Os Primeiros Passos Da Palavra Impressa

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OS PRIMEIROS  PASSOS DA  PALAVRA  IMPRESSA Marco Morel O surgimento da imprensa periódica: ordenar um espaço complexo Em relação à Europa ou mesmo às outras partes das Américas, os papéis impressos feitos no Brasil surgiram mais tarde. Enquanto no continente europeu já existiam tipografias desde meados do século  XV , nas Américas a atividade impressora (embora escassa) surge no século  XVI, décadas após a chegada dos europeus. A imprensa periódica propriamente nasce no século  XVII no chamado  Velho Mundo e somente no século seguinte surge nas Américas inglesa e espanhola. Eram, ainda assim, iniciativas com defasagens em relação à Europa, sob vigilância e repressão das autoridades e aparecendo de forma esparsa. Nesse sentido, a experiência brasileira não foi destoante na América, embora só tenha surgido de forma sistemática a partir de 1808, com a chegada da Corte portuguesa e a instalação da tipografia da Impressão Régia.  A censura prévia aos impressos era exercida, no âmbito dos territórios pertencentes à nação portuguesa, pelo poder civil (Ordinário e Desembargo do Paço) e pelo eclesial (Santo Ofício).  Ainda em princípios do século  XIX , vários homens de letras nascidos na América portuguesa, como os futuros visconde de Cairu (José da Silva Lisboa) e marquês de Maricá (José Mariano da Fonseca), exerciam o cargo de censor. Ao longo do tempo foram elaboradas

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    OSPRIMEIROSPASSOSDAPALAVRAIMPRESSAMarco Morel

    O surgimento da imprensa peridica:

    ordenar um espao complexo

    Em relao Europa ou mesmo s outras partes das Amricas,os papis impressos feitos no Brasil surgiram mais tarde. Enquantono continente europeu j existiam tipografias desde meados dosculo XV, nas Amricas a atividade impressora (embora escassa)surge no sculo XVI, dcadas aps a chegada dos europeus. Aimprensa peridica propriamente nasce no sculo XVIIno chamadoVelho Mundo e somente no sculo seguinte surge nas Amricasinglesa e espanhola. Eram, ainda assim, iniciativas com defasagens

    em relao Europa, sob vigilncia e represso das autoridades eaparecendo de forma esparsa. Nesse sentido, a experincia brasileirano foi destoante na Amrica, embora s tenha surgido de formasistemtica a partir de 1808, com a chegada da Corte portuguesa ea instalao da tipografia da Impresso Rgia.

    A censura prvia aos impressos era exercida, no mbito dosterritrios pertencentes nao portuguesa, pelo poder civil(Ordinrio e Desembargo do Pao) e pelo eclesial (Santo Ofcio).

    Ainda em princpios do sculo XIX, vrios homens de letras nascidosna Amrica portuguesa, como os futuros visconde de Cairu (Josda Silva Lisboa) e marqus de Maric (Jos Mariano da Fonseca),exerciam o cargo de censor. Ao longo do tempo foram elaboradas

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    listas com ttulos e critrios para a interdio de obras. Entravamparmetros religiosos, polticos e morais numa atitude no muitodiferente do que ocorria (com diferentes gradaes) em todas aspartes do mundo ocidental, embora em alguns pases os impressosflorescessem em maior quantidade. Tais caractersticas no precisamser vistas apenas pelo ngulo restritivo ou negativista, pois, comoveremos, antes mesmo do rgo oficial j se viam livros e outrosimpressos por aqui.

    Antes mesmo de 1808, foi possvel inventariar mais de trezentasobras de autores nascidos no territrio brasileiro, incluindo no s

    livros, mas impressos annimos, relatando festejos e acontecimentos,antologias e ndices, alm de alguns manuscritos inditos de autoresclssicos.1 Eram textos variados: desde narrativas histricas atpoesias, passando pela agricultura, medicina, botnica, discursos,sermes, relatos de viagens e naufrgios, literatura em prosa,gramtica e at polmicas.

    Por algum tempo historiadores debateram, sem chegar aconcluses efetivas, sobre a existncia de prelos em Pernambuco

    durante a ocupao holandesa no sculoXVII

    , prevalecendo atendncia de negar a presena dessa atividade no territriopernambucano. Da mesma forma quase no ficou registro de umimpressor que, em Recife, 1706, estampou letras de cmbio e oraesdevotas. E quarenta anos depois, no Rio de Janeiro, uma tipografia,de Antonio Isidoro da Fonseca, chegou a publicar quatro pequenasobras. Ambas tentativas foram abortadas pela coero dasautoridades. Alm dessas experincias tnues, vale lembrar as quatro

    tipografias instaladas pelos jesutas no comeo do sculo XVIIInaregio das Misses, no Sul do continente americano: localizavam-se prximas aos rios Paran e Uruguai, em territrios que hojepertencem Argentina e ao Paraguai, rea contgua s fronteirascom o Brasil. Os impressos a produzidos por tipgrafos (que eramndios guaranis) circularam entre os demais aldeamentos, inclusiveos situados em regio hoje brasileira.

    A nfase no atraso, na censurae no oficialismo como fatores

    explicativos dos primeiros tempos da imprensa (ou de sua ausncia)no suficiente para dar conta da complexidade de suascaractersticas e das demais formas de comunicao numa sociedadeem mutao, do absolutismo em crise.

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    Sem negar aqueles trs fatores, em geral mais facilmente percep-tveis at pelo acmulo de trabalhos e referncias nessa linha, possvel acrescentar outro elemento para facilitar nossa compreen-so: o de que o surgimento da imprensa peridica no Brasil no sedeu numa espcie de vazio cultural, mas em meio a uma densa tramade relaes e formas de transmisso j existentes, na qual a imprensase inseria. Ou seja, o periodismo pretendia, tambm, marcar e or-denar uma cena pblica que passava por transformaes nas rela-es de poder que diziam respeito a amplos setores da hierarquiada sociedade, em suas dimenses polticas e sociais. A circulao de

    palavras faladas, manuscritas ou impressas no se fechava emfronteiras sociais e perpassava amplos setores da sociedade que setornaria brasileira, no ficava estanque a um crculo de letrados,embora estes, tambm tocados por contradies e diferenas, deti-vessem o poder de produo e leitura direta da imprensa.

