Os projetos de vida da juventude do perímetro Curu-Paraipaba
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VIRZÂNGELA PAULA SANDY MENDES
OS PROJETOS DE VIDA DA JUVENTUDE DO
PERÍMETRO CURU-PARAIPABA: entre o sonho e a
realidade
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico
em políticas Públicas e Sociedade do Centro de Estudos
Sociais Aplicados da Universidade Estadual do Ceará como
requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em
Políticas Públicas e Sociedade.
Área de concentração: Políticas Públicas
Orientador: Profº Dr. Francisco Josênio Camelo Parente
FORTALEZA – CEARÁ
2011
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M538p Mendes, Virzângela Paula Sandy
OS PROJETOS DE VIDA DA JUVENTUDE DO
PERÍMETRO CURU-PARAIPABA: entre o sonho e a
realidade. – Fortaleza, 2011
174 p
Orientador: Profº Dr. Fco. Josênio Camelo Parente
Dissertação (Mestrado Acadêmico em Políticas
Públicas e Sociedade) – Universidade Estadual do
Ceará.
1. Agricultura familiar e Perímetro. 2. Sucessão
hereditária. 3. Juventude e Projetos de vida. I.
Universidade Estadual do Ceará.
CDD: 320.6
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VIRZÂNGELA PAULA SANDY MENDES
OS PROJETOS DE VIDA DA JUVENTUDE DO PERÍMETRO CURU-PARAIPABA: entre
o sonho e a realidade
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
Acadêmico em políticas Públicas e Sociedade do
Centro de Estudos Sociais aplicados da
Universidade Estadual do Ceará como requisito
parcial para a obtenção do grau de Mestre em
Políticas Públicas e Sociedade.
Área de concentração: Políticas Públicas.
Aprovada em: 28/02/2011
BANCA EXAMINADORA:
______________________________________
Professor Dr. Francisco Josênio Camelo Parente (Orientador)
Universidade Estadual do Ceará - UECE
______________________________________
Professora Dra. Celecina de Maria Veras Sales
Universidade Federal do Ceará - UFC
______________________________________
Professor Dr. Geovani Jacó de Freitas
Universidade Estadual do Ceará - UECE
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Dedico esse trabalho a minha querida mãe guerreira Celia,
a meu pai Astolfo e aos meus irmãos Verbena e Velber.
Dedico ainda ao companheiro Cauby e às minhas três filhas
(Hanna, Lais e Laila), que são a minha razão de viver.
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AGRADECIMENTOS
Agradecer às pessoas que me acompanharam nessa travessia é um
momento especialmente emocionante. Transmite-me a sensação de que estou prestes a
realizar um sonho que até pouco mais de dois anos parecia impossível e distante.
Esse sonho começou em 2008 quando recebi a visita de uma pesquisadora
da EMBRAPA. Ela queria a minha contribuição em sua tese de doutorado. A
colaboração almejada seria tanto na qualidade de entrevistada – já que eu era a gerente
administrativa do Distrito -, como também para facilitar sua introdução no cotidiano
das famílias do Perímetro Curu-Paraipaba. Eu não pensei duas vezes e afirmei que
colaboraria desde que ela também me ajudasse a passar na seleção do mestrado. Ela
topou no mesmo instante.
Essa relação, que mais tarde se transformou numa grande amizade, foi
decisiva e me encorajou a ir à luta, a voltar a estudar e a pensar reflexivamente sobre a
complexidade do universo que me rodeava. Então, por uma questão de
reconhecimento, divido os possíveis méritos pela realização desse trabalho a irmã
Helenira que, embora estivesse atribulada para terminar sua tese sempre arranjou
tempo para me ajudar e não me deixou esmorecer nos momentos difíceis.
Agradeço aos meus pais (Celia e Astolfo), que tanto contribuíram para que
eu me tornasse quem sou e por terem vibrado a cada uma de minhas conquistas.
Aos meus dois irmãos – Verbena e Velber – pessoas queridas que me
apoiaram fraternalmente nessa trilha. Agradeço todos os incentivos.
Ao meu companheiro Cauby, agradeço a paciência de ter disputado com os
livros e o computador a minha atenção e dedicação. Sem o seu incentivo e suporte eu
não teria alcançado esse titulo.
Às minha queridas meninas, Hanna, Lais e Laila, agradeço pelo simples
fato delas existirem e estarem ao meu lado, independente da situação. Sempre tive
muito medo de falhar e deixar de ser pra elas uma referência. Então também lhes devo
o título de mestre aqui conquistado.
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Agradeço a todos os irrigantes e aos jovens que me concederam entrevistas,
participaram dos grupos focais, me receberam em suas casas e permitiram que eu
conhecesse mais profundamente suas histórias de vida, suas trajetórias e lutas. Em
especial agradeço a Citon e a João, que na condição de presidente do Distrito,
apoiaram e acreditaram na importância desse trabalho. A eles agradeço,
principalmente, o conhecimento compartilhado nas longas conversas durante as
inúmeras viagens e os longos debates que só me fizeram crescer profissionalmente.
Não posso deixar de agradecer à irmã Aninha, que foi e é o meu suporte
operacional. Agradeço a ela o cuidado com minhas filhas, sem o qual eu não teria
como me dedicar a esse estudo.
À FUNCAP, que me concedeu uma bolsa durante um ano e meio,
possibilitando a realização deste trabalho.
Sou grata ao meu orientador, professor Josênio, pelo seu incansável
empenho nessa construção teórica e reflexiva.
A todos os professores que possibilitaram meu aprofundamento teórico e,
em especial, aos professores Hermano e Rejane. Ao professor Nilson Weisheimer que
partilhou comigo sua tese de doutorado. E aos professores Gil e Celecina, que desde a
minha banca de qualificação me apresentaram tantas contribuições. Aos meus queridos
companheiros de turma. Que saudade da nossa tapioca com café!
Agradeço, antes de tudo, a Deus, pelo amparo reconfortante nos momentos
de angústia e desânimo.
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“A luta pela água é uma coisa horrorosa.
Nada mais silencioso e mais formidável.
Luta de vida e de morte, luta do homem contra a rocha.
Das energias dum coração contra as energias da natureza
inteira.
Nada é mais selvático do que cavar, sob a abrasadora
canícula da seca, uma cacimba a picareta e a pá.”
Gustavo Barroso, 1956
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RESUMO
Este estudo apresenta uma reflexão sobre os processos de sucessão, envelhecimento, êxodo
rural da agricultura familiar e as mudanças que vêm se processando ao longo dos trinta e
quatro anos de existência do Perímetro Irrigado Curu-Paraipaba – projeto implantado pelo
Departamento Nacional de Obras Contra as Secas –, enfatizando, como elemento primordial
de análise, as alterações que se verificam nos padrões sucessórios, ensejando o desinteresse da
juventude atual em suceder os pais no trabalho dos lotes agrícolas. Nessa discussão se
articulam três categorias analíticas – juventude, agricultura familiar e espaço rural – autores
como Castro, Carneiro, Bourdieu, Stropasolas, Abramovay, Weisheimer e Wanderley
elucidaram a compreensão do objeto. A metodologia utilizada foi um estudo de caso,
combinando as técnicas de questionários, grupos focais, entrevistas e observações diretas. Os
resultados apontam o envelhecimento gradual e irrevogável dos “colonos”, pois 30,0% têm
idade entre 56 e 65 anos e 38,4% estão entre 66 e 85 anos. Por outro lado, o público jovem é
significativo – quase 20% estão na faixa de 15 a 25 anos. Nesse contexto, a (des)
profissionalização dos jovens na atividade agrícola e o seu distanciamento do cotidiano do
perímetro vêm colocando em risco a reprodutibilidade das famílias na agricultura irrigada,
comprometendo, inclusive, o processo emancipatório do referido projeto. A pesquisa
demonstrou que, apesar de toda precariedade do sistema, do pouco caso do DNOCS e das
demais esferas de Governo, o perímetro sobrevive e continua sendo um dos maiores pilares da
economia local. Por outra via, embora dispersos, os desejos expressados pelos jovens
denotam que eles podem contribuir para assegurar a sustentabilidade da área irrigada, desde
que, a partir de ações coordenadas, os jovens não executem apenas atividades eminentemente
agrícolas, mas também atividades não agrícolas que os possibilite dar vazão às suas
capacidades criativa e empreendedora, ultrapassando a letargia política dos que receberam a
dádiva e partiram para a gratidão. A democracia requer nova cidadania. Percebe-se que os
jovens têm potencial para fazer suas escolhas e traçar seus próprios caminhos.
Palavras-chave: Juventude. Agricultura familiar. Espaço rural.
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ABSTRACT
When it comes to issues that are inherent to the family agriculture, some deserve special
mention: succession, aging, e rural exodus. This study presents a reflection about the changes
that are taking place in the thirty four years of the Perimetro Irrigado Curu-Paraipaba - a
project by the Deparatamento Nacional de Obras Contra a Seca - emphasizing the changes in
the patterns of succession as its primordial element, inducing a lack of interest by the current
youth in succeeding their parents in their work in the agricultural plots. By articulating three
analytical cathegories - youth, family agriculture and rural space - authors like Castro,
Carneiro, Bourdieu, Stropasolas, Abramovay, Weisheimer e Wanderley, elucidated the
comprehension of the object. The methodology was a case study, combining surveys, focal
groups, interviews, e direct observation. The results point out to the gradual aging of the
'colonos': 30..0% are between 56 and 65 years old and 38.4% between 66 and 85 years old.
Within this context the loss of professional attachment by the young from the agricultural
activity and their distancing from the daily life of the perimeter risk the capacity of families in
the irrigated agriculture to reproduce and compromise the very emancipatory process of the
project. The research has shown that, despite all the precariousness of the system, the disdain
from DNOCS and other Government instances, the perimeter survives and remains one of the
pillars of the local economy. Although dispersed, the desires expressed by the young show
that they can contribute to secure the sustainability of the irrigated area, provided that,
through coordinated actions, they not only run purely agricultural activities but they have
facilitated the coordination with activities that allow them to make use of their creative and
entrepreneurial capacities, thus overcoming the political lethargy that characterizes those who
received a gift and settled for the gratitude. Democracy requires a new citizenship. At the end,
the young may be able to make their choices and follow their own paths.
Key words: Youth. Family agriculture. Rural space
LISTA DE FIGURAS
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FIGURA 01 Mapa de Paraipaba
FIGURA 02
FIGURA 03
Mapa do perímetro
Divisa do Perímetro com a sede de Paraipaba
FIGURA 04 Reunião para tratar sobre a titulação dos lotes
FIGURA 05 lote “reloteado” para instalação de comércios
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LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 01 A qualidade em percentual da pressão dos lotes e quintais
Gráfico 02 % de irrigantes que receberam assistência técnica
Gráfico 03 Qualidade dos serviços prestados (Em %)
Gráfico 04 Situação dos irrigantes em relação ao crédito (Em %)
Gráfico 05 Bens materiais dos irrigantes (Em %)
Gráfico 06 Principais fontes de renda dos irrigantes (Em %)
Gráfico 07 % de irrigantes com renda não agrícola
Gráfico 08 % de irrigantes aposentados
Gráfico 09 % de esposas que contribuem com a renda familiar de acordo com fonte
Gráfico 10 Renda mensal complementar de fonte não agrícola (Em %)
Gráfico 11 Renda mensal agrícola (Em %)
Gráfico 12 Quantidade de irrigantes que querem o título (Em %)
Gráfico 13 % de irrigantes que querem o titulo
Gráfico 14 Tipo de abastecimento de água (Em %)
Gráfico 15 Tipo de tratamento de água (Em %)
Gráfico 16 Tipo de coleta de lixo (Em %)
Gráfico 17 Perfil etário das famílias irrigantes do perímetro (Em %)
Gráfico 18 Faixa etária dos jovens do ensino fundamental (Em %)
Gráfico 19 Faixa etária dos jovens do ensino médio (Em %)
Gráfico 20 % de jovens do ensino médio que tem irmãos trabalhando na agricultura
Gráfico 21 % de jovens do ensino fundamental que trabalham na agricultura irrigada
Gráfico 22 Motivos dos jovens do ens. Fundamental não trabalharem na agricultura (em
%)
Gráfico 23 Razões dos jovens do ens. Fundamental gostarem da agricultura (em %)
Gráfico 24 % dos jovens do ens. Médio que trabalharem na agricultura
Gráfico 25 % de jovens do ensino médio que gostam da agricultura
Gráfico 26 % de jovens do ensino médio que sabem trabalham na agricultura
Gráfico 27 Opinião dos jovens do ensino fundamental sobre o nível educacional mínimo
necessário para trabalhar na agricultura (em %)
Gráfico 28 Opinião dos jovens do ensino médio sobre o nível educacional mínimo
necessário para se trabalhar na agricultura (em %)
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Gráfico 29 % de jovens do ensino fundamental que exercem atividade renumerada
Gráfico 30 % de jovens no ensino fundamental que contribuem com as despesas da
família
Gráfico 31 % de jovens do ensino médio que exercem atividade para ganhar dinheiro
Gráfico 32 Motivação dos jovens para ganhar dinheiro (Em %)
Gráfico 33 % de preferência dos jovens do ensino médio para aplicação dos recursos
Gráfico 34 % de jovens do ensino fundamental que pretendem concluir o ensino médio
Gráfico 35 Razões dos jovens no ens. fundamental concluir o ensino médio
Gráfico 36 % de desejo dos jovens do ensino médio em termos de futuro profissional
Gráfico 37 Opinião dos jovens do ensino médio sobre qual será o seu futuro profissional
(Em %)
Gráfico 38 % de jovens que pretende continuar morando no projeto quando terminar os
estudos
Gráfico 39 O que os jovens do ensino fundam. vêem de mais importante no perímetro
(Em %)
Gráfico 40 O que os pais/avós falam do perímetro aos jovens do ens. fundamental (Em
%)
Gráfico 41 % de jovens que conhecem o Distrito
Gráfico 42 % de jovens que conhecem o DNOCS
Gráfico 43 % de jovens do ens médio que concordam com a divisão do lote
Gráfico 44 Opinião dos jovens do ens médio sobre critérios para a sucessão do lote (Em
%)
Gráfico 45 Opinião dos jovens do ens médio sobre a melhor forma de compensação (Em
%)
Gráfico 46 Opinião sobre o momento de se processar a divisão do lote (Em %)
Gráfico 47 Maiores problemas da juventude segundo jovens do ens fundamental (Em %)
Gráfico 47 Opinião dos jovens do ens médio sobre o tipo de ação governamental que
incentivaria a permanência dos jovens (Em %)
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LISTA DE QUADROS
QUADRO 01 Atividades que os jovens exercem para ganhar dinheiro
QUADRO 02 Qual o seu desejo em termos de futuro profissional?
QUADRO 03 Qual será o seu futuro profissional?
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABID Associação Brasileira de Irrigação e Drenagem
AGROVALE Companhia Agroindustrial Vale do Curu
ANA Agência Nacional de Águas
ADICP Associação do Distrito de Irrigação Curu-Paraipaba
ATER Assistência técnica e extensão rural
BID Banco Interamericano de Desenvolvimento
BNB Banco do Nordeste do Brasil
CIVAC Cooperativa dos Irrigantes do Vale do Curu Ltda.
COCIVAC Cooperativa Central dos Irrigantes do Vale do Curu Ltda
COAPROL Cooperativa Agropecuária dos Produtores Rurais do Setor “B” Ltda
COPROSEL Cooperativa dos Produtores Rurais do Setor “D” Ltda
COAPI Cooperativa Agropecuária dos Produtores do PICP do Setor E” “Ltda.
CESA Centro de Estudos Sociais Aplicados
CETREDE Centro de Treinamento e Desenvolvimento
CHESF Companhia Hidroelétrica do Rio São Francisco
CODEVASF Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco
COGERH Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará
CVSF Comissão do Vale do São Francisco
DDH Departamento de Desenvolvimento Hidroagrícola
DIRGA Diretoria de Irrigação
DNOCS Departamento Nacional de Obras Contra as Secas
ETENE Escritório Técnico de Estudos Econômicos
FAO Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação
FIDA International Fund for Agricultural Development
FNE Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste
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FMI Fundo Monetário Internacional
GEIDA Grupo Executivo de Irrigação e Desenvolvimento Agrário
GEVJ Grupo de Estudos do Vale do Jaguaribe
GISF Grupo de Irrigação do São Francisco
GTDN Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IFOCS Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas
IICA Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura
IOCS Inspetoria de Obras Contra as Secas
IPECE Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará
MI Ministério da Integração Nacional
PIN Programa de Integração Nacional
PNI Plano Nacional de Irrigação
PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PPI Programa Plurianual de Irrigação
PROEMA Programa de Emancipação dos Perímetros Públicos de Irrigação
PROFIR Programa de Financiamento para Equipamentos de Irrigação
PROINE Programa de Irrigação do Nordeste
PRONI Programa Nacional de Irrigação
PRONID Programa Nacional de Irrigação e Drenagem
PROVÁRZEAS Programa Nacional para o Aproveitamento Racional de Várzeas Irrigáveis
SEAGRI Secretaria da Agricultura Irrigada e Pecuária do Estado do Ceará
SUDENE Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste
SUVALE Superintendência do Vale do São Francisco
UECE Universidade Estadual do Ceará
UFC Universidade Federal do Ceará
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 17
O Perímetro: caracterização geográfica .......................................................... 19
Caminhos que levaram à formulação do objeto .............................................. 22
Discutindo sobre duas categorias balizadoras ................................................. 28
Juventude como categoria central de análise .................................................. 32
Capítulo 01 – De agricultor a colono: uma trajetória de conflitos e esperanças ... 34
1.1. A área de Paraipaba como palco do “desenvolvimento” .......................... 35
1.2. A chegada ao perímetro ........................................................................... 39
1.3. A atuação do DNOCS ............................................................................. 42
1.4. A Modernização do Nordeste e o Perímetro Curu-Paraipaba .................. 49
1.5. A Política de Irrigação e a trajetória de consolidação do Perímetro .......... 53
1.6. A criação do Distrito: uma nova tentativa para emancipar o perímetro..... 65
Capítulo 02 – Rupturas no processo de sucessão hereditária: impasses e desafios .... 81
2.1. Condicionantes que interferem a sucessão hereditária no Perímetro ......... 81
2.2. Assistência técnica e acesso ao crédito .................................................... 85
2.3. Aspectos sócio-econômicos relevantes .................................................... 91
2.4. Regularização fundiária: a sucessão em uma área de posseiros ................ 96
2.5. Infra-estrutura social ............................................................................. 102
2.6. Os dilemas da sucessão hereditária e a agricultura familiar .................... 107
Capítulo 03 – Os projetos de vida da juventude: entre o sonho e a realidade .......... 117
3.1. Conceituando a categoria juventude ...................................................... 118
3.2. Percepções sobre a agricultura ............................................................... 121
3.3. Inserção no mercado de trabalho ........................................................... 130
3.4. Percepções dos jovens sobre o seu futuro profissional ........................... 135
3.5. Versões e opiniões sobre o perímetro e suas organizações ..................... 142
3.6. Versões e opiniões sobre a sucessão da agricultura familiar ................... 147
3.7. Percepções da juventude sobre si e sobre seus problemas ...................... 152
Considerações Finais............................................................................................. 156
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ....................................................................... 163
ANEXOS .............................................................................................................. 169
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INTRODUÇÃO
Chegamos ao Perímetro Irrigado Curu-Paraipaba no dia 29 de janeiro de 2001,
compondo uma equipe de assistência técnica, da qual também faziam parte dois técnicos
agrícolas e um engenheiro agrônomo. Essa equipe resultou de um convênio entre o DNOCS1
e o Distrito,2 tendo como objetivo principal conferir ao segundo a responsabilidade por
administrar, operar e manter a infraestrutura de irrigação de uso comum do citado projeto de
irrigação.
Quando participamos do processo seletivo para a contratação dessas equipes de
ATER, dissemos que queríamos ir para o Curu-Paraipaba, não por conhecermos as pessoas ou
a região, mas simplesmente por ser mais perto de Fortaleza, local onde ficaria nossa família.
Na ocasião, os técnicos do DNOCS se admiraram por essa escolha, uma vez que aquele era
um lugar de muitos conflitos, o que só viríamos a perceber mais tarde.
Carregávamos muitas expectativas, dúvidas e também insegurança. Conhecíamos
nossas limitações técnicas e a versão dos técnicos do DNOCS sobre a realidade do perímetro,
de certa forma, nos inquietava.
Nesse contexto, ao pisarmos pela primeira vez no perímetro,3 não
dimensionávamos toda a complexidade daquele universo. Embora possa parecer
superficial, o que mais nos chamou atenção naquele momento foi a imensidão dos
coqueirais e a água da irrigação que parecia escorregar farta pelos canais, até chegar
nos aspersores4 das unidades parcelares/lotes agrícolas. Isto nos era totalmente novo.
Gradativamente a imersão nesse universo permitiu-nos transpor as primeiras
visões imediatas, indo para além dos imensos coqueirais, passando a perceber que
eram de fato as pessoas quem davam vida àquele espaço rural. No decorrer de nossa
trajetória – como técnica assistente social e posteriormente pesquisadora – pudemos
apreender um pouco mais sobre essas famílias e os desafios advindos da agricultura
moderna praticada num projeto de colonização implantado, na década de 19, pelo
DNOCS.
Ao adentrarmos nessa complexa realidade – feita de acertos e desacertos
coordenados pela intervenção estatal – a ausência da juventude durante as reuniões,
1 Órgão centenário, de grande relevância técnica na área de construção de açudes e barragens, que esconde em
seu bojo uma história marcada pelo paternalismo e práticas tecnicistas. 2 Trata-se da Associação do Distrito de irrigação Curu-Paraipaba, entidade criada pelo DNOCS para administrar
o Perímetro através de convênio celebrado com o mesmo órgão. 3 Projeto público de irrigação. Local/comunidade onde moram as famílias assentadas. 4 É um método de sistema de irrigação onde a água é lançada ao solo de forma semelhante à chuva, ou seja,
distribuída de modo uniforme.
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assembleias e outros eventos nos instigou a investigar sobre esses sujeitos
aparentemente invisíveis, buscando compreender quais as causas que estão
promovendo rupturas no processo de sucessão hereditária da agricultura familiar no
âmbito do perímetro analisado.
Os resultados deste estudo – antes de discorrer sobre dados numéricos ou
estatísticos – versa sobre sonhos, lutas, conflitos e esperanças. Assim, desvendar um
pouco mais esse universo é o grande desafio deste trabalho.
Nessa perspectiva, com o intento de sistematizar o arcabouço teórico da pesquisa
em questão, bem como apresentar a análise dos dados empíricos coletados e sistematizados ao
longo de nossa caminhada, nessa introdução procuramos mergulhar na delimitação do
objeto de análise, buscando responder sobre os anseios iniciais que impulsionaram a
pesquisa, detalhando melhor sobre a nossa caminhada, bem como sobre os pressupostos
metodológicos de orientação, a justificativa, os objetivos, as categorias analíticas utilizadas e
todas as dúvidas e perguntas que possibilitaram a organização dessa longa caminhada de
pesquisa.
No primeiro capítulo, intitulado “DE AGRICULTOR A COLONO: UMA
TRAJETÓRIA DE CONFLITOS E DE ESPERANÇAS”, analisamos como se deu a
trajetória das famílias até a implantação do perímetro, buscando apreender o contexto
histórico-político da implantação e consolidação do respectivo projeto de irrigação. Neste
debate foram levantadas questões sobre a chegada das famílias, o estranhamento inicial com o
projeto de irrigação e a conduta do DNOCS. Também foram discutidos temas voltados à
política de irrigação e à implantação dos perímetros públicos, procurando situar o Perímetro
Curu-Paraipaba nesse contexto.
No segundo capítulo, intitulado “RUPTURAS NO PROCESSO DE
SUCESSÃO HEREDITÁRIA: IMPASSES E DESAFIOS”, refletimos sobre os dilemas da
sucessão na agricultura familiar, por meio da análise dos resultados de algumas pesquisas
relevantes sobre o tema e do confronto dessa análise com a realidade do perímetro enfocado.
No terceiro capítulo, denominado “OS PROJETOS DE VIDA DA
JUVENTUDE: ENTRE O SONHO E A REALIDADE”, buscamos analisar as expectativas
de futuro profissional dos jovens do perímetro, bem como a sua percepção sobre a agricultura.
Neste debate procuramos apreender como eles percebem o perímetro, as organizações e as
possibilidades da agricultura irrigada, além de suas visões sobre as políticas públicas para
inserção da juventude.
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Em seguida, a título de considerações finais, apresentamos algumas reflexões
sobre as perspectivas de inserção da juventude no contexto do Perímetro Curu-Paraipaba,
analisando quais suas expectativas sobre continuar morando no perímetro, quais os seus
sonhos e projetos. Pretendemos, ainda que consciente da limitação deste estudo, tecer algumas
exposições sobre como as políticas públicas poderiam contribuir para a inclusão da juventude
nesse espaço rural.
O Perímetro: caracterização geográfica
O Perímetro Irrigado Curu-Paraipaba está situado no município de Paraipaba, que
foi criado pela Lei Estadual nº 11.009, de 05-02-198 e desmembrado do município de
Paracuru. O Município conta com uma área de 301 Km², sendo que o seu acesso se dá pelas
rodovias BR 222, CE 423 - 115 Km - ou pela via Estruturante Costa do Sol Poente. Paraipaba
limita-se com os seguintes pontos: ao NORTE, com o Oceano Atlântico; ao SUL, com São
Gonçalo do Amarante; ao LESTE, com Paracuru e OESTE, com Trairi, conforme mostra a
figura 01.
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Figura 01 – Mapa de Paraipaba
Em termos populacionais, o Município conta com 30.041 habitantes, sendo que
53,07% desse total estão concentrados na zona rural. Apesar da maior faixa de terra da Cidade
estar concentrada no entorno do Perímetro, este não é considerado um Distrito e está incluído
no Distrito de Paraipaba. (IBGE, 2010)
O Perímetro está situado à margem esquerda do Rio Curu, Estado do Ceará, a 90
km da capital, Fortaleza, e apresenta as coordenadas geográficas seguintes: 3o 30‟ de latitude
Sul e 39o 15‟ de longitude W.G, com uma altitude de 25 m acima do nível do mar. O
suprimento hídrico é feito pelo Rio Curu, o qual é perenizado pelos Açudes Públicos de
General Sampaio, com capacidade de armazenamento de 322.200.000 m3, Pereira de
21
Miranda, com capacidade de 395.638.000 m3, Frios, com capacidade de 33.025.000 m
3 e
Caxitoré, com capacidade de 202.000.000 m3. (DNOCS, 2010)
De acordo com o DNOCS, a área desapropriada inicialmente foi de 12.347
hectares, sendo operados atualmente apenas 3.279 hectares. Vale lembrar que cerca de 5.000
hectares (onde seria implantada a terceira etapa) foram doados ao INCRA para fins de
reforma agrária, o que ainda não se concretizou. Abaixo vemos o mapa do perímetro,
destacando a área dos lotes5 e quintais
6.
Figura 02 – mapa do perímetro
5 Área de cerca de 3,2 hectares também é denominado de lote agrícola. É o local destinado à produção das
culturas. 6 Também denominado lote habitacional, é no quintal que está situada a casa do irrigante e de sua família. No
quintal também existe uma área de 0,5 hectares onde são implantadas culturas diversas.
22
Caminhos que levaram à formulação do objeto
Este estudo, intitulado “OS PROJETOS DE VIDA DA JUVENTUDE DO
PERÍMETRO CURU-PARAIPABA: entre o sonho e a realidade”, busca compreender, a
partir da visão dos jovens, as causas das rupturas nos processos de sucessão profissional da
agricultura familiar no âmbito do citado perímetro.
Entretanto, cumpre salientar que o enunciado deste trabalho, bem como o objetivo
a que se propõe, não nasceu pronto e nem dissociado de nossa trajetória profissional. Ao
contrário. Sua composição foi formulada a partir de um longo tempo de vivência no campo,
que se iniciou no ano de 2001, a partir da nossa inserção nesse espaço rural, como técnica em
organização de produtores. Assim, esse objetivo foi construído e reconstruído a partir do
contato direto com os agricultores irrigantes e suas famílias.
Nessa trajetória, fomos nos aproximando do Perímetro e, numa primeira
análise, pudemos entender que esse espaço geográfico foi constituído a partir do
ajuntamento de uma população diversificada, composta por famílias que “deixaram
suas casas e apostaram numa vida melhor através da agricultura irrigada” (DINIZ,
2002). Essa afirmativa foi confirmada no depoimento de vários colonos, aqui
destacado na fala de uma pessoa que chegou no perímetro aos 12 anos de idade.
[...] “Quando chegamos no projeto com nossa família, eu, meu pai, minha mãe
e mais sete irmãos víamos a possibilidade de melhorar de vida, de ter a possibilidade de produzir, já que aqui tinha água e terra, coisa que não
tinhamos no sertão. Então foi uma alegria. Nós corremo pra cima e limpamos
o quintal, capinamos, plantamos o lote.” (Francisco, 32 anos, produtor e ex
funcionário do Distrito)
Nessa análise, gradativamente, fomos adentrando em um complexo mosaico
de histórias de vida, o que significou mais que um estreitamento de laços de amizade e
de solidariedade, ou seja, essa experiência colaborou para a superação de uma postura
estritamente técnico-assistencialista, aguçando, sobremaneira, a inquietude de
compreensão da realidade que ali se construiu, constituindo-se em estímulo
permanente para dotar um olhar crítico à rotina de trabalho na área do projeto.
Balizada pela necessidade de aproximarmos do público-alvo dos serviços de
assistência técnica, em 2001, realizamos juntamente com a equipe contratada uma
23
primeira pesquisa, intitulada “Marco Zero 25”7. Naquela época uma questão de fundo
já chamava atenção para a necessidade de elaborar uma futura agenda de pesquisa: o
numeroso contigente de irrigantes (titulares dos lotes) idosos.
Nesse aspecto, a curiosidade de compreender essa realidade - em princípio tão
facilmente “naturalizada” -, se tornou cada vez mais forte, reclamando um esforço na busca e
sistematização de leitura dos documentos que fundamentaram a implantação do referido
projeto de irrigação, o que nos levaria a um valioso instrumento de pesquisa, não apenas
através da vasta documentação, que delineava o projeto em sua concepção original, como
também por meio de diagnósticos e relatórios diversos ali contidos, além de trabalhos
acadêmicos como monografias, teses e comunicações em congressos.
É importante frisar que essa leitura inicial, apesar de extremamente relevante na
aproximação com o futuro objeto de pesquisa, não permitiu assimilar de imediato como se
dera a construção da sociabilidade das famílias irrigantes em torno do trabalho, das relações
de solidariedade, do lazer, dos conflitos, das lutas e das próprias relações familiares.
Assim, apenas mais tarde, aprofundando a pesquisa, é que pudemos entender que
as famílias chegadas ao perímetro haviam sido selecionadas mediante critérios previamente
estabelecidos pelo Estado. Observações que só pudemos constatar mediante acesso às pastas
dos colonos, nas quais estavam transcritas todas as ocorrências verificadas pelos técnicos que
acompanhavam as famílias. Esse instrumento foi muito valioso, pois nos possibilitou, dentre
outros fatores, analisar como era feita a assistência técnica e o acompanhamento social a essas
famílias, por parte do DNOCS, desde a seleção, ao assentamento das mesmas.
Vale frisar que, antes do assentamento das famílias selecionadas, o DNOCS já
havia desapropriado aquela mesma terra e expulsado diversas outras famílias que produziam e
sobreviviam naquele espaço rural. Dessa forma, o perímetro foi constituído em meio a
conflitos e lutas, povoado por pessoas advindas da Região do Vale do Curu, mas também da
Serra de Itapipoca, Uruburetama, Itapajé, Pentecoste, Paracuru, São Gonçalo do Amarante,
Pacatuba e vários outros locais do Estado do Ceará.
Nesse movimento, muitos desconhecidos juntaram seus destinos e, de certa forma,
reconstruíram uma nova identidade, ou seja, a de trabalhadores irrigantes. Essas famílias, a
maioria formada por antigos moradores, parceiros e arrendatários, passaram, portanto, do
apadrinhamento dos fazendeiros para a tutela do Estado interventor. (DINIZ, 2002)
7 Esta pesquisa foi batizada de “Marco Zero 25” porque estávamos chegando num projeto de 25 anos, ou seja era
marco zero para nós técnicos, mas não para os agricultores.
24
Vale realçar que a literatura temática visitada corroborou para clarear a subjacente
ideia de que as realidades não estão naturalmente postas. Constroem-se e reconstroem-se de
acordo com diferentes olhares, sugerindo, de antemão, que a investigação deve ir se moldando
aos fatos, sem prejuízos do rigor científico.
Assim, tomando outro caminho, sem escamotear o que já vinha percorrendo ou
até mesmo para confrontá-lo e aprofundá-lo, as leituras das ciências sociais foram se
transformando em ricos aportes conceituais. Esses conceitos teóricos foram essenciais, não
apenas para o entendimento da construção social do Perímetro, mas também pela própria
necessidade do rigor científico na produção e explicação do fenômeno estudado, buscando,
especialmente, dar voz às pessoas que compuseram o citado espaço rural.
Nesse aspecto, tomamos como orientação valiosa a reflexão de Bourdieu, quando
este afirma que, para se buscar uma maior proximidade do real, é imprescindível pensar
relacionalmente, pois “se é verdade que o real é relacional, pode acontecer que eu nada
saiba de uma instituição acerca da qual eu julgo saber tudo, porque ele nada é fora das suas
relações com o todo”. (BOURDIEU, 1989, p.31)
Seguindo essa orientação metodológica, ao longo de cinco anos, o objeto de
estudo foi sendo delineado por meio de depoimentos e, sobretudo, por meio da convivência
cotidiana com as famílias, da participação em eventos da comunidade e também em reuniões
transcorridas nos vários setores do perímetro. Nesses momentos colhíamos informações e
fazíamos anotações, frutos da observação participante8. Muito bem lembrado por Cardoso
(1997), observar é contar, descrever e situar os fatos únicos e cotidianos, construindo cadeias
de significação, pressupondo um investimento do observador no seu próprio modo de olhar.
Continuando nossa trajetória profissional junto aos agricultores do perímetro e,
sobretudo, buscando investigar os dilemas e desafios dessas pessoas que dão vida ao
projeto, especialmente, em meio a um contexto de aceleradas mudanças9 próprias do
contexto da modernidade, em 2007, realizamos uma nova pesquisa. Essa investigação
exibiu dados supreendentes10
, dentre os quais mereceu destaque o aumento do
contingente de irrigantes idosos, ou seja, cerca de 30,0% dos irrigantes apresentavam
8 Ao longo desse tempo fui participando de reuniões, assembléias e outras instâncias coletivas de acirramento ou
de negociações de conflito, nas quais exercia meu papel de técnica e, ao mesmo tempo, fazia anotações que,
mais tarde, serviriam como pistas para desvendar meu objeto de pesquisa. 9 Essas mudanças podem ser percebidas pela implantação de agroindústrias que exportam a água de coco, em
conflito com as dificuldades vividas pelos agricultores para garantir a sua competitividade e inserção no
mercado. Existem ainda as dificuldades em garantir o sustento de sua família, a implantação e a dependência das
transferências de renda oriundas das políticas públicas, dentre outras. 10 A citada pesquisa ressaltou a visão do próprio irrigante sobre sua situação econômica, produtiva e diversos
aspectos sociais relevantes.
25
idade entre 56 e 65 anos e 38,4% estavam entre 66 e 85 anos. Comparando com a outra
pesquisa – “Marco Zero 25” realizada em 2001 -, ficou comprovado um aumento de idade
aproximado de 24,0%, já que, à época, apenas 29,3% dos irrigantes ultrapassavam os 66 anos.
Com efeito, a citada investigação revelou a persistência do envelhecimento gradual
e irrevogável dos „colonos11
‟. Essa problemática, associada ao distanciamento dos jovens das
atividades agrícolas nas unidades parcelares, evidenciava riscos à reprodutibilidade das
famílias na agricultura irrigada, uma vez que esses mesmos jovens tradicionalmente seriam os
sucessores diretos na reprodução de novas unidades familiares. Isso avultou a nossa
inquietação em compreender esse mundo construído por meio de uma intervenção
governamental e vivido por cerca de oitocentas famílias rurais, buscando apreender quais as
oportunidades, os dilemas e os riscos ocasionados pela suposta exclusão dessa juventude.
Nessa análise, os números desenhavam um quadro que apontava para mudanças
nas trajetórias ocupacionais dos filhos dos agricultores familiares do perímetro. Entretanto, os
dados quantitativos requeriam um aprofundamento que nos possibilitasse uma maior
aproximação dos aspectos da subjetividade desses indivíduos.
Nesse contexto, a necessidade e o desejo de aprofundar este estudo nos levaram a
formular um projeto de pesquisa e submetê-lo à seleção do Mestrado Acadêmico em Políticas
Públicas e Sociedade, o que nos forneceu bagagem teórico-metodológica para continuar essa
trajetória investigativa.
Esse diálogo, entre a empiria vivenciada no campo e o debate acadêmico,
proporcionou uma revisão crítica do objeto da pesquisa, tendo como consequência um novo
olhar sobre o perímetro, as famílias, a juventude e, mais especificamente, sobre os dilemas da
sucessão na agricultura familiar.
Nesse debate, e para responder a esse desafio, buscamos uma linha de
investigação que se utilizou tanto de métodos quantitativos – representados na aplicação dos
questionários – como também de métodos qualitativos, por entender, conforme salienta
Minayo, que os aspectos sociais não podem ser totalmente quantificados, ou seja, “os
significados das ações, atitudes, aspirações e relações humanas não podem ser perceptíveis
em equações, médias e estatísticas.” (1994, p. 21-22)
A esse propósito, tomamos emprestadas valiosas observações de Antonio
Candido, quando este afirmou que em suas pesquisas utilizou tanto técnicas estatísticas – que
11 Os irrigantes assentados pelo DNOCS também são conhecidos como colonos, mais à frente nos deteremos a
esse assunto.
26
correm o risco de diluírem os sujeitos, mas que são necessárias para analisar certos aspectos
do objeto pesquisado – como também se valeu de recursos subjetivos, movido pelo seu
[...] interesse pelos casos individuais, pelos detalhes significativos, [...] elaborado na certeza de que o senso do qualitativo é condição de eficiência nas disciplinas sociais,
e que a decisão interior do sociólogo, desenvolvida pela meditação e o contato com
a realidade viva dos grupos, é tão importante quanto a técnica de manipulação dos
dados. (CANDIDO, 1975, p. 19)
Assim, a compreensão do objeto de estudo – centralizado na juventude do
Perímetro Curu-Paraipaba – adotou como referência os jovens nascidos no perímetro, filhos
de irrigantes da 1ª etapa12
que foram selecionados pelo DNOCS na década de 1970 e que, em
2009, estavam cursando o nono ano13
do Ensino Fundamental, e do Ensino Médio. Assim,
durante a execução do trabalho de campo foram aplicados 65 questionários (com questões
abertas e fechadas) com jovens entre 14 anos e 20 anos, sendo 25 do Ensino Médio e 31 do
nono ano do Ensino Fundamental.
O confronto dos resultados desses questionários aplicados a esses dois grupos –
com o objetivo de analisar e comparar as expectativas de futuro profissional dos dois grupos –
foi dialogado com os resultados das entrevistas e depoimentos registrados no grupo focal,
realizado com jovens que já terminaram o Ensino Médio e estão buscando trabalho (que
chamo de terceiro grupo).
Como pode ser percebido, o trabalho de campo teve três momentos distintos,
embora estreitamente articulados processualmente, a saber: a aplicação dos primeiros
questionários em 2001 (Pesquisa Marco Zero 25), através da qual tivemos um contato inicial
com o perímetro, suas organizações e com os sujeitos envolvidos; a segunda aplicação de
questionários, em 2007 (Pesquisa Versão 32 Anos), que contribuiu para ampliar o nosso
material empírico e, finalmente, o retorno ao projeto a partir da entrada no Mestrado, o que
ampliou nosso arcabouço teórico.
Nessa terceira fase iniciamos o trabalho de campo com a realização de entrevistas
junto às lideranças. Esse instrumental, apesar de seguir um roteiro previamente estabelecido,
foi flexível o suficiente para “introduzir variações de acordo com cada informante.”
(HEREDIA, 1979, p. 22) Esse material foi cuidadosamente gravado e transcrito, embora uma
12 Escolhemos trabalhar com este público porque é na primeira etapa que se encontra os irrigantes de origem, os
quais tiveram maior influência da atuação do DNOCS e onde se encontra cerca de dois terços da população do
projeto. 13 Serão pesquisados estes jovens porque o nono ano do Ensino Fundamental é um marco na vida do jovem,
quando ele decide se continua os estudos ou se vai trabalhar.
27
parte das entrevistas, devido ao caráter informal do momento, tenha sido registrada apenas no
caderno de campo. Concomitantemente, fizemos entrevistas estruturadas com o terceiro grupo
de jovens e realizamos o primeiro grupo focal com eles, quando foi possível desenhar melhor
o objetivo do estudo, ou seja, possibilitou um maior estreitamento com os jovens do
Perímetro.
Em seguida aplicamos os questionários com os dois primeiros grupos de jovens
(do Ensino Médio e nono ano do Ensino Fundamental), cujo intuito era aprofundar as
discussões e chegar o mais próximo possível do perfil ocupacional da juventude do perímetro,
bem como analisar suas expectativas profissionais. Nesse movimento, somado à análise das
entrevistas e depoimentos colhidos na realização dos grupos focais, foi possível também
apreender como eles percebem o Perímetro, as organizações e a agricultura irrigada, além de
sua visão sobre as políticas públicas para inserção da juventude. Este debate, sem ter a
pretensão de ser conclusivo ou se impor como verdade inquestionável, oferece pistas sobre o
processo de descontinuidade da agricultura familiar, vivenciado no contexto do Perímetro
estudado.
Com a pretensão de dar ênfase às questões norteadoras do estudo, procuramos
apoio em alguns pressupostos teóricos que auxiliaram e serviram de sustentação para a
problemática da pesquisa em foco. Nesse sentido, o estudo articula três categorias analíticas:
agricultura familiar, espaço rural e juventude. É importante salientar que estas categorias
foram escolhidas por reterem as relações sociais fundamentais e, portanto, serem consideradas
imprescindíveis para o conhecimento do objeto nos seus aspectos gerais.
Vale acrescentar que é coerente estabelecermos uma análise sobre o conceito de
agricultura irrigada empregado ao longo deste estudo, destacando a necessidade de ultrapassar
o viés eminentemente técnico – segundo o qual se trata de um modo de produzir utilizando a
irrigação, ou seja, através da colocação artificial de água no solo, em intervalos definidos,
para oferecer às espécies vegetais a umidade necessária ao seu pleno desempenho – para
apreendê-la muito mais a partir das mudanças por ela processadas na vida das famílias que se
transpuseram para o perímetro e passaram a adotar abruptamente essa técnica moderna de
produção. Assim, destacamos as relações de trabalho estabelecidas e os processos de (re)
socialização a partir dela engendrados.
Discutindo sobre duas categorias balizadoras
A nomenclatura “agricultura familiar” foi ganhando legitimidade – tanto no cenário
político como no acadêmico – a partir da década de 1990. Conforme esclarece o pesquisador
28
Sergio Schneider, apesar do interesse pela agricultura familiar e o reconhecimento de sua
importância ser de certo modo recentes, não se pode considerá-la como uma “novidade”, pois
o que se denomina hoje como agricultor familiar, em outra época recebeu outras
nomenclaturas. Assim,
A afirmação recente sob a noção de agricultura familiar deveu-se a um movimento
sincronizado conjugado por fatores sociais, políticos e intelectuais. Do ponto de
vista social, a categoria emergiu como resultante das mobilizações patrocinadas pelo
movimento sindical, no início da década de noventa (especialmente a CONTAG)
(...) Em termos político-institucionais a agricultura familiar alcança legitimidade
crescente a partir da criação do PRONAF (Decreto 1946, de 28 de junho de 1986) e
de uma estrutura específica destinada a operar para este público no interior do
Ministério do Desenvolvimento Agrário. (SCHNEIDER, 2009, p. 9)
A escolha da agricultura familiar como categoria analítica, neste estudo, pode,
aparentemente, parecer um deslocamento ou contraditório, já que uma das vertentes do
perímetro irrigado é a sua suposta vinculação compulsória ao agronegócio, aqui entendido
como modelo de exploração capitalista que usa indiscriminadamente os recursos naturais e
humanos, visando, sobretudo, ao lucro e, portanto, contrapondo-se aos pressupostos
“ideológicos” do que se entende por agricultura familiar.
