Os Salmos Interpretados Pelos Papas João Paulo II e Bento XVI (1)

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    Os Salmosinterpretados

    pelos papasJoo Paulo II&

    ento XVISRGIO GLEISTON NI OLETE

    (seleo e organizao)

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    Contedo1. Os Salmos na Tradio da Igreja .................................................................... 62. A Liturgia das Horas, orao da Igreja .......................................................... 83. O povo de Deus que reza: os Salmos ............................................................. 104. Salmo 5: A orao da manh para obter a ajuda do Senhor ........................... 175. Salmo 8 ....................................................................................................... 196. Salmo 8: A grandeza do Senhor e a dignidade do homem............................... 217. Salmo 10: O justo tem confiana no Senhor .................................................. 238. Salmo 14: Quem digno de estar diante do Senhor? ...................................... 249. Salmo 15: O Senhor a minha herana ......................................................... 2610.Salmo 19: Salmo pela vitria do Rei-Messias ............................................... 2811.Salmo 20: Aco de graas pela vitria do Rei .............................................. 2912.Salmo 22: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" ....................... 3113.Salmo 23: O Senhor entra no seu templo ...................................................... 3514.Salmo 23 ..................................................................................................... 3715.Salmo 26: Confiana em Deus face aos perigos ............................................. 4116.Salmo 26: Orao do inocente perseguido ..................................................... 4217.Salmo 28: O Senhor proclama solenemente a sua palavra .............................. 4418.Salmo 29: Aco de graas pela libertao da morte ...................................... 4619.Salmo 31: Aco de graas pelo perdo dos pecados ...................................... 4820.Salmo 32: Hino providncia de Deus ......................................................... 5021.Salmo 35: Malcia do pecador, bondade do Senhor ....................................... 5222.Salmo 40: Splica de um doente ................................................................... 5323.Salmo 44: A Rainha e a Esposa ................................................................... 5524.Salmo 45: Deus, refgio e fora do seu povo ................................................. 5725.Salmo 45: As npcias do Rei ........................................................................ 5926.Salmo 46: O Senhor o rei do universo ......................................................... 6127.Salmo 47: Aco de graas pela salvao do povo ......................................... 6228.Salmo 48: Vaidade das riquezas .................................................................. 6429.Salmo 48: A riqueza humana no salva ....................................................... 6630.Salmo 50: Senhor, tende piedade de mim ...................................................... 6831.Salmo 50: Tende piedade de mim, Senhor ..................................................... 7032.Salmo 56: A prece matutina no sofrimento ................................................... 7233.Salmo 61: S Deus a nossa paz ................................................................. 73

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    34.Salmo 62: A alma sedenta do Senhor ............................................................ 7535.Salmo 66: Todos os povos te louvem, Senhor ................................................ 7736.Salmo 72: O poder real do Messias ............................................................... 7937.Salmo 72: Reino de paz e de bno ............................................................. 8038.Salmo 91: Louvor ao Senhor Criador ............................................................ 8239.Salmo 100: A alegria dos que entram no templo ............................................ 8440.Salmo 109: O Messias, rei e sacerdote .......................................................... 8541.Salmo 109: O Messias, rei e sacerdote .......................................................... 8742.Salmo 110: So grandes as obras do Senhor .................................................. 8943.Salmo 111: Bem-aventurana do homem justo .............................................. 9044.Salmo 112: Louvai o nome do Senhor ........................................................... 9245.Salmo 113: Maravilhas do xodo do Egipto ................................................. 9446.Salmo 113B: Louvor ao verdadeiro Deus ..................................................... 9647.Salmo 115: Aco de graas no Templo ........................................................ 9848.O Salmo 116: Convite a louvar a Deus pelo seu amor ................................. 10049.Salmo 116: Aco de graas ....................................................................... 10250.Salmo 117: Cntico de alegria e de vitria .................................................. 10451.Salmo 118: A promessa de cumprir os mandamentos de Deus ...................... 10652.Salmo 119 (118) ........................................................................................ 10753.Salmo 118: Promessa de observar a lei de Deus .......................................... 11154.Salmo 120: O guarda de Israel ................................................................... 11355.Salmo 121: Saudao Cidade santa de Jerusalm ..................................... 11556.Salmo 122: A confiana do povo est no Senhor ......................................... 11757.Salmo 123: O nosso auxlio est no nome do Senhor ................................... 11858.Salmo 124: O Senhor protege o seu povo .................................................... 12059.Salmo 125: Deus a nossa alegria e a nossa esperana ............................... 12260.Salmo 126: Toda a fadiga v sem o Senhor .............................................. 12461.Salmo 129: Das profundezas clamo a ti ..................................................... 12562.Salmo 130: Confiar em Deus como a criana na me ................................... 12763.Salmo 131, 1-10: As promessas divinas feitas a David ............................... 12964.Salmo 131, 11-18: Eleio de David e de Sio ............................................ 13065.Salmo 134, 1-12: Louvai o Senhor que faz maravilhas ............................... 13266.Salmo 134, 13-21: S Deus grande e eterno ............................................. 13367.Salmo 135, 1-9: Hino pascal ...................................................................... 135