    (A) Paulo e Virgnia, folhetim de sucesso, traduzido em vulgar e um dos

    primeiros romances impressos pela Impresso Rgia, no ano de 1811, comlicena de Sua Alteza Real. (B) A impresso de textos sobre explorao

    mercantil do pas era freqente, a exemplo desta Memria econmica sobrea raa do gado langero da capitania do Par, de autoria do Tenente Coronel

    Joo da Silva Feij, de 1811, oferecida Sua Alteza Real.

    (A) (B)

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    As relaes hierrquicas existentes no territrio brasileiro nessapassagem do sculo XVIIIpara o XIXpodem ser representadas emmosaico e ultrapassam vises simplistas de uma sociedadedicotmica composta apenas de um punhado de senhores e umamultido de escravos e de uma metrpole onipotente que tudocontrolava. Estima-se, por exemplo, que um tero da populaodo Brasil era classificada como de pardos livres j no comeodo sculo XIX. Diversificados foram os espaos que serviram debase para as transmisses de palavras, impressas ou no. Algunsj estabelecidos, como as administraes civil, militar e eclesistica,

    comportando ou no transformaes; a expanso ou redefiniode fronteiras territoriais internas, para agricultura, minerao,colheita extensiva ou pecuria; as rotas de comrcio terrestre oumartimo, de subsistncia ou exportao, com seus variados tiposde viajantes; as instncias de representatividade eleitoral jestabelecidas a nvel municipal e as que se implantavam a nvelprovincial e nacional.

    Grupos polticos com alguma estabilidade e identidade formavam-

    se baseados em vnculos diferenciados, como vizinhana,parentesco, clientela, trabalho (livre ou escravo), interesses materiaisou afinidades intelectuais, em torno de chefes, cidades, regies ousob determinadas bandeiras, que poderiam mudar com os contextos.Afinal, as identidades polticas eram mutveis, ainda mais nesseperodo de definies e embates. Associaes secretas, reservadasou pblicas surgem j no sculo XVIIIe ganham novo impulso apartir da Independncia, com altos e baixos e uma verdadeira

    exploso quantitativa a partir de 1831, ano inicial das Regncias. dentro dessas tramas que surge a imprensa: longe de ser um papelsagrado, marcava e era marcada por vozes, gestos e palavras.

    Nossos olhares sobre os comeos da imprensa j estocondicionados por quase dois sculos de trabalhos sobre o assunto,gerando camadas de conhecimento produzidas em contextosdiferentes, com preocupaes distintas. importante, em boamedida, tentar limpar o terreno em busca de uma reaproximao

    com aquela poca (ao mesmo tempo to prxima e distante), seusdilemas e desafios.A nfase censura e ao oficialismo para caracterizar o

    surgimento da imprensa no Brasil, embora compreensvel e

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    justificvel, pode conter elementos anacrnicos, isto , quandotratamos de um perodo passado direcionando abordagens epreocupaes para questes de nosso tempo recente, como ocorajoso combate aos autoritarismos e censuras oficiais do sculoXX. Em certa medida, tal nfase alimentou-se tambm donacionalismo antilusitano que marcou boa parte da intelectualidadebrasileira nos sculos XIX e XX. E, apesar do valor emprico einterpretativo de muitos trabalhos, eles podem deixar de lado,por conseguinte, uma compreenso mais especfica da dinmicae de certos aspectos de uma sociedade que, em princpios do

    sculoXIX

    , era ainda marcadamente organizada e concebida nosmoldes absolutistas (com seus diferentes graus de ilustrao),em crise e transformao.2

    Dessa forma, parece ser sugestivo compreender que a primeiragerao da imprensa peridica produzida no Brasil no surge novazio, numa espcie de gestao espontnea ou extempornea,mas baseada em experincias perceptveis. Alm da j citada cenapblica complexa onde ela se inseria, havia uma tradio de

    A edio de livros tcnicosatendia carncia de obras do

    gnero no pas, sobretudoaquelas de engenharia militar, a

    exemplo de Elementos dedesenho e pinturas e regras

    gerais de perspectiva,do engenheiro Roberto

    Ferreira da Silva, de 1817.

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    atividades impressas da nao portuguesa, qual o Brasil pertencia,sem esquecer a possibilidade de os primeiros redatores propriamentebrasileiros terem aprendido e convivido, ainda que informalmente,com a imprensa de outros pases. Foi o caso dos estudantesbrasileiros em Coimbra que circulavam pela Europa ou de emissriosenviados pela Coroa portuguesa aos quatro cantos do mundo, semesquecer comerciantes, traficantes de escravos e navegadores.

    Questiona-se, assim, a noo, s vezes apresentada de formasimplista, que procura contrapor o florescimento da imprensa srepresses do absolutismo. A imprensa, peridica ou no, surgiu e

    se consolidou sob determinadas condies e caractersticas, queno eram, evidentemente, as de uma democracia moderna, desociedades industriais ou de uma cultura de massas.

    Nesse sentido, oportuno destacar ainda um aspecto, alis citadocom freqncia pelos enciclopedistas do sculo XVIII: apesar dacensura prvia oficial, o papel impresso gerava novos ordenamentos,contedos e transmisso de palavras que no eram somenteimpressas, mas que existiam, est claro, faladas ou manuscritas.

