OS QUE GRITAM E OS QUE CALAM (Teatro Sensorial) SINOPSE · PAI: Agora você vai se calar......
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OS QUE GRITAM E OS QUE
CALAM
Por Tiago da Silva
SINOPSE: Há na vida aqueles que gritam: aqueles
indivíduos que, por uma razão ou outra, não conseguem
conter em si a explosão. Aquele que grita sempre é para
fora, sempre é para o outro, para o derredor, seja para
mandar, seja para desabafar, desesperar. Por contrapartida,
há aqueles que calam, e nestes a explosão é mais interna e
que, talvez justamente por isso, sofram em si efeitos mais
deletérios. Como se dá a relação de um mundo dividido
assim? Quem são esses indivíduos? Que gritos são os que,
contidos ou não, escolhemos externar ou internalizar. A
peça é composta por algumas pequenas cenas do quotidiano
nas quais procuramos expressar essa relação entre o gritar
e o calar, seja individualmente, seja coletivamente.
PEÇA
O cenário será sempre o mesmo para todas as cenas, uma
cozinha com uma mesa posta e alguns utensílios domésticos.
Entretanto o uso desses elementos estarão a dispor do
elenco para serem alterados ou não, de acordo com cada
cena.
Abertura:
Todo o céu se escurece
lá vem uma tempestade.
As nuvens no céu se juntam
como em posição de ataque.
O vento cerca os pedestres
com seu gélido abraço
no espaço o sol se esconde
como que evitando olhares.
As mãos e os guarda-chuvas
estão de súbito preparados.
Todos os passos apressam
à espera de um estalo...
Já se ouvem trovões
ferozes,
o céu desponta em raios.
Suas vozes ecoam longe
como em cósmicos cavalos.
As crianças choram de medo,
e as mulheres de susto
fácil.
O céu escurece mais ainda
e os tambores da batalha
escutam-se altos e
imponentes
sobre o céu da cidade.
Que frio é esse que se
sente
às cinco horas da tarde?
Do céu ainda não caiu
sequer uma gota de água...
será uma chuva de dentro
que no peito nos desaba?
Ou será o medo da chuva
que nos apressa os passos?
Será a iminência de frio
Será a iminência de um
raio?
Rezar para que o soco
não nos pegue
despreparados?
Talvez o medo da chuva
seja a verdadeira
tempestade.
A chuva fica na rua
e o medo levamos pra casa.
Cena 1 – O jantar.
(Uma família tradicional dos anos 50, PAI, MÃE e dois
Filhos sentados à mesa jantando. O PAI à cabeceira e a MÃE na
outra ponta. Explorar os silêncios)
PAI (para a mulher): Me passa o sal!
MÃE: Tá aqui (esticando a mão)
PAI: Filha, pega aí e me dá.
FILHA: Aqui, pai.
(silêncio)
PAI: O que aconteceu? Por que a comida hoje está
ensossa?
MÃE: Não sei, deve ter sido descuido. Acontece...
PAI: Ah... tenha mais cuidado da próxima vez.
MÃE: Se o problema é sal, é só salgar...
(O marido para de comer por um instante e fica olhando
para a mulher. Depois retorna)
PAI: Ainda bem que é só o sal...
MÃE: Sei...
PAI: Mesmo assim é bom ter cuidado...
MÃE: Sim... filho, quer contar ao seu pai como foi
hoje sua prova de admissão?
FILHO: Ah... foi normal, foi como todo exame de
admissão. Tem perguntas, tem um resultado a ser liberado.
Nada demais.
PAI: Acho que usar esse termo “nada demais” não se
adequa à faculdade, filho...
FILHO: Só quis dizer que não tinha nada de diferente
dos demais exames.
PAI: E passou?
FILHO: Não sei ainda, pai... vai sair daqui a uma
semana.
PAI: Com tudo o que você tem, deveria ser uma certeza,
não acha?
FILHO: Pode me passar o sal, por favor?
PAI: Acho que você alcança...
FILHO: Desculpe...
(silêncio)
FILHO: MÃE, tá uma delícia... obrigado!
MÃE: Não há de que, meu FILHO...
FILHA: Não acho que ficou muito ensosso... pra mim tá
ótimo. O sal é o de menos. Ah, PAI, tenho uma notícia pra o
senhor. Acho que descobri o que quero ser... pedagoga!
PAI: Que?
FILHA: Pedagoga, PAI... professora, ou melhor,
cientista da educação. Vi que adoro interagir com as
pessoas, ensinar, me sentir útil.
MÃE: Isso é lindo, FILHA... agora é só estudar e se
dedicar, você consegue.
PAI: Acho que você está sonhando demais... tem coisas
mais importantes para você se preocupar.
FILHA: Com o que, com o sal? (Ri)
(Silêncio. Tensão)
MÃE: É só uma brincadeira...
PAI (come batendo a colher no prato): Sim, estou
vendo...
FILHA: Todos nós podemos sonhar, né?
PAI: Sim, você pode sonhar... desde que se lembre o
que te mantém no mundo real. Quais são as reais
prioridades. Casamento, por exemplo... sim, você pode
estudar, mas quem vai te sustentar quando estiver com 23
anos? Quem vai bancar seu sonho?
FILHA: Ora, papai... casamento nem passa pela minha
cabeça ainda. Deixa disso...
PAI: Ah... pois bem, não faz nada mal sonhar... desde
que despertar faça parte... (FILHA abaixa a cabeça e continua
a comer) me passa o sal de novo? (silêncio)
MÃE: Você não alcança?
(silêncio)
PAI: Como é?
MÃE: Perguntei se você não alcança...
PAI: E daí se eu alcançasse?
MÃE: Provaria que, de fato, o problema é a falta de
sal mesmo.
PAI: Engraçado ouvir isso de quem cozinha...
MÃE: Engraçado ouvir isso de quem não cozinha.
PAI: Mas é o que traz o sal... e que tem direito de
dispor do saleiro ao seu dispor. Acho que isso é bem claro,
aqui!
MÃE: Sim... cuidado para não secar com tanto sal!
(Os dois se levantam e se encaram)
PAI: Diga mais uma palavra e eu te quebro os dentes!
MÃE: Tudo isso por causa de sal?
PAI: Eu mandei você calar...
MÃE: Ou o que? Fala? Não quer mais sal?
(O PAI se direciona para a esposa)
PAI: Você perdeu a cabeça?
FILHA: pai, mãe... calma.
PAI: Não se mete! (para MÃE) Quer mesmo me provocar?
MÃE: Não, o que eu quero é sal! Sal na medida! Sal
gostoso!
PAI (dando um tapa na mulher): Calada! Sua puta!
(mulher cai rindo)
PAI: Eu mandei calar a boca!
