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OS PARTIDOS E A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA: UMA
RELAÇÃO POLISSÊMICA
Ana Kelson Batinga de Mendonça1
RESUMO: O desenvolvimento da representação partidária reveste-se de
desenvolvimentos contrários: os partidos, enquanto organizações, surgiram em
contraposição a própria representação e tornaram-se, surpreendentemente, uma das
marcas do que tornou-se conhecido como “democracia contemporânea”, a despeito das
críticas acerca do faccionalismo. Neste desenrolar, os partidos, enquanto facções,
fortificaram ainda mais o processo eleitoral enquanto arena. Esta, de caráter
polissêmico, apresenta uma dupla caracterização: ao mesmo tempo em que, seguindo a
leitura Habermasiana, é um dos responsáveis pelo afastamento da política na esfera
pública, permite concomitantemente que construam-se sistema de fidelidades dos
militantes e simpatizantes à estrutura partidária, gerando significantes aos indivíduos e
aos partidos políticos. Pretende-se aqui abordar esta polissemia de significados em sua
relação com a representação política.
PALAVRAS-CHAVE: partidos políticos; representação política; Habermas;
democracia representativa
O DESENVOLVIMENTO DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA NÃO-
PARTIDARISTA NOS ESTADOS UNIDOS E INGLATERRA
Os partidos políticos são, atualmente, considerados o símbolo da representação
política, levando inúmeros autores a descrever a “crise dos partidos”2 enquanto uma
crise da representação. Porém, a conexão intrínseca dos partidos com a representação
política desenvolveu-se somente a partir da segunda metade do século XIX, não estando
presente nas origens da instituições representativas e de seu corpo institucional.
Originalmente, a representação política, seja na Inglaterra, Estados Unidos ou França,
estruturou-se de modo a evitar o poder das facções, em seus diferentes modos vistas
como um mal a ser contido a partir da estrutura do Estado e da política.
1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, [email protected], mestranda em Ciências
Sociais. 2 Cf. Manin 2002.
2
A forma como se estruturou a representação partidarista, dos comitês eleitorais
aos partidos de massa dos séculos XIX e XX, se deu processualmente. Ao longo do
século XVIII, a representação era vista como contrária e superior à democracia,
considerando esta como uma forma governamental instável que permitiria o desenrolar
das facções, com possibilidades do domínio de uma maioria por uma minoria.
O uso do termo “facções” deve ser visto com cuidado, já que “desde luego,
quien disse “facción” no disse todavia “grupo parlamentário”; entre ambos hay toda la
diferencia que separa a lo inorgânico de lo organizado. Pero el segundo salió de la
primera, a través de uma evolución más o menos rápida (Duverger, 2012, 16)”. A
evolução das facções aos grupos parlamentares se deu em meio à mudanças na forma de
compreensão da política e de estruturação econômica da sociedade.
A criação do sistema representativo moderno, baseado principalmente a partir
das políticas inglesa e americana, desenrolou-se tendo em vista a neutralização das
forças, de forma a permitir a emergência de um bem-comum, sem que um “partido”
pudesse dominar os demais grupos e indivíduos. Se, atualmente, os partidos se tornaram
um dos elementos de sustentação dos regimes políticos democráticos (Panebianco,
2005), um dos símbolos da “democracia representativa”, seu peso e importância dentro
deste modelo organizacional é relativamente recente.
en 1850, ningúm país del mundo (com excepción de los Estados Unidos)
conocía partidos políticos em el sentido moderno de la palavra: había
tendências de opiniones, clubes populares, asociaciones de pensamentos,
grupos parlamentários, pero no partidos propriamente dichos. Em 1950, éstos
funcionan em la mayoria de las naciones civilizadas (Duverger, 2012, 15).
Esta mudança foi precedida, no século XVIII, pela discussão e construção do
corpo institucional representativo, em um processo de transmutação de significados
acerca da representação que não pode ser demonstrado a partir de uma imagem fixa,
simples, estabilizada. Foram diversos desenvolvimentos paralelos, em distintos países e,
mais além, em distintos autores.
Muito desta construção não se deu de maneira deliberada, a partir da ponderação
e da discussão entre indivíduos, mas sim a partir do desenrolar da própria história, que
muitas vezes não deixa espaço para o livre pensar acerca de seus sistemas institucionais.
3
Este não foi o caso dos Estados Unidos, “the first people whom heaven has favoured
with an opportunity of deliberating upon, and choosing the forms of government under
which they should live” (Burgh apud Wood 1998, 127).
O histórico americano em suas relações com a coroa inglesa é uma história na
qual os colonos associavam-na à tirania, taxações e corrupção. O poder executivo inglês
e seus governadores, que respondiam ao Império, distribuíam postos de trabalhos,
indicavam cargos, formando assim uma estrutura que permitia o crescimento cada vez
maior da coroa inglesa. Por meio de um vasto sistema de “influência” utilizado para
controlar eleições, os ministros ingleses assim mantinham as colônias americanas – com
a corrupção como uma máquina poderosa no governo (Ibidem.) e uma constante fonte
de irritação dos americanos.
O poder executivo era associado à tirania e o objetivo dos colonos era buscar a
liberdade. Buscar a liberdade não significava somente a independência – apesar de esta
ser necessária – mas erigir a base que possibilitasse a fundação de uma sociedade livre e
estável. Assim, a ação do congresso tornou-se o ponto nevrálgico e a representação sua
concepção política mais importante.