    A chamada opinio pblica popular do sculoXVIII

    (vozes erumores, como expresses verbais de teias sociais complexas nomeio urbano, mas tambm no rural) marcava coraes e mentes.Do mesmo modo, as prticas de leitura em alta voz e coletivaseram constantes nos antigos regimes, tanto por iniciativa oficial (asleituras dos bandos e preges com os atos do governo) e da Igreja,quanto no mbito de comunidades variadas: existe mesmo umasugestiva iconografia europia da poca apontando como a leitura

    da imprensa peridica, em seus primeiros tempos, era ainda marcadapor essa oralizao coletiva. No mesmo caminho, expressivolevar em conta a pluralidade e a intensidade dos escritos nassociedades de tipo absolutista que, manuscritos, circulavam deformas variadas, atravs de correspondncias particulares, cpiasde textos, papis e folhas que pregavam em paredes e muros ourodavam de mo em mo, muitas vezes atravs da atividade decopistas. Tais formas de transmisso manuscritas e orais, tpicas

    daquelas sociedades, marcavam e relacionavam-se imprensaperidica, que no se afirmara ainda como o principal meio detransmisso, embora tenha alterado bastante e dado outras feies cena pblica em sua dimenso cultural.

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    Correio, Gazetae outras experincias pioneiras

    O surgimento propriamente da imprensa no Brasil ocorre em

    1808. J no seu primeiro nmero, junho desse ano, o CorreioBraziliensereferia-se ao Brasil como Imprio e tornava-se pionei-ro em trazer tal denominao para a imprensa. Mas no era ocriador isolado dessa frmula, que no tinha carter premonitrio.Hiplito da Costa, redator desse peridico em Londres (onde fo-ram redigidos outros jornais em portugus), expressava ampla ar-ticulao poltica o chamado projeto do Imprio luso-brasileiro,capitaneado pelo fidalgo portugus D. Rodrigo de Sousa Coutinho,futuro conde de Linhares e primeiro mecenas do redator. Projetoque desaguaria, a contragosto de seus adeptos, na separao entrePortugal e Brasil, rompendo os laos polticos entre os dois hemis-frios. Imperio do Brazil, sim, mas na galxia da Nao Portuguezae se possvel como Sol e no mero planeta: esse era o sentido daspalavras do Correio Braziliense entre 1808 e comeos de 1822,quando finalmente aceitaria a Independncia brasileira.

    Publicado em Londres por HiplitoJos da Costa Furtado de Mendona

    de 1808 a 1822, o Correio Brazilienseconstituiu um repertrio de

    fundamental importncia para oconhecimento do perodo inicial da

    imprensa brasileira.

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    sabido que o Correio Braziliense no foi o primeiro jornalfeito na Europa a ser lido regularmente no continente do Brasil,como ento se dizia. Desde 1778, por exemplo, a Gazeta de Lisboacirculava pela Amrica portuguesa, inclusive no Rio de Janeiro. Omesmo ocorria com as demais publicaes impressas em Portugale outras partes da Europa, como os 15 peridicos existentes duranteo governo (1750-1777) do marqus de Pombal ou os 9 quecirculavam em Portugal em 1809: tratando de divulgao de culturae utilidades, eram noticiosos, cientficos, literrios e histricos elidos pelos portugueses da Pennsula e da Amrica. Ou seja, havia

    jornais produzidos na Europa e normalmente recebidos no Brasilpelo menos desde o sculo XVIII.No entanto, essa imprensa peridica, embora disseminasse

    informaes, opinies e idias, no praticava at 1808 o debate e adivergncia poltica, publicamente, no contexto do absolutismo(ainda que ilustrado) portugus. E na criao de um espaopblico de crtica, quando as opinies polticas assim publicizadasdestacavam-se dos governos, que comea a instaurar-se a chamada

    opinio pblica. Apesar de sofrer restries e at perseguies dogoverno luso-brasileiro por suas contundncia oposicionista, sabe-se que o Correio Braziliense era lido sistematicamente no Brasil.

    A partir de 10 de setembro de 1808 passa a sair a Gazeta do Rio deJaneiro, na Impresso Rgia ento recm-instalada no territrio doNovo Mundo com a chegada da Corte portuguesa. Redigida inicialmen-te por frei Tibrcio da Rocha, que abandona essa atividade quatro anosdepois com a morte de D. Rodrigo de Sousa Coutinho (responsvel

    direto pelo jornal). Em seguida, o redator foi Manuel F. de Arajo Gui-mares (at meados de 1821), o mesmo que redigiria tambm O Pa-triota(1813-14) e O Espelho(1822), ambos no Rio de Janeiro. Com amudana de orientao poltica aps o movimento liberal portugusde 1820, a Gazeta do Rio de Janeirotem novo redator, o cnego VieiraGoulart, que publicaria tambm O Bem da Ordem, jornal que preten-dia ser lido pelo povo rude e sem aplicao s letras, segundo suasprprias palavras. Era uma atitude encontrada em parte dos redatores

    de diferentes posies polticas a preocupao de atingir um pblicomais amplo e visto como despossudo e, por isso, carente de Luzes.A Gazeta, fazendo jus ao nome, seguia o padro das gazetas

    europias de Antigo Regime, que circulavam na esfera do Estado

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    absolutista, campo de disputas simblicas e no de refernciasmonolticas. At mesmo um crtico cido como Voltaire elogiavatais gazetas pela dimenso cosmopolita e por fazerem circularpalavras e informaes, ainda que restritas. A prpria ImpressoRgia no pode ser considerada apenas divulgadora de papisoficiais, pois desenvolveu ampla e complexa atividade tipogrfica,tornando-se a primeira editora a funcionar em territrio brasileiro.

