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“Os possessivos estão-me a complicar o ensino”:-) UM ESTUDO DO DATIVO POSSESSIVO EM PORTUGUÊS BASEADO EM CORPOS Diana Santos * RESUMO. O campo da posse pode ser gramaticalmente expresso de três maneiras em português: pronomes e adjetivos possessivos, o artigo definido, e o dativo possessivo. Com este artigo pretendo alcançar três objetivos: Em primeiro lugar, descrever uma característica interessante da língua portuguesa e que raramente é descrita em gramáticas ou manuais de ensino de português, nomeadamente o uso de clíticos na descrição da posse, ou, dito de uma forma mais técnica, a possibilidade de parafrasear alguns pronomes pessoais de objeto indireto (o dativo de posse) em português por pronomes possessivos. Em segundo lugar, apresentar um estudo contrastivo inicial sobre este assunto, baseado em corpos paralelos, que indica o âmbito do fenómeno, com as línguas inglesa e norueguesa como pontos de comparação, mas usando também corpos monolingues como contraponto. E, por último, documentar a primeira fase do projeto PoNTE, um corpo de traduções para português ou para norueguês realizadas por alunos cuja primeira língua é o norueguês, empregando-o para identificar possíveis problemas no emprego ou tradução dos possessivos. PALAVRAS-CHAVE: Posse. Dativos possessivos. Corpos paralelos. Estudos contrastivos. Tradução. * Universidade de Oslo, Faculdade de Letras, Departamento de línguas, literaturas e culturas europeias, Oslo, Noruega, [email protected] 1

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“Os possessivos estão-me a complicar o ensino”:-) UM ESTUDO DODATIVO POSSESSIVO EM PORTUGUÊS BASEADO EM CORPOS

Diana Santos*

RESUMO. O campo da posse pode ser gramaticalmente expresso de trêsmaneiras em português: pronomes e adjetivos possessivos, o artigo definido,e o dativo possessivo. Com este artigo pretendo alcançar três objetivos: Emprimeiro lugar, descrever uma característica interessante da línguaportuguesa e que raramente é descrita em gramáticas ou manuais de ensinode português, nomeadamente o uso de clíticos na descrição da posse, ou, ditode uma forma mais técnica, a possibilidade de parafrasear alguns pronomespessoais de objeto indireto (o dativo de posse) em português por pronomespossessivos. Em segundo lugar, apresentar um estudo contrastivo inicialsobre este assunto, baseado em corpos paralelos, que indica o âmbito dofenómeno, com as línguas inglesa e norueguesa como pontos decomparação, mas usando também corpos monolingues como contraponto. E,por último, documentar a primeira fase do projeto PoNTE, um corpo detraduções para português ou para norueguês realizadas por alunos cujaprimeira língua é o norueguês, empregando-o para identificar possíveisproblemas no emprego ou tradução dos possessivos.

PALAVRAS-CHAVE: Posse. Dativos possessivos. Corpos paralelos.Estudos contrastivos. Tradução.

* Universidade de Oslo, Faculdade de Letras, Departamento de línguas, literaturas e culturaseuropeias, Oslo, Noruega, [email protected]

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Preâmbulo

Com este artigo pretendo alcançar três objetivos: Em primeiro lugar,

descrever uma característica interessante da língua portuguesa e que

raramente é descrita em gramáticas ou manuais de ensino de português,

nomeadamente o uso de clíticos na descrição da posse, ou, dito de uma

forma mais técnica, a possibilidade de parafrasear alguns pronomes pessoais

de objeto indireto (o dativo de posse) em português por pronomes

possessivos.

Em segundo lugar, apresentar um estudo contrastivo inicial sobre este

assunto, baseado em corpos paralelos, que indica o âmbito do fenómeno,

com as línguas inglesa e norueguesa como pontos de comparação, mas

usando também corpos monolingues como contraponto.

E, por último, documentar a primeira fase do projeto PoNTE, um corpo

de traduções para português ou para norueguês realizadas por alunos cuja

primeira língua é o norueguês, empregando-o para identificar possíveis

problemas no emprego ou tradução dos possessivos.

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O dativo de posse

A posse é um campo semântico complexo e culturalmente específico,

como discutirei na secção 5. Neste artigo debruço-me apenas sobre o

seguinte fenómeno: a possibilidade de, diríamos mesmo preferência por, usar

intervenientes verbais e não nominais na descrição de uma “posse” em

português, como os seguintes exemplos ilustram:

(1) Os ladrões entraram-lhe em casa ontem! (=entraram na casa dele)

(2) Então não é que o cão nos comeu o almoço? (=comeu o nosso

almoço)

(3) Dói-te o joelho? (=o teu joelho dói?)