(FILHA se desespera, MÃE permanece rindo, FILHO se
levanta)
MÃE: Olha só, e não é que falta sal mesmo!
PAI: Agora você vai se calar... (começa a bater forte
enquanto ela ri mais alto ainda; o FILHO pega o saleiro e bate
na cabeça do PAI)
FILHO: Para! Para! Para! (Começa a espancar o PAI) Ao
diabo esse teu maldito sal! Quem se importa! Seu velho
canalha! (vai batendo e se descontrolando, enquanto a FILHA
chora e a MÃE ri, até que para cansado) Tudo o que você fez
foi tornar nossas vidas estéreis... (levanta-se) Agora
podemos comer em paz...
(todos se sentam à mesa e o PAI jaz morto no chão)
FILHO: Mãe, me passa água, por favor?
Fim da cena 1
ENTRE CENAS: Alguém recita para a plateia.
Vês! Ninguém assistiu ao
formidável
Enterro de tua última
quimera.
Somente a Ingratidão - esta
pantera -
Foi tua companheira
inseparável!
Acostuma-te à lama que te
espera!
O Homem, que, nesta terra
miserável,
Mora, entre feras, sente
inevitável
Necessidade de também ser
fera.
Toma um fósforo. Acende teu
cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera
do escarro,
A mão que afaga é a mesma
que apedreja.
Se a alguém causa inda pena
a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que
te afaga,
Escarra nessa boca que te
beija!1
Cena 2 - Mais ou menos
(Mesmo cenário. Uma mulher está olhando o vazio. O homem
entra portando uma fotografia)
HOMEM: Então é isso?
MULHER: É isso...
HOMEM: Estás certa?
MULHER: Certa não...
HOMEM: Porém decidida.
MULHER: É o melhor a ser feito...
(Silêncio. O homem coloca a foto no meio da mesa)
MULHER: Não quero ver!
HOMEM: E por que não?
MULHER: Melhor seria perguntar por que sim...
HOMEM: Tens razão... (pega a foto de novo. Olha
atentamente) devo rasga-la então?
MULHER: Se isso adiantasse de algo... no fim das
contas é mais uma foto. Não é o que fica...
HOMEM: E o que fica então?
1 Augusto dos Anjos, Versos íntimos.
MULHER: E eu sei lá? Como posso saber? Ora, para de me
aporrinhar com tuas perguntas. Vamos logo com isso!
(Ambos se levantam e se olham longamente. A mulher está com
a respiração forte)
MULHER: De quem é a culpa?
HOMEM: Tu sabes que não é de ninguém...
MULHER: E por que isso agora? Por que com a gente?
HOMEM: Estamos a fazer perguntas um ao outro de
novo... a dor cutucada é a dor doída sempre. Tu sabes...
MULHER: Eu sei... (pausa). Ah, dá cá esta foto!
(Pega a foto e olha demoradamente)
MULHER: É tão... nós! Tão... leve. Como algo denso
poderia vir de algo tão leve? Tão fugidio... essas imagens.
Esse momento eternizado em um quadrado fixo e impresso.
Esse sorriso... essas cores que optamos por ocultar no
preto e branco. Tivesse cores talvez fosse melhor... Não...
é só uma foto! É só uma MALDITA FOTO! Mas tão leve!
HOMEM: Ei, Ei! Não de novo! Vamos lá, me passa a foto
de novo!
MULHER: Lembro desses gestos, das intensões deles.
Queríamos retratar algo. Personificar algo! O que era?
HOMEM: Por favor, não prolonguemos isso... vamos
guardar essa foto logo! (se aproxima com cuidado)
Mulher (grita): Sai daqui! Sai! Não vês que isso é a
gente! Ou melhor, era a gente?
HOMEM: Convém aos cadáveres serem sepultados, vamos
logo com isso...
MULHER: Ah... então já tens as velas e as flores?
Lembraste de trazer o vigário, de chamar a toda a
comunidade civil, as mulheres respeitáveis? Avisaste a
imprensa? Como podes... porco... como podes!
HOMEM: É apenas uma foto... era pra ser ou uma
lembrança ou uma despedida. Não uma catarse. Era pra ser
apenas um símbolo de algo que deixamos para trás! Lembra-
te, estás decidida... lembra-te, é o melhor a se fazer. Não
façamos do enterro espetáculo público, o sono privado é o
melhor sono.
MULHER: Como podemos chamar de sono o que desperta em
nós a fibra que nos inflama? Como ousas chamar de sono o
que nos levanta e nos atormenta? Olha! Olha pra mim!!!!
Chamas isso de sono! (começa a rodear o homem) Hem! Chamas
isso de torpor? De luto? De alucinação? Fala! (Homem aumenta
a respiração. Mulher continua a provocar) Fala, infeliz! Não
és tu quem sempre tem a resposta pra tudo? Fala! (grito
longo, empurra o homem e este cai).
(Ambos permanecem se encarando por um longo tempo. A mulher
solta a fotografia)
MULHER: Tens razão. Devíamos ter sepultado logo. Agora
o fedor da carniça nos impregna. Vai, pega teu cadáver e
enterra junto com a leveza desta foto... (senta-se na
cadeira cansada. O homem se levanta e pega foto. Olha-a de novo)
HOMEM: Mais uma vez, não foi nossa culpa. Podemos ter
naufragado junto, é verdade, mas não foi por nós, entendes?
Talvez seja a chance de ressurgirmos. De dar a volta por
cima... guardar isto aqui e fazermos algo novo.
MULHER: Tudo que morre um dia foi novo, todas as
coisas envelhecem, até as esperanças.
HOMEM: Às vezes ela é a única coisa que temos... às
vezes mais, às vezes menos.
MULHER: No fim, o que temos é um mais ou menos. E uma
foto!
HOMEM: Agora não mais! (Pega o isqueiro e queima a foto.
A mulher olha assustada). Agora não mais! Agora só temos o
subir ou afundar de vez. Só temos um ao outro, ou a
possibilidade de um ao outro. Só nos resta isso.
MULHER (Olhando para o balde): Cinzas?
HOMEM: Cinzas!
MULHER: Cinzas... (pega o balde e passa as cinzas no
corpo). São só cinzas, mas ainda queimam. Quando esfriarem,
não serão mais nada: só pó. Cinzas...
HOMEM (Retirando a mulher com força e gritando): Cinzas!
São só cinzas! Cinzas, entendeu? Não há mais defunto, não
há mais flores, não há mais vela! Só cinzas... (Solta a
mulher). Vamos terminar logo com isso!
(a mulher permanece no chão pensativa)
HOMEM: Vamos!
(a mulher se levanta firme, resoluta)
MULHER: Vamos... as cinzas já esfriaram.
