do que podem oferecer os estabelecimentos familiares.

Essa situação apresenta-se análoga à nova tendência de transnacionalização dos

elos das cadeias agroalimentares que atingem o continente latino americano de acordo

com Wilkinson (2006, p.5), que assinala ainda que os estudos sobre os impactos dessa

tendência:

[...] apontam para uma transformação do ambiente concorrencial, que leva a

maiores níveis de eficiência e a pressões tanto sobre custos quanto sobre um

maior ritmo de inovações e modernização tecnológicas [...] nesse processo,

médios e até grandes produtores estão sendo privilegiados à custas da

participação da pequena produção, que só se mantém com base em respostas

inovadoras de organização ou sob sistemas variados de subcontratação ou

associação com médios produtores.

Quando questionado sobre quais as exigências e critérios que interferem na

escolha da compra das mercadorias que serão comercializadas em seu estabelecimento,

um dos varejistas entrevistados foi bem claro ao dizer que: “Aqui é o seguinte: o pessoal

[produtores] passam aqui com o que eles têm, se a mercadoria tiver bonita, o preço for

bom e servir para o que eu to precisando na hora, a gente pega, se não a gente dispensa”

(Varejista 1).

43

Este relato evidencia como as relações tecidas entre os varejistas e os produtores

locais podem ser tênues de maneira que, mais uma vez, a agricultura familiar apresenta

ligeiras desvantagens em relação ao sistema logístico das grandes empresas de

abastecimento.

Em relação às concepções de controle, cabe destacar que geralmente as relações

de proximidade e confiança entre esses produtores e consumidores também interferem

nas práticas desse mercado. Três dos oito varejistas entrevistados relataram manter

relações comerciais com um ou outro produtor local devido à questões ligadas à sua

reputação e ao fato de já se conhecerem há muito tempo, por exemplo. Entretanto, como

exemplificado acima, essas relações não são determinantes ao ponto de fazer frente a

eventuais desvios quanto aos aspectos relacionados à regularidade da entrega e ao preço

praticado, de maneira que as formas de competição são ainda mais influenciadas por

esses últimos aspectos. Contudo, tem-se que as regras de transação como o

compromisso e a quantidade da entrega, preços baixos e o pagamento consignado no

caso das verduras, devido a sua alta perecibilidade, determinam mais do que qualquer

outro fator as características das instituições identificadas nesse segmento de mercado.

Quanto aos restaurantes, embora seja verdade dizer que as instituições

verificadas acima também fazem parte da realidade das práticas mercantis desses

estabelecimentos, existem algumas ressalvas em relação às demandas de quantidade,

que resultam também em preços diferentes daqueles praticados nos mercados locais. E

da mesma forma em que acontece nestes últimos, nos restaurantes não existem padrões

de natureza sanitária ou de padrão produtivo, e os preços e a aparência visual das frutas

legumes e verduras comercializada ainda são os principais critérios adotados por esses

compradores, como nos relata uma agricultora: “Pros restaurantes eles não querem nem

saber se tem veneno, ou se tem adubo orgânico, pra eles tem que ter preço e entregar na

hora certa, é isso que vale” (Dona Telma).

Esse relato indica também que, nos restaurantes, a pontualidade da entrega é um

critério que impõe um modo de organização específico exigindo uma habilidade de

gestão das etapas de produção e comercialização, ou seja, mais um aspecto que deve ser

incluído à analise das instituições nesse mercado, sendo que esse critério remete à

utilização mais eficiente dos fatores de produção dos serviços prestados pelo

restaurante.

44

3.4 O PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS (PAA).

Em 2003, é instituído pelo decreto n°10.696, de 2 de julho, o Programa de

Aquisição de Alimentos (PAA), alterado posteriormente pelo decreto n° 5.783 em 15 de

agosto de 2006. Fruto de ações vinculadas a estratégias de Segurança Alimentar e

Nutricional inserida no programa Fome Zero, o intuito deste programa consiste, de

forma geral, na criação de um espaço de escoamento da produção da agricultura

familiar, por meio de uma política de preços mínimos praticados sob uma garantia de

compra, e na inserção dos agricultores familiares no mercado institucional por meio das

compras governamentais. Segundo documento oficial, o principal objetivo do programa

pode ser tido como:

“[...] garantir o acesso aos alimentos em quantidade, qualidade e

regularidade necessárias às populações em situação de insegurança

alimentar e nutricional, contribuir para a formação de estoques

estratégicos, permitir aos agricultores familiares que estoquem seus

produtos para serem comercializados a preços mais justos, e promover

a inclusão social no campo por meio do fortalecimento da agricultura

familiar” (BRASIL, 2006).

O programa representa assim um instrumento de intervenção estatal que

acontece tanto no lado da oferta como da demanda de alimentos, ou seja, estimula a

produção por meio da flexibilização dos procedimentos para as compras

governamentais (dispensa de licitação), ao mesmo tempo em que redistribui esses

alimentos. O diagrama abaixo permite ilustrar como o programa está concatenado às

ações de combate a fome do Governo Federal.

45

Figura 2 –Diagrama Programa Fome Zero

Fonte: CHMIELEWSKA, et all, 2010

A operacionalização desse mercado acontece de acordo com as modalidades do

programa, que são cinco ao todo: Compra Direta Local da Agricultura Familiar

(CDLAF), Compra Direta da Agricultura Familiar (CDAF), Compra Antecipada

Especial da Agricultura Familiar - Doação simultânea (CAEAF), Formação de Estoques

pela Agricultura Familiar (CPR - Estoque) e Incentivo à Produção e Consumo de Leite

(IPCL) (BRASIL, 2007).

Na pesquisa de campo realizada neste trabalho foram mapeadas duas

associações de agricultores no município que acessam o programa através da

modalidade de Compra Direta para Doação Simultânea. Esta modalidade exige um

acordo de venda e entrega prévia entre os produtores e as instituições beneficiadas, haja

vista, entidades cadastradas nas redes de assistência social local, outra exigência muito

relevante para as questões levantadas nessa pesquisa é a necessidade de que os

agricultores familiares estejam organizados em grupos formais como cooperativas ou

associações.

Uma primeira consideração quanto aos direitos de propriedade desse mercado

está relacionada a esta última exigência indicada no parágrafo anterior, ou seja, os

46

atores sociais que auferem os ganhos financeiros decorrentes desse programa são

estritamente os agricultores familiares, entretanto, para isso devem estar vinculados a

algum processo de organização e mobilização social formalizado juridicamente como

associação ou cooperativa.

Dessa forma, em muitos casos, como nas duas associações pesquisadas neste

trabalho, a formalização jurídica aconteceu de forma concomitante ao surgimento da

organização enquanto processo social, e sob o intuito máximo de acesso ao PAA5. Por

ora, vale dizer que as concepções de controle que envolve esse mercado remetem

diretamente às regulamentações que determinam as condições de acesso, os preços e as

quantidades comercializadas, uma vez que este programa surge exatamente como uma

proposta de mercado protegido, principalmente em relação à competição de preços e

escalas produtivas, inviáveis para grande parte dos agricultores familiares (quando

comparados a agentes produtivos mais capitalizados).

Cabe aqui um paralelo entre o PAA e o PNAE em relação a essa categoria de

análise. Sendo as propostas dos dois programas semelhantes no tocante aos agentes

beneficiados e formas de funcionamento, é verificada também uma grande semelhança

entre as concepções de controle dos dois mercados, de maneira a corroborar a

proposição de Fligstein (2003, p. 212): “os novos mercados imitam as concepções de

controle vigentes nos mercados mais próximos, sobretudo quando as empresas de outros

mercados decidem entrar no novo mercado”. Há que se considerar, entretanto ligeiras

diferenças entre os mecanismos de definição de preços e das exigências de acesso entre

esses mercados.

Em relação às estruturas de governança, pode-se dizer que tanto as leis que

determinam o modo de funcionamento legal das organizações (associações ou

cooperativas) quanto o regulamento que delibera sobre a operacionalização do programa

e os aspectos culturais e históricos que orientam a atuação dos agricultores representam

as diretrizes que definem como agentes produtivos devem proceder para acessarem o

PAA.

5 Em relação às consequências que esse procedimento pode acarretar discutiremos melhor no capítulo

seguinte que trará as estratégias e as habilidades dos atores para o acesso a mercados

47

Sobre esse aspecto é importante esclarecer também que, como observado no

contexto viçosense, a Prefeitura Municipal e os técnicos da EMATER desempenham

um papel chave para a viabilização desse mercado. Estes últimos são os que assessoram

a gestão e funcionamento das associações, sendo que em uma delas esses atores também

realizam as convocações para as assembléias, a elaboração e o arquivamento das atas

das mesmas e até mesmo o controle e a prestação de contas das entregas realizadas. Já a

prefeitura disponibiliza o veículo de transporte que busca os produtos nas propriedades

rurais e os distribuem nas entidades beneficiadas. Fica evidente como a compreensão

dos desafios do processo organizacional das cooperativas e associações que acessam o

programa é indissociável da análise das instituições presentes nesse mercado.

As normas de transação são determinadas pela entidade responsável pela gestão

PAA, ou seja, a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), que determina as

regras e procedimentos burocráticos que regem as entregas dos produtos, a prestação de

contas e o pagamento dos agricultores. Em uma das associações pesquisadas, o

cumprimento desses procedimentos encarou dificuldades de diversas naturezas

(mudanças em quantidades, ou produtos, entre as entregas previstas no projeto e as de

fato realizadas, por exemplo) que acarretaram em complicações com a prestação de

contas e consequentes atrasos no pagamento aos agricultores. Esse acontecimento gerou

muitas descrenças por parte desses agentes produtivos quanto a viabilidade e vantagens

de inserção nesse tipo de mercado protegido, de maneira que um dos agricultores da

comunidade que não acessa o programa declarou, mesmo precisando conseguir novos

canais de escoamento para a sua produção, não ter interesse de acessar o programa.

Os preços praticados nesse mercado também representam um fator que

desestimula a participação de muitos agricultores familiares de Viçosa. Diferentemente

do PNAE, onde os próprios agricultores se organizam em comissões que realizam os

orçamentos base para o preço no próprio município, no PAA os preços são aqueles

definidos pela CONAB que conta com uma metodologia específica de contabilização

dos custos de produção de cada item, para cada região brasileira. Assim, para alguns

agricultores que participam de uma das associações pesquisadas não é viável a

comercialização de determinados produtos por essa via. Entretanto, de acordo com o

regimento do programa, é possível a submissão de aditivos à CONAB com o

48

requerimento de reavaliações dos preços praticados para alguns produtos, desde que

verificadas defasagens em relação aos preços locais6.

Contudo, em meio às informações levantadas na pesquisa de campo, podemos

compreender que o PAA representa um canal de comercialização relevante para os

agricultores familiares do município, haja vista que 17% das respostas quanto à

importância do programa apontaram-no como o mais importante. No entanto, suas

exigências e formas de funcionamento ainda representam um grande desafio para o

acesso exitoso do programa para pelo menos 16 agricultores de uma das duas

associações que participam desse mercado no município.