Em todos estes exemplos casos (incluindo o do título do presente

artigo), o elemento que é “promovido” a objeto indireto sintático é

obviamente afetado pela ação (ou estado) descrita pela oração em causa, ou

seja, designa como beneficiário ou maleficiário da ação que inclui algo

“possuído”, mas é interessante reparar que uma versão que indicasse

explicitamente ambas as coisas não é aceitável em português: *entraram-lhe

na casa dele, *comeu-nos o nosso almoço, *dói-te o teu joelho.

Esta construção, que é geralmente descrita na literatura linguística como

dativo possessivo ou dativo de posse (Miguel et al., 2011), não é algo de que

um falante nativo do português esteja geralmente consciente, nem que se

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encontre descrito das gramáticas tradicionais ou de ensino do português

como língua materna, como se pode observar por exemplo em Cunha &

Cintra (1987) ou Bechara (1999), e em Hundertmark-Santos Martins (1982),

Hutchinson & Loyd (2003) ou Sletsjøe (1969).

De facto, penso que a sua consciencialização inicia-se geralmente ao

contrastar com outras línguas que não tenham esta mesma característica – o

que, diga-se de passagem, não é necessariamente um traço associado a

famílias tradicionais como germânicas e românicas, visto que o alemão o

tem como o português1, mas não o inglês nem o norueguês, que foram a

causa do meu interesse por este fenómeno.

De facto, este artigo nasceu da constatação das diferenças no uso de

possessivos e de pronomes pessoais em línguas distintas, algo que é

essencial ensinar a quem aprende o português como língua estrangeira. Tais

diferenças são patentes se consultarmos um corpo paralelo incluindo o

português e, neste caso, o inglês, como os exemplos do COMPARA

(Frankenberg-Garcia & Santos, 2002), que apresentamos a seguir, ilustram.

Assim, são frequentes os casos em que o tradutor para português traduz

possessivos em inglês por pronomes pessoais:

(4) feeling the draught up my legs. -> a sentir a corrente de ar subir-me

pelas pernas.

1 Agradeço vivamente a X por me ter chamado a atenção para isso por ocasião da minha apresentação em Faro.

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(5) The anaesthetist patted my hands -> O anestesista deu-me uma

palmadinha nas mãos.

(6) Nizar lifted the hem of my gown -> Nizar levantou-me a fralda da

camisa

Assim como ainda é mais frequente que um tradutor para inglês

adicione pronomes possessivos para conseguir um texto natural em inglês:

(7) Ambos me examinaram o queixo -> Both examined my chin

(8) Esta calma de verão, exaltando-me os sentidos, embota-me a noção

do real. -> This summer calm heightens my senses, yet numbs my

grasp of reality.

Um corpo paralelo, contudo, fornece-nos muito mais do que uma

simples ilustração, porque permite quantificar e estudar em mais

profundidade diferenças que tenham sido observadas. Usando o COMPARA

para esse efeito, apresento na próxima secção também uma categorização

inicial dos vários tipos de casos em que existem pronomes pessoais dativos

em português e possessivos em inglês.

Antes de o fazer, é necessário clarificar qual o objeto de estudo e qual a

terminologia empregue neste artigo, especialmente visto difere da posição

das já citadas autoridades nesta matéria para o português. Com efeito,

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Miguel et al. acima citadas distinguem entre dativo beneficiário e de posse,

além do dativo ético.

Ora para este estudo não fiz distinção entre dativo beneficiário ou de

posse, visto que ambos permitem (e foi esse o meu ponto de partida

empírico) uma paráfrase com pronomes possessivos. Aliás, o exemplo

apresentado (Miguel et al., 2011:391, ex. 15), em que segundo as autoras o

professor sublinhou o texto aos alunos pode ser interpretado como o texto

dos alunos ou sublinhou para os alunos, não me convence: considero que

não quer dizer nem um nem outro, daí que seja empregue a preposição a e

não de nem para.2 Os leitores que queiram manter essa distinção, seja como

for, podem ler o presente artigo como um estudo de um caso particular que

apenas foca os pronomes dativos, e em que uma das coisas que medimos (e

não pressupomos) é precisamente a questão de indicar posse ou benefício.

Os dativos éticos, pelo contrário, não foram alvo do presente estudo, visto

que não podem ser parafraseados (e/ou traduzidos em línguas sem dativos

possessivos) por pronomes possessivos.

Uma das razões que nos levou a adotar a presente perspetiva (de não

separar entre posse e simples afetação) foi a convicção de que construções

partilhando a mesma expressão gramatical exprimem muito frequentemente

ambos os sentidos, ou seja, são vagas entre possessivas e beneficiárias. Para

uma defesa da minha posição em relação à vagueza como uma qualidade

essencial das línguas, veja-se Santos (1998, 2006).

2 Tenho, aliás, grande dificuldade em aceitar como natural o exemplo o professor sublinhou o texto para os alunos.

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Penso que, de qualquer forma, o melhor argumento a favor dessa

vagueza essencial é apresentar exemplos reais que a ilustrem no caso em

discussão, para demonstrar como é difícil na prática, e mesmo ocioso,

decidir por uma interpretação em detrimento da outra: Os exemplos

seguintes são retirados e/ou adaptados do COMPARA ou do AC/DC, e são

comentados por mim entre parênteses.

