Os Momentos Da Forma Jurídica Em Pachukanis

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    A histria da excluso e a excluso da histria

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    Espao de interlocuo em cincias humanasn. 19, Ano X, abr./2014 Publicao semestral ISSN 1981-061X

    Verinotio revista on-line de flosofa e cincias humanas

    Os momentos da forma jurdica em Pachukanis: uma releitura de Teoria geral do direito e marxismo *

    Ricardo Prestes Pazello**

    Resumo:Neste artigo pretendemos demonstrar, a partir de uma releitura da principal obra do jurista sovitico EvgenyPachukanis, os vrios momentos da forma jurdica, incluindo sua forma fundante, essencial (que lhe d traoespec co), bem como suas formas aparentes (momentos legislativo e judicial) ou, ainda, suas formas transitiv(momentos moral e privado). O livroTeoria geral do direito e marxismo, de 1924, no apenas alcana a especi cidadedo jurdico, mas tambm maneja com a complexidade do fenmeno, seguindo a senda inaugurada por Marx e seumtodo de anlise do capital.

    Palavras-chave:Pachukanis; forma jurdica; direito e marxismo.

    The moments of legal form in Pashukanis: rereading The generaltheory of law and Marxism

    Abstract: This essay aims to demonstrate through the rereading of the main book of the Soviet jurist Evgeny Pashukanis,

    the various moments of the legal form, including its founding and essential form (that gives its speci c trait) anits apparent forms (legislative and judicial moments) or its transitional forms (moral and private moments). Tbook The general theory of law and Marxism , from 1924, not only achieves the speci city of the Law, but also deals with the complexity of the phenomenon, following the path opened by Marx and his analysis method of capital

    Key words:Pashukanis; legal form; law and Marxism.

    * Este artigo resultado parcial da nossa tese de doutoramento (Pazello, 2014), defendida na Universidade Federal do Paran.

    ** Professor da Universidade Federal do Paran (UFPR). Doutor pela Universidade Federal do Paran (PPGD/UFPR). Pesquisadodo Ncleo de Estudos Filos cos (Ne l/UFPR) e do grupo de pesquisa Direito, Sociedade e Cultura (FDV/ES). Secretrio-geraldo Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS). Integrante da coordenao do Centro de Formao MiltonSantos-Lorenzo Milani (Santos-Milani), do Centro de Formao Urbano-Rural Irm-Arajo (Cefuria) e do Instituto de Filoso a dLibertao (IFiL).

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    Verinotio revista on-line n. 19. Ano X, abr./2014, ISSN 1981-061X

    IntroduoEvgeny Pachukanis representa a primeira e, ainda hoje, mais importante sistematizao de uma teoria marxista

    do direito. Segue a senda de Marx, que, apesar de no ter realizado sistematizao espec ca sobre o jurdico, deixmuitas referncias a ele. No volume 1 deO capital , por exemplo, encontramos mais de 700 referncias ao direito (e,se juntarmos as ideias anlogas, chegamos a quase mil menes) (cf. PAZELLO, 2014, pp. 144-5).

    No pretendemos neste artigo fazer uma possvel releitura de O capital e a relao com os sentidos quecomporta sobre o direito. su ciente mencionar tais sentidos e encontr-los na obra mxima do jurista sovitic(PACHUKANIS, 1988): a partir de uma forma fundante (a relao de valor) constitui-se a relao jurdica comforma jurdica essencial, a qual, por sua vez, tambm adquire contornos aparentes e transitivos. Portanto, em Mase divisam, sempre com referncia problemtica jurdica e de forma no sistemtica, relaes sociais de regulao,tais como a regulao estatal legislativa, a regulao estatal judicial estas duas aparentes, ao contrrio do queprofessa a teoria do direito tradicional , a relao moral de assujeitamento e a regulao privada ambas formastransitivas, nem reivindicadas pela teoria do direito nem pela crtica jurdica 1.

    A recepo rigorosa das anlises de Marx acerca do direito, no contexto deO capital , faz de Pachukanis oprimeiro marxista do sculo XX a encontrar o direito naquele livro, ou seja, percebendo-o como forma fundadnas relaes econmicas, mas com uma especi cidade, assim como tendo o direito de ser visto em sua totalidado que implica notar seus momentos complementares, ou seja, aqueles que fazem referncia, por exemplo, lei eao processo judicial.

    verdade que j Petr Stutchka, primeiro comissrio do Povo para a Justia na Rssia revolucionriahavia intudo o nexo indissolvel entre relao econmica e relao jurdica, concebendo o direito como,fundamentalmente, relao social, a partir das indicaes marxianas. Em uma de nio sinttica, vemo-lo dizque o direito precisamente um sistema de relaes sociais (STUCKA, 1988, p. 19), as quais no so outras qas relaes de produo, complementadas por formas abstratas. No entanto, Pachukanis avana na caracterizado direito, ao compreender sua especi cidade algo que Stutchka no faz.

    J no Prefcio segunda edio de sua obra mais importante, Pachukanis diz estar Stutchka correto acompreender sua interpretao, em Teoria geral do direito e marxismo, como aproximao entre forma do direitoe forma-mercadoria. No entanto, isto no signi cava descobrir a Amrica, pois, segundo Pachukanis, havielementos su cientes para ela em Marx (1983; 1984) e Engels (1976), equacionando, respectivamente, sujei

    jurdico e propriedade de mercadoria, de um lado, e princpio da igualdade e lei do valor, de outro. Alm disso, Pachukanis empreende uma re exo que busca apresentar-se como a mais el possvel aomtodo marxiano. Indo do simples ao complexo, preocupa-se com a historicidade do direito visto, desde logocomo um sistema particular de relaes que os homens realizam em consequncia no de uma escolha consciente,mas sob presso das relaes de produo (PACHUKANIS, 1988, pp. 32-3). Assim, a investigao acerca djurdico em Pachukanis atende aos primados metodolgicos do materialismo histrico, notabilizando-se, inclusipor atingir uma inteleco com respeito essncia do fenmeno que, como relao social, implicava consideraodas relaes sociais capitalistas e reviso das respostas tradicionais sobre os signi cados do direito.