Nessa análise, corroboramos com Schneider, quando este afirma que é necessário
ultrapassar a
[...] simplificação e o maniqueísmo ideológico que lhe corresponde, pois a mera
contraposição entre campesinato e agricultura familiar e, as vezes, agronegócio,
pouco acrescenta ao entendimento da diversidade das formas familiares de produção
e trabalho, das suas dinâmicas territoriais, das estratégias individuais e coletivas de
reprodução e dos processos de diferenciação social. (2009, p. 9)
Por outro lado, embora se assista no espaço rural estudado “uma espécie de
invasão de pessoas de fora”, as quais adquirem os lotes dos colonos de origem (conforme
detalharemos adiante), ainda assim existe a predominância da atividade agrícola de base
familiar, embora esses contratem mão de obra externa ao estabelecimento para realização de
algumas práticas agrícolas, especialmente a pulverização.
Vale lembrar que muitas famílias também diversificam suas estratégias de
sobrevivência. Ou melhor, o contato direto com as famílias do perímetro permitiu-nos
observar que é até certo ponto usual, o (a) filho (a), por exemplo, trabalhar em uma parte do
terreno e exercer outras atividades para complementar a renda familiar, como por exemplo
carregar caminhão e colher ou descascar coco. Também existem aqueles que são donos ou
29
simplesmente trabalham em pequenos comércios de frutas, verduras, cereais e mantimentos
variados e em restaurantes e lanchonetes. Algumas filhas de colonos também se deslocam
diariamente até a sede do município para trabalharem como empregada doméstica ou no
comércio local. Muitos outros também estão trabalhando nas agroindústrias14
localizadas no
perímetro ou mesmo na cooperativa e Distrito de Irrigação.
Esse fato, contudo, não os descaracteriza como agricultores familiares15
. Ao
contrário, essas especificidades apontam a complexidade que permeia os espaços rurais e
colocam esses sujeitos na condição de famílias pluriativas.
A emergência da pluriatividade ocorre em situações em que os membros que compõem as famílias domiciliadas nos espaços rurais combinam a atividade agrícola
com outras formas de ocupação em atividades não agrícolas. [...] Portanto, a
pluriatividade manifesta-se naquelas situações em que a integração dos membros da
família ao mercado de trabalho passa a ocorrer, também, pela via do mercado de
trabalho. (SCHNEIDER et alli, 2009, p. 141)
Por outra via, apesar de entender essa complexidade e pretender, em certo sentido,
ultrapassar os conceitos institucionais do que seja a agricultura familiar – conceitos estes que
norteiam o acesso a determinadas políticas públicas –, este estudo privilegia o entendimento
de que esta categoria possui características próprias, onde
[...] a gestão do trabalho e da propriedade dos meios de produção – mesmo que não,
necessariamente, da terra – encontram-se sob a responsabilidade da família,
entendida como grupo doméstico de trabalho e de consumo, que realiza a
reprodução geracional do processo de trabalho e a transmissão do patrimônio
familiar. (WESHEMEIR, 2009, p. 103)
Dessa forma, o emprego da categoria “agricultura familiar” neste estudo justifica-
se pelo fato de que o seu conceito abrange características relevantes para compreender a rede
de significações que envolvem o jovem no contexto do perímetro estudado, que se
caracterizou originalmente pelo assentamento de pequenos produtores.16
Além disso, neste
estudo a juventude é analisada, considerando o contexto das relações sociais de produção
estabelecidas no âmbito perímetro.
Nessa perspectiva, o uso dessa categoria é necessário na medida em que delimita
sujeitos e reconhece os espaços onde se estabelecem relações que são determinadas por
14 Especialmente na Paraipaba Agroindustrial, Ypióca, CBC ou CIAUNE. 15
Inclusive a maioria está classificada como “pronafianos”, ou seja, possui a Declaração de Aptidão ao
PRONAF – DAP e é sócia do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras rurais de Paraipaba – STTR. 16 Embora na época de implantação do projeto não existia essa categoria. Os que são chamados hoje de
agricultores familiares eram denominados de pequenos produtores, embora as características fossem as mesmas.
30
aspectos socioculturais específicos. Além disso, esses sujeitos partilham espaços comuns de
socialização, vivenciados tanto nas relações com a vizinhança, na escola, na igreja, no
trabalho, no campo de futebol e também nas suas organizações representativas.
Diante dessa teia de complexidade, utilizamos neste estudo o espaço rural como
categoria analítica, que, por sua vez, subtende uma compreensão que se sobrepõe à visão
reducionista de considerar apenas os aspectos físicos e de produção das chamadas zonas
rurais, passando a enxergá-lo como local onde os atores sociais vivem as suas sociabilidades
ou, nas palavras de Carneiro (2008, p. 27), “requalificar o olhar sobre as novas dinâmicas da
ruralidade”.
Nesse sentido, entender o espaço rural é mergulhar em relações sociais
multifacetadas, que envolvem pessoas, aspectos socioculturais, econômicos, ambientais,
entrelaçando ainda as formas de ocupação, a paisagem, as relações de trabalho e as
representações sociais. O espaço rural, assim entendido, alinha-se à concepção que dele tem
um dos mais respeitados nomes da sociologia rural brasileira, Maria Nazaré Wanderley,
quando afirma que o espaço rural é o lócus de um
[...] singular espaço de vida, socialmente construído pelos seus habitantes, em
função das relações fundadas nos laços de parentesco e de vizinhança, e isto, tanto
ao nível da vida cotidiana, quando dos ritmos dos acontecimentos que determinam
os ciclos da vida familiar, tais como, nascimentos, casamentos e mortes e, ainda, no
que se refere ao calendário das manifestações de ordem cultural e religiosa.
(WANDERLEY, 2000, p. 29).
Nesse contexto, este trabalho valoriza os aspectos mais pungentes colocados por
Wanderley para a compreensão das sociedades do tipo camponesa. Entretanto, nessa citação
em particular e com o olhar debruçado para uma área irrigada, na qual o Estado
propositadamente insistiu em separar na unidade doméstica a produção do consumo,
questiona-se se a singularidade do espaço rural se mantém, tal qual vista pelos clássicos da
sociologia rural brasileira. Esse questionamento apresenta um valor delimitador na pesquisa,
uma vez que a juventude está no centro da análise, e essa ruptura na lógica da agricultura
familiar se insinua como um elemento instigador de novas identidades, no qual a continuidade
desses jovens como agricultores familiares parece pronunciar-se como um de seus mais
evidentes desdobramentos.
31
Por outra via, considerando a sua evidente aproximação com a zona urbana do
Município, além de ser uma via de acesso a diversos polos turísticos,17
é conveniente observar
as ponderações de Carneiro.
[...] esse conjunto de reflexões nos leva a pensar a ruralidade como um processo
dinâmico em constante reestruturação dos elementos da cultura local, mediante a
incorporação de novos valores, hábitos e técnicas. Tal processo implica um
movimento em duas direções, nas quais se identificam, de um lado, a reapropriação dos elementos da cultura local a partir de uma releitura possibilitada pela
emergência de novos códigos e, de outro, a apropriação pela cultura urbana de bens
culturais e naturais do mundo rural, produzindo assim, uma situação que pode
contribuir para alimentar a sociabilidade e reforçar os laços com a localidade.
(Carneiro, 2008, p. 35)
Nessa análise, convém situar o entendimento sobre a juventude como categoria
analítica.
Juventude como categoria central de análise
A análise desse objeto de estudo possibilita perceber a complexidade e
ambiguidade que permeiam esta categoria. Portanto, não há um viés único e preciso,
sobretudo porque os estudos sobre juventude no contexto rural permaneceu, durante muito
tempo, no anonimato e, até certo ponto, fora da agenda dos pesquisadores.
Cabe esclarecer, conforme assinalou Weisheimer (2009, p. 85), que a construção
da juventude como categoria sociológica supõe entender que ela [...] “não se constitui e nem
se explica, simplesmente, por meio de princípios naturais ou determinações biológicas”.
Assim, este estudo de caso se inspira na colaboração do autor à medida que este apreende a
citada categoria numa perspectiva relacional.
Entende-se por juventude uma categoria relacional fundada em representações
sociais, tais como as que conferem sentidos ao pertencimento a uma faixa etária, que
posiciona os sujeitos na hierarquia social a fim de promover a incorporação de
papeis sociais através dos diferentes processos de socialização que configuram as
transições da infância à vida adulta. [...] Entre as características dessa categoria, destaca-se a ambivalência típica de sua situação liminar e transitória; a posição
subalterna aos adultos na hierarquia social; a conflitividade originada pelo processo
de individualização nesta situação liminar e subalterna; a criatividade e capacidade
de inovação própria do contato original das novas gerações com a cultura pré-
estabelecida. (Weisheimer, 2009, p. 86)
17 Todos os turistas que se encaminham para as praias da Lagoinha, Fleicheiras, Mundaú, Baleia e até
Jericoacoara, vindos pela estrada do Sol Poente, passam necessariamente por dentro do perímetro. Esse fator
favorece a troca de saberes, o intercâmbio de culturas. Muitos deles param nas barracas para tomar café, comprar
frutas ou fazer refeições e acabam criando laços com o lugar. Isso também chama o interesse deles pela região e
muitos acabam comprando lotes ou áreas mortas. Essas relações também trazem aspectos negativos, dentre eles
o principal é o tráfico de drogas.
32
Neste estudo, relacionamos o enfoque da juventude com os processos de
socialização, fomentados desde a constituição do Perímetro Irrigado Curu-Paraipaba, os quais
foram reproduzidos pelas famílias que compõem esse espaço rural e que tiveram e tem as suas
repercussões na vida desses jovens, inclusive refletindo nas suas escolhas em termos de futuro
profissional e, consequentemente, interferindo na perspectiva de continuidade da agricultura
familiar.
Colaboram com esse debate as recomendações de Castro, situando a necessidade
“de - substancializar esta categoria, procurando conhecê-la em seus múltiplos significados”,
(2005, p. 6). Dessa forma, analisar a juventude no contexto do Perímetro Curu-Paraipaba é
entendê-la como
[...] uma categoria social pressionada pelas mudanças e crises da realidade no campo
[...] representada no risco da descontinuidade das relações familiares estabelecidas
com a terra, caracterizada na imagem de desinteresse do homem pela roça” (2005, p.
29), [...] “no seio das relações sociais marcada pela hierarquia e autoridade, que
envolvem a posição de pai/adulto/chefe de família e responsável pela terra em
oposição a filho/jovem/solteiro [...] marcado pelo pouco acesso aos espaços de
decisão na família e nas esferas organizativas. (2005, p. 35)
Portanto, a apreensão dessas variáveis passa, inicialmente, pelo reconhecimento
da trajetória vivenciada pelas famílias que foram transportadas para o projeto de irrigação,
assunto que abordamos no próximo capítulo.
33
CAPÍTULO 01 - DE AGRICULTOR A COLONO: UMA TRAJETÓRIA DE
CONFLITOS E DE ESPERANÇAS
“Nos trabalhos dos roçados, brocas, quebras, queimas e limpas; na apanha do feijão, na
quebra do milho, na desmancha da mandioca, fazem-se os adjuntos. Reúnem-se todos os
vizinhos em casa daquele que precisa fazer qualquer desses serviços. Ele fica devendo a
cada um o tempo que trabalhou para ele”.
Gustavo Barroso
Na primeira parte deste capítulo destacamos como se deu a chegada das famílias
ao Perímetro, o estranhamento inicial com o projeto de irrigação e como foi a atuação do
DNOCS em relação a esse público.
Assim, buscamos registrar e apreender alguns aspectos característicos do papel
exercido pelo DNOCS durante a implantação do projeto, os quais foram decisivos para a
socialização das famílias que ali viveram e vivem e, inclusive, tiveram seus reflexos no
distanciamento da sua juventude das atividades agrícolas.
Os estudos que tratavam sobre a viabilidade do Perímetro destacavam que o
sucesso deste empreendimento agrícola – traduzido pela produção e comercialização de
citros, legumes, leite e hortaliças - seria suficiente para “elevar o padrão de vida dos colonos”,
mas sem que houvesse a preocupação em investigar que tipo de padrão de vida essa família
almejava.
O planejamento previa tão somente as condições necessárias para garantir o
sucesso do projeto de irrigação em si, bastando, para isso, selecionar as famílias capazes de se
inserirem nesse contexto.
Para facilitar a seleção das famílias, desenvolveu-se uma equação bem complexa
que buscava um suposto perfil ideal de família apta a se adaptar ao sistema. Contam os relatos
dos remanescentes, que os técnicos do DNOCS saíam pelas localidades vizinhas “buscando”
agricultores, preferencialmente os que não tinham terra, que fossem bem conceituados pela
comunidade, com força de trabalho abundante (que tivessem muitos filhos) e que possuíssem
experiência com a agricultura, dentre outros critérios, conforme documento apresentado nos
Anexos A e B.
De acordo com Carneiro, essa perspectiva foi, de certa forma, adotada e
reproduzida pela sociologia rural tradicional, que se constituiu “como uma disciplina
34
instrumental e tecnocrática voltada para o desenvolvimento, a eficácia e a modernização da
produção agrícola.” (2008, p. 23) Por outro lado, esses critérios refletiam a estratégia de
desenvolvimento adotada pelo Estado para o Nordeste, conforme destaca relatório de
auditoria do TCU nas áreas dos perímetros18
.
A implementação de tais perímetros visava à elevação do nível de renda média da
população rural, bem como ao desenvolvimento da capacidade gerencial e da organização dos produtores, aprimorando os benefícios econômicos gerados pelos
perímetros públicos de irrigação e os benefícios sociais deles advindos,
minimizando os efeitos da seca. (TCU, 1998, p. 8)
Para entender a chegada dos colonos ao Perímetro usamos como base, além dos
depoimentos dos colonos de origem, importante documento elaborado pelo consórcio
Sondotécnica e Tahal – empresas do Rio de Janeiro e Tel-aviv, respectivamente – que
apresentou um estudo de viabilidade da chamada área de Paraipaba.19
Na segunda parte analisamos a política de irrigação e a proposta de implantação
dos perímetros públicos, buscando, também, situar, analisar e apreender o contexto histórico-
político da implantação e consolidação do Perímetro Curu-Paraipaba.
Nesse sentido, entender a implantação dos perímetros públicos é perceber a
atuação do Estado no Nordeste, o qual sempre foi visto como problema devido aos longos
períodos de seca e dominação por parte das oligarquias locais.
Por outro lado, especificamente falando do Ceará, esta política está estreitamente
ligada à criação do DNOCS e sua atuação na construção de grandes reservatórios d‟água
como forma de combater os fenômenos da seca. (GUERRA, 1981)
1.1.A área de Paraipaba como palco do “desenvolvimento”
O contato inicial do DNOCS com o Vale do Curu data, aproximadamente, da
década de 1950, quando realizava obras de combate à seca na região. Por outro lado, sua
18 A presente auditoria tem origem na Decisão nº 703/99-TCU - Plenário, Ata nº 44/99, decorrente de
Representação formulada pela SECEX/SE, TC-009.619/1999-2, que redundou na realização de auditorias na área de projetos de irrigação, financiados com recursos federais na região abrangida pela SUDENE, incluindo-se
os órgãos e entidades responsáveis pela implementação desses projetos, dentre os quais o Departamento
Nacional de Obras Contra as Secas - DNOCS. (idem, 1998. p. 8)
19 Antes de implantar o perímetro em Paraipaba, foi realizado um minucioso estudo em três áreas (Paraipaba,
Paracuru e Pentecoste-Croatá) para verificar qual a mais viável economicamente, sendo escolhida a de
Paraipaba. Esta foi escolhida porque apresentou menor custo de investimento (US$1.640/ha), além de menor
custo unitário da água, uma melhor renda líquida da família agrícola e a possibilidade de usar águas subterrâneas
para abastecimento humano. (DNOCS, 1970)
35
presença mais atuante na área de Paraipaba se deu em consequência de uma tragédia que
assolou o então lugarejo, que ficou conhecido como Paraipaba Velha.
De acordo com o historiador Afonso Barroso Cordeiro20
, o ano de 1964 trouxe um
pesado inverno para as famílias que se situavam às margens do rio Curu. Na ocasião, as casas
e as plantações foram inundadas e os moradores tiveram que recorrer a parentes que moravam
em outras comunidades.
Nessa ocasião, segundo ele, as lideranças locais se uniram para reconstruir a
cidade e o DNOCS foi chamado para colaborar. Depois de doadas as terras pelos fazendeiros
do lugar, o DNOCS providenciou o desmatamento, construiu noventa e duas casas, dois poços
profundos, além do mercado central.
Ao final do mesmo ano a Nova Paraipaba foi inaugurada e nessa mesma época o
DNOCS lançou o documento “Aproveitamento Hidro-agrícola da Bacia do Rio Curu”.
Situado num contexto mais amplo de incremento de todo o Vale, o documento em pauta
salientava os efeitos positivos que a implantação desse perímetro de irrigação traria para o
desenvolvimento da região, enfatizando, ainda, que “a meta primordial do projeto é
estruturar os recursos humanos e institucionais fundamentais da área através da criação de
uma economia eficiente, baseada na agricultura, a fim de elevar o nível de emprego, a receita
real e os padrões de vida gerais da população rural”. (DNOCS, 1970 p. 5-1)
Nessa perspectiva, para a concretização do projeto de irrigação, o referido estudo
propôs um plano de colonização que previa a estruturação de uma espécie de pequena cidade,
onde seriam planejados rigorosamente os espaços de residência/povoado, setor de produção,
de comércio, de serviços, zona industrial, áreas não cultivadas, áreas de quebra-vento e terras
de reserva, dentre outros. Assim, o plano não se destinou [...] “meramente a delinear a
estrutura física necessária, mas também a mostrar como se propõe seja o ambiente moldado
de modo a promover o progresso da área”. (Idem, p. 6-1)
Embora o documento citado tenha proposto um planejamento com um rigoroso
esquema de implantação, na prática, o plano de colonização do Perímetro ocorreu diferente,
ou seja, inicialmente foi construída a primeira etapa (compreendida dos setores B, C1, C2,
D1, D2 e E, sendo que o primeiro setor a ser povoado foi o D1, quando recebeu os treze
primeiros colonos). O Sr. Chico Caipira, que fez parte do grupo e se encontra até hoje no
perímetro, disse que foi uma época muito difícil. Segundo ele, no começo não havia luz
elétrica e eles passaram por muitas privações, servindo como uma espécie de cobaias por
20 Citado no site oficial da Prefeitura de Paraipaba.
36
estarem na área de “expermento21
”. “Na época muitos queriam desistir, mas eu aguentei firme
e segurei o pessoal para não ir embora. Eu era o líder do grupo”. (Chico Caipira, colono)
Enquanto o DNOCS construía o Perímetro, foi implantada junto com a área
experimental dos treze colonos a chamada gerência velha, local onde foi instalado
provisoriamente o escritório local da autarquia, o da empresa construtora, bem como a
residência dos técnicos agrícolas, agrônomos, assistentes sociais, médicos, veterinários e
extensionistas em geral.
Pouco tempo depois foi construído o Centro Gerencial do DNOCS, local mais
adequado, tendo em vista a complexidade do perímetro. Nessa localidade, além do escritório
do DNOCS, havia o povoado onde foram residir os técnicos mencionados anteriormente,
além de vários profissionais que trabalhavam no Perímetro. Também foram instalados: um
posto médico, o escritório da cooperativa e galpões para armazenagem de insumos e
maquinários diversos. Foi implantada também uma área de lazer para os funcionários do
DNOCS – conhecida como balneário – além de um hotel para receber visitantes e técnicos.
Além do Centro Gerencial foram construídos os citados setores com os seus
respectivos povoados, os quais também possuíam uma estrutura mínima, composta por
residências (chamados de quintais) equipadas com estábulos e área de cerca de 0,50ha para
produção agrícola, estrutura de abastecimento d‟água, armazéns, escola, casa de comércio e
centro comunitário.
É importante ressaltar que antes da implantação do perímetro, conforme
observamos anteriormente, a área de Paraipaba era apenas mais uma localidade do município
de Paracuru, com uma população em torno de 600 habitantes, totalizando uma área produtiva
de 500 ha, implantada com culturas de subsistência, sendo elas, feijão, milho e mandioca.
Cerca de dez anos depois da implantação do perímetro, Paraipaba foi elevada à categoria de
município – fruto de um movimento político iniciado no perímetro – e atualmente tem uma
população total de 30.041 (trinta mil e quarenta e um) habitantes22
, sendo que cerca de 10.000
(dez mil) concentram-se na área do DNOCS, ou seja, no perímetro.
Esses dados, grosso modo, demonstram como a implantação de áreas irrigadas
contribui para o desenvolvimento dos municípios em que elas se inserem, embora traga
consigo muitos percalços e contradições, conforme trataremos ao longo deste estudo.
21
O Sr. Chico Caipira usa essa expressão para salientar que eles eram uma espécie de cobaias e que, inclusive,
deveriam plantar de acordo com as orientações técnicas, muitas vezes diferentes da forma tradicional que eles
cultivavam. 22 IBGE, 2010.
37
De acordo com o prévio planejamento, os lotes agrícolas foram devidamente
projetados para a implantação de culturas diversificadas, inclusive era orientada a rotação de
culturas, sendo que as principais foram milho para grãos, amendoim, tomate, pepino, cebola,
alho, laranja, pastagem, e até uva. O referido planejamento também contemplou um breve
estudo de mercado, baseando-se na proximidade do perímetro com a capital cearense, para
garantir o escoamento da produção.
Outros aspectos abordados no documento salientaram a importância da eficiência
organizacional do projeto para assegurar o seu êxito, destacando a relevância dos serviços de
extensão e comercialização. Embora o referido reconheça a importância dos serviços
econômicos e sociais, foi proposta ainda uma drástica separação entre esses serviços, pois se
acreditava que (...) “os serviços sociais e municipais diferem dos serviços econômicos, não
apenas por sua natureza, mas no sentido de seu crescimento em longo prazo”. (DNOCS,
1970, p. 7-5) Nessa lógica, cabia à entidade executora do projeto tratar das questões
econômicas, enquanto ao município23
caberia o atendimento aos serviços ditos sociais.
Por outra via, não obstante priorizar as questões ligadas à infraestrutura geral e
aspectos produtivos, o documento ressaltou também a organização do perímetro como
pressuposto básico para garantir o sucesso do projeto.
A entidade gerenciadora do projeto deve, porém, ocupar-se também,
simultaneamente, com as tarefas humana e organizacional, a fim de garantir as
operações: os agricultores devem ser treinados e educados, a estrutura
organizacional deve ser estabelecida e o seu pessoal treinado para ocupar os cargos
da organização. O órgão que realiza esse trabalho deve ter a seu cargo a execução de
todas estas funções e o preparo do terreno para a produção. (Idem p. 7-5)
Apesar de sinalizar a preocupação com as tarefas humana e organizacional, essas
estão explicitamente direcionadas para a organização da produção, priorizando sobremaneira
os aspectos econômicos em detrimento das questões mais subjetivas.
Nesse sentido, o interesse maior era garantir o êxito do projeto de irrigação, sendo
as famílias assentadas mais um item inserido nesse complexo arcabouço estatal de fomento ao
progresso. A seguir analisamos como foi a reação inicial dessas famílias transportadas para
esses espaços rurais e como elas foram se moldando a esse novo momento de suas vidas.
23 O citado documento sugere a importância de que o perímetro fosse implantado no entorno de um município
consolidado capaz de atender às demandas por serviços sociais.
38
1.2. A chegada ao perímetro
De acordo com o relato dos colonos e também de funcionários da autarquia, no início,
os técnicos procuraram os agricultores que eram moradores das fazendas que foram
desapropriadas para a implantação do projeto de irrigação. Alguns destes se inscreveram para
permanecerem na área, na condição de colonos reassentados. Esse movimento foi relatado por
alguns dos antigos proprietários, conforme destaca o depoimento de uma antiga moradora:
Foi o patrão do meu marido que incentivou nós a se inscrever no DNOCS. Ele disse
que era bom pra nós, porque nós ia ter uma terra, ter condições de trabalhar. Ele
sabia que meu marido era muito trabalhador e gostava muito da gente. Não queria
deixar a gente desamparado. No começo meu marido não queria, mas depois acabou
ficando. (Maria, esposa de irrigante do setor E)
Nessa ocasião houve muita desistência, mas o perímetro nasceu com as treze
primeiras famílias.
[...] Chegamos em 1975. Quando foi em 1977 começou a chegar mais. Era 16 casas
e ficou apenas três casas desocupadas. Pensava que aqui era uma escravidão, mas
mesmo assim viemos enfrentar essa batalha. Esses treze eram todos daqui perto, das
redondezas. Depois foi que vieram as pessoas de Itapipoca e dos outros lugares. [...] Sofri muito aqui. Não tinha energia e nem tinha água. [...] Eu banhava os meninos o
dia todim e essa água eu ajuntava todinha e aproveitava essa água pra aguar o
canteiro. Quando viemos pra cá íamos pegar água no “E”. [...] O DNOCS viu o
sofrimento então mandaram um carro pipa e colocaram só a pipa em cima de uma
forquilha. E quando nós queríamos água íamos buscar. [...] Só chegou água nas
casas depois de dois anos. [...] Quando chegou energia e água, foi que começaram
colocar mais gente. (M. B., agricultora do setor D1)
Durante a fase de experimentação com os treze primeiros colonos, o DNOCS já
havia encaminhado seu corpo técnico para selecionar as famílias. Geralmente o chefe da
família se inscrevia na gerência do Perímetro. Caso a família atendesse aos pré-requisitos,
uma equipe se encaminhava até sua residência para verificar a veracidade das informações
prestadas e avaliar se estava apta a conseguir uma vaga de colono, conforme salienta Diniz:
[...] os irrigantes para ingressarem no perímetro passavam por uma seleção feita pelo
DNOCS que para tal possuía uma matriz de avaliação que envolvia o conhecimento
da vida do candidato e de sua mulher. Primeiro o trabalhador se candidatava a uma
39
vaga e preenchendo os requisitos exigidos pelo programa, era selecionado.
Posteriormente, o candidato era visitado por uma equipe técnica. Dentre os itens
destacados pelo programa estavam o volume de mão-de-obra familiar e as
experiências agrícolas. Além dos requisitos exigidos, a vida pregressa do candidato
a irrigante era bastante investigada. (Diniz, 1999, p. 86)
Essa afirmativa foi confirmada no depoimento de muitos irrigantes:
Eles procuraram a gente pra se inscrever. A gente se inscrevia e ficava esperando
chamar. A gente fazia logo exame de sangue, exame de saúde, fazia tudo... (C.S.,
agricultor)
[...] Você tinha que trazer uma folha corrida. A gente tinha que passar na delegacia
do seu lugar e trazer uma folha corrida. (G., agricultor)
O DNOCS foi direto ao sindicato. Eu nessa época era apenas secretário. Eles
prometiam que nós teríamos dias melhores, não é o céu, mas terão direito a trabalhar
para vocês, em terras de vocês, vão ganhar financiamento, vai ter uma cooperativa e
o lote é irrigado. Quando chegamos já tinha o “D-1”, depois veio o “D-2”, “C-2”, e
“E”, e o “C-1”. Os quarenta que vieram conosco ficaram espalhados no setor “E”,
outros no “C-1” e “B”. Vim por conta das promessas, pois trabalhávamos de
aluguel. Isso foi o que mais incentivou. Passamos por uma seleção que era de
exames de saúde e entrevista. Depois foram buscar as famílias de caminhão. (Luis,
colono de origem que não mora mais no perímetro)
Assim, cumprida a fase inicial de entrevistas e exames médicos, o agricultor e sua
família eram instalados nos lotes, que recebiam mediante sorteio. Segundo os depoimentos, o
DNOCS ainda providenciava a vinda dos mesmos através de caminhões do próprio órgão.
Alguns relatos apontaram que em um único caminhão chegavam até três famílias, munidas de
alguns poucos pertences.
Durante uma das várias entrevistas com os colonos e suas esposas, nos chamou
atenção o depoimento de Dona Mariana, que disse ter chorado muito quando chegou ao
Projeto. Eles vieram pela possibilidade de adquirir uma terra para trabalhar, mas sentiram o
peso das normas preestabelecidas:
Aqui a gente era tudo preso. Lá a gente tirava o leite e aí dava pra duas vizinha que
não tinha leite e tinha duas criancinha pequena. O resto a gente deixava pra coalhar.
E aí a noite os vizinho vinha “comê” com a gente. E aqui num era assim. Sofri muito
porque aqui a gente num tinha boi. A gente empurrava a carroça. Eu do lado do
Manel (seu esposo). Quando a gente chegava em casa era o cabelo todo cheio de
porcaria de gado porque o vento dava assim e melava o cabelo todo de bosta. Porque
num tinha boi. Nós tinha lá (onde eles moravam), mas num podia “trazê”. Nem o
“cachorrin” nem o gato a gente podia “trazê. (Dona Mariana, agricultora, 76 anos)
40
Conforme ressaltado, eles tiveram que vender ou deixar seus animais e trazerem
apenas alguns pertences básicos. Dessa forma, a chegada ao perímetro foi um momento
difícil, e eles precisaram se adaptar às novas regras.
Eles chegavam nas casa dos patrões e procuravam informações sobre os moradores,
muitos desistiram, pois falavam que aqui tinha um portão de ferro e que ninguém
podia sair. Depois de entrar lá, só sai com permissão. Não vô lá pra esse cativeiro,
Deus mim livre, dizia o povo. Aqui mesmo no C2, para as pessoas que iam trabalhar
na pecuária o gado não tinha chegado. Plantávamos feijão e todos os dias os técnicos
passavam olhando. Era técnico demais. Um dia saiu um colono daqui lá pra
Gerência, pra pedir permissão pra apanhar feijão pra comer. Era duro. (J., irrigante)
O pessoal diziam que depois que entrava aqui eles botava o cadeado e não deixava
mais sair. Eles diziam que era um cativeiro, uma prisão. A gente tinha vontade de
vim, mas tinha medo. Depois que cheguei teve uma época que eu queria que meu
pai me roubasse, me tirasse daqui, mas depois me acostumei. (Chico B., irrigante)
Por outro lado, alguns trouxeram apenas a força de trabalho familiar e a esperança
de uma vida melhor, outros trouxeram também alguns mantimentos, conforme é destacado no
depoimento a seguir:
Chegamos aqui e encontramos um lugar repleto de mato no ano de 1978, dia 18 de
janeiro, na boquinha da noite. Viemos da Assunção. Quando chegamos trouxemos
as meninas. Ficou apenas uma, pois já era casada. Foram doze filhos que vieram.
Trouxemos farinha, feijão, goma, galinha. Chegamos bem fornecidos. Todo mundo
se admirou do que tínhamos. Depois foi se acabando tudo e recebíamos apenas a
mão de obra. O finado cabeção fez um fornecimento para vender produtos os colonos, para receber por ano, no corte da cana. Isso dava apenas para pagar as
dívidas, aí falei assim: vamo embora daqui, mas nós chegamos agora... (M.,
irrigante)
O diálogo entre as várias discussões teóricas (DINIZ, 2002; BURSZTYN, 1984;
CARVALHO, 1987; MARTINS, 2008), o levantamento documental e os relatados das
entrevistas, nos permitem afirmar que os agricultores assentados no Perímetro passaram por
um longo processo de estranhamento, de readaptação às novas imposições e que, apesar de
muitos terem abandonado seus lotes em função de todas essas imposições, essas famílias não
se mostraram apáticas ou omissas. Elas foram incorporando padrões, mas também foram
criando resistências e, por conseguinte, impuseram novos processos de sociabilidade e,
gradativamente, foram aceitando o Perímetro como a sua nova casa, conforme salienta o
depoimento a seguir:
Logo quando eu cheguei aqui tive a oportunidade de comprar uma Kombi
financiada. Foi o gerente da cooperativa que foi no banco comigo e ajeitou o
empréstimo. Então essa Kombi não tinha sossego. Toda semana os colonos
41
alugavam pra visitar a terra deles. Eles tinha saudade. Isso só foi no começo. Depois
o pessoal se acostumou aqui. (Chico Caipira, irrigante do Setor D1)
1.3.A atuação do DNOCS
Quando fomos selecionadas para atuar como técnica em organização de
produtores – embora a especificação do cargo diferenciasse as antigas assistentes sociais e
extensionistas – uma assistente social do DNOCS nos alertou que procurássemos nos
envolvermos com os trabalhos ditos mais técnicos. Nessa conjuntura, os agrônomos e técnicos
agrícolas eram considerados “os técnicos”, enquanto nós éramos o “pessoal da área social”,
como se essa fosse uma atribuição inferior. Só fomos entender essa separação mais à frente,
ao analisar a trajetória do Perímetro.
Assim, percebemos, ao longo da história do Perímetro, uma separação ou
distanciamento das questões econômico-produtivas das questões sociais, o que ficou marcado
na vida das famílias assentadas. Dessa forma, em termos práticos, a parte econômico-
produtiva foi direcionada ao colono, e estava relacionada à irrigação e aos tratos culturais,
enquanto a parte dita social foi tratada de forma secundária.
Nessa perspectiva, embora esses ensinamentos – apesar de desvalorizados –
também fossem importantes, percebemos que as extensionistas se ocupavam mais em ensinar
às mulheres a cuidar da casa, da alimentação e dos hábitos de higiene, conforme ilustrado nos
depoimentos a seguir:
A Dona Zuila (extensionista) ia ensiná como é que era que a gente podia trabalhar,
fazer canteiro, barrer o terreiro, limpá a casa. Tudo ela ensinava. A gente sabia fazer,
mas ela ensinava. (Dona Tereza, agricultora, 76 anos)
Tinha a Zulmira (extensionista) que era abusada. A gente fazia as coisa e ela
pedindo que a gente fizesse mais, melhor. A gente barria o terrero e ela dizia que
tinha que barrer por acolá tudo. Dizia que o coqueiro que tava perto tinha que limpá
bem limpin. (Dona Almerinda, agricultora,72 anos)
Ela dava a ordem e tinha que fazer. Quem tava acostumada a zelar sua casa, limpá
seus terrero não sentiu dificuldade nenhuma. Mas a pessoa que não tinha esse
costume, que vivia por aí a locel... Aí ela tinha que fazer. Quando ela dava uma
ordem tinha que cumprir. (Nenzinha, agricultora, 71 anos)
Apesar das imposições serem acatadas na maioria das vezes, alguns colonos se
indignavam com essa postura e resistiam, conforme depoimento em destaque:
42
No dia que a D. Zuila veio pra medir o arroz e o óleo lá em casa eu disse: dona Zuila
a senhora nunca trouxe aqui um quilo de arroz ou uma lata de óleo. Então pode
voltar pra trás com essa conversa. (J. B., irrigante)
Esses depoimentos são comprovados pelas várias anotações das extensionistas,
registradas nas pastas dos colonos, que ficam até hoje na gerência do Projeto e cuja cópia
coloca-se anexa (D e E) para ilustrar.
Essa postura paternalista e centralizadora do órgão também foi destacada por um
funcionário da autarquia, que na época era filho de colono.
No início o DNOCS agia assim: a assistente social ia na casa do colono e perguntava
se tava faltando alguma coisa. Olhava tudo. Se uma lâmpada ou um interruptor
estivesse com defeito, ela mandava o eletricista trocar. Se tivesse um doente em casa
o médico ia lá na casa dele. Se fosse preciso mandava para Fortaleza. Lá na central
tinha um posto médico todo equipado. Aqui no Centro Gerencial também tinha um posto. Só levava pra Fortaleza se não resolvesse aqui. (A. funcionário do DNOCS)
Vale acrescentar que esses procedimentos eram adotados, segundo os técnicos do
órgão (o que foi relatado também no depoimento de muitos irrigantes), porque a maioria dos
colonos selecionados era composta por pessoas de pouca instrução e desconhecia as noções
elementares de higiene, necessitando, portanto, desse trabalho educativo específico. Além
disso, o DNOCS era aparelhado tecnicamente e estruturalmente para prestar todos esses
serviços aos colonos e a seus funcionários.
Por outro lado, se às mulheres cabiam os “assuntos do lar”, num primeiro
momento, a sua participação no contexto comunitário do Projeto foi até minada pelo DNOCS.
A postura discriminatória exercida pela autarquia é revelada no depoimento prestado por uma
agricultora. O citado, em última instância, denuncia a postura do técnico no tocante à
discriminação de gênero:
Um dia meu marido me chamou pra participar de uma reunião dos irrigantes e eu
disse que só ia se ele fosse porque lá só tinha um magote de homem. Então eu fui,
quando cheguei lá o Zé Francisco (gerente da cooperativa e funcionário do DNOCS)
disse que a reunião é só para os irrigantes, e eu disse vou assistir a reunião e ai de
quem me tirar daqui dessa cadeira, vou assistir a reunião, ouvir tudo e se precisar
falar eu falo. Ele respondeu que eu além de tudo era linguaruda. (Dona Mazé,
agricultora, 54 anos)
Portanto, para as mulheres, estavam reservadas as atividades domésticas,
enquanto para os homens, cabiam as atividades relacionadas à produção, sendo que deveriam
ser bem capacitados para exercê-las de forma a garantir o sucesso do projeto. Isso não quer
dizer que as mulheres não trabalhassem na agricultura. Os depoimentos delas destacaram que,
43
principalmente durante o plantio da cana-de-açúcar, elas trabalhavam constantemente,
inclusive levavam os filhos para ajudar no trabalho da família.
Aqui até as mulheres trabalhavam, apanhavam feijão e cortava cana. (...) naquela
época as mulheres trabalhavam muito. Lembro grávida eu ia pro lote cortar capim
pra ajudar o meu marido, tava com três meses de gravidez. (M. irrigante)
Por outro lado, a administração das cooperativas, embora a diretoria fosse
composta por irrigantes, era um técnico determinado pelo DNOCS quem gerenciava a
entidade. Segundo os colonos, na prática, quem “mandava” era a autarquia.
As regras vinham de cima pra baixo. Porque naquele tempo a diretoria quase num
apitava nada. Era o Zé Francisco do DNOCS quem mandava. O que ele fizesse tava
feito. Quando a gente queria fazer um coisa lá vinha uma ruma de dôtor chamar a atenção a nós. (Z. B., irrigante)
Nessa perspectiva, tem-se a formação de uma comunidade composta por famílias
advindas de lugares diversos, de culturas com especificidades próprias e que foram “unidas” a
partir de uma decisão governamental. Ou melhor, além da decisão estatal como forma de dar
respostas concretas à situação crítica24
em que se encontrava a população nordestina rural,
foram as questões objetivas relacionadas ao nível de pobreza da região e a possibilidade de
aquisição de uma terra própria para produzir – aliadas a tantas outras questões subjetivas não
menos importantes – os fatores decisivos para a ocupação do perímetro.
Assim, chegaram os futuros colonos com suas extensas famílias. Muitos sem ter a
ideia exata sobre a realidade a ser vivenciada. Muitos, conforme salientamos anteriormente,
foram obrigados a deixar seus animais para trás e, de certa forma, eliminar ou ocultar seu
passado e abraçar, de certo modo, uma nova vida. Logo no início eles aprenderam que no
sertão,25
embora plantassem na “terra dos outros” eles tinham liberdade (embora fosse uma
liberdade questionável porque eles já eram sujeitados aos patrões fazendeiros), enquanto no
projeto eles deveriam obedecer às ordens do DNOCS e não tinham qualquer autonomia sob a
sua produção e livre locomoção.
Quando nós chegamo aqui tudo era regrado. O técnico contava o tanto de gente que
tinha na casa e dizia quanto deveria ficar de feijão, de leite. O resto ia pra
24 Ao longo do capítulo analisamos o contexto histórico-político que levou à implantação de áreas irrigadas
como estratégia de combate aos fenômenos da seca, da fome e do êxodo rural do nordeste. 25 A maioria das famílias vinha do sertão e cultivava a agricultura de sequeiro.
44
cooperativa. O técnico sabia mais que a gente quantos litros dava de leite cada vaca.
A gente num tinha direito de dar um litro de leite pra quem morasse fora do projeto.
(João, agricultor, 51 anos)
A gente passou por muita afronta. Uma afronta grande que eu passei foi na planta do
feijão. Disseram que era pra deixar tudo na gerência velha. Daí eu fui lá a noite e vi
que um jumento tava comendo tudo. Daí eu num levei o meu não. Tirei uns 50 litros
pra comer e ensaquei o resto. Daí deram parte lá na gerência pro cabo. Me chamaram na gerência. O Dr. Cabral perguntou porque eu tava desobedecendo as
ordens da cooperativa. Eu disse: eu num tô desrespeitando não doutor. (...) eu bati o
feijão, separei o de comer e o resto deixei lá, mas dentro de casa, não no meio do
tempo como tá lá pro jumento comer. (Z. B., irrigante)
Nessa época vivíamos na ditadura. Existia uma guarita que impedia que
passássemos com qualquer tipo de mercadorias. Chegou até a acontecer de um
vizinho ser preso exatamente por esse motivo: na casa dele estava faltando arroz, farinha, café e açúcar. Então ele levou três sacas de feijão até Paraipaba para vender
e comprar o que estava faltando. Quando encontrou o guarda, então ele tomou a
mercadoria, pois dizia que não podia desviar a produção. Então veio a extensionista.
Quando chega à minha parte, eu como um líder sindical, disse um monte de coisa,
não concordei muito. Prometeu até prisão por ter dito que era uma ditadura, mas
mesmo assim levaram preso o feijão de meu vizinho, da casa vinte e seis do “D-2”.
Ele foi preso por esse simples motivo. (...) Então se ajuntou noventa e cinco homens
para não deixar ele ser preso e nem sair do perímetro. Chegando lá o delegado foi
logo dizendo que havia chamado só um e iria chamar a segurança publica. Então
dissemos: ele só entra com nós e só saímos com ele. Então o delegado perguntou
quem era o líder e respondi: aqui é um por todos e todos por um. A mulher ficou
assim e disse: mas você sabe quem desvia do DNOCS é ladrão. Então perguntei: Quem é mais ladrão? É quem trabalha pra comer, ou quem toma o produto do outro?
É o seguinte: ele pegou toda sua produção e entregou lá e deram apenas três sacos
pra ele comer. O senhor come feijão escoteiro, passa tempo sem beber café, arroz
pra você e sua família, você se atreve a passar o tempo inteiro só com feijão d‟água
e escoteiro? Ele trouxe o feijão para trocar por outras mercadorias, foi só isso. Então
o delegado resolveu nos mandar embora e depois ia falar com o doutor. Só saímos
com ele. A coisa era bem apertada. (L., colono assentado que não reside no
perímetro)
Os depoimentos acima são reveladores e chama a atenção esse último, onde os
colonos se rebelaram contra a autoridade do DNOCS e dos dirigentes da cooperativa e
defenderam um colono que, segundo ele, precisou desviar uma parte de sua produção para
vendê-la e comprar outros mantimentos necessários para a alimentação da sua família. (Ver
Anexo F). Percebemos nos relatos o autoritarismo vivenciado na época da ditadura militar,
período da história brasileira deflagrado a partir do golpe de 1964, marcado pela coerção
violenta às lutas sociais e aos movimentos populares, à livre imprensa e, consequentemente,
exercendo forte controle sob os indivíduos.
Verificamos ainda nos depoimentos a presença de um cabo reformado, contratado
pela cooperativa, segundo os colonos, para “pastorar a gente”. Ao investigarmos essa figura
pitoresca da história do Perímetro, verificamos que o mesmo tinha a função de impedir que os
45
irrigantes desviassem a sua produção, ou seja, deixassem de entregá-la à cooperativa. O
depoimento a seguir relata sobre a atuação desse funcionário.
Foi a cooperativa, o Zé Francisco26 que contratou ele pra vigiar os colonos, pra não
passar nada pra fora. Só que ele vigiava nós. O pessoal que vinha de fora levava
tudo. Um dia eu fui no Zé Francisco e pedi um dinheiro pra comprar um remédio e
ele disse que num tinha. Então eu disse eu vou vender laranja. Ele disse que não
pode não. Se você vender eu mando o cabo tomar. Pois mande amanhã bem cedinho
que eu vou vender. [...] Quando eu tava despachando as laranjas na cancela ele veio
mais o Zé Francisco. [...] Mandaram me chamar lá na cooperativa. Como é que eu
era um fiscal e fazia um trabalho desses, dizia ele. Era porque eu precisava de
dinheiro. Você tinha e não me arranjou, disse eu, e mandou foi o cabo Araújo vigiar
nós, ganhando o nosso dinheiro pra tomar o que é nosso. Ai foi uma confusão
danada. (Z. B., irrigante)
Essa prática adotada pelo DNOCS, conforme já destacamos, refletia
categoricamente o momento político do país, marcado pela imposição do regime militar.