O ponto de atrito entre a Inglaterra e os Estados Unidos advinha do conflito
entre representação virtual e representação real, estruturado principalmente a partir de
Burke. Para Burke, governar significa perseguir o bem da nação, a razão geral do todo
(Pitkin 2003, 169), ao invés das paixões e vontades dos indivíduos, com o povo inglês
constituído enquanto ordem unitária e homogênea, com interesses em comum, como um
único corpo e com um único interesse definido (Wood, 1998). Assim, mesmo um não-
eleitor estaria representado pelo parlamento e pela coroa inglesa, pois formam um só
corpo unitário, lógica por trás da representação virtual. Não é o voto que substancia o
vínculo entre legisladores e a população, e sim a existência de uma identidade e
interesses compartilhados. Assim como em muitos estados pobres da Inglaterra não
havia eleições, o que não significava – por conta da representação virtual - que não eram
representados, pois teriam os mesmos interesses, a mesma relação se dava com os
colonos americanos. Estes eram representados pela coroa inglesa, vistos como um só
4
corpo, parte de uma unidade homogênea que compartilhavam – para os ingleses – uma
identidade em comum. Como diz Edmund Burke, em sua teoria sobre a representação:
Parliament was not a congress of ambassadors from diferent and hostile
interests, which interests each must maintain, as an agent and advocate,
against others agents and advocates; but Parliament is a deliberative assembly
of one nation, with one interest, that of the whole, where, not local purposes,
not local prejudices ought to guide, but the general good, resulting from the
general reason of the whole. (Burke apud Wood 1998, 175)
Não são os “propósitos locais”, portanto, como afirma Burke, que deveriam
guiar a ação parlamentar, mas o bem comum. Esta foi a base teórica que fundamentou o
Estado Inglês. O parlamento representa a nação e tem como sua principal substância a
promoção dos interesses, não os interesses egoístas dos sujeitos da teoria hobbesiana,
mas sim interesses que muitas vezes vão contra as paixões dos governados, interesses
fixos, claros e definidos, acima dos desejos múltiplos e voláteis dos indivíduos3. Não
são interesses de grupos, mas econômicos e gerais, como os interesses sobre a
agricultura, por exemplo. Assim, um dos pontos de coalizão seria a comunhão de
interesse - representando o interesse nacional - para existir uma representação virtual a
partir da deliberação e do debate racional.
The inteligent, well-informed, rational man, who has studied and deliberated
and discussed the matter, is the man most likely to know the true interest of
any group. Conversely, particular individuals or groups may be mistaken
about what is to their interest. Thus the representative´s duty toward his
constituents is ‘a devotion to their interest rather than to their opinions’
(Pitkin, 2003, 176)
Os parlamentares – “superior men of wisdom and ability” (Ibidem, 169) –
representariam interesses e não opiniões – volúveis e instáveis – de seus membros, não
havendo assim uma relação de mandatos imperativos, como na Idade Média, ou de
organização das massas com vistas a embates ideológicos. Este fator, tanto do papel de
organizar as camadas mais pobres como de inseri-los na política a partir das
organizações partidárias, refletem espectros ideológicos esquerda-direita que tem inicio
3 Apesar das discussões sobre o “interesse da nação”, o desenvolvimento do parlamentarismo Inglês, com
a instituição do “Rei-no-Parlamento” (Kantorowicz 1998), resultou no “desenvolvimento parlamentar das
“facções” (Habermas 2014, 195), gerando novos campos de tensão e cisões dentro do Parlamento.
5
a partir da Revolução Francesa, desenvolvendo-se com toda sua força ao longo do
século XIX.
Neste desenrolar da teoria política inglesa, a existência da representação virtual
pressupõe uma partilha de interesses. Portanto, algumas partes da nação inglesa eram
representadas “realmente” – elegendo ao parlamento um ou mais membros - enquanto
outras o eram virtualmente, com a presença de membros que perseguem o interesse real
do seu constituinte. A representação virtual seria um relacionamento no qual “there is a
communion of interest and sympathy in feelings and desires between those who act in
the name of any description of people and people in whose name they act, though the
trustees are not actually chosen by them” (Ibid., p. 173).
Assim, mesmo regiões que não possuíssem sufrágio estariam representadas se
houvesse uma comunhão de interesses, não sendo necessário a expansão do sufrágio já
que, na ótica de Burke, tais regiões seriam contempladas pelos representantes enviados
por outros condados. Para Burke, a expansão do sufrágio masculino e a igualdade
eleitoral dos distritos faria dos membros do parlamento representante das pessoas, ao
invés dos interesses gerais, introduzindo assim a “representação pessoal’.
Faz-se necessário frisar aqui que, para Burke, a representação virtual deve ter
um substrato na representação real. O sufrágio garante a promoção das reflexões dos
sentimentos populares e a conjunção de dados para fundamentar o trabalho legislativo –
dados como os sentimentos, necessidades e sintomas do povo (Ibid.). A transmissão dos
sentimentos populares seria necessária para a representação, constituindo-se como um
material a ser trabalhado. “Virtual representation cannot have a long or sure existence if
it has not a substratum in the actual. The member must have some relation to the
constituent” (Ibid., 177).
Porém, quando as divergências são grandes, quando não há compartilhamento
de identidades e interesses, pode não haver nem representação real e tampouco
representação virtual, mesmo para Burke. Assim, nega o autor que os americanos
fossem virtualmente representados, já que não haveria interesses compartilhados entre a
Inglaterra e as treze colônias, tampouco representantes no parlamento que
compartilhasse destes interesses. Se há diferenças substanciais que não estão sendo
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encontradas e protegidas no parlamento, para Burke, no caso destas localidades a
expansão do sufrágio seria necessária (Ibid., 178).
A partir desta lógica, os Estados Unidos não se viam contemplados dentro da
representação virtual, negando a justificação da representação parlamentar e o uso dos
impostos sobre a colônia, pois não haveriam interesses mútuos ou identidades em
comum.
By conceiving of themselves as a whole people distinct from England,
because of the ‘desparity between the two countries, in respect of situations,
numbers, age, abilities and other circumstances’, the Americans could
renounce parliamentary authority over their internal affairs without
necessarily denying the particular concept of virtual representation (Wood
1998, 178)
A objeção, portanto, não residia na necessidade de eleições enquanto
fundamento legítimo da autoridade - no fato dos parlamentares ingleses não serem
eleitos pelos americanos – mas sim na disparidade de interesses entre ambos. Os
colonos, por suas diferenças com os ingleses, jamais poderiam se sentir representados, o
que não significa que a representação virtual em si fosse negada. Segundo Hamilton, um
dos federalistas na constituinte americana, era a intima conexão de interesses que
tornava a representação viável (Ibidem, 179), sendo tal concepção política o que
permitia que continuassem sendo negados à determinadas classes de cidadãos, como
negros e mulheres, o direito ao voto, sem significar como consequência que estes
deixavam de serem representados.
Este republicanismo americano com ênfase ao bem-comum e à legislatura
“desinteressada”, representando o “todo” e não as “partes”, esbarrava em outra tradição
americana que ia na direção contrária à representação virtual. A representação enquanto
representação das partes, e não do todo. Uma concepção distinta e ao mesmo tempo
complementar à “representação virtual”, evidenciando as polissemias que cercaram a
constituição da representação política americana.