    Nesse sentido, nossos objetivos passam por demonstrar que os momentos jurdicos que se extraem da penamarxiana esto presentes no livro de 1924 Teoria geral do direito e marxismo que marcaria indelevelmente toda atrajetria das assim chamadas teorias crticas do direito, sem nenhum esboo de sua superao, durante o scuXX e incio do sculo XXI.

    1. Forma fundante e forma essencial Todo o livro se destina a rejeitar as verses correntes de explicao do fenmeno jurdico, fazendo, inclusive,

    um franco e crtico dilogo com as posturas marxistas de ento. Portanto, a crtica s explicaes predominanttem de vir acompanhada de uma dimenso a rmativa, qual seja, a do entendimento de que o direito representarelaes sociais espec cas, originadas das relaes sociais de produo do capitalismo. Assim, demarca sua posiem face de Stutchka, realando seu acerto, ao vincular direito e relaes econmicas recorrendo teoria do valorem toda a sua exposio , mas tambm ao especi car a forma do direito nas relaes jurdicas. Da a existncia que chamamos de forma jurdica fundante e forma jurdica essencial.

    Ambas as formas, no texto de Pachukanis, surgem, no mais das vezes, acompanhadas uma da outra. Desdo incio, sua anlise evidencia as imbricaes entre uma teoria do direito e a teoria do valor de Marx, a tal pontode poder dizer que prevalece uma derivao de uma com relao outra: o princpio da subjetividade jurdic

    1 Esta a concluso qual chegamos em nossa tese de doutoramento (cf. PAZELLO, 2014, pp. 141 ss Captulo 3).

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    deriva necessariamente e de modo absoluto das condies da economia mercantil e monetria (PACHUKANI1988, p. 11).

    No nosso intento aprofundar, e tampouco subscrever sem mais, a contempornea teoria derivacionistaque a leitura pachukaniana sugere. certo que o jurista sovitico fez derivar das relaes econmicas o direitoa moral, mas nem to certo assim generalizar esta tese para todos os mbitos das relaes sociais. Como nonosso escopo, deixamos apenas indicada a existncia de toda uma tradio marxista que parte de tal pressuposto(cf. REICHELT et alii , 1990; HIRSCH, 2010; MASCARO, 2013).

    Em todo caso, para Pachukanis o sujeito de direito o slido ponto de partida para compreender a realidadena qual o direito se insere exatamente porque este sujeito que representa as mercadorias em suas relaes de troca,como j destacara Marx em clebre passagem de O capital (ainda que aqui caiba a discusso acerca da equiparaoentre as categorias de pessoa e sujeito jurdico):

    as mercadorias no podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar. Devemos, portanto, voltar a vista para seusguardies, os possuidores de mercadorias. (...) Para que essas coisas se re ram umas s outras como mercado-rias, necessrio que os seus guardies se relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas,de tal modo que um, somente de acordo com a vontade do outro, portanto cada um apenas mediante um atode vontade comum a ambos, se aproprie da mercadoria alheia enquanto aliena a prpria. Eles devem, portan-to, reconhecer-se reciprocamente como proprietrios privados. Essa relao jurdica, cuja forma o contrato,desenvolvida legalmente ou no, uma relao de vontade, em que se re ete a relao econmica. O contedodessa relao jurdica ou de vontade dado por meio da relao econmica mesma. As pessoas aqui s existemreciprocamente, como representantes de mercadorias e, por isso, como possuidores de mercadorias (MARX,1983, pp. 79-80).

    Assim que uma loso a do direito com embasamento no sujeito do direito equivalente loso amercantil com fundamento na troca (lei do valor) e explorao (forma contrato livre [PACHUKANIS, 1988, 9]). Por isso, ressalta dois mbitos de negligncia quanto aos estudos do direito, inclusive por parte dos marxistaaspecto positivo e atuante, no meramente negativo, passivo e dissimulatrio, do princpio da subjetividade jurdiassim como sua no reduo a mero processo ideolgico, como supuseram alguns autores coetneos de Pachukan algo tambm real, pois h uma transformao jurdica das relaes humanas (PACHUKANIS, 1988, p. 10uma vez que surge e consolida a propriedade privada e universaliza sua extenso, libera a terra das caractersticasfeudais, converte toda propriedade em propriedade mobiliria, desenvolve e faz preponderar relaes obrigacionaise constitui poder poltico autnomo, com diviso entre esferas pblica e privada.

    A explicao do direito pela esfera da circulao mercantil logo encontra, porm, a necessidade de se batcom as vises hegemnicas. Pachukanis desfere seus golpes construindo duas crticas centrais: ao neokantismjurdico e s teorias jurdicas sociolgicas e psicolgicas. Sobre a primeira corrente, a rma peremptoriamente qa ideia do direito no precede cronologicamente, mas sim gnosiologicamente, o fenmeno jurdico mesmPortanto, aqui se veri ca o carter escolstico medieval da loso a crtica (PACHUKANIS, 1988, p. 16) dematriz kantiana. Talvez este seja o ponto crucial para levar adiante uma interpretao do direito de corte marxiso ensinamento propedutico a que todo estudante de direito assiste que h uma diviso entre ser e dever-ser efenmeno jurdico seria tipicamente deontolgico, bem assim sua cincia. Para Pachukanis, explicitamente, esta c fundamentalmente equivocada. Cita, inclusive, Kelsen autor com o qual estabeleceria uma fecunda polmique sobreviveria mesmo morte do sovitico, uma vez retomada em vrios momentos pela pena kelseniana (cPAZELLO, 2013, pp. 203-20). Segundo a interpretao pachukaniana, Kelsen levou s ltimas consequnciasseparao entre cincias explicativa e normativa, a ponto de a cincia normativa no ser precisamente cient cpor no visar a estudar a realidade (que metajurdica).

