Os Novos Meninos do Morro

17
1 2 DESEJO que nossos filhos um dia possam recitar esta quadra ... Fui lá no Morro para ver os meninos fui lá no Morro para ver nossa raiz, vim lá do Morro pra mudar os destinos vim lá do Morro pra fazer um país. 3 MORRO DA LIBERDADE Tem coisa que a vida faz que é cristalina em verdade. É como o MORRO que traz já no nome a LIBERDADE. 4 APESAR DE TUDO Apesar de ver tanto sofrimento, tanta gente vivendo como cachorro agradeço a Deus, por mim. Ainda vejo linda a madrugada do Morro.

Transcript of Os Novos Meninos do Morro

Page 1: Os Novos Meninos do Morro

1

2

DESEJO que nossos filhos um dia possam recitar esta quadra ...

Fui lá no Morro para ver os meninos fui lá no Morro para ver nossa raiz, vim lá do Morro pra mudar os destinos vim lá do Morro pra fazer um país.

3

MORRO DA LIBERDADE Tem coisa que a vida faz que é cristalina em verdade. É como o MORRO que traz já no nome a LIBERDADE.

4

APESAR DE TUDO

Apesar de ver tanto sofrimento, tanta gente vivendo como cachorro agradeço a Deus, por mim. Ainda vejo linda a madrugada do Morro.

Page 2: Os Novos Meninos do Morro

5

OS NOVOS SÓIS

Quais luzes me trarão os novos sóis? Penso serem aquelas que imaginei, que ao longo da luta planejei, que estabeleci como meta firme, que delineei durante tantas noites, que sonhei sem nenhuma ambição. Seguir a seqüência dos planos, apresentar-se como verdade infinita, no aguardar do tempo, dos anos, para ao escrever uma página bonita, devolver à imaginação primeira, ao seio daquela gente aflita, o verbo discursado na algibeira, nos versos de uma palavra bendita. Quais luzes me trarão os novos sóis? Estou certo que virá a quebra dos grilhões que prendem o povo à absoluta miséria, carregando seus problemas, como caracóis em bando, em contrabando, aos milhões em busca de um som que emita palavra séria. Quais luzes virão do futuro? Essa chama que em meu peito arde se faz claro até mesmo no escuro donde reluz a palavra LIBERDADE.

6

PRECE DOS MENINOS DO MORRO Contemplo o Templo Universal e rememoro inúmeras passagens de minha vida. Vou delineando vidas, gestos, posturas, comportamentos, seres pensantes, animais, festejos, festanças,

esperanças e compondo um quadro muito claro da evolução, do pensamento, do comportamento, do sexo em meio a essa fotografia em preto e branco da vida passada. E foram, penso, bobagens cometidas instintivamente, repleto ato em coragem fez-se prazerosamente. E foram tantas emoções que agora me causam vergonha, mas que representaram comoções em gestos de quem chora e sonha. E nessa composição de glórias cometidas pelo meio da idade, segui a compor a história de um trecho de minha cidade. E representou-se em alegria revestindo-se de festa e fantasia,

7

confundindo-se com pura orgia, mas quebrando o gelo do dia-a-dia. E foi preciso que passassem os dias, foi necessário percorrer o tempo, para sentirmos que o conjunto das alegrias estabeleceu a cisma entre pensamentos. Ofertou a todos o amadurecimento precoce acompanhado de razões e frases, efeito firme de verdade em overdose no eliminar de desnecessárias fases. Tantos agudos pensares correm-me o corpo que exportam de si muitos juízos. E como dardos jogados ao vento sem escopo retornam à terra sem maiores prejuízos. E se acometem febres de pensamentos de amigos que carrego até hoje presentes em mim, na sombra, no instinto, carrego comigo numa fila longa que não enxergo o fim. Escorrem os versos de poemas inacabados futuras emoções e apresentam-se versos de poemas imperfeitos. E nos versos decorrentes desses trechos malfamados revela-se um dos meus defeitos. Mas sei que são emoções tão breves que deleito-me entre as mesmas enquanto possam durar

8

para que eu possa ver tantas falhas minhas na certeza de um passado que não mais voltará. Retorno à lembrança de tantos sonos distantes, sonos, não sonhos, sonos sem cobertor, nas longas noites com amigos guardando os

instantes com o corpo da inocência como protetor. E foi assim, entre tantos outros devaneios, que sobrevivi equilibrado em uma navalha, na certeza de equilíbrio entre acelerador e freio, na certeza de que a vida não perdoa a quem muito falha. E o futuro ? Quais verdades virão novas com o trovão dos deuses que comandam os furacões? Serão compostos de componentes duros ou somente quentes como lavas de vulcão? Quem tem conta sobrando para apontar o dedo e sem segredo agendar o que virá, na expulsão dos agouros de medo e na presença firme dos olhos a enxergar? Quantos muros ainda hão de cair para que a atrofia de grupos degenere-se? E sem ilusões cantem um novo porvir e a terra se faça pura e regenere-se. O futuro a Deus pertence, como disse o poeta ageu. O futuro a nós pertence. para quem o passado percebeu!

Page 3: Os Novos Meninos do Morro

9

O MORRO OUTRA VEZ

O Morro tem sua escola, tem seu samba tem seu som. O Morro tem sua esmola, tem seus bambas, tem seu Dom. O Morro tem seu asfalto, tem sua gente, tem seus carros. O Morro tem seu arauto, tem carentes, tem escarros. O Morro tem sua favela, tem barracos, tem doenças. O Morro tem sua costela, tem seus fracos, mas tem crença. O Morro tem gente ruim, tem gente boa também. O Morro é tudo pra mim, é tudo o que a gente tem!