Dando forma à representação virtual, há uma concepção política que foi se
compondo com distintas características ao longo da política moderna e extremamente
forte no século XVIII. A representação virtual existe dentro de uma concepção política
na qual os indivíduos não se constituem enquanto seres hostis entre si, mas como um
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todo integrado, partilhando um interesse – criar uma nação e viver em comunidade - e
um bem comum, e na qual este representa a transcendência em relação às diferenças dos
grupos sociais.
The eighteenth century had sought to understand politics, as it had all of life,
by capturing in an integrated, ordered, changeless ideal the totality and
complexity of the world – an ideal that the concept of the mixed constitution
and the proportioned social hierarchy on which it rested perfectly expressed.
(Ibid., p.606)
Para haver representação virtual, seria necessária uma sociedade integrada, já
que se compreende que os interesses de um e de outros são compartilhados,
significando que os homens não são contrários, hostis e únicos, mas que compartilham
uma existência, na qual a sintética conexão que é feita não são entre os indivíduos em si,
mas entre legisladores e legislados, de forma a prover o bem comum e o interesse da
sociedade.
A grande revolução na teoria política realizada pelos americanos foi transformar
a concepção do homem – e da sociedade – aplicando-a ao corpo institucional que estava
se formando. Os homens deixaram de ser compreendidos somente enquanto portadores
de um interesse geral e passaram a ser vistos também como egoístas, lutando por si
mesmo e organizando-se em grupos e facções. Estas facções, que para Madison são um
“mal”, seriam inevitáveis.
Entendo por facção uma reunião de cidadãos, quer formem a maioria ou a
minoria do todo, uma vez que sejam unidos e dirigidos pelo impulso de uma
paixão ou interesse contrário aos direitos dos outros cidadãos, ou ao interesse
constante e geral da sociedade. (Hamilton and Madison 1973, 101)
As facções - ou partidos - podem impor sua força a uma maioria ou minoria,
“sem atender as regras da justiça e aos direitos do partido mais fraco” (Ibid., p. 100).
Porém, apesar de constituírem-se negativamente para a União, não haveria, para os
federalistas, meios de prevenir seu surgimento, já que os homens são distintos em suas
naturezas, havendo divisões a partir de diferentes interesses. “A natureza humana
encerra germes escondidos de facções; e nós os vemos desenvolver-se com diferentes
graus de atividade, segundo as diferentes combinações das sociedades humanas” (Ibid.,
p. 101).
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É neste contexto que a concepção de representação “real” ganha força. Já que
não há um compartilhamento implícito e tampouco relações amenas entre os seres
sociais, necessita-se de algo que crie e substancie a representação politica. A sociedade
não é um todo integrado, os interesses e os indivíduos são conflitantes e é enquanto
seres conflitantes que acordos entre eles mesmos são realizados – a constituição de um
corpo político. Assim, a origem do poder dá-se nos indivíduos, e a união dos indivíduos
não se constitui antes da formação do corpo político, com este ecoando a igualdade, mas
sim, após e por meio da instituição representativa. “It is in their legislatures (...) that the
members of a commonwealth are united and combined together into one coherent,
living body. This is the soul that gives form, life and unity to the commonwealth (Wood
1998, 162). Neste caso, a sintética conexão é a dos indivíduos entre si, de forma a criar
um sistema político que se previna perante a existência de um homem que irá perseguir
seus próprios interesses e se juntar em grupo com possibilidades de tentar controlar e
repreender as demais facções e forças existentes. É importante então atentar para o
processo de mudança no conceito representativo no corpo da teoria política.
Americans had begun the Revolution assuming that the people were a
homogeneous entity in society, set against the rulers. But such an assumption
belied American experience, and it took only a few years of independence to
convince the best American minds that distinctions in the society were
‘various and unavoidable,’ so much so that they could not be embodied in the
government (Ibidem, p. 607)
O desenvolvimento da concepção acerca do homem conecta-se ao de
representação real. Este se tornou o principal conceito político da nova Constituição
que, pressupondo os homens sem laços naturais que os una, necessita das eleições para
validar a criação de uma nova forma de poder. Se a maquinaria eleitoral tornou-se tão
importante nos Estados Unidos, com eleições para as diversas esferas de poder,
legislativo, executivo e judiciário, foi por conta do desenvolvimento do conceito de
representação real e da necessidade de gerar consenso ao poder político. Tal
representação repercutiu na construção do aparato político, na repartição de poderes e
no modo com os eleitores relacionam-se com os seus legisladores. Apesar de, durante a
convenção, o direito ao voto não ter sido a questão central que envolvia a formação do
9
novo governo, pouco a pouco ele se tornou a essência do que chamar-se-ia de
“democracia americana” (Ibid.).
A república representativa americana surgiu enquanto resposta aos homens
constituídos também como seres egoístas, imperfeitos, “acessíveis às sugestões da
ambição, da avareza, da animosidade pessoal, do espírito de partido e de outros motivos
igualmente pouco louváveis” (Hamilton e Madison, 1973, 94). Uma forma de tentar
evitar a transformação da representação política em uma arena na qual as paixões
triunfem, sob o jugo dos partidos políticos. Para tanto, foi sedimentada uma concepção
de república que emergiu como a força da revolução, a república representativa, grande
novidade introduzida pelos Estados Unidos e deliberadamente vista como diferente da
democracia.
A criação do corpo institucional que se deu durante a revolução, como apontado
anteriormente, tinha como objetivo a proteção das minorias e a prevenção ao poder
possível das facções. De tal forma, era necessário um sistema capaz de lidar com a
ambivalência da natureza humana concebida pelos federalistas, na qual coexiste a busca
de um interesse comum ao mesmo tempo em que se persegue os próprios interesses. De
tal forma, se contrapôs a república com a democracia, com a república constituindo-se
como o principal remédio “contra as facções e insurreições" (Ibid., 100).
Para Madison, a democracia pura carrega inúmeros limites. Para esta funcionar,
é necessário um território pequeno, no qual o povo – um pequeno número de pessoas -
possa se juntar e exercer pessoalmente o governo. Porém, em um governo pequeno, a
possibilidade de uma maioria exercer o poder sobre uma minoria, ou vice-versa,
aumenta, com grupos e facções sacrificando o bem-público às suas paixões e
oferecendo “o espetáculo da dissensão e da desordem” (Ibid., p. 103). Como tais
facções são inevitáveis em qualquer tempo ou lugar, o ideal tomou a forma de um
governo capaz de neutralizar a força de tais grupos.