3.5 A VENDA DIRETA E OS ATRAVESSADORES.

A venda direta consiste em uma forma de mercado que proporciona a construção

de uma relação mais estreita possível entre os agricultores familiares e os consumidores

finais (uma vez que os outros mercados estudados, com exceção da Feira Livre,

estabelecem relações com mediadores). Dentre os entrevistados dessa pesquisa, os oito

agricultores que declararam comercializar dessa maneira enfatizaram o fato de não

utilizarem nenhum tipo de agrotóxico e que a prioridade da produção é a qualidade.

Ou seja, um enquadramento dos direitos de propriedade presentes nesse

mercado, evidencia que os agentes produtivos que o acessam correspondem

substancialmente aos agricultores familiares que buscam realizar um trabalho próximo á

um padrão produtivo alternativo à agricultura convencional.

Não parecem existir nesse mercado estruturas de governança específicas, pois as

relações de confiança e amizade interferem significativamente para ocorrência das

transações, e são essas relações que determinam como será a pratica mercantil tanto dos

produtores, como dos consumidores, Fato este que sinaliza como é criada a reputação

dos produtores, de forma que os preços passam a ter até uma posição secundária para a

concretização dessas transações.

6

As causas que resultam no fato de nenhum dos agentes produtivos entrevistados disporem dessa

informação serão também alvo das discussões realizadas no capítulo seguinte.

49

Nesse sentido, as concepções de controle como as normas de transação também

estão ligadas a essas relações que podem permitir a compra “fiada” em determinados

contextos e em outros não, por exemplo.

Um dos agricultores, quem declarou ser esta forma de comercialização através

da qual aufere o maior faturamento em relação aos outros mercados, destacou ao ser

questionado sobre esse tipo de venda:

“[…] é muito bom porque pra mim não tem hora pra vende, ai

sempre aparece alguém aqui e eu sempre atendo, pode ser

cinquenta centavos, um real, mas que no fim um dinheiro bom, e

as pessoas que vão gostando acabam voltando ou me liga e eu

levo na casa deles quanto precisa...” (Seu João Dias)

Esse relato evidencia ainda esse outro caráter da venda direta, haja vista,

possibilitar um ganho significativo muitas vezes “sem ter que sair de casa”, e ao passo

que as relações com os consumidores vão se consolidando, esse mercado pode se

expandir atendendo os anseios e limitações de ambas as partes.

Nesta pesquisa, foram entrevistados apenas dois agricultores familiares que

declararam entregarem produtos a um atravessador. Neste caso é um mesmo

atravessador de uma comunidade rural que compra os produtos desses dois agricultores,

direto na propriedade.

Um dos agricultores declarou comercializar por essa via de forma residual em

relação aos seus outros canais de escoamento, declarando que entrega a essa pessoa

apenas quando esta com mercadoria sobrando, sendo que seus principais mercados são

o PAA, e os mercadinhos locais com os quais já tem relações mais duradouras. O outro

agricultor, entretanto, alegou que entrega em média 50% de sua produção e demonstra

um alto grau de dependência desse mercado que tem como principal vantagem o fato de

o atravessador buscar os produtos, não incorrendo assim em custos de transporte, nem

demanda as negociações e os conhecimentos que são exigidos para inserir os produtos

no varejo. Entretanto o preço pago pelo atravessador chega a ser até 75% menor do que

os preços pagos no PAA, no PNAE ou na Feira por exemplo.

A venda aos atravessadores exige apenas uma quantidade mínima, preços

demasiadamente baixos e o contato direto com essa pessoa. No entanto, o segundo dos

produtores mencionados relata que tem que ter um planejamento minucioso da

50

produção e conhecer quando os períodos do ano que esse atravessador costuma precisar

de mais produtos para que consiga fazer uma combinação mais eficaz nas vendas para o

PAA e para esse atravessador. Esse planejamento demonstra assim a necessidade de

desenvolver uma habilidade, que aqui será classificada como empreendedora, e que será

melhor trabalhada também no capítulo seguinte.

Contudo, os dois agricultores apresentaram-se ligeiramente insatisfeitos com

essa via de comercialização, de forma que nenhum deles atribuiu aos atravessadores

grande importância no tocante às suas estratégias de comercialização, haja vista o fato

de os atravessadores nem serem mencionados nas respostas sobre a ordem de

importância dos mercados acessados.

3.6 A REDE DE PROSSUMIDORES RAÍZES DA MATA.

A Rede Agroecológica de Prosumidores/as Raízes da Mata (Viçosa-MG) é

uma organização coletiva de compras que busca aproximar produtores/as e

consumidores/as na construção de uma relação diferenciada de produção e consumo.

Essa inciativa surgiu em 2011, e seus princípios são a Agroecologia, Economia Popular

Solidária, gestão compartilhada, transparência e “prossumo”, ou seja, uma prática mais

consciente, responsável e ativa por parte dos consumidores e produtores no tocante à

comercialização de produtos socialmente e ambientalmente mais sustentáveis.

A Rede se estrutura a partir da articulação do Grupo de Agroecologia e

Agricultura Orgânica (GAO); Grupo Apêti de Agrofloresta; Grupo de Saúde Integral

em Permacultura (SAUIPE); Programa TEIA de Extensão Universitária; e a Incubadora

Tecnológica de Cooperativas Populares da UFV (ITCP-UFV). Esses grupos constituem-

se em iniciativas de extensão universitária que atuam sob uma perspectiva dialógica de

trabalho, envolvendo estudantes, professores, técnicos e empreendimentos populares.

Os grupos GAO e Apêti realizam trabalhos voltados para uma agricultura mais

sustentável, do ponto de vista prático e teórico, abordando os temas ambiental, social,

econômico e político, cobrindo uma lacuna deixada nos programas curriculares

acadêmicos da UFV. O SAUIPE desenvolve trabalhos embasados na prática de

permacultura em Viçosa promovendo ações relacionadas ao tratamento ecológico de

resíduos, metodologias para a transição agroecológica, bioconstruções, práticas em

51

economia solidária, reutilização de materiais, desenvolvimento de produtos naturais e

etc. A ITCP-UFV realiza trabalhos de assessoria a grupos populares, formais e

informais, desenvolvendo ações direcionadas ao fortalecimento e fomento de

empreendimentos econômicos organizados a partir dos princípios da Economia Popular

Solidária. Por fim, o programa Teia visa articular esses projetos de extensão da UFV,

que atuam de acordo com uma proposta de atividades de extensão pautada pela

dialogicidade e educação popular (ITCP/UFV, 2013).

Figura 3 Entrega de produtos agroecológicos na Rede Raízes da Mata

Fonte: Raphael Fontes

O diálogo entre as equipes envolvidas nesses projetos somados às demandas de

comercialização dos diversos grupos de agricultores beneficiários dos mesmos

desencadearam ações que visavam estabelecer um canal de venda casada entre esses

atores e uma demanda potencial, composta inicialmente por pessoas vinculadas à

universidade, e que tinham o interesse de ter acesso a produtos agroecológicos e

oriundos de processos produtivos mais democráticos e participativos.

De maneira geral, o funcionamento da rede teve inicio a partir da elaboração de

uma lista de produtos disponíveis, definida após os contatos com os produtores

participantes, e enviada todas as segundas-feiras, por meio eletrônico, a todos os

prosumidores cadastrados,. Os prosumidores têm prazo de dois dias para preencherem a

planilha com seus pedidos e enviar de volta à comissão organizadora que então repassa

os pedidos aos produtores. As entregas são realizadas toda sexta-feira e os

52

procedimentos operacionais para a mesma (o recebimento dos produtos, a organização e

separação destes e o controle das saídas) contam com o envolvimento de produtores,

estudantes colaboradores e prossumidores voluntários.

No entanto, é válido ressaltar que todas essas atividades demandam recursos

como tempo e dinheiro, que são obtidos, principalmente, junto projetos acadêmicos

financiados por entidades públicas como o Programa de Extensão Universitária

(PROEXT) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento de Pesquisa e Tecnologia

(CNPq) e pelo pagamento, realizados pelos produtores, de uma taxa de 10% sobre o

valor das entregas semanais.

Os agentes produtivos que participam da Rede Raízes da Mata, no que concerne

ao segmento alvo desta pesquisa, são agricultores familiares autônomos e residentes em

assentamentos da reforma agrária7. Sob a restrição básica de não haver agrotóxicos nos

processos produtivos, pode-se dizer ainda que existe uma certificação participativa em

torno das técnicas de produção e manejo que acontecem, principalmente por meio de

intercâmbios realizados entre todos os membros da rede, e cujas metodologias intentam

ser uma troca de experiências e saberes quanto à prática agroecológica. Essa

característica denota os direitos de propriedade observados nesse mercado, uma vez que

a Rede apresenta uma evidente intencionalidade de fomento da agricultura familiar, da

agroecologia e da economia solidária e, portanto, pode ser compreendida enquanto uma

forma de mercado protegido e solidário.

Quanto às normas gerais que orientam as relações econômicas desenvolvidas na

Rede, ou seja, as estruturas de governança de Fligstein (2003) são definidas em espaços

de participação de produtores, consumidores e colaboradores. Nesse sentido, a

organização dos agentes produtivos para a entrega dos produtos é definida também

nessas atividades, de forma que busca-se mitigar suas limitações e explorar suas

potencialidades. Em conversas com as pessoas que compõem a coordenação da Rede

fica evidente que as exigências de caráter sanitário e de logística são construídas de

7 Vale lembrar, no entanto que não existe nenhum assentamento rural no município de Viçosa-MG

alvo desta pesquisa.

53

forma conjunta entre os produtores e consumidores, sem deixar de considerar aspectos

de natureza técnica8.

Os mecanismos e as estratégias relativos ao controle da competição e dos preços

apresentam-se em construção, sendo pauta recorrente das atividades da Rede. Os preços

são definidos pelos próprios produtores que são orientados a estabelecerem um valor

justo, que remunere adequadamente o trabalho e os gastos envolvidos na produção,

apesar de não existir ainda critérios precisos de como isso deve ser feito. No entanto, foi

definido em espaços deliberativos da Rede que os produtos iguais (especificamente os

alimentos do segmento FLV) de produtores diferentes devem ter o mesmo preço, a fim

de impedir a competição por essa via.

As práticas e regras específicas ao funcionamento da compra casada praticada na

Rede Raízes da Mata contemplam assim, muito mais os princípios e objetivos fundantes

desta – Agroecologia, Economia Popular Solidária, gestão compartilhada, transparência

e prossumo – do que uma racionalidade competitiva amparada em critérios de eficiência

tecnológica. O leitor atento pode questionar se esta racionalidade é necessariamente

antagônica àqueles princípios. Em relação a essa discussão convém lembrar que:

“[...] a via de desenvolvimento agrícola com base na produção

familiar está bloqueada no Brasil e em muitos outros países da

América Latina devido à consolidação dos preços relativos que não

refletem dotações reais de fatores, mas resultam basicamente do

acesso desigual à terra e ao crédito subsidiado” (WILKINSON, 2008,

p.26).