(Dão as mãos e saem. Ao fundo se escuta o barulho de uma
porta batendo)
Fim da cena 2
ENTRE CENAS:
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...2
Cena 3 – Pátria que me pariu!
(Entra um soldado segurando uma bandeira do Brasil. A
estende sobre a mesa e começa a olhar para ela)
2 Castro Alves, o navio negreiro VI.
SOLDADO (para a plateia): Há ruinas que o homem
visualiza. Fora dele. Aos olhos dele... ruínas daquilo que
foi casa, bairro, vila e que hoje só são escombros. Pedra
derrubando pedra. Bem, é assim que é a guerra. Sei que
muitos de vocês deve imaginar isso dos filmes que passam na
TV, dos relatos de ex-combatentes, sei que muitas de suas
crianças brincam de soldado, polícia e ladrão e todas essas
brincadeiras. Admito, eu mesmo brinquei muito disso. Mas a
brincadeira de uma guerra, o filme de uma guerra, o livro
de uma guerra, não é a guerra. Acreditem. (pausa) Mas não é
isso que eu quero falar... desculpem. Eu estava falando dos
escombros... sim, vi muitos deles. Alguns ajudei a criar,
outros ajudei a evitar, mas há outro tipo de ruínas. Essas,
os olhos não veem, os jornais não noticiam, é de difícil
percepção. Sim, há outro tipo de ruína, mais volátil, porém
mais densa. Mais íntima, porém mais cruel: há a ruína do
retorno a casa. Aparentemente tudo está no lugar: a mesa,
as cadeiras, os retratos na parede, mas nada está no mesmo
lugar se aquele que retorna não é mais o mesmo. (Explora o
ambiente) Quando saí da quarta divisão de tiro do vigésimo
regimento da infantaria, fui condecorado e o coronel me deu
esta bandeira que estou carregando (mostra bandeira ao
público) e me disse: “Vai, filho, volte para casa, para a
mãe-pátria”. Peguei o avião e pisei de novo em solo
nacional, portando essa bandeira. Porém o rosto que eles
viram chegar foi o de um herói manco que desaprendeu tudo,
o de um homem ferido; não o de um guerreiro, mas o de um
animal ferido. (Silêncio) Entretanto havia ainda a
esperança, vou chegar em casa e mostrar essa bandeira para
meus amigos, meus primos, minha mãe. E quando cheguei em
casa tudo o que eu encontrei foi uma senhora doente, feliz
por minha volta, mas sem força pra comemorar. Os meus
amigos e primos, os que não haviam morrido, ainda estavam
no front ou estavam tão amargurados quanto eu que não
tinham forças para comemorar. Mas as palavras do coronel
ainda soavam “volte para a mãe-pátria”. E parece que só ela
me sobrou. Isso aqui... um pedaço de pano, algo por que
todo soldado daria a vida. Algo que todo regimento jura
antes de ir ao combate... isso aqui. Bandeira. flâmula,
estandarte, pendão... com suas cores e seus símbolos. Isso
aqui, que o capitão dizia “é a mãe de vocês agora”. (Pausa)
Se isto é minha mãe, quem é aquela senhora que está na sala
descansando frágil? Se isto é a mãe, quem são aquelas que
choram pelos caídos? E quem é a mãe daquelas que choram?
Poderia eu queimá-la, mas esta não choraria; poderia rasga-
la, mas não esboçaria reação; poderia eu fugir, mas do céu
ela tremularia ao vento que sopra. Sim, neste ponto posso
admitir que lembra muito uma mãe... mas tem diferença entre
deixar pra lá e chorar a partida do filho, entre não reagir
e ser corroída pela perda de alguém querido. Ah, quando se
se vai ao enterro de um amigo e que a mãe dele está ao seu
lado, a bandeira não consola, nem traz ele de volta. Não,
ela não reergue as ruínas que asfixiam o peito de quem
volta pra casa. Vejam, meus senhores! Vejam! De que me
valeu o sangue vertido todos os dias, de que valeu
condecoração, de que valeu matar, de que valeu ser quase
morto, a fome, o medo! Morrer por isso aqui? Pátria? Ouvi
de um moço certa vez “minha pátria é minha casa”. E que se
fará daqueles que não tem casa? Que se fará daqueles que
não tinham quem os esperasse no desembarque? E dos
vencidos? Que se fará... respondam! Todos vocês amam o que
não veem! É muito fácil falar de patriotismo, é muito fácil
falar de inimigos, mas quando foi que vocês olharam nos
olhos daqueles que você é programado a odiar e quando foi
que vocês amaram de verdade os heróis que aprenderam a
amar? E que patriotismo há quando nas ruas vocês se
digladiam pelos seus partidos, times de futebol, candidatos
políticos? E não é bom soldado aquele que, por amor a isso
tudo, deixou o maior número de cadáveres do inimigo no
chão? Admitam, meus senhores, que no fundo, vocês estão
indiferentes a isso tudo. Admitam que no fundo, a casa é
mais importante que a terra, que o bem da sua barriga é
mais importante que o bem da nação. Talvez aí e só aí,
quando estiverem diante de uma rajada de metralhadora se
lembrem que o objetivo maior nunca foi a pátria, mas voltar
vivo. Não foi país nenhum, mas foi o sofá, a mesa em que se
possa descansar. Talvez, repito, só aí, olharão para a
bandeira e dirão... é um pano! Não é mãe... que se exploda
esse ufanismo, que se dane o simbolismo! Nada disso importa
quando é de ruínas que estamos falando. (solta a bandeira
no chão e sai)
Fim da cena 3
ENTRE CENAS:
Se eu conversasse com Deus
Iria lhe perguntar:
Por que é que sofremos
tanto
Quando viemos pra cá?
Que dívida é essa
Que a gente tem que morrer
pra pagar?
Perguntaria também
Como é que ele é feito
Que não dorme, que não come
E assim vive satisfeito.
Por que foi que ele não fez
A gente do mesmo jeito?
Por que existem uns felizes
E outros que sofrem tanto?
Nascemos do mesmo jeito,
Moramos no mesmo canto.
Quem foi temperar o choro
E acabou salgando o pranto?3
Cena 4 – Consolar e doer
3 Leandro Gomes de Barros, Se eu conversasse com Deus.
(Uma cigana está sentada à mesa esperando uma cliente,
enquanto segura nas mãos a foto do filho que havia morrido
recentemente. Explorar os gestos e o silêncio. Batem na
porta)
CIGANA (recompondo-se): Já vou... só um minutinho.
(dirige-se a abrir a porta e entra junto com a CLIENTE,
que está com ar preocupado)
CIGANA: Sente-se, por favor, fique à vontade... aceita
um chá, um café, uma água?
