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Os prontuários falam: sobre os discursos psiquiátricos na clínica
geral
Ana Carolina Welter
Sandra Noemi Cucurullo de Caponi
Os prontuários falam: sobre os discursos psiquiátricos na clínica geral
Introdução: Este trabalho faz parte de pesquisa a ser desenvolvida pela autora, através do
Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal
de Santa Catarina no curso de Doutorado. Nos moldes de um projeto, o presente artigo
aborda uma proposta de pesquisa na área da psiquiatria, mais precisamente seu
engendramento na clínica médica geral e os efeitos que resultam deste processo.
Assim, vivemos em uma sociedade mediada pelas tecnologias, globalizada, com
discursos hegemônicos sobre cultura, trabalho, modos de viver, e também uma sociedade
onde a medicalização faz parte da vida cotidiana. Os aspectos mais fundamentais do ser
humano estão no amplo leque da medicalização, como nascimento e morte, sexualidade,
adormecer e despertar, atravessando a personalidade com o humor, timidez, insegurança, de
forma que poucos momentos da vida passam despercebidos por este fenômeno (CONRAD,
2007; CAPONI, 2012). São muitos os fatores que colaboram para o status quo da sociedade
moderna, e a psiquiatria assim como a medicina de forma geral, desempenha um papel
importante, se apresentando como provedora de um serviço para a comunidade, uma
obrigação social que faz com que disponha de seus saberes e tecnologias para ajudar
“organizar a sociedade”, fato explicado por Michel Foucault (2002) em Os Anormais. Desta
forma, esta disciplina da medicina, que agiu e age sobre os indivíduos desta sociedade
medicalizada, deixa marcas profundas que moldam o saber e agir das pessoas e instituições,
com seus métodos e jogos de força.
O poder psiquiátrico se estabelece no século XIX como protetor da sociedade;
perpassa o sistema penal e o cuidado com essas pessoas, primeiramente com relação aos
crimes monstruosos, agindo com dispositivos disciplinares e de segurança, pois afirmava
possuir um saber que distinguiria o louco do não louco e a sua periculosidade. A partir da
internação asilar, tentaria corrigir estes sujeitos para sua reinserção na sociedade, pois
precisavam ser levados de volta à normalidade. Mais tarde vai reivindicar as questões mais
banais, e então consegue impor a questão da normalidade e anormalidade, tornando-se a
ciência das condutas, instrumentalizando sua universalização. Assume o comportamento e
seus desvios, tomando como referência um desenvolvimento normativo. A psiquiatria,
fundada como uma ciência positiva se coloca como protetora da sociedade contra os perigos
dos anormais, normatizando comportamentos como a sexualidade, higiene, ambiente através
de suas práticas e saberes (FOULCAULT, 2002). Verifica-se aí uma psiquiatria articulada em
torno da figura dos anormais, operada e possibilitada pela emergência da teoria da
degeneração, que tem por objetivo a antecipação do perigo, uma gestão da anormalidade,
uma gestão biopolítica dos corpos (CAPONI, 2012).
Historicamente esta forma de atuar ocorreu também no Brasil, onde os psiquiatras
prescreveram comportamentos, como as recomendações matrimoniais do psiquiatra Juliano
Moreina para a prevenção da sífilis, invocando princípios morais que deveriam reger o
matrimônio em prol do bem coletivo da saúde (VENANCIO, 2004). Segundo Lima (2015),
em sua análise de periódicos de psiquiatria e psicanálise, na década de 1970 havia um
alinhamento da Revista de Psiquiatria Clínica “no sentido de ampliar a inserção da
psiquiatria na orientação do cotidiano das cidades” (LIMA, 2015, p. 42). Atualmente estas
práticas seguem vigentes no Brasil, como se verifica com a prevenção de problemas mentais
na sociedade a partir da infância, por meio de uma mídia persuasiva, na tentativa de treinar
pais e professores, verificando-se um “superdimensionamento do poder de solução dos fatos
da vida” (LIMA; CAPONI, 2011).