    O Patriota, edio da ImprensaRgia de 1813, fundada e dirigida

    pelo polgrafo Manuel Ferreira deArajo Guimares, figura como a

    segunda revista publicada no Brasil.Reuniu os melhores homens de letra

    do tempo e divulgou assuntos deinteresse do momento, inclusive

    instrues para o cultivo do caf.

    comum colocar-se, em estudos histricos, a contraposio entrea Gazeta do Rio de Janeiro (enquanto jornal oficial) e o CorreioBraziliense(que fazia crticas ao governo). Porm, uma compara-o atenta indica que, alm dessa evidente dicotomia oposio/situao, existiam convergncias entre estes dois peridicos. Tantoa Gazeta quanto o Correio defendiam idntica forma de governo(monrquica), a mesma dinastia (Bragana), apoiavam o projetode unio luso-brasileira e comungavam o repdio s idias de

    revoluo e ruptura, padronizado pela crtica comum RevoluoFrancesa e sua memria histrica durante a Restaurao.Alm desses fatores, uma leitura sistemtica indica como, a partir

    de meados de 1821 (aps a Revoluo do Porto e com o ministrio

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    de Jos Bonifcio e convocao da Constituinte brasileira), a Gazetado Rio (o ttulo reduzido) passa a defender o liberalismo e amodernidade poltica (citando Rousseau e outros da mesma linha).E acompanha de perto o processo de separao entre Portugal eBrasil, posicionando-se a favor da independncia deste antes mesmodo Correio Braziliense, que levava a desvantagem da distnciageogrfica e das comunicaes demoradas entre os dois Hemisfrios.Ou seja, possvel enxergar nuances nessa polarizao, s vezesmaniquesta, entre esses dois jornais luso-brasileiros, vistos maistarde como brasileiros apenas. Os dois faziam parte do mesmo

    contexto poltico e mental e, ainda que com diferenas, partilhavamum universo de referncias comuns.No mesmo perodo do governo joanino no Brasil (1808-1821)

    circulou na Bahia, com tipografia prpria, o peridico A IdadedOuro do Brazil, desde 1811 at 1823, de propriedade de ManoelAntonio da Silva Serva e com vrios redatores ao longo do tempo.Inicialmente situado nos limites das gazetas de Antigo Regime,trazia notcias internacionais e sobre o comrcio da cidade, da vida

    cotidiana, festejos, alm das cincias e artes. Aps o movimentoliberal ibrico, o jornal entraria na defesa das modernas liberdades,a exemplo de outros na poca, e no sobreviveu ao fim da guerrade Independncia na Bahia.

    Atravs da publicao de O Patriota, quecirculou entre 1813 e1814 sob os prelos da Impresso Rgia, no Rio de Janeiro, gerou-se um espao para manifestao da vida intelectual luso-brasileira,colocando-se o Brasil como centro da nao portuguesa. Nesse

    peridico, voltado para a divulgao das cincias e das letras,encontramos obras dos inconfidentes Cludio Manuel da Costa eToms Antonio Gonzaga, bem como relatos de viajantes luso-brasileiros dos sculos XVIII, sem esquecer a colaborao deportugueses (alguns nascidos no Brasil) situados em outroscontinentes, como sia e frica. Tratava-se de uma iniciativa, aindaaqui, dos homens de letras que at ento haviam atuado sob agide do conde de Linhares. A partir da morte deste em 1812,

    tentavam manter-se agrupados e atuantes na cena pblica,explorando as contradies no interior da Coroa portuguesa esem pregar abertamente um engajamento de tipo patriticomoderno, ao contrrio do que seu ttulo parecia sugerir. Todavia,

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    no se constituiu em mero papel oficioso, tanto que, pela fora dascircunstncias, teve durao efmera, no resistiu s presses nacorda-bamba do patriotismo.

    Reino da opinio pblica

    Nas duas primeiras dcadas do sculo XIXsurge, atravs dos pa-pis impressos no Brasil, a chamada opinio pblica. Mas afinal, oque significa essa expresso? H quem a tome de forma literal comopersonagem ou agente histrico dotado de vontade, tendncia e ini-ciativa prprias. Porm, trata-se, antes de tudo, de palavras. A ex-presso opinio pblica polissmica e tambm polmica. Conhe-cer a trajetria dessa noo numa determinada sociedade, situada cro-nologicamente e geograficamente, pode permitir uma aproximaoda gnese da poltica moderna, isto , ps-absolutista, cujos discur-sos invocando a legitimidade desta opinio continuam a ter pesoimportante na atualidade. Ou seja, a opinio pblica era um recursopara legitimar posies polticas e um instrumento simblico que

    visava transformar algumas demandas setoriais numa vontade geral.Considera-se, em geral, que opinio pblica remete a um voca-bulrio poltico que desempenhou papel de destaque na constitui-o dos espaos pblicos e de uma nova legitimidade nas socieda-des ocidentais a partir de meados do sculo XVIII. Essa viso percebiano nascimento da opinio um processo pelo qual se desenvolviauma conscincia poltica no seio da esfera pblica. Diante do poderabsolutista, havia um pblico letrado que, fazendo uso pblico da

    razo, construa leis morais, abstratas e gerais, que se tornavam umafonte de crtica do poder e de consolidao de uma nova legitimi-dade poltica. Ou seja, a opinio com peso para influir nos negciospblicos, ultrapassando os limites do julgamento privado.

    Realizando-se, sobretudo, nos peridicos impressos, essa opiniopblica tinha dois sentidos bsicos na poca de seu surgimento.Ou era vista como rainha do mundo, fruto da elaborao dossbios ilustrados e enciclopedistas, como sinnimo da soberania

    da razo, isto , uma simbiose entre o reino da opinio e a repblicadas letras. Ou ento, num sentido mais jacobino ou revolucionrio,afirmada como resultado da vontade da maioria de um povo, quese expressava atravs da participao de setores da sociedade em

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    agremiaes e organizaes polticas, ou seja, vinculada idia dedemocracia direta. A primeira concepo era criticada como

    aristocrtica e, a segunda, como matemtica (a soberania da maioria).V-se que essas discusses situavam-se no quadro da imprensaartesanal, isto , no empresarial, que caracterizou a primeira metadedo sculo XXno Brasil diferenciando-se, pois, das atuais enquetesquantitativas de opinio e dos meios de comunicao de massa,que remetem a um contexto bem diferente.