CLIENTE: Não, obrigada...
CIGANA: Tá bom, então... vamos lá. Em que eu posso
ajudar, querida?
(silêncio constrangido da CLIENTE)
CIGANA: Pode ficar tranquila, tudo aqui é de estrita
confidencialidade...
CLIENTE: Eu sei. só estou tomando fôlego para começar
a contar...
CIGANA: Tudo bem, eu aguardo.
CLIENTE: Sabe... é meu filho...
CIGANA: Filho?
CLIENTE: Sim... meu filho.
CIGANA: Sei... e o que a aflige?
CLIENTE: Filhos sempre nos afligem, não é? É uma
aflição eterna.
CIGANA: Ô, se é... e qual é a idade dele?
CLIENTE: Pensei que fosse uma adivinha...
CIGANA: Bem, por mais que saibamos de muita coisa, há
muitas coisas que não sabemos, não é? Por exemplo, o dia de
nossa morte... ainda bem.
CLIENTE: Sim, é verdade... desculpe minha
indelicadeza. 18 anos... ele tem 18 anos, acabou de
completar. Tá todo empolgado porque agora é de maior... tem
tanta vida pela frente.
CIGANA: Muitos sonhos, não é?
CLIENTE: Sim, muitos... por isso vim procura-la.
Queria saber se há algo que bom pra ele no futuro.
CIGANA: Mas para isso eu teria de falar com ele
pessoalmente...
CLIENTE: Sim, eu sei... mas quem sabe no meu futuro
como mãe, eu possa ter um vislumbre do que lhe reserva...
CIGANA: Sim, entendo... você quer saber do seu futuro,
pra ver como o seu filho aparece nele.
CLIENTE: Isso...
CIGANA: Agora, me perdoe a intromissão, pra que você
quer saber o futuro?
CLIENTE: Ah... ora, pra me preparar para ele...
CIGANA: Não seria para tentar muda-lo, ou para adequar
as coisas aos seus desejos?
CLIENTE: Como assim?
CIGANA: Sabe, muitas vezes recebo clientes que me
procuram pra perguntar de coisas relacionadas ao futuro, me
perguntam se serão felizes nos seus projetos, e eu digo que
sim... que serão. Aí eles vão lá e quebram a cara? Por quê?
CLIENTE: Não sei...
CIGANA: Porque o destino só obedece a seus próprios
planos, não os que alguém traça. Às vezes por saber o
futuro nos tornamos controladores, porque queremos que
aquilo se realize, ou inconsequentes, porque achamos que
aquilo vai ocorrer independente do que façamos...
CLIENTE: Entendi...
CIGANA: Então vou fazer o seguinte, vou ler a sua mão
e ver o seu destino, sabendo que ele é seu, não do seu
filho... é seu.
CLIENTE: Tá bom... (estende a mão para a cigana)
CIGANA: Me dê as duas, vamos... Olhe bem nos meus
olhos.
(Permanecem um tempo se olhando. A cigana começa a ler
a mão da CLIENTE, com carinho, quase maternalmente)
CIGANA: Vejo que você é uma boa pessoa... uma mãe de
fato. Sei que seu coração faria de tudo por um filho, até
se permitir angustiar-se. Porém ao mesmo tempo, vejo que
você carrega uma amargura... sim, uma amargura. Porque,
muitas vezes o que você deseja, não é o que ele quer pra si
mesmo. Você tenta se corrigir, dizer que a vida é dele, mas
no fundo, você não evita sentir raiva pelos seus sonhos não
serem os dele. E isso dói... toda mãe sente essa dor. Mas
ao mesmo tempo, você quer que ele sonhe... sim, eu vejo
bem... mas você quer que ele se esforce... mas não quer que
ele sofra... (pausa) como você sofreu... É como se num
sonho, o você fosse deixada em um navio à deriva. Presa ao
relento do mar, sem direção. Sem rumo. Desde cedo lidando
com a solidão, desde cedo tentando não ser esquecida! O seu
medo não é a felicidade do seu filho, seu medo é ser
esquecida, que o seu esforço seja em vão!
(CLIENTE começa a chorar)
CLIENTE: E que mãe não pensa assim, moça?
CIGANA: Não seja tola! Os filhos são o que eles
escolherem ser... não o que gostaríamos que eles fossem.
(Começa a se lembrar do filho morto) O que Deus nos dá,
também pode tirar, e não temos poder nenhum sobre isso...
CLIENTE: O que você quer dizer com isso?
CIGANA: Que a vida é um projeto que não pertence nem
ao dono, por mais que a gente se organize, sonhe, estipule
metas, datas, não depende de nós a última palavra. (Pausa,
olha para as mãos da CLIENTE). A gente planeja tanto e
esquece disso...
CLIENTE: Meu filho vai morrer?
(pausa)
CIGANA: Um dia, com certeza... mas isso não está no
seu controle, e talvez você não esteja viva para ver. De
uma coisa estou certa, seu filho vai sepultar você.
CLIENTE: Então verei a felicidade de meu filho?
CIGANA: Isso eu não sei... como disse, só posso falar
do que eu vejo em você... como toda mãe, a sua esperança é
gerar um bom futuro ao seu filho, acha que sendo como você
é garantirá que ele não seja quem você não quer que ele
seja? Mas a vida só é uma, não é tentativa e acerto, tudo
que se faz é pela primeira e última vez... apenas dê o que
você pode dar... amor. Falo isso de mãe para mãe... No fim,
toda viagem é solitária e intransferível. (Solta a mão de
CLIENTE)
CLIENTE: A senhora é mãe?
CIGANA: Sim, pelo menos até esses dias, até que Deus o
tomou para si.
CLIENTE: Meus pêsames...
CIGANA: Sabe, querida... não se aprende a amar, como
tampouco se aprende a morrer. Enterrar um filho não se
aprende. Se enterra... permanecer viva é que se aprende.
CLIENTE: É aquele moço da fotografia?
CIGANA: É, mas isso não importa agora...
CLIENTE: Era um belo rapaz, deve ser difícil lidar com
isso...
CIGANA: Sim... é.
CLIENTE: Olha, obrigada pelo que falou... parece meio
enigmático, sim... mas fico feliz em saber que meu filho
vai sobreviver a mim.
CIGANA: Sim... sim... é melhor saber só o básico
mesmo. Dizem que conhecimento é poder, mas isso nunca foi
verdade quando se fala daqueles que nós amamos.
CLIENTE: A senhora sabia?
CIGANA: Nunca quis saber sobre o meu futuro, filha...
Ajudo pessoas há muito tempo para saber que o futuro, ou
mesmo o presente, é muito mais ilusório do que a gente
imagina. Se a gente soubesse a hora da catástrofe, tentaria
evita-la de todo jeito, e nessa fuga desesperada, quantas
mais a gente causaria... ou até mesmo anteciparia.