(9) Discutiam-lhe a roupa, o modo de andar (embora considerado

dativo possessivo, o meleficiário é ele ou ela, e podia ser discutido

com ele, ou nas costas dele)

(10) Desperta-lhe o brio (o brio dela, ou o brio nela, ou beneficia-a por

despertá-lo?)

(11) Piscou-me o olho (certamente que não é dativo possessivo, porque

foi o seu olho que ele piscou, não o meu)

(12) Bateu-me no braço (possessivo porque bateu no meu braço, mas

repare-se que em estendeu-me o braço, me indicaria apenas o

beneficiário)

(13) Dava-lhe pelo cotovelo (dava pelo cotovelo dele, no sentido de

indicar a altura do sujeito, mas ele não é certamente qualquer

beneficiário)

(14) Deixa-te de uma vez dessas gracinhas (aqui podemos considerar o

verbo deixar-se de no sentido de acabar, ou considerar que o

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pronome aponta para a possível paráfrase deixa essas tuas

gracinhas)

(15) Isto diminui-lhe o rendimento do trabalho (igualmente possível

interpretar como possessivo e como maleficiário)

(16) A história que lhe ouvia (aqui o que é mais interessante são as duas

possibilidades de paráfrase com de, ambas analisáveis como dativos

possessivos e nunca como beneficiários: a história que ouvia dele, a

história dele que eu ouvia.3)

(17) Reconheci-lhe a voz (obviamente dativo possessivo, mas repare-se

que com outros objetos isso pode não ser tão óbvio reconheci-lhe a

generosidade, mas)

(18) O que lhe havia de acontecer! (aqui a interpretação mais natural é de

um beneficiário, até porque não há um nome a que agarrar o

possessivo e a única paráfrase possível seria o que havia de

acontecer a ele!, mas veja-se o próximo exemplo)

(19) O que lhe havia de acontecer à mãe! (Aqui, pese embora a estrutura

e o sentido serem semelhantes ao exemplo anterior, é perfeitamente

natural parafrasear por O que havia de acontecer à mãe dele,

interpretando como um dativo possessivo.)

3 Outra possibilidade ainda seria a subida do clítico em ouvia-lhe (contar) a história, em que lhe nesse caso tomavaa forma de dativo mas seria o sujeito de contar. Ver Nilsson (1998) para uma discussão desta construção emportuguês.

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Estes exemplos mostram como na maioria dos casos a interpretação ou o

resultado do uso do dativo conduz a afetação (beneficiação ou maleficiação)

e indica posse (ou relação privilegiada), sem que faça sentido decidir por um

ou por outro, embora sendo possível em alguns casos. Uma questão

interessante que fica para investigação futura é a confirmação de

preponderância de consequências negativas através desta construção, ou se

estes são apenas os exemplos mais prototípicos mas não necessariamente os

mais frequentes.

Outra questão que não abordo aqui é a variação entre as duas formas de

possessivos em português, como adjetivos ou objetos da preposição de

(Miguel, s/d.).

Primeira quantificação dos dativos possessivos e do seu contraste com o

inglês e norueguês

Na Tabela 1 apresento uma quantificação do fenómeno em questão,

usando uma variedade de diferentes métodos, que será mais tarde explicada,.

“AA” significa amostra aleatória, e “or” e “trad” referem-se respetivamente

a original e tradução. “DP” indica o número de casos considerados em

português dativos possessivos/beneficiários.

Domínio Tota DP

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l Dativo e não possessivo PT or. e possessivo EN, COMPARA 697 325Dativo e não possessivo PT trad e possessivo EN, COMPARA 709 351Dativo e não possessivo PT trad e possessivo EN, CorTrad 26 8AA possessivos EN e não possessivos PT, COMPARA 300 23Dativos em PT (escolha), AC/DC Museu da Pessoa 107 26Dativo em PT or. e possessivo em NO, PoNTE 15 5

Muito brevemente, os corpos usados para o efeito foram:

O COMPARA, que eu saiba o maior corpo paralelo anotado revisto

existente referente ao par inglês-português, que contém excertos de textos

literários originais nas duas línguas e a sua tradução para a outra. Procurei

casos de frases com pronomes dativos e sem possessivos em tradução para o

inglês, e em cuja tradução existissem pronomes possessivos.4 Analisei todos

os casos para identificar os que realmente eram dativos possessivos, obtendo

325 em 697 (47% dos casos).