Segundo este autor, na agricultura, “a competitividade foi deslocada, por meio

de mecanismos institucionais, do trabalho braçal para a mecanização” (WILKINSON,

2008, p.27), bem como a noção de eficiência é introduzida associada a um paradigma

tecnológico que excluí a unidade familiar, e suas vantagens competitivas (a ausência de

um controle, e supervisão externa sobre prestação de serviços, por exemplo) em

comparação ao trabalho assalariado. Esse fenômeno constitui um ciclo onde o

alinhamento das dinâmicas produtivas familiares de pequena escala aos padrões

tecnológicos, socialmente, e economicamente dominantes, torna-se a única opção à

sobrevivência daquelas sob o contexto da ordem comercial que impera nos mercados

8 Recentemente, a Rede recebeu assessoria de uma nutricionista que desenvolveu uma novas formas

de organização da dinâmicas das entregas.

54

globalizados. Essa “irreversibilidade de uma trajetória tecnológica específica não reflete

necessária e diretamente a uma superioridade competitiva, mas pode resultar de arranjos

institucionais predispostos a uma solução tecnológica particular” (IBDEM).

Essa perspectiva que compreende a tecnologia como algo não neutro, mas

socialmente e culturalmente construída, é discutida também nas abordagens de Dagnino

e Novaes (2003), que discorrem sobre o enquadramento do atual padrão científico nos

moldes condicionados por valores e controlado pelo homem. Assim, é possível

pensarmos uma análise de padrões de eficiência e competitividade apropriados à

realidade de uma unidade produtiva familiar, e agroecológica, e a partir daí definir

estratégias alternativas que consigam atingir êxito não só econômico, mas também

ambiental e social. E é justamente essa a proposta que pretende as mobilizações em

torno da Rede Raízes da Mata.

“A Rede foi o que incentivou a gente a produzir, antes ninguém

valorizava a gente, né? Agora todo mundo conhece nossos produtos e

dá valor no nosso trabalho... E assim, eu sempre sonhei em um dia

entrar naquela universidade, nem que fosse de faxineira, e aí hoje o

pessoal me liga pra eu levar meus produtos e todo mundo gosta e

valoriza mais os produtos da gente” (Cintia).

O relato transcrito acima ilustra essa circunstância sob a qual se verifica que

nesse mercado, os padrões tecnológicos exigidos permitem o acesso de agentes

produtivos excluídos do padrão competitivo hegemônico. E a percepção dos

agricultores em relação a essa inovação transcende os aspectos materiais, mas

desencadeia também transformações simbólicas que empoderam tanto a unidade

familiar de produção agrícola quanto o paradigma produtivo agroecológico.

Cabe lembrar que as normas de transação que estabelecem o funcionamento das

transações também apresentam significativas alterações em relação às práticas dos

mercados convencionais. Os preços, em muitos casos, apresentam-se ligeiramente

superiores na Rede do que em outros mercados, entretanto a viabilização de um sistema

de compra casada como o que ocorre na Rede demanda também custos operacionais,

ligados às estruturas e serviços que envolvem sua logística.

Contudo, a Rede apresenta ainda desafios quanto à expansão da demanda efetiva

e do número de produtores envolvidos. Um exemplo é o fato de os quatro entrevistados

que entregam para a Rede avaliarem-na como o mais importante entre os mercados

55

acessados, apresentando, entretanto, como principal fonte de escoamento de sua

produção outros mercados. Embora a importância da Rede para os agricultores não

esteja ligada apenas aos recursos financeiros obtidos através deste espaço, mas também

a fatores de ordem simbólica como a reputação baseada na confiança em relação à

origem agroecológica dos produtos, por exemplo, é necessário o desenvolvimento de

estratégias que permitam a ampliação da Rede, para que esta possa desempenhar um

papel mais significativo no contexto da comercialização da agricultura familiar

viçosense.

Temos assim um panorama dos principais mercados da agricultura familiar do

município, de maneira a tornar possível identificarmos quais são as principais

exigências para o acesso a cada um desses mercados como consta no quadro abaixo:

Quadro 1- Principais exigências dos mercados acessados pelos agricultores familiares

de Viçosa

Condições para o

Acesso Mercados

Padrão Produtivo Rede Raízes

da Mata PNAE

Processamento pós-

colheita (embalagem) PNAE PAA

Qualidade do produto TODOS

Quantidade mínima Mercados

Locais Atravessador

Planejamento da

produção PNAE PAA

Mercados

Locais

Associação/organização

coletiva PAA

Rede Raízes

da Mata

Gestão Financeira e

Contábil PAA

Divulgação dos

Produtos Feira Livre

Mercados

Locais Venda Direta

Preços baixo

Feira Livre

Mercado

Locais Atravessador

Contatos pessoais Feira Livre Mercados

Locais Atravessador Restaurantes

Regularidade Mercados

Locais Restaurantes PAA PNAE

56

Fonte: dados da pesquisa

Fica claro aqui que a comercialização da agricultura familiar envolve uma ampla

gama de elementos desde aspectos organizacionais, produtivos e gerenciais. No entanto,

o atendimento a esses requisitos demanda também a ação estratégica dos agricultores

tanto no sentido da diferenciação de produtos como da diferenciação dos mercados,

assim no capítulo seguinte será discutido quais estratégias e quais as habilidades que

esses atores desenvolvem para conseguirem lidar com essa diversidade conjuntural

típica aos mercados da agricultura familiar caracterizados aqui.

57

4. AS HABILIDADES SOCIOECONÔMICAS E AS ESTRATÉGIAS DE

COMERCIALIZAÇÃO DOS AGRICULTORES FAMILIARES

Além das entrevistas, foram realizadas também as observações não participantes

e participantes nos principais mercados FLV de Viçosa, como a Feira Livre, os

mercadinhos e supermercados, a Rede Raízes da Mata, e os espaços de construção do

projeto do PNAE. A execução dessas metodologias, somadas a uma relação de

envolvimento e participação deste pesquisador em boa parte desses mercados, permitiu

certo grau de imersão que se figurou fundamental para a obtenção de informações

relevantes para identificarmos como os agricultores desenvolvem seu papel de agentes

na construção social dos mercados.

Os sujeitos desta pesquisa correspondem aos agricultores cujas condições se

aproximam tanto dos critérios oficiais que caracterizam o segmento da agricultura

familiar, como das características relacionadas à categoria campesinato, muito discutida

por diversos autores da literatura sobre sociologia rural e desenvolvimento rural

(WOLF, 1970; WOORTMAM, 2000; WANDERLEY, 1996). Sem adentrarmos na

vasta discussão conceitual a cerca do tema, utilizaremos aqui a perspectiva de

Wanderley, (1996, p.03) que assinala:

A agricultura camponesa tradicional vem a ser uma das formas

sociais de agricultura familiar, uma vez que ela se funda sobre a

relação indicada entre propriedade, trabalho e família. No

entanto, ela tem particularidades que a especificam no interior

do conjunto maior da agricultura familiar e que dizem respeito

aos objetivos da atividade econômica, às experiências de

sociabilidade e à forma de sua inserção na sociedade global.

Nesse sentido, quando Ploeg (2008) nos fala sobre a situação dos camponeses

em meio às transformações dos mercados alimentares, em escala global, vivenciadas

nas ultimas décadas, compreende-se aqui que os atores sociais que este autor define

como camponeses apresentam notáveis semelhanças com os agricultores familiares aos

quais se referencia Schneider (2012) em suas considerações sobre as estratégias de

organização desses sujeitos.

Posto isto, nesta seção pretendemos identificar quais habilidades, de natureza

econômica, social, cultural, ou política são necessárias para os agricultores familiares de

Viçosa acessarem os mercados de FLV disponíveis no município.

58

A ideia de habilidade utilizada aqui corresponde às estratégias adotadas pelos

agricultores que possibilitem um desempenho satisfatório tanto econômico como social

(no sentido da manutenção dos circuitos de relações sociais) de sua ação juntos aos

mercados.

Em um estudo comparativo sobre as habilidades empreendedoras dos

agricultores do País de Gales e da região da Toscana na Itália, Morgan Et all (2010)

identificam três principais formas de habilidades, a saber, (Creating and evaluating a

business strategy; networking and utilising contacts; recognising and realising contacts)

de acordo com os autores essas habilidades:

[...] are shown to be mutually influential, with the networking and utilising

contacts skills and the opportunity recognition and realization skills assessed

in relation to the business pathways that farmers follow and, hence, in

relation to their skills in creating and developing strategy.(MORGAN et all ,

2010, p.120).

A abordagem dessa pesquisa buscava dar conta das habilidades desenvolvidas

pelos agricultores para construírem suas relações comerciais. Tal proposição evidencia

assim a importância das redes sociais e dos contatos para a ação econômica eficaz

desses sujeitos nos mercados em que atuam.

De maneira semelhante, Filgstein (2009) assinala a ideia de habilidade social

ligada às ações dos agentes no sentido de incitarem a cooperação de seus pares9. Este

autor, no entanto aprofunda-se nesse conceito explorando seu aspecto relativo à

interatividade dos atores, de maneira que os atores sociais hábeis induzem a cooperação

e ajudam os outros a obter seus fins, para tanto criam um “senso positivo de si mesmos

ao se envolverem em produzir significados para si e para os outros” (FLIGSTEIN,

2009, p.82).

Vale lembrar também que este autor encadeia o conceito de habilidade social à

noção de campos sob a argumentação de que é necessário relacionar as táticas utilizadas

pelos atores com a posição destes nos devidos campos de atuação. Ou seja, a

“habilidade social surge como uma “microestrutura para compreender o que os atores

fazem nos campos” (IBDEM, p. 86)

Em relação à agencia humana indicada por Long & Ploeg que, sob forte

influência do sociólogo Anthony Giddens, a define nos termos de uma “capacidade de

processar a experiência social e de delinear formas de enfrentar a vida, mesmo sob as

9 Este conceito foi exposto mais detalhadamente no capítulo 4.

59

mais extremas formas de coerção” (2011, p.25). O autor completa ainda que a ação

encontra-se dependente da capacidade do indivíduo de provocar alterações em uma

dada circunstância implicando na afirmação de que “todos os atores (agentes) exercem

um determinando tipo de poder, mesmo aqueles em posição de extrema subordinação”.

Esta definição corrobora com a perspectiva assinalada por Ploeg (2008) que

compreende que o fato de os camponeses continuarem a existir em pleno século XXI,

mesmo diante de uma tendência avassaladora de padronização das dinâmicas produtivas

alinhadas ao modelo capitalista, está diretamente associado à capacidade de agência que

esses atores possuem.