Eram os técnicos – com seus planos agrícolas – que definiam o que os agricultores iam
plantar, como, quando e qual o tamanho da área. Tudo que eles produziam deveria ir para a
cooperativa, entidade criada pelo órgão, gerenciada por um técnico da autarquia e que detinha
o controle total sobre a política de crédito, assistência técnica, extensão e gestão da
infraestrutura de irrigação de uso comum. Os agricultores, portanto, não tinham qualquer
autonomia sobre suas vidas, embora, conforme já ressaltamos, existissem insatisfações e
resistências.
Nesse sentido, a atuação desse profissional (juntamente com sua equipe de vigias
que ficavam nas guaritas ou circulando em suas motos) perdurou por cerca de sete anos e
depois de muita pressão da parte dos colonos – alguns até o ameaçaram de morte –, ele
acabou sendo afastado. Apesar da equipe fiscalizadora permanecer em vigília contínua no
entorno do projeto, alguns colonos relataram que eles os perseguiam, mas não conseguiam
impedir que os atravessadores entrassem no perímetro e comprassem a produção local.
Muitos, segundo eles, até subornavam os vigias das guaritas para fazer “vista grossa”.
A demissão dessa equipe coincidiu com a abertura política. Assim, com a chegada
da democracia não havia mais “clima” para a execução desses mecanismos coercitivos tão
diretos. Além do mais, houve muita pressão por parte dos irrigantes, já insatisfeitos com essa
imposição.
26 Funcionário do DNOCS cedido para gerenciar a cooperativa.
46
Por outro lado, na visão dos técnicos do DNOCS e até de alguns dirigentes da
cooperativa, esses mecanismos eram justificados pela necessidade de garantir que os
agricultores não desviassem a sua produção. Segundo esta ótica, tratava-se de uma maneira de
assegurar o fortalecimento do cooperativismo e a união entre os mesmos. Acontece que o
sucesso da atividade cooperativista é que os cooperados entendam a importância de estarem
comercializando juntos, de se fortalecerem e decidirem sobre o seu futuro. E mais que isso,
para que eles permaneçam organizados em cooperativa o agricultor deve sentir a necessidade
de agregar valor à sua produção, ou seja, ser mais bem remunerado através da cooperativa do
que com o atravessador.
Mediante análise de vários depoimentos e documentos, percebemos que não havia
a opção entre ser ou não cooperado, ou seja, participar da cooperativa era uma condição para
ser assentado no Perímetro. No entanto, percebemos que esta experiência não foi positiva, em
razão de diversos fatores que explicitamos ao longo deste estudo.
De acordo com vários depoimentos dos irrigantes, a CIVAC – Cooperativa dos
Irrigantes do Vale do Curu – já estava em declínio quando surgiu um possível “salvador da
pátria” que iria resgatá-la. Então veio a negociação com o BNB para financiar a aquisição de
gado.
Nessa época, de comum acordo entre os dirigentes da cooperativa, dos sócios que
fizeram o empréstimo, dos técnicos e dirigentes do DNOCS e até por parte da própria
gerência do BNB, uma parte desses recursos foi desviado para a construção de um posto de
gasolina, uma rádio comunitária e um frigorífico, os quais seriam administrados pela CIVAC.
Segundo relatos locais, em função de divergências políticas internas, essa transação foi
denunciada e uma sindicância foi aberta para apurar os fatos. Consta ainda que o então
gerente do BNB foi afastado e os projetos que aguardavam liberação foram suspensos por
tempo indeterminado. Há quem diga no Perímetro, que o objetivo maior do presidente da
cooperativa na época era soerguer a empresa. Ele acreditava que através desses
empreendimentos e com os outros financiamentos prometidos pelo banco a entidade decolaria
novamente.
Além de todos esses problemas, segundo os colonos, parte do gado comprado
também não tinha qualidade e já estava disponível para descarte por seu proprietário. Consta
também que uma parte dos bezerros foi desviada.
Embora as razões que levaram à falência da CIVAC tenham sido muitas e
complexas, o fato é que sua derrocada colocou em cheque a capacidade organizacional dos
47
irrigantes, a credibilidade das instituições governamentais e marcou profundamente a vida de
todos que compõem este espaço rural.
Nessa perspectiva, uma análise do processo de socialização coordenado pelo
DNOCS nos permite supor, preliminarmente, que este contribuiu para o atual distanciamento
dos jovens, conforme destacado no depoimento a seguir:
Os filhos de irrigantes não se interessaram em continuar porque eles viam como os
pais eram tratados. Era uma fartura sem liberdade, aí eles foram se desestimulando.
Eu tenho raiva quando o pessoal diz que tem saudade daquele tempo. A gente
produzia muito, mas tinha que entregar a produção para a cooperativa e eles não tinham como vender tudo. Daí a gente tinha grande prejuízo, porque eles também
não tinham como vender. (D. Mazé, agricultora)
Embora saibamos dos condicionamentos históricos e estruturais específicos
daquele momento e sem entrarmos no mérito das causas ou apurarmos culpados, todas essas
experiências negativas – implantação de culturas que fracassaram pela ausência ou
insuficiências de canais de comercialização capazes de absorver a superprodução,27
a
obrigatoriedade de se filiar a uma cooperativa28
, além de conviverem sob as rédeas impostas
verticalmente pelo DNOCS – acarretaram marcas profundas nas pessoas desse projeto de
irrigação.
Essas marcas podem ser visualizadas na dificuldade dos colonos acreditarem no
cooperativismo29
e na honestidade de seus dirigentes, na dificuldade de se reunirem em torno
de objetivos comuns, enfim, de se fortalecerem enquanto comunidade e discutirem os
problemas comuns de forma coletiva.30
Essa descrença é repassada – consciente ou
inconscientemente – para os filhos e netos, que, por sua vez, as reproduzem e com isso vão se
distanciando dos seus lotes e das atividades agrícolas nessas respectivas unidades.
Embora a tônica principal deste trabalho não seja a análise da prática adotada
anteriormente pelo DNOCS, partimos do pressuposto de que, para se entender porque os
27 Os agricultores relatam que chegaram a “jogar” tomate na BR-222 como forma de protesto pela falta de
comércio, além da superprodução de laranja e legumes que também não tiveram comércio, dentre muitas outras. 28 Eles não tinham autonomia, mas tiveram que arcar com o peso de todos os fracassos. 29 Atualmente o projeto tem uma cooperativa (COPROCOP), que também foi formada a partir de uma política
governamental (dessa vez pelo Governo do Estado em 2001), mas que é administrada por uma diretoria formada
de irrigantes. Ainda não tem sustentabilidade financeira e grande parte dos sócios permanece na mesma, por
causa de um contrato de integração com a Ypióca, o qual garante o pagamento da energia de bombeamento e
aquisição de adubos. Esse financiamento é descontado anualmente após o corte da cana-de-açúcar. 30 Um dos principais problemas do projeto está na comercialização do coco, que fica subordinada aos revezes do
mercado. Eles “preferem” negociar com seus atravessadores do que através da cooperativa, na maioria dos casos.
Por outro lado, a cooperativa não tem capital de giro para assegurar o melhor preço para o associado.
48
jovens não estão sucedendo os pais na atividade agrícola, culminando com a venda de lotes31
,
faz-se necessário apreender todas as conexões estruturais e políticas que levaram a essa
realidade. Assim, conhecer a história do projeto, a trajetória das famílias assentadas e a
intervenção do DNOCS são panos de fundo essenciais para esta análise.
Vale lembrar que, conforme veremos a seguir, essas discussões não podem ser
processadas isoladamente ou descoladas do contexto socioeconômico e político regional e
nacional mais amplo em que se inserem. Entender esse movimento complexo é essencial para
desvendarmos as questões locais, fruto da investigação proposta.
1.4.A modernização do Nordeste e o Perímetro Curu-Paraipaba
O Nordeste, conforme destaca a história, sempre foi vítima dos reveses climáticos
que ocasionaram grandes secas. Esse fenômeno foi costumeiramente tratado como calamidade
e serviu, sobretudo, para o favorecimento de suas elites. (BURSZTYN, 1984; CARVALHO,
1987)
Nesse sentido, a atuação do Estado em relação a esse fenômeno se deu de diversas
formas, sendo inicialmente pautada em ações de cunho assistencialista e como forma de
amenizar as consequências das secas. Para tanto, no início do século XX, com a criação da
Inspetoria de Obras Contra as Secas – mais tarde transformada no Departamento Nacional de
Obras Contra as Secas (DNOCS) –, foram incrementados estudos técnicos sobre essa região
do Brasil e, consequentemente, desenvolveram-se ações para a construção de reservatórios
d‟água, os quais serviam, inclusive, para a ocupação da farta mão de obra local, além de
minimizar os efeitos da fome e da miséria. (GUERRA, 1981)
Nessa época predominava o discurso da seca e a visão do Nordeste como lugar de
atraso. Esse discurso justificava a liberação de recursos financeiros federais para a região, os
quais, sobretudo, garantiam a continuidade e a manutenção das estruturas de poder local.
(BURSZTYN, 1984; CARVALHO, 1987)
Para Guerra – ex-diretor do DNOCS, estudioso da trajetória histórica da
autarquia, além de defensor fervoroso do mesmo –, foi a partir da construção dessas obras de
31 Existe uma rotatividade grande no projeto que, por ser perto de Fortaleza (90 km) e a 14km de uma das praias
mais bonitas do Ceará (Lagoinha), atrai muitos “gringos”, aposentados e empresários. Muitos deles se interessam
em adquirir os lotes para transformá-los em sítios ou casas de veraneio.
49
armazenamento de água – os açudes – que foi possível a implantação de áreas irrigadas,
consideradas por ele como um “antídoto por excelência contra as secas” (1981, p. 224)
Nessa época, o Estado, através do DNOCS, viabilizou a implantação de áreas
irrigadas nas fazendas particulares. O discurso oficial enfatizava que a ideia central era
garantir a produção agrícola e a fixação do homem no campo, através da parceria entre o
poder público e o privado. Todavia, segundo Carvalho, a seca acabava por beneficiar esses
fazendeiros (que representavam a estrutura de poder local), através da realização de obras
públicas em suas propriedades, além do recebimento de fundos públicos. Essas ações
favoreciam o controle e a subordinação dos agricultores mediante práticas caracterizadas pelo
clientelismo.
Como se sabe, essas práticas não se traduziram na resolução, atenuação ou sequer
em um melhor entendimento dos problemas dessa área. Capturados pelas oligarquias
nordestinas, os organismos encarregados do tratamento desses problemas passaram a
atuar fundamentalmente em benefício daqueles segmentos (...) As obras de busca ou
acumulação de água se concentraram nas propriedades privadas dos médios ou
grandes fazendeiros. Nas fases da seca, o DNOCS recrutava a mão-de-obra por ela
desocupada só depois que os poucos recursos dos sitiantes, meeiros e parceiros haviam-se esgotado; essa mão-de-obra era, as vezes, remunerada em espécie e
empregada na construção de estradas e barragens, em muitos casos no interior dos
grandes latifúndios, com a transferência de recursos do Estado para a implementação
de benefícios em propriedades privadas. (CARVALHO, 1987, p. 46-47)
Apesar desses investimentos, nesse período, a agricultura irrigada não se
desenvolveu como esperado. Conforme Guerra, faltaram recursos para o DNOCS desenvolver
as ações necessárias (assistência técnica, apoio tecnológico e fundo para a compra de
insumos), enquanto os irrigantes-fazendeiros demonstraram desinteresse pela atividade, pois
era mais prático criar gado e continuar “produzindo de metade32
” com os seus moradores, que
atuar numa atividade que requeria tratos culturais específicos e constantes. (GUERRA, 1981)
Nesse movimento, a irrigação somente passou a ser tratada de uma forma mais
planejada a partir da criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste –
SUDENE. Por conseguinte, a implantação dos perímetros públicos, segundo Diniz, estava
intrinsecamente relacionada com a presença do Estado enquanto promotor das transformações
tecnológicas e econômicas necessárias à expansão capitalista, ocorrida, especialmente, após a
criação desta entidade, e em decorrência de diversos fatores.
32
Nesse caso os moradores eram autorizados a plantar e de tudo que eles produziam, metade era do dono da
terra. Assim, o fazendeiro não tinha qualquer trabalho e ainda utilizava os restos culturais, como pasto para o seu
gado. Os irrigantes disseram também que eram obrigados a trabalhar, pelo menos três dias, para os patrões ou
eram obrigados a deixar as casas situadas nas fazendas.
50
A criação da SUDENE não se dá por acaso, porquanto no âmbito nacional a
sedimentação da hegemonia econômica do Centro-Sul industrializado exigia a
inserção econômica do espaço social nordestino. Por outro lado, no Nordeste, as
massas populares começam a se organizar, tanto que a pressão (...) especialmente
das ligas camponesas e dos emergentes sindicatos rurais, gerou um agravamento das
tensões sociais e acelerou o êxodo rural, transferindo os problemas do campo para as
cidades. [...] [colocando] em risco o poder da burguesia nordestina, levando o
Estado a alterar o seu papel na região. (DINIZ, 2002, p. 40)
Vale acrescentar que, modernizar o Nordeste, através do desenvolvimento do
setor agrícola, era prioritário e, inclusive, passava por uma perspectiva de expansão do capital
internacional, materializado através do incentivo dado pelo governo americano, que interferiu
diretamente nesse contexto a partir dos postulados do acordo Usaid-Sudene (1962), que
vieram a contribuir com o golpe militar de 1964:
Sob o pretexto de prestar assistência financeira, a Usaid interferiu fortemente nos
assuntos internos do País [...] Utilizou diversas estratégias para enfraquecer o
esforço de coordenação da autarquia regional, sendo a principal delas a articulação
direta com os governadores nordestinos para implementar ações emergenciais e de
caráter permanente. [...] Os recursos dos convênios com os estados da região eram
repassados aos adversários políticos do Governo Federal, fortalecendo a oposição a João Goulart, e retidos, no caso dos seus aliados. (MARTINS, 2008, p. 35)
Durante o governo militar – sobretudo a partir do final da década de 1960 –, a
SUDENE perdeu espaço como instância de planejamento, ocasionando uma nova forma de
atuação do Estado. Com isso, essa forma de intervenção estatal passou a concentrar-se em
espaços mais restritos e que se apresentaram mais propensos ao desenvolvimento, ou seja, que
ofereceram condições mais favoráveis para dar respostas imediatas. Destacou-se, nessa fase, a
criação do PROINE – Programa de Irrigação do Nordeste.
Nessa época, a irrigação foi tratada como prioridade de Governo. Esta política
visava tanto à criação de perímetros públicos para exploração agrícola familiar – a ser
implementada pelo DNOCS – como a exploração do Vale do São Francisco, que priorizou a
exploração empresarial.
Nesse sentido, esse programa disseminador da irrigação, segundo Diniz, visava a
garantia da expansão capitalista no campo, mediante a implantação de infraestrutura
econômica, além da aplicação de capitais públicos e expropriação de terras.
[...] a intervenção do Estado, via criação de perímetros irrigados, produziu um
espaço adequado às necessidades do modo de produção capitalista, ao viabilizar a
transformação da renda da terra em capital, utilizando-se das relações de trabalho
familiar e não contratando mão-de-obra assalariada. Ou seja, [...] os irrigantes são
51
convertidos em pequenos capitalistas e sua condição como produtores constitui a
reprodução do próprio capital, materializado na forma de máquinas, adubos,
sementes selecionadas, etc. (DINIZ, 2002, p. 40)
Por outro lado, é válido frisar que essa expansão capitalista no semiárido
nordestino, segundo Martins, baseava-se na concepção de desenvolvimento regional já tratada
no relatório do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN) 33
, onde o
papel do Estado consistia em gerar empregos e reforçar o surgimento de uma classe dirigente
mais comprometida com a ideologia desenvolvimentista e disposta a combater o “atraso” da
região, marcada pela seca, fome, analfabetismo e pobreza. (MARTINS, 2008)
Vale acrescentar que os documentos que subsidiaram a implantação do perímetro
já ressaltavam a necessidade de superar a estrutura econômica precária do Nordeste, a qual se
apresentava atrasada em relação às regiões Sul e Sudeste, conforme citação a seguir:
Os principais sintomas da estrutura econômica insatisfatória da Região podem ser
encontrados nos seguintes pontos: a economia baseia-se no setor primário, que
envolve mais de 90% da população assalariada, embora este setor primário – dadas
as condições e falta de instalações para a irrigação – se encontram em estado de relativa estagnação; cerca de 50% da população potencialmente ativa é constituída
de desempregados; o produto bruto da região é estimado em menos de 20% do PNB;
(...) o crescimento do Nordeste é estimado em apenas 2,15%, taxa de crescimento
relativamente baixa, que se atribui, em parte, à elevada taxa de mortalidade, e, em
parte, aos intensos movimentos migratórios provocados pelas condições econômicas
pouco satisfatórias da região. (DNOCS, 1970, p. 1-2)
Por conseguinte, apresentava-se a necessidade de modernizar a agricultura através
da implantação de áreas irrigadas:
Qualquer tentativa de reestruturação da agricultura da área deve basear-se no estabelecimento de uma agricultura moderna, orientada para o mercado, culturas
agrícolas diversificadas de pronta venda (cash crops); para obter rendimentos
ótimos, deve-se introduzir normas de manejo que se baseiam na aplicação de
insumos de produção não utilizados anteriormente pela agricultura tradicional.
(DNOCS, 1970, p. 2-1)
33 Também conhecido, até os dias atuais, como Relatório do GTDN, de autoria de Celso Furtado, foi o suporte
teórico para a intervenção planejada na região Nordeste e culminou com a criação da Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). O estudo preconizava a superação do elevado grau de desigualdade
inter-regional no país, sobretudo pela via de uma maciça industrialização na citada região, articulada à própria
reorganização da agricultura nas áreas irrigáveis - para que a produção de alimentos desse suporte à expansão do
parque industrial nos principais centros urbanos. Essas ações deveriam ser deflagradas pelo Estado nacional-
desenvolvimentista. (MARTINS, 2008)
52
Dessa forma, a agricultura irrigada se contraporia à agricultura tradicional. Ao
analisarmos como se deu essa política modernizante no Perímetro Irrigado Curu-Paraipaba é
importante pontuarmos, a título de exemplo, o depoimento de uma liderança local, destacando
que no início do projeto, atendendo ao planejamento agrícola, não faltavam recursos para a
aquisição de insumos e defensivos. Nessa época, inclusive, os técnicos incentivavam (para
não dizer obrigavam) a implantação de culturas temporárias e eram contrários às culturas
permanentes que, segundo eles, eram inviáveis economicamente. Segundo funcionário do
órgão que trabalhou nessa época, essa orientação foi devido ao fato de que os irrigantes ainda
não eram os donos da terra e, inclusive, poderiam sair a qualquer momento. Porém, alguns
irrigantes destacaram outros motivos, conforme o depoimento dessa liderança local.
No início o DNOCS não aceitava que ninguém plantasse coco. Porque eles diziam
que a nossa área tinha que plantar culturas que você estivesse sempre virando a terra.
Não podiam plantar culturas que enraizassem a terra porque elas não pagavam a
autossustentabilidade do perímetro. Eles queriam que plantassem culturas
temporárias porque o vendedor de adubos era amigo deles. Então havia um consumo
de adubos muito grande. Imagine três mil hectares sendo renovados a cada cento e
vinte dias. A visão deles era consumo. Ou seja, nós passamos uma década como cobaias só para consumir insumos e jogar na terra e a nossa lucratividade que fosse
para o espaço. (Raimundo, liderança local)
O depoimento salienta aspectos relevantes na condução da política modernizante
fomentada no campo pela assistência técnica aos agricultores do perímetro, traduzida na
postura ditatorial e arrogante dos técnicos e no incentivo exagerado ao consumo de defensivos
agropecuários, o que contribuiu, sobretudo, para intensificar os problemas ambientais e de
segurança alimentar. Além disso, determinou, segundo Diniz,
[...] uma subordinação direta ao capital uma vez que os irrigantes são convertidos em pequenos capitalistas e sua condição de sobrevivência como produtores constitui a
reprodução do próprio capital, materializado na forma de máquinas, adubos, sementes
selecionadas, etc., (...) subordinado tanto ao capital financeiro, quando precisa contrair
empréstimo no Banco, quanto ao capital industrial. (DINIZ, 1999, p. 85)
A seguir veremos mais detalhadamente como se processou a política de irrigação
no contexto nacional até a implantação e consolidação do Perímetro Curu-Paraipaba.
53
1.5. A Política de Irrigação e a trajetória de consolidação do Perímetro
A implantação da agricultura irrigada no Brasil, como pôde ser vista, foi se
processando a partir da criação de várias instituições voltadas a questões relacionadas ao
clima, recursos hídricos e de obras de combate à seca, das quais podemos citar como exemplo
o DNOCS, a CHESF, a SUVALE, a CODEVASF, a SUDENE e o Banco do Nordeste.
(Ministério da Integração Nacional, 2008)
Essas instituições – principalmente a partir da criação da SUDENE e do Banco do
Nordeste – foram articuladas em torno do debate sobre as desigualdades regionais, baseado,
conforme ressaltado anteriormente, na teoria desenvolvimentista, e fruto da atuação planejada
do Estado no Nordeste. Nesse contexto, a intervenção do Governo Federal visava à
implementação de políticas regionais voltadas à modernização do Nordeste e à diminuição
das disparidades de renda entre esta Região e o Centro-Sul do País. (MARTINS, 2008)
Destaca-se, nesse contexto, a atuação da SUDENE como instância responsável
pelo desenvolvimento e planejamento regional, cuja meta era a reorganização da economia do
semiárido do Nordeste brasileiro, com a abertura das frentes de colonização nos vales úmidos
maranhenses, a promoção da irrigação no Polígono das Secas e a intensificação dos
investimentos industriais.
Conforme destacado anteriormente, o GTDN propôs diversas ações para
incrementar, tanto o setor industrial do Nordeste, como a sua agropecuária. Para tanto, sugeriu
a modernização das indústrias têxteis, assessoramento técnico para os setores ditos
prioritários, recomendações para facilitar o acesso a financiamentos e tantas outras medidas
que visavam atrair empresários e investimentos governamentais. Por outra via, as propostas
para o setor agropecuário giraram em torno da oferta de terras, da modernização agrícola e da
produção de alimentos,
[...] com a implantação de uma agricultura voltada para o mercado em terras
subutilizadas das zonas úmidas ou na faixa semi-árida onde fosse possível a
irrigação, dotando essa agricultura de padrões tecnológicos e organizacionais que
lhes garantissem uma alta produtividade. (CARVALHO, 1987, p. 69)
Com efeito, a irrigação assumiu caráter prioritário, cabendo aos especialistas
identificar as possibilidades para ampliar a produção nas áreas irrigáveis. Nesse sentido, no
início da década de 1960 foram criados o Grupo de Irrigação do São Francisco – GISF (1960)
e o Grupo de Estudos do Vale do Jaguaribe – GEVJ (1961), os quais levantaram a
54
possibilidade de expandir a irrigação nos vales perenizados dos rios São Francisco (Bahia) e
Jaguaribe (Ceará).
Nesse período foi lançado o I Plano Diretor da SUDENE (1961-1963), que
destacou a necessidade de promover a irrigação nas bacias dos açudes e barragens públicos e
a colonização das terras úmidas do Maranhão. Apesar das recomendações, as ações da
SUDENE para o desenvolvimento da agricultura foram limitadas a projetos-piloto e estudos
de viabilidade, além de outros incentivos à ampliação da produtividade e racionalização dos
principais cultivos da Região. (CARVALHO, 1987)
Em seguida foram lançados ainda mais dois planos diretores, cuja premissa estava
em expandir a irrigação através da implantação de perímetros públicos (Perímetros Irrigados
Morada Nova, no Vale do Jaguaribe-CE, Bebedouro-Favela, no Vale do São Francisco-PE e
Lameiro, no Vale do Parnaíba-PI). Os referidos documentos também previam a implantação
de um programa de assistência técnica, além do acesso ao crédito agrícola e apoio à
comercialização.
Nessa mesma década o Governo Federal instituiu o GEIDA (Grupo Executivo de
Irrigação e Desenvolvimento Agrário), que, com a assessoria técnica de uma empresa
israelense, realizou amplo estudo acerca das potencialidades da irrigação no Brasil,
determinando a viabilidade técnico-econômica de 73 perímetros irrigados, sendo 62
localizados na região Nordeste
Nesse contexto, a política de irrigação definida pelo GEIDA determinava a
divisão da área desapropriada, em lotes familiares, os quais seriam repassados aos agricultores
mediante instrumento de concessão de posse.
Essas ações planejadas não obtiveram os efeitos esperados pela intervenção das
oligarquias agrárias e, em 1970, uma grande seca colocou a questão Nordeste no cenário
político nacional. Essa situação teve ampla divulgação nos meios de comunicação de massa,
que registraram o deslocamento dos flagelados e a invasão às cidades, na busca de alimentos e
da solução para os problemas dos agricultores. Apesar de tentarem minimizar os fatos, a
situação de calamidade se estendeu, obrigando o governo a adotar medidas emergenciais,
conforme relata Carvalho:
Mas as chuvas não chegaram, a estiagem se tornou irreversível e os problemas das
populações atingidas cada vez mais graves, obrigando o Governo a recorrer, mais
uma vez a medidas assistenciais de urgência para socorrê-las, com a implantação das
chamadas frentes de emergência, que, em maio de 1970, já ocupavam 106.000
trabalhadores. Alguns meses mais tarde, essas frentes absorveriam mais de
55
quinhentos mil flagelados, que se dedicavam a construção de estradas, depósitos de
água e outras obras públicas [...], em troca de salários que mal dava para sobreviver.
(CARVALHO, 1987, p. 154-155)
Essa problemática, apesar da censura à imprensa, teve grande repercussão. E, mais
que isso, deixou patente o fracasso das intervenções estatais e de sua política de
desenvolvimento regional. Não tendo como ser abafada ou desconsiderada, o Governo
Federal teve que intervir, pois [...] “tornara-se necessário neutralizar o impacto amplo, forte e
nacional dessas críticas e noticias, controlar os graves problemas sociais decorrentes da
estiagem e conservar ou preservar a legitimação e a confiança no poder e nas ações do
Estado e da „revolução‟”. (CARVALHO, 1987, p. 156)
Assim, o governo militar, capitaneado pelo presidente Médici, resolveu tomar as
medidas necessárias para corrigir rumos, buscando, segundo ele, fortalecer a agricultura
nordestina e liberar recursos substanciais para a implantação de programas de irrigação em
áreas selecionadas. (IDEM, 1987)
Nesse mesmo ano, o GEIDA lançou o Programa Plurianual de Irrigação (PPI),
que definia as normas, procedimentos e critérios para implantação de projetos de irrigação,
sendo a maior parte da destinação dos recursos para a região Nordeste, como estratégia de
desenvolvimento econômico e combate à pobreza. (Ministério da Integração Nacional, 2008)
Segundo Sousa (2005), esse instrumento de intervenção do Estado (o PPI) marcou
o início da irrigação como política pública, quando o Estado passou a atuar, de forma
planejada, para expandir a irrigação por meio de altos investimentos públicos, os quais se
materializaram nas obras de açudagem e implantação de infraestruturas de irrigação. Assim,
destacou-se a supremacia da irrigação pública federal, a qual foi concebida, planejada e
executada no Ceará pelo DNOCS.
Por outro lado, foi lançado o Plano de Desenvolvimento do Nordeste (1971), cujo
objetivo principal passou a ser a busca de incorporação do Nordeste ao chamado “Brasil
Grande”34
, ou seja, promover um desenvolvimento capaz de elevar o crescimento econômico,
eliminar as desigualdades regionais, além de desenvolver um programa social de ampliação
da qualidade de vida dessas populações.
34 Analisando os documentos desta época, Carvalho relata discurso do presidente Médici onde afirma que “o
atraso e a pobreza do Nordeste e da Amazônia, além de serem social e politicamente inaceitáveis, tinham
repercussões negativas que chegavam a prejudicar fortemente a produção e a economia do Centro-Sul do País.”
Segundo o presidente, por essas regiões não apresentarem poder de consumo e nem capacidade produtiva
competitivas, acabam não participando do mercado interno e, por conseguinte, contribuem para a elevação dos
custos de produção e consequentemente, aumentar a inflação. (Carvalho, 1987, p. 163)
56
Essa política desenvolvimentista previa a expansão de investimentos para
consolidar o processo de industrialização do Nordeste, vinculando-o à indústria nacional e
baseando-se, sobretudo, na exploração dos seus recursos naturais. Nesse processo inclui-se a
modernização do campo.
[...] essa reestruturação abrangia recomendações como a racionalização da
agroindústria canavieira, restabelecendo a sua eficiência e liberando terras para a absorção dos excedentes de mão-de-obra, a extensão da fronteira agrícola para as
áreas úmidas do Nordeste e para a Amazônia, a irrigação do semi-árido, e o
desenvolvimento de programas de reforma agrária e colonização. E se preocupava
com a transformação da produção de subsistência e com a expansão de uma
agropecuária em bases capitalistas e empresariais, com a transformação tecnológica,
o aumento da produtividade e a modernização. (CARVALHO, 1987, p. 164)
Nesse contexto, em 1975, foi implantado o Perímetro Curu-Paraipaba. A história
do projeto, relatada pelo “público-alvo”, ressalta o caráter da política implantada pela ditadura
militar35
- salientando, também, uma ação mais planejada de intervenção no Nordeste.
Analisando essa época, os depoimentos dos colonos detalharam uma prática marcada pelo
autoritarismo, medo e tecnicismo, ou seja, baseada na crença maior de que, através da
modernização agrícola se alcançaria o progresso. Mas, que progresso foi esse?
Assim, dentro de uma matriz de intervenções estatais, nasceu o perímetro. O
DNOCS já vinha atuando na região do Vale do Curu,36
através da construção de açudes e
barragens, conhecendo, portanto, suas potencialidades para a irrigação.
Em 1970, antes da implantação do perímetro, houve o lançamento de um terceiro
volume que versava sobre o aproveitamento hidroagrícola da Bacia do Rio Curu,37
estudo este
que foi desenvolvido através de um consórcio “Tahal e Sondotécnica” e que, apesar de
centralizar-se na área de Paraipaba, destacou a potencialidade hídrica da região do Vale do
Curu como um todo.
35 Conforme foi tratado, a expansão de projetos públicos de irrigação nos anos 1970 objetiva-se a modernização
agrícola bem como a transformação dos agricultores em pequenos e médios empresários. Para tanto, o Estado
investe, através de empréstimos do Banco Mundial, na implantação de obras de infraestrutura hídrica, políticas oficiais de crédito e de transferência de tecnologia. (FRANÇA, 2001)
36 Região localizada às margens do Rio Curu, com água em abundância e, portanto, propícia para a implantação
de um projeto público de irrigação. 37 Não tivemos acesso aos outros volumes. Aliás, este terceiro volume nos foi emprestado por um ex-funcionário
do Distrito, que, segundo ele, o tirou do lixo. Segundo referência desse trabalho, o volume 2 detalha as razões da
escolha da chamada “área de Paraipaba” para a implantação do perímetro. Salienta, todavia, que foi fruto das
conclusões obtidas durante os estudos do Plano Diretor, realizado em várias áreas da bacia do Curu. (Ministério
do Interior, 1970)
57
Nesse contexto, o referido estudo consistiu na elaboração do projeto básico para
instalação do perímetro, bem como tratou do seu planejamento agrícola, sistema de irrigação,
estimativa de custos do sistema de irrigação, plano de colonização, organização do projeto,
custos globais do projeto e necessidades anuais de caixa, finalizando com recomendações para
antes e depois da implantação do perímetro. Enfim, foram planejados detalhadamente todos
os aspectos necessários para garantir o sucesso do empreendimento. Após a conclusão dessa
etapa, conseguido o aporte financeiro para a sua implantação e, sobretudo, após o início das
obras, o DNOCS encaminhou técnicos para buscar as famílias que comporiam aquele espaço
rural.
Dessa forma, a análise dos documentos oficiais que tratam do planejamento do
projeto, corroborando com a literatura pesquisada, permite-nos afirmar que o homem foi
tratado de forma secundária, ou melhor, demonstra que a implantação de áreas irrigadas
passou, em primeira instância, por uma decisão de Estado, situada num complexo e
contraditório movimento de intervenção mais eficiente na questão Nordeste, buscando inseri-
lo no contexto nacional de expansão capitalista. Por outro lado, não podemos esquecer que
esta decisão estava estreitamente vinculada ao contexto de lutas e conflitos no campo,
agravados pela exposição da realidade dos “flagelados da seca” em cadeia nacional.
Nesse contexto, coube aos técnicos do DNOCS a seleção das famílias “aptas” a se
adequarem àquela nova realidade – a agricultura irrigada. Uma importante publicação sobre a
agricultura no polígono das secas salienta que a intervenção técnica, após a conclusão do
projeto, deve tornar o homem preparado para usufruir dos benefícios das obras de irrigação:
As operações nas construções das obras de engenharia já foram “rotinadas”, já não
falta mais o numerário, o que não existe é o preparo do homem comum para
aproveitar melhor ou completar o esforço do técnico, que introduziu abruptamente a irrigação como uma cunha na Organização Social Nordestina. (DUQUE, 1973, p.
12)
Assim, embora o homem não estivesse preparado para produzir mediante uso da
irrigação, cabia ao Estado selecionar os mais propensos a se adequarem ao novo modelo de
produção tecnificada.
Nesse contexto, conforme destacou Diniz,
[...] o próprio processo de seleção já se constituía numa forma de controle dos
irrigantes, o que passou a ser constante na vida desses atores, pois ao entrarem no
perímetro já encontravam as regras pré-estabelecidas. Cabia a estes seguir o modelo
de comportamento social, econômico e tecnológico do projeto. (DINIZ, 1999, p. 86-
87)
58
Esse rol de imposições prévias foram decisivas no processo de construção dessa
comunidade de irrigantes, conforme detalhado anteriormente.
Continuando essa história de acertos e desacertos, a partir da metade da década de
1980, a política de irrigação assumiu uma nova fase, marcada pela implantação de vários
programas governamentais, com destaque para o Programa Nacional para o Aproveitamento
Racional de Várzeas Irrigáveis – PROVÁRZEAS (1981), que apoiava técnica e
financeiramente os produtores rurais na implantação de projetos de irrigação em suas
propriedades; Programa de Financiamento para Equipamentos de Irrigação – PROFIR
(1982); Programa Nacional de Irrigação – PRONI (1986), cujo objetivo era impulsionar a
irrigação no Sul, Centro-Oeste e Norte, através de investimentos públicos em obras de
infraestrutura e serviços, e o Programa de Irrigação do Nordeste – PROINE (1986), que
objetivava expandir a irrigação no Nordeste. (Ministério da Integração Nacional, 2008)
Essa década, portanto, sinalizava um novo momento da irrigação brasileira,
caracterizado pela intensificação da premissa modernizante para o setor agrícola, além dos
incentivos para a irrigação privada no Nordeste. De acordo com estudo patrocinado pelo
Ministério da Integração Nacional/IICA, foi uma época
[...] marcada por decisões adotadas em função de prioridades claramente
estabelecidas pelo Governo Federal, em articulação com o setor privado, (...)
restringindo-se a atuação do governo a execução de obras coletivas de uso comum e
indutoras da prática de irrigação em áreas potenciais (...) e a ações de suporte,
cabendo à iniciativa privada as demais providências para a consecução das
atividades produtivas. (Ministério da Integração Nacional, 2008, p. 11 e 12)
Nessa época, a irrigação teve grande impulso financeiro devido às linhas de
crédito específicas, sendo que o PROVÁRZEAS e o PROFIR receberam a maior fatia, recursos
que foram captados inclusive através de empréstimos externos, sobretudo do Banco
Interamericano de Desenvolvimento – BID, do International Fund for Agricultural
Development – FIDA, do KFW Bankengruppe e do governo japonês. Já o PROINE foi
administrado pelo Banco do Brasil e Banco do Nordeste. (OLIVEIRA, 2005)
No âmbito do Perímetro Irrigado Curu-Paraipaba, o final da década de 1970 e
início da década de 1980 significaram um aprofundamento das relações capitalistas,
traduzidas na integração - intermediada pelo DNOCS – entre a Cooperativa dos Produtores do
Vale do Curu (CIVAC) e a AGROVALE.
59
De acordo com Martins (2008), a AGROVALE foi uma agroindústria de cana-de-
açúcar situada no Vale do Curu, que teve a sua implantação e expansão conduzidas pelo
Estado. Assim, decidida a ampliar o seu cultivo restou à agroindústria apropriar-se da força de
trabalho dos irrigantes e de suas famílias. Para tanto fechou contrato com os mesmos através
da respectiva cooperativa, o que, de certa forma, foi determinado pelo DNOCS, uma vez que
este detinha o controle dos irrigantes e de sua produção38
.
Nesse sentido, a empresa teve irrestrito apoio político e financeiro do Estado e das
instituições bancárias, uma vez que a ele propiciou todas as condições logísticas através da
implantação de infraestrutura, além de favorecer o acesso a empréstimos com juros
subsidiados. Por outro lado, garantiu que os agricultores produziriam a matéria-prima (a cana-
de-açúcar). Para os técnicos do DNOCS tratava-se de um casamento “perfeito”, onde o
produtor tinha a garantia do canal de comercialização.
No entanto, de acordo com Martins (2008), essa relação se processou de forma
conflituosa, sendo que a aparente perfeição perdurou até o declínio da agroindústria,
impulsionado pelo mercado e pelo fim dos programas governamentais de incentivo à
produção de álcool, destacado a seguir:
Entrementes, o fim da ditadura militar, o aumento da produção brasileira de petróleo
e o declínio dos preços internacionais deste produto provocaram a retração do setor
sucroalcooleiro. (...) O Próalcool apresentou sintomas de esgotamento: escassez de
recursos, atraso no pagamento dos produtores, fechamento de destilarias, queda da venda de carros a álcool. (...) Em 1990, acompanhando as reformas neoliberais desta
agência e do FMI, o Governo Collor extinguiu o IAA e o Próalcool. (Martins, 2008,
p. 181)
O auge da exploração da cana-de-açúcar foi até 1988, quando esta detinha 43% do
total da área irrigada na primeira etapa do perímetro. Essa relação direta com a CIVAC foi até
1987 quando o DNOCS apresentou um novo modelo de cooperativismo, ao implantar a
COCIVAC – Cooperativa Central dos Irrigantes do Vale do Curu Ltda., ao mesmo tempo em
que criou mais quatro cooperativas em cada setor. As cooperativas criadas foram a
COAPROL (Cooperativa Agropecuária dos Produtores Rurais do Setor “B” Ltda.), COSEC
(Cooperativa Agropecuária do Setor “C” Ltda.), COPROSEL (Cooperativa dos Produtores
Rurais do Setor “D” Ltda.) e COAPI (Cooperativa Agropecuária dos Produtores do PICP do
Setor E” “Ltda.). (Queiroz, 1992)
38 A esse respeito consultar Açúcar no Sertão, de Mônica Dias Martins.
60
Na prática, a COCIVAC – que seria a cooperativa central – era a mesma CIVAC,
a qual ficou funcionando apenas no papel. Alguns irrigantes hoje criticam esta divisão que,
segundo eles, foi imposta pelo DNOCS e que acabou enfraquecendo a CIVAC, que teve que
dividir o seu patrimônio com as singulares:
Eu levei foi um carão do Dr. Menezes – técnico do DNOCS. Ele disse que se no
projeto tivesse gente pessimista como eu não iria pra frente. Eu disse na reunião que não acreditava, pois se uma não deu certo, imagine um bocado dividido, sem
recursos, sem nada. Ora, a CIVAC tinha ônibus, caminhão, tratores e até boi
reprodutor e mais de cento e trinta funcionários. Nessa época da divisão já não tinha
mais nada. (João, presidente do Distrito)
Por outro lado, segundo depoimento de funcionário do órgão, essa determinação
veio da administração central em função do novo momento do País, ou seja, a democracia.
Para este funcionário, o DNOCS foi uma instituição forte na época da ditadura militar e a
cooperativa só funcionou enquanto foi gerenciada por funcionários do órgão.
A cooperativa só funcionou enquanto foi gerenciada pelo DNOCS. Funcionava por causa
da ditadura. Com o fim da ditadura a ordem era entregar a administração pros colonos.
Então o DNOCS afastou o Zé Francisco (ex-gerente e funcionário do DNOCS) e foi uma
catástrofe. Quando eles criaram as singulares foi um desastre porque eles entregaram pros
colonos administrar, que eram tudo analfabeto, que não sabia administrar. Daí não deu
certo. Só deu despesa. Só durou uns três anos e foi três anos de decadência. (A. funcionário
do DNOCS)
Nesse sentido, pesquisa realizada na época apontou que 16,1% dos irrigantes não
aderiram às cooperativas singulares, significando, de certa forma, que o DNOCS já não
detinha o controle absoluto sobre a vida dos irrigantes. (QUEIROZ, 1992) Muitos motivos
foram apresentados para esta não adesão, e um deles foi que a experiência cooperativista da
CIVAC não foi positiva, sobretudo pela má atuação dos seus dirigentes, que acabou
resultando no desmembramento. Por outro lado, essa insatisfação com os dirigentes se
justificava pelos desvios de recursos e de produção, ou melhor, pelo fato destes dirigentes,
juntamente com funcionários do DNOCS, se autofavorecerem da estrutura da cooperativa:
Eu sei que o desvio era grande. Tinha diretor e funcionários que desviava a
produção dos demais irrigantes, vendia e ficava com o dinheiro. Tudo que o pessoal
61
do DNOCS fazia era com a conveniência dos dirigentes, que também se
beneficiavam enquanto os colonos ficavam no prejuízo. O preço era o que eles
diziam e a gente não podia vender pra outro que pagavam melhor porque eles não
deixavam. (Francisco, irrigante)
Eu ouvia a maioria dos colonos dizer que lutavam para sair da cooperativa. Eles
queriam achar um jeito de sair fora. No começo todo mundo ia porque era sujeito,
obrigado. A gente via a coisa errada. O presidente melhor que teve por aqui pegava o carro da cooperativa e passava a noite num cabaré lá em São Luiz do Curu.
Certamente gastando o dinheiro da cooperativa. (João, irrigante)
Sempre aparecia roubo, eram poucas pessoas que tinham saldo. Às vezes levava de
carrada de produção e mesmo assim não tirava saldo. Tirávamos dez litros de leite
de manhã e ainda tirava em outro balde. Era umas vacas muito boas, vindas da
Argentina. Elas comiam uma ração balanceada. Tínhamos muito cuidado com elas,
davam vinte litros de leite. Esse leite era todo entregue a Cooperativa. Parece que entrava num buraco de formigueiro e sumia. Por isso a descrença dos colonos em
relação a Cooperativa. (M., irrigante)
Por outro lado, os problemas relacionados à comercialização da cana-de-açúcar
colaboraram para o descrédito dos colonos em relação à cooperativa.
Para mim a cooperativa fracassou por causa da desvalorização da cana-de-açúcar.
No começo todo o mundo tinha saldo, a terra era fértil. Com o tempo já não
compensava produzir. No início dos anos noventa apenas uns dez por cento
continuaram com a cana. (João, irrigante)
Além disso, muitos se afastaram da cooperativa porque alegaram que tiveram
prejuízos na comercialização. Isso ocorreu porque, em grande parte das vezes, eles produziam
e só depois é que a cooperativa buscava a comercialização, ocasionando a armazenagem dos
produtos durante semanas. Para eles era melhor vender aos atravessadores, pois recebiam o
pagamento na hora e não precisavam pagar os encargos cobrados pela cooperativa, ou seja,
7% de taxa de comercialização e 2,5% do Funrural. (QUEIROZ, 1992)
Vale acrescentar que os técnicos do DNOCS eram os responsáveis pela
elaboração dos planos de cultivos, ou seja, eram eles quem definiam as culturas a serem
implantadas. Dessa forma, embora não vissem por este lado, também eram responsáveis
diretos pelos prejuízos dos irrigantes, que entregavam a sua produção à cooperativa –
gerenciada por um técnico do órgão – a qual – por dificuldades de escoar a referida produção,
chegava até a “jogar no mato” carradas de tomate, feijão e laranja, conforme destacam os
depoimentos a seguir:
Olha os colonos tinham prejuízo. Eu vi muitas vezes tomate se perder no lote,
macaxeira se perder no lote porque não tinha comércio. A laranja era comprada
pelos próprios vendedores de insumos que colhiam a produção do irrigante e
mandava jogar na BR-222. Eles faziam isso pra dar uma resposta aos irrigantes, mas
62
diziam que não vendiam porque a laranja era azeda. O valor que os colonos
recebiam da cooperativa era inferior aos custos de produção. Eles sempre tinham
prejuízo. (Raimundo, irrigante do Setor D2)
Eu queria que o Governo tivesse garantido a comercialização da nossa produção
porque eu produzi muita cenoura e não tive pra quem vender. Foi uma tristeza ver
tudo se estragando. (Manoel, irrigante do Setor D2)
Todos esses problemas e tantos outros contribuíram para a falência das
cooperativas e do cooperativismo no Perímetro, a primeira a fechar foi a COCIVAC, em
1991, e as singulares se arrastaram até meados de 1995. A antiga CIVAC voltou a funcionar
em seguida, mas já de forma precária. Essa situação, por sua vez, gerou como consequência
certo distanciamento estratégico do DNOCS, no que se refere à sua interferência nas questões
produtivas e de comercialização. Uma análise dessa história nos permite afirmar que,
geralmente, quando os planos não davam certo, o Governo se retirava, deixando os produtores
com o prejuízo. Estes, precisando criar novas estratégias de sobrevivência, acabaram
plantando coco, mesmo sem o consentimento do DNOCS.