Fiz a mesma procura, assim como a mesma revisão, agora em traduções

do inglês, identificando 357 em 716 (50%).5 Para quem não está

familiarizado com o COMPARA, é preciso explicar que o número de casos

apresentado (e identificado) é por pronome possessivo. Assim, o número de

unidades de tradução distintas é significativamente menor, dado que é

4 De forma a que estes resultados possam ser inspecionados por todos, apresento as pesquisas efetuadas, que nestecaso foram duas: [pos=".*PPGE.*" & texto="P.*"] :COMPARA_PORT_ANOT <ua> [func=".*DAT.*"] [pos!=".*poss.*"]* </ua> e [pos=".*PPGE.*" & texto="P.*"] :COMPARA_PORT_ANOT <ua> [pos!=".*poss.*"]+[func=".*DAT.*"] [pos!=".*poss.*"]+ </ua>5 A expressão de procura foi [pos=".*PPGE.*" & texto="E.*"] :COMPARA_PORT_ANOT <ua> [pos!=".*poss.*"]+ [func=".*DAT.*"] [pos!=".*poss.*"]+ </ua>. Dos 725 casos encontrados, 16 foram removidos pornão corresponderem a um possessivo, mas sim um dativo em inglês. Isto porque a anotação sintática doCOMPARA foi manualmente revista do lado português, mas não do lado inglês.

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bastante comum que haja mais de um possessivo por frase inglesa. Apenas

contei uma vez por cada correspondente de tradução, mas há que distinguir

os casos em que o mesmo dativo possessivo corresponde a mais do que um

possessivo inglês. Em (20) apenas um caso de dativo possessivo foi

contabilizado, porque apenas um pronome possessivo do inglês correspondia

ao dativo possessivo em português, em (21) e (22), embora também só tenha

contado um (dativo possessivo), poder-se-ia contar dois casos de tradução de

possessivo inglês para dativo possessivo em português. Finalmente, (23)

ilustra que, quando se podia considerar o pronome pessoal português tanto

como objeto indireto como como dativo possessivo, nenhum dativo

possessivo foi contabilizado.

(20) I sat on the edge of my bed in my gown, feeling the draught up my

legs. -> Sentei-me na borda da cama, em camisa de noite, a sentir a

corrente de ar subir-me pelas pernas.

(21) Her skirt fell down over her head. -> A saia tombava-lhe sobre a

cabeça.

(22) They could see his fingernails and his eyes. -> As mulheres podiam

ver-lhe as unhas e os olhos.

(23) The coldness of the idea made him want to shut his eyes -> A frieza

da ideia deu-lhe vontade de fechar os olhos.

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Espero assim ter clarificado as opções tomadas nas contagens

apresentadas, ao mesmo tempo indicando que nem todas são

necessariamente consensuais.

Contudo, as expressões de busca usadas impediam-me de encontrar

casos em que, por outra razão e noutro lugar da frase existissem possessivos,

além de casos legítimos de dativos possessivos, como por exemplo na frase

(inventada) Penteou-me o cabelo na nossa cozinha (=penteou o meu cabelo

na nossa cozinha). Assim, tentei avaliar quantos outros possíveis exemplos

se poderia estar a perder, através da análise exaustiva de 300 casos aleatórios

de possessivos em inglês e não possessivos em português (dos

95596possíveis). Apenas encontrei 23 dativos possessivos em 300, o que dá

uma medida inicial (8%) do peso deste uso de possessivos (em inglês)

comparado com outros usos. Até que ponto é que esta é uma medida

interessante, em relação ao problema que nos interessa neste artigo, é

certamente discutível, dada a grande diferença no uso de pronomes

possessivos entre as duas línguas. Por outro lado, mais relevante para a

quantificação dos dativos possessivos, é o facto de que, dos 23 encontrados,

havia apenas três casos de original português que não tinham sido

encontrados na anterior procura. Podemos assim, embora com grande

incerteza, que em todo o COMPARA possa haver cerca de 733 dativos

6 Usando a seguinte expressão de procura: [pos=".*PPGE.*"] :COMPARA_PORT_ANOT <ua> [pos!=".*poss.*"]* </ua>

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possessivos, o que significa que conseguimos obter (e analisar) a sua grande

maioria para este artigo.

Dada a possibilidade de ter acesso a outro corpo paralelo de inglês para

português, o CorTrad (Teixeira et al., 2012), também o usei – o subcorpo

CorTrad literário (só de inglês para português), e dos 26 casos7, oito (8) eram

dativos possessivos.

Em relação ao PoNTE, que será descrito mais adiante, procurei dativos

em português cuja tradução em norueguês incluísse um possessivo, e apenas

encontrei cinco (5) dativos possessivos em 15. Embora pudesse ter feito

também a procura oposta (possessivos em norueguês traduzidos por dativos

em português), não era plausível que falantes de português como língua

estrangeira no nível em questão já tivessem absorvido o hábito de usar

dativos possessivos, que imagino portanto serem inexistentes no lado

português traduzido.

Isto esgota os casos de dativos possessivos que encontrei através de

corpos paralelos.

