Os Morros, Os Rios, Os Mares

59

description

Trilogia de Roberto Carlos Costa.

Transcript of Os Morros, Os Rios, Os Mares

Banho de amor, pois, agora, chegava a gemer enquanto suas mãos encontravam todos os lugares e mordia, levemente, os lábios. Seu

olhar, agora, era lânguido e suplicante e sua luz transformou-se numa fogueira azulada, com labaredas que mordiam o ar, lentamente.

Voltou a lavar-se com água abundante, num gestual enlouquecedor e, por um momento, pereceu-me ter-se transformado numa cascata de diamantes e pérolas reluzentes. Então, seus pés tomaram forma de

raízes, flores campestres de várias cores cobriram a pedra, seu corpo contorcia-se de prazer e era tomado por uma hera que ia dando lugar a

cachos de uvas vermelhas e doces... Logo, voltou à luz de antes, enquanto vi em seus olhos a verdadeira expressão humana do prazer.

OS MORROS

OS RIOS

OS MARES

Trilogia de Contos de: ROBERTO CARLOS COSTA

- 2010 -

Nota do Autor: ROBERTO RODRIGUES COSTA é designer, cheio de ocupações, compromissos e acontece ser meu filho. Reluta sempre em criar as imagens de capa dos meus livros, talvez por não conhecer..., ainda, todo o seu potencial criativo. Mas, enquanto posso uso alguma autoridade de pai tentando sensibilizá-lo, pedindo sua ajuda – verdadeiro stress. Disso decorre o nó na garganta enquanto escrevo essas poucas linhas. Ele acertou de novo!

Sumário Os Morros I – Madrugada na Praça ............................................................................... 07 II – Córrego doce e carmim .......................................................................... 10 III – Rugas do Morro.................................................................................... 13 IV – Domingo..., Vozes do morro ................................................................ . 17 V- A feira e o tempo ...................................................................................... 21

Os Rios I – Não pode e não quer comer ..................................................................... 25 II – A casa ..................................................................................................... 28 III – Sons da maré..., Úmidas mulheres....................................................... 31 IV – Ressaca que cura .................................................................................. 34 V – Toada da salvação .................................................................................. 37 VI – As margens ............................................................................................ 41

Os Mares I – Teu nome é saudade ................................................................................ 45 II – O velho e a foz ........................................................................................ 48 III – Silêncios do mar e do tempo................................................................ . 52 IV – Claro dia de sol ..................................................................................... 56

7

Os Morros, Os Rios, Os Mares

OS MORROS I

Madrugada na praça

Dormem todos como se nada mais possa vir a ser feito. Tudo parece estar exatamente como o planejado, previsto, sonhado, como se tal estado de coisas possa ser elevado ao patamar de percepção de um sonho, e esse, é patrimônio maior, inviolável, que emerge do íntimo da consciência e do cansaço. Estou no alto, planando errante, aqui bem no topo de uma sujeira que não é minha, não a desejei e não a quero, porque não a sonhei e que me enerva e aflige, como se não houvesse mais aonde chegar, o que verem meus olhos, o que meu peito apertar. Resfolegar, eis o que realmente resta, a mim e a tantos outros meus, que também não enxergam a vida real que percebo, enquanto minha alma sobrevoa estas alturas. Dormem, acordam e voltam a dormir após um dia de trabalho pesaroso. Não pesado necessariamente, pois adoram o trabalho que edifica e faz mudanças no mundo que os cerca. Comem, bebem e amam ao ritmo de uma locomotiva martelante que arrasta, sobre-

8

Roberto Carlos Costa

passa, mal conduz, arregimenta emoções que se esvaem pelos caminhos de longe e de perto. Ah, minhas ladeiras sinuosas e em silêncio... Desço na praça de formato triangular, numa calçada fria e áspera. Toda sujeira se movimenta bailando ao sabor do vento, num ritual perene em busca da sarjeta ofegante. Há uma inclinação – quase desequilibro. Começo a circundar os limites da pracinha, como por ali é chamada, e um cão magro me acompanha. Estou na segunda volta e nada se modificou, apenas a forma do animal tentar me entender. Ouço um barulho de latas que caem do outro lado da calçada e vejo apenas os pés de um homem. Deve ser velho, ou, um velho, ou, um homem velho..., importa apenas que está a dormir, caso isso venha a ser importante por ali. Está deitado por trás de uma banca de feira, retorcida pelo tempo, com a gambiarra apagada, lona mofada e decorada por rasgos e costuras feitas a mão. Aproximo-me e vejo a inquietude do homem, ainda somente seus pés. Tenho receio do que possa encontrar por detrás da banca revestida com uma saia de lona plástica alaranjada. O pequeno animal conhece o lugar e adentra com a cauda a balançar e volta apressado e desconfiado. Os movimentos ali dentro fazem um volume no plástico maior que o corpo do homem. Há uma fresta e resolvo espiar por ela..., e há mais três crianças com ele. Uma menina é maior e tem ao colo uma irmã nua e quase recém-nascida que parece dormir. O terceiro demonstra não ter dormido ainda. E brinca com um louva-a deus. Respiram o olor da aguardente sorvida até ao fim, vêem o sangue que escorre pelo canto da boca do pai e decora o chão em volta do homem. Dou a volta e tento encarar as crianças. O velho, agora, somente estremece suas carnes e já quase não respira. O cão entra lambendo o garoto. Este guarda o inseto, abre uma mochila de estopa e encontra um pedaço de pão endurecido. Morde e separa um pedaço que oferece ao cão. O garoto mexe com o velho tentando acordá-lo – nada acontece-... Olha para a irmã e ela nega com a cabeça. Entra pouca luz naquele recinto, deixando ver bem apenas o branco dos olhos das duas crianças que estão acordadas..., as únicas que sobreviverão. Ele deve ter no máximo cinco anos, a pele enrugada e as mãos demasiado ásperas. Levantou-se e saiu, foi até

9

Os Morros, Os Rios, Os Mares

uma fenda no muro a poucos metros. Meteu a mão ali dentro e tirou um carrinho pequeno, de um plástico verde vibrante. O cão não o deixava andar, envolvendo-se amistosamente por entre suas pernas. Atravessou a rua e logo subiu o tronco do velho flamboyant que sobrevive no centro da praça. Ocupou um forte galho do qual fazia de estrada para o brinquedo. Olhou para trás um instante tentando ver alguma mudança no que estava por trás da banca de feira. Recostou-se no tronco da árvore e restou-lhe contemplar o que fosse possível ver no mundo à sua frente. Ainda não é dia. Bem ao longe, pode-se ver o mar fustigado pelos rios da cidade. O horizonte começa a resplandecer por trás de nuvens rochas, com o sol perfurando-lhes os limites, trazendo o fim da madrugada. A brisa é leve e acorda, aos poucos, a cidade que logo espremerá as pessoas dali, sugando-lhes a seiva e alguma coragem..., mas não toda. Aproximo-me cheio de cuidados e, agora, sinto-me matéria que vive. Já não estou apenas circulando em volta da praça, o meu coração pulsa e meus olhos estão cheios... Estendo a mão ao garoto vendo seu rosto brilhar com as lágrimas caídas no anonimato e chamo-o, quase implorando. Ele não me encara e continua com o olhar fixo no horizonte, vasculhando todo o céu que pode enxergar. O cachorro late ao ver a irmã sair de detrás da banca. Volto a estender-lhe a mão, mas ele continua sem me ver. Toco suas pernas dependuradas no galho e procuro seus olhos até que ouço dizer-me: “Eu não posso ir..., tenho que cuidar do cachorrinho e dos meus irmãos... Mainha não vai voltar mais”...

10

Roberto Carlos Costa

II

Córrego doce e carmim

A ladeira, um tanto íngreme, não dá trégua ao motorista do ônibus, e esse vai galgando o velho morro que, de cima, vê a cidade e suas cores. O cobrador tenta uma rápida dormida aproveitando os solavancos e o gemido rouco do motor. Essa é a subida principal, cujo calçamento se foi com a primeira chuva que experimentou. O terminal fica do outro lado, de onde se pode avistar o Porto. O cheiro de mato se eleva ao ser acordado o chão inclinado e ainda molhado pela chuva, durante a noite. É relva forte que sustenta os barrancos dali, avivando a ocre tonalidade das encostas em perigo. A água da chuva desce seus córregos sulcados dia após dia, enquanto limpa os esgotos a céu aberto. É uma água azulada que desliza pelo verde musgo desenhando os canteiros e decorando as vidas dali. São seis horas da manhã e uma trupe de garotos já corre mundo, uns a brincar, outros apedrejando o ônibus, bebendo a água adocicada do esgoto. Nus e semi-nus, não sabem, ainda, quando farão a primeira refeição. Pulam um muro, rastejam, em surdina, o oitão lateral de uma casa, voltam aos pulos e, atrás deles, a velha senhora tenta correr a enxotá-los com o lenço da cabeça. Depois dela, vem uma jovem trazendo uma bandeja amassada, repleta de bolinhos de cuscuz de milho com leite e um bule com maltado. O motorista para, trava o veículo e desce em busca da primeira refeição do dia. Paga cincoenta

11

Os Morros, Os Rios, Os Mares

centavos, esmurra a lateral do veículo mandando acordar o cobrador com um impropério, ocupa seu lugar no terraço da casa e deseja a jovem moça..., que, agora, fica à sua espera. Os garotos voltam com risos amarelos tentando distrair a velha. Puxam conversa, simulam uma briga, sobem, sorrateiros, o muro em desalinho. Ameaçam com um pau, com um estilete improvisado, intimidam com o olhar. A velha senta-se no único batente à beira do córrego, traz ao seu colo o menor deles e, resignada, ordena a neta que distribua o conteúdo da bandeja com todos. Comem em silêncio e em respeito aos conselhos que lhes chegam aos ouvidos – olhares baixos, o choro contido. Prometem nunca mais fazerem aquilo e escutam, ao longe, a buzina do ônibus que pede passagem ao carroceiro que vinha descendo a ladeira. Na casa em frente, ouvem uma forte discussão, que calam um momento, e logo, é retomada aos gritos. A porta se abre com um estalo por onde sai um homem extremamente contrariado, o andar cambaleante e, logo, senta-se na calçada, mais adiante. No seu abdômen, aparece uma enorme mancha vermelha que ele tenta cobrir com uma das mãos. Seu olhar está fixo em algo que não se pode ver e ele acaba por tombar no meio da ladeira. De dentro da casa, ouve-se, agora, um choro agonizante e, na porta, aparece uma mulher desfigurada por pancadas e escoriações – os olhos mal se abrem. É trazida por um jovem de pouco mais de quinze anos, que expõe na cintura uma faca ainda avermelhada. Descem a ladeira e deixam em casa outras três crianças pequenas, ainda nuas, que ficam olhando o pai deitado de forma estranha. Começam a subir pessoas conhecidas ou não, curiosos, cúmplices e amigos, e formam um círculo em volta do cadáver. Um vizinho recolhe os filhos menores pra dentro de casa e esses já se põem a brincar. O morro parece acordar de um só golpe. Seus habitantes crepitam por entre o casario que se equilibra encosta afora. A cidade retumba lá embaixo, ferve e enlouquece o dia e a vida de todos os homens e mulheres. Buzinam os carros, os rádios são ligados, abrem-se as torneiras, cantarolam as mulheres que sustentam aqueles lugares.