10

MORRO ESPERANÇA IMORTAL

Morro dos fortes braços, construído de invasões, guardas ainda os traços, manténs vivo os corações. De quem te vê simplesmente como um lugar abençoado, a resistir fortemente contra a fome, mal educado. A acreditar até o fim que serás feliz um dia, e essa tristeza em mim será somente alegria.

11

SAUDADE Vi um menino correndo pelas ruas lá do Morro, sobrando ingenuidade misturando-se aos cachorros. Fazendo mil piruetas, brincando de cangapé, arremedando caretas aporrinhando o “Seo Zé”. Sentando-se na sarjeta, “se apresentando” à mulher, carregando uma maleta por um dinheiro qualquer. Montando uma burra preta, vendendo seu picolé, alugando bicicleta, “desmentindo” o seu pé. Escondendo a muleta do filho do “Seo Mané”, de sandália “pau na greta”, sonhando ser Rei Pelé. Vi o menino correndo magro, amarelo, plebeu, danado, alegre, viçoso. Ontem, esse menino era eu.

12

IGARAPÉ DO 40

Quarenta ainda é minha maior chaga, ainda hoje é meu sofrimento, fonte de todas minhas lágrimas por entre meus olhos, meu tormento. Favela velha com medo da chuva, palafita antiga com medo da enchente, gente dura, feito ferro não se curva, resto de povo, sucata de gente. Sucata de gente, pensa a sociedade, resto de povo, pensa a burguesia. És meu povo, és minha verdade, és minha luta, és minha companhia. Logo virão novos tempos, logo seremos nós um temporal, logo não haverão contratempos, logo seremos só carnaval. Carnaval sem ilusões, sem derrota, sem quarta-feira, carnaval de alegria. Será pela vez primeira que nesse país, um povo humilde acordará terça-feira, como num domingo? Festa, descanso, comemoração um povo feliz sem chagas no coração.

Page 4: Os Novos Meninos do Morro

13

SUBÚRBIO DA VIDA Nasci no subúrbio nasci lá no Morro vivi feito cachorro comendo pelo meio-fio subindo nas goiabeiras levando a vida por um fio soltando a poeira do destino menino em desvairio menino em desatino Nascido no subúrbio no lodo da sociedade onde a mentira é verdade onde a verdade é prelúdio Lá onde a vida vale bem menos que um vintém lá onde a vida é instrumento onde a vida não é ninguém Bem onde um moço como eu é só um moço, nada mais é onde a presença de Morfeu só serve pros carnavais. Onde não há sonho, só há sono de tanta fome permanente pesadelo medonho que a vida dos moços consome É onde nasci é onde haverei de ficar é onde cresci O Morro que vou libertar

14

UMA FÊMEA Nessa ultima folha do bloco de papel que hoje escrevi vou registrar meu discurso eu estou pensando em ti Rainha do povo irmã do direito parceira da mente mãe do meu peito ponta de caneta verso acabado dona do planeta chicote do errado Mãe do amor mãe da verdade mãe doce sabor mãe “LIBERDADE” Nome do Morro palavra, presente luz de todos nós guia da gente

15

SAUDADES

Não é possível compor um canto sem que me venha à mente um manto, vago de tão vaga lembrança a relatar-me quanto boas foram tantas canções compostas ao som dos bem-te-vis, das arvores comuns de todos os cantos, dos caminhos que conduziam sempre ao mesmo lugar, ao mesmo riacho que se chamava “QUARENTA”. É impossível não discorrer na memória a lembrança daquela instância tão alegre tão medrosa e tão cadente, de tantos sonhos soltos pelos caminhos que, ao final das tardes, nos levavam, depois do “BANHO NAS PEDRAS”, de volta à rua empoeirada e escura do meu Morro da Liberdade. É impossível dizer que não foi bom, Assim como hoje me é impossível dizer que farei uma canção ou que entoarei um canto, sem que sinta SAUDADES.

16

SOLTO NO AR

Solto no ar vai meu sonho, sonho estrelado e reluzente, construído sob a terra, feito pequena semente. Solto no ar vai meu sonho, trilhando o destino feito, deste menino do Morro acalentando no leito. Pelas distancias correntes, que capitulam no peito, de outros meninos de lá que já têm sonhos desfeitos. Um dia um desses meninos me disse que estava triste, sem esperança de vida, pôs-me até o dedo em riste. Foi então que soltei meu sonho pra vagar pelo céu, enquanto luto pela terra, giro feito carrossel, pra mostrar ao menino que sou juiz, nunca réu.

Page 5: Os Novos Meninos do Morro

17

RUA ESCURA DO MORRO

Rua escura, parceira dos tolos, que se escondem da vida encostados nos tijolos. Bebericando as bebidas, as mais baratas do bar, aumentando as feridas que lhes estão por matar. Rua escura de luzes quebradas, guardas segredos noturnos das meninas estupradas. Que já nem lembram do dia, na noite que aconteceu, a transa, digo agonia, da honra que se perdeu. Rua escura, és bonita por sob teus arvoredos, não falarei mal de ti, pois guardas também meus segredos.

18

VENTO DO MORRO

Vento que esquenta meu rosto, vento quente de minha árida terra, traz-me nesse quente agosto o gosto dos ventos da serra. Vento que alivia o calor dos dias quentes de meu chão, traz-me o néctar do amor, liberta meu frio coração. Vento que vem lá da serra, vento puro da serrana liberdade, Venta forte em minha terra e varre toda a maldade. Vento valente e tão leve venta forte sobre nós, já só nos resta você, vento, pra varrer tantos homens sós.