Mas, como se sabe, a tradução não é sempre o melhor chão para

encontrar diferenças ou naturalidade na língua de chegada, porque os

tradutores se sentem influenciados e obrigados pelo autor a produzir algo

que lhes seja fiel, ou porque nem sequer têm consciência de que estão a

produzir uma terceira língua, o tradutês (Santos, 1997, 1999). Por isso, ao7 Visto que eu revejo todos os resultados, retiro destes números os casos em que tenha havido erro de anotação oude codificação. A expressão de pesquisa sendo [pos=".*PPGE.* "] :CORTRAD_LIT_TRADF <ua> [pos!=".*poss.*"]+ [func=".*DAT.* "] [pos!= ".*poss.* "]+ </ua>, produziu, na versão 4.2, 29 resultados, mas trêstinham sido mal analisados pelo CLAWS.

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encontrar traduções para formas diferentes, isso pode corresponder a um

número de casos menor do que o que poderia ser produzido se o tradutor

estivesse a escrever na sua língua materna sem estar restrito ao texto

original. Por outro lado, se a língua de partida contiver um excesso de

fenómenos que deem origem a um uso excessivo de dativos possessivos, se

contarmos em texto traduzido podemos obter uma estimativa neste caso

largamente por excesso.

É por isso conveniente tentar contabilizar em texto não traduzido a

abrangência, no caso em questão, do fenómeno dativo possessivo em vários

géneros de textos. Fizemos isso usando o espólio do AC/DC (Santos, 2011),

em particular nas entrevistas do Museu da Pessoa, visto que estamos

conscientes de que é um fenómeno associado a atitude e avaliação que é

portanto mais normal encontrar em discurso pessoal do que em científico ou

factual.

Antes disso, contudo analisei uma amostra de 107 casos de pronomes

dativos no AC/DC, verificando se eram dativos possessivos ou não. Ao

contrário do processo seguido no COMPARA, em que a amostra foi

aleatória, usei uma inspeção preliminar dos casos do Museu da Pessoa,

usando o Ensinador (Simões & Santos, 2011) para identificar possíveis casos

interessantes para o ensino, seguida de uma análise aturada dos vários casos.

Com esse método identificámos 26 dativos possessivos em 127, o que neste

caso não permite, de forma alguma, ter uma ideia da verdadeira proporção

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deste fenómeno em português. (A única coisa que podemos afirmar é que

será significativamente menor do que esta.)

Seja como for, a obtenção deste número relativamente grande de casos

(738 no total) permite-nos estudar a sua distribuição e ter uma visão de

conjunto de possíveis particularidades desta construção, assim como coligir

exemplos que possam ser usados em contexto pedagógico. Nas próximas

subsecções analiso os casos encontrados em originais literários em

português, encontrados através da sua tradução para o inglês, ou nas

traduções de textos literários do inglês para português.

Categorização dos casos de dativos possessivos no original em português

Analisando os casos de dativos possessivos encontrados (e repare-se que

o critério foi essencialmente contrastivo, no sentido em que considerámos

estar na presença de um dativo possessivo se a mesma ideia é realizada, na

tradução, por um possessivo em inglês), temos a seguinte distribuição em

relação ao conceito/parte mencionado:

153 casos referem-se a partes do corpo ou características físicas (tais

como voz, sangue) associadas a uma pessoa.

56 referem-se a qualidades (abstratas) de uma pessoa, associadas a

personalidade ou à aparência (cabeça para ideia, olhos para visão, coração,

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ideias, memória, vontade, sorriso, mérito, confiança, ciúmes, coragem,

forças, vida, alma, etc.)

14 a roupa

10 a outros objetos (casa, prateleiras, dinheiro, caldo, algibeira, (muro

do) quintal, carro, poesias)

20 a outros casos mais complexos

3 foram identificados como expressões idiomáticas, que identificamos

aqui: sai-lhe -> come his way, tomar-lhe tempo -> take his time, cortar-lhe

as vazas -> upset their trickeries.

Alguns casos são, naturalmente, difíceis de classificar:

(24) Deitei-me de costas -> lay down on my back

Neste exemplo, embora seja possível de parafrasear por, e como tal

aceitar que me tenha deitado sobre as minhas costas, deitar-se é um verbo

reflexo, donde não me parece perinente considerá-lo “reflexivo possessivo”.

Contudo, um anotador mais apressado poderia tê-lo classificado

erroneamente como um dos casos que nos interessam. Outros casos

interessantes referem-se não a dativos mas a acusativos:

(25) I looked deep into his eyes -> Olhei-o profundamente nos olhos.

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Outra característica que me pareceu interessante anotar, devido à

conhecida diferença entre as duas línguas no que se refere à perceção

(Santos, 1998, Slobin, 2008), foi a relativa frequência com que o dativo

possessivo aparecia associado a verbos de perceção visual. Neste conjunto

foram oito casos.