12

Roberto Carlos Costa

Tocam as campainhas das escolas, ouve-se o potente apito do navio cargueiro, lá no Porto. Já se pode ver a escura névoa que se forma pelo mormaço poluído. Toca a sirene policial, cuja viatura vem subindo, aos trancos, a ladeira esburacada e para ao lado do corpo. Lá em cima, aponta o ônibus que retorna seu roteiro e, agora, desce com facilidade. O motorista, de longe, ao ver o aglomerado em frente à casa do seu novo amor, sente estremecer todo o corpo. Vem descendo, aos poucos, tentando identificar as pessoas e, quando percebe a gravidade do ocorrido, aproxima-se e estanca o veículo. Desce apressado, quase descontrolado. São oito horas da manhã e seu dia nem bem começou. Simultaneamente, sente uma grande tristeza e um enorme conforto e alívio. Seu irmão jaz naquele chão, mal tendo saído da penitenciária. Seria sua casa prisão maior...? No outro lado da rua, na casa onde aprendeu a amar, uma jovem de cabelos negros e sedosos recebe-o com um abraço perfeito. Do interior da casa, saem a velha e duas das crianças que alimentou. Traz outra bandeja com os bolinhos amarelos embebidos em leite e um bule cheio de um forte café coado. Agora, é oferecido aos policiais que registram a ocorrência enquanto colhem depoimento. O calor já é intenso, principalmente lá embaixo, chegando a arder, com o sol consumindo parte da coragem dos que não abrem mão do direito de labutar sob sua luz. Aqui em cima, a brisa ameniza essa dor, restando viver na paz possível. O casal ainda está abraçado, pois, o ônibus somente poderá sair após a remoção do corpo. Seus corações palpitam descontroladamente, suplicantes de um amor então possível e que limpa vidas inteiras e reconstrói o mundo. É um amor tão puro que perdoa a todos e a tudo, e seria a verdade única..., não fosse o tom vermelho carmim que, agora, escorre pelos recantos da ladeira...

13

Os Morros, Os Rios, Os Mares

III

Rugas do morro Novamente batem à sua porta. São os três toques já bem

conhecidos por toda uma existência a dois. Deve estar passando das oito horas da manhã, momento em que a vida inicia e, logo, termina para ele. O quarto está meio aceso pelos raios de sol que descobrem as frestas do teto e das paredes do barraco. O cheiro é de mofo, adocicado e esverdeado, mas..., mofo. Vira-se para o outro lado fazendo ranger a cama com colchão de palha recheado com pedaços de papelão. No travesseiro, o cheiro de oitenta e dois anos, seu choro, suas vergonhas, seus sonhos. Gostaria de continuar a dormir, mas sabe que não bem conseguiria. Mal prega os olhos durante a noite e isso já vem de alguns anos. Acha que está chegada a hora da grande viagem, sua maior salvação. Vive a esperá-la, a morte quase desejada, talvez, única fonte de purificação. Batem mais uma vez e com mais força, e ele ouve o arrastar dos pesados chinelos sobre o chão batido do corredor. Sabe que o café está à sua espera: pão assado, queijo-coalho, e a garrafa de pinga. Terá que comer sozinho mesmo que sua companheira esteja ao seu lado, rodeando a mesa, espantando as moscas, fazendo ruído nas panelas amontoadas sobre o balcão da cozinha – punhado de caroços de feijão na outra ponta da mesa e pedrinhas e gravetos sendo separados. O olhar é rancoroso, quase um nojo, uma repulsa, uma condenação. Ela é vinte anos mais nova do que ele, embora já seja uma velha. Traz no

14

Roberto Carlos Costa

braço uma pulseira improvisada com um terço que lembra-a a sequência de orações devida à consciência. Ele retarda o tempo da refeição. Não há palavras de afeto, nem esperança ou motivos para isso. Os filhos se foram envergonhados – tudo ingratidão da pior. Os netos, nem sabe se os conhece, o que fazem, onde vivem, quantos são. Os amigos sumiram junto com seu respeito próprio. Consegue levantar-se e vai até a janela, que abre com um empurrão. Sente o cheiro da hortelã e da fumaça do carvão queimado vindo da cozinha. À sua frente, ergue-se um enorme pé de fruta-pão, à sua esquerda, o quartinho onde é usada a latrina, ficando uma enorme jarra com água ao pé da porta, do lado de fora. Um pequeno varal, engradados de refrigerante e cerveja, e vasilhames coloridos e vazios. Grandes pedaços de plástico preto para conter a encosta, pedaços de tora, tijolos quebrados, garrafas de vinho e aguardente vazias, tamboretes retorcidos e tiras de espuma de colchão, caixotes e sacos de carvão. Tudo como há anos pode ser visto. À sua direita, os fundos dos barracos vizinhos escorados quase ombro a ombro, acompanhando a inclinação do terreno, apoiados nas raízes que se projetam da parede do barranco. Cantarolam todas as donas de casa espantando a dor e o sofrimento, esticando nos varais seus enxovais, movimentando algo indecifrável dentro de panelas de barro com um pedaço de madeira. Cantam e choram o morro e suas mazelas, as grandes distâncias, o esquecimento e os esforços para fazer render a comida de todos os dias. De volta ao quarto, o velho abre a tampa de um caixote coberto com uma fórmica marrom escura, retira um saco plástico estufando de fotografias de todos os tamanhos. Senta-se na cama e passa algumas fotos com atenção e carinho. Suas mãos tremem, a posição na beira da cama incomoda, perde a paciência, resmunga algo que nem mesmo ele entende, guarda as fotos no mesmo lugar e resolve ir tomar o café com certa sensação de já ter feito aquilo. Com o mesmo pijama surrado azul claro dirigiu-se à sala e aumentou o volume do rádio, até fazer retirar-se do recinto a mulher

15

Os Morros, Os Rios, Os Mares

que o abandonara na cozinha há vários anos. Acendeu o cachimbo escorado no parapeito da janela em frente ao barraco. A rua, quase inexistente, é decorada por uma grama rasteira um tanto encharcada pelas águas que descem em forma de esgoto, de uma maneira um tanto perene... O barraco em frente tem uma pequena cerca sustentada apenas pelas três linhas de arame farpado enferrujado. Pedaços de plástico azul e transparente completam partes do telhado que sustenta a antena parabólica. De dentro da sala, explodem reflexos e clarões produzidos pela televisão que pode ser ouvida. Na casa vizinha a ela, só é possível ver dezenas de gaiolas penduradas, uma ao lado das outras e a enorme variedade de pássaros que convivem de qualquer jeito, a cantar, cantar, cantar... A fumaça do fumo faz arder os olhos, a boca empastada pede outra dose de aguardente, agora, um quartinho da maldita bebida. Logo o copo está vazio e queimam as entranhas até sentir esfriar o suor na testa. Dentro de instantes, desejará outra dose enquanto chegam, aos poucos, pela ladeira, o passador de bicho, o menino da fieira de peixes pescados na lagoa perto dali, o caminhão do gás, lá distante, no cruzamento a tocar seu pequeno sino. Sobe a ladeira, um tanto desconfiado, o jovem pastor de uma nova igreja – terno cinza escuro, sapatos de verniz preto, numa mão, o Novo Testamento, na outra, a digna esposa e duas crianças pequenas, todos de mãos dadas, sem saberem onde estão indo. Pelo outro lado, descem duas jovens com menos de treze anos, extremamente maquiadas, usando malhas demasiadamente curtas e provocantes, cochichando uma ao ouvido da outra, brincando de mulher feita, chegando a se divertirem. O sol faz arder a pele do velho rosto enrugado, a claridade incomoda fazendo lacrimejar seus olhos. Observa a sala, encontra a cadeira de balanço e a cuspideira improvisada com uma lata de leite sem rótulo. Pela porta aberta do outro quarto, percebe a fraca luz provocada pelas velas do oratório, repleto de entidades e santidades colecionadas com fervor pela velha senhora. A casa é de parede e meia, permitindo que se propaguem os sons mais variados. É

16

Roberto Carlos Costa

impossível decifrá-los, no entanto, atestam a existência da vida que persiste. O efeito da aguardente deixa seu andar cambaleante e ele quer retornar ao seu quarto e vai. No corredor, o passo ritmado da mulher, pra lá e pra cá. O volume do rádio é diminuído, sobressai o canto dos pássaros e da cigarra, o remexido da lagartixa sobre os entulhos no quintal, o cantarolar das velhas vizinhas num conhecido lamento, verdadeiros gemidos de dor. Ele volta a levantar-se sem ter chegado a dormir, serve um café quase frio e vai até a sala. Aumenta o volume do rádio e espera perceber o movimento da mulher levantando-se da cadeira e recolhendo-se ao quarto escuro. Vai até a janela e observa a rua, as casas, até sentir um inexplicável impulso de olhar, esperançosamente, para o mais alto céu, única coisa que faz bater forte seu peito...

17

Os Morros, Os Rios, Os Mares

IV

Domingo..., vozes do morro

Vozes do morro, suas cores e suas lamúrias. Emoções acorrentadas a ferro e paixão, porque não conseguem deixá-lo, abandoná-lo, como se nada estivesse acontecendo por ali. A fé dos morros, confirmação do Evangelho que se multiplica em cada recanto, a cada momento. De um lado, longa leitura em coro, do outro, o terreiro se agita: mandingas, bonecos perfurados, velas e mais velas acesas, tantas que quase conseguem mostrar o caminho...; banhos que purificam, lavam mãos e pés peregrinos, em sua solidão, sem entendimento, melhor conforto. Agora, é mais água, unguento, ervas boas e daninhas, que curam e paralisam, que melhoram e infernizam, ocupando vidas inteiras dos curiosos, tementes a Deus, pastores, benzedeiras, convictos, receosos, descrentes, pecadores...; santos homens e mulheres, negras velhas indumentadas com rendas e colares, cores que definem poderes e ascendências. Os ritos, brancos e negros, o bem e o mal, aparições, exercício da fé sã e insana, as baladas do sino da Santa Sé, lá no alto, altar em fogo, quase uma brasa e o aleijado na porta com seu chapéu, pedindo... No meio da escadaria, uma pequena família com cinco crianças bramindo seu sofrimento através de doloroso silêncio e consagração da ocre cena que preenche aquela parte do morro. Promessas de cura e melhoras na vida, nos amores, na saúde. Querem conforto, aconchego, viver em paz, na possível harmonia.