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    68.Salmo 135, 10-26: Aco de graas pela salvao realizada por Deus ......... 13769.Salmo 136: Junto dos rios da Babilnia ..................................................... 13970.Salmo 137: Aco de graas ....................................................................... 14171.Salmo 138, 1-12: Deus tudo v .................................................................. 14272.Salmo 138, 18. 23-24: Sonda-me, Deus e conhece o meu corao ............. 14473.Salmo 140: A orao em tempo de perigo .................................................... 14574.Salmo 141: "Vs sois o meu refgio"............................................................ 14775.Salmo 142: A orao na tribulao ............................................................ 14976.Salmo 143, 1-8: Orao do Rei pela vitria e pela paz ................................ 15177.Salmo 143, 9-15: Orao do Rei ................................................................. 15378.Salmo 144, 1-13: Louvor Majestade divina ............................................. 15479.Salmo 144, 14-21: O teu reino um reino eterno ......................................... 15680.Salmo 145: Feliz quem espera no Senhor .................................................... 15781.Salmo 146: A Jerusalm reconstruda ......................................................... 15982.Salmo 146: O poder e a bondade do Senhor ................................................ 16183.Salmo 149: Festa dos amigos de Deus ....................................................... 163

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    JOO PAULO II

    AUDINCIA

    Quarta-feira 28 de maro de 2001

    Os Salmos na Tradio da Igreja

    Queridos irmos e irms,

    1. Na Carta ApostlicaNovo millennio ineunte manifestei o desejo de que aIgreja se distinga cada vez mais na "arte da orao", aprendendo-a sempre de novo doslbios do Mestre divino (cf. n. 32). Este empenho deve ser vivido sobretudo na Liturgia,fonte e auge da vida eclesial. Nesta linha importante prestar uma maior ateno

    pastoral promoo daLiturgia das Horas como orao de todo o povo de Deus

    (cf. ibid., 34). De facto, se os sacerdotes e os religiosos tm um precioso mandamentopara a celebrar, ela contudo proposta ardentemente tambm aos leigos.

    Propunha esta finalidade, h cerca de trinta anos, o meu venerado predecessorPaulo VI, com a constituioLaudis canticum na qual delineava o modelo vigente

    desta orao, desejando que os Salmos e os Cnticos, estrutura bsica da Liturgia dasHoras, fossem compreendidos "com renovado amor pelo Povo de Deus" (AAS 63[1971], 532).

    encorajador o facto de muitos leigos, quer nas parquias quer nos agregadoseclesiais, terem aprendido a valoriz-la. Contudo, ela permanece uma orao que requeruma adequada formao catequtica e bblica, para a poder apreciar profundamente.

    Com esta finalidade, iniciamos hoje uma srie de catequeses sobre os Salmos esobre os Cnticos propostos na orao matutina das Laudes. Desta forma, desejoencorajar e ajudar todos a rezar com as mesmas palavras usadas por Jesus e que seencontram h milnios na orao de Israel e da Igreja.

    2. Podemos introduzir-nos na compreenso dos Salmos atravs de vrioscaminhos. O primeiro consistiria em apresentar a sua estrutura literria, os seus autores,a sua formao, os contextos em que surgiram. Depois, seria sugestiva uma leitura que

    realasse o seu carcter potico, que por vezes alcana nveis altssimos de intuiolrica e de expresso simblica. No menos interessante seria percorrer novamente osSalmos considerando os vrios sentimentos do nimo humano que eles manifestam:alegria, reconhecimento, aco de graas, amor, ternura, entusiasmo, mas tambmsofrimento intenso, recriminao, pedido de ajuda e de justia, que por vezes acabamem clera e imprecaes. Nos Salmos, o ser humano encontra-se a si prpriocompletamente.

    A nossa leitura ter sobretudo por finalidade evidenciar o significado religiosodos Salmos, mostrando como eles, mesmo tendo sido escritos h tantos sculos porcrentes hebreus, podem ser includos na orao dos discpulos de Cristo. Por isso,

    deixar-nos-emos ajudar pelos resultados da exegese, mas pr-nos-emos juntos na escolada Tradio, sobretudo escutando os Padres da Igreja.

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    3. Com efeito, com profunda penetrao espiritual, eles souberam discernir eindicar a grande "chave" de leitura dos Salmos no prprio Cristo, na plenitude do seumistrio. Os Padres estavam convencidos disto: nos Salmos fala-se de Cristo. De facto,Jesus ressuscitado aplicou a si prprio os Salmos quando disse aos discpulos: "eranecessrio que se cumprisse tudo quanto a Meu respeito est escrito em Moiss, nos

    Profetas e nos Salmos" (Lc 24, 44). Os Padres acrescentam que nos Salmos se fala aCristo ou at que Cristo quem fala. Dizendo isto, eles no pensavam apenas na pessoaindividual de Jesus, mas no Christus totus, no Cristo total, formado por Cristo chefe e

    pelos seus membros.

    Surge assim, para o cristo, a possibilidade de ler o Saltrio luz de todo omistrio de Cristo. Precisamente esta ptica faz emergir tambm a sua dimensoeclesial, que realada de maneira particular pelo cntico coral dos Salmos.Compreende-se desta forma como os Salmos tenham sido assumidos, desde os

    primeiros sculos, como orao pelo Povo de Deus. Se, em alguns perodos histricos,se verificou uma tendncia para preferir outras oraes, foi grande mrito dos monges

    manter alta na Igreja a chama do Saltrio. Um deles, S. Romualdo de Camaldoli, noincio do segundo milnio cristo, chegou a defender que como afirma o seu bigrafoBruno de Querfurt so os Salmos o nico caminho para experimentar uma oraoverdadeiramente profunda: "Una via in psalmis" (Passio sanctorum Benedicti et

    Johannes ac sociorum eorundem: MPH VI, 1983, 427).