Categorização dos casos de dativos possessivos na tradução para

português

Entre os casos em que os dativos possessivos são usados pelo tradutor

para português como tradução de possessivos ingleses, observmos a seguinte

distribuição8:

225 casos de partes do corpo

53 casos abstratos

47 casos de outros objetos

11 casos de roupa

5 expressões idiomáticas (chamar-lhe a atenção, pôr-lhe a vista em

cima, a atenção que lhe era devida, passar-lhe pela cabeça, meter-se-lhe na

cabeça)

8 Se o leitor atento reparar que faltam dez exemplos, convém indicar que se referem a traduções de expressõesidiomáticas em inglês, ou erros de tradução, ou reescrita demasiado livre, mas que todavia foram consideradosdativos possessivos considerando só o texto em português. Veja-se como erro de tradução (não contabilizado comodativo possessivo) A mão tremeu-lhe, e a vela caiu-lhe do castiçal, ficando a arder no chão. de His hand shook,and the candle fell from its socket on the floor, and lay there sputtering.

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É interessante também reparar que em bastantes casos (16) o dativo

possessivo está associado ao verbo ver ou outros de perceção visual,

comparado com o caso do português original.

Comentários aos casos relacionados com o inglês

Em ambas as direções, é notória a frequência dos casos associados a

partes do corpo, mas é também interessante observar que não parece haver

grande diferença entre texto traduzido ou original no que se refere ao uso de

dativos possessivos.

Realço aqui novamente que, em texto em português, um dativo pode ser

ao mesmo tempo objeto indireto e dativo possessivo, como no caso de

(26) Nizar veio mais tarde e me pediu para levantar a perna uns dois

dedos da cama, <- Nizar came in later and asked me to lift my leg

gently a few inches off the bed

Poder-se-ia argumentar que as duas funções são executadas pelo clítico,

e simplesmente não é possível em português ter dois clíticos -me-me.

Por outro lado, torna-se patente a necessidade de, em inglês, repetir os

pronomes tantas quantas as vezes se mencionam nomes. Podemos atribuir

isso ao facto deste tipo de possessivos em inglês marcar a definitude, dado

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que não é possível o uso de artigo definido com possessivos adjetivos em

inglês. Além do exemplo já mencionado em (21), veja-se

(27) A camisa pendia-lhe em tiras nas costas, de His shirt was hanging

in shreds off his back.9

Note-se também que o dativo possessivo pode ocorrer arbitrariamente

longe do substantivo a que se refere, visto que a sua posição é simplesmente

determinada pelo verbo que cliticiza:

(28) Mandou fazer um vestido Império, que lhe disfarçava de forma hábil

o ligeiríssimo aumento do ventre.10

Finalmente, algo que valeria a pena estudar como trabalho futuro usando

o COMPARA, é se existe diferença entre as variantes do português em

relação à existência desta construção, para além do facto conhecido de que o

português de Portugal usa mais clíticos do que o português do Brasil, que

tem duas propriedades que o evitam: uma muito maior propensão para objeto

nulo e o uso alternativo de pronomes tónicos em vez de átonos na linguagem

oral.

9 Este caso foi contabilizado como referindo-se a parte do corpo. Repare-se que essa é mais uma decisãonecessária, quando ao dativo possessivo pode corresponder mais do que uma expressão na outra língua.10 Aqui podemos estar razoavelmente certos de que o dativo se refere ao ventre, porque corresponde à tradução deShe had an Empireline dress made which artfully concealed the very slight swelling of her tummy.

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Quantificação e estudo em textos originais

O estudo feito em textos originais provindos de corpos monolingues é

por enquanto muito menos abrangente, e divide-se em duas partes: (a) uma

escolha semi-aleatória de 107 casos de dativos em português vindos dos

corpos Vercial, ECI-EBR e Minho, criada como exercícios para os alunos de

bacharelato de português (terceiro ano) de forma a adquirirem alguma

sensibilidade aos vários casos em que se emprega o dativo em português, e

em que figuravam 26 casos de dativos possessivos no material; e (b) um

estudo apenas feito no corpo do Museu da Pessoa, em que ainda não

podemos apresentar números confiáveis, mas que me parece importante

também referir aqui.

Alguns exemplos de casos em que a classificação foi difícil no caso (a),

ou que podem ser suscetíveis de diferentes interpretações gramaticais,

apresentam-se de seguida, pretendendo ilustrar situações não encontradas

nos corpos paralelos:

(29) Qualquer movimento causava-lhe dores lancinantes na coluna,

fazendo-lhe soltar gritos de dor

(30) Mas, tê-lo-iam ganho se não tivessem atrás de si aquela esposa

dedicada, que lhes criou as condições para que o ganhassem?