18

Roberto Carlos Costa

Bebem os homens, rezam as mulheres, choram as crianças, esvaem-se na fé e na crença, na liturgia, nos efeitos, nos feitiços... São bruxas, cartomantes de luxo, coloridas, olhares felinos, negra pupila, gestos rápidos passando o medo e a dependência, a dúvida, e querem dinheiro, favor, recompensa. Acorda o coro na irmandade, ali perto. O tom é agudo, sacro e fervoroso, de crianças ritmadas pelo velho cravo. Melodia pra limpar a alma e o pensamento em busca de Deus e de vida, qualquer uma que possa servir. O velho padre está deitado em sua cadeira de balanço, numa longa meditação em busca de paciência e conforto para com seus próprios sofrimentos. Pensamento vai longe, ao menos, até onde for o canto..., agora, quase lírico, improviso de jovens corações na melhor das expressões da criação Divina. A quermesse está quase pronta para o próximo domingo. Barracas em madeira, lona de papelão, trabalho árduo, preparação dos santos e santinhos, das comidas, oferendas, bebidas para os homens e para os santos da terra e do céu. Gambiarra será acesa, santuários, oratórios, velas, incenso, sangue e água benta e para lavar...; fogos de artifício, crianças a correr pela noite que chega, pedindo licença à fé reinante que conforta a mente e o peito de jovens e velhos dali. O véu para domingo é novo e foi presente de aniversário – terço, imagens lacrimejantes em madeira, gesso, ferro e barro, grandes e pequenas, o andor, a procissão, atos de fé, a dança dos terreiros, a Umbanda e o Candomblé, a missa, os missionários. Vender-se-á cuscuz, pipoca, picolés, raspa-raspas, cachaças, ervas, bolinhos, raízes, colares, grude, tapioca, milho verde, e assado, queijo na brasa, mel, bandeirolas, apitos, fitas e livrinhos, cordéis, artesanato variado... A praça será enfeitada com luzes e bandeiras. Ouvirá muita música, rabecas, violas, cirandas e folguedos, pregações, histórias de milagres, emoções à flor da pele: traição, novos amores, refregas, beijos na roda gigante. Terão tiro ao alvo, pescaria, pirulitos, bombons de açúcar, doces e pastéis, purpurina, batons vermelhos, lavanda, brincos, calçado novo, balões de gás, reco-reco, prendas, fetiches, fofocas, festança..., a música hilariante fará ferver os

19

Os Morros, Os Rios, Os Mares

corações femininos e as crianças poderão crescer sabendo que a vida tem tais cores e sons..., e emoções. Chegará domingo e todo o morro será de Deus, e os anjos descerão à festa dos homens, simples homens, que iluminam os recantos da cidade que apenas escuta..., de longe, de falsos outros homens, besuntando seus receios de ter que comungar com aquilo, com a pobreza, com tal mistura. Por que se acham melhores enquanto desconhecem o significado da imbecilidade coletiva. Nada a fazer, senão esperar o domingo chegar e antes, preparar a roupa, fustigar os namoros, alimentar os desejos, preparar os olhares que seduzirão, limpando das faces os pesados semblantes da opressão, resquício de uma inexplicável exclusão, da segregação, das culpas, malfado que implica uma vida sofrida. Os quintais serão vasculhados em busca dos chás, ervas e odores, do milho e das raízes. Os jardins serão aguados, os canteiros replantados, as fachadas coloridas com os mais vibrantes tons. É hora de consertar, tampar as goteiras, desentupir os ralos, ferver o café, como bolo que não desanda, morro que emerge, que lá no alto já chegou, ancorado em seu berço, de mãos dadas com os anjos, deusas, querubins, de onde os índios avistavam, reduto de quilombos, bocas de se ferrar, becos do terror e dos amores que proliferam a vida..., que habita, transforma, ou, simplesmente acontece... O domingo chegará e nenhum outro dia será como ele, simplesmente, porque provocará os sentimentos, modificará vidas, confirmará a força dos que são dali, com sua música, dança, fé e paixão. Não há como controlar essa verve. É destino de morro, vida de morro, suas cores e seus sons..., como se já não fossem seus cheiros, amores, os calmos ventos, noite, sol, suas flores; e têm as pessoas dali a certeza de que aquele lugar é deles, sem haver contestação. Pois galgaram em correria, em fuga e desalinho, mas, também de mãos dadas, de joelhos e aos poucos, fincando mãos e pés, e bem antes, seus corações. A festa irá até dentro da noite de domingo, até curvarem-se as pernas e o dorso, de sono e de prazer. E perto da aurora, cairá a forte chuva que inunda as vidas e renova as esperanças e que limpará os

20

Roberto Carlos Costa

excessos, os males e enxugará as lágrimas doces e as do sofrimento, chegando lá embaixo em torrente barulhenta e revoltada, até se esvair nos rios que estarão de braços abertos e que sairão a mostrar aos da cidade que a vida é também assim... Ah, vozes do morro, por mais que te escute...

21

Os Morros, Os Rios, Os Mares

V

A feira e o tempo

Hoje é dia de feira, qualquer um da semana, não importa, pois assim é conhecido. Há quase um respeito total por esse dia, quando todos acorrerão à praça em busca de pão... O sol arde sobre o morro e sobre minha cabeça, que mal governo e meu corpo já não quer sustentar. Madruguei, driblei o jejum que persiste, ajudei no descarrego das verduras, das laranjas bahia e pera, filei um, dois, dez cigarros, suportei-me até ali. Apenas seu Maneco, o do Bar da Moela, deu-me de beber, conversa, conseguiu serviço no caminhão, prometeu conseguir um médico de graça, pois já quase não durmo e não paro de suar. Tomei a primeira, a segunda, perdi a conta, a vergonha de mim, dos fregueses, do amigo Maneco. Contei e ouvi piada, joguei dominó e pife-pafe, levei empurrão, até ser humilhado pelo homem da carne. Parecia o dono do mercado e da feira, ele e a faca peixeira... Ouvi fofoca, ameaça, intriga, notícia ruim, perambulei à procura de algo e de mim, enquanto sentia o cheiro da charque, da manteiga, do alho, do fumo de corda, da barraca de artigo de couro, de gente de tudo quanto é recanto do morro. E há muitos anos que vagueio por ali sem ter alguém pra mim. O chão se move à minha frente. Ah, se move, sim... Está todo ondulado e todos me olham esperando que eu caia, desmorone a barraca. Preciso ficar caminhando, entre uma e outra pinga que tomo

22

Roberto Carlos Costa

de virada, de lapada e guardo no estômago sem reclamar, sem pigarro, só respirando fundo. A feira é grande, ocupando toda a praça e até as ruas em volta. Compra-se tudo: temperos ralados a mão, pimentas, colorífico, cravo, raízes medicinais, folhas de louro, tudo bem colocado num saquinho plástico, pesado na velha balança ou por unidade, tem cereais variados em sacas, verduras frescas e dormidas, que vão sendo molhadas a cada instante para manter o brilho. As frutas de sempre: bananas, laranjas, abacaxi, limão. Na banca do canto da praça, tem maçã, uva, caqui, graviola, jabuticaba, mangaba, abacate. E eu vou passando e olhando as cores, os cheiros, as que caem e são pisadas. O sol penetra e se infiltra entre as bancas de madeira escura e retorcida, marcadas pelo tempo e seus raios iluminam chegando a acender tudo ali embaixo das lonas coloridas. Há o mormaço, o silêncio e a gritaria dos vendedores marcando seus espaços com a voz e jargões característicos. Os fregueses se abalroam, disputando a melhor mercadoria, desconfiando, conferindo, contando o dinheiro, fazendo cumprimentos e reforçando as amizades. E eu só acompanho o ritmo em passo de procissão, sem poder encarar ninguém, pois sou jovem e forte, mas vagabundo e bêbado, e não sei de onde venho. Passam cinco meninos em correria, pés no chão, descamisados, larapiando frutas até serem pegos. Levam uma refrega do dono da barraca, lá à frente: beliscos, puxões de orelha e, logo, recomeçam toda a brincadeira. Daqui a pouco, vão ajudar a desfazer as barracas, ganhar um trocado para aumentar a feira de casa, onde comem dezesseis pessoa. O dia de feira é assim, meio insolente, barulhento, festivo. Num dos recantos do pátio, zona da má fama, toca a velha vitrola um ritmo balançado, um côco de arrebentar, disputando com a barraca ao lado, muito limpa e recatada, onde pequenos e estridentes auto-falantes tocam uma música evangélica. A hora vai passando e amizades vão sendo feitas, cervejas e a garrafas de pinga recheada de coloridas raízes são abertas. À mesa, sardinha, miúdo de galinha, guisado, passarinha, codorna, ovos cozidos, espetinhos de carne de gato, caldo de feijão, caranguejo e sururu, mingau de cachorro e caju partido com sal... Tocam os

23

Os Morros, Os Rios, Os Mares

violeiros, entoam os repentistas em disputas fantásticas, cantando as mazelas do morro e dos amores e conquistas daquela gente. Sobe à mesa o poeta orgulhoso do seu dom, improvisando versos dignos que escorregam pelos cantos se sua boca, até que alguém lhe ampare a queda iminente. Outros só ouvem e acompanham o movimento, como é feito há vários e vários anos. Tem uma cadeira de balanço para o dono da barraca que ouve o silêncio do velho amigo de tez escura, fumando seu cachimbo quase acocorado num baixo tamborete, espantando as moscas com o chapéu de palha. Daqui a pouco, uma gargalhada, um desafio, uma lorota, palmas desencontradas. O atendente serve uma rodada gratuita, com tira-gosto e tudo..., e já tem um pirralho que leva o dia a ouvir a cantoria, a olhar os movimentos dos dedos do tocador escorregando nas cordas da viola. Sofrem todos, gemem os bêbados e fico eu a ver tudo acontecer ao sabor e aroma da embriaguês. A tarde chega sorrateira e todos ali terão para onde ir, uma cama onde deitar após um banho perfeito. Será hora de comemorarem os resultados do jogo de compra e venda, do jogo da feira. Alguns terão a sensação de terem, apenas, trocado mercadoria, outros chorarão os prejuízos, as perdas do coração mal correspondido, as dívidas não pagas..., e eu, que não tenho meu lugar, com quem ficar, quem me dê amor e me faça companhia. Estou doente e cambaleante, sem dinheiro, envergonhado e não consigo mudar de sina. As pessoas estão falando de mim – só podem estar -, pois olham-me de forma estranha. Os animais da feira são mais bem cuidados e limpos, e até têm para onde ir. Fico, agora, esperando que passe o efeito anestesiante que me manteve até aquela hora da tarde. Ao mesmo tempo, assolam-me o medo, a insegurança, a angústia pelo retorno à realidade. Estou quase dormindo, a ponto de cair da cadeira do bar vazio e já fechado. Sinto algo me tocar, me balançar, e perco-me no sonho maldito..., e sinto novamente o toque. Num esforço sobrevivente, abro os olhos já sabendo a cena que se repetirá, como vem acontecendo há muito tempo. São sete aninhos que tem minha filha, de banho tomado e enlaça-me o pescoço pedindo que a acompanhe até em casa. Pelo caminho, tropegamente, tento achar solução e mal compreendo por

24

Roberto Carlos Costa

que ela nada pergunta, apenas, conduzindo-me, passando na calçada da vizinhança, onde brincam outras crianças, e a vêem passar. Reluto, faço menção de voltar várias vezes – cacoete do vício, da perdição. Levo demasiado tempo tentando lembrar que dia é aquele. As ladeiras vão sendo revistas e ouço alguns cumprimentos e algumas risadas, mas vou passando... Há um forte som do coro das cigarras, enquanto a noite chega. Num instante, calam e, logo, recomeçam a marcar a entrada da noite em cima do morro. Aproximo-me de casa e desconheço os vizinhos, afago o cachorro - o primeiro a receber-me-, e sinto uma forte esperança de que a mulher virá ao meu encontro, com um abraço e me conduzirá até o quarto. Ali, eu teria café quente com bolo de milho, cigarro e fósforos, cheiro de lavanda e talco no ar, com ela embalando meu sono e meu sexo, limpando meu suor com um lenço úmido que refresque. Trocará minha roupa, deixará o quarto iluminado à luz de vela, das velas do oratório. Minha filha virá mostrar os desenhos que fez na escola e a foto da festinha onde dançou ciranda. Chego ao terraço e ainda acho possível receber o perdão que preciso, o carinho que careço para que possa recolocar-me num trilho que leve-me a lugar qualquer. Mas não aparece ninguém. Arrasto-me até o terraço atrás da casa, quase um alpendre, de onde avisto a cidade, lá embaixo. Deito-me na rede fumando meu último cigarro – a garrafa d’água gelada e copo no parapeito da janela. Vou dormir numa incrível solidão e não me importa, agora, o que está por vir, já que ela não me quer. Lá longe, reluz a cidade inteira, parecendo estar tomada por uma nuvem de pirilampos. Ouço um barulho de alguém aproximando-se, e é minha filha com alguns papéis na mão. E pergunta se pode mostrar-me algo que fez...