19

NOVO AMANHÃ Surge o sol um raio a luz um ensaio que me conduz e de soslaio me seduz a luz o sol um raio a esperança uma vida muitas lembranças uma ferida por entre as praças ruas, avenidas um novo afã um raio um sol uma luz uma manhã uma camisa branca apertada uma calça curta desbotada uma cabeleira lisa penteada

20

subindo a “São Pedro” rumo ao “Adalberto Vale” um pequeno estudante uma luz uma esperança uma certeza o amanhã melhor N alto do Morro.

Page 6: Os Novos Meninos do Morro

21

OS MENINOS DO MORRO ou nova esperança

É entardecer e olho por sobre a vida buscando ao longe enxergar os destinos incertos desses meninos que correm sobre as sarjetas enlameadas descalços, sem sobrenomes e sem estudos, sem esgotos para tragar-lhes as epidemias, a cólera que germina em seus ventres e nesse pensar vou vagando e me afastando de noventa e três percorrendo outros caminhos que datam longe quando corria sarjetas e esmiuçava formigas rompendo-as ao solo com o corpo dos meus

pés descalços. Feito esses mesmos meninos que escorrem agora sobre as sarjetas fedorentas e repletas de lodo reservada ao longo dessas vidas aos meninos pobres, filhos das favelas e das palafitas edificadas sob sol e chuva, resistindo a tudo, mesmo aos ditos bons homens resistindo a tudo, mesmo aos ditos maus homens resistindo a tudo, mesmo aos ditos vendavais deslizantes entre arrotos de palavras frias e vazias, mas bem compostas e verdadeiras peças teatrais. É entardecer e fico a olhar o horizonte, recolhido ao mais íntimo e depressivo pensamento revolucionário, reacionário,

22

contraditório, medroso e terminal. Sinto pequenos pulsos desnorteados a empurrar o

peito e distancio-me dos presentes sonhos diante da imensidão desse exército de desnaturados que vejo além de meus próprios olhos, na profundeza do cume negro de minha curta visão e, então, formigam meus braços como sangue grosso em paralisia, como corpo inerte e barriga vazia. E nessa seqüência interminável de tantos claros, transtornos presentes, percebo ao fundo de dedos tão ralos as “juntas” se fazerem ausentes e vou morrendo dentro de mim mesmo e vai sumindo de meu pulsante ser, a lembrança da felicidade onipresente que sustentou-se por longas lutas, guardada sob o escuro da esperança. Então sinto-me só não mais que sozinho recolhido ao meu cantinho, o cantinho do mundo que construí, comandando tão pequenino exército composto de loucos, loucos despojados, posto de desesperados.

23

Fui o Menestrel da tropa, o bordel da cidade, o condutor da verdade, a esperança da vida com a pele menos curtida. E estabelecendo, pela vitória, lá fora a liderança fui transformando seres homens em crianças e escrevendo pela lei da brincadeira as linhas tortas da lição mais verdadeira que traduz-se sem meios termos em construir própria bandeira na constituição de vida independente. É entardecer e não cessam meus devaneios, pois não pode o homem que vê negar o que a vida o faz perceber e tudo o que mais verdadeiro percebo. São os perdidos olhares famintos, desses a quem prestei juramento, nunca a eles, mas sempre a mim mesmo, de entregar-lhes minha própria existência por completo, por inteiro na construção de um espaço, na construção da jogada, na composição de uma canção, na formação de um poemeto, na concepção de uma idéia, na oferenda de todo meu existir. É entardecer e daqui de cima, onde me encontro agora, a ver passar e contar as horas,

24

traduzo, conduzo os pensares mais confusos em convulsões de alegria e tristeza, em confusões de feiura e beleza, em mistura de morte e vida, em contraste de verdade e mentira, as formas de esperança de uma nova ordem

de vida, de esperança, de nova sensação de nova emoção, de novas palavras, que possam levantar tantos seres, que possam elevar outros prazeres e que possam, definitivamente, conduzir-me à fonte de energia e juventude onde meu corpo se fez banhar há tantos anos

passados. Se foi o pequeno lago não sei, se foi às margens de nosso doce riacho não sei, se foi na cacimba do “buraco da vovó” não sei, Só sei que ao longo de tantas batalhas, vencidas poucas, perdidas uma imensidão, meu corpo soldado desta missão foi cansando e cansado estou de tanto ver tantos penares desses Meninos do Morro,

Page 7: Os Novos Meninos do Morro

25

que como lodo escorrem pelas sarjetas do destino esperando pela clemência do Deus Divino a apontar-lhes o caminho mais curto e o fardo da vida mais leve para que possam conduzir seus pensamentos e da própria vida retirar ensinamentos, como aqueles que da vida eu mesmo enxerguei de ser plebeu, e ao menos no carnaval sentir-me, por uns minutos, um rei. Ainda é entardecer e deslizo atordoado pelas palavras, pelo real, os fatos, os atos, o dia-a-dia, a rotina dessas vidas em romaria a caminhar pelas valas e pelos becos. Pelas manhãs, pelas tardes, pelas noites, pelas madrugadas sem sentidos, sem pisar na estrada, levitando e deixando o próprio tempo escorrer, sequer lutando pela vida, somente brigando pra não morrer, sequer ganhando a comida, somente deixando a comida os comer. Ainda é entardecer e ao longe escuto os chamados de outros meninos, agora vestidos de homens feitos. Foram outrora meninos também das sarjetas e embora carreguem diversos defeitos são soldados companheiros dos versos que antes falei.