    Sobre isso, alis, muito j se discutiu no seio das vises crticas do direito. Cremos ser exemplar a explicade Giannotti a respeito:

    o direito, antes de ser um sistema de normas enunciadas, est inscrito na trama das aes, na qualidade de pres -supostos de algumas delas. No entanto, to-s alguns comportamentos (...) podem gerar um objeto, o valor,capaz de emprestar contedo a essa relao jurdica implcita. Antes de vir a ser linguagem o direito entranhao tecido do logos prtico. (...) Alm do mais, percebemos ainda que uma norma jurdica no se resolve nummandamento, num dever-ser qualquer, mas ainda exprime uma condio existente que se cola e uma relaosocial de produo como bastidor que ela mesma cria para desmascarar o terreno de sua atuao (GIANNOT- TI, 1980, pp. 11; 13-14).

    Quanto segunda crtica, ao sociologismo e psicologismo jurdicos tanto na verso de Stutchka quanto nade Petrazickij, Pachukanis assevera que h a um abandono da forma jurdica como elemento explicativo, quandono se d uma completa distoro no que tange a seu sentido: para tais teorias, pode passar por ces, fantasmaideolgicos e projees ou ainda por resultado de uma luta de interesses, manifestao da coero estatal

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    processo que se desenvolve na mente humana (PACHUKANIS, 1988, p. 20). Desdobramentos no coincidenteem seus contedos, mas convergentes quanto a seus equvocos formais.

    Pachukanis chega mesmo a enfrentar as objees que suas crticas sofrem e as responde sem titubeios. Sh e certo que existem arbitrariedades nas construes jurdicas, mormente as do chamado direito pblico,elas somente derivam da forma jurdica espec ca e concreta. Por outro lado, tal como a viso sociologista/psicologista que dominava entre os juristas soviticos de ento, procurar categorias jurdicas abstratas para o direitoproletrio, diante da destruio do direito burgus, perder a coerncia para com o mtodo marxiano, pois,assim como no se quer a eliminao da teoria do valor burguesa para criar a teoria do valor proletria, o mesmo

    vale para o aniquilamento do direito, ou seja, o desaparecimento do momento jurdico das relaes humanas(PACHUKANIS, 1988, p. 27) em geral.

    A partir de tais crticas, a perspectiva marxista do direito se concentra em estabelecer os passos para efetusua explicao que d conta da especi cidade do direito. Com Marx, trata-se de entender a essncia (noodistinta da de contedo) do direito como relaes jurdicas; da sua forma essencial. Pachukanis escreve de modcorroborarmos este entendimento, quando se refere relao jurdica como, para utilizar uma expresso marxista,uma relao abstrata, unilateral, mas que no aparece nesta unilateralidade como o resultado do trabalho conceitualde um sujeito pensante, mas como o produto da evoluo social (PACHUKANIS, 1988, p. 34), quer dizerresultado da produo mercantil da sociedade burguesa (PACHUKANIS, 1988, p. 35).

    J no Captulo II de sua obra, dedicado ao tema Ideologia e direito, Pachukanis apresenta o direito comforma de relao social espec ca, sendo que, em certos casos, esta relao transfere a sua prpria forma parqualquer outra relao social ou mesmo para a totalidade das relaes (PACHUKANIS, 1988, p. 42). Nestcaso, a especi cidade do fenmeno resta matizada por sua projeo ou generalizao em outras relaes sociaimenos formalistas que as jurdicas. Ainda assim, todavia, a relao jurdica envolve a relao dos proprietriosmercadorias entre si (PACHUKANIS, 1988, p. 45). Aqui reside, pois bem, o que h de espec co na interpretapachukaniana, ainda que a perspectiva de Stutchka no estivesse de todo equivocada e, o mais importante,apresentasse-se como adequada para os juristas prticos.

    Pachukanis precisaria ainda enfrentar a temtica geral das relaes sociais e suas repercusses para odireito, para desenhar a especi cidade jurdica. Seu ponto de partida no outro seno o fato de que a sociedade cadeia ininterrupta de relaes jurdicas (PACHUKANIS, 1988, p. 47) (assim como de acumulao dmercadorias) geradas pela forma mercantil. Assim como Stutchka, tambm Pachukanis d primazia s for

    objetivas reguladoras e atuantes (PACHUKANIS, 1988, p. 50) o que chamamos de forma fundante do direit e, por isso, no est aqui um ponto de distino entre os dois autores. Mas, se assim, se a relao jurdi diretamente gerada pelas relaes materiais de produo (PACHUKANIS, 1988, p. 57), como pode concluPachukanis a um s tempo que o direito subjetivo o fato primrio (PACHUKANIS, 1988, p. 59) para oentendimento do fenmeno?

    Essa questo tem que ver com a explicao da especi cidade do direito e apenas no Captulo IV(Mercadoria e sujeito), entretanto, que Pachukanis verticaliza o embasamento de sua tese.

    Partindo da proposta metodolgica de Marx, que encontra na mercadoria a clula explicativa, em termode exposio, do desenvolvimento do capitalismo, Pachukanis entende ser o sujeito de direito o tomo da teoriajurdica, o que signi ca dizer que ele o elemento mais simples, integrante de toda relao jurdica. Da quparalelamente ao incio da explicao de O capital em que o ponto de partida so as mercadorias, na esfera do direitoo fundamento ao estudo da forma jurdica no pode ser outro que no o sujeito (PACHUKANIS, 1988, p. 68)

    No aludido captulo, Pachukanis se debrua sobre a teoria do valor e busca encontrar seus desenvolvimentospara uma teoria do direito. Nessa seara, no a propriedade privada o fundamento da forma jurdica, porqueela necessita dos sujeitos que a mercantilizam antes de qualquer outra coisa. Como a teoria marxista se paupela anlise histrica das formas sociais, a chave para a compreenso da forma jurdica tem de ser uma relaa relao jurdica, a qual se externaliza como oposio coisa-sujeito. interessante notar, aqui, que as relaeconmicas, apesar de sua dimenso socialmente produtiva, partem da mercadoria, enquanto as relaes jurdicas,em seus marcos abstratos, partem do sujeito. O que leva a esta inverso so justamente as formas absurdas(PACHUKANIS, 1988, p. 71) que o vnculo social burgus impe: a relao de valor das mercadorias comtotalidade de relaes rei cadas e a capacidade de ser sujeito de direito como totalidade de relaes em oposia uma coisa. O homem em geral, generalidade antropologicamente impossvel, faz-se presente no direito segundo as palavras de Pachukanis,

    se a coisa se sobrepe economicamente ao homem, uma vez que, como mercadoria, coisi ca uma relao so-cial que no est subordinada ao homem, ele, em contrapartida, reina juridicamente sobre a coisa, porque, elemesmo, na qualidade de possuidor e de proprietrio, no seno uma simples encarnao do sujeito jurdicoabstrato, impessoal, um puro produto das relaes sociais (PACHUKANIS, 1988, p. 72).