(Lembrança dolorida)
CLIENTE: Está tudo bem?
CIGANA: Sim, está... está tudo bem, querida (sorri).
CLIENTE: E quanto ficou a consulta?
CIGANA: Como hoje é a sua primeira vez, não vou
cobrar. Pode ficar tranquila...
CLIENTE: Tem certeza? De todas formas agradeço...
fique com Deus tá? (beija a mão da cigana) Tchau.
CIGANA: Adeus, querida...
(espera a CLIENTE sair e pega a foto do filho
novamente. Ela percebe um volume na parte de trás. Abre a
foto e lê uma carta)
CIGANA: Querida mãe... me perdoa... (pausa) mas acho
que a vida me pesou demais e tive que fazer o que fiz. Me
perdoa... (pausa). Não, é melhor parar... (rasga a carta).
O que está feito, está feito. Enquanto viveres, brilha, de
todo não te aflijas. A vida é curta e o tempo logo cobra o
seu tributo. Malditos gregos!
Fim da cena 4
Entre cenas:
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes
vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar
banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das
etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo
ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de
fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido
emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas
ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na
vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi
vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.4
Cena 5 – O nome
(Uma jovem adolescente entra na sala com uma mochila.
Aparentemente, ela acabou de chegar da escola. Está
cansada. Se senta. Ela pega um espelhinho da bolsa e começa
a se olhar. Talvez ela retoque a maquiagem. Talvez ela
apenas se olhe. O importante é que o olhar diga algo sobre
quem ela é. Em algum determinado momento ela percebe a
presença do público. Sorri para a plateia. Explorar
catarses)
Estudante: Caramba... nunca imaginei que veria tantas
pessoas na minha vida. Olha só, que engraçado cara... eu
pagando de estrela! Arrasei! Sério mesmo! ÁR-RA-SEI!
(explora o palco, o ambiente).
Talvez se as meninas me vissem estariam morrendo de
inveja. (Silêncio) Olha só, e não é que ela conseguiu
mesmo? Como esse munda dá voltas, não é? (Silêncio) Sim..
dá muitas voltas... ô, se dá! (Silêncio)
Talvez elas morram de inveja... (Silêncio)
Talvez elas finalmente me notem... talvez elas até
queiram tirar uma selfie comigo. Postar no nas redes
sociais. Talvez até eu mesma reative as minhas redes
sociais. Ganhe curtidas, comentário positivos, sei lá. Não
faz mal sonhar um dia, não é? (Silêncio)
Ou talvez seja pior... (Silêncio)
Ah, cara, vamos deixar de baboseira! Sério, tem hora
que você viaja...Que inveja o que? Quem sentiria inveja de
você? E inveja pra que? O que você tem que ela não têm?
Hem? (Silêncio/Catarse)
Ou melhor...
O que você não tem que elas têm? (Começa a se olhar no
espelho. Sentir o corpo, explorar as expressões, como se
estivesse buscando algo)
O que você não tem e que elas possuem? Aparentemente
tudo está no lugar. Eu me cuido, sou bem arrumada... não
sou um pé no saco, sou educada. Não sou nem muito
inteligente, nem muito burra. O que falta? Hem?
4 Fernando Pessoa, Poema em Linha reta.
Agora foi que deu! Você jura que é a branca de neve:
“Espelho, espelho meu... tem alguém mais bonita do que
eu?”. Me poupe, criatura!
Ou talvez eu devesse perguntar: “Tem alguém que seja
como eu?” Ou melhor: “Por que eu não sou como ninguém?”
(Silêncio)
Por quê?
Por que continuamos sendo quem não gostaríamos que
fôssemos?
(Silêncio)
Talvez se eu fosse feia, se eu fosse burra, se eu
fosse sei lá o que talvez eu me aceitasse mais. Os
deficientes e idosos têm uma vaga reserva nos
estacionamentos, mas eu... não tenho vaga nenhuma. É como
se nenhum lugar me coubesse, sabe?
(Silêncio longo)
Talvez hoje seja diferente...
(Silêncio)
Talvez as coisas finalmente mudem...
(Silêncio)
Não! Hoje SERÁ diferente!
de uma forma ou de outra...
tudo será diferente... eu garanto... (Silêncio.
Respiração determinada. Encara o público no olho)
Eu não tenho um nome! (Seca)
À proposito, eu sei que eu deveria ter me apresentado
desde o princípio... foi mal! Eu deveria ter chegado aqui
como toda boa moça educada, cumprimentar a todos vocês e
dizer quem eu sou e o que eu tô fazendo aqui e tal... se
não um nome, pelo menos um apelido carinhoso, sacou? Mas
não posso fazer isso...
E não posso porque até agora isso nunca foi
importante... não importou mesmo...
As pessoas nunca me chamaram pelo meu nome... me
chamaram de qualquer outra coisa, mas meu nome... esse
passa batido. Se perguntarem na secretaria da escola quem é
a aluna tal e tal, ninguém, nem as funcionárias, saberiam
responder. Mas se perguntassem pela menina assim e assado,
todos diriam...
O que dizem a respeito da menina é mais importante do
que saber quem é essa menina. (Silêncio impaciente)
Mas para que não cortemos o nosso canal de
comunicação, podem me chamar de Fulana. Afinal acho que é o
que eu sou mesmo... uma fulana.
Eu sou todos e ao mesmo tempo não sou ninguém...
Não entenderam, né?
Eu sou aquela que pode ser qualquer um. Fulano ou
Fulana não é nenhum nome de gente, nem de bicho... fulano é
alguém que queremos dizer que é uma pessoa, mas que a gente
não dá a mínima para quem ele seja.
Geralmente a gente chama assim a quem desprezamos...
“Sabe aquela fulaninha lá?” “Olha lá, só quer ser a fulana
de tal” “Não me compare com suas fulanas”.
(Riso irônico)
Pois é... eu sou fulana...
Parece que eu tenho vocação para isso. Porque quando
menos percebi, meu nome já estava na boca do povo, todos
sabiam, mas ao mesmo tempo ninguém ousava dizê-lo em voz
alta.
Juro, não foi porque eu quis... eu não escolhi isso.
Deve ter sido o destino... o destino me tirou o nome, e me
deu esse aqui. O Destino fez com que o que as pessoas
dissessem sobre mim fosse mais importante do que eu tinha a
dizer. Chegou uma hora em que tentar lembrar quem eu era
soava quase como crime!
“Ah, agora você quer falar...”
“Ah agora você quer desdizer”
“São consequências, meu bem!”
(Silêncio)
Parece que tem horas que a vida te desenha e te pinta
e te adorna de uma maneira que, mesmo que você tente muito
encarar ela de frente, não dá! Você é aquilo!