    4. Com esta afirmao, primeira vista exagerada, na realidade ele ancorava-sena melhor tradio dos primeiros sculos cristos, quando o Saltrio se tinha tornado olivro por excelncia da orao eclesial. Esta foi a opo vencedora em relao stendncias herticas que continuamente atacavam a unidade de f e de comunho. Arespeito disto, interessante a maravilhosa leitura que Santo Atansio escreveu aMarcelino na primeira metade do sculo IV quando a heresia ariana alastrava atentandocontra a f na divindade de Cristo. Perante os hereges que atraam a si o povo tambmcom cnticos e oraes que eram agradveis aos seus sentimentos religiosos, o grandePadre da Igreja dedicou-se com todas as suas energias a ensinar o Saltrio transmitido

    pela Escritura (cf.PG 27, 12 ss.) Foi assim que ao "Pai Nosso", a orao do Senhor porantonomsia, se acrescentou a praxe, que depressa se tornou universal entre os

    baptizados, da orao dos Salmos.

    5. Graas tambm orao comunitria dos Salmos, a conscincia cristrecordou e compreendeu que impossvel dirigir-se ao Pai que habita nos cus sem uma

    autntica comunho de vida com os irmos e as irms que habitam na terra. Alm disso,inserindo-se vitalmente na tradio orante dos hebreus, os cristos aprenderam a rezarcantando asmagnalia Dei, isto , as grandes maravilhas realizadas por Deus quer nacriao do mundo e da humanidade, quer na histria de Israel e da Igreja. Esta forma deorao tirada das Escrituras, no exclui decerto expresses mais livres, e elascontinuaro no s a caracterizar a orao pessoal, mas tambm a enriquecer a prpriaorao litrgica, por exemplo com hinos e cnticos. O livro do Saltrio permanececontudo a fonte ideal da orao crist, e nele se continuar a inspirar a Igreja no novomilnio.

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    JOO PAULO II

    AUDINCIA

    Quarta-feira 4 de abril de 2001

    A Liturgia das Horas, orao da Igreja

    Carssimos Irmos e Irms:

    1. Antes de iniciar o comentrio de cada Salmo e Cnticos de Laudes,completemos hoje a reflexo introdutria que comemos na ltima catequese. Efazemo-lo a partir de um aspecto muito querido tradio espiritual: cantando osSalmos, o cristo experimenta uma espcie de sintonia entre o Esprito presente nasEscrituras e o Esprito que nele habita pela graa baptismal. Mais do que rezar com

    palavras prprias, ele faz-se eco dos "gemidos inefveis" de que fala So Paulo(cf.Rm 8,26), com os quais o Esprito do Senhor impele os cristos a unirem-se invocao caracterstica de Jesus: "Abb, Pai!" (Rm 8,15; Gal 4,6).

    Os antigos monges estavam de tal modo seguros desta verdade, que no sepreocupavam em cantar os Salmos na prpria lngua materna, bastando-lhes aconscincia de ser, de qualquer modo, "rgos" do Esprito Santo. Estavam convencidosde que a sua f permitiria aos versculos dos Salmos desencadear uma particular"energia" do Esprito Santo. A mesma convico se manifesta na caractersticautilizao dos Salmos, que foi chamada "orao jaculatria" da palavra latina "iaculum",isto , dardo para indicar brevssimas expresses salmdicas que podiam ser "lanadas", maneira de pontas de fogo, por exemplo, contra as tentaes. Joo Cassiano, umescritor que viveu entre o IV e o V sculos, recorda que alguns monges tinhamdescoberto a eficcia extraordinria do brevssimo incipit do Salmo 69: "dignai-vos, Deus, salvar-me; Senhor, apressai-Vos em socorrer-me", que desde ento se tornoucomo o prtico de entrada naLiturgia das Horas (cf. Conlationes, 10, 10; CPL 512, 298ss).

    2. Ao lado da presena do Esprito Santo, uma outra dimenso importante ada aco sacerdotal que Cristo desenvolve na orao em que associa a si a Igreja, suaesposa. A tal propsito, referindo-se propriamente Liturgia das horas, o Conclio

    Vaticano II ensina: "Jesus Cristo, Sumo Sacerdote da nova e eterna Aliana, [...] une asi toda a humanidade e associa-a a este cntico divino de louvor. Continua este mnussacerdotal por intermdio da sua Igreja, que louva o Senhor sem cessar e intercede pelasalvao de todo o mundo, no s com a celebrao da Eucaristia, mas de vrios outrosmodos, especialmente pela recitao do Ofcio divino" (Sacrosanctum Concilium, 83).

    ALiturgia das Horas tem, tambm, o carcter de orao pblica, na qual aIgreja est particularmente envolvida. esclarecedor, ento, descobrir como a Igrejadefiniu progressivamente este seu empenho especfico de orao dividida pelas vriasfases do dia. necessrio, por isso, recuar aos primeiros tempos da comunidadeapostlica, quando ainda estava em vigor uma estreita ligao entre a orao crist e a

    chamada "orao legal" assim prescrita pela Lei moisaica que se fazia em determinadashoras do dia no Templo de Jerusalm. Pelo livro dos Actos sabemos que os Apstolos

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    "como se tivessem uma s alma, frequentavam diariamente o Templo" (2, 46), etambm que "subiam ao templo para a orao da nona hora" (3,1). E, por outra parte,sabemos tambm que as "oraes legais" por excelncia eram precisamente as da manhe da tarde.