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    Eis que o sujeito econmico, dependente da lei do valor, tem uma compensao como sujeito de direito, a vontade presumida que o torna livre e igual.

    A apario do sujeito jurdico e, portanto, do direito propriamente dito, decorre do valor como categoriaeconmica estvel, com diviso do trabalho, desenvolvimento da comunicao e das trocas; estreitamento dos

    vnculos sociais; crescente poder de organizao social; e propriedade como direito absoluto, ou seja, estvel,

    protegido por leis, polcia e tribunais estas ltimas dimenses ensejando as outras formas jurdicas, as aparentSendo que o sujeito de direito se apresenta no ato de troca dentro do mercado, em que o objeto a coisa, e o

    sujeito, o proprietrio de mercadoria, a relao dos homens no processo de produo adquire forma duplamenteenigmtica (PACHUKANIS, 1988, p. 75): ao mesmo tempo em que entre coisas, tambm entre sujeitos livresindependentes. Aqui, Pachukanis apresenta este enigma como uma relao unitria, ou seja, os aspectos econmie jurdico so paralelos, abstratos e fundamentais. Quer dizer, faz sentido encontrar na relao econmica jurdica; ocorre, porm, que esta ltima igualmente se diferencia, de tal modo que s na economia mercantil naa forma jurdica abstrata, desprendida de pretenses jurdicas concretas. Alm disso, no haveria subjetividades ndignas (PACHUKANIS, 1988, p. 84) de serem sujeitos proprietrios, mas nem todos so proprietrios de fatOu seja, cria-se o homem em geral e, dessa maneira, o sujeito jurdico, proprietrio de mercadoria abstrato qaliena/adquire, diferencia o prprio direito das demais relaes sociais burguesas.

    Como para o ato de troca que convergem os momentos essenciais tanto da economia poltica como do

    direito (PACHUKANIS, 1988, p. 79), o fenmeno jurdico se diferencia pelos contratos ou acordos. da quse origina o direito e no o contrrio, como querem as teorias deontologistas, Kelsen. A questo normativa consequncia e s com mercado estvel e interno (no apenas externo) h necessidade de garantir o direito dpropriedade. A propsito, Pachukanis diz que no capitalismo monopolista, no mais concorrencial, portantoque se d a necessidade de uma rgida organizao central e planejada, no interventiva do estado na economia,obviamente, mas de modo a operacionalizar, da melhor forma possvel, a circulao de bens, via trustes e cartis 2.

    A especi cidade jurdica a relao jurdica, a forma essencial do direito. Esta peculiaridade se origina dadesenvolve-se unitariamente com a forma fundante, as relaes econmicas capitalistas-mercantis. Apenas comdecorrncia das formas fundante e essencial do direito, com seus sentidos de relaes econmicas e jurdicas, quese originam os demais momentos, especialmente os de carter legislativo. A interpretao marxiana se apresentaproposta de Pachukanis, que tem o mrito de pela primeira vez sistematiz-la rigorosamente e exp-la conformo materialismo histrico.

    2. O momento legal Para Pachukanis, portanto, a forma legal subsidiria da relao jurdica. Isto signi ca dizer que o direit

    no primordialmente lei, norma ou sano. Em sua viso, um dos grandes equvocos dos marxistas de setempo, mas que se tornaria uma constante posteriormente tomar o direito como, em essncia, o momentoda regulamentao coativa social (PACHUKANIS, 1988, p. 9). Esta constatao, porm, no deve levar a outrerro, qual seja, o de considerar a forma legal desprovida de qualquer dimenso jurdica. Sem dvida, ela no momento essencial, mas uma possibilidade histrica que tem seu mais desenvolvido aparecimento na sociedaburguesa.

    Mesmo no enfatizando o momento da forma legal em sua anlise do direito, Pachukanis no recusa encararalguns mbitos de suas problemticas. Como vimos, o primeiro enfrentamento que faz ao normativismo jurdiccriticando-o quanto sua ciso ontogentica, como um dever-ser separado do ser. Nesse sentido, seu ataque sdestina defeituosa de nio de direito vlida para todas as pocas como regulamentao autoritria externa(PACHUKANIS, 1988, p. 23), pois, se o mesmo fosse vlido para a economia, esta no seria uma cincia, dado qconceitos eternos no so cient cos.

    O carter jurdico da regulamentao das relaes sociais se d quando o aspecto normativo no meramente tcnico, mas tem seu ncleo slido no direito privado. Assim que regulamentao ou normatizao totalmente jurdica (PACHUKANIS, 1988, p. 43) sob um ponto de vista convencional, ou seja, no tem cartprimordialmente jurdico, j que para adquirir este carter precisa referir-se a uma relao jurdica. Nesse sentiPachukanis ope normas jurdicas a normas tcnicas, demonstrando que o carter normativo extrajurdico: regulamentao jurdica se h antagonismo ou oposio de interesses privados; tcnica se est de acordo como m unitrio (PACHUKANIS, 1988, p. 44).

    no Captulo III (Relao e norma) de sua obra, contudo, que Pachukanis dedica maior zelo primeiraforma jurdica aparente o momento legislativo. Ateno, reforcemos: ele no descuida de sua preocupa

    2 Esta organizao gerada pelos trustes, pelos cartis e por outras unies monopolistas. (PACHUKANIS, 1988, p. 86).

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    primeira com a relao jurdica. A forma essencial do direito, por de nio, no se subordina de modo algum a suformas aparentes, uma vez que a relao jurdica o movimento real do direito, sendo que o conjunto de normas mera abstrao sem vida (PACHUKANIS, 1988, p. 47).