Você perde tudo! Você ganha coisas que não queria!
Você ouve coisas que não queria... você experimente
coisas que nunca optaria se não fosse pela vontade de
fugir... de se jogar... de sumir... da mandar todos tomar
naquele canto! Tem hora que você quer explodir...
Tem hora que você quer gritar...
Tem hora que você quer calar...
Tem hora que você quer chorar, urrar, espernear...
mas sem ser ouvida, porque isso é Fulana fazendo
draminha...
(Catarse)
Mas eles dizem: Não ligue pra eles...
Dizem: É só uma fase.
Está tudo bem...
Você é amada...
Eles é que são os coitados...
(Ri chorando)
Coitados deles, meu Deus... ô, meninas coitadas que
cospem em mim...
Coitadas das garotas que me xingam, me humilham todos
os dias...
Meu Deus... pobres criaturinhas que colam chiclete no
meu cabelo, que tiram fotos e divulgam pra me chamar de
“fulana”.
Eu que sou a sortuda... sou a estrela da noite...
(Silêncio)
Ou vocês não acham?
(Silêncio)
Hoje, sou eu que estou no palco...
Hoje é minha voz a que se escuta...
Não a delas...
Hoje eu poderia contar minha versão...
Poderia desfazer tudo o que dizem, readquirir meu nome
de volta. Tudo!
(Silêncio)
Mas não vou fazer isso e sabe por
quê?
Porque Fulana mente, Fulana exagera... Fulana dá
motivo.
Talvez amanhã minha foto esteja na internet mesmo...
mas não será eu... será uma personagem, aquela lá que
inventaram. Mas como é que todos acreditam, será essa que
dirão que sou eu...
(Silêncio longo. Começa a andar pelo espaço. Está
quase explodindo, mas ela está tentando manter a calma.
Manter por muito tempo dói)
Talvez eu devesse morrer...
Oh, minha jovem... não diga bobagens.
Velhos!
São coisas da idade...
Velhos!
É só uma crise de identidade...
Velhos!
Eu também fui jovem, querida!
CALEM-SE! CALEM-SE TODOS! FECHEM ESSA MATRACA IMUNDA!
CALEM-SE DE UMA VEZ...
Eu não quero saber quem são vocês, até porque vocês
nunca quiseram saber quem eu sou...
Aquelas reuniões na sala pedagógica? Aquele
acompanhamento social? Ah, vão se... vão para o inferno!
(Silêncio)
Mas nós só queremos ajudar...
(Silêncio)
E por que só agora?
(Silêncio)
...
Veem?
Veem?
Veem?
(Riso crescente até beirar o descontrole)
Eles só querem ajudar...
(Longa risada desesperada e depois um longo silêncio)
Talvez minha ajuda seja um sono profundo...
Um sono bem profundo...
(Toma um copo com água)
Ou talvez uma navalha, uma corda, ou um sanatório...
Talvez só continuar existindo... mas me anulando...
Ou não...
(Silêncio longo. Encara a plateia. O olhar está
sereno, mas vazio)
De qualquer jeito, hoje tudo será diferente. De uma
forma, ou de outra...
Como não sei de que forma será...
Talvez eu deva ativar o despertador...
(Sai. Luzes permanecem acesas por um tempo. Diminuem
gradativamente até se apagarem. Depois aumentam de novo.
Soa o despertador)
Fim da cena 5
Entre cenas
Saudades! Sim.. talvez.. e por que não?...
Se o sonho foi tão alto e forte
Que pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!
Esquecer! Para quê?... Ah, como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão.
Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar
Mais decididamente me lembrar de ti!
E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais saudade andasse presa a mim!5
Cena 6 - O assalto
Onde ficou teu outro corpo? Nas paredes? Nos móveis?
No teto?
CECÍLIA MEIRELES
Dois assaltantes entram no recinto. Devem ser por
volta de umas 20hs. Vasculham o local em busca de algo. Os
movimentos são medidos e silenciosos, porém denotam pressa
e apreensão.
A1: Então, ela saiu?
A2: Sim, eu já verifiquei.
A1: Fechaste bem a porta?
A2: Sim.
A1: Quanto tempo teremos?
A2: Umas duas horas mais ou menos.
A1: Temos que ser ágeis. Conheces o local?
A2: Para de fazer perguntas, animal!
5 Florbela Espanca - Saudades
A1: Estou só verificando a nossa segurança, se formos
pegos é cana!
A2: Pra ti é somente mais uma vez! Eu seria passageiro
de primeira viagem...
A1: Serias presa nova para os lobos...
A2: Isso não está nos meus planos!
A1: Não te iludas, há muitas maneiras de dobrar a
vontade de um homem.
(Silêncio. Vasculham a casa, os móveis, os objetos
domésticos etc)
A1: Como soubeste?
A2: Soube o que?
A1: A respeito desse tesouro dessa velha?
A2: Na igreja...
A1: És católico ainda?
A2: Há muitas maneiras de dobrar a vontade de um
homem... há também outras formas de esperança de que não
sejamos dobrados...
A1: Sei...
A2: Bem, eu a ouvi no confessionário...estava do outro
lado da parede.
A1: Para católico não tens muitos pudores com os
sacramentos...
A2: Saber da sentença antes do juízo faz com que doa
menos... deixa eu continuar! Eu estava atrás da parede e a
ouvia falando. Entre um choro e outro, entre um silêncio e
outro... coisas de quem carrega um peso nos ombros.
(A cena desfoca e é remetida para outro plano onde
estão uma mulher e um sacerdote)
Penitente: Achas que sou idólatra, padre?
Padre: Tens algo em teu coração que ocupe o lugar de
Deus?
Penitente: Tenho um tesouro, padre... armazenado em
minha casa. Faz com que eu perca o sono, me impele a que eu
olhe para ele. Me dói, me castiga e não posso me apartar
dele
Padre: E que tipo de tesouro é, minha filha?
Penitente: Do tipo que não pode ser dito a qualquer
um.
Padre: Entendo. Sabes o que diz o Evangelho, não é?
“Não acumuleis tesouros na terra onde a traça e a ferrugem
consomem”
Penitente: Quem me dera que a traça e a ferrugem o
consumissem... assim meu coração estaria limpo.
Padre: E como podes chamar tesouro algo que te
destrói?
Penitente: Não sei, padre... não sei... só sei que é
como um fogo... só sei que quando estou perto não quero ir
longe e quando estou longe o quero por perto. Como uma
paixão, unilateral, mas sem o afago nem nada. É o ter...
sabe?
Padre: Talvez isso seja mesmo idolatria... só Deus
pode nos libertar dos ídolos que erguemos em nossos
corações... porque são inimigos que odiamos amar...