25

Os Morros, Os Rios, Os Mares

OS RIOS I

Não pode e não quer dormir

Ouço apenas as batidas das pequenas marolas na quilha da canoa que desliza as águas escuras do velho rio. Na popa, o rapaz maneja a vara que, ao tocar o leito, impulsiona o pequeno barco, para apenas duas pessoas. A água está muito próxima de mim e é cortada com dois deferentes compassos de velocidade. De um lado, seu tom ocre, do outro, se espelha com o reflexo do sol – ainda guarda algum brilho. Distraio-me vendo as margens sendo refletidas e, logo, o casario, até o céu e as nuvens, redesenhando uma realidade estranha que se apresenta furtivamente, ritimadamente, ganhando nitidez quando diminui o vento sobre a superfície. A cidade é exuberante emergindo de cada margem. Arranha-céus, pontes, árvores e arbustos que dividem espaço com os manguezais, em certos trechos. Navegando pelo rio, nota-se um silêncio renovador. Eventualmente, ouve-se o bater de asas de garças, ou, eternos bandos de andorinhas. Talvez, o estalido dos crustáceos nas margens, a queda dos jererés que despencam das pontes, o

26

Roberto Carlos Costa

cantarolar de algum pescador venha quebrar tal harmonia. Não interessa o quanto a cidade se agita, sofre e agoniza, talvez, tentando espremer o velho rio sinuoso e perene. Rio cantado por tantos poetas, navegado por tantos sofredores que o habitam, verdadeiramente. Importante é ainda estar ali e, mais adiante, após curvas infinitas, lambendo a cidade, suas entranhas e as dos que nela vivem. Recebe o lixo que vem guardando há décadas, armazenando em escuros recantos, por baixo dos remansos, nas grutas profundas do leito mãe. Enquanto navego, meu peito abre-se em perfeita comunhão com o que a natureza, ali, me presenteia: cheiro de rio, de lodo, do visgo da lama que chega a borbulhar. Agora, vejo exuberante, o manguezal que traz a sombra, alto e verde, galhos retorcidos, avermelhados, parecem esticar a margem com suas raízes soberbas. Por entre o emaranhado de galhos, vagueiam silenciosos os aratus de olhares vigilantes, no escuro espaço formado pela copa do mangue. Viramos um pouco em direção à outra margem, sem pressa, como deve ser a vida no rio..., sem urgências, correrias, atropelos. É lugar de descanso, a água é fresca todo tempo e vai sendo deixada para trás aos borbotões, formando redemoinhos que avisam o leito arenoso que, por cima, viaja o amor. Chegamos embaixo de outra ponte, enorme, colorida. O eco faz reverberar o estalido da água no concreto das colunas e o som das ostras e mariscos que, ali, se alojaram, bebendo e sendo banhados pela água vivificante. Entra e sai do ninho um passarinho que desconheço o nome, bem na concavidade da parede escurecida pelo tempo. Logo, a canoa passa e uma claridade imensa se apresenta, e agora, olhamos o sol de frente, querendo se pôr, escondendo sua aura escarlate, detrás do morro. Mergulho a mão na água, agora, de um tom violáceo e trago um pouco até meu rosto em brasa. Unto minhas faces e meus olhos lacrimejantes e a água tem um forte cheiro de noite e de vazante. Muda, assim, sua razão de ser, seu destino e dos que dele vivem e sobrevivem. O rio que precisa dormir um descanso profundo, em verdade, não pode e não quer parar. Vai permanecer indo e vindo, pulsando, recolhendo nas altas fontes a pura água e fazendo-a escorrer

27

Os Morros, Os Rios, Os Mares

por um longo caminho, até sua iminente comunhão com o mar maior e extremamente compreensivo. A noite chega e percebo o cansaço do jovem condutor que não diz palavra, taciturno em seu trabalho, mãos calejadas, olhar perdido nas estrelas que se apresentam no céu imenso. Pago o que pede e até compro o pequeno barco, e peço-lhe que me empurre para o meio do rio, pois desejo ficar até poder compreender o que sinto. Ele obedece e fica na margem a olhar o meu destino, até que o curso da água corrente apreende a canoa, dominando-a e vai conduzindo-me..., agora, deitado, a ver estrelas também, sem preocupar-me com o lugar de chegada. A brisa é constante e refresca trazendo o cheiro das margens, dos peixes e continuo a navegar descontroladamente, ao sabor da natureza, ouvindo, ao longe, o zumbido da grande cidade que tenta nos sufocar. A direção é a do mar, girando sem governo, com pequenos solavancos nos bancos de areia que começam a aparecer e que prendem, fiscalizam e depois, soltam-nos, a mim e a canoa, para que se possa seguir caminho. Vão passando as pontes indiferentes a mim e meu destino, repletas de transeuntes e vendedores, camelôs, pescadores, gente que vive das pontes... Agora, o rio é mais largo, o silêncio é maior e estou próximo de mim e de Deus. É hora de a cidade começar a dormir e ninguém verá a intimidade do rio com a noite estrelada. Preso num banco de areia no meio do rio de águas rasas da maré baixa, percebo apenas os estampidos dos pequenos entes viventes daquele lugar. É assim que me sinto nesse instante único da vida, pois não sei se me deixarão refazer esse percurso, achando que enlouqueço, descontrolo-me e, talvez o seja verdade – pouco me importa, agora. Estou quase dormindo. A novidade é a lua que reacende a água à minha volta, com seu brilho platinado, meu olhar vigilante, cheio, límpido, compreendido pelo rio, quase uma ordem, aviso de mudança..., verve da vida, da enchente que traz o pão e o vinho, que é da cor das águas dali, embriaga com a mesma força, ajuda a vida de todos..., sempre...

28

Roberto Carlos Costa

II

A casa

O lugar não é a cidade que se conhece, nem o campo com seus verdes e suas montanhas, e nem o mar com sua imensidão colorida, e também não é desses lugares que negamos um olhar, ou, que deixamos à míngua com seus entes a sofrer, como de praxe. É um lugar único, espaçoso, onde a vida é nova e desconhecida... Eles moram na maré, lá por trás, pelos fundos, nos arrabaldes, à margem. Não é uma casa, nem tapera, mocambo e nem casebre. Não é cabana nem barraco, ou, moquifo, ou qualquer coisa que o valha. É um teto, lar verdadeiro, lugar com dono e que tem vergonha, amor por seu lugar e dele cuida, como quem cuida de uma flor. É pequena a palafita feita de pedaços de caixote, chapas de zinco, plásticos coloridos e forros de madeira de compensado. Há um único vão perfurado por janelas e duas portas. São escassos os pertences, é úmido o chão de madeira que é acordado pela maré alta de todos os dias. Está lá, equilibrado pela Providência Divina, ano após ano, curtindo uma solidão estranha. Numerosa é a família com seis, sete, não se sabe quantos filhos..., vivos e que se foram rio afora. A amargura é curada com a maré que chega pelos braços do rio irrequieto, que enche e que seca, por mais que tentem dominá-lo. Ali, há vida, a despeito de qualquer coisa que a queira negar. O amanhecer vem se chegando, a brisa é amena e acende a salobra maré. Em volta da palafita, os bancos de areia grossa parecem

29

Os Morros, Os Rios, Os Mares

dunas de um deserto, verdadeiras montanhas. Enormes galhos de mangue, arrancados de alguma ribanceira pela força do rio zangado estão encravados na margem, mais adiante. Apertando-se o olhar, percebe-se a correria dos chiés pela superfície dos bancos lisos e perfurados. A água corre por caminhos estreitos que se formaram com a vazante e a vontade é de acordar e dar andamento à vida. Todos de pé com os primeiros raios de sol - a roupa é a mesma. Enquanto uns brincam com a carapaça de um enorme caranguejo, outros enroscam-se nas pernas da mãe que esquenta algo no fogão à lenha. O homem aguarda o refogado de mariscos, camarão e peixe engrossado na farinha, ou, no fubá de milho. O café começa a ferver tal como o sangue e o espírito daquela gente. O menor ainda mama e a mulher não lhe nega deliciosa seiva humana. Seu corpo se curva com o peso, já quase uma deformação, enquanto vigia a panela de barro ainda repleta de vida. Comem de cócoras já de olho na maré, em busca de informações sobre o que e onde pescar. Depende do cheiro, da força do vento, da lua e do instinto do pescador, caçador das marés. O homem e os dois filhos mais velhos, ainda garotos, manejam a canoa que guarda rede e tarrafa. Numa lata, espinhéis e parangolés para o que der e vier. Remam de um lado e de outro cortando a água gelada da madrugada, equilibrando-se no impossível. Os menores, de lata na mão, acompanham a mãe rumo à lama onde catam sururu e outros, maiores, adentram os mangues onde remexerão as raízes à caça de guaiamuns, caranguejos e aratus. Assim, passa o dia até bem perto da noite. Haverá tempo para brincadeiras, arengas infantis, banhos purificantes e o mergulho da mulher, que ensina às jovens filhas a arte do prazer, pois, é chegada a hora de conhecerem o amor..., e elas sonham como sonham todas as pessoas e todas as mulheres. A roupa é a mesma ou nenhuma. É hora de dormir com o som das águas, curtindo o cansaço que faz doer as juntas do corpo..., que seca ao vento. E ele sentado na varanda, sobre o rio, enquanto fuma um grande cigarro de fumo de corda. A pinga é sorvida aos poucos, sem pressa, contando-se as estrelas e os anos que vão passando... A mulher faz dormir a última criança. Tampou as panelas e coou um último café que quer dividir com seu homem. Pegou o pente

30

Roberto Carlos Costa

de espinha de peixe, que guarda desde criança, sentou-se ao lado dele e pôs-se a desembaraçar os cabelos negros e cintilantes, ocupando todo o espaço da imensa maré com seus movimentos. Não precisou tocar-lhe o corpo, nem menear um olhar faceiro. Apenas, ali ficou até sentir-se absolutamente possuída..., enquanto a lua parecia explodir seu brilho de chumbo e platina por sobre o rio incansável...