Por outro lado, apesar de todas as dificuldades relacionadas à comercialização,
produção e organização social dos irrigantes através das cooperativas, vale destacar que,
durante a sua implantação e até o final da década de 1980, houve investimento maciço, por
parte do governo federal, no Perímetro, através da implantação de obras de infraestrutura de
irrigação de uso comum, além de redes de energia elétrica, rede viária, rede de abastecimento
d‟água, construção de casas, escolas, postos de saúde, galpões para armazenar produção e
maquinários, escritórios das cooperativas, dentre outras39
.
No entanto, os irrigantes da chamada segunda etapa – implantada entre os anos de
1985 e 1990 – não tiveram os mesmos benefícios, ou seja, eles receberam os lotes no mato e
só ganhavam o sistema de irrigação depois de desmatá-lo e destocá-lo. Além disso, apenas os
quarenta e cinco primeiros receberam as casas parcialmente construídas por conta de
problemas na relação com a construtora contratada.
Em seus relatos, os irrigantes da segunda etapa lamentaram por não receberem os
mesmos benefícios dos irrigantes da primeira etapa, quando os recursos eram, pelo menos
aparentemente, mais fartos. Assim, a maioria desses irrigantes selecionados pelo DNOCS
acabou desistindo de assumir o lote. O depoimento de um funcionário da autarquia nos ajuda
a entender esse momento:
39 Todos esses serviços eram executados pelo DNOCS, através da contratação de firmas.
63
Na época o DNOCS me dava a relação e eu entregava os lotes. Depois que entreguei
os quarenta e cinco primeiros kit‟s de irrigação e teve a confusão das casas, muita
gente desistiu. Tinha gente que queria especular, mas eu tomava o lote. Daí os lotes
que ninguém queria foi entregue pras cooperativas e elas botavam quem elas
queriam. Entrou muito filho de colonos. Daqueles mais espertos, que tinham
amizade com o pessoal da cooperativa. Tinha funcionário do DNOCS que agiam de
má fé, faziam politicagem e houve muita denúncia. A partir de 1993 os ricos
começaram a comprar os lotes e houve denúncia até na imprensa. Foi aberta
sindicância, que durou mais ou menos até o ano 2000. O DNOCS até tentou impedir
a venda, mas não conseguiu. (A. funcionário do DNOCS)
O depoimento do funcionário, apesar de não aprofundar o assunto, revela as
condutas praticadas naquela época, marcada por posturas clientelistas e pouco transparentes,
tanto por parte de funcionários do órgão como por parte dos dirigentes das cooperativas. O
relato destaca ainda que nessa época houve confusões e escândalos relacionados à venda de
lotes para pessoas ditas ricas, que queriam usar os lotes habitacionais do perímetro, como
morada de veraneio40
ou apenas especular.
Esses fatos contribuíram para que a credibilidade do DNOCS perante a
comunidade fosse abalada irremediavelmente41
. Os demais colonos, que não participavam
desse círculo vicioso42
, tornaram-se críticos ferrenhos de suas próprias organizações e até hoje
muitos ainda dizem que todos que entram na associação são desonestos, o que demonstra que
o histórico desastroso dessas organizações tem reflexos negativos na atualidade e contribui
para o enfraquecimento das mesmas.
Por outra via, gradativamente, a condução de algumas políticas públicas,- como
saúde e educação – que até a metade da década de 1980 foram executadas diretamente pelo
órgão, foram absorvidas pelo Município. Outras, tais como assistência técnica, continuou sob
a responsabilidade do órgão, embora historicamente não tenha sido bem conduzida. Relatos
dos irrigantes informaram que esta política, apesar do seu caráter autoritário, só existiu, de
fato, na primeira década de implantação do Projeto. A partir da segunda década ela foi se
dando de forma precária, ou seja, apenas quando “surgia” verba era que o DNOCS transferia
o recurso para as cooperativas e, após sua falência, para o Distrito – organização dos
irrigantes – ou até mesmo contratavam empresas por meio de licitação. Assim, como não é
uma política pública consolidada, com recursos garantidos, esta vem sendo desenvolvida de
40 O perímetro está localizado há 14 km de Lagoinha, uma das praias mais bonitas do Ceará e que está incluída
no seu roteiro turístico. Essa proximidade da praia, aliada à proximidade da Capital atrai investidores e
estrangeiros. 41
Alguns relatos dos colonos destacam, de forma irônica, que, a partir dessa época, “quando aparece carro do
DNOCS cheio de técnicos é porque foi liberada diária para eles gastar.” 42 Geralmente, alguns colonos que faziam parte dos cargos diretivos – cooperativa ou Distrito – costumavam
usar os respectivos cargos para se autobeneficiarem.
64
forma fragmentada, descontinuada e à mercê das intenções dos governos, causando, na
maioria das vezes, muito mais danos do que benefícios, além de aumentar o descrédito do
DNOCS perante os colonos.
Vale a pena situar nesse contexto a criação da Associação do Distrito de Irrigação
Curu-Paraipaba no início da década de noventa. Nessa época, a política de irrigação deu
ênfase à emancipação, que já vinha sendo debatida no cenário nacional desde a segunda
metade da década de oitenta. Situada num contexto neoliberal, o raciocínio básico era que o
Estado não poderia mais arcar financeiramente com a manutenção dos perímetros, e que seria
necessário capacitar as organizações dos produtores para assumirem a gestão da infraestrutura
de irrigação de uso comum, independentemente do aporte de recursos federais. Esse momento
do perímetro será discutido a seguir.
1.6.A criação do Distrito: nova tentativa para emancipar o perímetro
Em 1988, fruto de um convênio celebrado entre PRONI/PROINE/IICA, foi
elaborada uma proposta técnico-econômica para formulação de planos de recuperação e
modernização dos perímetros irrigados do DNOCS, cujo objetivo maior era promover a
emancipação dos mesmos. De acordo com este documento, a proposta era que um grupo de
técnicos brasileiros e estrangeiros – formado por profissionais de agronomia, especialistas em
irrigação, economia agrícola e extensão rural – elaborasse um diagnóstico e um plano de
recuperação específico para cada perímetro, inclusive para o Perímetro Curu-Paraipaba.
Embora não tenhamos encontrado, na biblioteca do DNOCS ou na internet,
registro sobre os resultados desse trabalho, é importante frisar que a proposta de emancipação
nele contida foi uma resposta do governo brasileiro à determinação dos organismos
internacionais, ou seja, fruto da política neoliberal coordenada pelos norte-americanos que
impunham como condição básica para a cooperação financeira – através de empréstimos do
Banco Mundial e FMI – a adoção de uma política de redução do papel do Estado, além do
controle fiscal e abertura da economia. (OLIVEIRA, 2003; FRANÇA, 1990)
Apesar dos cenários internacional e nacional convergirem para a política de
emancipação, na prática, ela começou a tomar corpo no perímetro estudado a partir da criação
da Associação do Distrito de Irrigação Curu-Paraipaba. Assim, em 2001, quando participamos
do processo seletivo para fazer parte de uma equipe técnica que prestaria assistência ao
perímetro, durante uma entrevista, o então Diretor de Irrigação do DNOCS disse-nos que os
65
distritos foram criados porque o DNOCS já havia feito de tudo para unir os irrigantes, e a
forma que eles encontraram foi por meio da água. Segundo o diretor, independentemente das
culturas a serem implantadas, todas precisariam de água. Ou seja, caberia ao Distrito fazer
chegar água às unidades parcelares, através da administração, operação e manutenção da
infraestrutura de irrigação de uso comum.
Por outro lado, conforme expressamos anteriormente, o Distrito nasceu no
contexto da chamada emancipação, que previa repassar aos irrigantes, através de suas
organizações, as funções até então exercidas diretamente pelo DNOCS, ou seja, a gestão do
perímetro. Embora já existissem as cooperativas que se ocupavam de algumas atividades
ligadas à gestão do Perímetro, segundo a proposta do IICA, “a maioria dessas cooperativas
não têm atingido um grau de desenvolvimento e capitalização que lhes permita constituir-se
no órgão gerencial das atividades do perímetro” (IICA, 1988, p. 3), o que talvez tenha
contribuído para a criação de uma nova entidade, o Distrito.
Vale lembrar que a implantação de distritos para administrar os perímetros
também era apontada como uma tendência mundial, sendo essa nomenclatura importada dos
Estados Unidos. Além disso, o cooperativismo implantado no perímetro já dava sinais de
decadência, e muitas cooperativas já estavam inadimplentes perante as instituições bancárias e
em relação aos encargos sociais, o que também as impossibilitavam de celebrar convênios
com órgãos públicos, notadamente o DNOCS. Assim, era mais “prático” criar uma nova
entidade, ignorando o fato de que essa “nova” entidade seria composta pelos mesmos
“velhos” associados.
De acordo com a análise documental das atas das assembleias gerais do Distrito,
bem como as das reuniões do seu Conselho Administrativo (órgão formado por irrigantes
eleitos para administrar o perímetro), essa entidade foi criada de forma precária e registrou
baixa participação dos usuários, ou seja, apenas noventa e sete participaram da sua
constituição oficial.
Nesse sentido, as cooperativas, que até então acumulavam algumas atividades
relacionadas à gestão da infraestrutura de uso comum juntamente com o DNOCS, passaram a
atuar apenas no que se refere à parte produtiva, principalmente na comercialização e acesso ao
crédito.
Dessa forma, através do IICA – Instituto Interamericano de Cooperação para a
Agricultura, em 1990, o DNOCS realizou um grande trabalho de mobilização dos irrigantes,
colocando a importância da emancipação, ou seja, que estes “caminhem com seus próprios
66
pés”. O Governo se comprometeu a apoiar, e falava da emancipação como uma necessidade
do momento atual.
Nessa ocasião foram criados os comitês setoriais, formados pelo conjunto de
irrigantes de cada setor do perímetro. Esses comitês teriam como foco principal
[...] analisar, discutir e buscar soluções dos problemas que afetam o sistema
operacional de irrigação, bem como outras questões de interesse da comunidade setorial; [...] cooperar com a fiscalização das utilizações irregulares da infra-
estrutura de irrigação e social de uso comum, bem como zelar pela utilização
racional da água e do solo dos setores; [...] indicar os membros do Conselho de
Representantes. (Art. 43º do Estatuto Social da ADICP)
Também foi formado o Conselho de Representantes, cuja atribuição maior, além
de indicar os componentes do Conselho Administrativo, era fiscalizar os atos da
administração, inclusive, [...] “o acompanhamento das atividades do Conselho de
Administração, discutindo e executando projetos que visem o desenvolvimento do
Perímetro”. (Art. 44º do Estatuto Social da ADICP)
Assim foi constituída a estrutura de funcionamento do Distrito, sendo implantado
também, conforme previa a Lei de Irrigação (Lei nº 6662, de 25.06.1979, regulamentada pelo
Decreto Nº 89.496/84 e mais à frente pelo Decreto Nº 2.178/97), o K², tarifa composta pela
taxa de manutenção (para cobrir as despesas de administração, operação e manutenção da
infraestrutura de irrigação de uso comum) e pela taxa para pagamento da energia de
bombeamento.
Apesar do respaldo legal, e do DNOCS ter tomado todas as providências para a
composição burocrática dessa entidade, na prática o processo de emancipação teve muitas
dificuldades, especialmente na sua fase inicial. De acordo com os respectivos livros de atas
citados, o Conselho Administrativo eleito não tinha condições técnicas e financeiras para
atuar diante dos enormes problemas relacionados ao sucateamento da infraestrutura. Por outro
lado, não havia convênio repassando essas atribuições para o Distrito, conforme destaca ata de
reunião deste conselho seis meses após a constituição do Distrito:
Os demais (diretores) disseram que com a demora da assinatura do contrato e do
convênio, o Distrito não pode operar ou tomar decisões em relação ao que lhes
compete e que isto poderia aumentar o descrédito dos irrigantes, atrapalhando todo o
trabalho de conscientização feito junto aos irrigantes reunidos em comitês. (Ata do
Conselho Administrativo da ADICP, em 28/12/1990).
67
Em janeiro do ano seguinte o DNOCS contrata a empresa Água Solos para
administrar o Perímetro. A análise da ata da diretoria daquele período demonstra a
insatisfação dos irrigantes por entenderem que a referida empresa iria fazer o trabalho que o
Distrito legalmente deveria fazer, contrariando também os princípios do Programa de
Emancipação, que previa passar estas atividades para a organização dos irrigantes.
Essas situações dificultaram o início do processo emancipatório, destacando a
morosidade do DNOCS para efetivar o convênio de transferência de responsabilidades, além
da contradição verificada quando este resolveu contratar uma empresa para executar papel
que foi destinado à organização dos produtores. Não há relatos nesses livros de ata se tal
contratação foi à frente. Por outro lado, em outubro de 1991, o Distrito assinou o primeiro
convênio, cujo objeto destacava:
Este convênio tem por finalidade transferir ao Distrito a execução de serviços e
atividades relativos a administração, operação, manutenção e apoio à produção
agrícola do projeto, bem como conceder, em uso, os bens inerentes à execução
desses serviços e atividades, com vistas a emancipação do Projeto Curu-Paraipaba.
(Convênio PGE 70/91, cláusula primeira)
Em 1992, com apenas vinte e nove irrigantes, outra diretoria do Distrito foi eleita,
sem que tenha sido registrada qualquer de suas realizações. Apenas a partir de setembro de
1994, também com um número inexpressivo de irrigantes (apenas trinta e dois), uma nova
eleição foi realizada no mesmo contexto de dificuldades. A ata, além dos problemas
relacionados à inadimplência, destaca o sucateamento da infraestrutura de uso comum.
Na oportunidade, fizeram uso da palavra vários usuários, destacando-se a
explanação da situação em que se encontra o Distrito de Irrigação, tendo sido
apresentado várias sugestões com o intuito de minimizar a penúria em que se
encontra o sistema de bombeamento d‟água. (Ata de assembléia geral da ADICP,
1994)
Apesar da situação de “penúria” destacada pelos usuários, a nova diretoria apenas
se reuniu oficialmente seis meses depois para discutir os citados problemas. Como solução,
foi apresentada a ideia de pedir apoio ao DNOCS para disponibilizar pessoal para trabalhar na
manutenção e operação do Perímetro. O então coordenador da equipe de fiscalização do
DNOCS no Perímetro ficou com a incumbência de levar esta reivindicação aos superiores. Na
reunião seguinte, este trouxe a resposta de que o órgão não teria como disponibilizar pessoal
68
ou recursos financeiros, cabendo ao Distrito criar estratégias para aumentar a sua arrecadação.
O citado coordenador sugeriu que o distrito contratasse um agrônomo – ex-funcionário da
empresa Água Solos – para gerenciar o Projeto. Pressionado a cumprir seu papel de
administrador do projeto, o Conselho Administrativo resolveu criar uma taxa extra, elevando
a taxa de administração e manutenção para R$10,20 (dez reais e vinte centavos).
Essas providências, contudo, pareceram não surtir os efeitos esperados e o Distrito
não conseguiu reverter a situação de inadimplência e, consequentemente, resolver o problema
do sucateamento da infraestrutura de uso comum, que apenas se agravou, conforme destacado
na ata de reunião da diretoria, que contou com a presença do coordenador do DNOCS no
Perímetro, além do Diretor Regional do órgão e o então procurador:
A presidente do Distrito [...] falou aos presentes das dificuldades constantes do
Distrito no tocante a falta de recursos e de pessoal especializado para operar e
manter o sistema de irrigação, bem como da grande inadimplência dos irrigantes
quanto ao pagamento da taxa de energia para bombeamento d‟água, da taxa de
manutenção e taxa administrativa. [...] o Distrito não tinha meios e autoridade
suficiente para sanar os problemas, notadamente quanto a inadimplência dos
usuários, estando muitos deles com atrasos superiores a seis meses e alguns com lotes em completo abandono. [...] A presidente alertou, mais uma vez, que, de
acordo com aquele convênio a carga de trabalho para o Distrito era imensa e que
sem a ajuda financeira e apoio técnico do DNOCS, tornava-se praticamente inviável.
(Ata de reunião do Conselho Administrativo da ADICP, em 12.05.1995)
Apesar dos apelos da diretoria, o DNOCS alegou não possuir recursos financeiros
e nem pessoal de nível superior disponível para atuar no Distrito. Por outro lado, é válido
destacar que o DNOCS vinha disponibilizando todo o pessoal operacional, ou seja, os
operadores de bombas para as estações de bombeamento, além de pessoal administrativo e os
práticos que atuavam na equipe de manutenção. O que o Conselho Administrativo do Distrito
reivindicava naquele momento era a disponibilidade de profissionais de nível superior, tanto
para gerenciar o perímetro quanto para atuar na coordenação dos trabalhos da equipe de
manutenção, que carecia de atuação mais técnica. Além disso, a taxa de manutenção
arrecadada, segundo eles, não era compatível com as despesas do perímetro, carecendo de
aporte financeiro do Governo.
Nesse contexto, conforme já destacamos, o processo emancipatório do Perímetro
não foi conduzido de forma planejada e nem de conformidade com o que preconizava a
própria política de irrigação. De acordo com a legislação, o processo de emancipação deve
ocorrer [...] quando constatados o término das obras de infra-estrutura indispensável, o
assentamento de, pelo menos, 2/3 (dois terços) dos irrigantes e a comunidade esteja social e
69
economicamente apta a se desenvolver, dispondo de uma organização interna que lhe
assegure vida administrativa própria e atividades comerciais autônomas. (Inciso 2º do
DECRETO Nº 89.496/84)
Dessa forma, apesar da infraestrutura estar implantada e os colonos devidamente
assentados, conforme as análises documentais e depoimentos coletados, as suas entidades
associativas ainda não estavam plenamente organizadas. Ou melhor, o Distrito ainda não
estava preparado para assumir a gestão do Perímetro, pois não possuía auto-suficiência
técnica, econômica e administrativa. Inclusive é difícil entender como o DNOCS esperava
que uma entidade praticamente criada “a toque de caixa”, com baixa participação dos
irrigantes – percebida pela baixa frequência nas assembléias – pudesse se autogerir em tão
pouco espaço de tempo. A impressão que se tem é que o DNOCS queria, a todo custo, se
livrar do fardo que se tornou o Perímetro, já que não havia nem recursos financeiros nem
interesse em investir no mesmo.
Vale destacar que essa postura do órgão, àquela época, vinha de encontro ao que
preconizava o próprio convênio celebrado com o Distrito, no qual foram destacadas
obrigações que o DNOCS não cumpriu ou cumpriu parcialmente, sobretudo as seguintes:
Assumir responsabilidades financeira, de acordo com as suas disponibilidades e conveniência administrativa, pelas obras de recuperação da infra-estrutura de
irrigação de uso comum, relacionada no anexo deste convênio. (Convênio PGE
70/91, cláusula segunda)
Por outro lado, é importante ressaltar que, como a citada cláusula diz, a
recuperação da infraestrutura está subordinada à disponibilidade financeira e conveniência
administrativa, o que sempre deixou o órgão em posição confortável frente aos problemas
estruturais do Perímetro. Ou melhor, se não há orçamento federal, não há responsabilidade da
autarquia perante a organização dos produtores.
Além disso, as organizações que tratavam da parte produtiva ainda estavam em
processo de falência e já havia muitos lotes abandonados, sem falar nos altos índices de
inadimplência, conforme destacado nos relatos das assembleias e reuniões. De um modo
geral, os irrigantes, naquela época, não queriam a emancipação, pois eles alegavam que “se
estava ruim com a precária atuação do DNOCS, ficaria ainda pior sem o mesmo”. Muitos se
negavam a pagar as taxas de manutenção e energia de bombeamento, pois acreditavam que
era obrigação do DNOCS.
70
Os irrigantes temem a emancipação porque eles reclamam do DNOCS, mas hoje
ainda tem alguém a quem eles culpar. Com a emancipação eles não terão mais
ninguém para responsabilizar. (Colaço, ex-presidente do Distrito)
Embora o depoimento demonstre que, não obstante todos os problemas
relacionados à atuação ou má atuação do DNOCS, este funciona como uma espécie de cortina
que faz com que o irrigante não enxergue sua capacidade ou não assuma suas
responsabilidades perante a gestão do Perímetro. Contudo, o fato é que a condução do
processo de emancipação vem se dando de forma equivocada e capenga.
Eu participei das reuniões no início da formação do Distrito. A idéia era passar tudo
para os irrigantes. Eles - o DNOCS - querem, mas de fato parece que eles não
querem soltar. Ekes não davam as condições. O Distrito não tinha nenhuma
estrutura. Era uns birôs velhos do DNOCS, máquinas de escrever precárias. (Colaço, ex-presidente do Distrito)
Vale ressaltar que, de acordo com Relatório do Tribunal de Contas da União –
cujo objetivo era conhecer os projetos de irrigação do DNOCS, a sua sistemática de atuação,
critérios de seleção, bem como os modelos de irrigação adotados pelo órgão – historicamente,
a atuação do DNOCS, no que se refere à emancipação dos perímetros, não se deu de forma
eficaz:
Até meados dos anos 80, os perímetros jurisdicionados pelo DNOCS conviveram com um gerenciamento do tipo misto, no qual grande parte das funções cabia ao
órgão, enquanto as organizações de produtores tinham pequena ou nenhuma
participação no processo decisório dos perímetros. Por força da própria Lei de
Irrigação, foi estimulada a participação dos irrigantes e de suas organizações na
gestão dos perímetros. O DNOCS iniciou um tímido programa de emancipação de
seus perímetros em meados de 1983, que consistiu, fundamentalmente, na tentativa
de romper com o paternalismo do órgão para com as organizações. O programa foi
ineficaz, pois além da falta de recursos, não desenvolveu ações integradas no âmbito
do próprio DNOCS, fazendo com que a Diretoria de Irrigação (DIRGA) o operasse e
desenvolvesse em um contexto específico, sem considerar todas as variáveis
necessárias para que fosse efetivamente implementado. Com o advento do Programa de Irrigação do Nordeste - PROINE, em 1986, deu-se a segunda tentativa do
DNOCS em prol da emancipação dos perímetros. Embora os recursos financeiros
alocados tenham sido satisfatórios, o órgão não conseguiu alcançar as metas
programadas. (Relatório TCU, 2000, p. 8)
Em termos de política de irrigação, a partir de 1995, em nível nacional, se discute
o Projeto Novo Modelo de Irrigação:
[...] os objetivos específicos do projeto eram apresentar políticas e estratégias que
viabilizem: estimular o investimento privado em todas as fases do agronegócio da
irrigação, orientar a produção para as oportunidades de mercado e redirecionar a
participação do governo na atividade, priorizando os papéis de indução, orientação,
regulação e promoção. (Ministério da Integração Nacional, 2008, p. 12)
71
De acordo com o Relatório do TCU (2000), esse novo modelo foi
desencadeado a partir de inúmeras críticas dirigidas ao modelo de irrigação adotado pelo
Estado desde a década de 1970 que, segundo Relatório da Prestação de Contas, (TCU, 1999)
estava esgotado. Ao Estado, nesse novo momento, cabiam outras atribuições:
Com o Novo Modelo de Irrigação, não é demais lembrar, o Estado deverá atuar em
duas frentes, a primeira em projetos em operação, onde deverá ser realizada uma
“reengenharia” a fim de adequá-los às suas diretrizes para fins de emancipação
desses perímetros, transferindo às organizações de produtores de cada Projeto a
responsabilidade pela administração, operação e manutenção dos mesmos. É a
proposta do Programa de Emancipação- PROEMA, através do qual os irrigantes e as
empresas assumirão a condução dos seus negócios, sem tutela e sem paternalismo,
como deve ser em qualquer atividade econômica. Na segunda frente, deverá atuar nos perímetros em implantação ou a iniciar, por meio de investimentos em infra-
estrutura básica para o funcionamento do perímetro e, ainda, disponibilizar créditos
para investimentos em infra-estrutura individual a fim de viabilizar economicamente
o desenvolvimento do projeto, com participação do setor privado no processo após o
investimento inicial na infra-estrutura realizado pelo poder público. (Relatório TCU,
2000, p. 12)
Assim, alinhada a esta política e na tentativa de ampliar o desempenho dos
projetos públicos e, no fundo, muito mais interessado em diminuir as responsabilidades do
Estado, principalmente no que se refere à gestão e ao aporte de recursos financeiros, fica
instituído o PROEMA – Programa de Emancipação. Esse programa – a terceira tentativa do
DNOCS para concretizar a emancipação – previa a transferência da gestão do perímetro para
a organização dos produtores, tornando-os, como num “passe de mágica”, independentes
administrativa e financeiramente. Esse modelo administrativo, no caso do Perímetro Curu-
Paraipaba, não obteve êxito por diversas questões, sendo a principal delas a descontinuidade
administrativa43
.
Por outro lado, voltando à análise documental do perímetro – notadamente os
livros de atas já citados – entre os anos de 1995 a 1998 percebemos uma espécie de vazio
histórico, ou seja, não há registros da atuação do Conselho Administrativo ou realização de
assembleias. Quando procuramos o Distrito encontramos muitos documentos deste período
que ajudam a elucidar esse suposto vácuo.
43 Resgatando uma publicação do DNOCS do final da década de 40, de autoria de um ex- dirigente do órgão,
Engº Agrônomo José Guimarães Duque, observamos que a descontinuidade administrativa já era apontada como
um grande gargalo para a expansão da agricultura irrigada: [...] resulta que os programas anuais são alterados e
a descontinuidade administrativa causa a perda de tempo, de estudos e de verbas. (DUQUE, 1973, p. 9) Isso
ainda não mudou.
72
Através da portaria “84 DG/PGE”, de três de julho de 1995, o DNOCS rescindiu o
convênio anterior e, teoricamente, assumiu a gestão do perímetro juntamente com todas as
atividades que eram, em termos, realizadas pelo Distrito, ou seja, diz o documento:
“considerando que os referidos documentos evidenciam que o Distrito de Irrigação Curu-
Paraipaba não vem cumprindo com proficiência as condições pactuadas no aludido convênio
PGE 70/91, resultando caracterizada a sua inadimplência, por ofensa ao item1, 2, 3 e 4,
todos da cláusula segunda, II” (Portaria nº84 DG/PGE, 1995)
De acordo com ex-presidente do Distrito, apesar do DNOCS ter assumido
legalmente a gestão do perímetro, na prática, continuou a mesma situação, ou melhor, ficou
pior, pois o Distrito continuou administrando, sendo que agora irregularmente:
Eles acusaram que não estava sendo executadas as cláusulas do convênio. A meu ver
muito mais pela falta de condições do DNOCS do que qualquer outra coisa. Porque
a parte dele ele também não cumpriu. Só que ele – DNOCS – faz isso, retoma a
administração, mas a presidente do Distrito continua lá, fazendo um papel irregular.
Recebia as taxas, energia, fazendo cobrança, quando a responsabilidade deveria ser
do DNOCS. Eles deixaram correr frouxo. (Colaço, ex-presidente do Distrito)
Além disso, a inadimplência era muito grande devido, principalmente, à falta de
transparência e desorganização técnico-administrativa da entidade organizativa dos irrigantes.
Segundo depoimento do Sr. Colaço, ex-presidente do Distrito, nessa época, essa entidade era
uma desordem. Os funcionários do DNOCS recebiam gratificação, apesar de serem
funcionários públicos. Segundo o mesmo, houve desvios e o irrigante não se sentia seguro em
pagar as taxas, chegando a pagar duas vezes pela mesma conta. O Distrito estava sem
credibilidade perante os irrigantes, além de inadimplente perante o DNOCS.
A partir dessa época, já no contexto do PROEMA, verificamos o registro das
atividades do Distrito, através da eleição de nova diretoria – tendo à frente, a mesma
presidenta eleita em 1994 e que ficou à frente da entidade até 1999 –, bem como a proposta
para assinatura de novo convênio de delegação de atribuições, por parte do DNOCS, à citada
organização dos produtores.
O registro da ata aponta que os irrigantes presentes aprovaram a assinatura
do convênio (que de fato só foi assinado no ano seguinte e noutra administração) desde que o
DNOCS fizesse os reparos necessários ao bom funcionamento da irrigação. Também se
registrou nessa época a aprovação de nova taxa de manutenção para tentar garantir a operação
e manutenção do Perímetro.
73
Nessa época, a CIVAC – Cooperativa dos Irrigantes do Vale do Curu – já
estava em decadência e as singulares já estavam fechadas, configurando-se numa época crítica
para os irrigantes do perímetro. Por outra via, o Distrito continuava desorganizado, gerando
descontentamento por parte de muitos associados. O registro da assembléia de julho de 1998
destaca que os irrigantes continuavam aguardando celebração de parceria para a recuperação
do Perímetro e informa que um grupo de irrigantes, liderado pelo Sr. José Ribamar Colaço,
exigiu da administração do Distrito, uma cópia do demonstrativo contábil.
Vale frisar que a coordenação desse grupo era capitaneada por irrigantes cujos
lotes eram considerados microempresas. O depoimento a seguir destaca como foi esse
processo:
Havia uma disciplina muito grande até 84. Com a democratização a coisa ficou mais
relaxada. Então até 84 não se podia vender os lotes. Se o irrigante queria sair do
projeto ele ia na gerência e expressava sua vontade. O DNOCS então fazia uma
avaliação do seu lote, indenizava o colono e selecionava outro irrigante. Para este
era repassado o lote e o débito. Mas as coisas foram ficando mais difícil, o DNOCS
já não tinha recursos para indenizar e chegou a dificultar essas vendas. Daí o Cimas
– diretor do DNOCS – disse numa reunião que quem quisesse sair podia sair. Ele não esperava que aquelas palavras dele fosse um sinal que muita gente tava
esperando. A partir daí começaram as vendas, mas a situação ficou sem freio. Houve
uma saída enorme de irrigantes (especialmente dos irrigantes da 2ª etapa) até eles
fecharem novamente. Como eu e muitos outros não tinha perfil porque não
trabalhávamos a terra, eles encontraram uma maneira para que todos que entraram
nesse sistema constituíssem empresas e assinarem contrato de concessão com o
DNOCS, o que já era permitido pela lei. (Colaço, ex-presidente do distrito)
Assim, eles “compraram” os lotes de colonos que desistiram de produzir por
motivos diversos e acabaram contribuindo para um novo momento do Perímetro, ou seja,
levaram o Distrito a uma atuação mais profissional, organizada e menos dependente do
DNOCS no que se refere à tomada de decisões.
Nesse contexto, o movimento liderado por José Ribamar Colaço assumiu
grandes proporções. Eles faziam reuniões semanais, contando com a presença de quase cem
colonos, conforme registros do próprio líder. Este grupo denunciou as irregularidades da
administração do Distrito e pressionou o DNOCS para encaminhar assessoria para reorganizar
a entidade. A autarquia decidiu encaminhar uma consultora técnica do IICA para coordenar a
reorganização do Distrito. Esse trabalho promoveu diversas reuniões nos setores e reformulou
os Comitês Setoriais e o Conselho de Representantes. Este último, em fevereiro de 1999
elegeu uma nova diretoria, cujo presidente foi o Sr. Colaço, grande defensor da moralidade e
transparência na gestão do Distrito, que iniciava uma nova fase.
74
Depois de empossada, a diretoria eleita fez um minucioso trabalho de
reorganização e moralização da entidade: os funcionários da administração anterior foram
demitidos e um novo gerente, além de contador, tesoureira e canaleiro foram contratados. As
gratificações pagas aos funcionários do DNOCS foram suspensas. Foi feito levantamento das
dívidas dos irrigantes perante o Distrito e estes receberam cobranças. A diretoria, portanto,
passou a atuar de forma mais profissional e acabou contratando uma auditoria para analisar as
contas da diretoria anterior. Um ano depois foi convocada uma assembleia geral para aprovar
ou não a prestação de contas da diretoria anterior, sendo que as referidas foram desaprovadas
por unanimidade, deflagrando um processo judicial que perdura até os dias atuais.
Da parte do DNOCS foi contratada – mediante processo licitatório aberto em
agosto de noventa e oito – uma empresa para recuperar a infraestrutura de irrigação do
perímetro, sendo que o trabalho foi fiscalizado pelo Diretor de Operação e Manutenção do
Distrito. Posteriormente, um relatório do Distrito apontou que os trabalhos contratados não
foram bem executados. Segundo o presidente da época, eles denunciaram, mas o caso foi
abafado.
Nessa época já havia sido assinado o novo convênio, o “PGE 04/99”. A respectiva
diretoria encaminhou ao DNOCS um documento, datado de “03 de 12 de 1999”, apontando as
deficiências do sistema de irrigação, além de denúncias de construções irregulares ao longo
do perímetro. Apesar dos esforços, nenhuma decisão efetiva foi tomada pelo DNOCS e sua
credibilidade perante os irrigantes continuou declinando.
Recentemente foi realizada recuperação da infra-estrutura das estações de
bombeamento através da empresa ganhadora da licitação referente, quando
constatou-se que as obras ali realizadas, [...] não tendo sido seguida as
especificações orçamentárias correspondentes, [...] num flagrante desrespeito aos
princípios elementares da construção civil. Sugerimos uma fiscalização eficaz como
forma de regularizar [...]; áreas ditas mortas foram e estão sendo
indiscriminadamente invadidas [...]; o Distrito detém hoje um elevado índice de
construções irregulares [...]; os bens imóveis encontram-se ocupados [...]; não há
como negar o estado de sucateamento como recebemos os equipamentos
hidráulicos, reservatórios, canais, tubulações, veículos e quaisquer outras formas de
bens agora sob a guarda desse Distrito [...]. (Ofício do Distrito, de 03.12.1999)
Essa situação foi se arrastando até meados dos anos 2000. Assim, o PROEMA, no
perímetro estudado, não obteve os resultados esperados, ou seja, não proporcionou a
emancipação. Além disso, apesar do DNOCS reconhecer (...) “ter havido muitas distorções
na implantação dos perímetros no sentido de que se investiu muito na transformação física do
meio e pouquíssimos na educação e capacitação do homem” (TCU, 2000, p.9), o citado
75
programa previa um conjunto de ações que, na prática, conforme discussão apresentada,
aconteceu de forma precária e desorganizada.
Por outro lado, todas essas dificuldades e fatos acabaram incorporados pelos
irrigantes e são reproduzidas até hoje no cotidiano das famílias que compõem esse espaço
rural, deixando marcas que podem ser percebidas claramente na dinâmica socializante das
famílias e das organizações associativas do projeto.
Segundo o respectivo relatório, [...] “A perspectiva do DNOCS para os próximos
três anos (2000-2003) é recuperar a infra-estrutura de irrigação de uso comum de todos os
perímetros, efetuar a regularização fundiária e promover a capacitação, com ênfase especial
na assistência gerencial técnica e extensão rural”. (TCU, 2000, p. 9) Essas ações, excetuando
parte do terceiro item, de fato, nunca aconteceram no perímetro estudado.
Os primeiros três anos do novo século também foram difíceis para os irrigantes do
perímetro. O DNOCS, cada vez mais desacreditado, através de termo aditivo ao convênio
PGE 04/99, repassou ao Distrito recursos para a contratação de uma equipe técnica. Conforme
detalharemos mais adiante, essa equipe não teve condições objetivas de cumprir com o seu
papel, tanto pela quantidade de técnicos como pela falta de estrutura básica. O DNOCS
também não cumpriu com os outros alicerces do PROEMA: recuperação da infraestrutura,
regularização fundiária e acesso ao crédito.
Em 2003 assumiu uma nova diretoria e, um ano depois, o Ministério da
Integração Nacional, na tentativa de, mais uma vez, consolidar o processo de transferência da
gestão44
, realizou um grande diagnóstico para avaliar a situação atual dos principais
perímetros públicos, identificando os diversos problemas, demandas e formulando, inclusive,
recomendações que, uma vez implementadas, consolidariam a emancipação dos mesmos.
Naquele momento a recomendação era que não fossem iniciados novos projetos sem que os
antigos estivessem consolidados.
Para tanto, um plano de ação foi discutido com as organizações dos produtores,
metas foram estabelecidas, responsabilidades foram compartilhadas. O Governo se
responsabilizaria em recuperar a infraestrutura de uso comum, garantir assistência técnica,
crédito e promover a regularização fundiária, enquanto os irrigantes deveriam implantar o
chamado K2 sustentável45
para, gradativamente, irem assumindo as responsabilidades pela
gestão, operação e manutenção do projeto, além de diminuírem a dependência do Governo.
44 O antigo PROEMA passou a ser intitulado como PTG – Programa de Transferência da Gestão. 45 A Lei de Irrigação especifica o que é o K2, que corresponde aos recursos necessários para administrar, operar
e manter a infraestrutura de irrigação de uso comum, o qual é determinado através da elaboração de um Plano
76
Apesar do governo ter disponibilizado recursos da ordem de cerca de
R$5.000.000,00 (cinco milhões) ao longo dos anos 2005, 2006 e 2007 para recuperar a
infraestrutura, além da contratação de gerentes e custear parte das despesas de administração,
operação e manutenção, esse programa também não foi consolidado e, mais uma vez, o
Estado não fez a sua parte, conforme destaca o depoimento do Sr. Washington, ex-presidente
do Distrito de Paraipaba e atual presidente da FAPID – Federação de Apoio às Organizações
de Produtores dos Perímetros Públicos do DNOCS:
O Governo nos convidou para participar do programa de transferência da gestão.
Nos fez várias promessas e os irrigantes aceitaram o desafio. Agora na hora de dizer
que tinha acabado ele não avisou a ninguém. E mais uma vez ficamos no prejuízo.
(Washington, agricultor, presidente da FAPID)
Segundo referido dirigente, o DNOCS não cumpriu sua parte quando deixou os
irrigantes sem assistência técnica, uma vez que o convênio com o Estado, iniciado em outubro
de 2005, acabou em 2007. Além disso, a política para facilitar o acesso ao crédito não
aconteceu e os recursos disponibilizados para a recuperação da infraestrutura também não
foram suficientes, conforme será abordado mais à frente.
É importante frisar que nessa época também foram feitos vários estudos para
discutir o novo modelo de gestão da irrigação, onde foram recomendados vários princípios,
dentre os quais merece destaque: “ênfase no agronegócio (mudança de mentalidade e de
critérios de seleção de irrigantes; [...] foco no mercado; apelo ambiental no marketing [...];
integração das esferas federais, estaduais e municipais” (Ministério da Integração Nacional,
2008, p. 13)
Essa nova visão do Estado frente à irrigação pública apresentou, na prática, várias
distorções, que afetam diretamente os agricultores que foram assentados a partir de uma
concepção própria e de um momento histórico, conjuntural e político específico.
Num primeiro momento, é possível afirmar que ela contrasta com a atual –
embora antiga – Lei de Irrigação46
, cuja base principal foi pautada na ênfase da função social
para a implantação de projetos públicos. Essa característica direciona o marco legal da
Operativo Anual. Este plano deve conter todos os serviços necessários para assegurar a irrigação das unidades
parcelares e garantir a produção agrícola. 46
O primeiro ordenamento jurídico entrou em vigor em 1979, com a publicação da Lei Nº 6.662, regulamentada
em 1984, pelo Decreto Nº 89.496. Em 1993 foi publicada a Lei N 8.657, que acrescenta parágrafos ao artigo 27º
da Lei de Irrigação. Atualmente tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei Nº 6.381/2005. (Ministério da
Integração Nacional, 2008)
77
política de irrigação, onde é de responsabilidade do Poder Executivo Federal estabelecer as
suas diretrizes, sendo ele o gestor dessa política.
Vale ressaltar que os críticos dessa política argumentam que mesmo o novo
modelo de irrigação – contemplado no projeto de lei que tramita no Congresso Nacional (ver
nota anterior) – apesar de criar a possibilidade de gestão de perímetros públicos mediante
concessão e parcerias público-privadas, continua priorizando a atuação do setor público para a
implantação de sistemas públicos de irrigação e deixando no anonimato a agricultura irrigada
de um modo geral, [...] “ignora que o futuro não está neste tipo de projeto, mas sim no
decidido fomento à participação da iniciativa privada no crescimento da produção irrigada.”
(Ministério da Integração Nacional, 2008, p. 19 - 20)
Sem entrar nesse mérito da importância da iniciativa privada para o agronegócio
da irrigação ou mesmo sobre a “invisibilidade” desse setor para o Estado, o que temos na
atualidade é um quadro de descaso do Governo para com os produtores irrigantes dos
perímetros públicos. A política atual do Governo privilegia a construção de novos projetos
(ver PAC 1 e PAC 2) em detrimento das providências necessárias47
à autossustentabilidade
desses contornos irrigados.
A esse respeito importa citar alguns exemplos ilustrativos: contrariando
determinações do Plano Nacional de Irrigação e Drenagem (PLANIRD), elaborado nos anos
2000 e 2001, no Ceará estão sendo ampliados dois projetos públicos – Baixo Acaraú e
Tabuleiro de Russas – sem que suas áreas atuais estejam devidamente ocupadas. Atualmente
funciona menos de 30% da sua área total implantada48
.
Por outro lado, se o Estado não modernizou sua legislação, na prática, os novos
perímetros já estão adotando um modelo empresarial: geralmente quando se desapropria uma
determinada área para a implantação de um perímetro público uma pequena área é destinada a
reassentados49
e as demais são encaminhadas para licitação.
Nesse processo licitatório as áreas são divididas entre pequenos produtores
qualificados, técnicos e empresários, os quais concorrem com propostas que avaliam a
experiência e capacidade financeira para implantar as culturas. As áreas também são maiores:
47 Regularização fundiária, assistência técnica, acesso ao crédito e recuperação da infraestrutura de uso comum
são alguns exemplos dessas providências que deveriam ser implementadas pelo Estado. 48 Dados do próprio DNOCS e confirmados pelos respectivos Distritos de irrigação. 49 Geralmente, pequenos agricultores da própria região – posseiros ou caseiros dos ex-proprietários – que têm o
direito de permanecer na terra, desde que de acordo com os novos padrões de funcionamento do projeto. Esses
agricultores, por inúmeras razões, acabam sendo “engolidos” pelos empresários que arrendam suas terras, por
não terem condições de produzir – falta de crédito e assistência técnica, por exemplo – ou acabam endividados
pela falta de experiência e de assistência técnica adequada. O primeiro caso aconteceu no Tabuleiro de Russa e o
segundo no Baixo Acaraú.
78
enquanto que no Curu-Paraipaba um lote tem cerca de 3,72 ha, no Baixo Acaraú são 8 ha,
portanto com maior possibilidade de ser viável economicamente. O essencial do certame é
afunilar para que fiquem apenas os mais aptos a arcarem com os custos de administração,
operação e manutenção do projeto.
Sem fazer uma análise comparativa entre o modelo de política pública para os
novos e antigos projetos de irrigação, queremos chamar atenção para o fato de que um projeto
como o de Paraipaba – sem poder enterrar o seu passado – é levado a conviver e a dialogar
com essa nova conjuntura, cheia de contradições e controvérsias.
Em primeiro lugar, como aponta o documento em análise, não há uma política
pública claramente definida que abranja a agricultura irrigada como um todo. (Ministério da
Integração Nacional, 2008) E, embora a legislação discipline a atuação do Governo, mesmo
que esteja defasada, as ações não acontecem de forma coordenada, contínua e compatível com
a realidade dos projetos.
Outra questão central é que um irrigante do projeto estudado pode ser classificado
como agricultor familiar50
, cujas políticas, em nível federal, são conduzidas pelo Ministério
do Desenvolvimento Agrário51
. Contudo, por estar assentado num perímetro conduzido pela
política de irrigação, este agricultor está vinculado ao DNOCS e, em nível federal, ao
Ministério da Integração Nacional, cujas ações são mais voltadas para o agronegócio
empresarial e, por conseguinte, desconhecendo os dilemas próprios da agricultura familiar,
como a questão da sucessão, por exemplo, e tantas outras já enfatizadas.
Essas contradições servem de pano de fundo para a realização deste estudo sobre
os dilemas da juventude do Perímetro Irrigado Curu-Paraipaba, um público que não é sequer
mencionado nos documentos que tratam sobre a agricultura irrigada no Brasil ou na política
de irrigação, mas que existe, tem demanda própria e o atendimento da mesma é essencial para
garantir a continuidade da agricultura irrigada no projeto em análise.