Penitente: Talvez por isso os amemos mais...
Padre: É, talvez por isso os amemos mais...
(Volta para o plano original)
A1: Vejo que dás um bom bisbilhoteiro.
A2: Tu me perguntaste e eu te respondi, ora....
A1: E que será que é esse tesouro?
A2: Com certeza ouro... que outro tipo material
conheces que não enferruja nem é corroído?
A1: Talvez diamantes, esmeraldas... seja o que for é
de origem mineral. Dura mais do que a vida que temos para
gastar com eles...
A2: Mas se fosse isso, não seria mais fácil ela
leiloar esse tesouro e doá-lo a uma instituição de
caridade?
A1: Onde traças e ferrugens engravatas o consumiriam?
A2: Ou senão doaria esse tesouro a algum museu a
alguém que ela amasse... há muitas maneiras de se desfazer
de tesouros.
A1: E já te disse, há muitas maneiras de dobrar a
vontade de uma pessoa.
A2: Como o que, por exemplo?
A1: As lembranças... os sonhos, os pesadelos, as
promessas, o riso... o medo – esse é forte – e muitas
outras coisas que, apesar de não serem tocáveis se
manifestam nas coisas que tocamos. Talvez seja isso...
A2: É, talvez seja isso...
(Silêncio. A2 começa a cantarolar algo de si para si.
A1 encontra algo)
A1: Ei, encontrei alguma coisa!
A2: O que é isso?
A1: Espera, é um pouco pesado... me ajuda aqui.
(Ambos puxam uma caixa pesada. Importante a caixa
transmitir essa aura de vazio, abandono, saudade etc)
A2: O que será que temos aqui?
A1: Está trancado. É pesado. Estava escondido. Deve
ser o que queríamos.
A2: Tem um cadeado... consegues destrava-lo?
A1: E achas que não vim prevenido? Olha cá e verás...
A2: Espera, espera! Tem um bilhete dobrado na parte de
fora... o que será que está escrito?
A1: E eu sei lá o que está escrito! Não vamos perder
tempo!
A2: Quem sabe tenha alguma informação interessante...
A1: Então lê... vê lá o tempo, hem rapaz!
(A2 pega o bilhete e olha com atenção. Algo o toca,
mas não deixa transparecer isso ao companheiro)
A2: Quem escreveu tinha uma bela caligrafia...
A1: Anda lá, homem! Não percas tempo com bobagens!
A2: É um poema...
“Jaz aqui no peito solitário
Cinzas de um tempo perdido.
Lembranças empoeiradas
de algo que foi, e teria não sido...
Aqui jaz não em cova nem lápide,
Mas sim nesta casa, sem ti, fria...
Uma mistura de dor e de asco
Neste véu chamado nostalgia.
Aqui jaz tua memória, e o nada
Aqui jazem as sombras enevoadas
Que ainda assim gritam, gritam...
Só me resta guardar-te dentro
Esperando vazia esse momento
Enquanto as rosas morrendo se agitam.
Querida Ana...
Sabes que nunca fui boa de versos. Lembro bem que na
escola onde íamos nós duas, foste tu e não eu aquela que
sempre era a mais perfeita. Eras das meninas que sentavam
sempre nas carteiras da frente, que respondia todas as
perguntas, que tinha uma caligrafia de mestra...
a que era amada...”
....espera, isso aqui está borrado.... não se lê mais
nada....
“Por não poder voltar no tempo, quis te levar
adiante.”
A1: Ah, já chega... vamos ver o que há aqui!
A2: Quem será essa Ana?
A1: E o que me importa? Vou abrir esse baú logo, não
temos todo o tempo do mundo...
A2: E se esse baú contiver a alma de Ana?
A1: Joga água benta... não és católico?
A2: Tu sabes que não creio em assombrações...
A1: Pois então, por que falas em almas?
A2: Se esse baú contiver a saudade da perda?
A1: Serão sentimentos alheios, não nos tocam.
A2: Mas nós tocamos a eles...
A1: Pensa que não é contato, apenas esbarro.
A2: Não é esbarro quando sabes o nome e tens a
intenção de tocar.
A1: Peçamos permissão a Ana, então...
A2: Ana talvez esteja morta...
A1: Então voltamos ao começo...
A2: Ou talvez Ana resida na falta que deixou: nos
móveis, na casa, no teto...
A1: Então é só um baú, ela já tem tudo isso, de que
lhe fará falta umas joiazinhas?
A2: E se...
(A1 arromba o cadeado)
A1: E se?
(Silêncio. A2 começa a olhar os móveis da casa. A
tocá-los como se fosse a sua própria casa enquanto A1
revira a caixa procurando algo de valor. Silêncio longo)
A1: Aqui não há nada de valor! Nada! Nada! Só panos,
de seda, mas panos! Alguns colares! Algumas fotografias!
Cadernos, livros, cartas e... uma arma? Hum, vejamos... e
está carregada... ora, ora... algo de serventia em meio a
essas bugigangas. Ops! Ei! Ei, rapaz! Acorda!
A2: Toda essa casa fede a mofo...
A1: Sim, sim... é uma casa triste e tudo mais... mas
creio que o único de precioso que encontrei além de uns
colarzinhos foi essa arma aqui.
A2: Posso ver?
A1: Sim... tendo cuidado...
A2: É pesada...
A1: É de aço, imbecil! EI, aponta isso pra lá... isso
não é brinquedo não...
A2: Podes pegar de volta... deixa-me ver o que achaste
aí...
A1: Podes ver, não verás mais nada além de trapos
velhos e coisas que poetas adorariam achar.
(A1 olha as coisas)
A2: Tudo isso aqui fede a coisa guardada, a coisa
perdida.
A1: Que querias? São trapos!
A2: Não sei porque algo nisso me dói... que tesouro
será esse? São só esses papeis que a mulher teme idolatrar?
A1: Há muitas maneiras de dobrar a vontade de um
homem... vamos!
A2: Achei um diário... a última anotação foi há 20
anos!
A1: Amigo, vamos logo! Já te disse não há nada de
valor...
A2: Vou levar esse diário...
A1: E olha quem falava em respeitar os sentimentos dos
outros.
A2: Há muitas maneiras de dobrar a vontade de um
homem.
(A porta se abre de repente. Entra a Penitente e o
Padre. As luzes se acendem. Ambos os grupos se olham
estupefatos. A1 aponta a arma; A2 abraça o diário, o padre
se benze)
A1: Parados todos, senão eu atiro! (pausa longa)
Penitente: Então acharam meu tesouro?
A1: Não achamos tesouro nenhum, só trapos velhos...
Penitente: Então vocês o viram? Viram o que estava
dentro? Viram como ele é belo?