O fim principal da legislação moderna deve ser o de submeter a regras certas
esta multidão de interesses opostos; e o espírito de partido e de facção deve
entrar sempre no cálculo das operações ordinárias e necessárias do governo.
(Ibid., p. 102)
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Fez-se necessário, portanto, uma forma de governo que permitisse um maior
território e maior número de cidadãos, com a criação de um corpo político no qual se
moderarão as forças políticas, permitindo que cresça a “variedade dos partidos e dos
interesses diferentes”, diminuindo “o perigo de que a maioria tenha um motivo comum
para violar os direitos dos outros cidadãos” (Ibid., 105). A lógica do pensamento
americano é sempre a de moderação das forças e dos poderes. Se um grupo político
torna-se perigoso, neutraliza-se na esfera legislativa, tendo de participar da contenção
do jogo político.
A república representativa, portanto, não se funda na democracia, sendo mesmo
vistas como contrárias, com a república como superior em distintos aspectos. É
necessário frisar isto, os defeitos que se viam envolvendo a democracia pura e a
negatividade com os “partidos”, que na realidade constituía-se enquanto facções
políticas.
A apreensão em relação ao perigo da facção dominante deu-se em uma época em
que os partidos ainda não estavam organizados em grupos ideológicos, com organização
de doutrinas e uma estrutura autocrática (Duverger, 2012). As preocupações dos
federalistas em relação ao poder político e à natureza egoísta dos homens deu-se em
meio à preocupação de criar um ambiente que, deixando todos em sua irrelevância,
pudesse permitir que o todo – o bem comum, o interesse geral da nação – emergisse,
evitando assim que as questões fossem decididas “pela força superior de uma maioria
interessada e opressiva” (Hamilton e Madison, 1973, 100).
A crítica à democracia, portanto, não era em relação a seu caráter igualitário – a
questão da isonomia e isegoria na política não estava em debate. O que os federalistas
buscavam era uma forma governamental possível e de qualidade em grandes territórios,
que permitiria a depuração das opiniões e, principalmente, que fosse durável e estável.
De tal forma, a imprudência da democracia seria refreada pelo corpo permanente da
república representativa – e esta evitaria a volubilidade das opiniões dos cidadãos e
haveria uma maior chance na escolha de homens com maior sabedoria que visariam ao
bem público, apesar das eleições não ser em si uma garantia à isso. A grande
preocupação dos americanos na construção de um novo corpo político, com o
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constitucionalismo já tomado como ponto nevrálgico, era a construção de uma forma de
governo garantida às futuras gerações (Arendt, 2011, 285).
The Americans had reversed in a revolutionary way the traditional
conception of politics: the stability of government no longer relied, as it had
for centuries, upon its embodiment of the basic social forces of the state.
Indeed, it now depended upon the prevention of the various social interests
from incorporating themselves too firmly in the government4 (Wood 1998,
606)
Assim, Madison examina as causas dos governos que têm “muito pouca
estabilidade; que o bem público é sempre esquecido nos conflitos dos partidos rivais”
(Hamilton e Madison, 1973, 100) e a concepção da natureza do homem e a
inevitabilidade da facção se coadunam portanto na república e no governo federativo, a
combinação considerada mais perfeita para a solução do problema dos tamanhos dos
estados, dos perigos das facções e das instruções dos eleitores em relação aos
representantes. Assim, quanto ao governo federativo, Madison afirma que “os interesses
gerais são confiados à legislatura nacional, os particulares e locais aos legisladores dos
Estados” (Ibid., 104), criando uma “república federativa, no qual podem compreender
um “maior número de cidadãos e um território mais vasto” (IBID., 105) que as
democracias e as repúblicas menores. De tal modo, a saída dada pelos americanos foi a
confederação de republicas, que “poderia resolver os problemas de países maiores,
desde que os corpos constituídos – pequenas repúblicas – fossem capazes de constituir
um novo corpo político, a República Confederada, em vez de se contentar com uma
mera aliança” (Arendt 2011, 203). Desta forma, com a “república confederada”,
buscou-se a criação de um novo centro de poder que, deixando de derivar lei e poder da
mesma fonte, permita a criação de um novo corpo político a partir dos corpos
subordinados
Os americanos destituíram sua concepção antiga de governo misto e criaram
novas explicações para suas políticas, explicações estas que descansam no princípio de
representação e que tem por base uma sociedade de indivíduos que substancia o poder.
Assim como a representação real foi se emponderando nos Estados Unidos, o voto foi
pouco a pouco se tornando a questão central na representação americana. Porém, não
4 Grifo nosso.
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era ele que transformava a política americana em representativa, ganhando com o tempo
peso e importância. Primeiramente o grande poder dado aos representantes do povo e
posteriormente a base de autoridade concedida a partir das eleições periódicas passaram
a ser vistos como os dois principais elementos democráticos, já que colocou o povo, em
sua multiplicidade e unicidade, como a base do poder – tornando assim a representação,
que inicialmente surge contra a democracia, em democrática.
O poder que deriva do povo – mesmo que o povo em si não seja o responsável
pela concepção das leis sob as quais ele irá viver – fez com que de 1776 a 1780
houvesse uma reviravolta nas denominações, com a confederação de repúblicas
tornando-se uma “república democrática” (Wood, 1998.). A concepção de república
democrática significa a compreensão da criação de uma forma de governo distinta tanto
da democracia pura quanto da aristocracia pura, tornando a política americana
“‘representation ingrafted upon democracy’” (Ibidem., 595). A concepção da forma de
governo que surgiu no desenrolar da revolução americana foi vista como uma melhora
da república e uma melhora em relação a democracia, iniciando a concepção de
“democracia representativa”, noção está que será legitimada por meio da Revolução
Francesa e que se tornará o grande paradigma da política moderna.
A Revolução Francesa
A Revolução Francesa pode ser compreendida como o principal evento do
século XVIII, ao menos em termos de influência mundial. É daí que emergem e
cristalizam-se noções como dos direitos humanos, da representação da nação e da
legitimação da democracia.