    3. Pouco a pouco, os discpulos de Jesus descobriram alguns Salmosparticularmente apropriados a determinados momentos do dia, da semana ou do ano,recolhendo neles um sentido profundo em relao ao mistrio cristo. umatestemunha competente deste processo So Cipriano, que assim escreve na primeirametade do sculo III: " necessrio, de facto, rezar desde o incio do dia para celebrarna orao da manh a ressurreio do Senhor. Isto corresponde ao que, uma vez, oEsprito Santo indicava nos Salmos com estas palavras: "atendei voz do meu clamor, meu Rei e meu Deus. A Vs que rezo; pela manh, Senhor, ouvis a minha voz, malnasce o dia exponho o meu pedido e aguardo ansiosamente" (Sal 5, 3-4). [...] Quando,depois, o sol se pe e chega o fim do dia, necessrio pr-se de novo em orao. Defacto, uma vez que Cristo o verdadeiro sol e o verdadeiro dia, no momento em que o

    sol e o dia do mundo chegam ao fim, pedindo atravs da orao que a luz volte para ns,pedimos que Cristo volte a trazer-nos a graa da luz eterna" (De oratione dominica,35:PL,39, 655).

    4. A tradio crist no se limitou a perpetuar a hebraica, mas renovou algumascoisas que acabaram por caracterizar de modo diverso toda a experincia de oraovivida pelos discpulos de Jesus. De facto, para alm de recitarem, de manh e pelatarde, oPai nosso, os cristos escolheram com liberdade os Salmos para celebrar comeles a sua orao de cada dia. Ao longo da histria, este processo sugeriu a utilizao dedeterminados Salmos, particularmente significativos para alguns momentos de f. Entreestes, tinha o primeiro lugar a orao de viglia, que preparava para o Dia do Senhor, oDomingo, em que se celebrava a Pscoa da Ressurreio.

    Uma caracterstica tipicamente crist foi, posteriormente, o acrescentar no fimde cada Salmo e Cntico, da doxologia trinitria, "Glria ao Pai e ao Filho e ao EspritoSanto". Assim, cada Salmo e Cntico aparecem iluminados pela plenitude de Deus.

    5. A orao crist nasce, alimenta-se e desenvolve-se volta do acontecimentoda f por excelncia, o Mistrio pascal de Cristo. Assim, de manh e tarde, ao nascer eao pr do sol, se recordava a Pscoa, a passagem do Senhor da morte vida. O smbolode Cristo "luz do mundo" aparece na lmpada durante a orao de Vsperas, tambm

    chamada por issolucernrio. As horas do dialembram, por sua vez, a narrao daPaixo do Senhor, e a hora trcia a descida do Esprito Santo no Pentecostes.A oraoda noite, por fim, tem um carcter escatolgico, evocando a vigilncia recomendada porJesus na esperana da sua volta (cf.Mc 13, 35-37).

    Cadenciando deste modo a sua orao, os cristos responderam aomandamento do Senhor de "orar incessantemente" (cf.Lc 18, 1; 21, 36;I Ts 5, 17);Ef 6,18), mas sem esquecer que toda a vida deve, de qualquer modo, tornar-se orao.Orgenes escreve a este propsito: "Reza sem cessar aquele que une a orao s obras eas obras orao" (Sobre a orao XII, 2;PG11, 452 C).

    Este horizonte, no seu conjunto, constitui o ambiente natural da recitao dosSalmos. Se eles so assim sentidos e vividos, a doxologia trinitria que coroa cada

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    Salmo torna-se, para cada um dos que acreditam em Cristo, um contnuo mergulhar,sobre as ondas do Esprito e em comunho com todo o povo de Deus, no oceano de vidae de paz em que est imerso com o Baptismo, ou seja, no mistrio do Pai, do Filho e doEsprito Santo.

    PAPA BENTO XVI

    AUDINCIA GERAL

    Praa de So PedroQuarta-feira, 22 de Junho de 2011

    O povo de Deus que reza: os Salmos

    Queridos irmos e irms

    Nas catequeses precedentes, reflectimos sobre algumas figuras doAntigo Testamento particularmente significativas para a nossa meditaosobre a orao. Falei a respeito de Abrao, que intercede pelas cidadesestrangeiras; acerca de Jacob, que na luta nocturna recebe a bno; deMoiss, que invoca o perdo para o seu povo; e sobre Elias, que reza pelaconverso de Israel. Com a catequese de hoje, gostaria de comear um novo

    trecho do percurso: em vez de comentar episdios particulares de personagensem orao, entraremos no livro de orao por excelncia, o livrodos Salmos.Nas prximas catequeses leremos e meditaremos sobre algunsdos Salmos mais bonitos e mais queridos tradio orante da Igreja. Hoje,gostaria de os introduzir, falando sobre o livro dos Salmosno seu conjunto.

    O Saltrio apresenta-se como um formulrio de oraes, umacolectnea de cento e cinquenta Salmos, que a tradio bblica oferece ao

    povo dos fiis para que se tornem a sua, a nossa orao, o nosso modo de nos

    dirigirmos a Deus e de nos relacionarmos com Ele. Neste livro, encontraexpresso toda a experincia humana, com os seus mltiplos aspectos, bemcomo toda a gama de sentimentos que acompanham a existncia do homem.

    Nos Salmos entrelaam-se e exprimem-se alegria e sofrimento, desejo deDeus e percepo da prpria indignidade, felicidade e sentido de abandono,confiana em Deus e solido dolorosa, plenitude de vida e medo de morrer.Toda a realidade do crente conflui nestas oraes, que primeiro o povo deIsrael e depois a Igreja assumiram como mediao privilegiada da relaocom o nico Deus e resposta adequada ao seu revelar-se na histria. Enquantooraes, os Salmos constituem manifestaes da alma e da f, em que todos se

    podem reconhecer e nos quais se comunica aquela experincia de particularproximidade de Deus, qual cada homem chamado. E toda a

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    complexidade do existir humano que se concentra na complexidade dasdiversas formas literrias dos vrios Salmos: hinos, lamentaes, splicasindividuais e comunitrias, cnticos de aco de graas, Salmos sapienciais eoutros gneros que se podem encontrar nestas composies poticas.