    O momento crucial para a emergncia de uma opinio pblica noBrasil, portanto, situa-se nos anos 1820 e 1821, contexto que antecede

    a Independncia e marca mudanas significativas na estrutura polticada Pennsula Ibrica e de seus domnios na Amrica. Em 1820, como sabido, ocorreram as revolues constitucionalistas na Espanha eem Portugal, inspiradas no modelo liberal da Constituio de Cadiz(1812). Esses acontecimentos teriam impacto importante nos domniosportugueses e espanhis na Amrica.

    Entre as primeiras medidas da Junta de Governo da RevoluoConstitucional portuguesa estava o decreto estabelecendo a

    liberdade de imprensa, datado de 21 de setembro de 1820. Emseguida, a 13 de outubro, as mesmas autoridades liberaram acirculao dos impressos portugueses fora de Portugal. Enterravam,assim, a censura prvia. Essas iniciativas tocavam diretamente oBrasil, que sediava a monarquia portuguesa, pois o rei D. Joo VImantinha-se no Rio de Janeiro. Vendo seu poder dividido com aJunta de Governo revolucionria e no querendo perder terreno, omonarca assina, por sua vez, um decreto em 2 de maro de 1821suspendendo provisoriamente a censura prvia para a imprensaem geral. Tratava-se de uma deciso tardia, j que a livre circulaode impressos tornara-se incontornvel naquele momento no Brasil.

    A partir da, poderia se afirmar que a liberdade de imprensaestaria instalada no Brasil. Mas o que se verifica em seguida no uma linha progressiva e ascendente de crescimento dessa liberdade.Houve um crescimento da imprensa, sim, mas a questo do controle

    desta atividade seguiria uma linha sinuosa, com recuos e expanses:os dilemas, vividos pelos redatores de diversas correntes polticas,se cruzariam com as preocupaes governamentais e com asconstantes alteraes dessa legislao pelos parlamentares.

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    Uma das figuras marcantes dessa primeira gerao da imprensabrasileira, o baiano Cipriano Barata, afirmaria em seu jornal Sentinelada Liberdade (1823):

    Toda e qualquer Sociedade, onde houver imprensa livre, est em li-

    berdade; que esse Povo vive feliz e deve ter aumento, alegria, segu-

    rana e fortuna; se, pelo contrrio, aquela Sociedade ou Povo, que

    tiver imprensa cortada pela censura prvia, presa e sem liberdade,

    seja debaixo de que pretexto for, povo escravo, que pouco a pou-

    co h de ser desgraado at se reduzir ao mais brutal cativeiro.3

    O tema da liberdade de imprensa toca em permanncias de

    longa durao histrica e em questes ainda mal resolvidas nosdias de hoje.

    O estilo panfletrio, entre vozes e espaos

    Das entranhas da Repblica das Letras (isto , do conjunto deletrados e escritores) emergiu um tipo de ator histrico cujo perfilcoletivo tinha traos peculiares. A imprensa de opinio entre meadosdo sculo XVIIIe comeo do XIXfez entrar em cena essa figura dehomem pblico, at ento inexistente no territrio da Amricaportuguesa: o redator panfletrio. Entre as mutaes culturais vindascom a manifestao da modernidade poltica ocidental surge essehomem de letras, em geral visto como portador de uma misso aomesmo tempo poltica e pedaggica. o tipo do escritor patriota,difusor de idias e pelejador de embates e que achava terreno frtil

    para atuar numa poca repleta de transformaes.Ao contrrio do que poderia parecer, tais letrados no tinhamexatamente o mesmo perfil dos filsofos iluministas ou dos sbiosenciclopedistas do sculo XVIII, embora invocassem a esses comfreqncia. Foi a partir de processos como a Independncia dosEstados Unidos, a Revoluo Francesa e os movimentos liberaisibricos, por exemplo, que surge esse intelectual to caractersticodesses incios da Era Contempornea, do qual Thomas Paine foi

    um dos paradigmas. Publicavam livros talvez, mas, sobretudo,impressos de combate imediato, de apoio/ataque a pessoas e facese de propagao das novas idias, dirigidos ao povo e naoou, quando fosse o caso, para form-los

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    No comeo do sculo XIX, ou seja, aps a vaga revolucion-ria, o perfil desses novos intelectuais, no mundo sob influnciaeuropia, podia ser repartido em duas grandes tendncias: de umlado, um heterogneo conjunto de escritores patriticos e liberaise, de outro, nostlgicos da Repblica das Letras tal como ela seapresentava em meados do sculo XVIII (como Jos Bonifcio deAndrada e Silva, que no era um tpico redator de peridicos).Eram caractersticas moldadas pelo rescaldo da onda revolucion-ria, em espaos pblicos que se transformavam. dentro dessequadro mais amplo de mutaes culturais (e no exatamente como

    iluministas) que se encontra a primeira gerao de redatores bra-sileiros. Nessa poca, no eram chamados de jornalistas, mas deredatores ou gazeteiros, enquanto os jornais eram comumente de-nominados de gazeta, folha ou peridico. E tais peridicos, porsua vez, no devem ser confundidos com os panfletos propria-mente ditos, ou pasquins, que eram folhas volantes e avulsas, qua-se sempre annimas e sem continuidade.

    Nessa primeira gerao da imprensa brasileira no havia

    incompatibilidade entre o local, o nacional e internacional, nementre as dimenses opinativas e informativas: o cotidiano e questeslocais misturavam-se com discusses doutrinrias dos rumos que oEstado e a nao deveriam tomar, ao lado de notcias nacionais,internacionais e interprovinciais.

    O que ento se conhecia por imprensa peridica bem diferentedo que hoje se compreende como tal, inclusive em seu suportefsico: apesar de algumas iniciativas estveis, havia grande nmero

    de ttulos efmeros. Mesmo demandando alguns recursosfinanceiros, no era preciso ser muito rico para fazer circular umjornal, que tinha formato pequeno e poucas pginas, com annciosescassos. Tanto um jornal governista quanto um oposicionista tinhamum alcance, em princpio, semelhante. E no era necessrio ser umprivilegiado social para comprar eventualmente um exemplar, cujopreo estava acessvel at mesmo para um escravo de ganho quese interessasse em sua leitura.