A formação dos grupos e facções durante a revolução se deu primeiramente por
proximidade geográfica, reunindo-se os deputados das províncias dos Estados Gerais
em Versalhes e preparando a defesa dos interesses locais. A percepção de que suas
opiniões vão além das questões regionais, mas de problemas concernentes à política
nacional, fez com que pouco a pouco começassem a surgir grupos com uma forma
ideológica, em um processo que irá reverter-se na virada do século XIX ao século XX –
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não mais sendo dos problemas locais para posteriormente reunir-se enquanto facção de
doutrinas mas o seu contrário (Duverger, 2012, 17).
Apesar deste processo de representação que, pouco a pouco, tomou forma na
Revolução Francesa, o que se buscava era uma unificação da vontade nacional (Sartori,
1962). E, em uma sociedade no qual o pensamento filosófico repercutiu e tomou
proporções muito maiores do que a prática política, cerceada pela centralização do
Estado realizado pelo Antigo Regime (Tocqueville, 2009), Rousseau se tornou um dos
principais filósofos a influenciar o desenrolar desta Revolução, conjuntamente com sua
concepção de representação política. Com uma visão acerca da liberdade próxima de
Aristóteles, na qual a liberdade só pode se realizar entre iguais, o autor defende que
deve-se uma “soma de forças capaz de prevalecer sobre a resistência, de mobilizá-las
com uma só motivação e de fazê-las operar conjuntamente" (Rousseau, 2011, 65).
Rousseau, que era “contra a indiferença do salon e contra a ‘insensibilidade da razão”
(Arendt, 2011, 126), queria a formação de uma situação de liberdade, de resistência a
essa sociedade “hipócrita”, devendo gerar uma situação na qual cada individuo, sempre
em conflito consigo mesmo – contratante em primeiro lugar de si mesmo – possa
construir a força comum.
Esta força comum não pode ser gerada em regimes políticos como a
representação eleitoral, a monarquia ou a aristocracia, pois o que vigorará será sempre a
vontade particular – mesmo que essa vontade particular seja a vontade de muitos.
Rousseau busca a formação de uma “vontade geral” que estruture a soberania, e da qual
o poder venha a surgir desta vontade. “Cada um de nós dispõe em comum da sua pessoa
e de todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral, e recebe, enquanto corpo,
cada membro como parte indivisível do todo” (Rousseau 2011, 66). Tal vontade é o
corpo moral e coletivo que deve reger a sociedade. Segundo Rousseau,
há uma grande diferença entre a vontade de todos e a vontade geral. Esta só
diz respeito ao interesse comum, a outra diz respeito ao interesse privado, não
sendo mais que uma soma de vontades particulares. Mas tirem dessas
mesmas vontades o mais e o menos que se anulam, e o conjunto das
diferenças será a vontade geral (Ibidem., 81)
14
A criação de uma “soberania coletiva”, que segundo Constant “forneceu,
todavia, desastrosos pretextos a mais de um tipo de tirania” (Constant 1985, 04),
contraria a representação que, para Rousseau, sempre diz respeito ao interesse privado.
Buscava-se a criação de uma vontade política enquanto vontade indivisível, una, na qual
na “multidão reunida num só corpo” (Rousseau 2011, 68) dirige as forças do Estado.
somente a vontade geral pode dirigir as forças do Estado de acordo com a
finalidade da sua instituição, que é o bem comum; porque se a oposição entre
os interesses particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades,
foi a concordância desses mesmos interesses que o tornou possível. O que
forma o vínculo social é o que há de comum (...) Ora, é unicamente com base
nesse interesse comum que a sociedade deve ser governada (Ibidem., 77)
A “vontade geral” encaixou-se perfeitamente naquele momento histórico,
influenciando aqueles que lideraram a Revolução Francesa e gerando uma soberania
abstrata na qual os indivíduos deveriam renunciar a si em nome da nação.
Desta forma, ocorreram conflitos e transmutações, entre a “representação
política” parlamentarista e uma soberania que não é representada; entre a soberania
popular e a soberania da nação; entre o consentimento da maioria e a vontade geral,
indivisível.
Quanto mais reinar a concordância nas assembleias, isto é, quanto mais as
opiniões se aproximarem da unanimidade, mais também a vontade geral será
dominante; enquanto os longos debates, os dissensos, o tumulto, anunciam a
ascendência dos interesses particulares e o declínio do Estado (Rousseau
2011, 163)
Tal “concordância”, a busca por uma unanimidade, entra em contraposição a
uma das características da representação política, que é a presença da dissensão e do
debate – e isto representa o declínio do Estado, para Rousseau. O exercício do poder
político consiste “essencialmente na vontade geral, e a vontade não se representa: ou é a
vontade geral, ou é outra vontade” (Ibidem., 151)
Este período ao longo de todo o século XVIII na França pode ser visto como um
momento de efervescência filosófica e cultural. Se no âmbito político o Rei Luis XVI
construía um Estado centralizado e hierárquico (Tocqueville, 2009), no âmbito social
ocorria um desenvolvimento distinto, com o desenvolvimento da burguesia, que
almejava maior liberdade e livres discussões entre indivíduos, que passaram a discutir a
15
cultura, o comércio e a política (Habermas, 2014). Este contexto influenciou o
posicionamento dos indivíduos contra o poder político, visando colocar o “povo” como
o centro do poder.
O mundo da argumentação e da comunicação burguesa refundou a ordem
política na França Revolucionária, com a “Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão” (Habermas, 2014, 247). A criação de uma esfera pública racionalista e
comunicativa organizou a ordem política, com formas de controle do governo por meio
da mediação realizada pela “opinião pública” entre o Estado e as necessidades da
sociedade.
Neste contexto, é interessante lembrar o papel que a comunicação exerce para
Habermas e a repercussão de uma forma de pensar a vida social - tal como a teoria
rousseauniana - no qual o debate e a discussão são pontos negativos dentro da
constituição do corpo político. Para Habermas, o campo da linguagem e da
comunicação estão intrinsicamente relacionadas à suspensão temporária das normas e a
possível estruturação de novos princípios operantes das sociedades. Mudanças na esfera
da comunicação, no espaço social, significam afetar as relações de poder que ocorrem
no “sistema”, “as estruturas societárias que asseguram a reprodução material e
institucional da sociedade: a economia e o Estado” (Freitag, 1993: 26). Assim, se o
século XVIII viu a formação de uma esfera pública burguesa comunicativa, tanto nos
Estados Unidos, Inglaterra e França, caracterizado pelo componente dialogal e formado
como o “oponente abstrato do poder público” (Habermas, 2014), a Revolução Francesa
gestou, por um lado, o pensamento totalizante do corpo politico construido pela
"vontade geral" e, por outro, o inicio das dicotomizações que tomarão corpo ao longo do
século XIX, interferindo na ação comunicativa e nas novas formas de estruturação da
representação política. Disto irá decorrer o surgimento dos partidos políticos de massa.