O conceito relacionado à capacidade de ação de um indivíduo será também

abordado neste capítulo. Discutido principalmente pelo economista Amartya Sen

(2010), este autor apresenta a ideia de capacidade diretamente ligada ao conceito de

funcionamentos de forma que:

O conceito de “funcionamentos” [...] reflete as várias coisas que uma

pessoa pode considerar valioso fazer ou ter. [...]A “capacidade” [capability]

de uma pessoa consiste nas combinações alternativas de funcionamentos cuja

realização é factível para ela. Portanto, a capacidade é um tipo de liberdade: a

liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de funcionamentos

(ou, menos formalmente expresso, a liberdade para ter estilos de vida

diversos).(SEN,2010, p.95)

Nesse sentido, as estratégias desenvolvidas pelos agricultores para escoarem sua

produção podem também serem analisadas à luz desses conceitos. Como verificado

durante a pesquisa de campo esses atores buscam alternativas tanto de diversificação de

mercados, como de diferenciação de produtos, no entanto sempre condicionadas pelas

possibilidades reais de intervenção nas estruturas mercantis nas quais interagem. Esse

olhar dialoga então com a proposta da “abordagem da capacidade”, a qual, de acordo

com esse mesmo autor “pode ser sobre os funcionamentos realizados (o que uma pessoa

realmente faz) ou sobre o conjunto capacitário de alternativas que ela tem (suas

oportunidades reais) (SEN, 2010, p.96).

Sob o intuito de captar a heterogeneidade de estratégias empenhadas pelos

agricultores, serão analisadas aqui, no âmbito das relações para o acesso aos mercados,

tanto a habilidade de influenciar a ação dos seus pares no sentido da cooperação

(habilidade social), como o exercício de uma forma de poder na condução de

circunstâncias específicas (agência), e também a capacidade de um ator social criar

alternativas de organização e funcionamento dentro das estruturas possíveis. Ao

observar as habilidades desenvolvidas pelos agricultores entrevistados nesta pesquisa,

60

entende-se que as três categorias mencionadas contemplam a pluralidade dessas ações

tanto pelo aspecto da construção de relações de interação cooperativas como da

interferência no curso de determinados acontecimentos e também da liberdade de

realização de combinações distintas diante do campo de possibilidades existente.

Pretende-se aqui utilizar essas três categorias diferentes para analisar o conjunto

das habilidades identificadas nos agricultores familiares, de maneira a garantir a

apreensão da heterogeneidade que caracteriza essas ações. Faz-se necessário salientar,

contudo, que o olhar para a atuação desses agricultores, proposto neste capítulo, não

desconsidera o fato desta ação encontrar-se também, até certo grau, condicionada pelas

instituições (direitos de propriedade, estruturas de governança, concepções de controle,

e as normas de transação) que se fazem presentes nos canais de comercialização do

município estudado.

Para facilitar a descrição das habilidades identificadas durante a pesquisa de

campo, foram criadas quatro categorias de analise.

1) Produção: A primeira categoria relaciona-se aos aspectos

produtivos típicos da realidade econômica e social (dotação de fatores de

produção e recursos disponíveis, tecnologia e mão-de-obra utilizada) dos

agricultores familiares, de maneira a compreendermos como estes utilizam

as diferenciações de produto e de padrão produtivo como um mecanismo de

acesso e ampliação de mercados.

2) Clientização: A segunda remete às ações que visam a construção

e consolidação de relações de fidelização entre produtores e clientes, sob o

intuito de estimular a repetição das transações, denominada aqui, inspirando-

se em Geertz, de clientização.

3) Cooperação e associação: A terceira explica como os agricultores

se relacionam e se articulam com seus pares, por meio de associações

formais, ou construção de redes sociais, para também inserirem-se em novos

espaços de comercialização, tendo fundamento numa racionalidade mais

cooperativa do que competitiva.

4) Gestão empreendedora. A última categoria de habilidades

verificadas nesta pesquisa está relacionada às ações de gestão da produção e

adequação desta a uma inserção mais rentável nos mercados, que aqui será

denominada como habilidade empreendedora.

61

Antes de entrarmos nas análises dessas categorias, é importante apresentar

também os principais motivos que influenciam as vendas dos agricultores familiares

pesquisados.

Gráfico 4- Motivos que influenciam os agricultores familiares de Viçosa na definição dos

preços

Fonte: dados da pesquisa

Esse gráfico demonstra assim, como a regularidade da compra e o preço

consistem nos principais fatores que interferem as escolhas dos mercados, e

consequentemente influenciam significativamente o desenvolvimento das habilidades

para o alcance de seus objetivos. Nesse sentido as seções seguintes discutirão também

como se dá a busca da satisfação desses critérios.

4.1 PRODUTIVA

A dinâmica produtiva da agricultura familiar pode ser caracterizada, entre outros

aspectos, por uma centralidade do trabalho familiar aliada a pouca, ou nenhuma

utilização de insumos externos à propriedade. Entretanto a modernização agrícola

vivenciada no Brasil, também conhecida como Revolução Verde, desencadeou

processos de inserção da produção agrícola, de forma geral, no modelo produtivista

intensivo em capital, tecnologia e de integração à indústria de insumos químicos,

engendrando uma apropriação em graus diferenciados por parte dos agricultores, fato

que resultou em uma diversidade de combinações e padrões produtivos.

62

A partir dos anos 90, no entanto, surgem novas perspectivas para os “pequenos

agricultores” com a intensificação do debate em torno da reforma agrária, e novas

possibilidades de crédito e incentivo à produção que, nesse momento, passa a ser,

oficialmente10

chamada de agricultura familiar.

Wilkinson verifica, nesse sentido, a existência de três principais enfoques quanto

à produção da agricultura familiar:

A primeira surge a partir do esforço de contextualizar a reforma

agrária dentro de uma visão mais ampla da posição atual (no mundo) e

potencial (no Brasil) da produção familiar. A segunda focaliza

justamente o oposto – a marginalização da renda agrícola na economia

rural e na própria agricultura familiar e a importância da pluriatividade

e de atividades não agrícolas no meio rural. A terceira corrente

focaliza a ruptura no modelo de integração agroindustrial com a

produção familiar, o que exige formas mais autônomas de inserção

agrícola e agroindustrial (WILKINSON, 2008, p.71).

Ainda segundo este autor, todas essas abordagens convergem em dois pontos: a

necessidade de adoção de políticas públicas para o desenvolvimento rural direcionadas a

esses atores e a intensificação dos mercados no meio rural. Entretanto, as divergências

são em relação ao custo, e a eficácia do modelo produtivista dominante e quanto à

capacidade da produção familiar de integrar-se e abastecer satisfatoriamente os novos

mercados disponíveis.

Essa breve apresentação das discussões subjacentes ao modo de produção da

agricultura familiar, longe de captar a profundidade e complexidade do tema, nos serve

para dar luz ao cenário que circunscreve o desenvolvimento das habilidades produtivas

identificadas junto aos agricultores familiares de Viçosa.

Figura 4 – Propriedade de Agricultores Familiares

Adriano Santos

10

Devido ao surgimentos de programas governamentais que definem critérios concretos para esta

classificação.

63

Essa categoria intenta dar conta das práticas que focam nos aspectos produtivos

(“agronômicos”) no seu acesso aos mercados. Seriam estratégias de valorização de

padrões produtivos, geralmente no caso estudado, diferentes do modelo da agricultura

convencional, sob objetivos comerciais. Poderiam ser também, estratégias baseadas no

aumento de produção em quantidade, ou de produção de produtos com determinadas

especificidades, por exemplo.

Quando questionados sobre as principais razões pelas quais acreditavam que os

consumidores preferiam seus produtos, uma parcela significativa das respostas (27%)

relaciona-se com a prática de um manejo livre de agrotóxicos. Como demonstra o

gráfico abaixo

Gráfico 5 –Razões que interferem na preferência dos consumidores em relação a produção da

agricultura familiar.

Fonte: dados da pesquisa.

A “boa qualidade” aparece como a mais apontada pelos agricultores, embora não

tenham sido definidos os critérios específicos relativos a um padrão de qualidade. Em

seguida o não uso de “venenos”, e logo depois as principais respostas classificadas

como outros remete a respostas mais peculiares como “porque eu tenho um diálogo

muito franco com as merendeiras” (Paulo), ou “Por sermos pequenos agricultores”

(Nazareth), e até “porque o meu comprador precisa de mais mercadorias” (João Cesar).

64

Um dos agricultores, que comercializa apenas na Feira Livre e na Rede Raízes

da Mata, alega que a grande vantagem de seus produtos é por eles serem livres de

agrotóxicos, sendo que, em relação as suas prioridades na hora de produzir, ele assinala

que: ”Primeiramente por causa de ser sem agrotóxico tem que plantá aquilo que produz

melhor né? Porque não adianta você querer... tem coisa que você planta, mas você não

produz, então não adianta”.

A perspectiva do consumo consciente em consonância com as características dos

ciclos ecológicos de cada região está também implícita na perspectiva produtiva de Seu

Jair, que ainda explora esse diferencial para conquistar a confiança dos consumidores

que valorizam produtos ambientalmente mais sustentáveis, segundo ele, estudantes na

maioria.

Para tanto seu Jair exibe uma placa em sua barraca na feira contendo os escritos

“produtos sem agrotóxicos”, assim este agricultor parece ter identificado um nicho de

mercado e desenvolve então ações a fim de promover as vantagens de seus produtos a

fim de ampliar suas vendas. Seu Jair demonstra também clareza quanto ao custo

financeiro de sua participação na feira e desenvolve um raciocínio que, invariavelmente

remete à racionalidade do ganho individual, necessária para a obtenção do retorno

econômico intrínseco à atividade comercial. Como evidencia na seguinte passagem:

As vezes eu coloco tomate, e tomate tem veneno, não adiante dizer

que não tem, porque na nossa região isso não existe, mas eu não

engano ninguém, a pessoa passa a mão na sacola pra pega o tomate, e

eu falo que esse tomate tem veneno, tem menos agrotóxico né porque

eu só procuro aquele tomatinho pequenininho de final de horta que ai

o pessoal para de jogar. Aquele tomatão bonito eu nem ponho na

minha barraca, só ponho os que tem menos veneno. Eu to querendo

tira uma rendazinha a mais, se eu não tiver enganando o povo eu não

to errado não, porque a gente ta no comércio né,[...]e o dia que eu não

tiver mercadoria pra levar, minha mercadoria for pouca e não der pra

cobrir a gasolina do meu carro? Eu vou ter que ir atrás de outras

coisas. (Seu Jair)

Surgem nesse relato, ao menos dois aspectos relevantes para nossa analise: o

primeiro diz respeito ao nicho de mercado que o Seu Jair tem como carro chefe de suas

vendas, a saber, o mercado dos produtos “sem venenos” que curiosamente, no caso do

tomate, expressa menor valor simbólico ao tomate com a aparência mais “bonita”

provavelmente pelo seu tamanho exuberante em decorrência do uso de agrotóxicos,

enquanto o tomate pequeno, geralmente de preço menor encontra uma “brecha” para

ocupar sua barraca. O segundo relaciona-se à percepção de Seu Jair de que restringir-se

65

aos produtos desse nicho pode não ser suficiente para gerar os ganhos econômicos

desejáveis para a manutenção de sua atividade comercial.

Pode-se dizer que esse agricultor busca uma combinação alternativa para lidar

com os desafios da inserção de sua produção nos mercados. Essa situação denota um

determinado grau de liberdade deste ator para segmentar suas estratégias de vendas, ou

seja, sua capacidade de promover seus objetivos (SEN, 2010).