26

Que pela lei do direito, conquistado com o próprio peito, são queridos amigos do mesmo Morro onde

criei-me e onde os mesmos criaram-se e jamais as bocas calaram-se numa voz única que sempre lutou pelo Morro e sempre aos trancos conquistou a Liberdade. Assim, ao findar o entardecer desses pensamentos, por onde passeei e sob devaneios de gente grande, recobro o momento feliz de perceber que novas horas e novos dias construídos com a força daquele vendaval de moços felizes que por essas bandas fincaram raízes edifica-se a nova história dos novos Meninos do Morro.

27

LEMBRANÇA DO MORRO INOCENTE Quando deito os olhos por sobre a rua e acompanho o trânsito de tantos meninos, remonto em minha mente viva e nua a lembrança da infância, de tantos desatinos. Na bolinha de gude o Escurinho era rei No papagaio de papel o Denival era fome, cangapé todos jogavam, era lei correr de manja nos becos sem nome. Era noite, era dia, era Liberdade soltando pulos no caminho do Quarenta, armando arapucas, trepando em sorveiras, mergulhando na água doce da felicidade. Ainda tardinha jogar bola no Maracanãzinho, com a bola encharcada a cair no chavascal, e os espinhos do mato maltrato em pé-craque dos meninos guardadores dos sonhos de Natal. Sem bicicleta, o patinete bem feito de rolamentos colhidos lá nas oficinas, fazendo inveja a tantos que sem efeito não aprenderam a dar cantadas nas meninas.

28

Não faz mal, tem brincadeira de casinha onde as meninas são sempre as donas de casa, e pela obra da sociedade quis o homem que ela deitasse como se adulta fosse. Se vamos balar passarinhos na mata do cajual ou das bandas do Japiim, levaremos o Rai que é o melhor na pontaria e vamos, na volta, fazer canja de “tesoura”. E às seis da tarde, já noitinha quando os ventos soprarem mais frio, vamos correndo pra casa sem olhar pra traz com no corpo a correr um arrepio. Pois já não é mais hora de estar na rua, pelos caminhos escuros podemos nos encantar, e não mais mergulhar nas pedras num último pulo para se banhar. Voa pensamento distante Voa longe no Morro inocente...

Page 8: Os Novos Meninos do Morro

29

TRINCAS PARA O MORRO O Morro vai o Morro volta as vezes revolta. O Morro toma o Morro devolve as vezes envolve. O Morro maltrata o Morro ensina as vezes parece sina. O Morro chora o Morro canta as vezes encanta. O Morro é asfalto o Morro é barro as vezes é um sarro. O Morro é céu o Morro é chão é dono do meu coração. O Morro é nobre o Morro é plebeu o Morro sou eu.

30

AH! ESSES MENINOS ... Esses meninos são divinos espalham cantos por todos os cantos e vão desenhando ilusões e vão construindo sonhos e vão enganando a vida e vão dominando a própria morte Ah! Esses santos meninos são cristalinos espalham alegria por toda confraria e vão expulsando a tristeza e vão expelindo emoção e vão conduzindo o destino e vão controlando a cidade São pintores, escultores, são doutores, vereadores, são padres, deputados, pensam serem senadores, são perfeitos são até prefeitos Ah! Esses pobres Meninos do Morro são vencedores.

31

QUADRA PRO ZÉ

Veio um dia não sei donde, assim como uma dessas estrelas que cai. Fez-se parceiro, irmão, companheiro fez-se muitas vezes pai.

32

CHICO BOLSEIRO

Negro. a beira do riacho observa seu lugar, agachado, olha o rio e vê os arbustos verdes, repletos de pés de sorva, tucumã, buritis. Arruma-se dentro de sua casa de palha e paxiúba, limpa, fresca, soberanamente palaciana, própria propriedade tão sonhada, lá no Ceará, onde não existia nada, nada, nada. Negro. Negro Francisco “Seo” Chico Bolseiro, a construir bolsas de palha e vender aos montes para os feirantes do mercado grande, sustentando a vida com suas bolsas, salvando vidas com sua reza, gerando vidas com sua mãos, Alegrando vidas com sua sanfona (harmônica), Arrumando vidas com doações de terrenos. Chico Bolseiro, hoje presente na memória desses meninos, que sem nenhuma celeuma agradecem a um dos mais famosos “primatas” do Quarenta, do Morro do Tucumã, do Morro da Liberdade. Chico Bolseiro, lutador da vida, desbravador de florestas e riachos, desbravador do Morro da Gente. Obrigado.

Page 9: Os Novos Meninos do Morro

33

MOÇA NO MORRO Para Baré Saraiva Lá vai a moça descendo a ladeira sambando na rua morena faceira Lá vai a moça com o dente de ouro de novo na rua do bloco um tesouro Lá vai a moça vendendo bandeira fugindo de casa namoradeira Lá vai a moça com os seios - decote vestido aos joelhos, em busca da sorte. Lá vai a moça, Datilografia, no final da tarde seja quente ou fria.

34

Lá vai a moça descendo na escola na diretoria de fraque e cartola Lá vai a mãezinha vai mudar de vida cuidar do Edu cuidar da comida Lá vai a mãezinha coruja também esquecer de tudo ninar seu neném Lá vai a mãezinha quebrar outro ovo junho ver a Bruna que é o bicho novo Lá vai a Baré cuidar do que tem tem Bruna e Edu tem a mim também

35

BAIXINHO (Ao Nicéias Magalhães Reis)

Como descrever em tão poucas linhas tudo o que por ti sinto, irmão que sou teu. Mesmo sofrendo nunca definhas e assim correndo por entre labirintos entregas tudo, de ti, a Deus. Artista sois, artista sim, desses que o Morro criou, livres a escrever ilusões sem fim a fazer real tudo o que a gente sonhou. Pai tu és de verdade, concebestes o Jeferson, louro tesouro teu, e quando vais á luta, lá na cidade ele chora, tu choras. Será que ele adoeceu? Esposo és tu muito mais que marido, Raimundinha que o diga a todos nós, sois simples, brando, contido, ordeiro, caseiro sois vós. Valente, como valente é o bem-te-vi bonito cantar, feito tu, que apesar do tamanho nunca vi fugir com medo de Urubu.