A França vivenciou desde 1789 uma grande instabilidade governamental,
estendendo-se ao século XIX inteiro. Se, segundo Marx, a Revolução Francesa vestiu-se
com as “vestes” de Roma Antiga, Arendt afirma que as revoluções do século XIX foram
vestidas a partir da Revolução Francesa (Arendt, 2011). O fato é que, a partir de 1789,
começou-se a desenhar uma série de compreensões políticas presentes até hoje no
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pensamento político contemporâneo – conceitos como esquerda e direita, progressista e
conservador, entre outros, que têm sua origem no período revolucionário, ganharam
roupagem nova no século XIX, com o aprofundamento do capitalismo e o surgimento
dos partidos liberais, socialistas e classistas (Duverger, 2012).
O desenvolvimento do pensamento político a partir da segunda metade do século
XIX desenvolve-se a partir desta tripla relação: da democracia com a representação,
acrescida da expansão da esfera pública dentro de novos modelos de compreensão da
realidade social, que reestruturaram as formas de compreensão da política e da
sociedade.
Enquanto, segundo Manin (2002), no “parlamentarismo liberal” as escolhas dos
representantes eram feitas com base em relações de confiança pessoal, a eleição dos
representantes geralmente se dando diretamente com base em sua notoriedade, a
representação partidária irá modificar a maneira de mobilização e organização dos
eleitores.
A representação liberal funcionava pelo componente plutocrático e por aqueles
que se destacam nas teias de relações sociais, em geral ocorrendo uma relação de
proximidade entre eleitores e eleitos, na qual mantém-se entre eles uma relação direta.
Deste modo, existia uma esfera pública burguesa nos séculos XVIII e inicio do XIX que
se caracterizava, na França, pela livre discussão de ideias, sem campos já
ideologicamente posicionados, nos cafés, salões, cafés e Tischgesellschaften5. Para
Habermas (2014), o processo dialogal, para ter um componente construtivo, necessita da
presença da liberdade do uso público da razão, o que significa a existência de espaços
livres de comunicação entre indivíduos, sem a organização em grupos que defendem
interesses já previamente estabelecidos. Para o autor, as discussões na democracia
5 “Mas alguns elementos semelhantes também se encontram aqui, em primeiro lugar, nas cultas
Tischgesellschaften, as antigas sociedades de conversação do século XVII. Naturalmente, são menos
atuantes e difundidas do que os cafés e os salões. (...) Todavia, como nos cafés, seu público é recrutado
entre pessoas privadas que exercem trabalho produtivo, isto é, em razão da honradez urbana da residência
principesca, com uma forte preponderância dos burguesas academicamente cultos. As ‘sociedades
alemãs’, seguindo aquela fundada por Gottsched em Leipzig em 1727, são uma continuidade das ordens
literárias do século anterior. (...) Como diz um dos documentos de fundação, elas partiam do fato ‘de que,
entre pessoas de estamentos tão desiguais, poderia haver uma igualdade e uma sociedade’”. (Habermas
2014, 148)
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liberal ainda serviam como um espaço de liberdade para se testar a razoabilidade e a
“verdade” das leis. A constituição da esfera pública permitia a escolha dos
representantes a partir da interferência no debate público, paralelo à publicização e
contestação do poder político.
Tal modelo de representação moderna vigorou ao longo do final do século XVIII
à metade do XIX, quando surgem os partidos de massa, decorrentes da industrialização,
dos conflitos de classe, da expansão do sufrágio eleitoral e do aumento populacional em
geral. Este contexto social gerou novas condições sociais e alterou a maneira como o ser
humano se relaciona com a política.
As significações dos partidos políticos na democracia representativa
As transformações societárias, como a criação de oligopólios – grandes
conglomerados econômicos e jornalísticos – e de campos de tensão em torno de
interesses organizados, como a burguesia e proletariado, além da penetração da cultura
de massa nos grupos sociais, fez com que tanto a estrutura político-partidária quanto a
relação das pessoas com estas se transformassem. De um lado, temos as movimentações
sociais, vestidas com a roupagem da Revolução Francesa, influenciadas por ideários
seja de esquerda ou direita e, de outro, a expansão do sufrágio eleitoral.
la creación electoral y parlamentaria de los partidos corresponde a uma fase
determinada de la evolución democrática: la del estabelecimento progressivo
del sufrágio universal (em la prática y no solo em los textos jurídicos,
precedendo estos generalmente a aquéllos). Se trata, entonces, de organizar
progressivamente a uma massa de electores nuevos, passando de um
escrutínio personal a um escrutínio coletivo (Duverger, 2012, 28).
Concomitante a isto, Habermas trata de uma relação de continuidade entre os
direitos fundamentais estabelecidos nas constituições liberais – como a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão - e a transposição desta mera demarcação de direitos
para um Estado que passa a ordenar a vida social, dando garantias materiais e ganhando
um novo status, de um Estado com uma obrigação de ação em relação à esfera do social.
Foi o que ocorreu o longo do século XIX, a transformação do Estado de direito liberal
para o Estado de Bem-Estar social (Habermas, 2014).
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Com esta transformação, aumenta o poder da administração do Estado sobre a
vida privada das pessoas, o que Habermas chamou de “estatização da sociedade”. Este
Estado de Direito transformou o cidadão em “cliente”, a espera dos serviços do Estado,
renunciando à participação ativa. Ao mesmo tempo, ao desenvolvimento de grupos
empresariais em oligarquias, organizações de interesses privados interferem no poder
público, como uma competição entre interesses concorrentes, gerando uma
“socialização do Estado”. Ou seja, Estado e Sociedade se interpenetram e,
conjuntamente a esse entrelaçamento, o resultado da perda do tradicional agente de
mediação entre Estado e a Sociedade, que era a “opinião pública”. Com estes
desenvolvimentos, tanto da estatização da sociedade e principalmente da socialização
do Estado, deixa de haver a discussão critica mediante razões para transformar-se em
práticas de negociação com base em interesses de grupos.