É na direção do sentido que Foucault dá ao poder com sua natureza positiva, aquele
que produz discursos de verdade, que se dirige esta pesquisa. Desta forma, está centrada nos
prontuários de pacientes de um Ambulatório de Clínica Geral do SUS que utilizam
medicamentos psicotrópicos, a fim de verificar se é possível identificar nestes documentos,
dispositivos de saber/poder e discursos da psiquiatria e da indústria de medicamentos. Ao
mesmo tempo, analisar de que modo os discursos da psiquiatria biológica afetam os
“outcomes” (desfechos) dos pacientes, na medida da sua evolução quanto ao diagnóstico
recebido e das práticas envolvidas no trajeto de tratamento e “cura”.
Trata-se de uma pesquisa com uma perspectiva interdisciplinar, que será realizada
utilizando como marco de análise autores de referência das ciências sociais, como Foulcault,
Pignarre, Canguilhem e Conrad, para analisar questões específicas que surgem no cotidiano
dos serviços de uma Unidade de Saúde do SUS.
A psiquiatria contemporânea estabeleceu as fronteiras entre o normal e o patológico,
baseando-se em sintomas para o estabelecimento dos diagnósticos a partir do DSM (Manual
de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais). Utilizando-se da medicina baseada em
evidências e da explicação biológica para os transtornos mentais, se instaurou segundo alguns
autores, a partir dos anos 1980 com a publicação do DSM-III, em uma época de crise da
hegemonia psiquiátrica nos EUA (MAYES; HORWITZ, 2005; AGUIAR, 2004). Porém, não
é possível explicar a psiquiatria descrevendo uma cronicidade de eventos, onde se suporia
que uma melhor tecnologia substituiria práticas antigas e que perderam seu valor, dando lugar
à psiquiatria como a vemos nos dias atuais. Pelo contrário, a psiquiatria é o resultado de
forças que são diferentes entre si, atuando não somente neste saber/espaço como também de
forma mais ampla na sociedade. O resultado dessas relações de força dá lugar à emergência
de práticas e saberes. Desta forma, de acordo com o método genealógico de Foucault, não se
trata de algo como uma verdadeira natureza da psiquiatria biológica que estaria ali, esperando
para ser descoberta (AGUIAR, 2004).
Partimos então do momento pós-guerra, quando surge o primeiro DSM (1952), para
colocar alguns eventos que ajudaram a moldar o momento atual. Até pouco antes de 1980 a
psiquiatria apoiava-se na psicanálise, que se tornou a base da “psiquiatria dinâmica” vigente
na época. Grande parte dos psiquiatras utilizava e realizava psicoterapia segundo as bases
freudianas para o tratamento de seus pacientes. Embora os psicotrópicos estivessem presentes
na terapia de pessoas com problemas mentais desde a década de 1950, estes eram utilizados
como suporte, combinados com a psicoterapia. Assim, o foco analítico das explicações e do
tratamento dos transtornos mentais nos primeiros DSM (DSM I e DSM II) era de ordem
psicossocial (MAYES; HORWITZ, 2005; CAPONI, 2012). No entanto, não podemos ignorar
que a psiquiatria nas três décadas após a Segunda Guerra Mundial, principalmente por volta
dos anos 1970 (pré-DSM-III), por mais que utilizasse um modelo baseado no sofrimento
psíquico e problemas sociais, já era responsável por um importante aumento da
medicalização do século XX. Vale lembrar, entretanto, que o momento era de
desinstitucionalização de hospitais e casas asilares psiquiátricas, com a necessidade de
tratamento de pacientes com graves problemas mentais (MAYES; HORWITZ, 2005).
Existem pontos importantes dessa virada da centralidade da psiquiatria dinâmica (psicanálise)
para psiquiatria contemporânea (farmacoterapia), chamada psiquiatria biológica, tomada
como uma remedicalização da psiquiatria e que teve como marco a publicação do DSM-III
em 1980, contribuindo para a globalização do modelo americano (AGUIAR, 2004).