A1: Vimos... vimos! Vimos o buraco que vou deixar no
meio de tua testa se não te calares!
(Padre reza)
Penitente (para A2): Tu viste, não foi? Viste como é
belo e valioso o meu tesouro? (Silêncio)
A2 (constrangido): Não sei se vi, ou se toquei... mas
dói... dói muito... tudo nessa casa parece feder...
feder... feder... (sussurros)
Penitente: Não, não te lamentes! (Anda até os ladrões)
Padre: Cuidado, filha... é perigoso!
A1: Isso mesmo, parada aí!
Penitente: Vocês não viram meu tesouro? Estão certos
disso?
A1: Não vimos nada, dona!
A2: Fede... tudo fede...
Penitente: Há demônio nesse tesouro, padre? (Anda de
novo até os ladrões. Padre Reza)
A1: Já falei que era pra ficar quieta! (Penitente
continua andando) Quieta! Parada, senão atiro! (O cano da
arma encosta na testa da mulher) Eu atiro! Eu atiro! Sua
Doida! Doida!
(A arma cai. A1 começa a chorar)
A1: Era pra ser só um furto! Éramos pra conseguir a
sorte grande! Merda! Merda! Merda! Ter de voltar àquele
inferno... Tudo por causa desse maldito, isso mesmo,
maldito tesouro que até agora não sei o que é! Maldição!
(A2 pega a arma)
A2 (calmo apontando a arma): Parados! (Para penitente)
Esta casa fede, senhora! Este diário fede... tudo fede!
Sabe, senhora? Eu não sei o teu nome, mas isso não
importa... tocamos teu tesouro, agora ele é nosso... nunca
acreditei em assombrações ou coisas do tipo... mas tudo
fede... até o medo de feder, fede... e o que fazer?
A1: Atirarás?
A2: Há várias maneiras de dobrar a vontade de um
homem... Reza por nós, padre... sou católico ainda...
(Penitente se ajoelha)
Penitente: Seja feita a vontade de Deus...
A1: Já vivi o bastante pra saber que Deus não é muito
de revelar seus desejos..
Padre: Não acumuleis tesouros na terra...
A2: Não foi tu mesmo quem disseste que os tesouros que
nos matam são o que mais amamos? Agora, pois, benze esta
cena... e tudo se irá... (Silêncio) Vamos benze!
Padre: Não posso!
A1: Claro que não pode! Quem benzeria um crime?
A2: Talvez benzesse uma paixão, um enterro... a dor
sacraliza as coisas...
Padre: Não posso...
(Silêncio)
A2: Então apresente a nossa alma;
(As luzes diminuem com A2 apontando a arma até
escurecer. Ouvem-se dois disparos juntos e um terceiro após
um tempo. Padre sai se benzendo)
Fim de cena 7
Epílogo
(As luzes se acendem e aparecem de pé olhando pra o
público os personagens MÃE, MULHER da cena 2, SOLDADO,
CIGANA, FILHA e PENITENTE)
MÃE:
Há, entre o gritar e o calar
uma linha fina e tênue.
MULHER:
Há um limite entre explodir,
e conter-se se contorcendo.
SOLDADO:
Ou lançar fora de si a dor
em grandes doses de medo.
CIGANA:
Calar não como gesto de paz,
mas como gesto de ira.
FILHA:
Destilar em grandes porções
o veneno que nos contagia.
MÃE:
Como se no gesto de conter
em explosão intestina
SOLDADO:
Poupássemos o mundo do caos
que a tudo e todos aniquila.
FILHA
Ou lançar no ar os destroços
que cá dentro se acumulam
CIGANA
Gritar porque só resta isso
num mundo de surdos
SOLDADO
Gritar porque não se paga
a dor com mais consumo
MÃE
Gritar porque os desafetos
em afetos se camuflam.
PENITENTE
Gritar porque contemos
Essa perda e essa procura.
TODOS
Sim gritar!
Ou será melhor calar?
Quem grita e quem cala?
Quem se costura
e quem se rasga?
MULHER:
Há no explodir, entretanto,
certa dose de trégua.
CIGANA:
Com ela findamos mais rápido
a fraqueza que nos entrega.
FILHA:
Aniquilando de vez a dor
em um ato de guerra.
MÃE
para só restar a paz
no mundo que desfalece.
FILHA:
No fim, o único que nos fica,
depois de passada a explosão
CIGANA:
O único que nos resta
depois do sim e do não (sai)
SOLDADO:
O lugar que nos acolhe
findada a destruição (sai)
MÃE:
É esse lugar fica
quando não sobra opção (sai)
PENITENTE
O lugar que nos acolhe
Quando todos se vão... (sai)
(FILHA permanece um tempo olhando para plateia)
FILHA:
O lugar que fica
é o da solidão. (apagam as luzes e sai)
Fim
Sobre o Autor
Bem, como já está escrito aí encima, meu nome é Tiago.
Sou pernambucano com muito orgulho, nascido em Afogados da
ingazeira, lá no Sertão. Aos 4 anos me mudei com minha mãe
para a Argentina, onde aprendi o espanhol e tive meu
primeiro contato com a literatura. Lembro que o primeiro
poema que decorei foi o começo do Martín Fierro, do José
Hernandez e que o primeiro romance, ainda que condensado,
que me encantou foi o Dom Quixote. De lá o gosto pela
leitura só foi aumentando. Em 2001 eu voltei ao Brasil e
continuei lendo de tudo, principalmente poesia. Minha
inserção na literatura, porém, começou aos 14 anos, quando
uma amiga minha cordelista me ensinou a escrever poesia
depois de eu ler O Profeta de Khalil Gibran. De lá pra cá
tenho sido principalmente poeta (pelo menos eu tento). O
teatro surgiu há uns quatro anos, como um hobby, que depois
se tornou uma paixão e foi nessas experimentações que
surgiram cenas que fui escrevendo e mostrando aos meus
professores e amigos. Os que gritam e os que calam surgiu
nesse contexto de aulas nas Oficinas culturais de Suzano em
exercícios de subtexto. O objetivo era treinar basicamente
as coisas que a gente não diz com as palavras, mas com os
gestos. É, portanto, mais um exercício cênico. Eu sou grato
aos meus professores terem montado esse texto, porque
permitiu que eu escrevesse outros e a dramaturgia tem sido
meio que “uma poesia para o corpo e para a voz”.
Pra concluir, não me considero tanto um escritor, mas
um professor de História que flerta com a Literatura. Amo
de paixão dar aula, e meu sonho é um dia dar aula em uma
universidade. Sou casado com Deyse Cristina, a qual sempre
me estimula, apesar de não ler muito meus textos. Risos.
Espero que gostem.