Quando a economia de mercado e o Estado racional legal (Weber, 1972), em um
movimento concomitante, englobam o mundo vivido modificando a ‘opinião pública’, o
que passa a prevalecer, da passagem do capitalismo liberal ao capitalismo tardio, é a
razão instrumental, a razão na qual as decisões são tomadas a partir de sua utilidade, de
cálculos que visam exclusivamente perseguir uma meta previamente estabelecida.
Assim, a política torna-se disputa pelo poder a partir de grupos privados concorrentes,
com a negociação de interesse, impossibilitando a discussão entre indivíduos mediante a
razão. É como se todo o movimento, de Burke aos federalistas, chegando à Rousseau,
houvesse se estruturado e desembocado em sua direção contrária, com a vitória das
“facções” ou da “vontade particular” na estrutura política. Assim, a representação
parlamentar e partidária constitui-se progressivamente enquanto arena, na qual os
partidos políticos tornam-se seu novo símbolo.
Nestes deslocamentos, o poder estatal na democracia de massa foi substituído
pelo poder social, um poder interseccionado entre o público e o privado no qual
indivíduos perdem forças e grupos econômicos se interssecionam às funções políticas,
como as oligarquias e os conglomerados jornalísticos (Habermas, 2014). O debate
institucional se transforma em busca da defesa de interesses, com uma nova relação com
o grande público, que neste processo, por um lado, deixa de debater a política e a
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cultura para seu consumo e, por outro, posiciona-se no debate não a partir do uso
público da razão, mas a partir de pontos já previamente estabelecidos, constituído dentro
de um jogo de forças. A mediação do público com a política passa a ser feita não pela
“opinião pública”, mas por instituições em cooperação com o aparato estatal. No Estado
de Bem-Estar Social, a dinâmica da esfera pública
se rende às sofisticadas técnicas dos novos meios de comunicação, usadas
para atribuir uma aura de prestígio às autoridades públicas, tal como outrora
as figuras reais usavam de uma esfera pública representativa nas cortes
feudais. A esfera pública acaba transformando a política em um espetáculo
dirigido, em que líderes e partidos pretendem, de tempos em tempos, obter
uma aclamação plebiscitária de uma população despolitizada. (Werle, 2014,
31)
A esfera pública moderna volta a assumir assim funções da esfera pública
representativa da Idade Média, no qual o público exercia a função de espectador, não de
um participante que faz uso da razão para discutir a política. São técnicas de espetáculo,
de criar uma áurea em torno da política enquanto ela se limita aos grupos organizados,
sem a livre comunicação que racionaliza o poder. Assim, “as organizações buscam
formar compromissos políticos com o Estado e entre si, excluindo ao máximo possível a
esfera pública” (Habermas, 2014, 479).
Para Habermas, o surgimento da democracia de massa é acompanhado pelo
processo de expansão e decadência da esfera pública. Esta se torna cada vez maior e, ao
mesmo tempo, apolítica.
A ausência de uma esfera pública política leva-nos a pensar no alcance e na
legitimação que a instituição representativa tem. Se a política deixa de ser pública, com
a publicidade agindo não contra o poder político, mas dentro da lógica do poder
político, a democracia de massa se torna uma representação estética, sem a livre
circulação de ideias que serão representadas no Parlamento. Na passagem do século
XIX ao XX, a estrutura social que permitia a sociabilidade apontada por Habermas6 se
esvai. Isto ocorre, pois a política tornou-se a organização em grupos de interesse e o
6 “A preponderância da cidade é consolidada por aquelas novas instituições que, com toda a sua
diversidade, assumem funções sociais iguais na Inglaterra e na França: os cafés em florescência entre
1680 e 1730, os salões no período entre a Regência e a revolução” (Habermas 2014, 143)
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cidadão tornou-se cliente e consumidor. Consumir a cultura e a política não implica em
sua discussão crítica, já que o cidadão age dentro da lógica do entretenimento, sem o
componente público de discussão. O século XX é marcado pela “abstinência da
discussão literária e política mediante razões” (Ibidem, 363). O sistema de representação
que vigorou ao longo do final do século XVIII à metade do XIX é substituído pela
representação de grupos de interesse, sem a composição de ideias por não haver espaço
público. O que caracterizaria o parlamento, a principal instituição representativa da
nossa democracia, não seria mais, portanto o debate racional de ideias, e sim uma queda
de força entre os grupos de pressão oponentes.
Para Habermas, os partidos no Estado de Bem-Estar Social “são instrumentos de
formação da vontade, mas não estão na mão do público, e sim daqueles que determinam
o aparato partidário” (Habermas, 2014, 434). Sua configuração é uma “conjunção dos
interesses organizados e sua tradução oficial na maquinaria política do partido que lhes
atribui àquela posição predominante, diante da qual o Parlamento é reduzido a uma
comissão de facções” (Ibidem, 436). Desta forma, a democracia representativa enquanto
“sistema institucionalizado de responsabilidade política”, como diz Bobbio (2010,
1105), está longe da coerção convencida pela razão, “para que não entre em contradição
consigo mesmo”, de Kant (apud Habermas 2014, 272).
A análise acerca da democracia realizada por Schumpeter no inicio do século
XX pode ser considerada como o resultado da “colonização da vida pública pelo poder
econômico” (Habermas, 2014), na qual o consumo de cultura e sem uma ética política
que norteie as ações humanas teria levado os cidadãos do Estado de Direto à
menoridade. Se a representação política necessita a existência de espaços de discussão e
da comunicação, é urgente pensar na democracia representativa com a esfera pública
desestruturada e, nesse sentido, assustador, pois o poder político mediado pela esfera do
poder social foge da proposta democrática da comunicação e do logos.
Porém, paralelamente a esse processo de despolitização da esfera pública e
afastamento dos indivíduos da política, os partidos de massa da sociedade industrial
tornaram-se os principais organismos capazes de canalizar para si identidades e um
compartilhamento de interesses em comum, a partir das divisões de classe social,
21
carregando uma identidade classista (Castells 2003; Panebianco 2005) que, ao
reproduzir as divisões sociais, geram uma estabilidade eleitoral por conta das clivagens
nítidas quanto à divisão social do trabalho. Se as sociedades industrialmente avançadas
já contavam, exatamente por conta das interpenetrações entre Estado e Sociedade, um
aprofundamento na separação entre público e política, com um movimento decadente
desde o liberalismo burguês do século XVIII até o século XX, para alguns autores estas
estruturas partidárias ainda conferiam “aos ativistas um certo senso de direção, que
mobilizava suas energias e unificava o conjunto do partido” (Manin, 2002, 21). Os
partidos da sociedade industrial tem em seu componente uma função “integrativa”, que
organiza
as “demandas gerais” de defesa/transformação da ordem social e política. (...)