31

Os Morros, Os Rios, Os Mares

III

Sons da maré..., úmidas mulheres

Tal como a própria vida, o rio tem seus sons e suas cores e são como marcas que definem e significam. Em cada pedaço, recanto ou curva do imenso rio vê-se mudarem os ares, os estímulos. Predomina a calmaria e incalculável força controlada pela lua tão distante..., até ancho mar, como já bem disse um poeta. À noite, enquanto é total o silêncio, a cor é azul caneta, violeta que quer ser negra, um pesado e escuro risco no chão da cidade. Apenas a flor d’água recebe a visita das cores das luminárias das ruas, com seus tons laranja, brancos, avermelhados, o piscar dos neons e das incansáveis estrelas. Então, é uma grande festa a flor d’água do rio por essa hora, apesar do sereno que se arrasta no fundo rente ao leito silencioso, que esgueira-se, sorrateiro, como que esperando sua hora e vez. O tal silêncio, a cada instante, recebe o açoite de histéricas sirenes policiais, ou, apressadas ambulâncias em busca de vida ou de morte, conforme o destino quiser. Chega a madrugada e explode o mundo em volta. Detona-se a vida na cidade que margeia o velho rio, poluindo os ouvidos, o coração e todos os demais sentidos, num torpor alucinante e alienante que ajuda a mais cedo envelhecerem os homens. Agora, o rio é enchente em obediência à mãe natureza e, logo, será vazante a maré,

32

Roberto Carlos Costa

mudando os destinos, os desenhos das margens e o humor das famílias caçadoras dos mangues. E, antes que chegue o fim do dia e de alguns mundos viventes, tudo será enchente, novamente, alagado, renovar de amor e esperança que ainda não morreu. Por essa hora da manhã, o rio brilha como se fosse caldo de diamante, recebendo o calor dos primeiros raios do sol em fogo e que nos olha de frente, sem piedade. O som é do trânsito que acorda a cidade, mas também é do assobio dos pescadores, muitos, solitários seres, do saltar dos peixes em cardume, do cantarolar das lavadeiras que se aglomeram por entre as pedras, lá aonde o rio ainda não é cidade grande. Levarão quase toda manhã no trato do enxoval colorido e resistente, enquanto as cantigas vão enchendo aquelas paragens, distraindo, inclusive, o rio e seus peixes. São todas de uma lamúria consequente, aguda, que só pode ser cantada na beira do rio, pois, apenas ele sabe do trata aquela emoção. Então, o sol está a pino e torna cálida a manhã que se vai, acompanhada pelas sombras que não a perdem de vista. Tudo está aceso e aquecido, e caminha numa velocidade descontrolada, sem que nada se possa fazer, quando nascerão e morrerão homens e mulheres e a gente nem sabe aonde. O som é extremamente grave, indescritível em partitura. É quase um impacto crônico que transpassa, avassala nossos sentidos. Parece tomar conta de todos os lugares, acelerando por demais o ritmo dos corações que latejam a dor do dia insano. A cor é do meio dia. É branco, brilhante..., com pequenos raios de púrpura cor que escorrem por entre as mãos pedintes... É chegada a tarde e o sol busca, por alguns instantes, seu tom amarelo âmbar que rasga as nuvens violáceas do poente. Tudo isso é visto à flor d‘água, num reflexo que pode ser trazido junto ao peito com as mãos em concha. O rio foi e voltou como manda a lei da maré. Começam a retornar as famílias ribeirinhas orgulhosas do resultado de um dia de trabalho, com marcas na pele impingidas pelo sol escaldante, mas que não fez esmorecer ninguém por ali. O crepúsculo logo chega avisando o fim da tarde, acendendo as primeiras estrelas, as luzes da cidade. Começa o revolutear dos vaga-lumes que se enamoram de

33

Os Morros, Os Rios, Os Mares

velas e lampiões solitários nas palafitas, lá dentro do mangue. Vão chegando as canoas, baiteiras e pescadores com a feira, remédios, cachaça e um rádio novo. Trazem o sal, açúcar e tudo mais que completa a caldeirada. O som é de descanso e de prazer por uma vida digna, que poucos conhecem. Antes que a noite escura se estabeleça, haverá prestação de contas a Deus e à consciência, numa relação próxima e suave, sem atropelos, jogo de culpas ou maledicências, quando os homens serão amantes e as mulheres raios de lua, que se pode abraçar, beijar, e que têm cheiro, suor, movimento, rouco gemido que leva quase toda a noite para silenciar. Úmidas mulheres que seguram a vida na mão, dominando os limites, adorando seus homens, companheiros, que amam em silêncio, igual ao silêncio do rio, que fazem de cama, de leito de amor, por toda uma vida... Ademais, restam as cores e os sons das chuvas torrenciais que lavam os morros e trazem a tenra seiva daquele povo para dentro do rio. E tudo isso tem um som. Também, o canto das brancas garças e lavandeiras que agitam os ares. E, ainda, o estampido maravilhoso do choro infantil dos filhos da maré, nascidos dentro d’água, fazendo ferver de alegria os corações de mães incansáveis no amor pela vida... Por fim, o verdadeiro estrondo e a incandescência provocados pelo silêncio secular do velho e sinuoso rio, em sua perene e vagarosa vigília. Não há como fazê-lo parar...

34

Roberto Carlos Costa

IV

Ressaca que cura

Fiz um movimento desencontrado, quebrei os primeiros gravetos e foram chutadas as latas de conserva vazias amontoadas por toda parte. Foi quando vi que não estava sozinho e que o rio não era só meu. Naquele instante, saiu detrás do muro, por baixo da ponte, um velho perfeito e miserável, daqueles que já não têm pupilas nos olhos, maltrapilho e sujo, no entanto, esbanjando dignidade. Ele fitou-me o olhar, compreendendo no mesmo instante que eu não tinha para onde ir. Conduziu-me para debaixo da ponte enorme, onde se ouvia um eco de vida profundo e, lá, dormitava um pequeno cão magro e descolorido – um olho aberto outro fechado -, parecia guardar uma infinidade de molambos, trecos e coisas que, assim, ali, pareciam quadros destruídos. Jamais abandonam seu dono. Depois de algum tempo, parecia que eu havia dormido. Recostado na parede na base da ponte, a ouvir o rio correr quase em desespero, esvaindo-se e a ver seus filhos..., sim, filhos do rio, urdirem uma festa matinal, pois que o dia ia se chegando, sorrateiro... Eu lembro bem, apenas, do cheiro forte de sal com água riachenta, lama salgada e pisada, mato manguezado, cheiro dos panos, dos alforjes do homem, da fumaça da fogueira um tanto anêmica, mas ainda faiscante – cigarro de palha, suor entranhado. O rio me acalmou um pouco, igual ao meu peito que mandava-me para casa, insistentemente, como que devolvendo-me a um lugar

35

Os Morros, Os Rios, Os Mares

que não é meu. O difícil era saber o que estava perto ou longe, o que era medo ou fantasia, daquelas que fazem parar e palpitar o coração ao mesmo tempo. Sibilava um vento brando enquanto me era dado contemplar o serpentear do velho rio. Ou seria o que eu precisava ver, até sentir-me gente, e não, um mero naco da terra onde pisava? Sim, porque, ali, a terra era uma beira de rio, onde não há o que se ver. É margem errada, pura margem do que poderia ser a vida... E o que mais seria? Perguntam os que comem. Ah, se eu pudesse saber o que se passa com esse mundo e com as cabeças agonizantes de tantos! Sim, porque, simplesmente, agonizam... Não importava mais. Já havia perdido o paletó com carteira de documentos e tudo mais. Até já perdera a vergonha de voltar para casa novamente e não sei por quê. E não adianta alguém tentar dizer-me que estive ébrio, fora da realidade, doente e mesmo dependente, pois, todos o estão, irremediavelmente, eu sinto. Em dado momento fechei os olhos e apertei-os várias vezes. Escorei-me bem apoiado no paredão do pé da ponte – o cheiro era de maré, viva e reinante. Havia um barulho e um silêncio que se completavam enquanto eu tentava equilibrar-me ereto – era um blefe... Algo se mexeu num recanto daquele espaço subterrâneo, afastando papelões e folhas de jornal. A pequena criança descobria, assim, o resto da família e vi um ninho de mãe e seis crianças incríveis; e outra que estava por vir naquela barriga insana, escrava do sexo da velha mulher. Fui caindo aos poucos, destruído e sem pensamento, sobrando a paisagem, pra mim indecifrável, de um infindável veio d’água semelhante aos meus olhos, sobre os quais, perdera o controle. Entreguei-me à alcoólica fraqueza que anestesiava, sentindo embalarem-me o sono. Recobriam-me com jornais, e fui cedendo, até ouvir o borbulhar da margem do rio, verdadeiro acalanto. Após um tempo que não desejo saber qual foi, vi-me acordando totalmente amarrotado, garganta presa de medo e vergonha. Olhei em volta e, agora, o som era de carros que se apressavam num ritmo conhecido. Vasculhei o ambiente em busca de meus pertences, apavorado com o adiantado da hora e com a sensação de perda de meus documentos. Resignei-me e já ia partindo, quando chegou a mim o menor dos garotos devolvendo-me o paletó, carteira e tudo mais.

36

Roberto Carlos Costa

Seus olhos brilhavam intensamente, tal qual um par de águas marinhas que ornam o firmamento, e, num gesto calmo apontou para a pequena fogueira onde era aquecido o último pó de café e naco de tenro pão daquela família. Pergunto-me, até hoje, com que cara retornei para casa, para junto dos meus?...

37

Os Morros, Os Rios, Os Mares

V

Toada da salvação

Era fim da tarde de um dia de trabalho qualquer. Eu saíra de uma agência bancária após pagar por vários pecados. Já não precisava retornar ao escritório – não daria mais tempo mesmo. O centro da cidade formigava, o trânsito era frenético com sua natural histeria. Os luminosos começavam a ser acesos, as placas de orientação nos terminais de ônibus e o lixo nas beiras de calçada pareciam acusar todos ali. O engraxate já ofegava apesar do orgulho pela profissão, ambulantes disputavam os clientes apressados e descrentes, as maçãs e peras eram regadas por mãos urgentes e já não tinha voz o velho poeta que, desde o início da manhã, recitava a própria vida, num canto desesperado. Os raios de sol chegavam de viés, quase na horizontal como lâminas alaranjadas, recortando a paisagem dos altos prédios com tons claros e escuros, outras sombras e também reflexos. O céu esperava a noite e enquanto eu não atravessasse aquele miolo de pedras e espinhos, o ar era como um sopro quente e sufocante. Tudo parecia urgente. O homem que aparentava ser próspero folgava o nó da gravata, libertando o pescoço que tentava enforcar desde que acordara. A senhora cheia de pacotes e sacolas gritava com os três pequenos garotos que ameaçavam se soltar de sua saia e atravessar a larga avenida de qualquer jeito. Na longa fila de ônibus, em cada uma delas, pastores renitentes berravam trechos da Bíblia que mal conheciam. Corriam, como loucas, crianças com pequenos furtos

38

Roberto Carlos Costa

nas mãos, pedintes iam recolhendo-se satisfeitos, o velho guarda de trânsito toava os últimos apitos e o ônibus, já parado, esquentava o motor com longas rajadas de aceleração. Cheguei, finalmente, à ponte, atordoado e descrente da paz possível. Ali, corria uma leve brisa e a correnteza do rio, lá embaixo, transportou-me para outro estado de espírito, estranhamente. Agora, o mundo em volta estava sonâmbulo, a super lentidão dos homens e mulheres mudava o ritmo da vida e era possível ver cada olhar, seus semblantes. Um bando de pombos planava suavemente entre as janelas dos edifícios que pareciam inclinar-se. Dois velhinhos sentados em pequenos caixotes de madeira, absolutamente resignados, jogavam a milésima partida de damas. Um jovem casal alheio ao passa-passa de gente, entregava-se a um vagaroso e doce beijo, que parecia não ter fim. No sentido contrário, subia a ponte um velho violeiro entoando um vigoroso repente em busca de algum reconhecimento. Vinha andando lentamente, esperando a noite e o acalanto. O dia misturava-se com a noite deixando surgirem os clarões das luzes de Deus e dos homens. Lembro que algo me chamava para perto da margem do rio. De cima da ponte, meu olhar ia e voltava para aquele senhor, lá embaixo, já dentro da lama na margem seca, a movimentar os braços num ato de desespero e aconselhamento, e tudo continuava estranhamente lento. Eu procurava a quem ele se dirigia, sem nada ver. Fui descendo até chegar ao beiral da margem, próximo a ele. Percebi que, dali, a cidade parecia crescer muito, distanciando-se de mim. Ele continuava a chamar alguém com largos movimentos de fortes braços que possuía, todo seu corpo explodia um gesto nítido de perdão e súplica. Sua voz, no entanto, era limpa e de belo timbre, entoando palavras que pareciam vestir um agasalho aquecido em quem já morre de frio. Ninguém mais notava o que eu via, seguiam continuando suas vidas e eu fui aproximando-me cada vez mais. Já quase podia tocá-lo e ele continuava a pedir com as mãos postas num gestual de clemência e paixão verdadeiras. Seus cabelos eram de um leve grisalho, a pele do pescoço, atrás, mostrava rugas de quase dois mil anos de idade, mas, a voz..., ah, aquela voz e tudo o mais que era possível ouvir...