A partir do entendimento dessas contradições, e sem fugir delas, analisamos a
seguir as condições atuais em que sobrevivem as famílias do projeto, inclusive tentando
desvendar como essas situações concretas interferem no processo de descontinuidade da
juventude nas atividades agrícolas do Perímetro.
50 Conforme ressaltado anteriormente, a maioria está enquadrada nos critérios definidos pelo PRONAF –
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar. 51 O estudo também cita que o MDA, através da Secretaria da Agricultura Familiar (SAF), tem no agricultor
familiar o objeto de sua política. Para ele, trata-se de filosofias distintas, embora não se tratem de enfoques
excludentes (Ministério da Integração Nacional, 2008)
79
CAPÍTULO 2 - RUPTURAS NO PROCESSO DE SUCESSÃO HEREDITÁRIA:
IMPASSES E DESAFIOS
“Quem serão os responsáveis pela gestão da agricultura e do meio rural daqui pra frente?
Deixar que as próprias unidades familiares respondam a esta questão é perder a
oportunidade de utilizar socialmente vocações e capacidades profissionais e, sobretudo,
encarar como fatalidade irredutível a desertificação social, econômica e cultural que
ameaçam tantas regiões brasileiras hoje”.
Abramovay
Este capítulo tem o propósito de refletir sobre os dilemas de sucessão na
agricultura familiar, situando e confrontando o resultado de algumas pesquisas relevantes
sobre o tema – ABRAMOVAY, 1998; BRUMER, 2007; CARNEIRO, 2008; WEISHEIMER,
2009; ABRAMO, 2008; SIQUEIRA, 2004 e CASTRO, 2005 – com a realidade do perímetro,
estudado através dos resultados da pesquisa, Perímetro Irrigado Versão 32 anos.
Com esse intuito, apresentamos uma reflexão sobre como as condições objetivas
de infraestrutura de irrigação de uso comum e parcelar do Perímetro, bem como os aspectos
relacionados à produção e comercialização que podem interferir ou influenciar o processo
sucessório.
2.1. Condicionantes que interferem na sucessão hereditária no Perímetro
Conforme destacado anteriormente, o Perímetro Irrigado Curu-Paraipaba foi
implantado há cerca de 35 anos. Por conta de uma ineficiente política de manutenção dos
equipamentos de irrigação, sua estrutura possui uma série de limitações que dificulta seu pleno
funcionamento, refletindo na reprodução social das famílias e, inclusive, acaba afastando sua
juventude, que deixa de percebê-lo como uma perspectiva de futuro profissional viável e
seguro.
O perímetro foi implantado a partir de uma infraestrutura de uso comum coletiva,
constituída por oito estações de bombeamento devidamente equipadas com conjuntos motores
bombas, sendo uma principal, que capta a água diretamente do Rio Curu e a transporta para as
estações secundárias – através de adutoras e canais, que, por sua vez, faz chegar a água que
80
irriga as culturas na unidade parcelar. Além dessas estações, existem canais primários e
secundários, adutoras, barragens de derivação, sifões, seis reservatórios de compensação, redes
viárias, redes de drenagem e tubulações de ferro fundido e cimento amianto de diâmetros
diversos. (VER ANEXO G)
Para manter esse complexo sistema operando plenamente, a Lei de Irrigação (Lei
6.662/79) prescreve que os custos de administração, operação e manutenção sejam divididos
entre os usuários, mediante o pagamento do K² fixo.52
Além dessa tarifa, existem as despesas
referentes à energia de bombeamento. Com isso, visando absorver todo esse custo, é
imprescindível que as culturas implantadas sejam lucrativas, ou seja, capazes de manter o
Perímetro e também garantir a sobrevivência da família.
Entretanto, essas culturas – cuja principal é o coco – não estão apresentando
índices considerados economicamente rentáveis. Vários motivos concorrem para a ineficiência
econômica do Perímetro, sendo que a falta de recursos para realizar os tratos culturais
adequados53
e a falta de assistência técnica têm merecido maior destaque. Não se pode deixar
de fazer o registro de que os valores definidos nas assembleias dos irrigantes, para manter
esses custos, estão sempre aquém das reais necessidades, gerando uma dependência de
liberação de recursos complementares do Governo Federal. Este último, por sua vez, não tem
uma política pública voltada à autogestão dos perímetros irrigados, conforme já destacado.
Dessa forma, esses agricultores convivem com o crescente sucateamento da
infraestrutura de uso comum, apenas realizando os serviços mais urgentes para não deixá-lo
parar, conforme enfatizado no depoimento do ex-presidente do Distrito:
Esse sucateamento desestimula o irrigante porque a quebradeira é constante e por sua
vez encarece a manutenção do dia-a-dia, diminuindo a produção. Existe dois
entendimentos. Nós que fazemos o Distrito nós temos o entendimento de que o
DNOCS não mandou recursos para recuperar a infra-estrutura, mas sim tocar uma
manutenção que por sua vez tava abandonada há dez anos. (Washington, ex-
presidente do Distrito)
Com isso, segundo depoimento em destaque, esse sucateamento interfere na
capacidade produtiva desse contorno irrigado, pois como não são feitos os serviços de
manutenção e recuperação adequadamente, além de não haver repasse de recursos públicos
52 A Lei de Irrigação determina a fixação do K², que é dividido entre fixo e variável. O fixo refere-se aos custos
de administração, operação e manutenção da infraestrutura de irrigação de uso comum, enquanto o variável
refere-se à energia de bombeamento. 53 Para garantir uma boa produção é necessário que o irrigante faça a adubação adequada, o controle de pragas e
doenças contínuo, bem como irrigar na quantidade ideal e no período certo.
81
para a modernização do próprio sistema de irrigação, a água bombeada também não é
suficiente para manter as culturas implantadas em bons níveis de produtividade e nem para
diversificar ou ampliar possíveis áreas. Em termos práticos, o Distrito disponibiliza, para o
produtor, dez horas de irrigação três vezes por semana e em dias alternados –
independentemente da cultura e de acordo com a disponibilidade hídrica dos reservatórios –
enquanto tecnicamente o ideal seria calcular a necessidade hídrica das culturas e viabilizar um
sistema de irrigação diário.
Cabe frisar, ainda, que o Perímetro foi planejado originalmente para ser operado
através de irrigação por aspersão convencional54
e, somente nos últimos dez anos, com o
advento de novas tecnologias, é que a irrigação localizada – sistema mais eficiente – começou
a ser implantada. Assim, em linhas gerais, de acordo com “Pesquisa Versão 32 anos”, 47,17%
da área total do Perímetro (dentre lotes e quintais) possuem irrigação localizada.
Por outro lado, também é importante frisar que esta tecnologia foi implantada com
recursos próprios e a maioria delas sem o devido acompanhamento técnico. Com isso, a
adoção dessa tecnologia não vem apresentando todos os benefícios esperados – maior
eficiência do sistema e, consequentemente, menor desperdício d‟água. Acrescente-se que
outro grande problema nesse entorno está associado à baixa pressão da entrada de água nos
lotes e quintais. Isso ocorre, geralmente, em virtude da adulteração do sistema de irrigação das
unidades parcelares (uso irregular por parte dos irrigantes), além dos vazamentos e do próprio
desgaste do sistema de irrigação de uso comum.
Assim, a pesquisa demonstrou a insatisfação, por parte de grande número dos
usuários, em relação à qualidade da pressão que vem chegando aos lotes. De acordo com os
resultados do estudo “Marco Zero 25” (2001), apenas 10% consideravam a pressão péssima.
Atualmente esse número saltou para 15,3%. Aqueles que consideravam a pressão como boa
caíram de 48,4% para 36,1%. Por outro lado, registra-se que em 2001 apenas 4,2% dos
entrevistados consideravam a pressão ótima e hoje esse percentual saltou para 6,0%, embora
não seja um aumento percentual tão significativo.
Esse número de unidades agrícolas com problema de pressão limita a atividade
exploratória agrícola e reduz a produtividade, deixando o colono com dificuldades para arcar
com os pagamentos de suas taxas junto ao Distrito.
54
Método de irrigação cuja aplicação de água no solo resulta da fragmentação de um jato de água lançado sob
pressão por meio de bocais de aspersores. (EMBRAPA) Esse método exige alta disponibilidade hídrica e bons
níveis de pressão. No caso do perímetro esse método não é tão eficaz por causa dos problemas da infraestrutura e
disponibilidade hídrica.
82
Gráfico 01 – A QUALIDADE EM PERCENTUAL DA PRESSÃO DOS LOTES E QUINTAIS
Fonte: ADICP, 2007
Ainda em termos produtivos, o tamanho da área também é um fator limitante, ou
seja, a área de 3,72 hectares é pequena para determinadas culturas – a exemplo da cana-de-
açúcar – dificultando a prática da diversificação das culturas. Assim, fica difícil para o
irrigante diversificar sua produção, tanto pelas limitações financeiras, como pela necessidade
de produzir em escala comercial. Por outro lado, se pensarmos que essa mesma área deverá
garantir a sobrevivência de várias famílias, o fator tamanho torna-se ainda mais limitante. Ex-
presidente do Distrito destaca que o tamanho da área pode ser um fator limitante para a
sustentabilidade econômica do perímetro.
Talvez tenha havido um erro de estrutura porque eles fizeram lotes de três hectares,
que não é terra suficiente para produzir economicamente. É de economia familiar.
[...] E ainda hoje tem gente comprando lote achando que é uma boa e não é. Ainda vale pra quem é colono. Pra quem realmente trabalha. Porque se ele tirar um salário
tá bom. Mas para quem vai pagar uma pessoa pra trabalhar não dá. Só se ele quiser
pra passeio, para diletantismo. Aí a inadimplência pode ser um problema. (Colaço,
ex-presidente do Distrito)
Por outro lado, apesar das citadas limitações, se pensarmos na dimensão do
Perímetro como um todo, conforme salientam algumas lideranças locais, a diversificação
existe, embora possa ser melhorada:
A nossa produção é diversificada. O pessoal tem que entender que o irrigante hoje se
dá o direito de produzir feijão apenas para o consumo dele. A gente produz
macaxeira, melancia, gado leiteiro e gado de corte. Agora quem se destaca é o coco. Já há a diversificação, mas dá para melhorar e muito desde que haja assistência
técnica, crédito, etc. Agora alguém, eu digo uma entidade precisa chamar a
responsabilidade para si e dizer vamos desenvolver isso, vamos fazer isso ali grande
porque imagine o seguinte: o pequeno agricultor quando ele vai vender uma idéia
636,1
42,7
15,3
QUALIDADE DA PRESSÃO
DOS LOTES (%)
Ótima
Boa
4,329,3
38,6
27,9
QUALIDADE DA PRESSÃO
DOS QUINTAIS (%)
Ótima
Boa
83
para o amigo dele o outro pergunta quem vai bancar, quem vai financiar. A estrutura
(de uso comum, energia e insumos) hoje é cara. (liderança local)
O depoimento da liderança enfatiza a capacidade produtiva do Projeto, embora
sejam necessários investimentos governamentais para garantir os serviços de assistência
técnica, além do acesso ao crédito, para que os produtores possam melhorar a produtividade
das culturas implantadas ou mesmo diversificar mais a produção.
2.2. Assistência técnica e acesso ao crédito
Sem a pretensão de analisarmos profundamente as metodologias empregadas ou
mesmo a qualidade dos serviços de ATER, prestados aos irrigantes ao longo da implantação
do Perímetro é possível afirmarmos que, em linhas gerais, a assistência técnica reproduziu –
ao longo da história do Projeto – as políticas governamentais direcionadas ao campo,
baseando-se no estilo convencional de desenvolvimento e cujo modelo extensionista era
baseado na Teoria da Difusão de Inovações e nos tradicionais pacotes tecnológicos da
“Revolução Verde55
”.
Não obstante essa preliminar análise crítica, é indiscutível a importância dessas
políticas – assistência técnica e acesso ao crédito –- especialmente em se tratando de
perímetros irrigados, que requerem elevados padrões de produtividade, conforme já
destacado, tanto para cobrir os custos de produção da infraestrutura de uso comum, como a
própria reprodução familiar.
A priori, em se tratando dos serviços de ATER direcionados aos colonos do
perímetro estudado, de um modo geral, percebemos a adoção de uma perspectiva de caráter
monodisciplinar em suas atividades de campo, já que não se insere em sua grade de
atividades, serviços de capacitação não formal, de caráter continuado, que promovam
processos de autogestão, produção, beneficiamento e comercialização das atividades e
serviços agropecuários e não agropecuários, inclusive atividades agroindustriais e artesanais.
Essas atividades, em princípio, deveriam envolver todo o corpo familiar, buscando discutir
55 A Revolução Verde refere-se à invenção e disseminação de novas sementes e práticas agrícolas que
permitiram um vasto aumento na produção agrícola em países menos desenvolvidos durante as décadas de 60 e
70. Este amplo programa foi idealizado para aumentar a produção agrícola no mundo, por meio do
'melhoramento genético' de sementes, uso intensivo de insumos industriais, mecanização e redução do custo de
manejo. Apesar de contribuir para a garantia do abastecimento humano, essa revolução também trouxe efeitos
negativos, sobretudo relacionados à preservação ambiental e intensificação do capitalismo no campo,
privilegiando sobremaneira ao fortalecimento do agronegócio. (SANTOS, 2006)
84
com o mesmo suas expectativas de vida, de trabalho e de futuro, ou seja, construir
coletivamente um modelo de comunidade que este vislumbrasse.
Por outra via, os serviços de ATER, se no início, foram intensos, atualmente,
padecem de extrema descontinuidade, embora de acordo com a Lei de Irrigação (Lei nº 6.662)
e em todos os documentos que tratam de perímetros irrigados, a garantia de assistência técnica
gratuita de qualidade e contínua, seja um direito dos agricultores familiares (então
denominados de pequenos produtores).
Notamos que, a partir da década de 1990, quando os recursos destinados aos
perímetros públicos começaram a diminuir e, mais especificamente no caso do Curu-
Paraipaba, quando o DNOCS se afastou um pouco das questões produtivas (pelas razões já
relatadas), os serviços de ATER aos agricultores do Perímetro dão-se de forma descontinuada
e de baixa qualidade, sobretudo em função da quantidade insuficiente para atender à demanda
e também pela impossibilidade dos produtores atenderem às recomendações técnicas, em
razão da dificuldade de acesso a financiamentos bancários.
No início sim houve assistência técnica (prestada pelos funcionários do DNOCS) só
que num modelo ditatorial [...] o irrigante que plantasse uma cultura que não fosse
dita por eles, pela assistência técnica ou pela administração ela era brutalmente
erradicada. [...] Isso aconteceu até oitenta e três, oitenta e quatro. Depois disso a
assistência técnica começou a ser falha, não atendia a necessidade do perímetro. Os técnicos começaram a ser transferidos (...) ou inchar a própria administração central.
Os técnicos que tavam no campo saíram do campo para inchar os escritórios. Depois
da crise da cana-de-açúcar houve uma parceria entre cooperativa, DNOCS e uma
empresa chamada COTIA, que prestava assistência técnica para as culturas que ela
se interessava em implantar (melancia, abóbora e mamão). Durou menos de três
anos. Depois disso não me lembro do DNOCS ter prestado assistência técnica. (...)
No meu entender houve várias tentativas. (Washington, ex-presidente do Distrito)
O depoimento anterior faz uma breve retrospectiva de como se desenvolveram os
serviços de assistência técnica desde o início do projeto, revelando as descontinuidades
administrativas. Nesse contexto, vale acrescentar trecho de ofício do Distrito, endereçado ao
Diretor Geral do DNOCS, que corrobora com o citado depoimento:
A inexistência de assistência técnica responsável e capaz é fator preponderante da
baixa produtividade das culturas e inferior qualidade dos frutos produzidos. Uma orientação técnica permanente, eficiente e conhecedora dos nossos principais
sistemas produtivos, certamente conseguiria, em prazo satisfatório, capacitar nossos
85
irrigantes para o alcance de índices aceitáveis pelo mercado competitivo. (ADICP,
1999)
Ressaltamos que em 2001, quando chegamos ao Perímetro como membro de uma
equipe composta por um engenheiro agrônomo, dois técnicos agrícolas e uma técnica em
organização de produtores (eu mesma), a assistência técnica era o nosso desafio, pois se
tratava, evidentemente, de uma equipe insuficiente para atender aos oitocentos produtores
locais.
Vale ressaltar que, de um lado, os recursos aportados pelo DNOCS supriram
apenas a parte de pagamento de pessoal, não havendo nenhum programa consistente voltado
para a recuperação da infraestrutura56
, política de acesso ao crédito, renegociação de dívidas e
regularização fundiária. Por todas essas questões, os trabalhos dessa equipe não obtiveram
grandes resultados.
De outro lado, o convênio firmado entre Distrito e DNOCS acabou gerando uma
dívida para os irrigantes, no que se refere aos encargos sociais, uma vez que os recursos eram
repassados com atrasos. Assim, como os técnicos tinham carteiras assinadas pelo Distrito e
este, por sua vez, não tinha como cobrir os custos com os encargos sociais, a entidade acabou
inadimplente e teve que arcar com o pagamento de juros, cujos valores o DNOCS não
reembolsava. Essa situação acabou contribuindo ainda mais para o descrédito – tanto em
relação ao DNOCS quanto ao próprio Distrito – perante os irrigantes e, por conseguinte, para
as equipes de ATER vindouras.
Apesar da situação adversa, a equipe realizou um trabalho, ainda que precário,
atendendo certo número de agricultores, e contribuiu minimamente para ampliar a
credibilidade do Distrito perante os associados. Contudo, após inúmeros atrasos e descasos,
em 2003 a equipe foi demitida, retornando apenas um ano depois – em agosto de 2004 – para
um contrato de apenas seis meses – durou até fevereiro de 2005 – com um técnico a menos e
nas mesmas condições deficitárias anteriores. Por conseguinte, da mesma forma, executando
serviços pontuais e de baixa eficiência, além de não atingir a totalidade dos agricultores.
Em 2005, o Ministério da Integração Nacional lançou o PTG e com ele foi
efetivada, através de convênio do DNOCS e o Governo do Estado, a contratação de várias
equipes de ATER para oito perímetros do Estado do Ceará, inclusive o Curu-Paraipaba. O
convênio, com duração prevista para cinco anos, estava vinculado à proposta do citado
56 O Distrito naquela época lutava contra a inadimplência e o corte do fornecimento de energia por parte da
COELCE, além do sucateamento da infraestrutura de uso comum. A luta, então, era manter o perímetro
funcionando, ainda que precariamente.
86
programa, onde, junto ao trabalho de ATER, seriam resolvidos todos os entraves à plena
sustentabilidade do Perímetro, inclusive o acesso ao crédito e à regularização fundiária.
É importante frisar que, apesar de todos os problemas, em 2001, quando da
chegada da primeira equipe, ao ser realizada a “Pesquisa Marco Zero 25”, cerca de 86% dos
entrevistados afirmaram não terem recebido qualquer tipo de assistência técnica, sendo que
em 2007, com a pesquisa “versão 32 anos”, esse percentual caiu para 34,70%, conforme
apresentado no gráfico a seguir.
Gráfico 02
Fonte: ADICP, 2007
A pesquisa procurou também avaliar a percepção dos agricultores sobre a
qualidade dos serviços prestados. O resultado do “gráfico 03” aponta uma prevalência do item
“bom” sobre os demais, com um percentual de 46,06% do total, vindo a seguir “regular” com
36,61%, “ótimo” com 10,24% e “insuficiente” com 7,09%. Desses resultados podemos
concluir na soma de “ótimo” e “bom”, que mais de 50,00% dos colonos justificam a presença
e reconhecem a necessidade de tais serviços.
Gráfico 03
Fonte: ADICP, 2007
65,3
34,7
% de irrigantes que receberam assistência técnica
Convênio DNOCS/SEAGRI
não receberam
01020304050
10,24
46,0636,61
7,09
QUALIDADE DOS SERVIÇOS PRESTADOS EM%
87
Combinado com os serviços de ATER, o acesso a financiamentos bancários é
também uma ferramenta importante para garantir o bom desempenho produtivo das culturas e,
consequentemente, para a satisfação das necessidades básicas das famílias de agricultores do
Perímetro.
Apesar da relevância, o acesso a esse recurso foi dificultado sobremaneira a partir
da década de 1990, com o endividamento da Cooperativa dos Irrigantes do Vale do Curu –
CIVAC - após o chamado financiamento do gado57
. A partir dessa época, o Banco do
Nordeste, de certa forma, fechou as portas para os produtores do Perímetro, por conta da
inadimplência. Também o próprio DNOCS reduziu sua atuação nesse campo, deixando os
irrigantes à mercê da política interna do banco.
A Pesquisa “Perímetro Irrigado: Versão 32 Anos” indagou aos irrigantes sobre o
acesso ao crédito, e constatou que a maioria dos colonos da primeira etapa, 249, ou seja,
64,01%, não estão recorrendo a este instrumento para conduzir as suas atividades agrícolas.
Somente 139 dos colonos, ou seja, 35,73% recorrem a estes recursos, e um irrigante deixou de
responder à pesquisa (0,26%). Vale destacar que cerca de 11% se declararam inadimplentes.
Gráfico 04
Fonte: ADICP, 2007
Por outro lado, em 2007, com a Lei Nº 11.322, que permitiu a renegociação de
dívidas dos produtores com descontos, abriu-se a perspectiva para os irrigantes “limparem” o
seu nome e voltarem a operar com as instituições bancárias.
Não obstante ao esforço conjunto de diversas instituições locais, representadas
pelo então Comitê Assessor de Apoio ao Desenvolvimento do Perímetro Curu-Paraipaba58
–
57 Já narrado anteriormente. 58 Esse comitê foi coordenado pela equipe de ATER do convênio DNOCS/SEAGRI, que terminou juntamente
010203040506070
64,01
6,43 14,44,37 6,43 0,51 2,06 1,54 0,26
SITUAÇÃO DOS IRRIGANTES EM RELAÇÃO AO CRÉDITO EM %
88
e, sobretudo, da equipe de assistência técnica e diretorias do Distrito e da Cooperativa, dos
cento e quarenta e quatro (144) produtores vinculados ao débito da CIVAC junto ao BNB,
apenas dez (10) produtores aderiram à lei, o que é um percentual muito tímido. Isso ocorreu
porque parte dos devedores não morava mais no perímetro, sobretudo, porque a maioria não
tinha condições financeiras de renegociar a dívida.
Apesar dessa situação, o Distrito estava se organizando politicamente para cobrar
das instituições o direito ao crédito para os produtores adimplentes. Assim, através da
realização de vários encontros com lideranças políticas, iniciou-se uma tímida aproximação
com o Banco do Nordeste. Com isso, foram liberados 03 projetos de custeio e investimento, o
que é irrelevante diante de um quantitativo de oitocentos irrigantes.
Todavia, os produtores voltaram a acreditar na possibilidade do acesso ao crédito
(cerca de cento e cinquenta produtores procuraram a assistência técnica para a elaboração de
projetos). Foram encaminhados ao BNB cento e vinte e três processos para análise
documental, foram encaminhados projetos de seis produtores. Também estava sendo discutido
o projeto do grupo de apicultores da 2ª etapa.
Todas essas ações foram interrompidas com o término do Convênio de ATER, em
junho de 2007 – firmado entre o DNOCS e o Governo do Estado do Ceará. Assim, mais uma
vez, a descontinuidade administrativa se consolidou como uma marca registrada dos
Governos.
Dois anos depois o DNOCS fez uma licitação milionária para a contratação de
serviços de assistência técnica através de empresas privadas. O vencedor desse certame foi o
consórcio Magna/CETREDE. Para as organizações dos produtores, essa foi a contratação
mais desastrosa, pois, em menos de dois meses de sua chegada ao campo, a equipe foi desfeita
em meio a acusações múltiplas. Nesse contexto, o CETREDE acusou o DNOCS de não
repassar os recursos, e o DNOCS acusou ao CETREDE de não ter executado os serviços
contratados.
Essa polêmica ainda está na Justiça, pois as organizações dos produtores entraram
junto ao Ministério Público para exigir o direito à assistência técnica enquanto política pública
e direito dos pequenos produtores. O DNOCS, por sua vez, rescindiu o contrato, por
orientação de sua auditoria interna e da CGU – Controladoria Geral da União, enquanto o
CETREDE colocou a autarquia na Justiça, cobrando pagamentos por supostos serviços
com o final deste convênio.
89
executados. Parte dos técnicos contratados pelo CETREDE também recorreu à Justiça do
Trabalho, em busca de seus direitos trabalhistas.
Assim, em meio a tantos desacertos, a descontinuidade dos serviços de ATER,
somado aos problemas ocasionados pela dificuldade de acesso ao crédito e ausência de
investimentos, contribui para os processos de descontinuidade da agricultura familiar no
projeto estudado.
2.3. Aspectos socioeconômicos relevantes
De acordo com a “Pesquisa versão 32 Anos”, a grande maioria dos irrigantes que
mora no Perímetro possui, pelo menos, uma geladeira, uma televisão, uma bicicleta, um
aparelho de som, um fogão a gás e um telefone celular, com uma média de 85,1%, o que
indica que os mesmos vivem com relativo conforto, em termos de bens de consumo.
Comparando com os dados do “Marco Zero 25”, foram incluídos como bens de
consumo mais populares entre os irrigantes o aparelho de som e o telefone celular, com
destaque para este último, que registrou um aumento de 81,2% em relação a 2001.
Assim, em linhas gerais, registrou-se um aumento no poder de consumo dos
irrigantes em relação a todos os itens. Isso deve ocorrer, dentre outros motivos, em razão da
facilidade de acesso a crediários nas lojas da cidade, as transferências de renda (Bolsa família)
e as aposentadorias. Vejamos o gráfico.
Gráfico 05
Fonte: ADICP, 2007
0102030405060708090
10092,5
8490,3
71
42,6
19,832,5
19
100
73
BENS MATERIAIS DOS IRRIGANTES EM %
90
Em termos de fonte renda, a pesquisa assinalou que os irrigantes que moram no
Perímetro vivem principalmente da agricultura irrigada, conforme afirmação de 57,6% dos
entrevistados, representada no próximo gráfico.
Gráfico 06
Fonte: ADICP, 2007
Por outro lado, vem crescendo a quantidade de irrigantes que afirmam que a
principal renda familiar provém de fontes de renda não agrícolas, com quase 43% dos
entrevistados.
Nesse sentido, em 2001, apenas 13,5% dos irrigantes afirmaram que a
aposentadoria era a principal fonte de renda, enquanto na pesquisa atual esse percentual subiu
para 35,6%, registrando um aumento significativo da ordem de 62%.
Analisando com maior profundidade esse dado, temos que, devido aos vários
problemas citados anteriormente, diversos colonos deixaram de considerar a agricultura
irrigada como atividade principal. Muitos acabaram abandonando os lotes, em termos de
investimentos, ou até os venderam por conta dos filhos não quererem dar seguimento à
atividade agrícola.
Corroborando com esse raciocínio, temos que quase 70% dos entrevistados
possuem uma fonte de renda não agrícola. Comparado à pesquisa de 2001, houve um aumento
de quase 68% - antes apenas 22,4% dos irrigantes afirmaram possuir uma fonte de renda
extra-agricultura. Vejamos o gráfico.
57,6
35,6
1
1
4,3
2
0 10 20 30 40 50 60 70
Agricultura irrigada
Aposentadoria/pensão
Diarista
Comprador de coco
Empregado
Comércio
PRINCIPAIS FONTES DE RENDA DOS IRRIGANTES EM %
91
Gráfico 07
Fonte: ADICP, 2007
Nesse sentido, a aposentadoria é a principal fonte de renda dos irrigantes que
complementam a renda familiar com fontes não agrícolas. Essa situação indica “o
envelhecimento gradual e irreversível dos colonos”, destacando a necessidade de que os filhos
e netos assumam as funções no Perímetro. Comparando, mais uma vez, com o Marco Zero 25,
percebe-se o aumento significativo no número de aposentados (em torno de 20%), o que
apenas confirma a afirmação anterior.
Gráfico 08
Fonte: ADICP, 2007
Por outro lado, a pesquisa revelou que 67,7% das esposas dos colonos
também colaboram na formação da renda familiar, sendo que a aposentadoria é a principal
fonte de renda, com 64,0%, embora seja importante salientar que quase 20% destas – apesar
da idade avançada – ainda trabalham no lote, ou seja, exercem atividade agrícola, o que
também corrobora com a afirmativa de que estamos num projeto de cunho familiar agrícola.
Além disso, a esmagadora maioria dessas aposentadorias advém de sua condição de ser
agricultora, o que lhes garante a condição de segurado especial59
.
59 De acordo com a legislação vigente os trabalhadores rurais têm o direito de se aposentar – desde que atendam
69,5
30,5
% DE IRRIGANTES COM RENDA NÃO AGRÍCOLA
Sim
Não
59,8
39,2
% DE IRRIGANTES APOSENTADOS
Sim
Não
92
Gráfico 09
Fonte: ADICP, 2007
Esse grande contingente de aposentados, se por um lado complementa a renda
familiar, por outro lado, de acordo com vários depoimentos coletados em campo, atrapalha o
desenvolvimento do perímetro e contribui para o distanciamento da sua juventude. Esse
posicionamento é assinalado no depoimento do ex-presidente do Distrito:
A aposentadoria há mais de dez anos atrás foi a lavoura para não deixar o perímetro
parar, mas hoje ela é atrapalha. Há dez anos a gente tava num processo de
erradicação de uma cultura – a cana-de-açúcar e o gado – para implantar outra. E
isso tem um processo, tem um tempo para dar resultado. E quem bancou essa
transição quando o Banco do Nordeste foi omisso foi, infelizmente, a aposentadoria
dos agricultores. Hoje atrapalha porque a gente vê claramente um comodismo, não
pela idade, não pelo salário, é porque isso também tá viciando o jovem, que não tá alertado para dar continuidade na área produtiva do pai ou do avô dele.
(Washington, ex-presidente do Distrito)
Esse posicionamento é polêmico e sugere algumas ponderações relevantes. Uma
delas é que a aposentadoria do trabalhador rural, considerado legalmente como segurado
especial, trata-se de um direito adquirido depois de um longo processo de lutas dos
trabalhadores rurais, o qual foi coordenado por suas entidades de classes (os sindicatos de
trabalhadores e trabalhadoras rurais). Além disso, se por um lado, esse benefício, segundo os
relatos, pode gerar uma acomodação por parte do irrigante e de seus familiares em relação às
suas responsabilidades perante o Distrito60
, por outro lhe confere maior autonomia para tomar
suas decisões e escolher suas prioridades, inclusive deixar de produzir, se for o caso.
aos requisitos estabelecidos- apesar de não contribuírem formalmente com a previdência. 60
Ao ser assentado num perímetro público, o irrigante assume a responsabilidade de produzir e arcar com os
custos de administração, operação e manutenção da infra-estrutura de irrigação de uso comum. Nesse caso, seu
lote deve produzir o suficiente para garantir a reprodução da família e do próprio perímetro, conforme já
salientamos.
6419
0,36,71,55,92,6
% DE ESPOSAS QUE CONTRIBUEM COM A RENDA FAMILIAR DE ACORDO COM FONTE
Aposentadoria
Trabalha no lote
Empregada de empresa privada
93
O gráfico 10 descreve a renda complementar proveniente de fontes não agrícolas.
De acordo com a pesquisa, a renda complementar das famílias soma entre ½ até 2 salários
mínimos com quase 64,0% das respostas dos entrevistados, o que é proveniente,
principalmente das aposentadorias. Cerca de 33% possuem renda familiar acima de 2 e até 5
salários mínimos e apenas 3,1% dos entrevistados afirmaram possuir renda familiar não
agrícola acima de 5 salários mínimos.
Gráfico 10
Fonte: ADICP, 2007
Ao analisar a renda proveniente da exploração agrícola, percebemos que os
irrigantes possuem uma renda relativamente baixa, pois cerca de 29,9% afirmaram viver com
uma renda entre ½ e 1 salário mínimo e 42,8% recebem entre 1 e 2 salários mínimos. Esses
valores são fruto da inconstância dos preços da produção agrícola, sendo que há épocas em
que o preço da unidade de coco – principal cultura do projeto – chega a R$0,10 (dez
centavos), levando muitos a se submeterem aos preços irrisórios e outros não conseguem
sequer vender e são obrigados a deixar o coco secar, ficando até três meses sem renda
agrícola.
Se compararmos com o resultado de 2001, verificamos que os irrigantes estão
ganhando menos com a agricultura irrigada, quando a renda média girava em torno de 2,1
salários mínimos/mês e hoje foi reduzido para 1,7.
010203040
½ - 1 1 – 2 2 – 3 3 – 4 4 – 5 5 – 6 Mais de 6
salários
27,636,2
18,410,7
4 1,2 1,9
RENDA MENSAL COMPLEMENTAR DE FONTE NÃO AGRÍCOLA EM %
94
Gráfico 11
Fonte: ADICP, 2007
Um dos fatores que influenciam diretamente a baixa renda dos irrigantes está na
desorganização dos mesmos no momento da comercialização, sendo que a única cooperativa
dos irrigantes (entidade que está em processo de reorganização), que possui pouco mais de
20% do total dos agricultores associados, ainda não está conseguindo negociar o seu principal
produto, o coco.
Essa dificuldade de resgatar o cooperativismo – que será mais bem discutida mais
à frente – se dá, dentre outros fatores, pelo descrédito por parte dos próprios produtores em
suas organizações em função das experiências negativas do passado. Por conta disso, estes
continuam à mercê dos atravessadores e das oscilações do mercado, conforme destacou a
pesquisa, na qual 91,3% dos agricultores afirmaram que a sua produção é comercializada por
esta via.
É importante relatar que dentre os 12 principais atravessadores da localidade
estudada, 3 já adquiriram lotes de terceiros e hoje são considerados irrigantes, embora não
participem diretamente das organizações dos produtores e nem trabalhem diretamente a terra.
Por outra via, 8 são filhos de colonos de origem e apenas 1 ainda não “comprou” lote no
Projeto. Vale lembrar que existem dezenas de “atravessadores dos atravessadores”, os quais
compram indiretamente a produção dos agricultores e repassam aos atravessadores do grupo
anterior. Existem ainda os “atravessadores aventureiros”, que só aparecem nas épocas em que
o preço do coco está muito baixo devido à superprodução. Estes dois últimos grupos também
são, em sua maioria, filhos de colonos. (COPROCOP, 2009)
Nesse sentido, a produção do coco em Paraipaba é uma atividade que, se não é
sustentável economicamente para o produtor, por outro lado, favorece a distribuição de renda
e o aquecimento do comércio local. Essa afirmativa se justifica pelo envolvimento direto dos
filhos de colonos nas diversas atividades, que vão desde a colheita até a comercialização.
0
20
40
60
½ - 1 1 – 2 2 – 3 3 – 4 4 – 5 5 – 6
29,942,8
17,46,7 1,8 1,4
RENDA MENSAL AGRÍCOLA EM %
95
Muito embora devamos ressaltar que os maiores beneficiários são os atravessadores, que
mantém a sua margem de lucro, independente do preço do coco na lavoura. Na maioria das
vezes, quanto menor o preço para o agricultor maior é a margem de lucro deles.
2.4. Regularização fundiária: a sucessão em uma área de posseiros
Além de todas as dificuldades enfrentadas pelos irrigantes, no sentido de garantir
a reprodução de suas famílias e a sustentabilidade do Perímetro, a falta de titularidade da terra
desponta entre as mais graves, pois desafiam a questão da sucessão hereditária.
Nesse sentido, a titularidade da terra também é um problema crônico no Projeto
estudado, sendo que nenhum irrigante de origem tem o título da terra. Esta questão é
polêmica, em se tratando do espaço rural estudado. Para alguns técnicos do DNOCS, os
irrigantes não querem pagar por estarem acostumados com a postura paternalista do órgão. De
outro lado, a organização dos produtores questiona a morosidade do DNOCS em repassar os
títulos e que os valores cobrados não estão considerando o contrato assinado com os mesmos,
no final dos anos 1970. Em todo o caso, a maioria dos irrigantes quer o título da terra,
conforme salientou a pesquisa.
Gráfico 12
Fonte: ADICP, 2007
Vale frisar que a preocupação com a regularização fundiária foi mais intensa no
início dos anos 2000 – mais de duas décadas depois da implantação do Projeto. Os irrigantes
contam que certo doutor do DNOCS afirmou – logo quando eles chegaram ao Perímetro – que
eles iriam pagar os lotes com ovos de galinha, ou seja, que seria um valor irrisório. Talvez
esta afirmativa tenha sido em função do próprio contrato não prever uma correção monetária,
conforme destaca o depoimento a seguir.
81,2
18,40,4
QUANTIDADE DE IRRIGANTES QUE
QUEREM O TÍTULO EM %
Sim
Não
Não respondeu
96
O doutor disse vocês vão pagar esse lote com a venda de ovo de uma galinha, mas isso não foi concretizado. Por exemplo, houve o contrato que os irrigantes
assinaram, com cinco anos de carência e vinte pra pagar. Quando passasse vinte e
cinco anos o DNOCS passaria a escritura para os irrigantes. Os irrigantes pagaram
dois anos e o DNOCS disse não precisa ninguém pagar porque a moeda se
desvalorizou. Trinta anos depois o DNOCS vem e diz a casa é tanto, o hectare é
tanto, soma-se tudo e dá o valor do lote quando o contrato não diz isso.
(Washington, ex-presidente do Distrito)
O depoimento evidencia que, de fato, os irrigantes começaram a pagar os lotes,
cujo valor já era descontado pela cooperativa e repassado ao DNOCS no ato da prestação de
contas anual. Eles dizem que chegaram a pagar duas ou três vezes, mas a moeda se
desvalorizou e eles não tiveram como continuar pagando. Por outro lado, como o DNOCS
nunca cobrou ou atualizou os referidos contratos, eles ficaram sem pagar.
Nesse sentido, a partir de dois mil e um, os técnicos do DNOCS vieram ao
perímetro para recadastrar os irrigantes, medir as áreas, providenciar o cadastro da terra junto
ao INCRA, enfim, tomar as medidas necessárias para a dita regularização fundiária. Contudo,
o processo não se concretizou e a equipe retornou à Fortaleza sem que nenhum lote tenha sido
entregue. Entrevistando uma assistente social do DNOCS, ela confirmou que os técnicos
sempre ficaram nas mãos dos administradores e faziam aquilo que eles achavam que era
prioridade. Assim, quando esse serviço deixou de ser prioritário, acabaram as diárias e eles
tiveram que voltar à sede da autarquia. E enquanto isso os produtores permaneceram
produzindo em suas terras, independentemente da titulação.
Cerca de um ano depois o trabalho foi reiniciado. Os técnicos retornam ao
Perímetro e garantiram que agora o “título da terra sai”. Fizeram inúmeras reuniões, das quais
pudemos participar, e a notícia era que os irrigantes detentores de contratos de promessa de
compra e venda – aqueles assinados no final dos anos 1970 – iriam receber o título “de
graça”, pagando apenas o equivalente às despesas cartoriais e alguma área acrescentada ao
lote original. Todos ficaram muito felizes, embora temerosos. Muitos “não tinham fé que o
processo fosse para frente” por não acreditar mais que o DNOCS finalmente entregasse esses
títulos.
Por outro lado, o Distrito de Irrigação deu todo o apoio, acompanhou as reuniões e
fez licitação para conseguir um melhor preço. A Procuradoria do DNOCS, da época,
interferiu a favor de um cartório, mas mesmo assim quase trezentos processos ficaram
prontos, inclusive com a documentação dos irrigantes e do lote.
Contudo, mais uma vez, o DNOCS voltou atrás. A Procuradoria, que no início
reconheceu o direito dos irrigantes assentados e que tinham contrato de promessa de compra e
97
venda, recuou, fez um novo parecer e passou a afirmar que eles deveriam pagar o mesmo que
um irrigante que não tinha contrato algum. Daí aconteceu uma revolta no Perímetro. Muitos
irrigantes reclamaram e se recusaram a pagar. A credibilidade do DNOCS ficou ainda mais
abalada perante os mesmos.
O Dr. Vagner uma vez fez uma reunião com os colonos do C2, e apresentou um
técnico que iria nos ajudar. passou-se, passou-se e ele disse que iríamos pagar esse terreno com um ovo. Isso eles falavam em todos os setores. Depois vieram com uma
historia de venda dos lotes, que iria ser de dez mil reais. Eu disse que não ia pagar
por que já tinha feito a minha parte. Se quisesse a galinha tá aqui. Leve ela e os
ovos. (M., irrigante)
Ainda assim, cerca de cinco produtores que “compraram” 61
os lotes de irrigantes
de origem, aceitaram as condições e adquiriram do DNOCS a área nas condições propostas,
que sairia por cerca de dez mil reais (valor à vista), com até vinte anos para pagar e até cinco
de carência. Considerando que a proposta – que ele deveria começar a pagar do zero –
nivelava o colono de mais de setenta anos e com quase trinta anos de perímetro, com outro
que adquiriu as terras e nem sequer passou pelos critérios do DNOCS, esta foi repudiada pelo
conjunto de irrigantes.
Nesse movimento, em dois mil e quatro, os técnicos do Governo voltaram ao
Perímetro para detectar os problemas e entraves ao seu pleno desenvolvimento. Eram os
técnicos do Ministério da Integração Nacional, mesclados com técnicos do DNOCS e da
CODEVASF. Era o início do processo chamado de “Programa de Transferência de Gestão”
(PTG).
Assim, o problema da regularização fundiária ressurgiu em 2005, com a
implantação desse programa. A primeira iniciativa desse programa foi a realização de um
levantamento dos custos para recuperar a infraestrutura de irrigação de uso comum do
perímetro, bem como recuperar o seu potencial produtivo (através dos serviços de ATER,
crédito e apoio à comercialização). O Governo, por meio do DNOCS, se comprometeu a
executar todas essas ações necessárias num prazo de cinco anos ininterruptos e propôs que os
irrigantes rediscutissem a sustentabilidade do Perímetro e consequentemente, o pagamento
pela titulação dos lotes.
Mais uma vez foram realizadas inúmeras reuniões com os produtores sob a
coordenação do Distrito. Nesse período, um dos eixos estruturantes do programa, uma equipe
61 Colocamos entre aspas porque, na verdade, eles não poderiam vender. O correto seria devolver ao DNOCS, e
este licitar ou repassar a outro que atendesse aos requisitos.
98
de assistência técnica (da qual eu participava como técnica em organização de produtores e
que foi fruto de uma parceria com o Governo do Estado e executada pelo Instituto Agropolos)
foi contratada para contribuir com a consolidação desse processo.
Para dar conta do desafio, o Distrito rediscutiu os recursos para recuperação e
modernização do Projeto (contestando os dados do Ministério que diziam que cinco milhões
seriam suficientes para executar os investimentos na recuperação do Projeto) e propôs um
Plano de Ação orçado em quarenta milhões, contemplando obras de recuperação,
investimentos na modernização da infraestrutura de uso comum, custeio para administração
do projeto e propostas para solucionar todos os entraves à sustentabilidade do Perímetro. O
ex-presidente do Distrito nos afirmou que foi chamado de louco quando apresentou esta
contraproposta para os técnicos do Governo. Na época, o então presidente reafirmou o
compromisso dos irrigantes em discutir a sustentabilidade do respectivo contorno irrigado,
mas exigiram responsabilidade, ou seja, eles acatariam a transferência de gestão desde que o
Governo cumprisse a sua parte.
Nessa ocasião foi constituída uma comissão de irrigantes especificamente para
tratar da regularização fundiária. Um seminário sobre o assunto foi promovido pela
organização dos produtores, sendo que o DNOCS enviou duas técnicas que não tinham
qualquer poder de decisão, mas, mesmo assim, a comissão apresentou a sua proposta de
pagamento dos lotes. Essa proposta incluiu as diversas categorias de irrigantes, ou seja, os
originais assentados pelo DNOCS na década de 1970 com “contrato de promessa de compra e
venda”, os que tinham “contratos experimentais”, os que tinham “contratos de concessão de
uso” vencidos e os que não tinham contrato.
Vale salientar que as discussões foram ampliadas, ganhando força uma proposta
que contemplou a situação dos ocupantes das chamadas áreas mortas (que são áreas de
sequeiro, que deveriam ser áreas de preservação ambiental e que estão totalmente invadidas),
bem como a das áreas ocupadas onde foram construídas casas residenciais e que hoje se
constituem em grandes aglomerados populacionais. De acordo com o depoimento de técnicos
da Prefeitura e compreendido por muitos irrigantes, essa ocupação se deu pela proximidade
do Perímetro com a zona urbana de Paraipaba. Na figura abaixo, no lugar da imagem de Santa
Rita de Cássia era a antiga guarita, local onde os fiscais vistoriavam quem saía ou entrava no
perímetro. Embora essa área seja ocupada por coqueiros, residências e comércios, toda ela
ainda pertence ao DNOCS, tendo sido ocupadas irregularmente.