36

Amigo, meu amigo em tudo, desses que dá noticia boa, às vezes penso até que és mudo não vives a falar, assim, à tôa. Amigo, meu amigo do Morro, do tempo dos galos e dos quintais, nunca pedimos socorro fomos pra rua, “correr atrás”. Amigo, meu amigo das barras, que desmontamos em parceria, desatamos do povo as amarras à cidade, ofertamos alegria. Líder, incontestável líder calado, sois vós somente o trabalho, vida, futuro, presente, passado, malandro, passado na casca do alho. Menino sois assim como teu filho é menino sois, menino assim como eu. Amigo, continuamos de pé, amigo, irmão, presente que Deus me deu.

Page 10: Os Novos Meninos do Morro

37

NEGO DICO Quantos meninos do Morro seguem o mesmo caminho, prosseguindo pela escola uma vida em desalinho, construindo só histórias de uma vida irreal, não sei o que lhes vêm a cabeça, se bonança ou temporal. Faz-se vida sem um prumo, sem um tino forte a seguir levando e a cada dia amanhecido sem rumo, no mundo se embriagando, segue o nego a só compor peças que ninguém vai ler. Daqui a pouco o tremular da dor não lhe deixará escrever, mesmo com todos os erros que a gramática oferece, ver suas peças, ver seus cantos a qualquer um arrefece. Sinto pena, sinto dó sinto a vida a se esvair, sinto na garganta um nó, sinto medo em prosseguir.

38

Ao registrar esse fato quero por telepatia, devolver-lhe Nego, o tato devolver-lhe a alegria. Que não seja pelas doses de cachaça a ingerir, mas que seja por mil vozes dos amigos a aplaudir. Sua recuperação como menino na esperança da felicidade, que alimentamos pequeninos no Morro da Liberdade.

39

CANÇÃO AO MEU POETA Ao Compositor e amigo Gilsinho Nogueira.

Na balada de mais uns acordes comuns feitos sob a luz da inspiração do poeta irá o povo de nosso Morro cantar mais um samba peça cheia de graça, de poesia repleta Nos sons de mais uma composição irá o Morro descer a avenida cantando sotaques de um leve coração que brinca samba e faz samba brincando Nos leves sopros da lira desse menino de tão belo sorriso a musicalidade toda hora transpira pela pele, pelas mãos, pelo juízo Pelo peito de meu amigo poeta que pelo samba até já vi chorar pulsa a veia repleta o dom de escrever algo a cantar

40

Pelas mãos de meu amigo poeta deslizam sambas de poesia sem fim que tocam fundo no povo do Morro e por conseqüência calam dentro de mim Eu, amigo e companheiro do criador eu, arremedo de compositor, alegro-me com suas canções e vibro junto às suas vibrações E nesse enlace de amizade e amor vamos juntos, tragando a vida, sendo parceiros, enxergando a flor e montando um jardim na Avenida Enfim, escrever ao meu poeta faz-me bem e conforta-me a alma, no meio desta noite, segunda, sem festa seu samba e seus acordes me trazem a calma.

Page 11: Os Novos Meninos do Morro

41

A MADRUGADA DO SAMBA

Fim de festa no morro. que fim de festa que nada, agora sim vai começar a festa que a gente sabe fazer bem mais completa que a do palco do palco da escola, do hotel, da feira, do aniversário, da recepção, da gafieira. Festa de mesa de bar envolto em bebidas amargas e doces, sem vozes afinadas a entoar primeiro quem um samba novo trouxe. São banquinhos de madeira que acomodam são cadeiras de ferro em que sentam, são lugares que a ninguém incomodam são olhares que ao leve som se esquentam. A gente nem liga para os bêbados que vomitam aquilo tudo que foi além da conta, a gente se liga naqueles que hesitam o verso que vem na língua, bem na ponta.

42

A sarjeta serve de canto mais alto pra quem só quer ver o samba ir rolando, seja de enredo, ou de partido alto são vozes sem tom que vão se encorpando. São versos cantados com fundo e poesia são sambas levados sem tom comercial, são obras de arte em sinfonia são sinfonias que ecoam além do carnaval. Essas noites divinas as vezes não tem fim acontecem sob o olhar calmo da lua, iluminadas pelo clarão das estrelas, enfim postas no morro, na beira de qualquer rua. São os amigos que se encontram na batucada, são os amigos que remontam do samba as raízes, são os amigos em estado de graça marcada, são meninos, nas noites, bem mais felizes.

43

NAÇÃO NAGÔ BRASIL Por ocasião da escolha do enredo para o carnaval de 89, Mãe Zulmira, O Amanhecer de Uma Raça. Viremos nós, mais fortes na raça, maiores na tradição, enormes em humildade. Virá o povo dono da festa soberano verdadeiro dono da cultura. Virá nossa Escola de Samba pujante e bela, esbanjando energia, exalando alegria, brindando emoções. E nós, Meninos do Morro perdidos no meio do povo, espremidos na garganta, emocionados, prenderemos o choro, sorrindo aos prantos, prantos de conquista de vitória do povo, da massa humana pobre motivada, organizada, unida pelo sonho de ser um vencedor de qualquer coisa, do carnaval, talvez.