Outra família de agricultores que comercializa FLV, e que também explora o

diferencial de não utilizar agrotóxicos em sua produção, também demonstrou outras

habilidades produtivas relevantes para a nossa análise. Em primeiro lugar Seu Getulio e

Dona Telma declaram abertamente que sua produção é agroecológia, ou seja,

preocupam-se tanto em diversificar a produção como em minimizar a utilização de

qualquer tipo de insumo externo à propriedade.

Curioso notar que Seu Getulio lembra que “há 40, 50 anos atrás, a gente quase

não via esse negócio de insumo agrícola, e agente só chamava as coisa de natural,

comum, depois é que veio o orgânico e o agroecológico...”. Assim a produção de base

agroecológica está relacionada também à origem deste agricultor, fato que imprime um

valor simbólico, e expressa a existência de um capital cultural, que fortalece sua auto-

estima e o incita a buscar alternativas ao desafio de produzir com baixa utilização de

insumos externos, promovendo assim o surgimento de novas técnicas. Como assinala

Seu Getulio, ao ser questionado sobre a maneira que ele procede para colher couve

(deixando uma parte do talo):

[...] É porque a abelha cachorro chega pra suga a seiva da couve, invés

dela ir direto no caule, ela fica aqui onde que eu quebrei a couve... é

porque ela roe o pé de couve assim a parte que ela gosta da planta ela

vai roendo, então eu tava colhendo e prestei um pouco de atenção que

aquela que ela tava roendo a couve vai ficando mais fraca, a reposição

de folha dela fica ruim, ai eu falei eu vou usar uma estratégia aqui pra

mim engana esse bicho, ai comecei a fazer assim, ela com é mais

tranqüila vai roendo ali mesmo onde já ta quebrado, ai eu vi que deu

certo, quer dizer, isso é uma coisa de prestar atenção na natureza né!

O casal relata ainda que a família começou a explorar essa diferenciação

produtiva, principalmente após uma das filhas decidir estudar no curso de agroecologia,

no Instituto Federal localizado em um município próximo a Viçosa, e lá percebeu que

muitos conteúdos que estava estudando remetiam às práticas de manejo que seu pai

utilizava em casa. Passou então a incentivar a família a ampliar a produção e buscar

mercados. Nesse sentido, contam que o surgimento da Rede Raízes da Mata foi de

66

grande estímulo, pois nela a produção dessa família é valorizada como em nenhum

outro mercado acessado.

Cabe destacar ainda que no tocante a essas habilidades relacionadas com a

utilização de padrões e técnicas produtivas diferentes da produção convencional, o

nicho de mercado que exige essa diferenciação encontra-se em uma trajetória de

crescimento no município de Viçosa, haja vista o recente surgimento da Rede Raízes da

Mata e o também recente acesso ao PNAE, que também apresenta como critério de

participação a não utilização de agrotóxicos (embora os mecanismos de controle e

fiscalização dessas práticas ainda estão sendo implementados.

Assim como no caso das outras categorias evidenciadas nesse capítulo, uma boa

propaganda desse tipo de habilidade produtiva torna-se um fator diferencial para o êxito

econômico nesse nicho de mercado, uma vez que, como os dois agricultores citados

acima descrevem, as pessoas compram seus produtos principalmente “porque nós

falamos muito que é natural” (Seu Getulio), ou porque “eu sempre falo pra todo mundo

que não tem veneno” (Seu Jair).

No entanto é valido destacar aqui também que a estratégia de combinar padrões

produtivos diferentes foi apontada pela maioria dos agricultores entrevistados. Essa

combinação dialoga com a perspectiva analítica de Sen (2010), pelo fato de que

expressa a restrição do campo de possibilidades quanto ao uso dos padrões orgânico ou

agroecológico, uma vez que, como verificado nessa pesquisa, a adubação química ainda

faz parte das necessidades produtivas desses agricultores, como nos mostra o gráfico a

seguir:

67

Gráfico 6 – Padrão produtivo utilizado pelos agricultores familiares de Viçosa.

Fonte: dados da pesquisa.

A duas famílias de entrevistadas expostas anteriormente (a de Seu Jair e a de Seu

Getulio) foram também as únicas a relatarem outra habilidade produtiva: o

processamento artesanal de seus produtos. D Telma, esposa de Seu Getulio declarou

que “inventou” um preparo com vários tipos de suas verduras e temperos que ela

nomeou como “Salada Selvagem”.

Seu Jair, por sua vez, produz tomates secos na sua própria casa. Ele também nos

descreve o processo e diz que tem uma boa resposta de mercado. Entretanto, em relação

a esse gênero de produto, existem barreiras, de caráter sanitário, que impedem a

comercialização em mercados mais formalizados, como é o caso dos programas

governamentais e dos supermercados locais.

Esse tipo de habilidade encontra desafios semelhantes para os agricultores

familiares de forma geral. Wilkinson (2008) conta-nos como os processos de

transnacionalização dos padrões produtivos, e o alinhamento às exigências da OMC,

têm interferido no funcionamento dos mercados, não apenas internacionais, como

também locais.

Na Feira Livre, foi observada também uma notória habilidade relacionada tanto

a uma diferenciação do produto quanto à realização de uma boa propaganda. Apenas um

dos agricultores feirantes comercializa o palmito da pupunha in natura, produto esse que

também sofre barreiras sanitárias para a inserção em mercados com maiores exigências.

No entanto, o que chama a atenção é a maneira pela qual este expõe seu produto, a

68

saber, leva o palmito ainda com casaca cortado em grandes pedaços e na própria barraca

o descasca, fatia e oferece como degustação aos consumidores que passam por ele. Pelo

fato de o palmito da pupunha ser mais comumente encontrado em conservas, e nos

supermercados, este agricultor relata que existe um grau de desconfiança por parte dos

consumidores em relação à qualidade do produto, a introdução desta estratégia foi um

divisor de águas em sua comercialização gerando um incremento significativo nas

vendas.

Nesse sentido, podemos concluir que existe uma intima relação entre as

habilidades produtivas e o acesso aos novos mercados e a novos consumidores dos

produtos da agricultura familiar viçosense. Contudo, em muitos casos, a adoção de

padrões produtivos, orgânicos ou agroecológicos, o fato de se processar os produtos ou

produzi-los de forma específica não se apresenta suficiente para garantir o acesso eficaz

a alguns desses novos mercados, portanto abordaremos ainda outras formas de

habilidades que buscam preencher essa lacuna.

4.2 CLIENTIZAÇÃO

Um primeiro agrupamento realizado foi referente às capacidades dos

agricultores de construírem relações solidas com os fregueses, a fim de permitir a

criação de vínculos que façam com que as trocas se repitam. As diversas atuações para o

estabelecimento desses laços se aproximam daquilo que Clifford Geertz denominou de

clientização, conceito este desenvolvido em sua análise sobre o mercado marroquino de

Sefrou, onde esclarece que:

Clientization is a tendecy, marked in Sefrou, for repetitive

purchases of particular goods and services to establish continuing

relationships with particular purveyors of them rather than search

widely through the market at each occasion of need. (GEERTZ, 2001,

p.142)

Entre os agricultores entrevistados, no que tange aos principais motivos da

preferência dos consumidores por seus produtos, 12% das respostas apontaram o fato de

já existir o conhecimento dos clientes, ou seja, as relações de proximidade e confiança

desenvolvidas com estes. Cabe lembrar, no entanto, que as práticas que intentam

fidelizar os clientes demandam estratégias que variam de acordo com as condições

presentes em cada um dos mercados, como a relação com concorrentes, os direitos de

propriedade, as regras que condicionam as transações, bem como quem são esses

clientes.

69

Em relação às estratégias utilizadas para relacionar-se com os frequentadores, na

Feira Livre, muitos agricultores disseram que “os clientes têm confiança e amizade

também né, e eu costumo tratar meus fregueses muito bem, ai eles acabam preferindo a

gente” (Maria Antonia). Outro diferencial para a construção de uma clientela na Feira

está relacionado ao tempo de participação nesse mercado, de maneira que, como relata o

agricultor José Carlos Fialho: “os clientes já estão acostumados comigo, já tem 35 anos

que eu venho aqui, ai todo mundo me conhece, sabe da qualidade da minha água...”.

Essa fala, assim como outras semelhantes que surgiram durante a pesquisa de campo

denotam como os agricultores utilizam seu histórico de assiduidade neste mercado

como um fator que possibilita a construção de reputação e o estabelecimento de relações

próximas que provocam a repetição das transações com uma gama de consumidores.

A prática da venda direta também parece estar fortemente correlacionada à

habilidade de estabelecer vínculos pessoais com os clientes. Um dos agricultores que

declarou que este era um dos mais importantes canais de escoamento de sua produção,

relatou que começou a venda direta entregando de porta em porta, mas que “não é que

não vendia, mas vendia pouco, sabe? ai o pessoal ficou me conhecendo e eu comecei a

receber encomenda; ai ficou melhor, porque eu saio de casa só com aquilo certo que vou

entregar.” (Seu Pedro). Este agricultor lembra também que muitas pessoas buscam as

mercadorias diretamente em sua casa, e deixa claro que pra ele não tem hora para

vender: “eu procuro atender a todo mundo né, quando chega alguém aqui querendo

alguma coisa, eu vou lá na hora, se tiver que colhe eu colho, faço o possível pra atender

tudo.” (IBDEM).

Nesse sentido, os agricultores que praticam a venda direta, seja ela entregando a

domicilio, ou vendendo na propriedade, demonstram uma constante preocupação em

clientizar seus fregueses, atendendo-os da melhor maneira possível, sob o intuito de

repetir a transação num futuro próximo.

Outra estratégia adotada pelos agricultores, para consolidar sua participação no

PNAE, consiste no estabelecimento de uma comunicação direta com as cozinheiras das

escolas, ou as merendeiras, como chama atenção o agricultor Paulo Zaneti: “eu procuro

entregar só produto de boa qualidade, bem separado, e lavado que é pra facilitar o

trabalho das merendeiras, e ai eu ouço falar bem das minhas mercadorias, né.”. Num

primeiro momento pode-se deduzir que sendo a Prefeitura Municipal, a entidade que

compra os produtos por meio de um contrato semestral de entrega, as habilidades

70

relacionadas ao conceito aqui exposto de clientização não são verificadas, uma vez que

o consumidor que paga não é aquele que recebe. Entretanto, o retorno das avaliações

das merendeiras, realizados nas reuniões de elaboração das propostas semestrais,

despertou em alguns agricultores uma preocupação em “clientizar” as merendeiras

(embora apenas dois dos entrevistados tenham declarado isso), a fim promover a

repetição e continuidade de acesso a essa via de escoamento da produção.

Cabe destacar nesse sentido a perspectiva do agricultor José Ramos, que relata

que: “A gente procura ter um diálogo franco com as merendeiras, faço questão de

observar como elas manuseiam os produtos, pra poder preparar as mercadorias

pensando nisso”.