Deste modo, a crise de legitimidade da psiquiatria da época se baseava, segundo
seus críticos, no fato de que era muito subjetiva, sem cientificidade médica e muito ambiciosa
nos termos de sua habilidade para explicar e curar as doenças mentais (AGUIAR, 2004). A
psicanálise foi marginalizada na medida em que não atendia às necessidades das pesquisas
(nos moldes da biomedicina com a supervalorização dos ensaios duplos cegos contra
placebo), e a influência dos tratamentos medicamentosos era crescente. A combinação destes
e outros fatores levaram a um novo DSM que fundamentalmente redefiniu o que eram as
doenças mentais e como deveriam ser identificadas, diagnosticadas e tratadas (MAYES;
HORWITZ, 2005).
Para a psiquiatria ser uma ciência médica, deveria criar um sistema similar ao
esquema epidemiológico para classificar desordens mentais (conhecida como nosologia).
Foram utilizadas as teorias de Emil Kraepelin, baseadas em três ideias: que desordens
mentais são melhor entendidas como análogas de doenças físicas; que a classificação das
desordens mentais demanda observação cuidadosa de sintomas visíveis em vez de inferências
baseadas em teorias causais; e que pesquisas empíricas vão eventualmente demonstrar as
origens orgânicas e bioquímicas das desordens mentais (MAYES; HORWITZ, 2005).
O DSM-III teve significante impacto no sentido de categorizar os problemas mentais
com sua orientação baseada em sintomas, contribuindo para uma visão biológica de saúde
mental, privilegiando as neurociências, a química cerebral e os medicamentos. A ênfase
passou da psicoterapia e das mudanças de comportamento para o diagnóstico baseado em
sintomas e tratamentos farmacológicos. Em suma, realinhou os incentivos de um grande
número de interessados: médicos, seguradoras de saúde, governo, indústria farmacêutica por
ter padronizado os critérios de definição e tratamento das desordens mentais. O DSM-III e
seus sucessores foram pensados de forma que qualquer clínico, independente de sua
formação teórica, pudesse realizar um diagnóstico, por isso se considera ateórico (MAYES;
HORWITZ, 2005).
Padronizaram-se então as pesquisas e foram atendidos os critérios para aprovação da
comercialização de medicamentos pelos órgãos de controle (FDA – Food and Drug
Administration). As empresas internacionais, buscando o vasto mercado americano para seu
comércio passaram a utilizar a terminologia do DSM, contribuindo para a globalização da
terminologia e da hegemonia americana na psiquiatria mundial (AGUIAR, 2004).
Segundo Robert Whitaker (2010), nos últimos 25 anos a psiquiatria remodelou
profundamente nossa sociedade através do DSM, modificando nosso entendimento de como
mente humana funciona e desafiou nossas concepções de livre arbítrio. Coloca então a
pergunta: somos mesmo prisioneiros dos nossos neurotransmissores?
É neste cenário que nos encontramos com as questões de medicalização da vida.
Segundo Conrad (2007), o conceito de medicalização repousa na ideia de um processo, de
acordo com o qual problemas não médicos passam a ser definidos e tratados como tais,
adquirindo o status de doenças e distúrbios. Este processo possui uma importância social
relevante, considerada uma transformação com tendência crescente. Outros autores
contemporâneos como Horwitz e Wakerfield (2007), apontam para o mesmo problema, onde
comportamentos antes considerados normais passam a ser tratados como patologias que
devem receber tratamento farmacológico, de forma que a psiquiatria ignora a distinção do
que é um sofrimento normal e o que se trata de um transtorno comportamental, ou seja, a
distinção entre o normal e o patológico.