    No obstante esta multiplicidade expressiva, podem ser identificadosdois grandes mbitos que resumem a orao do Saltrio: a splica, ligada lamentao, e o louvor, duas dimenses ligadas entre si e quase inseparveis.Porque a splica animada pela certeza de que Deus responder, e de que istoabre ao louvor e aco de graas; e porque o louvor e a aco de graas

    brotam da experincia de uma salvao recebida, que supe uma necessidadede ajuda que a splica exprime.

    Na splica, o orante lamenta-se e descreve a sua situao de angstia,

    de perigo e de desolao, ou ento, como nos Salmos penitenciais, confessa aculpa, o pecado, pedindo para ser perdoado. Ele expe ao Senhor o seu estadode esprito na confiana de ser ouvido, e isto implica um reconhecimento deDeus como bom, desejoso do bem e amante da vida (cf. Sb11, 26), pronto aajudar, salvar e perdoar. Por exemplo, assim reza o Salmista, no Salmo31:Junto de vs, Senhor, refugio-me. Que eu no seja confundido para sempre[...] Vs livrar-me-eis das ciladas que me armaram, porque sois a minhadefesa (vv. 2.5). Por conseguinte, j na lamentao pode sobressair algo dolouvor, que se preanuncia na esperana da interveno divina e que emseguida se faz explcita, quando a salvao divina se torna realidade. De

    maneira anloga, nos Salmos de aco de graa e de louvor, fazendo memriado dom recebido contemplando a grandeza da misericrdia de Deus,reconhece-se tambm a prpria insignificncia e a necessidade de ser salvo,que se encontra na base da splica. Confessa-se assim a Deus a prpriacondio de criatura, inevitavelmente caracterizada pela morte, e no entanto

    portadora de um desejo radical de vida. Por isso o Salmista exclama,noSalmo86: Louvar-vos-ei de todo o corao, Senhor meu Deus, eglorificarei o vosso nome eternamente. Porque a vossa misericrdia foi grande

    para comigo, e tirastes a minha alma das profundezas da regio dos mortos

    (vv. 12-13). De tal modo, na orao dos Salmos, splica e louvor entrelaam-se e fundam-se num nico cntico que celebra a graa eterna do Senhor que sedebrua sobre a nossa fragilidade.

    Precisamente para permitir que o povo dos fiis se una a este cntico,o livro do Saltrio foi concedido a Israel e Igreja. Com efeito, os Salmosensinam a rezar. Neles, a Palavra de Deus transforma-se em palavra de orao

    e so as palavras do Salmista inspiradoque se torna tambm palavra doorante que recita os Salmos. Estas so a beleza e a particularidade deste livro

    bblico: as preces nele contidas, diversamente de outras oraes que

    encontramos na Sagrada Escritura, no esto inseridas numa trama narrativaque especifica o seu sentido e a sua funo. Os Salmos so dados ao fiel

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    precisamente como texto de orao, que tem como nica finalidade tornar-se aorao daqueles que os assumem e com eles se dirigem a Deus. Dado que souma Palavra de Deus, quem recita os Salmos fala a Deus com as palavras queo prprio Deus nos concedeu, dirige-se a Ele com as palavras que Ele mesmonos doa. Deste modo, recitando os Salmos aprendemos a rezar. Elesconstituem uma escola de orao.

    Algo de anlogo acontece quando a criana comea a falar, ou seja, aexpressar as prprias sensaes, emoes e necessidades, com palavras queno lhe pertencem de modo inato, mas que ele aprende dos seus pais e de quevive ao seu redor. Aquilo que a criana quer manifestar a sua prpriavivncia, mas o instrumento expressivo pertence a outros; e ele apropria-se domesmo gradualmente, as palavras recebidas dos pais tornam-se as suas

    palavras e atravs destas palavras aprende tambm um modo de pensar e de

    sentir, acede a um inteiro mundo de conceitos, e nele cresce, relaciona-se coma realidade, com os homens e com Deus. Finalmente, a lngua dos seus paistornou-se a sua lngua, ele fala com palavras recebidas de outros, que j setornaram as suas palavras. Assim acontece com a orao dos Salmos. Elesso-nos doados para que aprendamos a dirigir-nos a Deus, a comunicarmoscom Ele, a falar-lhe de ns com as suas palavras, a encontrar uma linguagem

    para o encontro com Deus. E, atravs de tais palavras, ser possvel tambmconhecer e aceitar os critrios do seu agir, aproximar-se ao mistrio dos seus

    pensamentos e dos seus caminhos (cf.Is55, 8-9), de maneira a crescer cadavez mais na f e no amor. Do mesmo modo como as nossas palavras no so

    apenas palavras, mas ensinam-nos um mundo real e conceitual, assim tambmestas preces nos ensinam o Corao de Deus, pelo que no s podemos falarcom Deus, mas podemos aprender quem Deus e, aprendendo a falar comEle, aprendemos como ser homens, como sermos ns mesmos.