A habilidade de divulgar seus produtos com o objetivo de ressaltar suas

vantagens, ou seja, o “marketing” apresenta-se transversal a todas as demais

identificadas nesta pesquisa. Dessa forma, quando questionados sobre o que

priorizavam no momento da produção, diante das exigências dos mercados acessados,

uma parcela significativa das respostas correspondeu à prática de uma melhor

apresentação dos produtos como mostra o gráfico abaixo:

Gráfico 7–Prioridades na produção da agricultura familiar de Viçosa

Fonte: dados da pesquisa.

Esse gráfico demonstra também que o cumprimento dos acordos e contratos foi

a prioridade mais apontada pelos sujeitos dessa pesquisa. Diante dessa informação

podem ser realizadas algumas considerações relevantes sob o objetivo desta análise. Um

primeiro ponto importante consiste no fato de que cumprir os acordos implica em um

requisito para a construção de relações de confiança que possibilitam a continuidade e

ampliação das trocas mercantis, no sentido de clientizar os compradores. É possível

71

também inferir que essa prática traduz a formação de um capital social, de acordo com

termos colocados por Bourdieu (2001, p.103), que o define como “the agregate of the

actual or potential resources that are linked to possession of a durable network of more

or less institutionalized relationships of mutual acquaintance and recognition[...]”. Ou

seja, cumprir os contratos também está relacionado à ideia de manter uma boa reputação

que seja reconhecida em uma dada estrutura de mercado e que possa também ser

convertida em capital econômico, no caso, pela manutenção ou incremento das vendas.

Vale lembrar ainda que as motivações racionais que remetem à maximização de

ganhos orientam também a ação relativa ao cumprimento dos acordos e contratos. Esta

ação consiste em uma peça fundamental para o funcionamento ideal do livre mercado

postulado pela teoria neoclássica.

Assim, nesta pesquisa verificou-se que tanto a busca pela fidelização dos

clientes, como a criação de uma boa reputação, envolvem a criação de laços ou vínculos

entre produtores e consumidores. Esses laços podem ser mais sólidos, como aqueles em

que as transações são mais frequentes, ou podem também ser mais tênues, como os que

se dão entre aqueles cujas relações são mais esporádicas.

Ao propor uma concepção de redes sociais edificadas sobre os vínculos fracos

estabelecidos entre os indivíduos, Granovetter 1973 expõe que a força de um laço:

[...] es una (probablemente lineal) combinación del tiempo, la intensidad

emocional, intimidad (confianza mutua) y los servicios recíprocos que

caracterizan a dicho vínculo. Cada uno de estos aspectos es independiente del

otro, aunque el conjunto esté altamente

intracorrelacionado.(GRANOVETTER, 1973, p.02)

O autor cria ainda um esquema analítico de estudos sobre as redes estabelecidas

a partir dos vínculos entre os sujeitos, o qual permite ilustrar seu argumento de que são

justamente os laços fracos aqueles que possibilitam a ampliação e fortalecimento dessas

redes sociais.

Nessa mesma linha de pensamento, ao tratar especificamente da relação entre as

redes sociais e os mercados, Wilkinson (2008, p.93) reforça que os atores se deslocam

entre várias redes, e que assim a força dos vínculos fracos “reside na não redundância

dos contratos sociais de uma pessoa que transita várias redes quando comparada com

uma pessoa que circula apenas dentro da mesma rede social”.

Ao tomarmos os mercados de FLV viçosenses como espaços interligados a redes

sociais constituídas pelos diversos atores que nele interagem, ficou evidente, nesta

pesquisa, a pratica de diferenciação de mercados, que implica por sua vez em uma

72

mobilidade intensa dos agentes fluxo de agentes entre as redes sociais relativas a cada

um dos mercados acessados. Aproximadamente 47% dos agricultores entrevistados

declararam participarem de pelos menos três dos mercados descritos, enquanto 65%

relataram que realizam transações em pelo menos quatro segmentos de mercado.

Por mais que a clientização, nos termos colocados por Geertz, tenha sido mais

observada no tocante às vendas na Feira Livre e na venda direta, a forte inter-relação

entre as redes sociais dos mercados de Viçosa, faz com que as estratégias de

consolidação de laços sociais junto aos clientes sejam também replicadas para os demais

mercados.

Assim é possível perceber que os agricultores buscam a construção de relações

duradouras tanto sob o intuito de permanência e êxito em dado mercado, como o de

expandir a inserção dos seus produtos a novos mercados, de surgimento mais recente,

como é o caso da Rede Raízes da Mata, o PAA e o PNAE.

4.3 COOPERAÇÃO E ASSOCIAÇÃO.

O surgimento dos programas PAA e PNAE representa, sem dúvidas, um grande

impulso na auto-organização dos agricultores familiares, não apenas em Viçosa, como

em todo o país. No entanto, a trajetória de mobilizações dos pequenos agricultores, seja

em sindicatos, cooperativas e até em movimentos sociais, acontece desde longa data.

De acordo com CHRISTOFFOLI (2000), há poucos registros históricos sobre as

experiências de cooperativismo no Brasil, no entanto, nas comunidades indígenas, bem

como nos quilombos há indícios da prática de formas de organização econômica

baseadas em princípios coletivistas tanto para a divisão do trabalho como para a divisão

dos resultados obtidos. Este autor assinala ainda que durante os séculos XVIII e XIX

surgiram algumas iniciativas de colônias coletivistas no Paraná, influenciadas pelas

experiências dos socialistas utópicos europeus.

No caso dos mercados FLV de Viçosa, o único que apresenta uma exigência

bem definida em suas regras de transação que condiciona a participação dos agricultores

ao fato destes se encontrarem organizados em grupos formais como associações ou

cooperativas é o PAA. No entanto o histórico de acesso ao PNAE no município indica

que o envolvimento nos espaços de elaboração e execução das chamadas públicas deste

programa apresenta forte relação com o envolvimento dos agricultores nas redes sociais

ligadas às lideranças do STR e à EMATER municipal.

73

Destarte a regulamentação atual que dispõe sobre as iniciativas associativas,

tanto sob o formato jurídico de cooperativas, como de associações, funciona, ao menos

em tese, apenas como o marco legal que ampara os processos sociais que fundamentam

a existência dessas organizações. Essa colocação faz-se necessária, pois em muitos

casos, a obtenção do CNPJ decorrente da formalização antecede à existência da

organização per se, enquanto um fenômeno de organização social.

O condicionante do acesso a programas como o PAA, já exposto em seção

anterior, pode desencadear um direcionamento exclusivo das organizações para a

elaboração e execução da proposta submetida ao programa, como verificado nesta

pesquisa. Assim temos esse “processo inverso” sob o qual o programa governamental

passa a ser a finalidade maior, ou a única, da associação de maneira que o

funcionamento desta sustenta-se apenas pela participação naquele, cujos desafios

subjacentes à gestão de uma organização e ao custo em que se incorre seu

funcionamento figuram-se significativamente obscuros, ao menos num momento inicial,

como veremos aqui.

No entanto, são inegáveis os benefícios de mercados protegidos como este

programa e, mesmo que não seja no sentido ideal, o envolvimento com associações ou

cooperativas origina também processos de mobilização dos agricultores, que fortalecem

o segmento, e que têm de fato sidos responsáveis por um significativo incremento na

renda financeira desses trabalhadores.

Em Viçosa, existem apenas duas organizações que entregam seus produtos ao

PAA, por meio da modalidade de Compra Direta-Doação Simultânea. Estas

organizações estão formalizadas como associações. A compreensão dos fatores que as

influenciaram a acessar o programa evidenciam um pouco as nuances e desafios que

constituem a articulação associativa dos agricultores familiares.

Uma primeira observação relevante é o fato de uma associação, de acordo com o

Código Civil de 2002, não dispor de respaldo jurídico para atividades com fins

econômicos. Ou seja, em tese uma associação não esta amparada legalmente para

realizar ações de comercialização, apresentando limitação concreta no tocante à emissão

de nota fiscal. No entanto, nenhuma das associações identificadas teve ainda problemas

de ordem legal com nenhum órgão fiscalizador (SILVA, 2010).

A fim de preservar as identidades das associações serão utilizados nomes

fictícios (assim como se faz no caso dos produtores) para remetermos às mesmas, a

74

saber, a Associação Comunitária de Vista Alegre ACVA, e a Associação Córrego Santo

Antonio ACSA.

De acordo com entrevista à Dona Fátima, agricultora da comunidade da ACVA,

foi o seu filho, Alessandro, quem realizou as articulações necessárias para a submissão

do primeiro projeto de entregas ao programa. Ela ainda nos relata:

[...] a associação tava parada, mas tinha CNPJ, tudo certinho, o

Alessandro fazia parte la no diretório do PT, ai veio uma menina de

Barbacena pra trabalhar também no PT, chegou e a associação não

tava bem organizada, ai ela encontrou o Alessandro, que falou pra ela:

la na minha comunidade tem uma associação que ta parada também.

Ai eles chego encontrou com nós na capela e explicou a situação tudo,

ai eles legalizaram, pagaram tudo que tinha que pagar sabe, fizeram

aquele ajunte, fizeram uma festinha com feijoada e ai foi isso e

montaram o projeto, mandou, não demorou muito e foi aprovado, ai

fizeram reunião com a EMATER, com as entidades todas, reuniu os

agricultor, fizeram várias reuniões e não faltava ninguém, agora por

questão mesmo assim desses acontecimentos [grande atraso no

pagamento referente às entregas do ultimo projeto executado]... Se

não ia ta até hoje [..].

Este relato, embora se apresente um pouco confuso, ilustra o processo pelo qual

a ACVA deu inicio a sua participação no PAA. Fica claro que apesar de já existir

anteriormente, é a possibilidade de acesso ao programa que determina a retomadas das

atividades desta organização.

Nesse sentido, o protagonismo de uma liderança local foi fundamental para a

mobilização dos agricultores da comunidade, fato que demonstra a habilidade social

deste ator, uma vez, que foi ele o principal agente a incitar as práticas de organização e

cooperação necessárias para a participação no programa.

No entanto, Dona Fátima já indica que atualmente a associação não conta com

um grande envolvimento dos agricultores. Ao ser questionada sobre o motivo dessa

dispersão, a informante declara que deve-se ao fato de o pagamento referente as

entregas do ultimo programa acessado está há quase um ano atrasado, e que isso tem

causado um desinteresse dos agricultores em participar da associação. Eles não parecem

perceber hoje outros motivos para se associar para além do programa, mas este exige o

agrupamento dos produtores (a cooperação e a associação) como pré-requisitos para

acessar a esse mercado.

Em conversas com os técnicos da EMATER que acompanham e assessoram a

ACVA, é relatado que são eles quem realizam tanto as convocatórias de assembleias

como as atas das reuniões. Em uma dessas assembleias foi decidido que a prestação de

75

contas relativa às entregas ao PAA seria terceirizada para um contador, que seria

remunerado por uma taxa de 10% sobre o valor total das entregas realizadas. Entretanto,

ainda de acordo com os relatos dos técnicos da EMATER, problemas de ordem pessoal

desse profissional, somados ao não cumprimento minucioso das entregas com os itens e

períodos exatamente como previstos no projeto inicial (necessitando assim de pedidos

de retificação formais) foram os motivos que causaram o atraso do pagamento.