99
.
Figura 03 – Divisa do Perímetro com a sede de Paraipaba
Vale ressaltar que, segundo os colonos entrevistados, grande parte dessas
ocupações ocorreu de comum acordo com a gerência local do DNOCS, ainda que
extraoficialmente. Na ocasião do seminário, também se discutiu o problema dos patrimônios
públicos (escolas e postos de saúde, por exemplo), cuja proposta seria que o órgão doasse à
Prefeitura, já que esta é quem vinha administrando e mantendo os respectivos. O então
presidente do Distrito destaca o sentimento da organização dos produtores naquela época:
Em 2005 eu acreditava que ia acontecer a regularização fundiária porque eu entendo
que as pessoas sérias tem que fazer valer os direitos da sociedade. Quando o
DNOCS não tinha uma definição nós do Curu-Paraipaba partimos na frente e tivemos um posicionamento: do jeito que vocês querem nós não pagamos, mas tá
aqui. Ali era pra gente sentar na mesa e chegar a um denominador comum, coisa que
o DNOCS nunca sinalizou. [...] Aí o DNOCS diz que os irrigantes não quer que
aconteça o título da terra. É o contrário, o DNOCS é que não tem uma definição.
Mas eu diria que a regularização não é simplesmente entregar o título para o
irrigante. Por exemplo, cadê as áreas públicas? Vai ser destinada para quem? E as
áreas mortas que estão ocupadas? [...] Então a gente tem que discutir com
profundidade. [...] Eu sonho com a legalidade do meu município. (Washington, ex-
presidente do Distrito)
Como pudemos perceber, o problema da regularização fundiária no Perímetro é
muito mais que vender os lotes aos colonos/irrigantes, trata-se também de resolver a questão
das áreas invadidas, das construções irregulares e dos citados bens públicos. De acordo com a
pesquisa “Perímetro irrigado Versão 32 Anos”, em 2007 existia cerca de novecentas e oitenta
construções em áreas mortas – número que é ampliado diariamente, segundo o escritório local
do DNOCS –, sendo que apenas 11% afirmaram possuir contrato com o DNOCS. Ao serem
questionados sobre a vontade de resolver a situação, cerca de 90% afirmaram querer
regularizar a posse da terra.
100
Vale acrescentar que este problema é extensivo a todas as áreas públicas ao longo
do Vale do Curu, as quais foram desapropriadas pelo DNOCS para a construção de açudes,
barragens e também para a implantação de perímetros. Estas áreas foram reocupadas
irregularmente, sem que o órgão exercesse qualquer tipo de controle eficaz. Esta situação,
portanto, trata-se de um grave problema social que merece a atenção dos órgãos públicos
competentes e da mobilização de toda a sociedade.
Voltando à questão específica dos irrigantes, a proposta citada anteriormente foi
encaminhada ao DNOCS, sendo que até hoje, segundo os dirigentes do Distrito, nunca veio
uma resposta oficial. Prevalecem, portanto, os mesmos critérios, ou seja, todos devem
comprar nas condições já explanadas. Atualmente existe apenas cerca de treze lotes titulados,
dos quais apenas um pertence a uma filha de colono de origem. Esta, por sua vez, pagou pela
escritura do respectivo lote – que fica nas proximidades da sede da cidade – com o intuito de
“reloteá-lo”62
.
Assim, persiste a insolvência da questão fundiária, problema este que os
agricultores não vislumbram solução viável até á época da realização da pesquisa de campo.
Vale ressaltar que, ao contrário do que muitos técnicos do DNOCS chegaram a
cogitar, a Pesquisa Versão 32 anos demonstrou que 81,2% dos irrigantes querem receber o
título da terra para serem os donos legítimos dos imóveis, conforme informou cerca de 60%
dos entrevistados, deixando clara a relevância do assunto e a necessidade de encontrar
coletivamente uma solução viável.
Gráfico 13
Fonte: ADICP, 2007
62 Esse procedimento é totalmente irregular, pois apesar do irrigante poder comprar o lote, este não pode alterar a
sua função original, que é a atividade agrícola. Esse caso foi denunciado e existe um processo na Justiça Federal.
O citado irrigante não se abalou e continua “reloteando” áreas e vendendo a preços exorbitantes.
81,2
18,4 0,4
% DE IRRIGANTES QUE QUEREM O
TÍTULO
Sim
Não
Não respondeu
101
Desde então o DNOCS só retornou para apresentar, ao Distrito e aos técnicos do
escritório local do DNOCS, como formalizar um processo de regularização fundiária para os
que quisessem adquirir o título da terra. Foram realizadas também algumas reuniões nos
setores com os irrigantes da segunda etapa, mas sem adesões significativas. Dessa forma, a
sucessão hereditária também é dificultada pelas questões legais, sendo pertinente levantar a
seguinte questão: o irrigante pode passar a seu filho uma terra que de direito ainda não é sua?
2.5. Infraestrutura Social
A questão da infraestrutura social do Perímetro Irrigado Curu-Paraipaba será
discutida neste item, a partir das informações sobre água, saneamento, lixo e necessidades de
recuperação e modernização do sistema de irrigação de uso comum, identificadas na
“Pesquisa Versão 32 Anos”.
2. 5.1. Água
As informações prestadas na pesquisa revelaram que 52,1% das famílias se
utilizam de cacimbas, 32,70% utilizam poços e apenas 15,2% afirmaram utilizar água
encanada, proveniente do abastecimento implantado pelo DNOCS e cuja manutenção provém
atualmente da Prefeitura.
Em relação a esse último tipo de abastecimento, é válido destacar que o DNOCS
construiu poços em todas as comunidades, porém o sistema encontra-se precário, não
atendendo à totalidade das famílias, além de não ser contínuo e, por isso, a maioria das
famílias acaba montando sistema complementar. Por outro lado, nenhum dos sistemas garante
uma água de qualidade, ou seja, água potável/tratada.
Gráfico 14
102
Fonte: ADICP, 2007
A pesquisa questionou sobre o tratamento da água, o qual guarda estreita relação com
a prevenção de doenças de veiculação hídrica. O resultado apontou que a maioria dos
entrevistados, com 86,9%, realiza algum tipo de tratamento na água de beber. Nesse sentido,
56,4% das famílias utilizam a cloração, 29,9% bebem água filtrada e 0,6% utilizam a fervura.
Gráfico 15
Fonte: ADICP, 2007
Por outra via, apesar de todo o trabalho dos agentes de saúde, e demais campanhas
preventivas e educativas, ainda existem famílias que não adotam qualquer tipo de tratamento
ou apenas coam a água, com 13,1% das respostas, o que não é um método eficaz. Por outro
lado, comparando com os dados de 2001, verificamos que houve um significativo aumento –
na ordem de 12% – na utilização de métodos de tratamento da água, considerados eficazes.
É válido frisar que o tratamento da água para o consumo reflete a educação das
pessoas e o interesse do setor público em dotar os habitantes de água de boa qualidade. Nesse
sentido, destaca-se a luta capitaneada pelo Distrito junto ao Governo do Estado para implantar
políticas de abastecimento de água tratada para as respectivas comunidades rurais. Segundo
Poço
Encanada
Cacimba
32,7
15,2
52,1
TIPOS DE ABASTECIMENTO D'ÁGUA (Em
%)
29,9
56,4
11,90,61,2
TIPO DE TRATAMENTO DA ÁGUA EM %
Filtrada
Cloração
Coada
Fervida
Não é feito
103
esta entidade, a CAGECE já fez o levantamento topográfico e situacional dos poços
existentes, mas ainda não há previsão para a implantação de nenhum projeto.
2.5.2. Saneamento e Lixo
A preservação ambiental, que deve ser a preocupação básica de qualquer sistema
de produção, assim como nos aglomerados urbanos e no meio rural, tem sido relegada ao
esquecimento. Uma das formas de preservação está no manejo dos dejetos e rejeitos dos
animais, inclusive os humanos. Os dejetos podem ser usados como adubo orgânico,
respeitando sempre as limitações impostas pelo solo, água e planta. Quando isso não for
possível, há necessidade de tratar os dejetos adequadamente, de maneira que não ofereçam
riscos de poluição quando retornarem à natureza.
No Perímetro estudado, o destino dos dejetos é o encaminhamento para a fossa
comum, conforme apontam 100% dos entrevistados. É um processo um pouco mais
avançado, se comparado a outras práticas de manejo em comunidades mais pobres, que é
jogar os dejetos a céu aberto, provocando mau cheiro e a contaminação das águas e do solo e,
inclusive, ocasionando os mais variados tipos de doenças.
Como o Projeto é de produção agrícola, o manejo dos dejetos deveria ser feito
através de um projeto de coleta, armazenagem, tratamento, transporte e disposição, de acordo
com as características da área. Contudo, o saneamento das áreas rurais ainda é um sonho a ser
perseguido. De acordo com dados da ONU, apenas 23,1% da população rural brasileira é
atendida por saneamento adequado63
.
Quanto à coleta do lixo doméstico, o Poder Público Municipal não dispõe de
coleta sistemática do lixo, consequentemente a maioria das famílias, isto é, 83,2%, precisa
queimar seu lixo, o que não é uma técnica ambientalmente correta. Esta forma de destinar o
lixo tem efeitos perversos e, sobretudo, ameaça a preservação ambiental.
Nesse sentido, esse tipo de incineração demanda custos elevados e a necessidade
de um super e rigoroso controle de emissão de gases poluentes. Além disso, com o avanço da
industrialização e utilização de produtos químicos e plásticos, o lixo se tornou mais
complexo, gerando mais resíduos tóxicos e tornando-se uma ameaça ao meio ambiente e à
saúde humana e dos animais.
63 Esses dados foram divulgados em março de 2010, pelo 4º Relatório Nacional de Acompanhamento dos
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, da Organização das Nações Unidas (ONU)
104
Por outra via, quase 12% dos colonos enterram o seu lixo doméstico, que,
também, é uma forma perversa de destino do lixo, em virtude dos danos causados às águas
subterrâneas, conforme gráfico a seguir:
Gráfico 16
Fonte: ADICP, 2007
De uma maneira geral, garantir o destino adequado ao lixo é um problema
generalizado e desafia o Poder Público. De acordo com dados do Estudo Indicadores de
Desenvolvimento Sustentável (IDS) – Brasil 2010, cerca de vinte e cinco milhões de
domicílios do país não têm acesso a abastecimento d‟água por rede geral, esgotamento
sanitário por rede coletora ou fossa séptica, coleta de lixo direta ou indireta. Em se tratando de
áreas rurais, apenas cerca de 23,3% dos domicílios têm seu lixo coletado adequadamente.
Assim, longe de ser resolvida na zona rural, como no caso do perímetro, esta situação perdura
sem previsão de solução.
Vale destacar que, embora poucos tenham mencionado jogar o lixo a céu aberto,
como tipos de coleta ou destino do lixo, esse problema é visível ao longo do Perímetro e,
segundo dados do Distrito, os materiais como sacos plásticos e garrafas pet‟s são os maiores
causadores de entupimento do sistema de bombeamento. Além do lixo doméstico, a casca do
coco também é um problema ambiental grave no citado espaço rural.
As cascas do coco verde correspondem a 80% do peso bruto do fruto. No entanto,
ao contrário das cascas de coco seco que são utilizadas tradicionalmente para a produção de
pó e fibra, o resíduo do coco verde é comumente descartado.
No perímetro estudado existe uma agroindústria particular que processa
diariamente até 80.000 frutos (para a produção de água coco, que é exportada) e quase todo o
material é descartado a céu aberto. Em Fortaleza – a 90 km de Paraipaba – este material vem
sendo disposto em aterros e lixões, provocando um enorme problema para os serviços
municipais de coleta de lixo, em função, principalmente, do grande volume.
14,5
83,2
11,3
TIPO DE COLETA DE LIXO EM %
Coleta
A céu aberto
Queimado
Enterrado
105
O Perímetro Irrigado Curu-Paraipaba conta com quase 2.500 ha de coco,
produzindo anualmente em torno de 32.000.000 frutos, sendo que, desse total, 40% é
comercializado seco e quase 40% é comercializado para as agroindústrias.
A comercialização da parte seca – cerca de nove milhões de casca – se dá por
meio dos atravessadores, que colhem o produto no campo e deixam as cascas a céu aberto ou
queimam, contribuindo para a poluição do meio ambiente e a proliferação de doenças. A parte
comercializada para as agroindústrias ocasiona os mesmos problemas ambientais.
Como alternativa para amenizar o problema, a EMBRAPA Agroindustrial
desenvolveu um processo para obtenção do pó e da fibra da casca de coco, através da
utilização de um conjunto de equipamentos desenvolvidos em parceria com uma metalúrgica.
Nesse sentido, em parceria com o DNOCS e o Distrito foi implantada, pela
EMBRAPA, uma unidade demonstrativa, que ainda não funcionou, de fato, devido a
problemas de infraestrutura deficiente, falta de capital de giro e apoio à comercialização. O
Distrito vem lutando para resolver estas pendências e colocar a referida unidade em
funcionamento. Também está sendo implantada uma unidade para beneficiar a casca de coco
seco.
Contudo, mesmo com as unidades em funcionamento, este grave problema está
longe de ser resolvido. Por outro lado, boa parte desse material processado poderia retornar
para as lavouras na forma de cobertura morta64
ou compostagem65
, técnicas que elevariam a
capacidade produtiva do Projeto.
2.6. Os dilemas da sucessão hereditária e seus impactos na agricultura familiar
Após primeira análise sobre o funcionamento atual do Projeto, temos que os irrigantes
passam por diversas dificuldades relacionadas tanto às questões do sucateamento da
infraestrutura de irrigação de uso comum, como as de caráter social e econômico-produtiva.
Esses aspectos abordados reforçam os entraves ao desenvolvimento dessa área e sinalizam
algumas razões que favorecem o distanciamento de sua juventude.
Dessa forma, não diferente dos dilemas inerentes à agricultura familiar, o Perímetro
convive com algumas questões preponderantes: sucessão profissional, envelhecimento,
aposentadoria, continuidade e êxodo rural.
64 Técnica recomendada pela EMBRAPA, como forma de proteger os solos e aumentar a eficiência da irrigação. 65 Técnica de adubação natural, recomendada pela EMATER e EMBRAPA, na qual se utiliza restos culturais
orgânicos (nesse caso a casca do coco) e mistura-se com esterco de gado (por exemplo).
106
Embora a questão da sucessão hereditária seja um dilema central da agricultura familiar
e fruto de diversos estudos atuais, essa preocupação parece não ter sido visualizada pela
política executada pelo DNOCS, confirmada no depoimento de uma Assistente Social
pertencente ao seu quadro técnico:
[...] Não existia um trabalho específico para a inclusão dos jovens nas metas dos
programas governamentais. A própria questão fundiária, principalmente no que se refere à titulação dos lotes passou a ser alvo do governo apenas no final de 2002,
quando os perímetros mais antigos já tinham mais de 30 anos de implantação e
muitos colonos titulares dos lotes até já haviam falecido sem que a questão da
sucessão e mesmo da titulação tivesse sido resolvida. Como eu disse, as atividades
direcionadas aos jovens – executadas diretamente pelo DNOCS – estavam muito
mais ligadas a temas de relacionamentos. Por outro lado, os mesmos não eram
convidados a participar das discussões sobre a gestão do perímetro, formação dos
distritos e cooperativas. Apenas o produtor/irrigante era convocado para esses
momentos, o que de certa forma, afastou os jovens. (Raimundinha, Assistente Social
do DNOCS)
Essa conduta do DNOCS, em princípio, foi decisiva no processo de socialização
dos jovens, seja no seio da família ou no contexto comunitário, deixando-os à margem e
invisíveis, o que, consequentemente, vem dificultando a continuidade da agricultura familiar
no projeto.
Nessa perspectiva, várias pesquisas – principalmente localizadas na região sul do
Brasil – destacam uma perspectiva de esvaziamento do meio rural, o qual é ocasionado, dentre
outros fatores, pela insatisfação com os rendimentos gerados por meio da agricultura, pela
imagem negativa deste trabalho, destacando-a como uma atividade penosa e sem prestígio
social. Alia-se a esses fatores a possibilidade dos jovens ampliarem seus estudos e
conseguirem empregos mais rentáveis e mais valorizados nos espaços urbanos. (CASTRO,
2005; ABRAMOVAY e CARAMANO, 1998; BRUMER (Coord.), 2002; CARNEIRO, 1998;
SIQUEIRA, 2003; SILVESTRO, 2001)
Nesse contexto, surge a preocupação com a juventude e sua reprodução nesses
espaços rurais, a sua formação e a continuidade da atividade agrícola. Se junta também a essas
discussões o próprio futuro desses espaços, bem como todas as concepções de vida e de
desenvolvimento que estão embutidas nessa problemática.
É relevante confirmar que nesta investigação estamos nos apoiando nas reflexões
sobre desenvolvimento, impetradas por Veiga (2001, p. 105). Segundo o autor, não se pode
enxergá-lo somente por seu viés econômico ou como uma simples “manipulação ideológica”,
englobando também a possibilidade dos sujeitos desempenharem suas capacidades criativas e
107
de fazerem suas escolhas, o que está associado ao “processo de expansão das liberdades reais
que as pessoas desfrutam66
”.
O processo de desenvolvimento pode expandir as capacidades humanas, expandindo as escolhas que as pessoas têm para viver vidas plenas e criativas. E as pessoas são
tanto beneficiárias desse desenvolvimento, como agentes do processo e da mudança
que provocam. (VEIGA, 2008, p. 85)
Com isso, o desenvolvimento rural está associado à redução da pobreza e das
desigualdades sociais e, consequentemente, a ampliação do acesso dos indivíduos aos serviços
públicos essenciais (saúde, educação, seguridade, segurança, emprego, transporte, lazer,
cultura, etc.), mas também possibilitar aos agricultores o acesso a terra, com condições para
produzir e viver dignamente. (VEIGA, 2001)
Diante dessas considerações, temos o debate sobre a formação de novos
agricultores. De acordo com Abramovay, a preocupação em formar novas gerações para o
exercício da atividade agrícola se justifica porque esta atividade “[...] envolve mais que o
aprendizado de um ofício, a gestão de um patrimônio imobilizado em terras e capital.”
Inserido num contexto familiar em que o jovem está devidamente incorporado, este patrimônio
por um lado é “[...] a base material de um negócio mercantil e por outro é sobre ele que
repousa não só a manutenção, mas a própria organização da vida familiar.”
(ABRAMOVAY, 1998, p.18)
Esta preocupação também é legítima quando nos reportarmos ao contexto do
Perímetro estudado, pois esta questão interfere na sua própria sustentabilidade. Conforme
salientado anteriormente, o Projeto dispõe de uma infraestrutura de irrigação de uso comum –
implantada com recursos públicos – que, segundo os objetivos que justificaram a implantação
do empreendimento, deve garantir a produção agrícola nas unidades parcelares.67
Logo, todas
essas unidades devem estar produzindo inteiramente, a fim de possibilitar uma renda capaz de
absorver os custos de gestão, operação e manutenção dessa mesma infraestrutura de uso
comum e, sobretudo, a reprodução de todo núcleo familiar.
Dessa forma, incluir e oferecer oportunidades para que a juventude dê
continuidade à atividade agrícola no contorno irrigado, é muito importante para a
sustentabilidade do projeto em sua totalidade. É oportuno salientar que esta juventude só terá
66 Veiga toma emprestada a teoria de Amartya Sem, prêmio Nobel de economia em 1998. 67 Ou seja, nos lotes.
108
interesse em dar continuidade a esta atividade se esta oferecer condições viáveis à sua
reprodução social, o que envolve uma discussão bem mais ampla.
Nessa perspectiva, estudos vêm mostrando que o envelhecimento tende a se
ampliar no mundo rural (ABRAMOVAY, 1998), fato que tem sido constatado através dos
resultados das pesquisas já citadas, nas quais de 30,0% dos irrigantes têm idade entre 56 e 65
anos e 38,4% estão entre 66 e 85 anos, o que reforça a importância de se ampliar os estudos
sobre o futuro da juventude rural.
Essa situação, especificamente falando da realidade estudada, vem contribuindo
para o aumento da quantidade de lotes abandonados ou subutilizados (usados apenas como
moradia). De acordo com os dados da Associação do Distrito de Irrigação Curu-Paraipaba,
existe em torno de 45 lotes que estão com o fornecimento de água suspenso por falta de
pagamento das tarifas de energia e manutenção. Esses lotes, consequentemente, estão
improdutivos.
Esses dados são preocupantes, pois vem gradativamente onerando os custos de
produção dos demais irrigantes, uma vez que toda a infraestrutura de irrigação de uso comum
foi dimensionada para atendimento total das unidades parcelares, ocasionado, inclusive,
elevados custos de manutenção e de energia de bombeamento.
É possível citar, a título de exemplo, o caso de uma família de colono do setor
C268
que a partir do falecimento do seu patriarca, a esposa, apesar de ter três filhos, foi
obrigada a “vender” a posse do lote a terceiros, por não ter quem quisesse suceder às
atividades agrícolas:
[...] Eu gostava muito de trabalhar no lote. Quando eu tinha saúde eu e o meu
Francisco cuidava bem do lote. Agora que ele se foi eu tenho que vender o lote para
pagar dívidas porque eu tive que pedir dinheiro emprestado para custear o tratamento do Francisco. Meus filhos não têm condições de colocar o lote para
frente, de cuidar. Um é empregado dos Correios, o outro não quer trabalhar no lote
porque não tem recurso e minha filha não tem vocação para agricultura. Então vou
vender o lote e ficar com o meu quintal. Com o dinheiro pago minhas contas e
invisto no quintal. (D. Mazé – agricultora, viúva).
68 O Perímetro é subdividido em setores: B, C1, C2, D1, D2, E, G e H. Os seis primeiros correspondem à
primeira etapa e os dois últimos, à segunda etapa.
109
Esse depoimento é reforçado por outra liderança local, que também se preocupa
com o esvaziamento do Perímetro por parte dos irrigantes de origem e, ao mesmo tempo, com
a ocupação de pessoas ditas “estrangeiras”69
:
[...] Hoje o único problema que sofremo é com a venda de lote. Veio muitas pessoas
de lugares diferentes, as rédeas foram soltas e perdeu o controle sobre o perímetro,
pois a maioria dos lotes vendidos foram para estrangeiros, o que gera certo
descontrole e acaba prejudicando o relacionamento da população, pois aumenta o tráfico e roubos. Mas de quem é a culpa? Esses culpados somos nós mesmos, pois
antigamente não podia colocar ninguém de fora, só se fosse filho de colono, mas
com o grande número de venda de terreno o perímetro se encontra um desastre. (Zé
Barroso, liderança local)
Como podemos perceber, o abandono das áreas irrigadas pelos colonos, em razão
dos filhos não quererem sucedê-los, também abre espaço para que pessoas alheias à
agricultura familiar, ou melhor, fora dos critérios originais de seleção do DNOCS, acabem
“comprando” essas propriedades. Esse fato, se por um lado compromete a segurança das
famílias originais, conforme detalha o depoimento, por outro lado também possibilitou a
vinda de pessoas que possuíam outras fontes de renda – especialmente aposentados – que
passaram a investir na agricultura irrigada, o que até foi bem visto pelo DNOCS, conforme
depoimento de um proprietário de lote.
Outra coisa é que o pessoal do DNOCS acreditava que o pessoal como eu, que
estava irrigante, poderia melhorar o perímetro, mas nós não fomos bem aceitos pelos
irrigantes tradicionais. Então houve sempre um pé atrás com a gente. (J.R.,
aposentado)
Outro depoimento de uma liderança local – ex-presidente do Distrito – destaca sua
preocupação com o abandono dos lotes:
A maioria dos moto-taxis aqui do projeto são filhos de irrigantes, e a maioria deles
tem lote e está parado. Então ele preferiu pegar o dinheiro de uma moto, comprar
uma moto, uma bata e trabalhar de taxista. E o lote parado. Quando produz é muito
mal. (Washington, ex-presidente do Distrito)
69 Grifos nossos. Estrangeiro aqui pode ser tanto uma pessoa de fora do país, como uma pessoa de fora do
perímetro, que adquiriu o lote e não foi selecionado pelo DNOCS.
110
Esses dados preliminares reforçam a necessidade de se discutir sobre o futuro do
Projeto, e essa questão remonta à discussão do lugar que ocupa o jovem agricultor nesse
contexto, tão bem ressaltado no depoimento de uma jovem – filha de irrigante:
[...] Sou filha de irrigante, nascida no Perímetro, moradora dele desde então.
Trabalho com irrigantes há 04 (quatro) anos e todos os dias escuto histórias sobre o
Perímetro, agricultura familiar, nossa finalidade no Perímetro e muitas outras coisas, e sei que ainda há muito o que se saber. Meu pai (agricultor) faz parte da segunda
geração de irrigantes, sempre cuidou do lote sozinho, ajudávamos apenas a fazer
algumas plantações e colheitas, nunca participávamos ativamente da vida da
agricultura familiar como tinha que ser. Só aos 21 anos, quanto comecei a trabalhar
na cooperativa foi que descobri que as coisas não eram tão fáceis como parecia, meu
pai tinha que se virar como podia pra não deixar faltar alimento em nossa casa. As
coisas aconteciam e não havia um diálogo de esclarecimento entre ele e nós,
estávamos por fora da realidade do nosso dia-a-dia. Descobri que meu pai cultivava
cana-de-açúcar pra poder manter em dias a energia de bombeamento e manter a
estrutura do lote, que ele não tinha um documento que comprovasse que ele era
dono da terra e outras coisas mais. Vi que tudo que parecia muito fácil, era realmente muito difícil, mas isso não acontecia só comigo, a grande maioria dos
jovens continuam sem saber. Eles não sabem a diferença entre os órgãos como
DNOCS, Associação e Cooperativa. Uma pequena parte da terceira geração da qual
faço parte, sonham em concluir os estudos, entrar em uma faculdade e mudar
totalmente de vida, outros estudam apenas para escapar das atividades impostas
pelos pais, e só se preocupam em quando terminar os estudos procurar uma
ocupação fora da agricultura. Eles são incentivados pelos pais e principalmente pelas
mães, que dizem que não querem que os filhos passem pelo que elas passaram e por
isso os abstêm dos serviços pesados70; o restante abandonam os estudos, não se
interessam pela agricultura e fazem coisas ilícitas para manter vícios que eles
adquirem. (Cristiane, 24 anos, filha de irrigante, funcionária da Cooperativa).
O depoimento da jovem sinaliza aspectos muito relevantes, tais como o
distanciamento dos jovens do cotidiano do projeto, a falta de comunicação entre pais e filhos
sobre esse assunto, o (des) incentivo dos pais e, sobretudo, da mãe, para que os filhos deem
continuidade à atividade agrícola. Destaca-se ainda no depoimento a visão que eles têm da
agricultura como uma atividade penosa, “pesada” e de pouco retorno econômico, além do
desconhecimento sobre a estrutura organizacional do próprio projeto, fato este que também é
destacado nos estudos de outros espaços rurais.
Outro aspecto relevante apontado nos estudos sobre sucessão na agricultura
familiar está relacionado à limitação da área: “[...] o negócio exige a continuidade do caráter
familiar da gestão e do trabalho e suas dimensões não permitem que dele dependam mais que
uma família.” (ABRAMOVAY, 1998, p. 19) Nesse sentido, por esse e vários outros fatores
70 Grifos nossos.
111
limitantes, os jovens acabam sendo levados a procurar outras formas de sobrevivência.
(CARNEIRO, 1998; BRUMER, 2007; CASTRO, 2005)
No caso do Perímetro em estudo acontece um fato singular: o lote e o quintal
(com uma área total de 3,72 hectares), apesar de ser considerado legalmente indivisível,
costumam ser “repartido” informalmente entre os filhos que desejam continuar ou precisam
continuar trabalhando na agricultura irrigada, embora o patriarca continue formalmente
responsável pela área. Esse processo ocorre geralmente quando o mesmo se aposenta e deixa
de depender financeiramente da renda agrícola, coincidindo com o fato dos filhos se casarem
e constituírem família, as quais, muitas vezes, se fixam na mesma área dos pais. Essas
reflexões serão aprofundadas a partir das discussões dos resultados da pesquisa de campo com
a juventude.
Essa afirmativa se confirma no resultado da “Pesquisa Perímetro Irrigado: Versão
32 Anos”, onde 49,3% dos lotes dos entrevistados possuem mais de uma família morando,
sendo que 62,6% desses mesmos irrigantes afirmaram possuir filhos e/ou netos trabalhando
na mesma unidade familiar.
Vale acrescentar que a maioria das unidades que foram subdivididas perdeu a sua
viabilidade econômica, deixando de ser autossustentáveis. Assim, observando esse
movimento, como a produção agrícola não absorve todos os custos de produção e reprodução
familiar, entendemos que esses grupos precisaram buscar outras fontes de renda e muitos,
inclusive, são atendidos pelo Programa Bolsa Família ou dependem economicamente da
aposentadoria dos mais velhos.
Nesse contexto, percebemos, que, apesar da agricultura irrigada ser a principal
fonte de renda desses produtores, quase 70% deles afirmaram possuir renda não agrícola,
sendo que a principal é a aposentadoria. Por outro lado, de acordo com a Secretaria Municipal
de Desenvolvimento Social, 661 famílias que moram no perímetro são atendidas pelo
Programa Bolsa Família. Já mencionados, esses dados demonstram a perda de centralidade da
agricultura irrigada como única fonte de renda, como o fora no início do projeto.
Por outro lado, conforme ressaltou Abramovay (1998, p. 66), “[...] o processo
sucessório na agricultura familiar está articulado em torno da figura paterna que determina
o momento e a forma da passagem das responsabilidades sobre a gestão do estabelecimento
para a próxima geração.” Este dado é confirmado pela pesquisa, quando 67,7% dos
agricultores entrevistados afirmaram serem os responsáveis pela gestão da sua unidade
agrícola, apesar de possuírem filhos ou netos trabalhando na mesma terra. Esse assunto será
aprofundado no próximo capítulo.
112
Assim, estudos coordenados por Castro (2005, p. 26), destacam “o peso da
autoridade paterna”, que limita e controla o envolvimento dos jovens na gestão da unidade
agrícola, bem como determina o processo sucessório, o que também se percebe no Perímetro
estudado.
É importante destacar que no universo estudado temos, pelo menos, três gerações
envolvidas: o colono – que foi em sua maioria assentado pelo DNOCS e que está com mais de
66 anos –, o filho que permaneceu na terra, que já constituiu família e que está com mais de
40 anos, e os netos, que possuem idades variadas de até 29 anos. Acreditamos que seja esta
terceira geração a mais vulnerável, e que a mesma esteja na citada condição de isolamento
social.
Nesse sentido, de acordo com Abramovay “o interesse dos jovens pela vida no
meio rural passa pela valorização de suas iniciativas e, portanto, pelas responsabilidades
que eles podem assumir no interior das unidades produtivas.” (1998, p. 92) Outras pesquisas
realizadas na região Sul corroboram com essa premissa, ou seja, repassar responsabilidades
para os filhos, além de garantir uma renda própria para os mesmos, trata-se do
reconhecimento pela importância do seu trabalho. (WEISHEIMER, 2005)
No caso do perímetro em questão, percebemos que o irrigante continua
responsável pela gestão do lote até a sua morte ou prostração por motivos de doença, sendo
que a participação dos filhos é limitada. Nesse caso, muitos não recebem qualquer
remuneração e sua força de trabalho é tida como uma ajuda, o que os estimula a procurar
outras fontes de renda, conforme depoimento de um jovem filho de irrigante.
Eu gostava de trabalhar no lote com meu pai, mas a gente não recebia uma diária
como a dos trabalhadores que o pai contratava. E a gente trabalhava igual a eles.
Quando o meu irmão queria ganhar um dinheirinho tinha que trabalhar alugado para os outros. Então eu vim trabalhar na fábrica e ganhar o meu salário. (Gerlan, 19
anos, filhos de irrigante)
Portanto, as motivações e estímulos aos quais os autores fazem alusão passam, em
nosso entendimento, a requerer das instituições mediadoras e de seus agentes uma atuação
relevante no sentido de avaliar o papel da educação e das demais instâncias envolvidas nessa
complexa teia de relações, buscando perceber em que medida está colaborando com a
permanência dos jovens no campo, de que forma esta propicia a interação com a realidade
local ou mesmo se valoriza ou não o trabalho agrícola.
113
Além disso, os dados empíricos sugerem uma avaliação sobre a intervenção das
políticas públicas de proteção e controle social, especialmente as políticas de prevenção e
erradicação do trabalho infantil, definidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n°
8.069/90 de 13 de julho de 1990) uma vez que a formação do agricultor, conforme
demonstrado em diversos estudos se dá junto à família no dia a dia, e desde muito cedo.
Resultados de pesquisa realizada no Vale do Jequitinhonha (MG) – cujos dados demonstram
uma valorização do trabalho agrícola, ao contrário do que aponta grande parte das pesquisas
sobre o tema – destaca que “[...] esses ensinamentos começam com as crianças observando
diariamente o trabalho dos pais. Realizam pequenas tarefas e, à medida que vai crescendo, o
trabalho vai se intensificando até dominarem todas as atividades desenvolvidas na unidade
familiar.” (MENDONÇA, RIBEIRO e GALIZONI, 2008: 9)
Dessa forma, segundo Neves (1999), no caso da formação de agricultor, é
essencial que os pais transmitam seus conhecimentos e experiências. Esse processo se dá na
prática cotidiana.
A proibição do trabalho infantil – embora se destine a garantir que todas as
crianças e adolescentes tenham acesso à educação e, no caso do meio rural, impeça que estes
trabalhem em situações de risco e insalubres, como no corte da cana-de-açúcar, por exemplo –
, acaba impedindo que os pais ensinem a seus filhos o valor do trabalho agrícola e incentiva o
distanciamento da juventude de seu espaço rural, conforme destaca o depoimento de um
irrigante do setor C2.
A maioria dos lotes se encontra abandonados, principalmente pelos filhos de colono,
eles não querem saber da agricultura. Em minha opinião, isso vem acontecendo
devido ao uso de drogas, bebidas, e a falta de ensinamento da parte dos pais, pois
eles deveriam entusiasmar mais seus filhos, para que eles pudessem dar
continuidade ao trabalho. Comecei a trabalhar com oito anos de idade. Hoje há
muito problema com o Conselho Tutelar em colocar os filhos para trabalhar. [...] Eu
sou contra em alguns pontos, pois tem a hora de trabalhar e a hora de estudar. Um
não atrapalhando o outro da certo. [...] Eu sempre falei que não tem autoridade no mundo que faça eu botar um filho meu no mundo para não trabalhar. [...] Temos que
saber educar os nossos filhos, para que depois não estejam nos fazendo sofrer, se
envolvendo no que não deve. (Francisco de Oliveira, irrigante)
Nessa perspectiva, em primeira instância, percebemos um enorme isolamento
social dos jovens que vivem no Projeto. Muitos terminam o nível médio e não sabem o que
vão fazer ou não têm condições econômicas para realizar seus sonhos e projetos profissionais
na própria localidade. Outros vão trabalhar em atividades ligadas à comercialização do coco,
114
tais como: “tiradores” de coco verde ou “descascadores” de coco seco, além de carregadores
dos caminhões que realizam o transporte da produção. Alguns também vão “trabalhar
alugado”71
, de moto-taxi ou na Prefeitura. Nesse último caso, na maioria das vezes, como
moeda de troca pelo voto na última eleição, submetendo-se a salários irrisórios72
. Essas
reflexões serão resgatadas e ampliadas no capítulo posterior.
Assim, registramos uma tendência de surgimento de famílias pluriativas73
no
projeto estudado, sendo que essa categoria vem sendo discutida na agenda de pesquisas de
vários estudiosos do mundo rural74
. Carneiro (2008), quando analisa que a sociologia rural
tradicionalmente “provocou a reificação de uma imagem dicotômica da sociedade sustentada
na oposição entre campo e cidade”, tendo como consequência a “identificação do rural com
a produção agrícola e do urbano com o trabalho industrial, comercial e de serviços”, aponta
para uma tendência de valorização do urbano como espaço de progresso e desenvolvimento,
enquanto “ao rural cabe o estigma do atraso, da tradição e do estático”. (Idem, p. 22 - 23)
Muito incisivo, o depoimento do atual presidente do Distrito a esse respeito é revelador.
[...] Se ponha no lugar de um pai, nenhum quer ver seu filho morrer de trabalhar
dentro de um lote, você quer ver seu filho estudando, para conseguir algo melhor.
Pra mim a agricultura é a ultima profissão que ficou no mundo. Isso é pra quem não
tem estudo nenhum. Os nossos pais sempre disseram, quem não quer estudar vai
trabalhar no cabo da inchada, é muito sacrificoso. Quando a pessoa num dá pra ser
nada ela dá bem certinho pra ser agricultor. (João, 51 anos, agricultor)
Essa situação fomenta a necessidade de uma investigação mais aprofundada,
buscando verificar as possibilidades e os limites de desenvolvimento do próprio perímetro.
Conforme alertado anteriormente, se somam à ausência de incentivos para que o jovem dê
continuidade à atividade da agricultura irrigada, os problemas relacionados aos custos de
produção, às limitações de recursos financeiros e dificuldade de acesso a financiamentos,
além dos problemas estruturais já levantados.
Dessa forma, essas discussões são muito importantes para analisarmos o futuro
das regiões rurais e, especificamente, o futuro do Perímetro Curu- Paraipaba, como espaço de
71 Esta expressão é usada quando alguém vai trabalhar na diária em lote de propriedade de terceiros, ou seja, não
familiar. 72 Muitos que trabalham na Prefeitura têm emprego de meio expediente, não são concursados e ganham menos
de um salário, além de receberem quase sempre atrasado. 73 Considerada como uma das estratégias de reprodução da agricultura familiar, Scheneider define objetivamente
a pluriatividade como (...) “um fenômeno que pressupõe a combinação de duas ou mais atividades, sendo uma
delas a agricultura”. (2009, p. 141) 74 Para obter maiores informações sobre pluriatividade, consultar Carneiro (1998, 2009), Scheneider (1999,
2001, 2003, 2004, 2009), Sacco dos Anjos ( 2009)
115
produção agrícola familiar. E mais que isso, diante de todos os impasses, controvérsias e
problemas, é importante indagarmos se o trabalho na agricultura irrigada é realmente viável
para a juventude ou mesmo como eles percebem o perímetro e quais as suas expectativas
profissionais.
116
CAPÍTULO 03 - OS PROJETOS DE VIDA DA JUVENTUDE: ENTRE O SONHO E A
REALIDADE
“Uma verdadeira política de desenvolvimento rural deve associar a atribuição de ativos aos
jovens – dos quais o mais importante é a educação de qualidade – com o estímulo a um
ambiente que estimule a formação de projetos inovadores que façam do meio rural, não
uma fatalidade, mas uma opção de vida”.
Abramovay
O Perímetro estudado caracteriza-se por um elevado contingente de pessoas na
faixa etária entre 55 e 85 anos – totalizando mais de 20% da sua população. Por outro lado,
notamos a existência de um significativo percentual de pessoas na faixa etária de 15 a 25
anos, totalizando cerca de 17%, conforme visualizamos no gráfico a seguir.
Gráfico 17
Fonte: ADICP, 2007
Com base nisso, verificamos, claramente, que, no Perímetro, se de um lado é
expressiva a quantidade de idosos (especialmente formada pelos colonos titulares dos lotes)
de outro, é significativa a permanência de uma população considerada jovem, capaz, portanto,
de suceder os pais nas atividades agrícolas, invocando a necessidade de uma investigação
mais aprofundada acerca desses sujeitos, enfatizando suas expectativas em termos de futuro
profissional, a percepção que eles têm sobre a agricultura, o Perímetro, as suas organizações e
as possibilidades da agricultura irrigada.
117
Com esse intuito, este capítulo retrata os resultados da pesquisa, tendo em vista a
apreensão do constructo mental da juventude, em relação aos aspectos já citados. A análise
avança, ainda, para o entendimento do cenário que se prospecta para essa faixa da população,
ou seja, se existem e quais são os tipos de incentivos voltados para a permanência da
juventude na atividade agrícola do perímetro, bem como a sua visão sobre a existência ou
necessidade de políticas públicas voltadas para a sua inserção.
3.1. Conceituando a categoria juventude
Considerando que juventude é categoria chave para compreensão deste estudo,
necessário se faz esclarecer o enquadramento teórico que balizou as análises aqui
apresentadas. Sem pretensão de dar conta dos vários entendimentos que fazem o delineamento
conceitual da juventude no campo das ciências sociais, o estudo – dado o seu empenho em
desvendar aspectos da cultura local – seguiu uma orientação que, sem desmerecer as demais,
olha essa categoria sociológica, ultrapassando os limites de seus aspectos estritamente
biológicos ou cronológicos, pois, conforme situa Bourdieu
[...] a idade é um dado biológico socialmente manipulado e manipulável; e que falar
dos jovens como se fossem uma unidade social, um grupo constituído, dotado de
interesses comuns, e relacionar esses interesses a uma idade definida biologicamente
já constitui uma manipulação evidente. (Bourdieu, 1983, p. 113)
Assim, embora reconhecendo a relevância de outros enfoques, a análise da juventude
do Perímetro Curu-Paraipaba requer visões que apreendam o seu universo relacional, ou seja,
que a perceba como construção sociocultural-histórica complexa, sem perder de vista suas
múltiplas dimensões, conforme a riqueza descrita por Weisheimer:
Entende-se por juventude uma categoria relacional fundada em representações
sociais, tais como as que conferem sentidos ao pertencimento a uma faixa etária, que
posiciona os sujeitos na hierarquia social a fim de promover a incorporação de papeis sociais através dos diferentes processos de socialização que configuram as
transições da infância à vida adulta. (...) Entre as características dessa categoria,
destaca-se a ambivalência típica de sua situação liminar e transitória; a posição
subalterna aos adultos na hierarquia social; a conflitividade originada pelo processo
de individualização nesta situação liminar e subalterna; a criatividade e capacidade
de inovação própria do contato original das novas gerações com a cultura pré-
estabelecida. (WEISHEIMER, 2009, p. 86)
118
Assim sendo, o conteúdo analítico traçou caminhos metodológicos que olha a
juventude integrando-a ao contexto do Perímetro Irrigado Curu-Paraipaba, quer dizer,
considerando todo o processo de socialização em que ela se insere, percebendo, inclusive, os
principais condicionantes dessa realidade, os quais produzem seus reflexos nessa mesma
juventude.
Em termos operacionais, sem, necessariamente, priorizar uma faixa etária,
consideramos como público de análise três grupos de jovens a seguir detalhados: 1) os jovens
que estão cursando o nono ano do ensino fundamental (etapa em que eles têm um
relacionamento mais aproximado com os pais, irmãos e vizinhança, marcado por uma fase em
que os mesmos estão terminando a primeira etapa de escolarização e devem definir se
pretendem continuar ou não os estudos na sede da Cidade75
); 2) os jovens que estão no ensino
médio (essa etapa representa, de certa forma, um rompimento com a fase em que o indivíduo
se relaciona quase exclusivamente com os familiares e vizinhos, iniciando um novo ciclo, pois
já experimenta uma relativa autonomia em relação aos pais, gozando de liberdade, por
exemplo, para apanhar o transporte escolar sozinho, para se relacionar com jovens de outras
localidades e da sede). Os resultados das várias opiniões desses dois grupos de jovens serão
debatidas e confrontadas com as discussões travadas com os jovens filhos ou netos de
irrigantes que não estão mais estudando e buscam se inserir no mercado de trabalho.
A análise dos dados coletados em campo impôs a necessidade de organização dos
resultados agrupados nos seguintes aspectos:
i. Percepções sobre a agricultura;
ii. Inserção no mercado de trabalho;
iii. Percepções sobre o futuro profissional;
iv. Versões e opiniões sobre o Perímetro e suas organizações;
v. Versões e opiniões sobre a sucessão da agricultura familiar;
vi. Percepções da juventude sobre si e sobre seus problemas.
Antes de iniciar os blocos de discussões é importante acentuar um breve perfil do
público pesquisado. Em termos de faixa etária, os jovens do nono ano do ensino fundamental
contam entre 14 e 18 anos, sendo que a grande maioria encontra-se na faixa de 14 a 16 anos,
com 88%. Vejamos o gráfico abaixo:
75 As escolas do Perímetro oferecem até o Ensino Fundamental. O Ensino Médio é ofertado nas escolas da sede
da cidade.
119
Gráfico 18
Fonte: Pesquisa de Campo
Em relação aos aspectos conjugais, 87% deles são solteiros e 100% moram com
os pais.