    A este propsito, parece significativo o ttulo que a tradio judaicaconferiu ao Saltrio. Ele chama-se tehillm, um termo hebraico que quer dizerlouvores, tirada daquela raiz verbal que encontramos na expressoHalleluyah, isto , literalmente: Louvai o Senhor. Por conseguinte, este

    livro de oraes, no obstante seja to multiforme e complexo, com os seusdiversos gneros literrios e com a sua articulao entre louvor e splica, emltima anlise um livro de louvores, que ensina a dar graas, a celebrar agrandeza do dom de Deus, a reconhecer a beleza das suas obras e a glorificaro seu Nome santo. Esta a resposta mais adequada diante do manifestar-se doSenhor e da experincia da sua bondade. Ensinando-nos a rezar, os Salmosensinam-nos que tambm na desolao, inclusive na dor, a presena de Deus uma fonte de maravilha e de consolao; pode-se chorar, suplicar, interceder elamentar-se, mas com a conscincia de que estamos a caminhar rumo luz,onde o louvor poder ser definitivo. Como nos ensina o Salmo36: Em vs

    est a fonte da vida, e na vossa luz que vemos a luz! (Sl36, 10).

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    Mas alm deste ttulo geral do livro, a tradio judaica atribuiu amuitos Salmos alguns ttulos especficos, conferindo-os em grande maioria aorei David. Figura de notvel importncia humana e teolgica, David uma

    personagem complexa, que atravessou as mais diversificadas experinciasfundamentais do viver. Jovem pastor do rebanho paterno, passando pelasvicissitudes alternadas e por vezes dramticas, torna-se rei de Israel, pastor do

    povo de Deus. Homem de paz, combateu muitas guerras; incansvel e tenazinvestigador de Deus, traiu o seu Amor, e isto caracterstico: permaneceusempre investigador de Deus, no obstante tenha pecado muitas vezesgravemente; penitente humilde, recebeu o perdo divino, mas tambm a penadivina, e aceitou um destino marcado pela dor. Assim, David foi um rei, comtodas as suas debilidades, segundo o Corao de Deus (cf. 1 Sm 13, 14), ouseja, um orante apaixonado, um homem que sabia o que quer dizer suplicar elouvar. Por conseguinte, a ligao dos Salmos a este insigne rei de Israel

    importante, porque ele uma figura messinica, Ungido do Senhor, no qual de certa maneira ofuscado o mistrio de Cristo.

    Igualmente importantes e significativos so o modo e a frequnciacom que as palavras dos Salmos so retomadas pelo Novo Testamento,assumindo e sublinhando aquele valor proftico sugerido pela ligao doSaltrio figura messinica de David. No Senhor Jesus, que na sua vidaterrena recitou com os Salmos, eles encontram o seu cumprimento definitivo erevelam o seu sentido mais pleno e profundo. As oraes do Saltrio, com asquais se fala a Deus, falam-nos dele, falam-nos do Filho, imagem do Deus

    invisvel (cf. Cl1, 15), que nos revela completamente o Rosto do Pai. Portantoo cristo, recitando os Salmos, reza o Pai em Cristo e com Cristo, assumindoaqueles cnticos numa nova perspectiva, que tem no mistrio pascal a sualtima chave interpretativa. O horizonte do orante abre-se assim a realidadesinesperadas, e cada Salmo adquire uma nova luz em Jesus Cristo, e o Saltrio

    pode resplandecer em toda a sua riqueza infinita.

    Carssimos irmos e irms, tomemos portanto na nossa mo este livrosanto, deixemo-nos ensinar por Deus a dirigir-nos a Ele, faamos do Saltrio

    uma guia que nos ajude e nos acompanhe quotidianamente no caminho daorao. E perguntemos tambm ns, como os discpulos de Jesus: Senhor,ensinai-nos a rezar! (Lc11, 1), abrindo o corao para receber a orao doMestre, em que todas as preces ho-de chegar ao seu cumprimento. Destemodo, tornando-nos filhos no Filho, poderemos falar a Deus, chamando-lhePai Nosso. Obrigado!

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    PAPA BENTO XVI

    AUDINCIA GERAL

    Praa de So PedroQuarta-feira, 7 de Setembro de 2011

    Salmo 3: " Levanta-te, Senhor, Salva-me! "

    Estimados irmos e irms

    Retomemos hoje as audincias na praa de So Pedro e, na escola daorao que vivemos juntos nestas Catequeses de quarta-feira, gostaria decomear a meditar sobre alguns Salmos que, como eu dizia no passado ms deJunho, constituem o livro de orao por excelncia. O primeiro Salmo sobreo qual medito de lamentao e de splica, imbudo de profunda confiana,no qual a certeza da presena de Deus funda a prece que brota de umacondio de extrema dificuldade em que se encontra o orante. Trata-sedo Salmo 3, referido pela tradio judaica a David no momento em que fogedo filho Absalo (cf. v. 1): um dos episdios mais dramticos e duros navida do rei, quando o seu filho usurpa o seu trono rgio e o obriga a deixarJerusalm para salvar a prpria vida (cf. 2 Sm 15 ss.). Portanto, a situao de

    perigo e de angstia experimentada por David serve de base para esta prece eajuda a compreend-la, apresentando-se como a situao tpica em que tal

    Salmo pode ser recitado. No brado do Salmista, cada homem pode reconheceros sentimentos de dor, de amargura e tambm de confiana em Deus que,segundo a narrao bblica, tinham acompanhado a fuga de David da suacidade.

    O Salmo comea com uma invocao ao Senhor:

    Senhor, quo numerosos so os meus adversrios,quo numerosos os que se levantam contra mim!

    Muitos dizem a meu respeito:

    No h salvao para ele em Deus! (vv. 2-3).