39

Os Morros, Os Rios, Os Mares

Então, pude notar que do fundo da água escura do rio era-nos possível, a mim e a ele, ver as páginas abertas do santo livro, que pequenos cardumes de peixes reluzentes folheavam, lentamente. Começaram a aparecer para mim, também, como se saídos do nada, homens e mulheres desesperados. Vinham da outra margem, já quase repleta deles e por trás de nós, aos montes, outros subiam o parapeito da ponte e alguns que já se achavam afundados até o pescoço. Era uma grande multidão que buscava no velho rio o remédio final, antigos objetos ali afundados, explicação para seus infortúnios, amores perdidos, descanso para uma saudade doída dos que se foram, alento para a insuportável dor de viver. Ele, então, numa espécie de último recurso, pediu para que todos olhassem aquilo que se aproximava trazido pela correnteza sinuosa do rio. Tudo parecia ter parado. Via-se, apenas, o movimento de uma triste morbidez nos olhares exaustos, a única coisa a brilhar naqueles corpos. Iluminada pelas luzes da noite que chegava, trazendo, também, um tom azul de luz própria que saía de cada olhar, uma jovem família ocupava a pequena canoa, que parecia nem tocar a água. Em pé, altivo e trazendo um místico riso no semblante, um homem regulava com o remo o destino da embarcação. Estava desnudo da cintura para cima, mostrando um corpo e uma mente sãos. No centro da canoa, em meio a artefatos de pesca e juncos floridos, sentava uma bela jovem de cabelos negros e sedosos, também de busto desnudo, a mostrar enormes seios cor de bronze. Em um deles, aninhado em seu colo, um bebê sadio que sugava-lhe a pura seiva, esperava a hora de deitar e dormir toda a noite que vinha chegando, enquanto a mão daquela mãe lutadora aqueceria suas costas. A pequena embarcação passou lentamente e se foi, até sumir na curva adiante. Então foram, aos poucos, retornando de onde haviam ido, todas aquelas pessoas, já, agora, fazendo brilhar largos sorrisos. Algumas, banhavam-se na água ainda morna e outras untavam-se na lama negra das margens. O homem já não mexia seus braços, a não ser para um leve aceno e, aos poucos, ia refazendo-se do grande esforço desprendido. Levou um pouco de água ao rosto enxaguando os olhos cheios de um lacrimejar diamantado, e, como se percebendo que eu precisava falar-

40

Roberto Carlos Costa

lhe, voltou-se, dirigindo-me afetuoso olhar. Quando pensei em perguntar-lhe... Apontou para cima da ponte, para o velho violeiro sentado no parapeito, entoando quase um berro altaneiro, ajudado por um coro de vozes arredondadas de crianças sem lar, que surgiam por todos os lados, nas poucas árvores, no alto dos prédios, por todas as ruas e becos. Outras bailando seus corpos lindos que pediam um lugar para viver. O homem já não estava ali. Havia, apenas, um grande pássaro branco que voava sobre nós, lentamente e em silêncio... Naquele dia, lembro de ter chegado em casa faminto, ávido por abraçar os meus, à espera do dia intenso que deveria ser o amanhã. E isso não me tem faltado...

41

Os Morros, Os Rios, Os Mares

VI

As margens

O condutor não quis perguntar onde eu desejava ir. Para que saber isso se nem mesmo eu o saberia? O motor da embarcação já funcionava há algum tempo e, foi só eu apoiar-me na saliente tampa da cuba frigorífica na proa do barco e começamos a navegar. A maré estava calma, ajudada pela brisa amena, quase um terral, pai e senhor das calmarias... Primeiro à ré e, logo em seguida empreendeu-se aquela viagem margeando o caudaloso rio de escuras águas. O pequeno cais que deixamos para trás assumiu um tom amarelado de ferrugem, com sua velha garagem, barraco de chapas de zinco despintadas pelo tempo, pedaços de embarcações amontoadas de um lado, madeirame e motores partidos de outro. De longe, vemos que ocupa uma esquina e, na outra, uma pequena barraquinha com ares de botequim, em cuja calçada jogam cartas três envelhecidos pescadores. A lenta marcha do motor faz relaxar e o cheiro ativo da maré toma conta do ar. Cruzamos com dois pequenos botes ocupados com dois pescadores que manejam uma comprida rede de nylon e seus semblantes são sérios. Precisam encontrar o camarão que haverão de iscar na pesca de amanhã, em altíssimo mar. Penso em suas mulheres e filhos que ocupam, talvez, uma daquelas taperas coloridas que vejo margeando ao longo do rio. O casario na outra margem é de numerosas unidades escoradas umas nas outras, algumas com seus batentes submersos na água. O colorido é intenso, poucas sem cor

42

Roberto Carlos Costa

nenhuma, antenas para o céu, quintais repletos de lerões cheios de verduras e hortaliças..., saudades de seus pais e maridos pescadores. Outros são mecânicos, uns ambulantes, mascates, camelôs, cobradores de ônibus. As mulheres nas janelas, esperando e preparando o alimento, o corpo, o desejo, o aceno quando da partida dos homens, nas madrugadas. Depois, as rezas, sonhos, receios também, sim, porque muitos não voltam. Choram quase todos os dias, mas, não o dia todo, pois, trazem no peito as lembranças de toda uma vida, da cama e do choro dos velhos maridos, de grossas mãos, mas, de leves carícias... A margem me passa como um filme. Meu coração entra em sintonia com o compasso do motor do barco – um som forte e surdo, ritmado. Vejo uma capelinha que parece inativa – não sei -; uma sequência de fundos de galpões quase aos pedaços, o quintal de uma fábrica repleto de entulho, cano de escoamento residual aberto - o mato parece tomar conta. Há um caminhão parcialmente mergulhado adiante e cresce o barranco por onde é despejado grande volume de lixo, colorindo, reluzindo seu conteúdo, quase uma tela abstracionista. Vem a noite e permanece o terral. Outro grupo de casas e uma delas é uma espécie de mercearia com escadas de acesso. Nessa margem, o rio forma uma pequena enseada onde se banham alguns garotos. Adiante, vejo uma bifurcação e escolhemos pela esquerda. Concordo com o itinerário do condutor. O rio se estreita e o leito é raso em alguns pontos. Seguimos em zigue-zague, muito lentamente, enquanto o sereno muda o contorno das sombras. Aproximamo-nos de um denso manguezal, quando levanta, em revoada, um bando de pequenos pássaros que desconheço. Embaixo de uma das copas, uma jovem cavalga seu companheiro, pouco ligando para o que passa no rio. Fazem da planta cama, dos grossos galhos apoio, das retorcidas raízes colchão, enquanto não vem a enchente que molhará tudo por ali, acordando outras vidas, lavando os recantos de amor e paixão. Agora, são poucas as casas. Vemos pequenos cercados guardando algumas rezes e vai crescendo a mata verde do mangue.

43

Os Morros, Os Rios, Os Mares

Lá à frente, vemos o rio agitado e já é quase noite. Destaca-se uma casa de tamanho razoável, de madeira escura e tem lampiões acesos pelo terraço que, praticamente, entra no rio. À medida que nos aproximamos, vamos identificando os corpos nus de mulheres exuberantes que se banham, calmamente. São morenas de corpos perfeitos, molhados e, assim, refletem a própria lua que já começa sua viagem de luz e sedução. Três delas estão reunidas a um canto, trazendo no colo, bebês que dividem o calor da água morna e esperneiam rindo intensamente de alegria, seguras pelas mãos e fortes braços de carinhosas mães. Do outro lado da margem, outros grupos brincam fazendo alguma algazarra. Uma criança está boiando, absolutamente relaxada, contemplando o céu não todo escurecido e observa seu corpo desnudo e ávido – semblante de alegria, cabelos espalhados na água... Adiante, algo chama atenção por seu brilho. É quase um clarão que se forma pela luz emanada por aquele corpo. Não tem mais que dezesseis anos e penteia os cabelos longos e negros, como seus olhos. Está em pé numa pedra na beira do rio. Perece estar rindo ou quase e seu ar é de contentamento. Os lábios carnudos estão úmidos, o que faz brilhar ainda mais seu vermelho vivo. O barco para em frente a ela que não nos dá atenção. Suas pernas são perfeitas, delicados são os pés e dedos e os contornos da pélvis e do ventre perecem desenhados pelo pensamento. Amarrou os cabelos e pegou um pequeno cântaro cor de vinho e pôs-se a banhar seu rosto, as costas e a água perecia não escorrer, ou, se o fazia, era lentamente, contrariando a gravidade, refrescando a pele morena e aveludada. Agora, untou-se de óleo, hidratando e suavizando ainda mais seus contornos, massageando os tenros seios que conferiam equilíbrio perfeito ao corpo mais que perfeito. Não havia pressa naquele banho. Banho de rio, de maré, de lua, de sonho dos jovens que experimentam, que arriscam e conseguem... Banho de amor, pois, agora, chegava a gemer enquanto suas mãos encontravam todos os lugares e mordia, levemente, os lábios. Seu olhar, agora, era lânguido e suplicante e sua luz transformou-se numa fogueira azulada, com labaredas que mordiam o ar, lentamente. Voltou a lavar-se com água abundante, num gestual

44

Roberto Carlos Costa

enlouquecedor e, por um momento, pereceu-me ter-se transformado numa cascata de diamantes e pérolas reluzentes. Então, seus pés tomaram forma de raízes, flores campestres de várias cores cobriram a pedra, seu corpo contorcia-se de prazer e era tomado por uma hera que ia dando lugar a cachos de uvas vermelhas e doces... Logo, voltou à luz de antes, enquanto vi em seus olhos a verdadeira expressão humana do prazer. Estendeu-me sua mão delicada convicta de que eu a seguiria. Obedeci, procurando não olhar para trás e fomos seguindo pelo rio por um caminho de juncos. Havia outra bifurcação e tomamos a via mais estreita que entrava numa espécie de mata de bambus. A luz que emanava de seu corpo acendia pequenos lampiões no alto das copas das árvores e chegavam numerosos vaga-lumes, dando um tom afogueado ao ambiente. A água, ali, era totalmente cristalina e o pedregulho do leito estava iluminado por peixes coloridos e brilhantes. Aproximamo-nos de uma fonte natural em meio a um conjunto de rochas cobertas por um lodo verde de musgo macio. A água borbulhava transbordando e formando pequenos córregos que se transformavam em veios de ouro e prata derretidos. Orquídeas e ramos de flores delicadas e coloridas ornavam aquele recanto. Por uma abertura na copa das árvores em volta, o céu parecia um caminho tranquilo para um lugar que se quer chegar... A jovem morena ofegava, com braços suplicantes para mim, deitada no leito de pedra orvalhada. E, agora, eu também era tão jovem quanto ela, até que nos permitimos conhecer um ao outro, um corpo único, úmido, fogo, saliva..., amor total... Vi-me flutuando na água próximo ao local onde paramos o barco. O condutor, sem dizer palavra, jogou uma corda grossa por onde fui içado a bordo. Ofereceu-me uma garrafa de whisky e empreendeu o caminho de volta. Era alta noite e, a despeito das luzes do casario das margens, preferi contemplar o céu estrelado e a lua cheia que ia ficando para trás..., e parecia sorrir de alegria, mordendo delicadamente seus lábios tenros e vermelhos...