    A maioria dos homens de letras dessa gerao, independente doposicionamento poltico, escrevia no chamado estilo panfletrio, queexpressou uma das fases mais criativas e vigorosas dos debates polticosmundiais e da imprensa brasileira em particular, s vindo a desaparecer

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    na segunda metade do sculo XX. O estilo panfletrio (difcil de serredigido com qualidade e hoje em franco desuso na imprensa)alcanava eficcia por vrias caractersticas retricas interligadas, como:capacidade de convencer e de atacar, esprito mordaz e crtico,linguagem literria, stira, requerendo ao mesmo tempo densidadedoutrinria e ideolgica e agilidade para expressar, em situaesespecficas e circunstanciais, uma viso de mundo geral e definida.

    Havia relao estreita dos livros com os jornais peridicos, atporque ambos podem ser definidos como imprensa, num sentidoampliado. Os jornais (tambm vendidos nas livrarias) custavam

    entre 40 e 80 ris o exemplar, de acordo com o nmero de pginas o que os tornava muito mais acessveis que os livros. E era comum,na poca, impressos desse tipo transcreverem (e traduzirem, quandoera o caso) longos trechos de livros, tornando-se, assim, veculosde disseminao. O jornal realizava tambm divulgao (ereinterpretao, com freqncia) dos livros nos anos 1820 e 1830,antes de se expandir a publicao de volumes em folhetins nosperidicos. Ou seja, mesmo quem no tinha acesso a tais livros,

    poderia eventualmente l-los em extratos na imprensa peridica.Existe um recorrente lugar-comum sobre a influncia das novasidias que, atravs de livros e outros impressos, teriam atravessadoo oceano e causado, ou acelerado, as independncias nas Amricas,inclusive no Brasil. Tal esquema explicativo deve ser visto comcautela. As leituras e interpretaes de tais impressos poderiam serpolissmicas, de acordo com cada personagem ou momento. Nohavia, necessariamente, um caminho de tipo linear e evolutivo,

    que vinculava as luzesdas novas idiaseuropias ao estmulo dasindependncias. Primeiro, porque essas duas expresses, luzesenovas idias, so, em geral, utilizadas de maneira imprecisa eabrigam, em seu bojo, autores, postulados, tendncias e idiasbastante diferenciadas entre si, desde as vrias vertentes da Ilustraodo sculo XVIII, passando pelas diferentes fases e modelos daRevoluo Francesa e pelos liberalismos das primeiras dcadas dosculo XIX. Segundo, mesmo se aceitssemos uma coeso monoltica

    de tais referncias, para que tal linha seguisse seu curso, seriapreciso que os grupos polticos e letrados do mundo americanofossem tambm homogneos e coerentes entre si e que recebessemtais postulados de maneira uniforme, transformando de modo mais

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    ou menos repentino a percepo da realidade em que viviam epassando disposio de agir para transform-la o que nos pareceuma supervalorizao do desempenho que a leitura pode ter sobreos agentes histricos. Haveria, pois, essa relao unvoca e quaseimediata (isto , sem mediaes) entre luzes, elites nativas eindependncia? Fica uma questo para ser repensada.

    Os impressos viajavam, transpunham mares e faziam viajar seusleitores. Nota-se, alis, na ampla tradio da literatura de viagens aconotao de descobrimento, de busca de conhecimento (e de apro-priao) do outro, do diferente. A tnue fronteira entre o extico e o

    exato, entre o igual e o semelhante. Navegantes, negociantes, emi-grantes, cientistas, turistas, estadistas, militares e militantes viagemimplica contato, em marcar e ser marcado. A viagem desloca o tempohistrico e desvela a pluralidade de tempos de uma poca. Ainda maispara os viajantes que transpem fronteiras em contato com revolu-es: impressos proibidos ou desconhecidos, palavras mobilizadoras,recursos, armamentos e munies, sementes, exemplos e lies.

    Outra novidade, com impacto a nvel local: os pontos-de-venda e

    circulao da imprensa como espaos urbanos significativos nasprincipais cidades brasileiras em princpios do sculo XIX. As tipografiase as primeiras livrarias eram habitualmente freqentadas por redatorese leitores: conversas, contatos, laos de solidariedade poltica, localde fazer compras. Pontos-de-venda dos impressos, leituras coletivase cartazes e papis circulando de maneira intensa pelas ruasincorporam-se ao cotidiano da populao. A fora da palavra falada,manuscrita ou impressa, e dos contatos pessoais. Note-se que as

    tipografias e livrarias compunham um comrcio no sentido ampliado:no s em geral situavam-se nas ruas do comrcio, mas vendiamtambm, quase sempre, produtos diversos, como roupas, lingeries,louas, bijuterias, perfumes, papelaria, mrmores, remdios... Olivreiro e o tipgrafo francs Pierre Plancher, por exemplo, instaladona rua do Ouvidor durante o Primeiro Reinado, ganhou dinheiro nos com jornais e livros importados ou com os que imprimia no Rio deJaneiro, mas tambm com a venda do purgativo Le Roy.

    H igualmente inmeros registros de leituras em grupo. O DirioFluminense, oficial, alertava no ano agitado de 1831: Nem todosos que se ajuntam em Casas de Livreiros vo comprar Livros; []a se podem congregar em santa confraria.4

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    Esse tipo de contato (e possvel agrupamento) era visvel comcerta freqncia. Evaristo da Veiga, livreiro, redator e autor da letrado Hino da Independncia, veio a pblico denunciar um de seuscolegas de profisso, Francisco de Paula Brito, reclamando contrao hbito de [] lerem-se Peridicos grtis na Praa da Constituio.Paula Brito defendeu-se: Jamais em minha casa se leram Peridicosde graa, e eu no posso privar que um Fregus que paga com seudinheiro qualquer folha se apresse a l-la; eis o que s vezes acontece.Evaristo insistia na reclamao, reforando o argumento com asconhecidas prticas de sociabilidades nos locais de venda e impresso,que eram tambm pontos de leitura e encontro: costume nas

    casas, aonde se vendem peridicos, facilitar-se a leitura aos quedesejam.5 A generosidade de Paula Brito era notria e eleconscientemente buscava ampliar o crculo da Repblica das Letras,tanto que seria o principal incentivador e primeiro empregador doento jovem e desconhecido Machado de Assis.