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(31) (…) pague aquela multa ou arranquem-lhe os olhos ou cortem-lhe as

mãos

(32) Limitava-lhe a ação política o fato de querer caracterizar sua atitude

como de protesto

(33) Ora, quer lhe dando na cabeça, quer na cabeça lhe dando, com mais

parra ou menos uva, parece não haver dúvidas de que a criançada

tem mesmo de (…)

O estudo feito no Museu da Pessoa, por outro lado, tem a propriedade de

obter ocorrências na linguagem oral, não especialmente cuidada, visto que

correspondem a transcrições de entrevistas feitas informalmente a pessoas de

níveis de educação muito variados. (Além disso, muitas vezes as próprias

transcrições, feitas por voluntários, contêm erros ortográficos e problemas

diversos.)11

Mesmo assim, o facto de ilustrarem atos de comunicação que não foram

censurados nem melhorados (revistos) para publicação torna estes “textos”

muitíssimo valiosos para observar a língua real oral, assim como possíveis

lapsos de língua ou erros de concordância, que podem ser igualmente

importantes para compreender como o português funciona.

Alguns exemplos do que me estou a referir são:

11A expressão de procura utilizada, [func=".*DAT.*"], encontra, na versão 4.1, 1579 ocorrências, mas é precisorelembrar que a análise sintática automática não foi revista. Além disso, estamos de momento a trabalhar para queo corpo Museu da Pessoa passe a ter um balanço entre as variantes brasileira e portuguesa (107 de cada), o que nãoera o caso nesta versão, com 107 entrevistas feitas em Portugal e apenas 6 no Brasil.

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(34) Foi uma operação que fiz, que me tiraram uma pedra da vesícula que

podia gerar em cancro porque já estava em ferida, felizmente não

chegou a tanto.

(35) E isso chamou-lhes a atenção e fizeram um elogio à Universidade do

Minho por causa do concelho cultural.

(36) Quando tínhamos os bebés dávamos-lhes o peito.

4. PoNTE: aplicação ao norueguês, e indo mais longe na comparação

Na minha nova posição de professora de português a (essencialmente)

falantes do norueguês, tornou-se evidente a necessidade de investir num

recurso semelhante ao COMPARA ou ao CorTrad, mas com o norueguês

como língua de contraste. Assim, no âmbito da continuação do

desenvolvimento do DISPARA (Santos, 2002), um sistema para corpos

paralelos baseado no Open CWB e desenvolvido no âmbito da Linguateca,

surgiu o projeto PoNTE (acrónimo de Portuguese Norwegian Translation

Examples, http://www.linguateca.pt/PonTE/), em que estamos a dar os

primeiros passos na anotação dos possíveis problemas nas traduções nele

incorporadas.

A ideia é permitir a recuperação de exemplos de tradução com

características específicas – no presente caso, e concretizando, a

característica desejada seria sofrerem de excesso ou de falta de possessivos

(ou de dativos). Embora o tamanho presente do corpo (21 textos curtos

originais, e 153 traduções) não permita generalizações conclusivas, pode já

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ser usado como um exemplário para aprendentes de português de língua

materna norueguesa (ou até escandinava). Veja-se um exemplo (ambas os

lados são escritos na língua materna):

(37) Exceto que você não estará «estudando»; você estará trabalhando,

gerando conhecimento, e contribuindo para as universidades

publicarem os artigos científicos que lhes servem como base de

avaliação no cenário mundial. -> Bortsett fra at du ikke «studerer»;

du jobber, du produserer kunnskap, og bidrar til at universitetene

publiserer vitenskapelige artikler som tjener deres verdigrunnlag på

verdens basis.

Considerações sobre a posse e a afetação, e revisão da literatura

No pouco espaço que me resta, gostaria de ilustrar como os possessivos,

a definitude e as relações semânticas de posse e de meronímia são assuntos

interessantes e não resolvidos na literatura.

A meronímia, segundo Cruse (2004), é uma relação semântica muito

menos clara (“sharply delimited”) do que a hiponímia. Cruse apresenta os

seguintes problemas: (a) inferências de localização dependem dos tamanhos

relativos (pelo menos em inglês, uma mosca está no volante de um carro

(on), mas dentro do carro (in)), (b) a transitividade não é sempre aceitável: se

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um volante tem um forro, o carro não tem um forro; um corpo tem mãos, e

mãos têm dedos, mas um corpo não tem dedos (ou melhor, não é uma frase

ou concetualização vulgar). Mais importante e interessante ainda, (c) nem

todos os bocados de algo podem ser considerados partes, e (d) nem todas as

partes têm nome, e (e) há partes opcionais, que têm nome porque têm uma

função definida mas não são necessárias (como cabo ou puxador). Outra

observação interessante é que (f) mera inclusão ou mesmo necessidade, se

pertencer a sistemas concetuais diferentes, não qualifica como parte: as veias

não fazem parte de uma mão, embora uma mão tenha veias. Da mesma

forma, (g) constituintes ou materiais não são parte: o pão tem farinha, mas a

farinha não é parte do pão, o sumo tem laranja, mas a laranja não é parte do

sumo. Em português talvez ainda seja mais complicado concetualizar esta

diferença, visto que, se em inglês Cruse pode dizer “piece of” is

significantly different from the relation “part of”, em português

traduziríamos ambas por “parte”.12

Ainda segundo Cruse, associadas à meronímia/holonímia estão as

noções de congruência (de generalidade, de fase/tempo e de tipo ontológico),

de parte integral ou parte encaixada ou removível (“attachments”), e de

motivação funcional (se não tiverem uma função clara, não têm nome na

língua!). Outra referência interessante e elucidativa sobre as complexidades

desta relação semântica na língua é Winston et al. (1987), em que os autores

12 Temos, claro, a palavra peça para peças de vestuário, peças de roupa, peças de um motor, em que significa umaunidade bem definida mas variada do conjunto descrito pelo substantivo seguinte, mas não para a piece of cake.Bocado de será a melhor tradução desse sentido do inglês piece.