Contudo, a organização de demandas é considerada peculiar dos partidos. O
aspecto mais importante relacionado a essa função, todavia, não é a
transmissão das demandas: é, sobretudo, a formação e a manutenção de
identidades coletivas por meio do uso de uma ideologia. (Panebianco 2005,
522)
Panebianco discorre sobre essa “função” do partido a partir de Kirchhmer, que
estabelece três funções que “podem ser indicadas como tradicionalmente próprias dos
partidos” (Ibidem., 521) – a função integrativa, a formação das elites governistas e a
determinação da política estatal.
As demandas organizadas e a manutenção das identidades coletivas revela uma
polissemia de significados aos partidos políticos, no qual ao mesmo tempo que
compõem novas formas de solidariedade e de significação social, afasta o individuo da
política ao cercear a política ao embate entre grupos no poder.
Para pensar a organização e o poder nos partidos políticos, Panebianco estuda e
revê as teorias partidaristas a partir de uma linha que atravessa sua análise: partidos são
organizações com desigualdades internas, que criam sistemas de solidariedades que
ligam os cidadãos a estas organizações. Em última instancia, os partidos de massa estão
vinculados a vontade de poder, distinção e pertencimento.
Para o autor, os partidos equilibram entre si dilemas organizativos (Ibid.): ao
mesmo tempo em que se adaptam ao ambiente a sua volta, respondendo e se
equilibrando à uma diversidade de demandas que existem e o pressionam (perspectiva
22
sistêmica), essa organização conta com objetivos específicos, que desempenham um
peso efetivo na organização (modelo racional); para a associação voluntária que ocorre,
geram-se incentivos de solidariedade, de identidade, que entrelaça e criam um sentido
de pertencimento a todos que participam da organização (incentivos coletivos) ao
mesmo tempo em que gera benefícios que são distribuídos somente para alguns
participantes, como benefícios materiais, honra, poder e status (incentivos seletivos); o
partido é influenciado e se adapta ao ambiente (adaptação ao ambiente) ao mesmo
tempo que a organização influencia o ambiente(teoria do predomínio); e seus líderes
podem ter mais liberdade de ação e autonomia sobre a organização (liberdade de ação)
ao mesmo tempo que são limitados pela organização (coerção organizativas), que
diminui a margem de manobra dos lideres, presos ao aparato e ideologia partidária.
Obviamente o predomínio maior de uns ou outros dilemas dependem de diversos
fatores, como o nível de institucionalização do partido, seu grau de coesão e o momento
histórico – a depender daí, algumas características podem se sobrepor de maneira mais
forte a outras.
Os partidos como instrumentos de formação da vontade, por meio da
distribuição de incentivos e do forte aparelho burocrático convive com os grandes
conglomerados do poder social, com o jornalismo político e com a indústria cultural,
que ao mesmo tempo amplia e despolitiza a esfera pública.
É este o contexto formador da nossa democracia partidária. Os partidos contém
em si componentes geradores de sentido, que geram conformações identitárias
conectadas a uma sociedade com uma determinada estrutura social. A conformação das
identidades está vinculada a uma sociedade ideologicamente organizada à uma
sociedade do trabalho.
O trabalho realiza-se em um determinado espaço, seja o chão da fábrica, o
escritório ou a bolsa de valores. Ao sair do espaço e do tempo no qual o trabalhador
deve realizar seu serviço, este adentra o espaço do tempo livre, no qual o consumo das
mídias de massa, do cinema, dos passeios aos shoppings, da televisão tornam-se cada
vez mais preponderantes. Este contexto está de acordo com as institucionalizações
partidárias e as ideologias organizativas, já que é o trabalho o grande viés que atravessa
23
e conecta o social ao político. Assim, estruturaram-se partidos políticos, sindicatos,
organizações trabalhistas e todo um aparato que participou do jogo do poder
conjuntamente com a mídia de massa. O século XX portanto formou um modo muito
específico de fazer política. Até os dias atuais,
Os partidos políticos são as principais forças que moldam as alternativas
oferecidas aos eleitores em eleições parlamentares. Mesmo que candidatos de
partidos não vençam em todos os casos, o fato de que os partidos estão pelo
menos presente na maioria das disputas (já que ganham na maioria) compele
os independentes a se posicionarem em relação a eles. Consequentemente,
quando elegem representantes, os eleitores se defrontam com um mapa
cognitivo que é de fato desenhado essencialmente por partidos políticos.
(Manin, 2013, 119)
Porém, é esta unificação em torno de um partido e das divisões de classe social,
que entram na lógica do trabalho, o que aniquila a livre discussão entre indivíduos,
segundo Habermas. A discussão entre grupos estrategicamente posicionados seria
exatamente o conflito de interesses que cria o espetáculo e a refeudalização da política e
separa a política do público, suscetível aos meios de comunicação de massa e ao
paternalismo do Estado.
os sindicatos trabalhistas não formam apenas um contrapeso organizado no
mercado de trabalho, mas aspiram influenciar, por meio dos partidos
socialistas, a própria legislação. A eles opõem-se os empresários, sobretudo
‘as forças conservadoras do Estado”, como são chamadas desde então, que
buscam converter imediatamente seu poder social em poder político.
(Habermas, 2014, 334)
Nesta ótica, a representação partidária estruturou-se não em busca de novas
verdades, mas sim da reafirmação daquilo já ideologicamente organizado. Formou-se
uma lógica unidimensional, a partir de um continuum esquerda-direita, aonde este “se
afirmou em quase todos os lugares como o ‘mapa cognitivo’ por meio do qual se
organizaram as identificações partidárias e foram condicionados os posicionamentos em
relação a política” (Panebianco 2005, 526). Assim, o século XX, a partir da leitura
Habermasiana, fundou uma política sem logos e participação pública, com uma
sociedade dividida em rupturas de classe social que estruturou as identidades e o nosso
mapa cognitivo a respeito dos partidos, obrigando os indivíduos a defrontar-se com a
organização política a partir deste modelo organizacional.
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