Quanto aos jovens do Ensino Médio, a grande maioria está na faixa etária entre 15
a 17 anos, com quase 67%, conforme se verifica no gráfico a seguir:
Gráfico 19
Fonte: Pesquisa de Campo
Em relação aos aspectos conjugais, 100% deles são solteiros e quase 88% moram
com os pais.
Esses resultados preliminares salientam que o público estudado, até pela condição
etária76
, em sua maioria, está vinculado ecnomicamente ao núcleo familiar. Mesmo os poucos
que constituíram família continuam no mesmo teto dos pais, demonstrando pouca autonomia.
Quando indagados sobre terem irmãos, cerca de 84% dos jovens do ensino
fundamental afirmaram possuir irmãos, sendo que apenas 19% deles trabalham na agricultura.
76 A esmagadora maioria tem menos de 17 anos.
120
Quanto aos jovens do ensino médio, quase 96% têm irmãos, sendo que 57% destes não
trabalham na agricultura, conforme gráfico a seguir apresentado:
Gráfico 20
Fonte: Pesquisa de Campo
Ao analisar os dois públicos, esses resultados podem enfatizar, preliminarmente,
tendência de ruptura com o trabalho agrícola, uma vez que a grande maioria dos irmãos dos
jovens do ensino fundamental não está exercendo essa atividade.
Quanto aos jovens do terceiro grupo – com o qual foi realizada a técnica
conhecida como grupo focal – pode-se afirmar que se trata de um grupo formado por jovens
entre 18 e 22 anos, sendo que a maioria já concluiu o ensino médio, estão solteiros e
continuam morando com os pais77
.
Quanto ao fato de terem irmãos, todos têm irmãos, sendo que 60% deles
trabalham na agricultura. Embora a maioria tenha irmãos trabalhando na agricultura, não
podemos deixar de considerar que também nessa faixa etária registramos processo de ruptura
com o trabalho agrícola no âmbito da unidade parcelar.
3.2. Percepções sobre a agricultura
Alguns estudos sobre a juventude rural apontam que o desejo de permanecer no
campo não significa mais necessariamente dar continuidade à profissão de agricultor,
apresentando a tendência de que o rural não está mais naturalmente vinculado ao agrícola
(CARNEIRO, 1998; ABRAMOVAY et al, 1998).
77 Dos sete jovens que participaram do grupo focal, seis moram com os pais e apenas um é casado e tem uma
casa própria.
sim43%
não57%
% DE JOVENS DO ENS. MÉDIO QUE
TÊM IRMÃOS TRABALHANDO NA
AGRICULTURA
121
Por outro lado, existe uma tendência em considerar o rural como um lugar de
atraso, o que, de certa forma, tem a ver com as condições objetivas de infraestrutura desses
espaços rurais em comparação com os centros urbanos, ou seja, é no campo que se encontra o
menor índice de qualidade de vida no que se refere a saneamento básico, por exemplo, ou
mesmo possibilidade para acessar a universidade pública gratuita.
Nesse sentido, alguns estudos reforçam o debate em torno da necessidade de
melhoria das condições de vida das pequenas cidades e das zonas rurais, pois se por um lado o
jovem não pretende necessariamente ser agricultor, por outro, ele também não pretende
impreterivelmente sair de sua localidade, embora não queira abrir mão da qualidade de vida e
acesso à educação, lazer, trabalho, dentre outros, conforme assinala Carneiro (2007, p. 63).
A valorização da aldeia não implica a negação dos bens imateriais e materiais urbanos. [...]
Mesmo não relacionando seu futuro a agricultura, muito jovens pretendem continuar
morando na localidade rural, mas sem abrir mão do acesso a educação e a novos campos de
conhecimento como a informática, por exemplo [...]
Esse breve debate se impôs para dar suporte às analises que, decorrentes da
pesquisa, buscaram apreender as várias visões dos jovens sobre a atividade agrícola, bem
como sua relação com a mesma.
É válido acrescentar que nesse estudo estamos considerando como trabalho
agrícola aquele praticado na unidade familiar agrícola.
Assim, os jovens do Ensino Fundamental, quando indagados sobre a experiência
de trabalho na agricultura, confirmam o que têm mostrado, recentemente, as principais
referências teóricas no que se refere à perspectiva de rompimento com o trabalho agrícola.
Consultando os gráficos a seguir, constatamos que apenas 7% do público pesquisado exerce,
regularmente, atividades agrícolas; 32% trabalham, mas só esporadicamente, enquanto 61%
desses estudantes distanciaram-se totalmente da atividade. Esses últimos, por diversos
motivos, sendo que o principal deles foi não gostar dessa atividade, com quase 32%, seguido
dos que consideram esse trabalho como algo penoso, com 26%, enquanto quase 16% dizem
que a mãe dá preferência que o jovem estude ao invés de exercer o trabalho agrícola. Vejamos
os gráficos.
122
Gráfico 21
Fonte: Pesquisa de Campo.
Gráfico 22
Fonte: Pesquisa de Campo.
Esses primeiros resultados corroboram com as pesquisas que apontam para uma
tendência de descontinuidade da profissão de agricultor, colocando em risco o futuro da
agricultura familiar no bojo do perímetro estudado. Assim, a não inserção dos jovens no
processo de trabalho familiar agrícola, de acordo com as observações empíricas, podem
interferir em suas decisões sobre a continuidade dessa atividade. Essas observações são
relevantes, se considerarmos que o processo de socialização da agricultura familiar produz e
incorpora conhecimentos e saberes próprios, reproduzindo, sobretudo, valores culturais
específicos. (NASCIMENTO, 2010)
Por outro lado, considerando que “o trabalho familiar é o elemento central da
reprodução da agricultura familiar” (WEISHEMER, 2009, p. 172) e que este importante elo
vem se rompendo (pelo menos em relação aos jovens que estão concluindo o Ensino
Fundamental), questionamos sobre que incentivos esses jovens estão recebendo para
permanecer na agricultura.
Durante a realização da pesquisa questionamos se existem incentivos para aqueles
jovens que pretendem continuar o trabalho agrícola familiar e o resultado nos chamou a
atenção, ou seja, a maioria de quase 84% afirmou que existem incentivos, sendo que estes
123
incentivos estão relacionados às interferências da própria família e não estão vinculadas à
atuação de instituições de direito público ou privado. Melhor explicando, a pesquisa
demonstrou que os jovens desconhecem ações articuladas pelas esferas públicas ou privadas
que tenham como foco a discussão sobre agricultura familiar no âmbito do Perímetro.
Nessa perspectiva, além das três ocorrências não respondidas, as demais dezoito
se remetem a respostas relacionadas às condições objetivas de sobrevivência financeira, ou
seja, eles são incentivados a trabalhar na agricultura para “ter um futuro melhor e cuidar dos
filhos e netos, ajudar aos pais”, ou mesmo “impedir que os pais comercializem o seu lote”,
que se trata de uma fonte de subsistência familiar.
Por outro lado, os que responderam que não há incentivos atingiram um total de
cinco ocorrências, apresentando os seguintes argumentos: alegam que os pais estão vendendo
os lotes, que os jovens não se interessam mais por trabalhar no campo, porque o adolescente
não é para trabalhar no campo e outros motivos relacionado ao comportamento do pai ou da
família.
Desses resultados, dois chamaram mais a atenção. O primeiro é o não incentivo
para o trabalho na agricultura pelo fato dos pais estarem vendendo os terrenos, e o segundo é
que os jovens não querem mais trabalhar no campo. Esta primeira afirmativa já foi tratada
anteriormente, quando se detectou que alguns colonos de origem venderam seus lotes em
razão de terem perdido a sua força de trabalho e por não terem filhos aptos para sucedê-los.
Outros tomaram essa decisão por optarem pela divisão do valor arrecadado com a venda entre
todos os membros da família, assunto que detalharemos a seguir.
Já a segunda manifestação – dado confirmado em várias pesquisas acerca desse
assunto – pode ser explicada por diversos motivos, sendo que um deles pode estar relacionado
às dificuldades que os agricultores enfrentam para produzir, pela penosidade do trabalho ou
até mesmo porque os pais não estão preparando os filhos para essa sucessão, sobretudo por
causa da atuação das políticas públicas voltadas para a erradicação do trabalho infantil, as
quais generalizam esse trabalho como exploração e desconhecem ou desconsideram que o
trabalho no seio da agricultura familiar também pode ter outra lógica, baseada na formação de
cidadãos dignos e detentores de valores éticos. (NASCIMENTO, 2010; NEVES, 1999)
Por outra via, existem jovens que gostam do trabalho agrícola (cerca de 39%),
sendo que os motivos apresentados para trabalharem ou gostarem desse trabalho também
refletem as condições objetivas de sobrevivência, ou seja, cerca de 50% trabalham devido à
necessidade de ajudar os pais ou por acreditarem ser o futuro dos seus filhos. Não é possível
desconhecer que o mesmo percentual diz gostar da atividade e das características inerentes a
124
esta, que é “mexer com a terra e com a irrigação”, o que direciona que há possibilidade de
sucessão da agricultura familiar no perímetro estudado. Vejamos o gráfico.
Gráfico 23
Fonte: Pesquisa de Campo
Comparando esses resultados com os dos jovens do Ensino Médio, percebemos que o
percentual dos que trabalham na agricultura passa a ser significativo quando somamos os que
afirmaram trabalhar, com aqueles que trabalham esporadicamente, o que totaliza cerca de
54%. Em princípio, esse percentual dos que trabalham tenderia a aumentar, em função do
próprio aumento da faixa etária em relação aos jovens do Ensino Fundamental, ou seja, à
medida que eles vão crescendo surge a necessidade de trabalhar, e a agricultura é a opção
mais próxima para se conseguir ganhar dinheiro. Vejamos o próximo gráfico.
Gráfico 24
Fonte: Pesquisa de campo.
Por outra via, é importante destacar que a maioria dos jovens do Ensino Médio
gosta da agricultura (cerca de 79%), sendo que os motivos apresentados para gostarem dessa
atividade também refletem as condições objetivas de sobrevivência, ou seja, mais de 79%
trabalham devido à necessidade de tirar da terra o seu sustento e poderem pagar suas despesas
125
pessoais. Não é possível desconsiderar, também, que cerca de 21% disseram gostar da
atividade porque através dela se aproximam dos pais e/ou avós, passando a entender os
percalços atravessados pelos mesmos. Vale lembrar que aqueles que não gostam dessa
atividade relataram como justificativa o fato de ser um serviço pesado ou simplesmente não
gostarem de suar ou não conhecerem o trabalho.
Esses dados demonstram que os jovens não romperam definitivamente com as
atividades agrícolas, o que pode sinalizar possibilidades deles continuarem o trabalho agrícola
na área da família. Por outro lado, gostar da agricultura não signifique, necessariamente,
querer ser agricultor. Assim, é necessário analisar diversas outras variáveis ao longo deste
estudo.
Gráfico 25
Fonte: Pesquisa de campo.
O gráfico a seguir enfatiza que, apesar da grande maioria gostar da agricultura,
cerca de 54% afirmaram não saber trabalhar nesta atividade, o que reforça as observações
anteriores. Vale considerarmos que aqueles que afirmaram saber trabalhar aprenderam com
seus pais ou avós, o que também enfatiza as análises anteriormente desenvolvidas. Nesse
caso, o pai agricultor assumi a função de mestre em relação ao filho aprendiz para garantir a
continuidade da agricultura familiar ou, sobretudo, para preparar o filho para que este faça
suas próprias escolhas, sejam elas relacionadas à agricultura ou não. Por outro lado, 73% dos
que não sabem trabalhar nesta atividade são mulheres, o que reforça os resultados de várias
pesquisas que destacam o distanciamneto maior destas em relação à agricultura.
(CARNEIRO, 1998; ABRAMOVAY, 1998; CASTRO, 2005; BRUMER, 2007
WANDERLEY, 2007)
126
Gráfico 26
Fonte: Pesquisa de campo.
Para discussão sobre as possibilidades da agricultura irrigada, na visão do
terceiro grupo de jovens – os que já terminaram o Ensino Médio e estão buscando trabalho – e
sobre os incentivos para a continuidade desta atividade, vale a pena analisarmos os
depoimentos a seguir:
A irrigação é importante porque a gente não precisa esperar o inverno, a gente colhe
mais feijão, mais macaxeira, essas coisas. Na agricultura de sequeiro a gente só pode
plantar feijão e macaxeira no inverno ai quando chega a seca morre tudo. A gente
precisa da irrigação. Meu pai incentivou o trabalho desde pequeno. Sou acostumado
a trabalhar de agricultor. Ele me incentivou. (C., 20 anos)
O meu pai sempre quando eu era pequeno me acordava às 04 horas da manhã pra
nós ir mudar as redes de cano.78 No começo eu fazia só engatar os canos mesmo.
Depois ele começou a trabalhar no colégio aí mandou eu ir ajudar meu avô. Eu
continuo ainda ajudando ele por causa da idade. Porque ele já é muito idoso. (F., 18
anos)
O benefício é que a agricultura irrigada traz sempre as plantações verdinhas. Como
tem muitos sertões que não tem essa oportunidade. Aqui tem água todo dia pra
gente, mas o inverno também é importante pra encher os rios, porque se não fosse a
água das chuvas pra encher os rios como teria essa irrigação? Eu não tive
convivência com meu pai. Ele foi embora quando eu tinha 2 anos. Quem me ensinou
a trabalhar no lote foi o meu tio. Sempre me incentivava. Eu fazia rodapé lá no
tronquinho do coqueiro e com ele nós aprendemos muita coisa, a gostar do
perímetro. (Ch., 22 anos)
Deus me perdoe, mas a chuva é boa, mas todo o mundo sabe que o melhor pra
planta mesmo é a água irrigada. Porque a plantar quer é a água ali no tronco dela
mesmo. Por isso é que quando chega a irrigação é 100%. Melhora tudo em todos os
aspectos, melhora a planta, melhora o fruto. Sobre essa parte de ter influência meu
pai faleceu eu era muito novo ainda. Hoje quem me influencia muito é os meus
irmão. A gente trabalha no lote. (S., 21 anos)
Eu não consigo ver o agricultor sem água irrigada porque é de onde vem o sustento.
Quer queira quer não é de onde vem o sustento da família é da agricultura. Se fosse
esperar pelo inverno se ia plantar de seis em seis meses contando com a chuva. Com
78 Através desses canos é que a água chega para irrigar as culturas plantadas nos lotes.
127
uma coisa que você não ia ter certeza de que ia ser bom ou não o inverno.. (...)
Desde os meus 6 anos que o meu pai me levava pro lote e eu passei uns 03 anos e
meio cuidando do lote sozinho porque ele trabalhava como pedreiro. (...) Hoje a
gente tem plantação no lote e quando não tem construção a gente ta trabalhando no
lote juntamente com ele. Então isso já vem da infância. O incentivo que ele me deu
foi esse, me ensinou a trabalhar na maior riqueza que a gente aqui dentro do projeto
que é a nossa agricultura. (T., 22 anos)
A apreciação dos depoimentos nos fornece a compreensão sobre como os jovens
do Perímetro percebem a agricultura irrigada em oposição à agricultura de sequeiro, ou seja,
eles valorizam muito a irrigação, e como eles nasceram no Projeto e sempre conviveram com
esse modelo de agricultura, até estranham a possibilidade de se trabalhar apenas com culturas
de inverno, que são a principal forma de produção ainda hoje no Brasil. Além disso, é
possivel perceber que os jovens pesquisados têm esse vínculo com a agricultura irrigada
porque foram socializados na atividade, quer seja diretamente pelos pais ou por um familiar
mais próximo.
Visto de outro ângulo, apesar deles valorizarem a agricultura irrigada, estão
buscado um trabalho fora da unidade agrícola da família. Isso ocorre constantemente no
Perímetro por diversos motivos, sendo que um deles está no fato do tamanho do lote não ser
suficiente para atender às necessidades da família e à medida que os jovens vão crescendo ou
vão constituindo família, eles sentem a necessidade de ter a sua própria independência
financeira, conforme destacado nos depoimentos a seguir.
É que nem todo mundo ta dizendo mesmo, como lá em casa. Lá em casa é o lote todo mas é
dividido pra três, quatro irmão pra trabalhar, por exemplo. Hoje eu não tenho família, mas
se tivesse ia sobreviver como? Por isso é que sobrevivo pra pagar minhas continhas é
tirando coco seco. É a única coisa que apareceu. (S., 21 anos)
Pra manter a família com agricultura não dá. Porque agricultura só se for o dono do lote. E
se a gente não tem terreno próprio pra produzir a gente não vai ter aquele dinheirinho certo
todo o mês. A gente vai trabalhar fazendo bico. Quem trabalha com agricultura dois ou tres
dias com carrada de coco. Chega o sábado e o domingo a gente tá parado ai chega um
bicozinho e a gente tem que fazer aquele bico pra mode arrumar o dinheiro da semana.
Porque se não aparecer a gente vai passar dificuldade. (G., 20 anos)
Eu fui trabalhar na fábrica porque eu tenho vontade de conseguir as coisas eu mesmo. Ter
um transporte, fazer algum curso, comprar minhas roupas, um calçado, essas coisas. (G. S.
V., 19 anos)
A pesquisa de campo também procurou apreender a visão dos jovens sobre a
agricultura irrigada, a partir do questionamento sobre que nível educacional mínimo é
necessário para o exercício dessa atividade. Nesse sentido, para quase 42% dos jovens do
128
nono ano do Ensino Fundamental, o nível mínino deve ser o Ensino Fundamental, enquanto
cerca de 29% afirmaram que não necessitam ter qualquer instrução. Por outro lado, esse
mesmo percentual afirmou que é necessário ter o nível superior, o que pode indicar um certo
rompimento com a visão de que a agricultura é uma atividade para aqueles que não querem ou
não tiveram “chance” de estudar.
Cumpre ressaltar que a atividade irrigada requer tanto o conhecimento dos
especialistas – além de técnicos qualificados para produção, comercialização, manejo das
águas e do solo, controles de pragas e doenças e práticas ambientais sustentáveis – como
também de trabalhadores, cuja execução da atividade requer conhecimentos empíricos
tradicionais sobre a agricultura, tais como limpeza, capina, aplicação de defensivos e
adubação, dentre outras. Considerando ainda a possibilidade de existir a industrialização dos
produtos do perímetro, novas atividades são requeridas, aumentando substancialmente a
necessidade de outros profissionais, qualificados ou não.
Nesse sentido, é importante compreender que a agricultura, no contexto do
Perímetro estudado, vai além das atividades tradicionalmente executadas pelos trabalhadores
rurais, impondo a necessidade de formação de novos agentes capazes de gerenciar suas áreas,
colocarem seus produtos no mercado, além de ampliar a qualidade e produtividade dos
mesmos, dentre outras questões. Vejamos o gráfico:
Gráfico 27
Fonte: Pesquisa de campo.
Ao analisarmos a opinião dos jovens do Ensino Médio, temos que o percentual
dos que acreditam não precisar de qualquer nível de instrução para o execício da atividade
agrícola irrigada é muito expressivo, ou seja, 62,5% das respostas, o que pode demonstrar que
eles não apreendem a agricultura irrigada em suas múltiplas possibilidades. Também é
relevante ressaltar que 12,5% não souberam opinar, e que o mesmo percentual de 8,33% se
dividiu entre Ensino Fundamental, Ensino Médio e apenas Alfabetizado. Nenhum dos
129
entrevistados citou a necessidade de possuir o Nível Superior. Muitos dos entrevistados
justificaram suas respostas alegando que seus avós não possuíam nenhum nível de educação
formal e administram seus lotes até a presente data.
Nessa mesma via de raciocíneo, a observação direta nos possibilitou perceber que,
no discurso dos adultos (pais ou avós), estudar significa ter a possibilidade de conseguir um
emprego estável, sendo que a agricultura é vista como uma profissão desqualificada e inferior
na escala social.
Por outra via, é necessário acrescentar, conforme frisamos anteriormente, que a
agricultura irrigada possibilita espaço para todos os tipos de saberes, tanto o técnico como o
empírico. Ou nas palavras de Wanderley (2007, p. 137):
O jovem agricultor quando assume a profissão tem que assumir a tradição e a inovação. É o
desafio desse jovem. [...] A profissão de agricultor é extremamente exigente na sociedade
moderna porque tem que conciliar tradição e inovação.
Nesse sentido, é provável que os jovens entrevistados não tenham percebido as
várias possibilidades da agricultura irrigada, concentrando-se apenas nos seus aspectos mais
tradicionais. Vejamos o gráfico:
Gráfico 28
Fonte: Pesquisa de campo.
3.3. Inserção no mercado de trabalho
Seguindo rigorosamente os objetivos da pesquisa, a análise dos gráficos a seguir
demonstra que 39% dos jovens do Ensino Fundamental já exercem alguma atividade
remunerada, embora menos de 10% afirmem que contribuem com a renda familiar. Estas
respostas sugerem que se faça um breve comentário sobre o que regula o trabalho infantil e de
jovens adolescentes no Brasil.
130
Segundo a legislação trabalhista brasileira é proibido o trabalho do jovem menor
de 18 anos, em condições perigosas e insalubres, enquanto os trabalhos técnicos ou
administrativos são permitidos, desde que realizados fora das áreas de risco à saúde e à
segurança. Ao menor de 16 anos é vedado qualquer trabalho, salvo na condição de aprendiz e
a partir de 14 anos, sendo que a partir dessa idade é admissível o Contrato de Aprendiz. Ao
menor é devido, no mínimo, o salário mínimo federal. Outra função que pode ser exercida por
menores é o Estágio – Lei 6.494/77. Alunos que estiverem frequentando cursos de Nível
Superior, profissionalizante de Ensino Médio ou escolas de Educação Especial podem ser
contratados como estagiários. A legislação determina que todo empregador que contratar
menor será obrigado a conceder-lhe o tempo que for necessário para a frequência às aulas.
Gráfico 29
Fonte: Pesquisa de campo.
Gráfico 30
Fonte: Pesquisa de campo.
Os dados da pesquisa não nos possibilitam verificar em que condições específicas
esses jovens adolecentes trabalham, mas é possivel afirmar que todos trabalham avulso ou
informalmente e sem qualquer vínculo empregatício, o que contraria a legislação trabalhista.
131
A seguir podemos visualisar quais atividades eles exercem para ganhar dinheiro, segundo
levantamento de campo.
Quadro 01 - Atividades que os jovens exercem para ganhar dinheiro
ATIVIDADE %
Caçar pássaros raros (que é uma atividade ilegal) 7,7
Trabalhar a terra 15,4
Não se manifestaram 15,4
Trabalhar em oficina do avô 7,7
Trabalho doméstico (lava roupa) 7,7
Trabalho no cultivo de feijão e jerimum 7,7
Condutor de veículos que transporta familiares à escola 7,7
Trabalha com instrumentos agrícolas (ex: enxada) 7,7
Transportador de coco 7,7
Ajudante do pai na criação de animais 7,7
Professora 7,7
TOTAL 100,0
Fonte: Pesquisa de campo.
Com base nos dados apresentados acima, podemos notar que os trabalhos que
geram renda estão, na sua maioria, relacionados às atividades agrícolas do Perímetro, ou seja,
trabalhar a terra, no cultivo do feijão, com instrumentos agrícolas, e outras, são as principais
ocupações desses sujeitos, conforme salienta a pesquisa de campo.
Assim, os resultados da pesquisa indicam que entre aqueles recebedores de
remuneração, quase 42% exercem atividades relacionadas com a agricultura. Se, por um lado,
esses dados podem sinalizar que eles estão na agricultura por tratar-se de uma das poucas
possibilidades de trabalho remunerado na sua localidade, por outro, esse fato também sinaliza
que eles não perderam o vínculo com a respectiva atividade. Essas discussões são travadas ao
longo deste trabalho.
A análise do gráfico a seguir aponta que 46% dos jovens do Ensino Médio
também exercem alguma atividade remunerada, ou seja, 7% a mais que os jovens do Ensino
Fundamental. Esse aumento é provável também que seja em função da ampliação da faixa
etária em relação aos jovens do nono ano do Ensino Fundamental, ou melhor, à medida que
esses jovens crescem, vão ampliando suas necessidades de consumo, de buscar independência
financeira ou até mesmo contribuir com a renda familiar, conforme resultado do gráfico 16,
que trata das motivações desse público para ganhar dinheiro.
Vale acrescentar que, embora quase 55% dos que recebem remuneração trabalhem
em atividades vinculadas à agricultura, menos de 21% – se tivessem recursos – aplicariam no
132
lote ou na agricultura. Dessa forma, os maiores interesses dos jovens, no que se refere à
aplicação de recursos, estão na garantia dos estudos e em comprar ou reformar sua casa, além
daqueles que sonham em abrir um negócio próprio.
Gráfico 31
Fonte: Pesquisa de campo.
Gráfico 32
Fonte: Pesquisa de campo.
Gráfico 33
Fonte: Pesquisa de campo.
Em relação às expectativas de estudos, quase 94% dos jovens do nono ano do
Ensino Fundamental pretendem concluir o Ensino Médio, sendo que quase 93% acreditam
que através do estudo poderão ter um futuro melhor, conseguir um bom emprego para ajudar
133
a família, ter uma profissão ou mesmo abrir um negócio. De forma específica, nenhum dos
jovens se referiu às atividades agrícolas como justificativa para concluírem o Ensino Médio.
Nesse sentido, uma das vias delineadas pelos sujeitos pesquisados é a perspectiva
de ascensão social em razão dos estudos. Na ótica dos jovens, assim como na visão dos seus
pais, ao se dedicarem aos estudos, eles se tornarão aptos a ingressar no mercado de trabalho.
Vejamos os gráficos 34 e 35.
Gráfico 34
Fonte: Pesquisa de campo.
Gráfico 35
Fonte: Pesquisa de campo.
O resultado deste estudo, entre outros aspectos, nos remete a uma reflexão de
Carneiro (2008) sobre sua análise dos resultados da pesquisa “Perfil da juventude brasileira”,
que apontou, dentre outras questões, que a educação e o emprego são dois dos maiores
interesses desse público.
Apesar das dificuldades atuais enfrentadas pelos jovens rurais para se estabelecerem no mercado de trabalho e da precariedade das condições de trabalho a que são
submetidos, a avaliação que fazem do futuro próximo é, paradoxalmente otimista. A
quase totalidade deles vislumbram um futuro melhor para suas vidas pessoais com
134
base em dois principais fatores: a possibilidade de virem trabalhar (ou de terem uma
profissão) e o término da formação escolar (um associado ao outro). (CARNEIRO,
2008, p. 252)
3.4. Percepções dos jovens sobre o seu futuro profissional
O aprofundamento dos objetivos da pesquisa no que se refere às expectativas de
futuro profissional dos jovens do nono ano do Ensino Fundamental e Ensino Médio,
residentes no perímetro estudado, impõe que apresentemos a definição de projeto profissional
ora trabalhado.
De acordo com Weisheimer (2009, p. 264-265), o projeto profissional
[...] é o projeto de inserção socioprofissional em médio prazo. Reflete as imagens profissionais que os jovens agricultores reservam para si, os tipos de grupos profissionais e
respectivos recursos a que aspiram. [...] construídas por meio de processos de socialização
cada vez mais diversificados que ampliam o campo de possibilidades projetivas.
O autor complementa ainda afirmando que “os projetos profissionais permitem a
objetivação das representações dos jovens sobre suas possibilidades futuras de permanência
ou saída da atividade agrícola.” (WEISHEIMER, 2009, p. 265)
A partir dessas considerações iniciais, o quadro a seguir apresenta o que os
jovens do Ensino Fundamental desejam em relação ao seu futuro profissional. O referido
assinala uma diversidade de anseios, bem como enfatiza a pouca relação com as atividades
tradicionalmente agrícolas.
Nesse sentido, em primeira análise percebemos, por um lado uma diversidade de
respostas espontâneas, sendo que apenas 3,23% afirmaram que pretendem ser agricultores. Ao
agruparmos em categorias por aproximação, podemos afirmar que 19,37% desses jovens
optaram por profissões relacionadas à agropecuária. Excluindo o percentual de menos de 10%
que não sabem ou não expressaram exatamente o que desejam, uma parcela considerável –
quase 68% – põe em relevo que almeja profissões não agrícolas. Vejamos o quadro a seguir:
135
Quadro 02 – Qual o seu desejo, em termos de futuro profissional?
Respostas %
Técnico agrícola 3,23
Florista 3,23
Piloto de avião 3,23
Ganhar dinheiro 3,23
Empresário 3,23
Auxiliar de enfermagem 3,23
Agricultor 3,23
Mecânico 3,23
Indefinido 3,23
Dança (dançarina) 3,23
Seguir atuação dos pais 3,23
Arquiteto 3,23
Veterinária 3,23
Ser policial 6,45
Agrônomo ou técnico agrícola 6,45
Informática 6,45
Ser médico 9,68
Jogador de futebol profissional 9,68
Advogado (2ª opção: secretária) 19,35
Total 100,00
Fonte: Pesquisa de campo.
Assim, a análise dos dados possibilita afirmar que a definição de uma profissão,
por parte dos mesmos, dependerá de diversos condicionantes que vão além de suas vontades e
desejos. Nesse diálogo, embora as opções apresentadas se configurem como expectativas de
futuro profissional que poderão ser materializadas através do estabelecimento de metas, ou
melhor, através da elaboração de um projeto profissional, estes desejos podem ser alcançados
ou não, conforme destaca Weisheimer:
Sua construção deve-se ao cruzamento entre biografia individual e interação social.
Individual, na medida em que implica a avaliação e o posicionamento do sujeito
diante de um plano de realização pessoal e estratégias particulares. Social, devido ao
fato de que esta tomada de posição se realiza num contexto social e cultural
específico, independente da vontade individual, e na interação com outros atores
sociais e projetos coletivos e individuais. Deste modo, os projetos apresentam-se cambiantes e mesmo contraditórios. Com efeito, os projetos profissionais, como o
futuro em aberto, têm um grande grau de indeterminação e podem ser alterados ao
longo da trajetória dos atores sociais e em reação a processos de interação
experenciados. ( 2009, p. 277-278)
Embora percebamos os limites dessa investigação, os questionamentos serviram
para apreendermos até que ponto os jovens têm um projeto profissional definido e se estes
projetos possuem algum vínculo com a continuidade da agricultura familiar no contexto do
136
Perímetro estudado. Essa pergunta foi formulada de forma aberta, dando margem para que
eles expusessem suas apreensões livremente. Assim, a análise aprimorada do quadro a seguir
nos ajuda a perceber que as expectativas desses jovens ainda não estão definidas, o que estão
expostos nas contradições das respostas que definem seus desejos e suas expectativas em
termos de futuro profissional. Dessa forma, do total de respostas sobre o desejo, apenas
32,26% confirmaram ou mantiveram a opinião quanto ao futuro profissional, apenas um se
manteve indefinido e os que se contradisseram somam 64,52%.
Quadro 3. Qual será seu futuro profissional?
Profissão que acredita ter futuramente Nº de
Ocorrências Correlação com a profissão que deseja
Acha que não vai ser advogado 1 Advogado
Acha que não vai ser piloto de avião 1 Piloto de avião
Acha que vai ser o que quer 1 Advogado
Advogado 1 Depende da situação financeira do pai
Ainda tem dúvidas 1 Agrônomo
Arquiteto 1 Manteve
Arranjar trabalho melhor que na agricultura 1 Ser médico
Depende: posso querer ser advogado ou
escolher outra 1 Advogado
Não opinou 1 Ser médico
Não sabe 1 Ser médico
Não sabe, mas que continuar o que os pais fazem 1 Manteve
Não tem certeza, mas quer ser agricultor 1 Manteve
Pedreiro 1 Policial
Policia militar 1 Aeromoça
Qualquer coisa 1 Jogador de futebol
Que vai ser outra coisa 1 Trabalhar na polícia
Repórter 1 Veterinária
Ser jogador 1 Manteve
Ser mecânico 1 Manteve
Ser professora 1 Dançaria ou pode ser professora de dança
Ser recepcionista 1 Auxiliar de enfermagem
Serei grande jogador 1 Manteve
Técnico agrícola 1 Manteve
Técnico agrícola 1 Manteve
Tem tudo para ser 1 Advogada ou secretária
Trabalhar em cursos de informática e na polícia 1 Manteve (+ ou -)
Trabalhar em informática 1 Manteve
Trabalho voltado para a natureza 1 Indefinido, não tem certeza
Trabalhar com coco 1 Ganhar dinheiro e ajudar a família
Vai depender do meu interesse 1 Empresário
Vigilante de água 1 Florista
Total 31
Fonte: Pesquisa de campo
Estas contradições podem ser fruto da imaturidade, em razão deles não saberem o
que querem realmente e, consequentemente, tomarem a decisão de lutar por este objetivo
previamente estabelecido. Por outro lado, eles podem refletir que para conseguirem atingir
137
seus desejos é necessário mais do que vontade e, nesse caso, eles preferem optar por projetos
teoricamente mais fáceis ou possíveis de serem alcançados. Nessa perspectiva, como se pode
perceber, a profissão de interesse mais citada pelos jovens recaiu com mais frequência na
advocacia, com 19,35%, seguida pela de médico e de jogador de futebol profissional
(esportes), ambas com 9,70%. Com 6,45% apareceram as profissões de policial, informática e
de agrônomo ou técnico agrícola.
Vale ressaltar que estas profissões, exceto a de agrônomo ou técnico agrícola, que
é mais voltada para o setor agrícola, são típicas do setor urbano, embora seja precipitado
afirmar que no campo não possam trabalhar advogados, médicos ou jogadores de futebol. Por
outra via, os resultados podem assinalar uma intenção dos jovens em se transferirem para o
meio urbano, abandonando o rural, pelo menos num primeiro momento, pois não há
universidades ou faculdades que ofereçam esses dois cursos dentro do território do município
e nem na região.
Quando levamos essa análise para os jovens do Ensino Médio temos praticamente
o mesmo resultado, ou seja, a grande maioria pretende seguir profissões de Nível Superior,
não relacionadas ao setor agropecuário, com quase 46% das respostas. Esse resultado
apresenta uma tendência de esvaziamento do espaço rural estudado, em função dos motivos já
especificados anteriormente. Essa hipótese é reforçada quando verificamos que 16,67% dos
jovens estudados também pretendem seguir profissões de Nível Médio dissociadas da
agropecuária. Vale frisar que 16,67% afirmaram ter a pretensão de abrir o próprio negócio, ou
seja, serem empresários, podendo se instalar tanto no meio rural quanto urbano. Vale
acrescentar que apenas 8,33% pretendem ser agricultores, conforme evidencia o gráfico a
seguir.
Gráfico 36
Fonte: Pesquisa de campo.
138
Quando analisamos a opinião desses jovens sobre qual será realmente o seu futuro
profissional, ao agruparmos as respostas, vimos que 12,5% não sabem, e esse mesmo
percentual acredita que terá uma profissão de Nível Médio, apesar de sonhar com uma de
Nível Superior. É válido registrar que quase 30% apresentaram uma visão mais realista
quando disseram que seu futuro dependerá das condições financeiras. Provavelmente eles
afirmaram isso porque no Município não existem universidades públicas e gratuitas e muitos
jovens que pretendem ingressar no ensino superior precisam ter condições financeiras para
arcar com os custos de uma faculdade.
Por outro lado, essas faculdades oferecem poucas opções de cursos, os quais são
mais voltados para a área de humanas e licenciatura. Nesse sentido, os cursos como medicina
ou advocacia (líder na preferência dos jovens) não estão disponíveis no Município, mesmo
para quem pode pagar.
Vale destacar que, apesar das dificuldades, 37,5% acreditam que conseguirão ser
o que projetaram, ou seja, terão profissões de Nível Superior e, em consolidando esse projeto,
abandonarão o Perímetro, pelo menos enquanto estiverem cursando a faculdade. Por outra via,
os mesmos que projetaram que seriam agricultores, acreditam que realmente serão
agricultores, embora seja um percentual muito baixo, com 8,33% das respostas.
Gráfico 37
Fonte: Pesquisa de campo.
Os resultados desta pesquisa retratam uma tendência registrada em outros estudos
(PAULO; WANDERLEY, 2006, p. 270), que indicam que o desejo de seguir outras
atividades não é apenas o desejo de romper com a tradição paterna, ou seja, [...] “o desejo de
seguir outra profissão pode estar expressando uma recusa as condições de vida e de trabalho
139
a que está relegado esse tipo de agricultor na sociedade brasileira [...] A essas razões,
devem-se acrescentar as oportunidades que são vislumbradas por meio do acesso ao nível
mais avançado de escolaridade”.
Em todo caso, conforme ressaltou Brumer (2007, p. 61), [...] “permanecer no
campo exige-se pensar em alternativas não agrícolas tanto para moças quanto para rapazes
ou, ao menos, em um modo de fazer agricultura diferente da realizada por seus pais”. Assim,
garantir que os jovens possam realizar seus projetos na sua localidade ou, pelo menos, na sede
da cidade é uma das condições para garantir a permanência da juventude no campo.
Nesse sentido, a pesquisa demonstrou que, apesar da maioria dos jovens se
identificarem com profissões não agrícolas, quase 65% deles não pretendem sair do perímetro
após o término dos estudos, o que reforça as ponderações descritas no parágrafo anterior. Ao
indagarmos a um jovem de 19 anos sobre a sua pretensão de sair ou não do perímetro, ele
afirmou que pretende permanecer na localidade, embora não queira exercer a atividade
agrícola. Segue afirmação do citado jovem:
Eu pretendo continuar morando aqui porque eu já tô acostumado. Porque eu nasci
aqui. Pela tranquilidade daqui. Também eu num gosto de bagunça. Eu só iria
trabalhar fora se compensasse. Por um salário eu fico aqui mesmo. (Jovem de 19
anos, Setor C1)
Assim, o próximo gráfico retrata que, independentemente de dar continuidade à
atividade agrícola dos pais, os jovens pretendem ficar morando no projeto.
Gráfico 38
Fonte: Pesquisa de campo.
Por outra via, quando indagamos aos jovens do terceiro grupo sobre o que eles
esperam do futuro, as respostas foram bem realistas e destacaram o principal problema
140
apontado por eles, que é a dificuldade de inserção no mercado de trabalho, ou seja, a
sobrevivência deles e de suas famílias, conforme acentuam os depoimentos a seguir:
Eu me preocupo com o futuro. Tem muita gente que acha que tá bom do jeito que tá,
mas a gente sabe que tem que melhorar mais e mais o perímetro. Muitos colonos
acham que tá bom do jeito que tá a vida. Todo o mês tira aquele coquim, mas
nenhum querem adubar, querem? Os que tão só com o quintal não vê o futuro. Que
ainda tem os netos e muitos ainda depende dos pais aposentados dentro de casa. E
quando os pais falecer? Como é que o pessoal vai sobreviver? Então nós devemos
botar o perímetro pra frente porque o futuro é incerto. (F., 18 anos)
O que eu espero é que haja mais oportunidade pros jovens, tanto os que quer
trabalhar na agricultura como os que quer trabalhar nas empresas e fábricas. (S., 20
anos)
O futuro que eu imagino, assim, é um futuro de esperança de vida melhor pra gente.
Na parte lá em casa a gente vê assim. O lote que a agente tem é da minha avó. Só
que foi dividido entre o meu tio e o irmão dele. Então eu tenho que esperar vir das
mãos do meu tio pras minhas mãos. E se eu tivesse um filho hoje eu qual o futuro
que eu tinha que dá pro meu filho? Então no futuro o que eu espero é que o Governo
traga mais emprego pra os jovens e os adultos. Trazendo emprego os próprios
trabalhadores iam formar o seu futuro. (T., 22 anos)
A questão do meu futuro é conseguir um trabalho bom, construir uma casa e dá uma
boa vida pra minha mulher e pro meu filho, basicamente isso. (A, 21 anos)
Nessa perspectiva, os resultados da pesquisa demonstraram que uma das maiores
preocupações da juventude do terceiro grupo é a garantia de suas necessidades básicas e de
suas famílias, quer seja através da agricultura – com condições positivas para produzir, ou
seja, ter terra, crédito e assistência técnica, dentre outros – ou através de empregos formais.
Por outro lado, nos impressionou o depoimento de um jovem que terminou o
Ensino Médio e está trabalhando numa fábrica situada no Perímetro.
Os 13 que estudavam mais eu só eu trabalho. Nenhum tá fazendo nada. Tão tudo em
casa. Tudo filho de colono ou neto, mas nenhum vai trabalhar no lote não. Quando muito trabalha é na diária. Pros outros. Só pra ter dinheiro pra comprar alguma coisa
ou pra ir no som. Eu acho que eles não gostavam e o pai também nem chamava eles
pro lote. Deixava eles tudo dormindo. Da agricultura eles só falavam mal. Tipo
negócio de lote eu é que não quero. Essas coisas. Os jovens não querem mais
trabalhar nesse negócio de agricultura. Por isso os pais tão vendendo os lotes aqui no
C1. (Gerlan, 19 anos)
Este depoimento é instigante e nos leva a reflexões sobre os porquês dos pais não
estarem preparando seus filhos para trabalharem na agricultura ou mesmo traçarem seus
próprios caminhos (situações já tratadas anteriormente). Também nos estimula a repensar
sobre essa suposta apatia gerada após o término do Ensino Médio, as dificuldades enfrentadas
141
por esses jovens até a sua afirmação profissional. Embora não tenhamos elementos empíricos
para apresentar conclusões sobre os motivos que acarretam essa acomodação, a observação
direta nos permite afirmar que as razões são complexas e vão desde as relacionadas aos
aspectos subjetivos, como também às questões objetivas já tratadas, destacando, dentre elas, o
distanciamento do Perímetro, a falta de oportunidade de trabalho e de perspectiva de
continuarem os estudos na própria localidade.
4.5. Versões e opiniões sobre o perímetro e suas organizações
Conforme já tratado em diversas pesquisas (WEISHEIMER, 2009; NEVES,
1999) e também ressaltado ao longo deste estudo, a formação de novos agricultores familiares
se dá exatamente no processo de socialização desses jovens, no trabalho familiar agrícola. Por
outro lado, considerando que os jovens estudados estão inseridos num contexto específico, ou
seja, no bojo de um perímetro público de irrigação, é relevante apreendermos até que ponto
esses sujeitos conhecem seu espaço rural, bem como as instituições e organizações existentes.
Além disso, é importante percebermos até que ponto os “adultos” – pais e/ou avós – estão
apresentando aos jovens o Projeto no qual eles foram inseridos, assim como as organizações
que fizeram e fazem parte dessa história.
Para compreendermos essa problemática, a pesquisa questionou inicialmente
sobre o que eles veem de mais importante no Perímetro, cujas respostas são as apresentadas
no gráfico seguinte:
Gráfico 39
Fonte: Pesquisa de campo.
142
O enquadramento e análise das respostas – assim como demonstraram os
depoimentos dos jovens do terceiro grupo –, nos levam a concluir que os jovens não estão
totalmente alheios ao espaço rural no qual eles estão inseridos, ou seja, cerca de 65% destes,
acreditam que o que há de mais importante no Perímetro é a própria agricultura irrigada,
materializada a partir da imagem das plantações, do coqueiral e da própria água que garante a
produção.
Nessa perspectiva, uma análise geral das respostas nos leva a concluir que os
jovens, mesmo com todo distanciamento do Distrito (que oficialmente é a entidade que os
representa), consideram o Perímetro um projeto importante, já que menos de 10% afirmaram
não saber responder ou não considerar nada importante.
O gráfico 40 a seguir questiona sobre o que os pais ou avós relataram aos jovens
sobre o perímetro. É curioso verificarmos que 45% dos pais ou avós não relataram nada sobre
o Perímetro aos seus filhos ou netos, o que contribui para o distanciamento desses jovens do
cotidiano do Perímetro e dos seus espaços organizativos. Os dados coletados, considerando os
limites dessa investigação, também sugerem a necessidade de um aprofundamento sobre o
que representa não repassar ou não falar nada aos filhos e netos sobre a comunidade que eles
fazem parte.
Por outro lado, não podemos desconsiderar que um percentual de quase 13%
relatou aos jovens sobre sua trajetória como colono e também sobre as dificuldades
encontradas no início, quando estes receberam as casas cobertas pelo mato, por exemplo.
Além disso, cerca de 23% dos pais ou avós relataram os aspectos positivos do perímetro
enquanto moradia agradável e outros 16% relataram os assuntos mais atuais relacionados à
irrigação, à produção e sobre as dificuldade na comercialização do coco, principal cultura do
projeto. De maneira geral, a análise dos dados nos permite afirmar que os pais incentivam os
filhos a continuarem estudando e alegam também que o projeto está se desenvolvendo, mas
que ainda existem problemas. Vejamos o resultado informado no gráfico 40.
143
Gráfico 40
Fonte: Pesquisa de campo.