    Pachukanis retoma a crtica ao normativismo kelseniano, escola do pensamento jurdico que diz que anorma gera a relao jurdica. Na verdade, a norma gerada pela relao jurdica, pois s consegue autonomdentro de estreitos limites, enquanto a tenso entre o fato e a norma no ultrapassar certo grau mximo. Segundo jurista sovitico, ento, a norma ou deduzida das relaes existentes ou sintoma que permite prever ofuturo nascimento das relaes correspondentes (PACHUKANIS, 1988, pp. 48-9). Dessa maneira, vemos umreformulao aprofundada da indicao de Marx em O capital : enquanto Marx, ao explicar o desenvolvimento dagrande indstria, colhia a forma legal como um elemento conjuntural de suas interpretaes (a legislao fabrilcomo meio de proteo fsica e espiritual da classe operria, mas tambm com a condio da concentrao docapital e o domnio exclusivo do regime de fbrica [MARX, 1984, p. 100]), Pachukanis j estabelece sua posiestrutural dentro da totalidade da forma jurdica (deduo do ser ou sintoma de sua modi cao).

    Assim sendo, o sistema jurdico coativo no cria a relao jurdica, mas a garante e preserva. Com issopossvel dar vez analogia, sugerida por Pachukanis (1988, p. 51), de que o sujeito e a relao jurdica esto panorma assim como o valor est para a oferta e a procura. Evidentemente, uma formulao de analogias que pardos critrios de essncia (relao jurdica e valor) e aparncia (norma jurdica e lei da oferta e da procura).

    O direito de nido como norma ou regra de conduta no passa de posio terica que mescla empirismoe formalismo, desvinculando-o da vida concreta. A viseira que no permite ao positivismo jurdico compreendo direito para alm de seu empirismo formalista se deve no percepo de que apenas as relaes mais bemprotegidas e garantidas so tuteladas pelo estado, mas no derivam deste.

    Para Pachukanis, portanto, a forma legal no passa de um caso particular da relao jurdica. Taparticularidade no obscurece, contudo, o fato de que direito objetivo e subjetivo representam uma dualidade epossuem condicionamento recproco: o direito simultaneamente, sob um aspecto, a forma de regulamentapor autoridade externa e, sob outro aspecto, a forma da autonomia privada subjetiva (PACHUKANIS, 1988, p57). Eis os termos do que Pachukanis chamou de estranha dualidade entranhada no seio da teoria do direitoestranheza que levou, e continua a levar, os normativistas a encontrarem a subordinao do direito subjetivo norma objetiva, dando vez a seu equvoco-mor.

    Mesmo considerando a dimenso relacional da qual mais prximo chegam os tericos no marxistas d

    direito, a obrigao (consequncia de um imperativo), ela no deixa de ser um re exo e contrapartida do direitsubjetivo, ainda que concretize e complique o estudo do direito, por remeter totalidade concreta.Por ser a norma elemento no s do direito, mas tambm da moral, esttica, tcnica, dentre outras, sua

    especi cidade como norma jurdica advm do fato de pressupor uma pessoa munida de direitos fazendo valerpor meio deles, suas pretenses, os sujeitos privados isolados (PACHUKANIS, 1988, p. 61). Quer dizer, s norma jurdica porque se estabelece ante sujeitos de direito e seus interesses.

    Nessa chave de interpretao, o problema do direito objetivo e do subjetivo desdobra-se em direito pblicoe privado, ou seja, nas esferas do indivduo burgus privado e do cidado do estado. O problema, neste ponto, quse intentam assegurar direitos pblicos subjetivos que no so mais que direitos privados eis aqui uma bifurcaoperante a qual se colocou toda a crtica jurdica marxista (para no falarmos na no marxista), tomando, inclusios caminhos equvocos de supervalorizao do direito pblico como forma jurdica distinta. Nesse sentido, estado no uma superestrutura jurdica, apesar de ser conceituado como tal, assim como o direito pblico nopassa de re exo da forma jurdica privada.

    A norma como simples regra de organizao, como sugere uma viso politicista hoje, prevalente da crtijurdica (no que se mancomuna com o normativismo positivista), representa a morte da forma jurdica. Trocandem midos, a morte do prprio direito, como fenmeno social relativamente autnomo. Surpreendentemente, lugar a que levariam as sugestes formalistas, sem se darem conta disso seus formuladores. Esta supresso exiporm, um estado social em que a contradio entre o interesse individual e o interesse social esteja superado(PACHUKANIS, 1988, p. 64), o que expressamente o contrrio do que ocorre na sociedade burguesa

    Nota Pachukanis, por outro lado, que a identi cao do direito a norma estatal uma tendncia docapitalismo nanceiro-imperialista, nisto se diferenciando da fase marcada pela livre concorrncia. Aqui, pconseguinte, uma importante concluso macroestrutural de nosso autor: as relaes jurdicas se pleni cam como capitalismo concorrencial, mas o desenvolvimento do prprio capitalismo rumo ao monopolismo exigiu qumedrasse o positivismo jurdico e a nfase, ideologicamente amparada, no momento legal da forma jurdica, ouseja, sua aparncia 3.

    3 Tal tendncia do pensamento jurdico re ete exatamente o esprito desta poca em que a ideologia de Manchester e a livre concorrncia sucumbiram aos grandes monoplios capitalistas e poltica imperialista. (PACHUKANIS, 1988, p. 61)

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    Assim, submisso a autoridade normativa como uma organizao poltica de tipo estatal no temrelao com a forma jurdica. E mais, tentar encontrar o entendimento do direito privado nas normas (objetivadecorrente de um suposto direito pblico) no pode levar mais que inrcia e ao formalismo. E Pachukanis assientende, estendendo sua re exo at ao nvel do direito penal, quando percebe que a pena supe xao de tipolegal (PACHUKANIS, 1988, p. 135) que para ele estaria superado quando a medida de defesa social fosseprincipal forma de resoluo de con itos, uma vez que tidas por regras tcnicas , ainda que, neste caso, sua nfa venha a cair em uma viso judicial da forma jurdica.