45

Os Morros, Os Rios, Os Mares

OS MARES I

Teu nome é saudade

Que saudades dos mares de minha vida! Já disse outro poeta: “Que saudades da aurora de minha vida...” Foram tantos mares e ainda os são, um tanto diferentes é verdade, mas, lavam os mundos que vi e os que não pude ver, que me chegam com as marés, suas enchentes e vazantes. Mares de cores que talvez não consiga contar, águas cristais que estouraram em meu peito, o ar de salinidade que arde alvejante, nos olhos, no corpo aquecido, na alma. Ando pela praia, chutando a branca espuma que chega a procurar meus pés, insistência da maré guiada pela lua que por cima de mim passou, e eu a vi, por que ando desde ontem ansioso com sua chegada, cheia e reluzente. Logo será sol - a luz maior de um novo dia. Já começa a afoguear o horizonte de um mar escurecido... Ah, aurora, se fosses mulher e se fosses minha... Mar escuro, lençol de um roxo leve que parece subir lá adiante as paredes do firmamento, e esse é alaranjado, turquesa, branco e violáceo. Vejo nuvens claras, algumas pesadas, casas dos anjos e

46

Roberto Carlos Costa

fadas, reduto das almas de belas sereias que se esvaem com a chegada do sol intenso. O vento é terral que faz a água espelhar. É leve o movimento de ondas suaves que parecem massagear o leito e os corais submersos. Imerso estou eu num mar de coisas e coisas que não têm fim. Que saudades das madrugadas que passei no mar! Ainda tão menino, com direito a todos os sonhos possíveis e impossíveis, adoçados pela água de cacimba em banhos intermináveis. E, logo, voltava à praia a ver o retorno das jangadas de velas cansadas que ganhavam o barranco de areia com a ajuda da última onda da noite e da viagem. Pescadores, samburás, facas peixeiras, cordas, varas retorcidas, parangolés, espinhéis, cantil com pouca aguardente, coloridos peixes, crustáceos e enormes caracóis, que eu colava ao ouvido para escutar a maré... Logo, chegava outra jangada e mais outra, outra e eles, homens do mar, abraçavam-se disputando o maior pescado, dividiam o resto da bebida, lançavam um último olhar ao horizonte, incrédulos de terem vindo de tão longe, limpos pela convivência com tão santo mar. Os pequenos garotos, filhos daquela boa gente da colônia observavam os que chegavam e os que preparavam a partida, na próxima vazante, já aprendendo o manejo da embarcação, da vela, dos apetrechos, dos ritmos, sons, das correntes e segredos... E as mães, mulheres intensas que mostram uma saúde de ferro, mas, de corações vermelhos e quentes, que batem marcando um ritmo próprio de quem vive do mar, de quem tem por quem esperar, por quem orar, por quem chorar de saudade, convictas que seus homens retornarão, ávidos e sedentos por suas morenas de coloridas vestes e pés no chão. A palhoça espera-os com colchões de capim, mantas de algodão, água de quartinha, cigarro de palha, café forte, paçoca de milho com charque e ensopado de siri no coco...; afagos, luz de candeia, santos talhados no coco seco e a certeza de poder voltar ao mar. Saudade daquela infância e daquele mar, que ainda me acompanham, quase uma dádiva divina. Lembranças que são trazidas pelo esfolhear do coqueiral, que me escuta as orações, praia infinita de traço sinuoso, sargaços macios emprestando suas cores únicas, até que

47

Os Morros, Os Rios, Os Mares

chego à foz imensa. Ah..., encontro de rio e mar, que mais pode ser tão rico? O que dizes um ao outro neste abraço apertado de amigos inseparáveis? E meu pensamento era adulto e hoje é criança. Aquela aurora parece um filme que me fazem assistir e, quando criança, sonhei com as partes boas, com o aroma das flores, com o amor de todos os meus que aqui estão e os que já se foram. Meu sofrimento é fruto do que já vivi, meu corpo cambaleia pela praia, mas parece restar-me forças para seguir, pois tenho comigo tantas lembranças... A brisa já arrepia a água espelhada que, agora, reluz com o sol aceso. Brilha ainda mais a espuma que me lava logo cedo, balançam sobre a água os botes ancorados, quase um bailado, voam gaivotas solitárias, escondem-se marias-farinhas, canta a areia branca e fina sob meus pés, entoa o velho pescador sua gaita, acalmando a maré, suavizando o coração do mar que o espera – é quase chegada a hora da saudade...

48

Roberto Carlos Costa

II

O velho e a foz

Havia, de um lado, um mar de águas ricas da foz que alimenta a imensidão azul. De outro, verde mar formado pelo coqueiral que até perdia-se de vista. A não ser na praia, todo o chão era sombreado pelas numerosas copas de coqueiros esguios e balançantes, repletos de tenra fruta com sua água doce e pura. Ao ventar, as palhas entrelaçadas entoavam um barulho intenso, perene, recortado apenas pelo estrondo das ondas à beira mar. Tudo parecia voar, dos cabelos ao capim rasteiro e até o mais longínquo pensamento. Em conjunto, a folhagem, lá em cima, queria indicar uma direção a seguir e todo o mar de coqueiros se dirigia para tal lugar, envergando seus troncos, chegando a gemerem. Eventualmente, dava-se de cara com tiradores de coco, macaqueando os troncos, enquanto entoavam canções que pouco conhecemos. Maiores ouvidos lhes davam os burricos que, atrelados às carroças, aguardavam o sinal de um estalo para conduzirem a colheita. Muito de tudo isso está mudado. A ponte ali perto, antes, de troncos de coqueiro, já permite o tráfego de gente apressada da cidade. No entanto, ainda servem de tradicional mirante para quem quer ver o mar ou o rio que se envereda pelo manguezal. Também, se presta a parapeito aos pescadores de linha, com jererés, tarrafas e caniços. Pescam para brincar e para comer, um após outro, puxando reluzentes peixes, azulados siris, aos risos, trabalho de brincadeira que faz passar o tempo.

49

Os Morros, Os Rios, Os Mares

A foz é imensa, recebendo o mar aos poucos na enchente e beijando-lhe o ventre na vazante, lá, onde estão os tenros e carnudos lábios do rio e do mar, onde perfeitamente abraçam-se como grandes amigos, pais e filhos, amantes completos. O leito levanta-se ondulado contendo o ímpeto das águas. Formam-se, então, sinuosos canais que se movimentam, sorrateiramente, formando pequenos bancos de branca areia, alguns chegando à maturidade, enquanto dunas, que guardam o amor de corpos enamorados. À noite, a sedutora lua que, se for cheia ou quase, sua luz dá um tom aveludado que ajuda a acalmar a maré. Chega-se a ouvir o correr da corrente que resvala nos corais, o espumar de pequenas marolas que acordam os chiés e lavam os mangues. É quando escuta-se o debater-se de cardumes inteiros que brigam pela vida ou pela morte, ali, por aquelas águas. Então, é verdade que passou muito o tempo e as coisas do mar ainda ali estão, apesar do viver frenético das pessoas de hoje. Ganhando-se a praia, no alto do barranco, algumas luzes lutam com a brisa cortante, iluminando as caiçaras dos velhos donos daquela enseada, suas jangadas escoradas umas nas outras, redes estendidas e alguém a cofiar-lhes a trama com uma agulha de espinha de peixe. São várias caiçaras guardando os pertences e engenhos de cada representante da colônia. Os barracos, esses já são de taipa e argila, cobertos com palhas de coqueiro secas, invariavelmente lindas e charmosas. O fogão à lenha parece incansável gastando a madeira abundante por aquelas praias. Cercados feitos de ripas guardam a cria de galinhas de capoeira, que não deixam quietos os quintais. O cheiro de tudo em volta é de terreiro, de terra batida, como dizem os daqui. O pomar é de goiabeiras, pés de araçá, cajueiros, uma ou outra mangueira, melão, melancia, maxixe, coentro e macaxeira, feijão de corda, inhame e pimenteiras. A água é de cacimba, salobra e deliciosa, para o banho e matar a sede de quem vier pedir-lhes um pouco. A comida é farta: peixes, camarões, lagostas, crustáceos, polvos, sururu, mariscos, que fazem fritos, na água e sal, ao azeite de dendê, ao coco, na moqueca. Peixes e camarões que comem crus, com ótima aguardente, enquanto rodam as donzelas num coco desenfreado, noite a dentro. Tocam gaita, pandeiro e viola, batem nas palmas das mãos e

50

Roberto Carlos Costa

com o peso dos pés; o arranjo vem do barulho das ondas quebrando no ritmo certo do amor. Preto Velho, chefe da colônia, já tem noventa e tantos anos, como se diz por ali. Seu chapéu chamuscado pelo tempo é mais velho do que ele, o cachimbo já faz parte de sua mão. A roupa é branca de grosso tecido de algodão, lembrando uma estopa, mas, absolutamente limpa e asseada, por cuidados da mulher e por que tem que ser assim. Já não consegue dançar. Foi um grande condutor de fêmeas durante noites inteiras, ensinando, corrigindo, deixando passar a embriaguês, marcando passos que só ele sabia enfeitar..., e eram longas as gargalhadas, de braços abertos ao luar. A mulher que ficou é toda sorriso e denodo para com ele, cuidando da casa e da colônia. Fantástica cozinheira, rezadeira, cantadeira de ciranda e de coco de roda. Costura para os seus e para fora e ainda é parteira das mulheres dali e de outras da comunidade. Seria de si própria se a natureza a permitisse; sabe apaziguar, acalentar, fazer dormir o choro de sobrinhos e netos. Foi e é mulher para tudo e de um só; foi bela morena que, nua, deixava-se banhar pela água morna da madrugada e pelo choro do seu preto – amor eterno, terno amor... É domingo – final da tarde. Já não se tem lua cheia e nem minguante, a brisa é incerta e quente, a maré não sabe se enche ou se continua a secar. A ponte está vazia e passam apenas os vultos apressados dos automóveis. Amanhã é dia de pesca, o rancho está pronto: charque, farinha, óleo, pinga, café, açúcar, fubá de milho, barra de doce, fósforos, fumo de rolo e toda a tralha para a pesca e para condução da jangada. Preto velho está sozinho sentado na ponta do arrecife de coral, olhar preso no horizonte. Aproximo-me com cuidado, sem querer causar incômodo e vejo-o a chorar com força, perdendo-se em lágrimas que parecem fios de ouro. Seu rosto enrugado e contraído não consegue esconder o profundo sofrimento. Os grandes olhos que, antes, brilhavam como as espumas das ondas de alto mar, agora, estão como mortos, pois, mortificada é sua expressão, apertado está seu peito - sabem e sentem todos dali. Sento-me ao seu lado e pergunto se posso ajudar... Nega-me o olhar e entoa leve canção de saudade da sereia que há muito o abandonou, sem explicar, sem

51

Os Morros, Os Rios, Os Mares

dizer para onde iria, ganhando o rumo daquele horizonte, num fim de tarde como aquele. Perscruto o mesmo mar e nada vejo, a não ser, lá, muito distante, uma aguda voz melodiosa, entrecortada por femininos soluços, mas que apenas faz doer o coração dele, por certo e, agora, o meu também...