    Portanto, a descrio que o orante faz da sua situao marcada portons fortemente dramticos. Repete-se trs vezes a ideia de multido numerosos, muitos, tantosque no texto original dita com a mesmaraiz hebraica, de modo a frisar ainda mais a enormidade do perigo, de formarepetitiva, quase martelante. Esta insistncia sobre o nmero e a grandeza dosinimigos serve para expressar a percepo, da parte do Salmista, dadesproporo absoluta existente entre ele e os seus perseguidores, umadesproporo que justifica e funda a urgncia do seu pedido de ajuda: osopressores so muitos, prevalecem, enquanto o orante est sozinho e inerme, merc dos seus agressores. E no entanto, a primeira palavra que o Salmista

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    pronuncia Senhor; o seu grito comea com a invocao a Deus. Umamultido incumbe e revolta-se contra ele, gerando um medo que amplia aameaa, fazendo-a parecer ainda maior e mais terrificante; mas o orante nose deixa vencer por esta viso de morte, mantm firme a relao com o Deusda vida e antes de tudo dirige-se a Ele, em busca de ajuda. Mas os inimigos

    procuram tambm romper este vnculo com Deus e debilitar a f da suavtima. Eles insinuam que o Senhor no pode intervir, afirmam que nemsequer Deus pode salv-lo. Portanto, a agresso no s fsica, mas dizrespeito dimenso espiritual: O Senhor no pode salv-lo dizemofulcro central da alma do Salmista deve ser agredido. a extrema tentao qual o crente submetido, a tentao de perder a f, a confiana na

    proximidade de Deus. O justo supera a ltima prova, permanece firme na f ena certeza da verdade e na plena confiana em Deus, e precisamente assimencontra a vida e a verdade. Parece-me que o Salmo nos toca muito

    pessoalmente: em muitos problemas somos tentados a pensar que talvez nemDeus me salve, no me me conhea, talvez no seja capaz; a tentao contra af a ltima agresso do inimigo, e a isto temos que resistir, pois s assimencontramos Deus e a vida.

    Portanto, o orante do nosso Salmo chamado a responder com a faos ataques dos mpios: os inimigos como eu disse negam que Deus

    possa ajud-lo, mas ele invoca-O, chama-O pelo nome, Senhor, e depoisdirige-se a Ele com um tu enftico, que exprime uma relao firme, slida,e encerra em si a certeza da resposta divina:

    Mas Vs, Senhor, sois o meu escudo,sois a minha glria! Sois Vs quem levantais o meu poder.Com a minha voz invoco o Senhore Ele responde-me da sua montanha santa (vv. 4-5).

    Agora, a viso dos inimigos desaparece, eles no venceram porquequem cr em Deus est convicto de que Deus o seu amigo: s permanece oTu de Deus, aos muitos ope-se agora um s, mas muito maior e mais

    poderoso que numerosos adversrios. O Senhor ajuda, defesa, salvao;como escudo protege quem se confia a Ele, e faz-lhe levantar a cabea, nogesto de triunfo e de vitria. O homem deixou de estar s, os inimigos no soinvencveis como pareciam, porque o Senhor ouve o clamor do oprimido eresponde do lugar da sua presena, do seu monte santo. O homem clama naangstia, no perigo e na dor; o homem pede ajuda e Deus responde. Nesteentrelaar-se de clamor humano e resposta divina consiste a dialctica daorao e a chave de leitura de toda a histria da salvao. O clamor exprime anecessidade de ajuda e apela-se fidelidade do outro; gritar quer dizer fazerum gesto de f na proximidade e na disponibilidade escuta de Deus. A

    orao expressa a certeza de uma presena divina j experimentada eacreditada, que na resposta salvfica de Deus se manifesta plenamente. Isto

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    relevante: que na nossa prece seja importante, presente, a certeza da presenade Deus. Assim o Salmista, que se sente cercado pela morte, confessa a sua fno Deus da vida que, como escudo, o circunda com uma protecoinvulnervel; quem pensava que j estava perdido pode erguer a cabea,

    porque o Senhor o salva; o orante, ameaado e desprezado, est na glria,porque Deus a sua glria.

    A resposta divina que ouve a prece oferece ao Salmista uma seguranatotal; terminou tambm o medo, e o clamor sossega na paz, numa profundatranquilidade interior:

    Deito-me, adormeo e acordo,o Senhor o meu sustentculo.

    No temo as grandes multides

    colocadas contra mim (vv. 6-7).O orante, mesmo no meio do perigo e da batalha, pode adormecer

    tranquilo, numa atitude inequvoca de abandono confiante. Ao seu redor osadversrios acampam-se, assediam-no, so muitos, levantam-se contra ele,desprezam-no e procuram derrub-lo, mas ele deita-se e dorme tranquilo esereno, certo da presena de Deus. E quando acorda, encontra Deus ainda aoseu lado, como guardio que no dorme (cf. Sl 121, 3-4), que o sustm, pega-lhe na mo e nunca o abandona. O medo da morte vencido pela presenadaquele que no morre. E precisamente a noite, povoada por temores

    ancestrais, a noite dolorosa da solido e da espera angustiante, agoratransforma-se: o que evoca a morte torna-se presena do Eterno.