    3. O momento judicial A questo penal d ensejo discusso acerca da segunda forma jurdica aparente, a forma judicial. Pachuka

    aprofunda sua interpretao acerca desta quando ataca a questo do direito penal, mas antes de chegar a ela tecealgumas consideraes.

    Seu entendimento o de que as formas legal e judicial so complementares s da relao jurdica, vale dizer,com elas chega-se totalidade dos momentos constitutivos do direito em geral. Assim que aparece a referncao encontro da forma jurdica nas relaes de troca e realizao completa da forma jurdica (PACHUKANI1988, p. 12) no tribunal e no processo. No mbito judicial, portanto, h a realizao da forma jurdica, ainda queste lugar no seja nem seu diferencial nem sua essncia.

    Essa realizao, tal como o capital se realiza nas sucessivas passagens das esferas da produo para acirculao, implica a percepo de que, se h necessidade de leis para assegurar as relaes jurdicas, elas precisamser rigorosamente interpretadas e sistematicamente abordadas no judicirio: necessrio, por isso, recorrercritrios precisos, a leis e a rigorosas interpretaes de leis, a uma casustica, a tribunais e execuo coativa dasdecises judiciais (PACHUKANIS, 1988, p. 13). Aqui, Pachukanis critica as teorias que tomam o direito, omelhor, a forma jurdica, como pura ideologia e que se socorrem apenas das formas de conscincia paraexplic-lo. Seja porque no entendem as caractersticas materiais da ideologia, seja porque acreditam ser o direpura co, no conseguem explanar os seus caracteres mais bsicos. Uma teoria assim, mesmo que se pretendendcrtica, desnecessria.

    Da que o momento jurdico s aparece ao homem comum (mais preocupado com o momento econmico)em casos excepcionais, de litgio jurdico, em que surgem os juzes como detentores do momento jurdico

    (PACHUKANIS, 1988, p. 25). A realidade no se reduz ao jurdico e nem mesmo ao econmico, pois umtotalidade complexa de relaes, instituies, aes e pensamentos. Entretanto, o caos aparente desta realidade poser desvendado mergulhando-se nas profundezas de sua essncia, o que, didaticamente, leva-nos aos momentodesta realidade, da o acerto da posio pachukaniana.

    Ademais, na seara jurisprudencial que o momento jurdico se autonomiza. O processo judicial comolitgio entre sujeitos com interesses opostos permite a autonomia da relao jurdica em face da econmica. tribunal, portanto, o espao privilegiado para esta ocorrncia, com seus juristas prticos. No quer isto dizer qseja desnecessria uma atuao prtica, atuao esta privilegiada por Stutchka, por exemplo. Antes, quer dizer qo poder do estado confere clareza e estabilidade, mas no cria as premissas, as quais se enrazam nas relaesmateriais, isto , nas relaes de produo (PACHUKANIS, 1988, p. 55). Logo, para intervir no momentautnomo do direito, como de fato o judicial, h de se compreender suas condicionantes centrais.

    Logo, a partir de tais re exes que Pachukanis se coloca a problemtica do direito penal, qual dedicoutodo seu Captulo VII, intitulado Direito e violao do direito. Texto seminal para a criminologia crtica, marxiou no neste momento histrico, ainda fortemente impactada pelo ps-lombrosianismo, com destaque para gura de Enrico Ferri , enfrentam-se com ele as di culdades para entender o direito penal como forma jurdica.

    De fato, as objees a este entendimento eram da ordem da desconsiderao da posio dos indivduos docerne da tutela penal. Pachukanis, entretanto, mostra que, apesar de o direito penal moderno partir da violao dnorma e no do prejuzo da vtima, o processo penal inseparvel desta ltima, tanto no nvel privado como nopblico, e que, por decorrncia, ela exige sua reparao. Tambm, a despeito de o direito penal moderno partir responsabilidade individual e no do prejuzo, ainda assim se introduz o momento psicolgico (culpa) ao lado material (prejuzo) e do objetivo (ato), dando luz a noo de proporo da pena. Desse modo, a persistncia d

    vtima, como sujeito de direito, no processo penal enseja a forma mais geral do contrato, ou seja, um contratojudicirio em que ela demanda uma reparao, do mesmo modo que, com a triangulao culpa-prejuzo-ato, xa-a relao entre o delinquente e a autoridade penal (PACHUKANIS, 1988, pp. 127-8), nada mais que uma relajurdica, no processo judicial, em que o primeiro paga a reparao exigida pela vtima e pelo estado, via autoridade,com seu tempo livre, com sua disponibilidade para o trabalho. Ainda que a alternativa de Pachukanis em torn

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    das medidas teraputicas tenha se mostrado pouco satisfatria, como salientaram alguns de seus crticos4, seudiagnstico permanece bastante instigante e lana a analogia, para alguns, ou derivao, para outros, a patamarincrivelmente superiores aos at ento existentes, em termos de crtica marxista ao direito.

    Com base nessa so sticao da anlise, em que a equivalncia adquire a centralidade por ser ela a basmediadora entre os polos da relao jurdica, que poderamos pensar em outros ancos da crtica relao jurdicmesmo que ao nvel do chamado direito pblico: o princpio do poluidor-pagador, prprio do direito ambientala patrimonializao dos danos morais, mesmo em procedimentos administrativos; os crditos de carbono, nodireito internacional; o aumento do potencial construtivo, no direito urbanstico; os incentivos ou desoneraestributrios, nos direitos econmico e tributrio; a pauta de distribuio de recursos e, em especial, as emendasparlamentares, no direito nanceiro; os direitos do consumidor entendidos como direitos humanos en m, todosexemplos de relaes jurdicas em mbitos do chamado direito pblico ou com fortes implicaes neste.