Conforme Conrad (2007), vários fatores impulsionaram o avanço da medicalização,
como a expansão da jurisdição médica, pressão da indústria farmacêutica e de seguradoras de
saúde, diminuição da tolerância dos indivíduos a sintomas leves. Este autor coloca a proposta
de graus de medicalização, onde algumas condições da vida são mais medicalizadas que
outras. Os transtornos mentais são representantes de condições altamente medicalizadas.
Assim, o grau de medicalização depende da elasticidade de uma categoria médica, que pode
ser circunscrita ou pode se expandir para incorporar cada vez mais problemas.
No âmbito da psiquiatria, as categorias médicas são muito fluidas, permitindo a sua
expansão, que descreve um processo pelo qual as definições tornam-se mais amplas,
estendendo-se os limites, incluindo condições semelhantes ou relacionadas. Isto permitiria a
inclusão de novos problemas e a incorporação de populações adicionais além do que foram
designados da formulação inicial do diagnóstico (CONRAD, 2007).
Segundo Illich (1975), nas sociedades desenvolvidas existe uma obsessão com relação
à saúde, onde o sistema médico ao criar novas ofertas de saúde cria também novas
necessidades, e as pessoas respondem a isso afirmando que têm problemas, doenças. Busca-
se a solução para todos os problemas da vida, até o seu prolongamento ao infinito. Criou-se
uma aversão ao sofrimento, que faz esquecer-se da condição humana. Este modelo está em
curso no Brasil, principalmente após a implantação do SUS, com a ampliação do acesso das
pessoas a médicos, estes que possuem poder de diagnosticar (LIMA, 2015) e prescrever.
Parece que nos foi negado justamente o que há de mais humano, “a possibilidade de sofrer e
ter consciência de sua própria dor e condições para efetuar mudanças” (LIMA, 2015, p. 109).
Os medicamentos psicotrópicos são regulados pela prescrição médica, visto que são
os médicos que detêm o conhecimento para definir a forma de consumo para cada paciente
(PIGNARRE, 1999). A indústria farmacêutica dispõe de diversos dispositivos para garantir a
sua venda, representando um grande esforço de marketing (PIGNARRE, 2004), como a
divulgação através de visitas a consultórios, a fim de demonstrar a relação diagnóstico-
tratamento, para que o médico possa identificar em cada paciente um “caso” que apresenta
características para as quais existe um medicamento a ser prescrito (AGUIAR, 2004).
Segundo Aguiar (2004), é na dimensão da subjetividade que a produção biopolítica da
indústria farmacêutica age, com a fabricação das experiências de vida dos pacientes
transformadas em critérios diagnósticos. Esta produção se dá na forma de uma prestação de
um serviço de saúde pública: a sensibilização do público leigo que ensina às pessoas a
reconhecerem em si os sintomas de certos transtornos mentais, colocando o conceito de
doença que deve ser tratada o mais rápido possível. É uma forma de socializar a doença e
seus critérios diagnósticos. A mídia tem papel importante, com informações sobre sintomas,
modelos de explicação biológica, eficácia dos antidepressivos, psicoterapias, casos de
pacientes. As campanhas fazem crer que não há nada que a pessoa possa fazer para sair de tal
situação, a não ser procurar um médico para tomar um medicamento. Afinal de contas trata-
se de uma doença (AGUIAR, 2004).
Na medicina, o instrumento diagnóstico ideal é aquele que pode identificar um
marcador biológico, que afirma o diagnóstico, como nas doenças infecciosas. Porém, a
psiquiatria depende das narrativas subjetivas dos pacientes (não há marcador biológico),
motivo pelo qual a elaboração do DSM-III exigiu um esforço para criar um instrumento dito
descritivo e ateórico, a fim de realizar o diagnóstico a partir de critérios objetivos e
facilmente observáveis, que pudesse ser utilizado por clínicos de todas as orientações, sem
sofrer interferências quanto à inclinação teórica e subjetiva de cada um (AGUIAR, 2004).