    As primeiras dcadas do sculo XIXforam marcadas pela expansodo pblico leitor, das tiragens e do nmero de ttulos, dando escrita impressa uma crescente importncia, apesar de ainda

    diminuta em relao ao total da populao. A alfabetizao eraescassa, mas o rtulo de elitismo para a imprensa que surgiadeve ser visto com cautela. Mesmo no Brasil escravista. Haviacruzamentos e intersees entre as expresses orais e escritas, entreas culturas letradas e iletradas. E a leitura, como nos tempos entorecentes do Antigo Regime, no se limitava a uma atitude individuale privada, mas ostentava contornos coletivos. Nesse sentido, acirculao do debate poltico ultrapassava o pblico estritamente

    leitor, embora sua produo impressa fosse monopolizada por umconjunto restrito de redatores heterogneos.

    Os primeiros jornais

    Baseados nas tipografias e nas rotas de comrcio como espaosde difuso cultural e sociabilidade, esses novos agentes culturais epolticos, os redatores, tinham nome e rosto na sociedade que

    buscava se efetivar como nao brasileira. Eram, com freqncia,construtores do Estado nacional.Na primeira gerao da imprensa surgiram figuras notveis no

    estilo panfletrio, com variadas e at antagnicas posies no es-

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    pectro poltico: o conservador e erudito Jos da Silva Lisboa (viscon-de de Cairu), redator de vrios folhetos e jornais de combate; Evaristoda Veiga e sua influente Aurora Fluminense(1827-1839) criticandoD. Pedro I e depois apoiando as regncias, formava opinies eexpressava uma ampla rede de associaes a nvel nacional; orepublicano e posteriormente socialista Antonio Borges da Fonse-ca com vrios ttulos, destacando-se O Repblico, criador de umaortografia ortofnica bem particular que almejava a formulao deuma lngua nacional; o neojacobino Ezequiel Correa dos Santos eseu Nova Luz Brasileirapregando uma reforma agrria; o lendrio

    carmelita frei Joaquim do Amor Divino Caneca e seu TiphisPernambucano,que custaria a vida de seu redator; o RevrberoConstitucional Fluminense, do incansvel e onipresente cnegoJanurio da Cunha Barbosa e do maom Joaquim Gonalves Ledo,com decisiva atuao na Independncia, em 1822; O ObservadorConstitucional, em So Paulo, 1829, do italiano Libero Badar,assassinado no ano seguinte devido sua atuao no jornal; OCarapuceiro, ao mesmo tempo conservador e irresistivelmente sa-

    trico, do padre pernambucano Lopes Gama, mesclava saborosacrticas de costumes e agudos embates doutrinrios;outros defen-diam inabalveis o ponto de vista governamental, como a Gazetado Brasile o Dirio Fluminense, com vrios redatores; nem mes-mo o imperador Pedro I ficaria isento desse clima, publicando,annimo ou com pseudnimo, textos igualmente provocantes.

    A lista seria extensa, com centenas de ttulos e dezenas de redato-res somente at a dcada de 1830. (Nesse ano, Evaristo da Veiga cal-

    culava que, apenas no Rio de Janeiro, duzentas pessoas sobreviviamda atividade impressa, entre tipgrafos, livreiros, redatores e outrasprofisses diretamente derivadas.) Eram publicaes geradas inici-almente em determinados plos geopolticos e comerciais mais ati-vos no perodo colonial, como Rio de Janeiro e Bahia (tiveram im-prensa durante o governo de D. Joo VI), Pernambuco, Maranho ePar; posteriormente e em menor escala, Cear, Minas Gerais, Paraba,So Paulo e Rio Grande do Sul; mais tarde ou com menos fora em

    outras provncias. Circulavam por todo o territrio que se constituaem nacional. Basta verificar, por exemplo, as constantes citaesrecprocas entre os peridicos de diferentes provncias. Eram elos detipo nacional que se constituam, tambm, pela palavra impressa.

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    Uma anotao sumria indica os primeiros passos da imprensa nasprovncias: Aurora Pernambucana, 1821; O Conciliador do Mara-nho, 1821; O Paraense, do combativo Alberto Patroni, 1822; O Com-

    pilador Mineiro, 1823, em Vila Rica (Ouro Preto); Dirio do Governodo Cear, 1824; Gazeta do Governo da Paraba do Norte, 1826; FarolPaulistano, 1827, redigido por Jos da Costa Carvalho, futuro regentee marqus de Monte Alegre; Dirio de Porto Alegre, no mesmo ano.Algumas provncias, como Alagoas, Santa Catarina e Rio Grande doNorte, somente teriam imprensa prpria no perodo regencial; outras,como Amazonas e Paran, na segunda metade do sculo XIX.

    Nem todos os jornais enveredavam pelo debate poltico acentua-do e predominante. OJornal do Commercio, criado no Rio de Janei-ro em 1827, ou o Dirio de Pernambuco, Recife, 1825 (ainda hoje omais antigo da Amrica latina em circulao), sem esquecer um pio-neiroJornal de Anncios, 1821, apostavam mais na linha mercantil enoticiosa, embora nem sempre escapassem ao estilo marcante dapoca. Na verdade, no ocorre uma transformao repentina de umaimprensa artesanal e poltica para a empresarial: trata-se de uma

    mudana gradativa e no linear que se deu ao longo de todo o sculoXIX, durante o qual as duas caractersticas conviveram.