Esse cenário evidencia que o acesso ao PAA demanda muito mais do que apenas

atores socialmente hábeis capazes de promover e intermediar a cooperação num

determinado campo social. Antes, a participação no programa requer a gestão

qualificada de uma organização que demanda também um planejamento, participação e

envolvimento constantes que reflitam na sustentabilidade não só econômica como social

desta, sustentabilidade essa que não pode ser alcançada com uma única estratégia de

participação em um programa governamental. Tal inferência parte das informações

cedidas tanto pelos agricultores como pelos representantes das entidades de apoio e

fomento que deixaram claro que o insucesso do recebimento do pagamento das entregas

está diretamente ligado às dificuldades encontradas nos processos de construção da

autonomia do grupo que compõe a ACVA.

Quanto ao PNAE, é importante ressaltarmos que seu surgimento no município

de Viçosa encontra-se fortemente relacionado às redes sociais construídas pelos

agricultores próximos às lideranças do STR municipal. Embora a regulamentação legal

que dispõe acerca do funcionamento do PNAE não exija que os agricultores estejam

formalizados juridicamente em associações ou cooperativas, as mobilizações e

articulações dos agricultores interferem significativamente no envolvimento destes nas

etapas iniciais de operacionalização deste programa. Nota-se que aqui as instituições

presentes nesse mercado contribuem para a construção de entendimentos sociais que

desestimulam os agentes a competirem por preço ou por quantidade.

Assim, é possível identificar um campo social correspondente às relações tecidas

no tocante o acesso ao PNAE, no qual os atores sociais hábeis que nele atuam buscam

promover a cooperação mútua, através da posição social que ocupam.

Como indicado no capítulo anterior, foi o presidente do sindicato, um dos

principais responsáveis pelo inicio da execução da “lei dos 30%” em Viçosa. Esse

agricultor relata que o envolvimento nas atividades sindicais permitiu-lhe o contato com

outras organizações da agricultura familiar no estado, conhecendo assim experiências

76

exitosas de acesso ao PNAE. Ou seja, foi justamente o transito deste ator nas redes

sociais do movimento sindical da agricultura familiar, que desencadeou o

estabelecimento de vínculos entre seus pares, fundamentais para o surgimento desse

mercado.

No entanto não basta conhecer o programa para acessá-lo, assim mais ainda do

que a troca de experiências entre as redes sociais, este agricultor evidenciou sua

habilidade social ao realizar as articulações iniciais, entrando em contato com

representantes da prefeitura e da EMATER, sob o intuito de mobilizar agricultores,

técnicos e gestores públicos para a construção das chamadas públicas do PNAE. Este

mesmo agricultor também é um dos principais mobilizadores da ACSA, associação de

sua comunidade, que também acessa o PAA . Essa prática demonstra como os interesses

coletivos podem estimular também a ação econômica dos sujeitos desta pesquisa, pois

como assinala Fligstein (2009, p.83)

[…] eles [os atores sociais hábeis] mantém suas metas de certa forma

abertas e estão preparados para aceitar o que o sistema lhes der. Isso

faz com que os atores estratégicos hábeis se comportem mais ou

menos com motivações opostas a dos atores racionais que se limitam a

buscar seus próprios interesses e metas, em uma espécie de

competição com os outros.

Destarte, podemos então considerar que o acesso aos mercados protegidos, ou

institucionais como o PAA e o PNAE, demanda uma perspectiva de ação enraizada no

tecido social composto pelos agricultores familiares do município, bem como um

conjunto de habilidades sociais que capazes de fomentar a ação cooperativa entre esses

sujeitos. No entanto é importante destacar também que as imposições normativas

relativas aos regulamentos que amparam estes mercados, impõem limites a essa

“agencia” tanto dos agricultores sociais mais hábeis como os demais, uma vez que as

instituições desses mercados, ou seja, seus direitos de propriedade, concepções de

controle, estruturas de governança e normas de transação são definidas, principalmente

nos circuitos de poder político das instâncias governamentais, muitas vezes distantes do

alcance desses agricultores.

Outro mercado que apresenta um funcionamento particular, cujas instituições

são definidas com o intuito de inviabilizar praticas competitivas entre os agentes

produtivos, é a Rede Raízes da Mata. Essa Rede proporciona uma alternativa de

escoamento da produção, fundamentada em interesses coletivos que incitam a

cooperação tanto entre estes sujeitos como entre consumidores, técnicos e estudantes.

77

É importante ressaltar que as atividades como os intercâmbios da Rede, que

consistem em dinâmicas de trocas de experiências e saberes entre os seus membros, a

quinta agroecológica, que representa um espaço mensal de formação que visa debater

questões ligadas à agroecologia, e as reuniões ordinárias da “coordenação” da rede que

discutem e deliberam sobre os aspectos gerais desta intentam provocar a postura de

agente também no comportamento dos consumidores.

Assim, a construção dos pontos nodais desta rede, está diretamente ligada a

essas praticas de mobilização e articulação social de seus participantes. Nessa linha a

atuação dos mediadores desses processos, ou seja, os estudantes, técnicos e professores

vinculados aos projetos de extensão universitária, demanda, além de experiências e

conhecimentos específicos, uma dose generosa de habilidade social capaz de tornar

possível a execução de ações coletivas que contemplem a diversidade presente neste

espaço. O papel destes mediadores na rede é de fundamental importância para o

funcionamento da mesma, o que pode abrir espaço para questionar sua viabilidade para

além dos projetos universitários que viabilizam a participação destes mediadores.

Contudo, nessa categoria ficou claro, de maneira mais explicita do que em

qualquer outra, que no caso de alguns mercados (como principalmente os protegidos e a

rede) tanto o manejo, o planejamento e a organização da produção como as estratégias

de vendas baseadas em boa apresentação e propaganda das mercadorias, não são

suficientes para garantir a participação nesses espaços. Ou seja, as práticas de

cooperação e fortalecimento das redes sociais dos agricultores familiares do município

configuram-se como fundamentais para garantir o atendimento satisfatório a essa nova

forma de comercialização a fim de tornar possível a consolidação e eventual ampliação

da demanda efetiva correspondente a esse mercado.

4.4 GESTÃO EMPREENDEDORA

Esta última categoria analítica, utilizada para desvendarmos as práticas de

comercialização dos agricultores, remete às habilidades de gestão demonstradas por

esses no que concerne a maximização dos ganhos decorrentes de uma maior articulação

entre os desafios produtivos e a inserção nos mercados.

Alguns agricultores relataram realizarem um minucioso planejamento de suas

hortas de acordo com a sazonalidade do abastecimento dos mercados FLV; outros

enfatizam a observação da evolução dos preços de mercado, no caso da feira

principalmente, de acordo com os horários e o dia do mês, para traçarem sua estratégia

78

de vendas; ainda há aqueles que praticam a discriminação de preços adequada às

características gerais do público-alvo de cada um dos mercados acessados. Há também

um dos entrevistados que busca a máxima diferenciação de mercados possíveis.

As praticas mencionadas acima estão relacionadas a uma perspectiva da

atividade econômica como um negócio de fato, no qual, a inovação, reorganização e

adequação às tendências e aos nichos de mercado traduzem uma visão empreendedora

da produção hortícola e frutícola. Diante disso, o termo gestão empreendedora parece

adequado para relacionar as habilidades apresentadas nesta seção. Quanto ao significado

deste termo tomaremos as contribuições de Morgan et al (2010, p 117), que esclarecem:

Entrepreneurial behaviour is associated in many studies with

innovation, reorganisation, and creative action and in (re) ordering

resources to take advantage of, or to create, opportunities for realising

a value. The level and the range of the farmer’s entrepreneurial

activity may also be seen to indicate the famer’s attitudes and

motivational focus as the activities that farmers choose to develop

reflect on their personal priorities.

Uma primeira habilidade empreendedora verificada durante a pesquisa de campo

realizada neste trabalho é aquela relacionada ao planejamento e organização do espaço

produtivo de acordo com a observação atenta da sazonalidade da demanda. O agricultor

Julio Cesar, que declarou comercializar principalmente com dois mercados diferentes,

ao relatar como procede para combinar as entregas a cada um desses mercados,

evidencia sua capacidade de alinhar os períodos de colheita de itens específicos aos

momentos de maior demanda destes, de forma a potencializar a quantidade escoada.

Essa prática, aparentemente trivial, exige uma rigorosa observação, planejamento e

visão de mercado que permitiu a este agricultor atenuar os efeitos econômicos adversos

decorrentes da ausência de um veículo de transporte próprio.

Segundo ele próprio observa:

Vamos supor chega uma época de frio se eu tiver junto entregando no

PAA é mais negocio eu entregar mais quantidade pro PAA do que pro

Zé Antonio [atravessador] você entendeu? porque ele já pega menos,

porque chega no frio já tem aquela quantidade que todo mundo tem,

então ele já diminui a quantia que eles pegam. Então eu prefiro pega

ela [a mercadoria] e descarregar no PAA, por que ai eu aproveito, por

exemplo, chega essa época agora [novembro] que eu já fechei minha

cota do PAA ele [o atravessador] tem condição de me compra mais

quantidade do que se eu tivesse entregando pro PAA, ai equilibra

né?(Julio Cesar)

Outro agricultor entrevistado, também descreve que organiza a sua produção

para ter seus produtos na época em que ninguém mais tem.

79

A habilidade discutida nessa categoria corresponde à prática de discriminação de

preços realizada por alguns agricultores entrevistados. Essa ação pode ocorrer de

diversas formas, na Feira Livre, como citado no capítulo anterior, há aqueles

agricultores tomadores de preço, que se balizam pelos preços dos concorrentes vizinhos

para decidirem os seus preços sob o intuito de potencializar as vendas.

Esse mercado, entretanto, apresenta algumas peculiaridades que tornam as

variações de preços interessantes a nossa análise sobre esta categoria de habilidades, a

saber: 1) os produtos do segmento aqui estudado (FLV), principalmente as verduras,

apresentam um elevado grau de perecibilidade de maneira que caso os itens colhidos

para a Feira não sejam vendidos neste espaço, ou são descartados, ou, para aqueles que

convêm, serão transformados em alimentos para porcos ou aves. 2) A Feira Livre é um

mercado altamente concorrencial, isso provoca pressões baixistas nos preços de acordo

com variações no equilíbrio entre preço, oferta e demanda postuladas pelos modelos

econômicos neoclássicos e verificadas pelos próprios comerciantes.

Tem-se a partir daí duas principais consequências: a primeira consiste na

discriminação de preços em relação ao horário da feira (lembrando que esta tem início

aproximadamente às 6:00h e fim por volta da 12:30h), de maneira que quanto mais

próximo do horário final, aqueles feirantes que ainda têm sua barraca cheia de produtos

começam a divulgar uma “promoção” com quedas que variam entre 30% a 40% em

relação ao preço inicial. Outra consequência é a discriminação das quantidades

ofertadas. De acordo com alguns relatos dos entrevistados até mesmo o dia do mês

interfere da decisão da quantidade que será destinada a comercialização na feira, como

nos conta Anderson:

Às vezes a gente traz [para a feira] bastante coisa e sobra

muito, e outras vezes traz pouca e acaba cedo demais, então essas

coisas vareia (sic), mas, mesmo assim costuma que no último sábado

do mês eu separo menos coisas pra trazer, porque você sabe né, no fim

de mês o povo fica mais apertado, ai compra menos.