O DSM-III influenciou a clínica dos médicos sem formação em psiquiatria, que
trabalham na lógica biomédica, pois tornava possíveis os diagnósticos unicamente baseados
em sintomas, não havendo a necessidade de uma base teórica. Um agravante é o tempo
reduzido que o clínico geral dispõe para as consultas. Surge um problema: médicos com
pouca formação em psicopatologia, com pouco tempo para realizar um diagnóstico e pensar
alterativas para o paciente. Como distinguir o normal do patológico? A solução é a prescrição
(AGUIAR, 2004). Muitas vezes, os pacientes não vêm somente com seus sintomas e
problemas, mas com diagnósticos biomédicos, reivindicando um tratamento (POLI, 2011).
“Trata-se da chamada ‘prova terapêutica’: na dúvida, é melhor tratar; se houver resposta, é
depressão mesmo aquilo que tratamos”. Trata-se de uma lógica que diz “que aquilo que
melhora com um antidepressivo só pode se chamar depressão” (AGUIAR, 2004, p112).
Aqui se insere a crítica de Philippe Pignarre, a “petite biologie”, que se caracteriza por
ser uma biologia menor, que se baseia nos medicamentos para desenvolver modelos
explicativos biológicos para os transtornos mentais na falta de marcadores biológicos. A
exemplo da clorpromazina em 1952 e a explicação da esquizofrenia, que partiu do princípio
de que, se a clorpromazina ameniza os sintomas da esquizofrenia e atua sobre receptores de
dopamina do cérebro, a causa da esquizofrenia é a falta de dopamina (PIGNARRE, 2001).
O paciente sai da consulta redefinido, rotulado, produzido nele uma subjetividade
(LIMA, 2005). Entra em um mundo onde não conhece as regras e não domina os termos
utilizados. Trata-se da sua vida, mas torna-se impelido a delegá-la nas mãos dos especialistas,
pois são eles que detêm o conhecimento sobre seu tratamento e o funcionamento dentro deste
mundo delimitado pelo diagnóstico (AGUIAR, 2004). Segundo Pignarre (1999), há pouco
espaço de negociação dentro destes limites, visto que o conhecimento do médico, trazido a
ele pelos estudos contra placebo, não dão margem para contestações do paciente na medida
de ponderar o uso (PIGNARRE, 1999), sendo tachado de irracional caso recuse o mesmo. A
prescrição tem o estatuto de uma ordem (AGUIAR, 2004). Segundo Aguiar, há o fechamento
de um ciclo “onde um impressionante dispositivo jurídico vincula, de um lado, o
medicamento ao médico, pelo monopólio da prescrição, e, de outro, o paciente ao
medicamento, pelo ato diagnóstico e da prescrição” (AGUIAR, 2004, p. 69).
É evidente na prática diária como farmacêutica do SUS e também na pesquisa
realizada no mestrado em Saúde Coletiva, dedicada à visão de usuários de benzodiazepínicos
(ansiolíticos) sobre seus usos e efeitos (WELTER, 2012), a importância que os medicamentos
psicotrópicos têm para uma importante parcela das pessoas e, em decorrência disto, para suas
famílias e para a sociedade. Os relatórios de dispensação de medicamentos do município
fornecem dados importantes na medida em que revelam aumento exponencial na quantidade
de medicamentos psicotrópicos dispensados. Qualitativamente se observa nas prescrições
médicas aumentos de dosagem e do número de medicamentos prescritos por paciente, o que
mostra não somente maior número de pessoas utilizando estes medicamentos, mas também
uma forma de terapia mais agressiva quando se trata de problemas psíquicos. Segundo Robert
Whitaker (2010), a quantidade de pessoas incapacitadas por problemas mentais, desde
transtornos do humor até esquizofrenia, recebendo auxílio do governo nos EUA aumentou
dramaticamente desde 1955, apesar do aumento do número de medicamentos disponíveis no
mercado para o tratamento de problemas mentais.