52

Roberto Carlos Costa

III

Silêncios do mar e do tempo

Saímos em direção ao mar aberto e esverdeado. Eu e meu amor, a consciência, cansaço, em busca de liberdade possível, à procura de novos ares e novos beijos, velhos e quentes abraços, afagos. Queríamos paz, espaço, falar sem sermos ouvidos, mudanças de cores, hábitos, paragens. Fomos o mais longe possível, onde as ondas são verdadeiras montanhas, imprevisíveis, absolutas. O barco pequeno precisou pedir permissão ao velho mar que nos acolhia e ajudamos entregando-lhe flores, acariciando-lhe a pele, - sim, o mar tem uma pele cristalina -, e assim, mudou um pouco para nós o mundo que costumávamos ver. Passou parte do tempo que tínhamos e todas as palavras foram ditas. Ficamos um tanto indiferentes um ao outro, mas, logo, uma marola nos colocou abraçados, molhados, suados de água e amor. A água assumia, à medida que avançávamos mar a dentro, um tom azul anil e conseguimos ver os feixes de raios de sol encravarem-se no dorso daquele mar, aprofundando sua luz em busca do leito distante. Ora, se nem mesmo o sol conseguia chegar aonde queria, imagine-se... O silêncio do mar é diferente e é preciso nascer ali para suportar seus efeitos. Tudo é imenso, condensado, profundo, até onde nem podemos imaginar suas formas. Quem quebra o silêncio é o vento que vai e que vem, com mais ou menos paciência, perseguindo algo na superfície das ondas, ou, procurando brecha para entrar no mar. A

53

Os Morros, Os Rios, Os Mares

água também reclama um pouco a presença de quilhas cortantes que ajudam as embarcações a singrar na superfície e, então, fustiga-lhes os cascos, as beiradas, aplicando rápidas palmadas que fazem algum barulho. Predomina o silêncio das ondas que, ao perceberem nossa presença, reclamam explodindo suas cristas e é a espuma quem fala num reclamo, que vai passando e se cala adiante. O silêncio é quem avisa sobre as mudanças de tempo, a chegada da tormenta, as mudanças da maré – sinais vitais para os homens do mar, alerta para os perigos, quando das calmarias, a presença de enormes animais, a distância de casa e de terra firme. No mar, o silêncio é ensurdecedor... No fundo das águas do mar, mesmo que não se possa chegar ao leito submerso é maior tal silêncio, sinônimo de paz. É quando se pode escutar, claramente, a consciência, ao sabor de sinuosas correntes marinhas, batalhando contra o empuxo que tenta expulsar os seres de insanos pensamentos. No mar, silêncio é o mesmo que cor, o mesmo que imagem, medo, prazer – coisas que não se pode pegar, mas, que sentimos e estão ali presentes, exuberantemente bem postadas pela natureza maior. Ainda quanto aos sons: que sons esperar ouvir saídos da linha do horizonte, do fundo azul e escuro de alto mar, de além mar? Parece haver uma longa vigília por algo que se anseia, no mínimo, porque é simples dirigir o olhar para o mar enorme e silencioso. Houve tempo em que tudo, todos os recursos advinham do outro lado do mar: homens e mulheres, comida, panos para vestes, ornamento, dinheiro e armamento, ideias e ideais, amores e infortúnios, estrangeiros, costumes de outrem... E tudo chegava em silêncio, sorrateiramente, com cuidados para não acordar os que dormiam sono inocente. Aguardavam as calmarias das águas e aportavam, atracavam, atacavam, ocupavam os espaços e que imperasse o silêncio total, igual ao do mar... Nos tempos de hoje, já não se olha tanto para o horizonte em busca de vida, de dinheiro, dos amores prometidos, das músicas de além mar, das pinturas e invenções de outros olhos. Também, não se tem o olhar na direção da terra, imensa, que aguarda melhor decisão e atitude. E o silêncio, por tudo isso, parece ser ainda mais incômodo e devastador.

54

Roberto Carlos Costa

Por outro lado, posicionados aqui, nas águas de alto mar, que sons ouvir saídos do horizonte recortado das terras que vemos: serras, morros, praias, interiores dos campos de além e dos peitos esmagados por ondas sujas e que parecem não quebrarem nunca? Que sons ouvir gritados por lágrimas de desespero, do movimento de corpos sem lugar, de desejos não satisfeitos? Ah, que bom seria se não fosse incontável a minoria de miseráveis que desconhecem até o que comer de tão imenso e dadivoso mar!... O silêncio é grande, também, nas consciências, nos corações – logo neles -, nas falas, pois, devíamos dar maior atenção ao que não é dito, no que não nos deixam ouvir, aos amores que ainda não são conhecidos, à felicidade que ainda não foi cantada por aqui. È hora de dar ouvidos aos silêncios do mundo, pois, é neles que dormem sossegados os bons caminhos, o lugar seguro, a seiva aventureira que impulsiona corpos e mentes humanas, em sintonia com o mundo restante. É do mar e dos seus silêncios que sairão as novas ideias, mesmo que dos mares de lágrimas, do suor mal aproveitado, da abundante salivação dos que lutam, dos mares de sangue que avermelham os peitos, os olhos, as mãos, os corais, a pele-couro surreal resplandecente das sereias, que nadam as águas com seios e olhares vigilantes. Delas, não esperemos tanto silêncio, pois cantam suave canção de alento e de amor, que ouvimos sem ainda o perceber. De súbito, o vento ganhou velocidade, agitaram-se as cristas das ondas desorientadas, até que rompeu a corda da pequena âncora que havíamos baixado, naquele exercício de contemplação. O barco deu uma guinada rumo à terra e começou a seguir viagem, ao sabor de providencial correnteza, que guiava-nos com suavidade, inclusive, nossos corações, naquele momento. A tarde que se apressava em chegar era puro sonho, calor poente, ressaca de águas e corpos amantes, flutuantes, mais rápidos, logo, vagarosos. Os movimentos entravam em sintonia, inclusive, com indecifrável silêncio que, agora, conhecemos um pouco seus sons. Nossos olhares estavam nas estrelas que abriam passagem nos limites do céu, que queria dizer alguma coisa, ali, também – código de silêncio. Precisamos aprender sobre isso.

55

Os Morros, Os Rios, Os Mares

Turquesa, violeta, azul real e céu, ocre, cinza, o branco das nuvens inocentes... No horizonte, azimute de olhos insatisfeitos, quase um negro nebuloso, azulado. Do outro lado, à nossa frente, um céu incendiado, de brasas cansadas, brasis descontentes, relutantes filamentos de luz e de vida. As nuvens pareciam em ebulição. À medida que se aproximava o sinuoso litoral, ganhava vida o verde denso dos coqueirais e das montanhas de sonhos e esperança, do que é feita aquela imagem... Nossos corações, parecia, iam sair pela boca, arfantes eram nossos peitos naquele instante, melhores eram nossos pensamentos, posto que, o mar igualara-nos ao melhor dos seres humanos: os humildes – enquanto ricos -, os ricos – enquanto pobres -, pois, neles sobra espaço em apertados corações... O velho mar nos devolvia, assim, ao lugar de sempre. Recebemos o cumprimento das ondas à beira mar, a brisa já era amena e compensava o calor providencial do sol, ao longo de um dia que pareceu uma vida inteira. Num último olhar para tão querido mar, vendo através da noite que se instalara, não encontramos o luar de sempre, sinal, talvez, de que não se pode obter tudo ao mesmo tempo. Melhor foi, então, guardar na memória o que nos disseram tantas sereias, com sua música encantadora, melodia que fala e exalta, em silêncio, o melhor dos nossos sonhos e sentimentos. Ao pisarmos terra firme, foi grande o tremor que sentimos por todo o corpo, o pensamento caminhou a mil, ficamos um tanto atônitos e lágrimas encheram nossos olhos, pois, haveríamos de seguir em frente, menos por nós mesmos, mais pelos que sofrem e muito ainda estaria por vir...

56

Roberto Carlos Costa

IV

Claro dia de sol

Dormi o sono dos justos, penso. Naveguei todo o espaço molhado pelo delicioso mar que começa a poucos metros do meu quarto. Viajei por onde não lembro mais e um sonho que não pretendo esquecer. O café matinal repôs meu corpo no mundo dos vivos e minha mente a correr. Salivo pelo dia que chega. Piso a areia branca, fina, quente e o sol acaricia minha pele marrom. A brisa é leve, mas densa e firme, num movimento único que pretende levar consigo meus cabelos e os cheiros da noite passada. Essa leveza permite-me escutar o quebrar das pequenas ondas sequenciais que borbulham brancas espumas, lá adiante, pois, é seca a maré. Ando compassadamente, sem rumo definido, apenas seguindo as curvas da praia que o mar lambeu, durante a noite inteira. Lá, onde alcança minha visão, mar a dentro, navega mais um enorme navio cargueiro em direção ao porto – vem de longe. A praia está repleta de cores e de gente. Barracas coloridas recheadas de famílias e grupos de amigos - parecem colônias de cogumelos. Muitos mariscos, buracos na areia para construir castelos, pontes e túneis. Crianças deliciosamente meladas de salgada areia, que esconde coloridas pedrinhas de coral e pequenos mariscos rajados, quadriculados, listrados, conchas... “Olhe o picolé! Coco, amendoim, tangerina, abacate, morango, chocolate, graviola...!” “Amendoim torrado e cozinhado, olha aí!” “Ostra!” “Olhe o coco!” – São as vozes da praia. Vai e vem a bolinha laranja do frescobol, dança a bola branca da pelada de times sem padrão definido – todos sem camisa -, defendendo barrinhas pequenas e a lateral do campo é na água. Passa agulha frita, camarãozinho na água e sal, sururu, cocada com leite condensado, peixe frito, caranguejo, moqueca de siri, balãozinho de

57

Os Morros, Os Rios, Os Mares

gás para criança, mané-gostoso, reco-reco, pipas de várias cores, aviõezinhos de isopor, apito e língua de sogra. Vendem redes, toalhas de mesa em renda, tapetes, aquarelas, talhas, jangadas em miniatura, chapéus, bonés, bisnagas de mel e óleo bronzeador, shampoo, pente e pilhas para rádio. Também, promoções de cartões postais, camisetas estampadas, miçangas, óculos de sol, chaveiros, sandálias de dedo, muamba variada, cigarros, bombons e chicletes. Pede-se auxílio, emprego, remédio, orientação... Cruzam pessoas de todas as idades: brancos e negros, de mãos dadas, namorando, ou, brincando de pega-pega, desenhando o chão, protegendo os pequeninos, mostrando seus corpos dourados pelo sol que esquenta. Uns refrescam-se na água, mergulhando, amando, nadando, brincando de fazer espuma, enfrentando as ondas ainda pequenas, pegando jacaré, boiando sem pressa... Sobem na jangada e no barco do pescador que reclama o dia inteiro, até trazerem-lhe a garrafa de pinga. Anda-se para um lado até enjoar e, depois, retorna-se pelo mesmo caminho, que já está diferente, as peles mais queimadas, olhares tendenciosos, vidas modificadas, compromissos assumidos, outros, desfeitos. A praia está lotada agora e a maré começa a encher. O cheiro é de gente, de amor, de liberdade e de sal, que vem com a brisa morna. O mar é incomensurável, de diferentes tons de verde e azul, recheado por corais enormes que pisamos se quisermos e nos banhamos em suas piscinas naturais. Ali, estão mariscos, ouriços negros, sargaço, peixinhos de cores e nomes variados, cavalos-marinhos, siris de pedra, guajás, estrelas-do-mar, tinteiros, locas, búzios..., mundo escondido... Foi um dia, quando criança. É agora também e não é preciso definir a idade dos momentos felizes junto ao mar parceiro e amigo, pulsante, incansável, que compartilho junto à lagartixa que me cumprimenta, do tronco do coqueiro perto do terraço. Acho que esse, como vários outros dias felizes, foram domingos de um claro dia de sol...

Fim

58

Roberto Carlos Costa