44

Viremos nós, Fortes, maiores que eles, menores que ninguém, realizando o sonho de sermos nós os artistas ou gente, simplesmente de Escola de Samba, mas gente. Nossa força começa com o canto, nosso exemplo de força à prova, de qualquer um deles. Motivados viremos nós levantando a bandeira do povo brasileiro, povo pobre, honrado, magro, doente, mas guerreiro. Viremos nós atropelando qualquer um viremos nós fortes, honrados, magos, doentes, mas unidos pelo ideal da vitória final. Faremos então o amanhecer de um povo.

Page 12: Os Novos Meninos do Morro

45

CABE UM VERSO Passistas da minha Escola de Samba a desfilar.

Cabe um verso pros teus becos, tuas ruas e vielas, cabe um verso a teus cortiços onde moram todas elas. Cabe um verso pra beleza que elas estampam no rosto, cabe um verso pra pureza da alma vem o bom gosto. Cabe um verso até pra lama onde nasci e me criei, cabe um verso para a fama que do meu Morro herdei. Cabe um verso pra ilusão que elas tem por um dia, são artistas, atenção! da Escola que se via.

46

SÁBADO Hoje é sábado é mais um sábado no Morro, correm crianças altas horas, correm por entre os cachorros Toca o surdo da escola, bate o tambor do batuque, o Tinguinha pede esmola pra beber, é outro truque. Dança o canário - boi novo, dança o cangaço Silvino, dança do meio do povo, dançam mulher e menino. Rock rola o Libermorro, coisas dessa mocidade, rola brega no Olaria, gente de maior idade. Tantos bares e biroscas abertas até altas horas, cheiram a mijo e bebida mas não assustam as senhoras.

47

A menina sai do carro com os sapatos na mão, tudo é claro, um escarro trepadeira profissão. Sábado, a noite é mais curta, feito o fogo do isqueiro, alegria a gente escuta vê e sente o tempo inteiro. Bêbados trombam no vento tentando ouvir o pandeiro, depois deitam-se ao relento pois já perderam o parceiro. Logo cedo teve a missa, esse povo reza a Deus, depois desce em romaria espraguejando os ateus. Sobe gente e desce gente gente do Morro e de fora, hoje o Morro é diferente, bem melhor do que outrora.

48

Gente importante vem ver o que é que o Morro tem, e acaba descobrindo que aqui tem gente também. Gente que vive essa vida, leva essa vida brincando, é boi, é samba, é macumba, é a vida trabalhando. É sábado no Morro da Liberdade, é a vida pagando pra brincar, é sábado de verdade, é noite de se alegrar. Se for boi dança debaixo, se for samba é pra se ver, a liberdade não tarda, o Morro vai amanhecer.

Page 13: Os Novos Meninos do Morro

49

SÁBADO À TARDE Quando é sábado no Morro, quando rompe a tarde, faça chuva ou faça sol um canto dentro da gente arde. Vão se juntando os amigos chegando aos poucos, devagar, no mesmo ponto de antes juntando histórias a contar. E confabulando em alegria colhidas durante a semana, aguardam por novas chegadas, guardando a razão que os irmana. Todo dia tem novidade seja de ao menos um, é gozação de verdade ou um simples zum zum zum. Feita a roda, surge o samba que chega naturalmente, nos acordes de um banjo que arrepia a gente.

50

Só sente essa nossa alegria quem da história faz parte, quem conhece essa raiz, quem impulsiona a arte. E arte se escreve fazendo em qualquer canto do mundo, a gente faz nossa parte cantando um samba profundo. Vai lembrando grandes letras vai zoando melodias, que escreveram momentos nessas noites, nossos dias. Sábado é sempre assim lá no Morro nas tardes do Lateral, som, amigos, alegria ... é sempre um carnaval. Benditos os que podem ver amigos em comunhão, benditos nós todos amigos, todos na mesma direção. E quando chega a noitinha, vamos todos debandando, pros lados de casa, na estrada, felizes, só nos lembrando.

51

CANÇÃO PARA UM DIA DE GLÓRIA

Finda a tarde nebulosa, o céu fecha mais cedo para que chegue logo a noite e os tambores rufam sons agudos à beira do fogo que torra o churrasquinho e presencia o trânsito das cervejas lavadas às bocas pelas mãos dos meninos lá do Morro da gente da Liberdade. Cedo começou a entoar mil canções em sons harmoniosos de tantas vozes, coral quase sempre desafinado com a vida e fora do diapasão da história. Hoje não. Hoje finda a tarde na rua São Pedro e o maestro do universo afinou o verso de tantos meninos que em comunhão natalina festejam felizes, espocam foguetes ao vento e de quando em vez um grita alto o campeonato no andamento dos ares ofegantes do pulmão que tragam tantos cigarros quanto sabores Chega a noite e esfria o tempo chegam outros meninos e esquentam o samba e nem mesmo a chuva chata e fina consegue esfriar tanto calor ou sequer amenizar o fogareiro que vai assando os churrasquinhos

52

Sobe o tom dos sambas ao som do banjo e descem canções mais antigas mais belas canções de letras revelando vitórias e súplicas e emocionando os que cantam e os que ouvem que fecham os olhos levantam a cabeça e erguem os braços a cantar e agradecer aos céus. Vai entrando a noite mais alta e ninguém nem se importa que seja quarta-feira de um dezembro, ninguém se importa que quinta tenha trabalho pois tem samba, cerveja e motivo para beber e cantar um pouco mais ou receber outro que chega guardar outro carro que estaciona e engarrafa mais a São Pedro. Não importa. Importa é contar o placar rememorar os momentos, as frases é montar as horas da manhã que passou. Já é quase quinta e ainda soa o samba. A vizinhança dorme com a canção ao fundo e também vai dormindo sorrindo feliz, pois um dos seus filhos desceu o Morro. foi vencer e voltou, sem nunca ter saído.