Desta maneira, esta pesquisa está centrada, a partir de prontuários de pacientes em uso
de medicamentos psicotrópicos, na tentativa de identificação e análise de diferentes
discursos, assim como na evolução dos tratamentos mediados pelo discurso da psiquiatria
biológica.
Objetivos: Analisar prontuários de pacientes de um Ambulatório de Clínica Geral do SUS
em uso de medicamentos psicotrópicos na tentativa de identificar os diferentes discursos,
incluindo os relacionados a dispositivos de saber/poder da psiquiatria e da indústria
farmacêutica, verificando o impacto dessas ações na evolução dos tratamentos destes
pacientes.
Objetivos específicos: Analisar os processos de diagnóstico e evolução dos tratamentos
de pacientes com uso de medicamentos psicotrópicos; Analisar como se produzem os
discursos e saberes da psiquiatria na prática da clínica geral; Analisar, a partir dos
prontuários, o movimento de medicalização da vida.
Metodologia: A pesquisa se dá no sentido de verificação e análise de discursos da
psiquiatria biológica e da indústria de medicamentos, a partir dos prontuários de pacientes de
uma unidade de saúde do SUS.
A estrutura dos prontuários da instituição em questão está centrada no objetivo de
incluir informações importantes quanto aos sinais e sintomas dos pacientes, assim como os
diagnósticos e o tratamento, e sua evolução. Também apresentam questões sociais dos
pacientes, uma vez que são atendidos por múltiplos profissionais. As informações comuns a
todos é uma ficha de cadastro, com dados gerais do paciente. A cada consulta são registrados,
através de triagem pelos técnicos de enfermagem, peso, altura, pressão arterial e queixa
principal. Encontram-se também referências e contra referências a especialidades médicas e
outros profissionais como: psicólogos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, assistentes sociais,
etc. Ainda, exames e tratamentos diferenciados, como a fisioterapia em clínicas
especializadas ou a indicação para grupos da própria unidade de saúde, como grupo de
tabagismo. Os prontuários ficam dispostos em um local específico, ordenados entre
masculino e feminino, e então organizados pelo mês de nascimento e alfabeticamente.
Conforme Arlette Farge (2009, p. 14), “o arquivo é uma brecha no tecido dos dias, a
visão retraída de um fato inesperado. Nele, tudo se focaliza em alguns instantes de vida de
personagens comuns, raramente visitados pela história (...)”.
Para a realização desta pesquisa, serão selecionados os prontuários de pacientes que
estiverem em uso corrente de algum medicamento psicotrópico, através dos relatórios de
dispensação de medicamentos da farmácia da unidade de saúde. Este trabalho será submetido
ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFSC e serão utilizados aqueles
prontuários cujos pacientes consentirem formalmente seu uso para a pesquisa. Serão
respeitados os preceitos da bioética representados pela autonomia, não maleficência,
beneficência e justiça a fim de preservar os dados dos pacientes nos prontuários.
O método de análise escolhido é a Análise Crítica do Discurso proposto por Normam
Fairclough (2001), considerado pelo autor não somente um método, mas uma teoria, uma
perspectiva teórica sobre a língua. Dialoga com outras teorias e métodos sociais, com eles
engajando-se de maneira interdisciplinar. Vê a língua como um elemento integrante do
processo social. Assim, procura desvendar questões ideológicas presentes nos discursos, por
vezes não conscientes para as pessoas nas suas práticas sociais. Os discursos ajudam a
construir a realidade e mudanças sociais, uma vez que se configuram como um processo
político no qual a mensagem passada expressa uma representação de visão de mundo e de
sociedade. Assim, a análise de vocabulário através da Análise Crítica do Discurso é útil para
revelar como as escolhas léxico-gramaticais contribuem para a representação do mundo, e se
estão de acordo ou em oposição à ordem dominante.
Considerações Finais: A partir da problematização do objeto de pesquisa aqui realizada,
assim como a exposição do percurso metodológico, espera-se atingir os objetivos propostos,
seguindo os preceitos éticos e científicos que regem as pesquisas do campo social.
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