Com o objetivo de analisar o processo de socialização dos jovens no contexto do
Perímetro Irrigado Curu-Paraipaba questionamos, inicialmente, se eles sabem o que é o
Distrito. No entanto, antes de passarmos ao resultado, é importante lembrar que o Distrito é o
órgão representativo de todos os irrigantes, cuja criação foi estimulada e coordenada pelo
DNOCS e que, mediante convênio com o DNOCS, é o responsável pela administração,
operação e manutenção de toda a infraestrutura de irrigação de uso comum.
Nessa perspectiva, apesar da relevância da citada entidade para a estrutura
operacional do Projeto, constatamos que cerca de 81% dos jovens pesquisados não sabem
nada sobre o funcionamento do Distrito, e apenas 19% conhecem ou ouviram falar alguma
coisa. Vale lembrar que mesmo esse percentual que afirmou conhecer ou ter ouvido falar na
citada entidade, não emitiu uma resposta aproximada do que seja legalmente essa
organização, ou seja, apenas 3,2% responderam algo mais próximo da definição que foi “é um
distrito de irrigação de água”, afirmativa ainda incompleta. Vejamos o gráfico 41:
Gráfico 41
Fonte: Pesquisa de campo.
144
Nesse sentido, podemos considerar que esses jovens não têm familiaridade com o
assunto, embora vivam dentro de um Perímetro que é administrado pelo Distrito. Esses dados
também nos levam a alguns questionamentos sobre a importância e legitimidade dessa
entidade. Embora tenhamos clareza dos limites dessa abordagem, a observação direta nos
permite emitir algumas considerações sobre esse assunto. O Distrito, como já dissemos, foi
criado verticalmente pelo DNOCS, apresentando certo distanciamento em relação aos
próprios associados, que são filiados compulsoriamente a partir da necessidade da água para
irrigação (só tem direito a irrigação os que são associados e pagam suas tarifas). Nesse caso,
para a maioria dos irrigantes o Distrito é apenas um órgão arrecadador vinculado ao DNOCS.
Cotidianamente eles se referem ao Distrito como um órgão que não lhes pertence ou como se
eles não fizessem parte dele.
Por outro lado, esses dados também podem possibilitar que o núcleo diretivo do
Distrito também reveja sua relação com a juventude, fazendo-os refletir sobre até que ponto
eles estão divulgando suas ações e, por conseguinte, se aproximando mais dos irrigantes e de
suas famílias.
É válido ressaltar que, apesar da assembléia geral do Distrito, desde 2003, ter
aberto aos filhos, netos ou outro familiar o direito de representar o irrigante/colono nas suas
instâncias organizativas (seja comitê setorial, conselho de representantes ou conselho
administrativo) e, ainda, considerando que dos quatro diretores atuais do distrito, dois são
irrigantes/colonos de origem e dois são filhos de irrigantes/colonos, a presença dos mesmos
nas reuniões setoriais ainda é muito pequena. Ou melhor, nos últimos dez anos, conforme
anotações de nossa observação direta, bem como através da análise dos vários livros de
presença das reuniões, percebemos que a participação dos colonos vem diminuindo
gradativamente. Além disso, de uma maneira geral, nas reuniões ainda prevalece a presença
dos colonos idosos em detrimento dos mais novos, quer sejam filhos ou netos, conforme
visualizamos na figura 04.
145
Figura 04 – Reunião para tratar sobre a titulação dos lotes
O gráfico a seguir nos possibilita visualizar se eles conhecem o DNOCS,
autarquia que criou/implantou o Perímetro e que assumiu a sua coordenação direta durante
anos, e até os dias atuais é o responsável do Governo Federal por toda infraestrutura de uso
comum, inclusive tem o domínio de todas as terras, uma vez que ainda não foram repassadas
oficialmente aos colonos ou posseiros.
Assim, a pesquisa com os jovens do nono ano apresentou um resultado curioso,
ou seja, 90% não conhecem ou nunca ouviram falar sobre o DNOCS. Por outro lado, os 10%
que alegaram conhecer algo sobre a autarquia deram informações imprecisas e incompletas,
ou seja, afirmaram que se tratava de um “Departamento Nacional”, um “lugar onde planta
cana-de-açúcar” ou “a fonte de apoio à agricultura e irrigação”. Assim, também neste caso,
mostraram-se sem um conhecimento apurado para responder o que lhes foi solicitado e mais
uma vez nos questionamos sobre como está se dando o processo de socialização desses jovens
(gráfico 42). Esses dados também sugerem uma reflexão sobre o papel que esta instituição
vem desenvolvendo junto aos irrigantes e suas famílias ou porque essa autarquia perdeu a sua
centralidade em relação a esse público, questões que foram tratadas em capítulos anteriores.
Gráfico 42
Fonte: Pesquisa de campo.
146
Esse distanciamento dos jovens em relação às principais instituições do Perímetro
também é percebido entre os jovens do terceiro grupo. Durante a realização da técnica de
grupo focal foi possível apreender que eles confundem o que é Distrito e o que é o DNOCS e,
consequentemente, atribuem a estas instituições funções adversas, conforme destacam os
depoimentos.
O que eu conheço do Curu-Paraipaba (risos) nada. (C., 20 anos)
Eu conheço aqui no perímetro o DNOCS, que é uma instituição que desde o início
batalha pra botar o perímetro pra frente. As vezes o Governo não apóia muito, mas
estão aqui. Estão sempre aqui para apoiar os produtores. (C., 22 anos)
O que eu vejo assim é que eles (os colonos) precisam muito daqui. Porque quando
eles precisam de um trator para aradar a terra eles aqui. Ajuda muito no preço
também. Os colonos que tem cana-de-açúcar, por exemplo, eles não precisam pagar
a água. Eles descontam tudo79. (C., 22 anos)
O pouco conhecimento que eu tenho no Distrito é, alguns anos atrás a gente podia
ver que os agricultores eram assim um pouco esquecidos e agora que a gente vê o
Distrito a gente vê que eles luta pelo benefício ao agricultor. Por exemplo na questão
das casa de bomba a gente vê que agora melhorou. O Distrito também tá lutando pra
trazer novas empresas pra dentro do Distrito pra melhoria dos jovens, que é o futuro
da cidade. É o que eu penso. (T., 22 anos)
Esses testemunhos demonstram que eles não conhecem essas entidades que
compõem o Perímetro – DNOCS, Distrito e cooperativa. A observação direta, ao longo dos
anos de convivência com os moradores do Perímetro, nos possibilita afirmar que a maioria
confunde as atribuições dessas entidades e alguns até acreditam que todas são a mesma coisa.
Conforme já assinalamos, todas essas entidades foram criadas verticalmente pelo DNOCS,
sendo questionável a sua legitimidade perante os irrigantes e suas famílias.
No caso do segundo depoimento, provavelmente, o jovem refere-se ao Distrito,
pois o DNOCS há muitos anos não atua diretamente no perímetro. Já no terceiro depoimento
o jovem está considerando Distrito e cooperativa como se fossem uma só instituição, pois
quem tem o controle dos tratores é o Distrito, enquanto a parceria com a Ypióca para adiantar
o pagamento da energia de bombeamento é capitaneada pela cooperativa.
O último depoimento, por sua vez, também demonstra certa confusão, pois em
algum momento dá a entender que o Distrito é o próprio lugar onde eles produzem, ou seja, o
próprio perímetro. O jovem também parece não entender ou apreender que o Distrito é
formado por todos os irrigantes.
79 Ele faz referência ao contrato que a cooperativa tem com a Ypióca. Esta adianta os pagamentos de energia e
taxas e desconta no período da safra, quando os produtores prestam contas.
147
Essas análises sugerem – especialmente no que se refere às organizações dos
produtores – alguns questionamentos sobre como vem se dando o seu relacionamento com os
jovens e, mais ainda, será que esse distanciamento demonstra que as mesmas são incapazes de
considerar esses jovens enquanto sujeitos aptos a participar de todas as suas instâncias
decisórias? Essas questões são complexas. A observação direta nos possibilita afirmar que a
atuação dessas entidades em relação aos jovens ainda é muito tímida. Os jovens ainda não se
sentem parte dessas entidades.
4.6. Versões e opiniões sobre a sucessão da agricultura familiar
O debate sobre a sucessão na agricultura familiar é tema recorrente em diversas
pesquisas acadêmicas (ABRAMOVAY et alli, 1998; SILVESTRO et alli, 2001; CASTRO,
2005; WANDERLEY, 2005 E SACCO DOS ANJOS, 2009) e, conforme vem demonstrando
o resultado da pesquisa de campo, tem grande relevância e apresenta grandes impasses no
contexto do Perímetro Irrigado Curu-Paraipaba.
Conforme destacou Abramovay, a sucessão comporta três dimensões essenciais,
ou seja, a transferência da terra, a continuidade da agricultura como profissão herdada dos
pais e a transferência da gestão da unidade agrícola dos pais para os filhos.
No contexto do perímetro estudado, conforme destacado anteriormente, não é
possível falar em transferência da terra em termos legais, pois o DNOCS ainda é o dono
oficial dos lotes. Logo, não é possível para o colono entregar oficialmente suas terras aos
filhos sucessores, a menos que ele queira comprar a terra.
Dessa forma, embora já tenhamos esboçado sobre os dilemas da regularização
fundiária no Perímetro estudado, os resultados da pesquisa salientam muito mais os dois
últimos aspectos e, nesse item específico, focalizamos no terceiro aspecto, ou melhor, sobre
como se configura a gestão do lote e se vem ocorrendo transferência na sua administração.
Assim, a observação direta, bem como os dados coletados através da aplicação
dos questionários e entrevistas, nos possibilita afirmar que o processo sucessório no Perímetro
vem se dando informalmente, ou seja, quando o colono não vende seu lote e divide o dinheiro
entre os filhos, este reparte os coqueiros80
entre os filhos adultos que permanecem no
perímetro, quer esteja vivendo apenas da agricultura ou somando a renda agrícola com outras
atividades.
80 Geralmente eles dividem uma quantidade de carreiras de coqueiro para cada filho. Na maioria das vezes essa
divisão acontece entre os filhos homens, sendo que as mulheres, após casamento, contam com os “coqueiros”
herdados pelo esposo.
148
Esse fato, no contexto estudado, apresenta nuanças complexas que merecem uma
análise reflexiva apurada. Se, de um lado, quase 67% (gráfico 27) dos jovens pesquisados
concordam com essa divisão dos lotes, não é possível desconsiderar que essa divisão
compromete a sustentabilidade dessas unidades e, muitas vezes, recai sobre o colono a
obrigação – muitas vezes com os recursos da aposentadoria – de arcar com as despesas de
energia e taxa de manutenção.
Gráfico 43
Fonte: Pesquisa de campo.
A pesquisa também procurou apreender quais são os critérios identificados por
esses jovens para a sucessão satisfatória dessas unidades, sendo que 75% deles confirmaram
as observações de campo, ou seja, que o lote deveria ser dividido igualmente entre os filhos,
sendo que apenas 6,25% acreditam que o lote deveria ficar com o filho que mais trabalhou na
referida unidade agrícola. É válido lembrar que cerca de 19% sinaliza que essa divisão deve
se dar antes do colono falecer, certamente para evitar futuros desentendimentos entre os filhos
sucessores.
Gráfico 44
Fonte: Pesquisa de campo.
149
É oportuno acrescentar que essa forma de divisão ou sucessão contraria à Lei de
Irrigação, ou seja, legalmente falando, considerando que esses colonos estão assentados em
um perímetro público de irrigação, a gestão da unidade parcelar só se transfere a partir da
falência do titular, quando esta é repassada para a esposa viúva. Assim, somente a partir do
falecimento do casal, o lote poderis ser transferido, não a todos os filhos, mas a um único
herdeiro, que se comprometeria a adotar as mesmas regras seguidas pelos pais.
Nessa análise, a pesquisa também buscou apreender sobre como poderia ser a
compensação dos outros filhos, se a propriedade rural ficasse apenas com um deles. Os
resultados foram diversificados, mas é importante notar que quase 40% não souberam opinar
ou não concordaram com essa possibilidade, o que corrobora com o resultado anterior, no
qual a maioria está convencida que deve haver a partilha do lote entre os filhos herdeiros,
desconsiderando, aparentemente, os aspectos legais e de viabilidade econômica.
Por outro lado, quase 60% consideraram a hipótese de entregar o lote apenas para
um filho, sendo que a compensação, conforme resultados da pesquisa, seria em dinheiro
(29,17%), através da divisão dos gastos e lucros com quase 17%, ou através da divisão
puramente dos lucros (12,5%) e até mesmo proporcional ao trabalho de cada um na referida
unidade, com 4,17%. Vejamos o gráfico 45:
Gráfico 45
Fonte: Pesquisa de campo.
Nesse sentido, concordando com os resultados da pesquisa de Silvestro et alli
(2001, p. 69) “quando o patrimônio fundiário e o valor do negócio é relativamente
importante sua transmissão dá lugar, quase sempre, á compensação dos herdeiros não
150
sucessores”. Considerando a realidade do perímetro estudado, temos que a maioria dos lotes
estão valorizados e, dependendo da localização, ou seja, se for próximo da sede da cidade
onde já existem pontos que foram “re-loteados” pelos próprios irrigantes, esses lotes chegam
a valer de sessenta mil reais (R$ 60.000,00) a cem mil reais (R$100.000,00)81
. Na figura 05
temos um exemplo claro disso, ou seja, os comércios estão inseridos numa área que era lote,
registrando uma tendência de que todos os lotes situados “na beira da pista” tendem a ser
“reloteados”.
Figura 05 – lote “reloteado” para instalação de comércios
Por outro lado, mesmo os lotes distantes da sede, dependendo das condições
estruturais ou das culturas implantadas, estão custando em torno de cinquenta mil reais (R$
50.000,00). Esses valores referem-se apenas ao preço do lote, sendo que o quintal geralmente
é cobrado à parte – se for o caso.
Esses dados, embora enfatizem um valor monetário relativamente alto dos lotes –
o que vem levando muitos colonos a se desfazerem deles, conforme já salientamos no
decorrer deste estudo – quando o lote é dividido entre todos os filhos e o casal, eles podem ser
considerados ínfimos, o que também foi revelado em depoimentos anteriores.
Assim, se por um lado a divisão dos lotes entre os filhos compromete a
autossuficiência econômica da unidade agrícola, simplesmente se desfazer desse patrimônio e
ratear o valor recebido entre os filhos também não é uma saída viável, conforme destaca o
depoimento dos jovens do terceiro grupo:
Eu tenho um tio que incentivou o meu avô a vender o lote porque ele não tinha
coragem de trabalhar. Quem trabalhava no lote era eu e meu pai. Meu avô vendeu o
lote aí pronto. A gente ficou sem terreno pra trabalhar. (C., 20 anos)
81 Esses valores foram avaliados antes do reloteamento. Depois de reloteados em áreas menores, esses valores
quadruplicam.
151
Esse negócio de vender o lote é sério. Tem uma pessoa que se arrepende, por
exemplo lá em casa é o meu pai, que foi obrigado a vender porque era longe pra
gente ir porque a gente era pequeno. Agora não, o maior novo tem 15 anos e o mais
velho tem 25 anos. Se a gente tivesse um terreno nós não ia trabalhar pra fora, ia
trabalhar pra nós mesmo. (T., 22 anos)
Não adianta a pessoa ter um lote e vender aquele terreno ali não. Só pensa em
receber o dinheiro aí é só gastar e não se pensa mais na frente. Depois quando tiver
gastado o dinheiro todo aí é que vai pensar. E se ele não tivesse vendido o lote todo
o mês ele teria aquele dinheirinho pra gastar, agora tá liso. Aí fica arrependido.
Antes de fazer a besteira não pensa. O que eu vejo é isso. (F., 18 anos)
Na sequência deste debate, a pesquisa identificou que, para quase 63% dos jovens
pesquisados (gráfico 46), o melhor momento para se processar a divisão do lote é enquanto o
colono ainda está vivo, preocupação já demonstrada nos resultados anteriores, tendo em vista
a necessidade de evitar possíveis conflitos entre os herdeiros.
Corroborando, de certa forma, com essa maioria, cerca de 33% afirmou que a
divisão do lote deve se processar a partir do momento em que o colono se aposentar,
apresentar problemas de saúde ou ainda, quando estiver com a idade avançada e,
consequentemente, não puder mais gerir ou trabalhar diretamente na respectiva unidade.
Dessa forma, segundo a pesquisa, o momento certo é, preferencialmente, com o colono ainda
vivo, embora este apresente problemas de saúde, seja idoso ou mesmo aposentado.
Gráfico 46
Fonte: Pesquisa de campo.
4.7. Percepções da juventude sobre si e sobre seus problemas
Ao longo deste estudo foi possível perceber os entraves impostos ao pleno
desenvolvimento do perímetro e que estes repercutem nos problemas enfrentados por sua
juventude. Isso significa dizer que, ao estudarmos sobre a juventude do Perímetro, estamos
152
também discutindo e buscando compreender os processos sociais mais abrangentes que
envolvem essa comunidade.
Nesse sentido, vamos analisar a percepção dos jovens do terceiro grupo sobre a
juventude do Perímetro, de um modo geral, conforme os depoimentos a seguir transcritos:
No meu ponto de vista eu vejo que os joves não querem trabalhar na agricultura
porque não tá dando produção. Os antigos trabalhavam porque os pais incentivavam eles a trabalhar e os novatos agora não querem trabalhar porque não ta dando mais
produção no lote. (C., 20 anos)
Tem jovem que quer trabalhar na agricultura e jovem que não quer e dizem que isso
não dá pra ele ou não quer viver dentro do lote. Tem aqueles que não querem saber
nada de frutas. Eles querem uma coisa melhor. (F., 18 anos)
Os jovens não querem trabalhar na agricultura e estão incentivando seus pais a
vender os lotes e ficar só com o quintal. Pra eles papocarem só com coisa que não
tem futuro. O incentivo de muitos jovens é que os pais vendam o lote e repartam o
dinheiro com eles. Mas eu acredito que também tem muito jovem que quer botar o perímetro pra frente e se interessam ainda pela terra que é a herança dos pais. (C.,
22 anos)
Eu acho que é 50% para cada lado. Por que também não adianta você ir só com a
cara e a coragem. Precisa ter recurso pra tocar né? A pessoa que vai trabalhar na
agricultura só som a cara e a coragem e não tem como investir não tem como. (S., 22
anos)
Vou falar por mim. A maioria dos jovens não querem mais saber de agricultura, mas
porque? A maioria de todas as frutas que colhidas aqui dentro do projeto o maior
que a gente vê que tras resultado é o coco. Já as outras plantações esse negício de milho, feijão e maxixe, muitos só plantam pra comer. E hoje a gente vê que os
jovens estão escolhendo trabalhar na parte do coco pra encher caminhão do que tá
trabalhando pra produzir. Porque eles vê mais a parte do dinheiro. Ta dando melhor
você trabalhar pra encher carro de coco do que trabalhando pra colher e vender o
coco. Então o que eu vejo é que falta apoio para os agricultores e os filhos verem um
futuro melhor pra trabalhar na agricultura. (T., 22 anos)
O que vejo é que muitos jovens não querem trabalhar na agricultura, ajudar seu pai,
ajudar sua mãe. Porque ele trabalha pro pai e quer que o pai pague ele e então
inventa de trabalhar fora pra ganhar dinheiro. (A., 21 anos)
Acho que isso já começa de casa. Tem pai que desde cedo incentiva seu filho a ir pro lote mais ele. Ai ele começa a gostar. Mas tem uns que eu conheço que vai pro
lote sozinho e tem a casa cheia de filhos e vai pro lote sozinho. Pra não levar os
meninos pra pegar sol e quer que o menino estude pra ser doutor, essas coisas. (C.,
22 anos)
Também tem muitos pais que querem levar os filhos de 12 ou 13 anos, mas as
politicas públicas diz que não pode botar de menor pra trabalhar. Ai os filhos vão
crescendo sem vergonha e diz não eu não posso ir se não vou pro conselho tutelar,
eu sou de menor. Mas graças a Deus no meu caso não foi assim. O meu pai ele
sempre me levou pro lote, nem que fosse só pra eu ficar debaixo do coqueiro. Ele ia
capinar e eu ficava debaixo do coqueiro até a hora dele vir pra casa. (P., 23 anos)
153
Essas declarações apresentam muitas revelações que foram debatidas ao longo
deste trabalho. Se, de um lado, os jovens estão abandonando o trabalho agrícola, eles estão
assim procedendo devido às dificuldades em produzir, ou, como refere um deles, “falta
produção” e também porque faltam incentivos advindos do crédito e da assistência técnica,
por exemplo “por que não adianta ir só com a cara e a coragem”. Essas dificuldades fazem
com que muitos jovens procurem trabalho na comercialização do coco, conforme o exemplo
dado, “enchendo caminhão de coco”.
Vale ressaltar que outros fatores igualmente importantes foram referenciados nos
discursos dos jovens pesquisados, especialmente quando eles relatam a importância dos pais
socializarem seus filhos nas atividades agrícolas praticadas no lote familiar. Essa dificuldade
se dá, dentre outros fatores, em face da atuação das políticas de prevenção ao trabalho infantil,
as quais são, geralmente, coordenadas pelos conselhos tutelares.
Por outro lado, eles observam de um modo geral que, no Perímetro, tanto existem
aqueles jovens que pretendem abandonar a agricultura como também existem aqueles que
querem dar continuidade a essa atividade.
Assim, as reflexões trazidas por esses jovens são complementadas pelo gráfico a
seguir, no qual os jovens do Ensino Fundamental – excetuando quase 26% que não souberam
opinar –retrataram os maiores problemas da juventude.
Gráfico 47
Fonte: Pesquisa de campo.
Assim, quase 33% afirmaram que o maior problema da juventude é a falta de
opção de empregos e, por conseguinte, poucas opções de futuro, o que também foi bastante
mencionado entre os jovens do terceiro grupo. Outro importante problema relatado foi o fato
dos jovens não quererem mais trabalhar na agricultura, com quase 20% das respostas, o que
154
também foi muito discutido entre os jovens do terceiro grupo. Não podemos deixar de relatar
que quase 13% enfatizaram os problemas relacionados ao uso de drogas, seguido dos
problemas relacionados à educação – quer seja a falta de escolas de Ensino Médio no
perímetro ou o fato deles não quererem mais se dedicar aos estudos.
Seguindo os propósitos da pesquisa, questionamos os jovens sobre quais ações
governamentais seriam necessárias para garantir a permanência deles no Perímetro,
independentemente deles seguirem a profissão de agricultor.
Gráfico 48
Fonte: Pesquisa de campo.
Assim, o gráfico 48 apresenta diversas opiniões, sendo que a principal – com
37,5% – corroborou com as discussões anteriores, ou seja, apontaram como prioridade a
geração de empregos e o incentivo para a implantação de fábricas. Outros 29,17% acreditam
ser necessário investir na educação e na profissionalização dos jovens. Esse dado é muito
pertinente e complementa as discussões anteriores sobre as pretensões profissionais dessa
juventude, ou seja, a maioria pretende continuar os estudos e quer seguir profissões que
exigem a formação acadêmica que não é disponível no Perímetro e nem na sede do município.
Por outro lado, mesmo sendo uma pergunta aberta, sem opções de respostas, 25%
desses jovens fizeram referência às possibilidades de sucessão das atividades agrícolas,
apontando que, para que isso aconteça, faz-se necessário a garantia do acesso à terra e ao
crédito. Essas opiniões são complementadas pelos depoimentos dos jovens do terceiro grupo.
Como todos estão dizendo ai a ajuda (do Governo) ainda é pouca, mas no meu modo
de vista ele deveria tipo assim mandar empréstimos. Vir empréstimo e assistência
técnica. Não adianta vir empréstimo se você não vai saber cultivar aquela planta e
tendo assistência técnica não, você vai saber. Vai produzir frutos bons e muitos. E
também ter tipo uma associação pra comprar aquela fruta aqui mesmo pra exportar
pra outro canto. Mas ter um preço bom. Tendo isso acho que nem todos os jovens
155
iam querem sair daqui não, iriam ficar aqui mesmo pra ter um lucro bom. (S., 22
anos)
Pelo o pouco que eu vejo o Governo não ajuda assim o agricultor aqui do perímetro.
O que a gente vê aqui é o produtor nas mãos do atravessador. Ele não tem um ponto
X para colocar o coco. Então o agricultor trabalha e espera o preço do atravessador.
Então o Governo deveria ajudar na construção de fábricas onde o agricultor viesse a
ter um contrato com aquela fábrica e todo o mês você ia ter aquele tanto de coco com o preço X. Então o agricultor ia trabalhar com a base do que poderia recolher e
a motivação do filho era ver o crescimento desse trabalho. Ele ia dizer meu pai
trabalhou, conseguiu melhorar, conseguiu seus sonhos. Então eu agora também
vou dar continuidade ao trabalho do meu pai. (T., 22 anos)
Nessa perpectiva, embora os depoimentos apresentem uma ideia um pouco
distorcida sobre o papel do Estado ou a atuação dos governos, os dados reforçam os interesses
imediatos desses jovens, ou seja, o que eles querem mesmo é que seus maiores problemas
(especialmente os relacionados à produção e comercialização do coco, que é a principal
cultura explorada no perímetro) sejam resolvidos. E, assim, eles possam ter condições dignas
de existência.
156
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão sobre a juventude do Perímetro Curu-Paraipaba partiu de alguns fatos
concretos, ou seja, os colonos de origem estavam envelhecendo, se aposentando ou falecendo,
inclusive muitos estavam “vendendo” seus lotes e ficando apenas com o quintal. Em
contrapartida, apesar do “envelhecimento gradual e irreversível dos colonos” exist ia uma
juventude aparentemente invisível e distante do Perímetro e de suas organizações.
Diante desse impasse, ao longo deste estudo, buscamos compreender, a partir da
visão dos jovens, as causas das rupturas nos processos de sucessão profissional da agricultura
familiar no âmbito do citado Perímetro. E ainda, buscamos refletir sobre as perspectivas de
inserção da juventude no contexto do Perímetro Curu-Paraipaba, procurando apreender, ainda
que consciente dos limites da pesquisa, quais as expectativas desses sujeitos continuarem
morando no perímetro, seja exercendo a atividade agrícola ou não. Buscamos também refletir
sobre os seus sonhos, os seus projetos profissionais e apresentar algumas pistas que
sinalizassem sobre como as políticas públicas poderiam favorecer a emancipação desses
atores no espaço rural em que se inserem.
Essas reflexões, porém, não foram imediatas. Procuramos, antes de tudo, resgatar
um pouco da trajetória das famílias que se transpuseram para esse espaço rural específico,
como foi o estranhamento inicial, e como estas foram, gradativamente, se “adaptando” às
regras impostas pela política do DNOCS.
Neste debate percebemos que essas imposições se deram num clima de constante
conflito, tendo em vista que as famílias não foram apáticas e acabaram criando resistências e,
por conseguinte, impuseram novos processos de sociabilidade.
É importante perceber que essas discussões não se processaram descoladas do
contexto socioeconômico e político regional e nacional em que se deu a implantação do citado
projeto de irrigação. Ao contrário, o estudo mostrou que a criação dos perímetros públicos foi
uma estratégia adotada pelo Estado para “modernizar o Nordeste”, garantindo as
transformações econômicas necessárias à expansão capitalista, situado, todavia, num contexto
internacional mais amplo.
Vale lembrar que existia uma tensão no campo, promovida pelos movimentos
organizados dos camponeses e sindicatos rurais, os quais exigiam respostas imediatas do
Estado. De certa forma, ou o Estado “resolvia” o problema das regiões rurais ou o êxodo rural
assumiria proporções irremediáveis, transferindo e ampliando as mazelas para as cidades.
157
Nesse contexto, a modernização da agricultura, através da implantação de
perímetros públicos, traria como efeito contíguo o desenvolvimento do Nordeste, sendo,
portanto, a aparente solução para tirar essa região do “atraso” ao qual estava condenada há
décadas.
Assim, ao longo deste estudo foi possível demonstrar, ainda que superficialmente,
como se processou a irrigação enquanto política pública federal, com ênfase na que foi
concebida, planejada e executada aqui no Ceará, pelo DNOCS, tendo os seus desdobramentos
na implantação do Perímetro Curu-Paraipaba.
Nesse sentido, a análise documental e a literatura pesquisada, combinada com os
dados de campo, permitem revelar que as famílias foram tratadas de forma secundária, ou
melhor, caberia ao Estado preparar esses sujeitos para “usufruir” dos benefícios do progresso,
que partiria da agricultura irrigada. Daí coube aos técnicos a seleção das famílias mais aptas a
se adaptarem ao novo modelo.
Por outro lado, se o projeto, no papel, estava bem articulado, bem resolvido, e
contemplava todas as etapas necessárias à sua completa consolidação, na prática, a
intervenção nesses moldes durou menos de uma década. Nessa etapa o DNOCS atuava
diretamente através de seus técnicos, na gerência das cooperativas e também nas atividades de
administração, operação e manutenção da infraestrutura de irrigação de uso comum. Nesse
período eles impuseram uma severa política de controle da produção e das famílias, sem,
contudo, prepará-los para a autogestão, para serem realmente empreendedores. Apesar dessa
atuação direta, inclusive garantindo crédito abundante, a pesquisa de campo comprovou que
os irrigantes acumularam prejuízos na comercialização dos produtos, fato este que aumentou
o descrédito desses em relação às suas organizações.
Além disso, é impossível negar que a intervenção paternalista, clientelista e
incompetente do órgão, com a conivência de algumas “lideranças” – que, embora não sejam
inocentes, foram cooptadas ou seduzidas por algumas regalias que os cargos diretivos lhes
ofereciam – colaboraram para o descrédito dos demais irrigantes em suas entidades
representativas e para a sua desmobilização, sendo que todas essas nuances, a nosso ver,
repercutiu e repercutem no distanciamento da sua juventude, no abandono ou “venda” dos
lotes, e nas reais possibilidades de descaracterizar o perímetro, como um agrupamento
formado eminentemente por agricultores familiares.
Vale ressaltar, ainda, que a política de irrigação, historicamente, se processou de
forma descontínua, fragmentada e não respondeu às reais necessidades das famílias
assentadas nesses espaços rurais. No caso do perímetro estudado, essa afirmativa é
158
perfeitamente justificada quando observamos que, por exemplo, a regularização fundiária
ainda não foi concretizada e que a assistência técnica também não é garantida como direito
dos pequenos produtores (nomenclatura expressa na Lei de Irrigação) ou agricultores
familiares (na legislação atual).
Somam-se a esses fatores os problemas ocasionados pelo sucateamento da
infraestrutura de irrigação de uso comum, ocasionado pela falta de manutenção adequada,
bem como pelo tempo de funcionamento do sistema. Todos esses fatores, adicionados aos
problemas inerentes às questões produtivas já detalhadas (área pequena, falta de acesso ao
crédito, baixa produtividade e oscilação do mercado), são entraves ao desenvolvimento do
Perímetro e sinalizam algumas razões que interferem diretamente no processo de continuidade
da agricultura familiar como projeto profissional dos jovens do Perímetro.
Por outra via, a pesquisa documental evidenciou uma mudança no público-alvo da
política de irrigação, ou seja, no início ela visava “acabar” com o atraso do Nordeste, com a
pobreza e o êxodo rural. Então, o seu foco eram famílias de agricultores sem terra, detentores
de farta mão de obra (filhos), que viviam em condições de extrema pobreza e ainda sob o
domínio dos fazendeiros (donos da terra).
Atualmente o foco é outro, ou seja, embora a agricultura irrigada na ótica do
Ministério da Integração Nacional também deva alavancar o desenvolvimento regional, os
perímetros devem ser ocupados por empresas ou produtores “qualificados”. Este público
estaria, segundo esse prisma, apto a participar de um processo licitatório que exige, dentre
outras coisas, que este tenha condições de absorver os custos de administração, operação e
manutenção da infraestrutura de irrigação de uso comum. Para tanto, conta mais ponto aquele
que apresentar melhor capacidade de produzir e de investir na produção com recursos
próprios. A partir desses critérios, essas áreas irrigadas dos perímetros novos estão ocupadas,
sobretudo por investidores/empresários do agronegócio.
Assim, as questões inerentes aos dilemas da agricultura familiar (sucessão,
envelhecimento, aposentadoria e êxodo rural) não foram tratadas anteriormente, e também
não são consideradas agora, nesse novo modelo de irrigação. O mais contraditório, a nosso
ver, é que todos os perímetros (os novos e o velhos) são “subordinados” ou coordenados pelo
mesmo órgão e mesmo Ministério. Portanto, “submissos” às mesmas políticas, que não
percebem ou não consideram as nuances próprias de cada contexto.
No caso do Perímetro estudado, vimos que os produtores atualmente não são mais
os mesmos da década de 1970, quando foram assentados pelo DNOCS. Hoje eles já
incorporaram a tecnologia da irrigação ao seu dia a dia e os seus filhos e netos sequer
159
consideram a possibilidade de produzir somente culturas de inverno. Por outro lado, também
foram incorporando essas idas e vindas da política de irrigação conduzida pelo DNOCS.
Todos esses fatores, se por um lado, os distancia dos agricultores familiares tradicionais os
aproximam no que tange aos dilemas da sucessão profissional, sem contar com os fatores
ligados à produção e comercialização.
Nesse sentido, somam-se aos problemas do Perímetro o desincentivo dos pais, que
não veem futuro na agricultura irrigada, os quais estão descrentes em relação às perspectivas
do Projeto e que, por conseguinte, não socializam mais os filhos no trabalho agrícola na
unidade parcelar. Fica, sobretudo a cargo da escola, dos amigos e da internet os mais
elementares ensinamentos sobre valores e ética.
É evidente que “os tempos são outros”. Muitos agricultores entrevistados
informaram que “os jovens de hoje têm mais oportunidade de estudar” que eles. Naquela
época, suceder os pais no trabalho agrícola também era uma das poucas opções, além de
migrar para os grandes centros urbanos – sobretudo São Paulo. Muitos alegaram ainda a
interferência do Conselho Tutelar, que em certos casos não consegue diferenciar o trabalho
infantil opressor, do trabalho familiar educador, contribuindo para a formação de gerações
deslocadas do Perímetro e fechadas para as possibilidades advindas da agricultura irrigada.
Em todo caso, a pesquisa ressaltou que os jovens desconhecem a estrutura
organizativa do perímetro (sobretudo o Distrito e o DNOCS) e que seus pais ou avós não
estão preocupados em informá-los sobre as mesmas ou não as consideram relevante ou até
mesmo não se identificam com estas. Assim, segundo os jovens, a maioria dos pais/avós não
fala nada sobre o Projeto ou sobre suas entidades, criando-os à margem. Esse dado é negativo
á medida que pode sinalizar a não preocupação em formar as novas gerações, o que dificulta o
vínculo desses jovens com o Perímetro e com a prática da agricultura irrigada.
Dessa forma, o estudo de caso evidenciou que os jovens, grosso modo, não estão
mais acompanhando os pais no trabalho agrícola, sendo que as principais justificativas são
que estes não se identificam com essa labuta ou por ser um serviço penoso. Outro motivo
alegado é que os pais preferem que eles estudem. Isso demonstra a visão de que a agricultura
é uma atividade inferior, que não necessita de conhecimentos técnicos específicos.
Por outra via, os dados de campo permitem afirmar que, até pela escassez de
alternativas, geralmente eles começam a trabalhar em atividades ligadas à agricultura
(sobretudo aquelas ligadas à colheita e à comercialização do coco) à medida que vão
crescendo (a partir dos 18 anos ou quando terminam o Ensino Médio ou constituem família)
160
vai surgindo a necessidade de alcançar uma mínima autonomia financeira em relação aos pais
ou mesmo suprir suas necessidades individuais de consumo.
Contudo, a pesquisa também assinalou que esses trabalhos não são o que
realmente os jovens almejam em termos de futuro profissional, ou seja, a grande maioria
deseja seguir profissões não agrícolas (embora possam ser exercida no espaço rural), sendo
que muitos deles pretendem seguir uma área que exige uma formação superior. Quando
cruzamos os dados do desejo com o futuro provável tivemos respostas muito diversificadas, o
que ratificou que os jovens ainda não têm projetos definidos, ou mesmo que eles entendem
que o seu futuro está sujeito a muitos fatores objetivos, conforme assinalou uma parte
significativa dos jovens do Ensino Médio.
Outra questão importante relatada é que a maioria dos jovens pretende concluir o
Ensino Médio, pois tributam à educação a possibilidade de melhoria de condições de vida e
até de conseguir uma colocação no mercado de trabalho.
Nesse sentido, o cruzamento entre o desejo de continuar os estudos com o futuro
sonhado por esses jovens poderia sugerir uma tendência de esvaziamento desse espaço rural,
já que o município não dispõe de universidades com os cursos que eles ambicionam.
Entretanto, estudar fora ou cursar uma faculdade exige que os pais tenham condições
financeiras de responder pelas despesas. Assim, ainda que aparentemente contraditório, a
pesquisa forneceu subsídios para afirmar que a tendência é que esses jovens permaneçam, de
fato, no perímetro, quer seja executando as atividades disponíveis ligadas à colheita ou
comercialização do coco, ou como diaristas nos pequenos comércios, moto-táxi, domésticas,
operários nas fábricas, na Prefeitura (geralmente sem os direitos trabalhistas ou recebendo
salários irrisórios) ou continuem acomodados e dependendo economicamente dos pais.
É válido ressaltar que esses sujeitos realmente não querem sair do Perímetro e,
não obstante a todas as adversidades, eles sonham com um futuro melhor. Eles querem ter um
emprego, uma profissão e, sobretudo, poder realizá-los no seu espaço rural. Esses dados
reforçam a necessidade da implantação de políticas públicas capazes de responder a essas
demandas.
A esse respeito, a pesquisa identificou que a maioria dos jovens apontou como
ações prioritárias do Estado a geração de empregos, o incentivo à implantação de fábricas,
além do investimento em educação e na profissionalização desses sujeitos. Esses resultados
apontam para a importância de se implantar universidade pública e gratuita (capacitando-os
em diversas profissões) ou escola do tipo familiar agrícola, com capacidade de preparar os
jovens que querem desenvolver atividades agropecuárias de forma mais técnica e mais
161
sustentável. Isso se justifica porque a pesquisa mostrou que uma parte dos jovens, ainda que
pequena, querem trabalhar na agricultura, dando continuidade a agricultura familiar no
Projeto. Nesse caso, eles apontaram como prioridade as políticas públicas que garantam
financiamentos bancários e o acesso dos jovens a terra.
Outra questão elucidada pela pesquisa trata sobre o processo sucessório,
destacando que este vem ocorrendo de maneira informal, ou seja, repartindo “as carreiras de
coqueiro” entre os filhos que continuam no Perímetro. Essa divisão – apesar de aceita pelos
filhos herdeiros –, de fato, vem comprometendo a sustentabilidade dessas unidades, incidindo
sobre o colono a obrigação – por meio da aposentadoria – de arcar com as despesas de energia
e taxa de manutenção. Para a maioria dos jovens pesquisados o ideal é que esta divisão ocorra
com o colono ainda vivo. Possivelmente para evitar conflitos entre os irmãos.
Por outro lado, a pesquisa permitiu perceber que a divisão do patrimônio familiar
(o lote) também ocorre quando o colono resolve “vendê-lo”. Esse procedimento ilegal
acontece naturalmente, sendo que um fator que estimula a descontinuidade da agricultura
familiar, nesse caso, é devido à supervalorização desses terrenos, o que, inclusive, chega a ser
estimulada pelos próprios filhos. Quando isso ocorre, a primeira providência, segundo
observações empíricas, é a aquisição de uma moto pelos filhos, enquanto o casal se preocupa
com a reforma da casa, uma vez que eles permanecem morando no quintal.
Dessa forma, esse aparente valor significativo do lote transforma-se em quase
nada quando é dividido entre todos os filhos, levando muitos ao arrependimento, pois não
promove a emancipação financeira dessas famílias.
Diante destas considerações, e sem termos a pretensão de elaborar conclusões
definitivas – mas, sobretudo visando contribuir com os estudiosos do assunto e provocar
novas agendas de pesquisas –, acreditamos que o processo sucessório da agricultura familiar
no espaço rural estudado está em risco, mas não de forma irremediável.
Nesse sentido, a sua continuidade depende de uma série de fatores, os quais
envolvem um entendimento mais amplo quanto à intervenção estatal, promovendo a
articulação de diversas políticas públicas, dentre as quais se destacam a assistência técnica
continuada e de qualidade, além de uma política de acesso ao crédito e à terra, para os jovens
que querem trabalhar. Exige, portanto, uma nova postura do Estado, no sentido de executar a
política de irrigação de forma mais abrangente e, sobretudo, cumprir com a sua parte também
em relação aos aspectos fundiários e de recuperação da infraestrutura de irrigação de uso
comum.
162
Apesar do aparente esgotamento do Perímetro Curu-Paraipaba, a pesquisa
demonstrou a sua importância econômica e social para a região e para as famílias que vivem
nesse entorno. Assim, existe a possibilidade de promover ou criar um novo modelo de
desenvolvimento que parta das próprias organizações dos produtores e partir do envolvimento
de todos os atores sociais (inclusive a juventude).
A pesquisa também mostrou que o Distrito – se pretender aproximar a juventude
do Perímetro - deve dialogar com esses jovens em seus espaços de socialização, sendo um dos
principais a escola. Nesse caso, a escola poderá reconhecer o Perímetro e a importância da
agricultura irrigada, incorporando metodologias que aproximem as crianças e os jovens do
cotidiano do Projeto, contribuindo, assim, para a formação de um novo olhar sobre a
agricultura
De outra via, a sucessão também abrange questões subjetivas, exigindo uma
autorreflexão por parte dos pais, no que se refere à sua postura socializadora e educativa em
relação aos filhos e a continuidade da atividade agrícola familiar.
Muitos diagnósticos e planejamentos já foram elaborados que chegam a
desanimar. O que eles almejam são soluções traduzidas com o conhecimento da região.
Apesar de toda a precariedade do sistema, do pouco caso do DNOCS, bem como das
instâncias federal, estadual e municipal, ainda é o Perímetro que movimenta toda a economia
de Paraipaba.
Dispersos, os jovens podem ser o futuro do Perímetro, não apenas executando as
atividades tradicionalmente agrícolas e exercendo outras profissões, dando vazão à sua
capacidade criativa e empreendedora, mas também ultrapassando a letargia política dos que
receberam a dádiva e partiram para a gratidão. A democracia requer nova cidadania. Enfim,
os jovens podem se tornar capazes de fazer suas escolhas e traçar seus próprios caminhos.
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169
ANEXOS
170
Nos Anexos A e B vemos como era feita a análise para seleção das famílias que
ocupariam o projeto. Tentei analisar o primeiro documento completo, mas não consegui
entender como era feito o cálculo avaliativo. No segundo documento temos um parecer final
sobre a família a ser selecionada, destacando como aspectos relevantes para a seleção o
vínculo com o trabalho agrícola, aceitabilidade as orientações técnicas, ser livre de vícios e
gozar de boa saúde. Encontramos ainda outras fichas nas pastas dos irrigantes, tais como ficha
de saúde, entrevistas com pessoas da comunidade para avaliar a conduta da família e também
era exigido um atestado de conduta (ANEXO C), que era emitido pelo delegado da cidade
onde morava a família.
171
No Anexo D temos um relatório de visita das extensionistas do DNOCS, onde se
percebe a divisão de papéis de gênero e a ênfase aos aspectos de higiene corporal e
organização da casa e controle da vida familiar e no Anexo E temos uma ficha de
acompanhamento familiar que aponta os principais aspectos de controle avaliativo das
famílias que viviam no projeto.
.
172
O Anexo F retrata um episódio marcante na história do perímetro, onde um colono foi
preso porque havia “desviado” parte do seu feijão sem a ordem do gerente do DNOCS e cerca
de cem colonos foram até a delegacia para defender o mesmo. No decorrer da pesquisa de
campo conhecemos o Sr. Luis que nos narrou o citado episódio, que ressalta a conduta do
órgão àquela época.
173
ANEXO G
FOTOS DO PERÍMETRO CURU-PARAIPABA
Na primeira foto vemos a entrada no perímetro pela estrada do Sol Poente (setor D2) e na segunda vemos um
chafariz público que foi construído pelo DNOCS. Ao seu redor antigamente era só mato.
Apesar da proximidade com a cidade, o perímetro ainda conta com maior representatividade da agricultura
familiar
Esta casa está localizada numa área morta – ocupação irregular – e já está a venda. Na segunda foto também um
comércio construídos irregularmente
174
Estrutura de irrigação: motores, captação principal e canal secundário
A chegada na casa do Sr. Chico Caipira e entre as frutas e o trabalho, uma jovem estuda para ter um futuro
melhor
Foto com irrigantes
175