Page 14: Os Novos Meninos do Morro

53

HORIZONTE VIVO

Que canto é esse que me alivia a alma? Que paz é essa que me faz cedo dormir? Será pranto soluço liberto, será o truque descoberto, será o desespero do incerto, ou será que estou certo? Que voz é essa que me encarna e ouço, que som é esse que me chega à noite? Será a voz rouca de um santo, será a cobertura de um leve manto, será o “tempo” que esperei tanto, ou será o inicio do fim do meu pranto? Que canção é essa de tão lindo acorde? Que criança é essa que me alegra sem vê-la? Será a esperança, será perseverança, será mesmo canção-criança, ou será o povo enchendo a pança? São meus amigos, meus sonhos, meu destino, meus filhos, minha cidade, meu país, meus muitos horizontes vivos!

54

OLHANDO RUA ACIMA

Olhando rua acima vou perdendo minha ótica no tempo, relembrando dias que já vão longe, por onde desvairava o pensamento da gente com o sentimento firme de construir um lugar, escrever uma história, para poder contar sem segredos aos mais moços, que hoje viajam rua acima e rua abaixo. Olhando rua cima, retorno à atualidade, onde percebo que desde mancebo fomos escrevendo e construindo a história do Morro da Liberdade. Olhando rua acima sinto que já poderia até sentar e contar aos meninos meia dúzia de histórias de tempos mais difíceis, mais obscuros, mas curvo-me à minha missão missão de continuar a perceber e escrever histórias.

55

EXPLOSÃO DE SENTIDOS Segue pela vida explodindo o homem. Cavando toda hora a própria sepultura, enterrando horas que as horas consomem, perdendo o tempo de vida da criatura. Bêbado a cambalear pelas sarjetas, em busca da porta de casa, confundindo luzes brancas e pretas, sob o efeito da bebida que o arrasa. Vai o homem, guerreiro de batalhas perdidas, todas vencidas pelo inimigo em prateleiras, e como um bando de panteras feridas, rosna pelos cantos sem eira nem beira. Construindo nada além de existência, ausente do mundo que ainda vê o sol, sem forças para pedir clemência, a si próprio, postado ao arrebol. Vai um dos nossos homens se destruindo, sem perceber sequer que dele gostamos tanto, sem perceber que ao vê-lo se diluindo, vamos também nos diluindo em prantos. Homem, que conosco sentou-se ao sol a sonhar, senta de volta conosco, esquece um pouco a bebida, já é hora de em volta da mesa somente cantar, o novo samba que fizemos em louvor à vida.

56

MINHA ESPERANÇA

Sou feliz, não tenha dúvida quando afirmar pra você que apesar de tanta mágoa não tenho mágoa a esconder, não guardo ressentimento, não há lugar em mim pra vingança. Só há expressão de sentido repleto de esperança que os meninos de meu “gueto”, muitos brancos, tantos pretos, sejam felizes também, e às seis horas abrir o peito Ave Maria Amém.

Page 15: Os Novos Meninos do Morro

57

PENSANDO

Embora já me venha os trinta e três, embora já me tenha um cansaço na espinha, embora já eu seja até avô, continuo a construir fantasias, secretas fantasias guardadas comigo diariamente. Sinto que continuo em mutação, em posição de avançar, de ataque guerrilheiro, a evoluir dentro de mim mesmo buscando o ensinamento diário para o fortalecimento da ousadia que um dia disse-me presente aos treze de idade e levou-me ao cais a vender tomates na cuia e ganhar a vida... madura por sobre os tomates verdes...

58

PENSAMENTO

Carrego dentro de mim muitas mensagens, muitas mensagens de fraternidades, paz, paciência, benevolência, às vezes de violência, formando um emaranhado de tantos pensamentos, que buscam a limpidez da luz para que logo possam organizar-se e proceder o resultado de tanta vida acumulada, numa velhice precoce onde nada mais parece novidade e onde tudo é filme gasto assistido inúmeras vezes. Logo estarão organizados e a minha missão será ensiná-los a tantos meninos de tantos Morros que circundam a minha cidade...

59

UMA OBRA a missão

Vamos construindo a obra que um dia sonhamos observando o vôo tarde dos bem-te-vis nas tardes longas da beira-rio margeando o sonho e sonhando a margem do riacho e saboreando sorvas apanhadas aos cachos por entre os quintais dos vizinhos subindo aos pés – nós, molequinhos, sem sentir a vida inocente rapidamente passar, morrendo de medo do alistamento militar. Fomos crescendo, rapazes lutando pela vida, trabalhando cedo para sobreviver sem ver o tempo ir passando, nas feiras tomate a vender, construindo as esperanças dos sonhos da primeira linha, comendo nada às vezes, comendo chibé de farinha. Hoje estamos a fazer história, contar a história que a vida escreveu, a começar pelo Morro, a terra que Deus nos deu para tomarmos de conta juntos sem desunião, nossa trincheira está pronta, vamos cumprir a Missão.