    Os jornais do perodo inicial constituram-se, em alguns casos,atravs de vrias redes de sociabilidade, dentro das condies dapoca, formadas no Brasil recm-independente que buscava seconstituir em nao. No se deve negligenciar dentro desses laosque se articulavam (criavam, mantinham ou refaziam), comdensidades desiguais, uma forma de associao bastante especfica

    em suas caractersticas, embora articulada com as demais: as redesde sociabilidade pela imprensa peridica. Essa pode ser consideradaum palpvel agente histrico, com sua materialidade no papelimpresso e efetiva fora simblica das palavras que fazia circular,bem como dos agentes que a produziam e dos leitores/ouvintesque de alguma forma eram receptores e tambm retransmissoresde seus contedos.

    Dessa maneira, grupos com alguma estabilidade e identidade

    poltica a nvel nacional, como os liberais exaltados, moderados ecaramurus na dcada de 1830, articulavam-se em associaespblicas, respectivamente as Sociedades Federais, as SociedadesDefensoras e as Colunas. Alm dessas, havia associaes pblicas

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    com funes diversificadas: culturais, cientficas, pedaggicas, porofcio, de estrangeiros, filantrpicas e benemerentes etc. A cadaum desses grupos, apesar de alguma heterogeneidade e mudanasde posio, equivaliam quase sempre publicaes espalhadas pelasprovncias e unificadas por determinadas bandeiras, interesses epalavras de ordem. Exemplo palpvel deu-se atravs dos peridicoscom o mesmo ttulo de Sentinela da Liberdade(e outras publicaesaliadas) que surgiram desde os anos 1820 pelos vrios pontos doBrasil. E sem negligenciar em outros casos o papel das maonarias,ou mais propriamente das concepes manicas de organizao,

    cujos grupos serviram como aglutinadores, embora s se fizessemexplcitos na imprensa a partir dos anos 1830.E foi justamente no perodo das Regncias (1831-1840) que

    ocorreu no Brasil uma verdadeira exploso da palavra pblica,com crescimento visvel de associaes, de motins, rebelies... ede peridicos, embora, claro, nem todos fossem rebeldes. Aimprensa constituiu-se como formuladora de projetos de naodistintos entre si (apesar das convergncias) e de uma cena pblica

    cada vez mais complexa, na qual emergiam atores polticosdiferenciados. Permeiam as pginas dos jornais como protagonistas:soldados, oficiais de mdia patente, lavradores arrendatrios,profissionais liberais, clero regular e secular, camadas pobres urbanaslivres, homens negros, pardos e brancos, alm da presena ntidadas mulheres na cena pblica, como leitoras ativas. Aparecem naimprensa manifestos coletivos e de carter poltico assinados apenaspor mulheres nos anos 1820 em diferentes localidades, como Paraba

    e Rio de Janeiro. Era a poca dos primeiros passos, disputas eensaios de construo de um Estado e uma nao no Brasil, comseus dilemas, contradies, mudanas e permanncias.

    Foi o momento tambm da emergncia, sobretudo na imprensa,de uma sensibilidade romntica, que se transformaria depois emmovimento. A revista Nictheroy, publicada em Paris, 1836, porbrasileiros, e considerada pioneira do romantismo, resulta do climade efervescncia do perodo regencial.

    Com a restaurao do poder centralizador e monrquico em1840 (antecipao da maioridade e coroao de D. Pedro II), anuncia-se outra tendncia em termos de imprensa peridica. O debatepoltico no desaparece, mas se arrefece, no bojo de uma ao

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    conjugada de represso e incorporao de agentes polticos sob agide do Estado imperial. Nesse momento h um certo declnioquantitativo nos ttulos dos jornais, mas ao mesmo tempo umaestabilizao da imprensa atravs de alguns rgos que,paulatinamente, vo se consolidando como empresas.

    No mbito da imprensa, como das associaes, a dcada de1840 marcada pela valorizao dos interesses materiais, ou seja,a defesa de um progresso socialmente conservador, gerando certadespolitizao desses veculos (apesar de alguma pluralidadeideolgica que surge com a Revolta Praieira em Pernambuco, por

    exemplo). Tendncia que desaguaria na chamada Conciliao dosanos 1850, marcando o apogeu do Imprio brasileiro e remodelandoo universo dos papis impressos.

    A seguir, o enfoque mais detido do perodo imperial permitiravaliar as nuances e a complexidade da produo, circulao,consumo e papel social do fazer jornalstico no Brasil.

    Notas1 Inventrio realizado por Rubens Borba de Moraes, Bibliografia brasileira do perodo colonial, So

    Paulo, IEB/USP, 1969, obra cuja publicao foi curiosamente financiada pelo ento jovem compositorChico Buarque de Hollanda, atravs de seu pai, o historiador Sergio Buarque de Hollanda.

    2 Sem pretender igual-las, desmerec-las ou mesmo analis-las aqui, cito como exemplo as obrasde A. J. Barbosa Lima Sobrinho, O problema da imprensa, Rio de Janeiro, lvaro Pinto, 1923(2. ed., Edusp, 1988), R. Borba de Moraes, Livros e bibliotecas no Brasil colonial, So Paulo, SCCT,1979; C. Rizzini, O livro, o jornal e a tipografia no Brasil 1500-1822, reimp., So Paulo, 1988(1946); N. W. Sodr, Histria da imprensa no Brasil, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1966;4. ed., Rio de Janeiro, Mauad, 1999. Variando do liberalismo democrtico e do nacionalismo deesquerda ao marxismo, os contextos em que foram escritas correspondem, em geral, a momentosmais agudos de combate a diferentes formas de autoritarismo e defesa da liberdade de expresso

    no Brasil republicano do sculo XX, passando pela Primeira Repblica, Era Vargas e DitaduraMilitar de 1964.

    3 Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco, Recife, Typographia Cavalcante e Cia., n. 11,10 maio 1823.

    4 Dirio Fluminense, Rio de Janeiro, n. 4, v. 17, 7 jan. 1831.5 Aurora Fluminense, Rio de Janeiro, Typographia de Gueffier, n. 564, 2 dez. 1831.