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tentam esclarecer diferentes vertentes de posse, assim como os aparentes

paradoxos de transitividade, através do recurso a características mais básicas

como as propriedades entre os elementos da relação serem (a) funcionais, (b)

homeomerosas (as partes são semelhantes entre si ou distintas?) e (c)

separáveis. Para o português consulte-se Freitas et al. (2013) ou Santos et al.

(2010) para uma discussão das possíveis relações semânticas envolvidas.

Embora estas listas de propriedades possam parecer irrelevantes para o

problema que nos interessa aqui, muitas delas foram usadas por Kleiber

(2008) para explicar (ou, pelo menos, descrever) várias propriedades do uso

dos possessivos em francês por oposição aos artigos definidos... Por

exemplo, o facto de uma vila ter normalmente uma igreja (mas uma igreja

não estar normalmente numa vila) permite referir em francês a igreja com

possessivo ou não, mas não é possível referir a vila com um possessivo

relativo a igreja. Enquanto que Kleiber se esforça por explicar a oposição

entre as duas possibilidades em francês, é de referir que em português ainda

há ou haveria uma terceira, como indicado em (37).

(38) A vila subia pela encosta.

a. Ao cimo, a igreja brilhava, branca.

b. Ao cimo, a sua igreja brilhava, branca. (?)

c. Ao cimo, a igreja brilhava-lhe, branca. (?)

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Embora neste exemplo (inventado) a primeira opção é a que soa mais

natural em português, parece-me que a versão com o dativo é mais aceitável

do que a com o possessivo.

Existem, naturalmente, muitos outros casos de diferenças conhecidas

entre o uso de artigos definidos e de pronomes possessivos, que não

envolvem dativos possessivos. Por exemplo, a questão das partes do corpo,

da roupa, e dos membros da família têm diferentes soluções e práticas se

compararmos o norueguês com o português. O mesmo também já foi notado

entre o inglês e o francês (Vinay & Darbelnet, 1958).

Em inglês, a tendência (ou mesmo regra) é usar possessivos com partes

do corpo enquanto que em português a marcação de definido é suficiente:

He raised his hand, ele levantou a mão. Uma regra semelhante parece existir

para peças de vestuário, como também foi ilustrado acima (cf. exemplos

(20), (21) e (26), em que em português não são usados possessivos ao

contrário do inglês). Contudo, parece-me existir ainda outro caso

interessante, em que se pode distinguir entre posse e apresentação/uso, e em

que o português parece ser a língua que mais naturalmente usa possessivos.

Com efeito, se se trata de uma peça de vestuário que se leva mas que não nos

pertence, penso que é perfeitamente possível e apropriado usar um pronome

possessivo em português, e muito menos em inglês:

(39) A camisa dele (alugada na véspera) estava toda amarrotada (a

camisa que vestia)

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(40) A sua roupa era claramente da irmã… (a roupa que levava)

(41) O vestido dela era um sonho (dito de uma atriz ou bailarina, após

um espetáculo)

Em todos estes casos, o pronome possessivo ou a marcação de posse

significa “a roupa que leva na altura”, e – embora em geral a posse seja a

situação normal – não a implica necessariamente.

Agradecimentos

Este trabalho foi desenvolvido no âmbito da Linguateca, com apoio

financeiro da Universidade de Oslo. Estou grata à FCCN por manter

acessíveis os recursos linguísticos desenvolvidos na Linguateca em

www.linguateca.pt, em particular o ACDC, o COMPARA e o PoNTE.

Agradeço a Cathrine Fabricius-Hansen para me sugerir este assunto de

contraste, aos meus alunos pelo seu trabalho com os dativos, e à equipa da

Linguateca.

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«Possessives are ruining my teaching» :-) A corpus study on the dative possessive in Portuguese

ABSTRACTIn Portuguese there is a three-way choice to express what has

conventionally been called the field of possession: possessives, simpledefinite article, and the possessive dative, whose detailed contrastive study isthe main focus of the present paper. After using parallel corpora (andmonolingual ones) to identify a sizeable number of cases of dative pronounsindicating latu sensu possession, a description of their occurrences and someinteresting cases are presented. Also, PoNTE, a new parallel corpusNorwegian-Portuguese is briefly introduced.

Keywords: Possession, datives, Portuguese, contrastive studies, parallelcorpora

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