    4. O momento moral Como podemos ver, Pachukanis d muitas contribuies ao entendimento do direito a partir de seus

    momentos, notadamente o fundante (relao de valor), o essencial (relao jurdica) e ao aparente (momentos lee judicial). certo, porm, que existem muitos matizes possveis entre estes momentos da forma jurdica e, pisso, gostaramos de destacar mais dois deles, os quais chamaremos de transitivos.O primeiro tem que ver com o momento moral, que a relao moral de assujeitamento, achada nO capital ,de Marx, no famoso pargrafo introdutrio ao Captulo II por ns j citado. Chamamo-la de forma essenciaexplicitamente fundada na forma fundante. Apesar de certa inexatido, podemos aproxim-la das re exes quPachukanis traz tona em seu Captulo VI, integralmente dedicado relao entre Direito e moral.

    No -toa a preocupao com a questo da moral, em especial em sede de investigao acerca do jurdic A distino entre direito e moral uma nota constante dos doutrinadores do direito. No h introduo aodireito que no se preocupe com ela e no venha a decretar a peculiaridade do mundo moderno como sendorelativa separao entre direito, ou poltica, e moral. A verdade que a concluso correta, no entanto, os seuporqus soem aparecer de modo impreciso ou super cial. No se atribui a ciso ao motivo certo. Pachukanis o faz

    Vejamos como ele constri seu argumento:o homem, efetivamente, enquanto sujeito moral, ou seja, enquanto pessoa igual s outras pessoas, nada mais do que a condio prvia da troca com base na lei do valor. O homem, enquanto sujeito jurdico, ou seja,enquanto proprietrio, representa tambm a mesma condio. Estas duas determinaes esto, nalmente,estritamente ligadas a uma terceira na qual o homem gura como sujeito econmico egosta (PACHUKANIS,1988, p. 104).

    Aqui, percebemos a sobreposio entre forma jurdica e forma moral ou, o que quase o mesmo, entresujeito de direito e sujeito moral. No queremos dizer, de maneira reducionista, que a moral, em Pachukanis, simples interseco entre os campos da economia e do direito. Mas, antes, que a interseco entre a forma fundan(valor) e a forma essencial (relao social jurdica) se conecta com a forma moral. Da fazer sentido uma formjurdica transitiva de cariz moral.

    Alis, entre moral e direito parece haver, para Pachukanis, uma relao de condicionante/condicionadaainda que o mesmo explicitamente no valha para o mbito das relaes econmicas. Segundo nosso autor, a tida igualdade deriva da forma mercantil, o que faz surgir trs dimenses da subjetividade: a moral, a jurdica econmica. Todas elas carregam a marca da igualdade e, por consequncia, da relao de valor. O sujeito vissob o prisma da relao de troca e, com suas dimenses, conforma uma totalidade dialtica.

    Se na esfera econmica, em que o sujeito se guia pelo clculo econmico, vige o princpio do egosmo,na esfera jurdica prevalece o princpio da igualdade, pautado pela titularidade de direitos, com base em decisoautnoma e na vontade, enquanto que, na esfera moral, a encarnao do princpio da igualdade se desdobrano princpio do valor supremo da pessoa. Trs caracterizaes dos sujeitos, das esferas e dos princpios, mas expresso de uma s relao social: trs mscaras fundamentais utilizadas pelo homem da sociedade de produmercantil (PACHUKANIS, 1988, p. 105).

    Para o sovitico, o que interessa a compreenso da estrutura do direito e da moral, ou seja, sua forma,e no seu contedo. Por isso procede crtica da tica kantiana como sendo tpica do capitalismo, mas tamb

    4 Essas limitaes se tornam particularmente graves quando Pachukanis aplica essa concepo ao campo do direito penal, suge -rindo a adoo de medidas de natureza mdica para substituir o emprego de medidas penais, especialmente da pena de privao deliberdade, aos transgressores da ordem social socialista. Depois dos estudos de Michel Foucault e de D. Melossi e M. Pavarini, entoutros, pode-se avaliar as consequncias tericas e polticas de uma orientao como essa. (NAVES, 2008, pp. 121-2, nota 57)

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    transparecendo ser a prpria tica em geral. Na medida em que proclama o universalismo tico, que represenno mais que o fato de o comrcio virar um comrcio mundial, demonstra o quanto so as relaes humanassubmissas lei do valor (PACHUKANIS, 1988, p. 108). Mas, ainda que haja uma aparente ambiguidade enta a rmao do princpio da igualdade, mas sua negao prtica, esta duplicidade o exato distintivo essencida forma tica como tal (PACHUKANIS, 1988, p. 110). Da que, tal qual no caso do direito, a abolio destduplicidade a abolio da forma tica mesma.

    Na realidade, segundo a interpretao pachukaniana, o contedo de classe no aniquila a forma, nem a ticanem a jurdica. Da fazer todo o sentido, na sua formulao, a contraposio entre o homem moral e o homemsocial do futuro. Este uir na coletividade onde encontrar sua satisfao; aquele representa um dever abstratode igualdade. Por sua vez, a vitria do homem social prevalecer sob uma nova base econmica, no sendo metarefa ideolgica ou poltica.

    Mesmo a noo de justia surge em Pachukanis como um conceito que tambm deriva da relao detroca e fora dela no tem sentido (PACHUKANIS, 1988, p. 112). Trata-se, portanto, de uma ideia vinculada moral e igualdade entre as pessoas que ela supe, que camu a a ambiguidade da forma tica, restando entre tica e o direito, a tal ponto de poder exigir o uso da fora.

    Dada a importncia que adquire para a teoria do direito a relao deste com a moral, Pachukanis se preocupem apresentar suas relaes contraditrias. Aponta o problema do estado como uma das questes centrais parcompreender tais contradies e a caracterstica da bilateralidade como sendo o ponto comum entre as duasesferas, ainda que a capacidade de distinguir claramente as coisas no seja prpria anlise destes dois mbiDa que se recusa simplista oposio entre sano externa e interna para diferenciar direito e moral e assevera qa obrigao jurdica no tem como encontrar signi cao autnoma em si mesma, e por isso oscila eternamententre dois limites extremos: a coao externa e o dever moral livre. Ou seja, no a obrigao que caracterizdireito (como quis fazer crer a antropologia jurdica no marxista 5, apesar de seu ponto de partida relacional paraconceitu-lo), mas a relao entre sujeitos que a impe.