Em relação a esse conjunto de estratégias pode-se verificar a perspectiva da

agencia por meio da qual o “ator individual aprende a resolver problemas e a intervir no

fluxo de eventos sociais ao seu entorno e monitorar continuamente suas próprias ações,

observando como os outros reagem ao seu comportamento” (GUIDDENS, 1984, p.1-6

apud LONG & PLOEG, 2012, p. 25). Fica claro também que as capacidades desses

atores de construir sua própria combinação de estratégias de ação são também

80

condicionadas pelas relações concorrenciais e competitivas que caracterizam a Feira

Livre de Viçosa.

Evidencia-se, assim, como a construção social desse mercado encontra-se

também intimamente amparada na racionalidade econômica do ganho individual, uma

vez que as estratégias relacionadas à agencia e às capacidades desses atores intentam

maximizar os ganhos auferidos com as vendas. Essa situação relativa à maneira como se

dá a construção social desse mercado, apresenta-se semelhante ao caso do mercado de

morangos da região de Sologne, na França, cujos processos de mobilização e construção

de acordos e relações sociais entre produtores, técnicos e comerciantes levou a criação

de “uma espécie de bolsa local de morango, nos moldes neoclássicos” (WILKINSON,

2008, p.165).

Outro agricultor nos informa também que realiza outra forma de discriminação,

entre os diferentes mercados que acessa. Nesse caso a diferença de preço cobrado por

um mesmo produto não acontece em detrimento de questões relacionadas à quantidade e

regularidade da compra (como acontece nas transações com os supermercados, e vendas

locais), ou devido ao fato de o preço ser pré-estabelecido contratualmente (como

acontece nos mercados protegidos), mas sim pela percepção deste agricultor que o

público que compreende os consumidores da Rede Raízes da Mata “dão mais valor aos

produtos da gente” como ele nos diz.

Assim o preço de um mesmo produto deste mesmo produtor chega a variar de

20% a 35% da Feira Livre para a Rede Raízes da Mata, fato este que evidencia uma

habilidade empreendedora responsável por um aumento do ganho econômico deste

agricultor.

Uma ultima habilidade empreendedora verificada nesta pesquisa foi apontada

por apenas um dos entrevistados, quem declarou praticar uma intensa diferenciação de

mercados. Sebastião, que tem uma produção especializada em goiaba, jabuticaba e

maracujá, recentemente passou a enxergar a vantagem da diversificação dos canais de

comercialização, e assim ele diz ter vantagem tanto com os grandes compradores,

quanto com os pequenos, quanto nos pontos de venda que coloca nas ruas da cidade e

até na venda consignada para o varejo local. Assim segundo ele informa ele consegue

vender seus produtos em todos os estágios da maturação:

Na comercialização eu tenho várias opções, procurei

diversificar ao máximo, porque eu tenho fruta verde, tenho fruta

madura e ai todos os mercados têm sua função, inclusive, agora eu tô

gostando mesmo é de vender no consignado por que ai eu posso

81

coloca tanto o fruto verde, como os que já tão bem maduro, esses eu

tava perdendo e agora o que vem é lucro.(Sebastião)

Contudo, em relação a essa categoria cabe colocarmos que contrariamente à

lógica da cooperação observada na mobilização em torno de práticas associativas

visando à expansão da comercialização, discutida na seção que antecede esta, aqui a

racionalidade econômica do ganho individual apresenta-se como o grande motor que

impulsiona o desenvolvimento dessas habilidades. Assim, as iniciativas apontadas aqui

remetem tanto às estratégias de caráter competitivo em relação aos concorrentes, como

também àquelas que buscam explorar o excedente do consumidor, como as práticas de

discriminação de preços.

Este capítulo trouxe à tona as habilidades gerais necessárias para o acesso

exitoso à diversidade de mercados, com distintas dinâmicas e funcionamentos,

identificados no município de Viçosa. Essas habilidades representam as múltiplas

racionalidades (de caráter econômico, social, político e cultural) observadas nas práticas

dos agricultores familiares e demonstram também como os conceitos que guiaram a

análise (habilidade social, agência e capacidades) encontram-se devidamente

entrecruzados para uma compreensão satisfatória da totalidade das estratégias

desenvolvidas pelos agricultores familiares sujeitos desta pesquisa.

82

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma primeira consideração que deve ser feita com base nas análises realizadas

nesta pesquisa é a constatação de que os mercados consistem em estruturas

socioeconômicas altamente complexas cuja compreensão científica e empírica requer

elementos analíticos diversos. Ou seja, o arcabouço teórico que lança mão do estudo das

quantidades e preços capazes de equilibrar a relação entre oferta e demanda em

mercados onde os agentes agem invariavelmente no sentido da maximização de suas

utilidades, é notavelmente insuficiente para apreender diversidade que caracteriza tanto

os espaços de comercialização como a orientação dos atores sociais que nele atuam.

Na Feira Livre, ficou explícito que a manutenção das relações sociais e a alta

concorrência, somada as suas implicações para a definição dos preços, por exemplo,

orientam simultaneamente as práticas dos atores nesse mercado. Assim como no PAA,

PNAE, Venda Direta e na Rede Raízes da Mata, fatores como o estabelecimento de

redes sociais, a formação de um capital social entre os participantes bem como as

concepções de controle e estruturas normativas que inibem a competição indicam como

a idéia da construção social dos mercados é altamente relevante para identificar o

funcionamento destes. O caso dos mercados locais, atravessadores e restaurantes, por

sua vez, demonstram também que embora a comercialização e os ganhos econômicos

dela decorrentes sejam as finalidades últimas do acesso a estes mercados, as relações

pessoais, o ciclo de contatos, a confiança e a reputação dos agentes representam

influencia significativa para a compreensão da prática mercantil que acontece nesses

espaços.

Assim, como sugerem os novos sociólogos econômicos, a perspectiva do

enraizamento social que se manifesta nas relações econômicas desenvolvidas nos

mercados encontra-se diretamente ligada à relação dialética que se dá entre os

agricultores familiares e os canais de comercialização do segmento FLV de Viçosa,

como observado na presente pesquisa. A observação das etapas que envolvem o ato da

compra e venda em cada um dos mercados estudados corrobora ainda a noção de

enraizamento, observada nas estratégias utilizadas pelos agricultores para viabilizar o

transporte de mercadorias, estabelecer uma boa reputação junto aos clientes, definir

preços e quantidades, por exemplo. Evidencia-se como uma análise mais ampla dos

mercados da agricultura familiar viçosense demanda uma compreensão intimamente

83

relacional entre as principais variáveis estudadas: a ação mercantil dos agricultores, e as

estruturas sociais dos mercados acessados.

A adoção dessa perspectiva possibilitou-nos um olhar atento sobre as práticas

dos agricultores familiares para acessarem mercados. Assim, observou-se o

acionamento de estratégias distintas, baseadas num repertório de habilidades diferentes,

por parte dos agricultores para acessarem os mercados de FLV no município. Dessa

forma, o esforço envidado para identificar essas habilidades dos atores sociais indicou

ainda o quão amplo é o leque de estratégias adotadas, que perpassa desde iniciativas de

diferenciação de mercados e diferenciação de produtos, à construção de relações de

cooperação, mobilização e formação de redes sociais.

Com base na análise dessas habilidades ficou clara a existência de diversas

racionalidades que orientam a ação econômica, socialmente enraizada, desses sujeitos.

Nesse sentido, não há como negar que as motivações de maximização do ganho

individual orientam essas habilidades, no entanto aspectos de ordem cultural, social, e

política (como a produção agroecológica, as relações sociais da FL e as mobilizações

junto às organizações políticas, como o STR) demonstram como essas outras

racionalidades são capazes de direcionar significativamente o êxito econômico

decorrente do desenvolvimento das habilidades.

É possível afirmarmos também que a conjuntura da comercialização da

agricultura familiar no município tem sofrido um processo de ampliação das

possibilidades de relações comerciais. A Rede Raizes da Mata, o PNAE,e o PAA são

relativamente recentes em Viçosa e, ao passo que estes trouxeram um relevante

aumento da demanda efetiva dos produtos da agricultura familiar, aquela, embora pouco

representativa em termos de participação dos agricultores do município, representa uma

transformação simbólica, política e também econômica contribuindo para o fomento e

ampliação do padrão produtivo agroecológico.

Em síntese, ao contrastarmos as exigências, características e instituições dos

mercados estudados com as habilidades desenvolvidas pelos agricultores trazemos à

tona contribuições fundamentais para a construção dos processos de intervenção social

realizados por técnicos e extensionistas rurais, sob o intuito de potencializar as

estratégias de comercialização da agricultura familiar.

As análises aqui realizadas permitiram evidenciar que o acesso aos mercados da

agricultura familiar do município de Viçosa, no segmento FLV, tanto aos novos

84

mercados como também aos velhos, requer mais do que habilidades de caráter técnico-

produtivas, como preconiza o modelo da extensão convencional. Portanto, as principais

características relativas às habilidades de fidelização dos clientes, adequação de

estratégias de gestão e comercialização as diferentes dinâmicas mercantis, e

principalmente, às práticas de cooperação e articulação social explicitam subsídios

importantes para o desenvolvimento das ações que visem à geração de renda aos

agricultores familiares.

Também, observou-se nos mercados institucionais e na Rede da Mata que o

papel dos mediadores (técnicos de Emater, estudantes da UFV vinculados a projetos de

extensão, técnicos da Prefeitura Municipal) é relevante, sobretudo em atividades de

suporte que viabilizam os intercâmbios comerciais, participação esta que, às vezes, tira

protagonismo dos agricultores familiares e cria dependências dificilmente superáveis

sem ações específicas para tal (as que não foram observadas durante a pesquisa).

Assim essa diversidade, e heterogeneidade que caracterizam tanto as dinâmicas

mercantis quanto as habilidades dos agricultores identificadas aqui possibilitam a

abertura de novos caminhos para estudos futuros que intentem enveredar-se para a

compreensão de cada uma dessas especificidades apontadas, eventualmente valendo-se

de outros referenciais analíticos a fim de gerar novas contribuições para as práticas de

extensão rural.

Finalmente, é fundamental esclarecer que de acordo com os dados levantados

neste trabalho podemos afirmar que a relação entre as estruturas dos mercados e a ação

dos agricultores não se apresenta apenas de forma unilateral e hierárquica, onde esta

condiciona aquela, ou vice versa. Ao contrário, as informações aqui apresentadas e

discutidas revelam a dialogicidade dessa relação, através da qual seja pela habilidade

social de incitar a cooperação ou pela ação intencional de direcionar o curso dos

acontecimentos, os atores conseguem influenciar as estruturas mercantis tanto quanto,

simultaneamente, são por ela influenciados, uma vez que são estas que determinam o

campo de possibilidades de ação desses sujeitos.

85

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