60

TRINTA E QUATRO Por ocasião da passagem de mais um aniversário

Vai se esvaindo o tempo sem pena de meu velho corpo que a cada dia se empena como se fosse um arco ao lançar setas que somem no infinito do próprio tempo sem metas. São setas de nomes que esvoaçam dentro de mim numa fita interminável de tantos nomes, enfim... que preciso compilar por um interminável registro de memória que já se esvanece naturalmente. Por isto escrevo, descrevo, transcrevo... Tio Chico, Dimil, Nego Dico, Dudu Abil, Ticuca, Zé Junga, Ernesto, Figura, CV, Luís Carlos, Arnoldo, Caresto, Luizinho, Sigmar, Rosimar, Abelarda, Xenxem, Chiquinho, Mangará, Danival, Cachorrão, Santarém, Gilsinho, Gilsão, Sebastião, Tatuagem, Feio, Iron, Aldenor, Eldo, Tontonto, Agrião, Zequinha, Baleio, Nicéias, Ismar, Jairo, Tiofo, Diogo, Manuel, Dondon, Batista.

Page 16: Os Novos Meninos do Morro

61

Enfim, depois de trinta e quatro de tantos pares de sapato me seria impossível transcrever todos os companheiros que, comigo, ao longo de trinta e quatro, foram guerreiros, homens fortes de destino e sorte jogados ao vento em mais brava confusão. Despedaçado vem meu pensamento e derrama sobre minha existência a seiva cheirosa de quem beija a face de um homem como se beija uma rosa sem pudor ou preconceito. Beijo, grandeza profunda do peito.

62

SEMESTRE A ingratidão a mentira o despeito a podridão a ira a falta de “direito”. Seis meses depois consciente volto humilde para casa alegre comigo mesmo sou gente sem mudanças... Eterno Menino do Morro. Seis meses depois da batalha passando, passando em tanto lugar, falando, olhando praças, pedindo para falar. Seis meses depois da guerra, de ver mentiras vencendo nos becos, nas ruas, vielas e ver a massa cabisbaixa indo abaixo, pela goela,

63

seis meses depois de tudo, volto para meu lar triunfante, envolto pela vitória, envolto alegre semblante. E vejo os filhos maiores crescidos sem perceber nos seis meses que estive fora lutando para vencer a ingratidão, a mentira, o despeito, a podridão, a ira, a falta de “direito”. Seis meses depois, Consciente, volto humilde para casa, alegre comigo mesmo. Sou gente sem mudanças... Eterno Menino do Morro.

64

O CAMINHO Percorrendo o caminho traçado há muito tempo, na verdade quando tudo não passava de doce sonhar, vou levando as mensagens benditas ao povo, que na verdade não sei se deseja escutar. Porém persigo a certeza de cumprir meu dever e seguir construindo o caminho traçado, ainda que carregue no íntimo a incerteza de que as palavras tenham um tempo certo e marcado. E seja que for o final dessa história o certo é que um dia estarei no meu próprio cantinho, com todo meu ser envolto em glória, na certeza de que percorri meu traçado caminho.

Page 17: Os Novos Meninos do Morro

65

MEUS OLHOS

Não adianta me roubarem os olhos para tentarem enxergar o que vejo meus olhos conduzem à visão do conjunto do meu peito composto sobre os escombros do meu passado imperfeito Vida do Morro trabalho incessante sonho constante angústia permanente peito reprimido voz presa na garganta Mesmo cego eu enxerguei e se roubarem meus olhos jamais verão a minha verdade

66

PRIMEIRO DE JUNHO DE NOVENTA E CINCO Inicio a minha saída da tristeza, campo por onde andei vagando nos últimos passados dias e noites. Esse calmo lugar por onde caminhei apresenta-se sempre cinza e pesado num marcapasso lento e tenebroso, onde não há espaço para a vida. E nesses dias passados, fui à tristeza levado por tanto meditar sobre a humanidade e seus

males, meus amigos e suas vidas, suas fomes e desejos mortos, lamentos e amarguras presentes nas suas ruas e casas. Não houve nada além de pensamento e procura de um novo sentimento ou nova loucura, remédio para a cura da cegueira que se apresenta

á face, remetendo ao escuro tantas vozes e mentes que nunca encontram satisfação em um dia novo pois entregam as armas antes de estar na trincheira criando um nada no horizonte. Sei que sou homem meio menino e que ainda hoje, diante de tanta idade, me saltam os pensares de criança envolvendo meu ser

67

e carregando minha alegria para o lugar dos meus que aos poucos se vão compondo a história daqueles que se perderam sem escrever nada, absolutamente nada além de engraçadas lembranças da aldeia onde nascemos e crescemos juntos como mortos-vivos, filhos do vento e da chuva que cai e escorre pelas sarjetas a diluir-se só. Se eu contar que causou-me qualquer

ensinamento creia que falo a verdade, causou-me sim porque quando vagueio por entre a tristeza esses meus pensares refletem claramente o ponto da história em que todos nos encontramos e vejo que, mesmo após tanta luta, nada se fez, nada mudou além de simples orgulho de brilhar solitariamente, feito a Estrela Dalva em dia de verão. Vi que preciso guerrear muito mais, mesmo já tão cansado, tão mudado e tão velho, moço-velho forjado nas lutas para viver. Vi que preciso sair pela estrada a falar, falar para todos, peregrinar pelos becos e vielas, pelas ruas e praças, pelos bares e tabernas pregando a esperança e contando a verdade sem mudar o jeito inicial da cavalgada perseverante e paciente, na certeza da vitória,

um dia. Deixei a tristeza, minha companheira dos

últimos dias, porque chega junho e tem festa de roda, tem fogueira e balão, poucos a ver,

mas ainda tem nos lugares mais distantes do centro da cidade

68

marcando o mês da Boneca. Estou alegre e feliz. Vou festejar com a Boneca sua felicidade, pois em junho, dezessete, me veio ela para adoçar meus braços e acariciar meu peito e retirar-me das tristezas criadas por esses meus pensares em que, de quando em vez me encontro. Salve junho. Salve minha Boneca. Salve minha alegria. Salve dezessete. Salve minha filha. Salve teu dia.