    5. O momento privado A segunda forma transitiva do direito aquela que costuma ser menos trabalhada pelos juristas, valendo

    mesmo para Pachukanis. Fruto da diviso do trabalho intelectual, o estudo da forma jurdica em suas relaes co

    o estado cou ao encargo da multissecular tradio dos jurisconsultos, tornada cincia do direito na passagem dsculo XIX para o XX. J a anlise da regulao privada que a moderna empresa capitalista cria passou para limites da teoria das organizaes ou, mais propriamente, para a cincia da administrao.

    Se, como j visto, a forma da autonomia privada subjetiva caracteriza a relao jurdica em seu ncleocentral, por participar da consubstanciao da forma jurdica mesma, ela tambm faz despontar facetas nosurpreendentes do capital, mas inocentemente desprezadas pelos cientistas do direito.

    Quando, no Captulo V de seu livro principal, Pachukanis discute a relao entre Direito e estado, acabpor nos subsidiar, mesmo que com parcas referncias, acerca da forma jurdica transitiva que se coloca entre alegislao estatal e a relao econmica, vale dizer, a regulao privada das relaes sociais.

    de se ressaltar em sua interpretao que os capitalistas possuem rgos de poder paralelos aos do podeo cial: as associaes de industriais, com a sua reserva nanceira, as suas listas negras, os seuslockouts e os seuscorpos de furadores de greves so, sem dvida alguma, rgos de poder que existem ao lado do poder o cial, ist, do poder do estado (PACHUKANIS, 1988, p. 96).

    As associaes de industriais, ou de setores da burguesia, ou ainda das classes acopladas a ela, so apenuma dimenso organizativa da regulao sumamente privada das relaes de produo. Podem ser formais oinformais, inclusive. Formalmente, instituem centrais sindicais patronais, agncias de fomento, rgos de pesquentidades corporativas, crculos de apoio, canais informativos e tudo o mais que lhes possa servir. Informalmenporm, imiscuem-se na organizao dos trabalhadores e movimentos sociais, dominam meios de comunicade massa e arregimentam seus quadros para comandarem direta ou indiretamente partidos polticos e governos,parlamentos ou o judicirio.

    Alm de tais associaes, Pachukanis ressalta tambm a existncia da autoridade no interior de uma empresIndiscutvel, ela con gura, ao alvitre do capitalista individual, a possibilidade de estabelecer uma ordem interde trabalho verdadeiramente como uma legislao privada, que pode ser tida como um elemento autntico defeudalismo ou como aes administrativas igualmente existentes dentro do regime de produo capitalista.Pachukanis conclui: porm, uma vez que elas no aparecem aqui sob uma forma camu ada como na escravatur

    5 Ver os estudos de Paul Bohannan e Max Gluckman ( in DAVIS, 1973).

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    e na servido, compreende-se por que motivo elas passam despercebidas perante juristas (PACHUKANIS, 198p. 97).

    A preocupao dos juristas passa ao largo de compreender a essncia das coisas, da desconsiderarem carter jurdico da regulao privada. Se no estatal, logo, no problema do direito, mas das relaes privadPerdem-se, portanto, na sinuosa curva da realidade, a qual no acata as linhas retas do entendimento comum dque sociedade mercado, e estado vontade geral, impessoalidade, logo, direito.

    Na sociedade capitalista, a coao a subordinao a um arbtrio e no pode ser diferente disso, porquesubmete um proprietrio de mercadoria a outro, via de regra, o proprietrio da fora de trabalho ao proprietriodos meios de produo. Por isso, a necessidade de camu ar o arbtrio com a razo de estado; o ato de oportunidadecom a coao abstrata e impessoal (PACHUKANIS, 1988, p. 98).

    Assim, damos por certa a possibilidade de se estudar o direito, sob a perspectiva marxista, em suas vriadimenses, incluindo em seu rol no apenas a forma abstrata da relao jurdica, nem tampouco somente asaparncias normativistas ou decisionistas, mas tambm as ambivalentes formas moral (ou justa) e privada.

    6. ConclusoConclumos nosso passeio pelas concepes de direito que permeiam aTeoria geral do direito e marxismo,

    de Pachukanis, realando o rigor de sua anlise e a delidade para com a leitura de Marx entendimento quecompartilhamos, por exemplo, com Naves (2008). Igualmente, sua capacidade explicativa e sua no neglignciaface das tarefas concretas que seu tempo histrico exigia.

    Como as relaes sociais no se limitam s relaes jurdicas abstratas entre proprietrios de mercadoriabstratas (PACHUKANIS, 1988, p. 126), faz-se premente tomar conscincia dos possveis usos do direito ncerne de tais relaes. Ainda que geneticamente vinculado forma mercantil, taticamente pode apresentar, amenos assim o entendemos, algum tipo de utilidade na luta de classes mesmo que, quanto mais encarniada estaluta, menos imparcial e garantista apresente-se o direito.

    A impossibilidade de um uso estratgico do jurdico advm do fato de que a burguesia, classe que tornoo direito um fenmeno pleno, passou de classe revolucionria a reacionria. Se a era urea da Revoluo de 17foi uma realidade, a poltica colonial e o medo do desenvolvimento do movimento operrio (PACHUKANIS1988, p. 125) no a habilitam mais para o resgate de seu passado.

    Ainda que nada impea de pensar um novo desenvolvimento da forma jurdica se a superao do capitalismse der de forma diversa da do comunismo (e da necessria transio socialista), Pachukanis nos assegura que spodero ultrapassar os vcios da forma jurdica se, ao contrrio de a rmarmos os supostos acertos dela comoos direitos humanos ou as declaraes de direitos, a constituio ou os atos normativos conquistados pelas classespopulares , houver o aniquilamento da superestrutura jurdica em geral, ou seja, quando nos depararmos coma prova de que o horizonte limitado do direito burgus comeou nalmente a se alargar (PACHUKANIS, 1988p. 136).

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