    visibilidade do assalto inimigo, macio e imponente, ope-se apresena invisvel de Deus, com todo o seu poder invencvel. E a Ele que denovo o Salmista, depois das suas expresses de confiana, dirige a sua prece:Levantai-vos, Senhor! Salvai-me, meu Deus! (v. 8a). Os agressoresatacavam (cf. v. 2) a sua vtima, mas quem se elevar o Senhor, e f-lo- para os derrotar. Deus salv-lo-, respondendo ao seu grito. Por isso, oSalmo termina com a viso da libertao do perigo que mata e da tentao que

    pode fazer perecer. Depois do pedido dirigido ao Senhor, de se elevar parasalvar, o orante descreve a vitria divina: os inimigos que, com a sua opressoinjusta e cruel, so smbolo de tudo o que se ope a Deus e ao seu plano desalvao, so derrotados. Atingidos na boca, j no podero agredir com a suaviolncia destruidora, j no podero insinuar o mal da dvida na presena ena obra de Deus: o seu falar insensato e blasfemo definitivamentedesmentido e reduzido ao silncio pela interveno salvfica do Senhor (cf. v.8bc). Assim o Salmista pode concluir a sua prece com uma frase comconotaes litrgicas que celebra, na gratido e no louvor, o Deus da vida: O

    Senhor tem a vitria. Desa a vossa bno sobre o vosso povo (v. 9).

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    Caros irmos e irms, o Salmo 3 apresentou-nos uma splica cheia deconfiana e consolao. Recitando este Salmo, podemos fazer nossos ossentimentos do Salmista, figura do justo perseguido que encontra em Jesus oseu cumprimento. Na dor, no perigo, na amargura da incompreenso e daofensa, as palavras do Salmo abrem o nosso corao certeza confortadora daf. Deus est sempre perto mesmo nas dificuldades, nos problemas e noscontratempos da vidaouve, responde e salva sua maneira. Mas precisosaber reconhecer a sua presena e aceitar os seus modos, como David na suafuga humilhante do filho Absalo, como o justo perseguido doLivro daSabedoria e, ltima e definitivamente, como o Senhor Jesus no Glgota. Equando, aos olhos dos mpios, Deus parece no intervir e o Filho morre,

    precisamente ento que se manifesta, para todos os fiis, a verdadeira glria ea realizao definitiva da salvao. Que o Senhor nos conceda a f, nos ajudena nossa debilidade e nos torne capazes de crer e de rezar em todas as

    angstias, nas noites dolorosas da dvida e nos longos dias da dor,abandonando-nos com confiana a Ele, que o nosso escudo e a nossaglria. Obrigado!

    JOO PAULO II

    AUDINCIA

    Quarta-feira 30 de maio de 2001

    Salmo 5: A orao da manh para obter a ajuda do Senhor

    Carssimos Irmos e Irms:

    1. "Pela manh, Senhor, ouvis a minha voz, mal nasce o dia exponho o meupedido e aguardo ansiosamente". Com estas palavras, o Salmo 5 apresenta-se como umaorao da manh e por isso se situa bem na liturgia das Laudes, o cntico do fiel noincio do dia. A tonalidade de fundo desta splica est marcada tambm por tenso eansiedade pelos perigos e amarguras que podem acontecer inesperadamente. Mas nofalta a confiana em Deus, sempre pronto a amparar o seu fiel para que no tropece no

    caminho da vida.

    "Ningum, a no ser a Igreja, possui uma confiana assim" (So Jernimo,Tractatus LIX in psalmos, 5, 27: PL 26, 829). E Santo Agostinho, chamando a ateno

    para o ttulo que dado ao Salmo, ttulo que diz na sua verso latina: Para aquela querecebe a herana, explica: "Portanto, trata-se da Igreja que recebe em herana a vidaeterna por meio de nosso Senhor Jesus Cristo, de maneira que ela possui o prprioDeus, adere a Ele, e n'Ele encontra a sua felicidade, segundo o que est escrito: "Bem-aventurados os mansos, porque possuiro a terra" (Mt 5, 5) (Enarr. in Ps., 5: CCL 38,1, 2-3).

    2. Como acontece muitas vezes nos Salmos de "splica" dirigidos ao Senhorpara que nos liberte do mal, so trs as personagens que entram em cena neste Salmo.

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    Em primeiro lugar, aparece Deus (vv. 2 e 7), o Tupor excelncia do Salmo, ao qual sedirige confiante aquele que invoca. Perante os pesadelos de um dia cansativo e talvezrigoroso em relao injustia, alheio a qualquer compromisso com o mal: "Tu no sum Deus que se apraz com o mal" (v. 5).

    Um longo elenco de pessoas ms o malvado, o estulto, quem pratica o mal, omentiroso, o sanguinolento, o ignorante passa diante do olhar do Senhor. Ele o Deussanto e justo e pe-se ao lado de quem percorre os caminhos da verdade e do amor,opondo-se a quem escolhe "as veredas que conduzem ao reino das sombras" (cf. Pr 2,18). Ento, o fiel no se sente sozinho e abandonado quando enfrentar a cidade,

    penetrando na sociedade e no enredo das vicissitudes quotidianas.

    3. Nos versculos 8-9 da nossa orao matutina a segunda personagem, quemora, apresenta-se a si prprio com um Eu, revelando que toda a sua pessoa se dedica aDeus e sua "grande misericrdia". Ele tem a certeza de que as portas do templo, isto ,o lugar da comunho e da intimidade divina, fechadas para os incrdulos, se abrem

    diante dele. Entra por elas a fim de sentir a segurana da proteco divina, enquantofora o mal se alastra e celebra os seus aparentes e efmeros triunfos.

    Da orao matutina no templo o fiel recebe a fora interior para enfrentar ummundo com frequncia hostil. O prprio Senhor o levar pela mo e o guiar pelasestradas da cidade, ou melhor, "aplanar para ele o caminho", como diz o Salmista comuma imagem simples e sugestiva. No original hebraico esta serena confiana funda-seem duas palavras (hsed esedaqh): por um lado, "misericrdia ou fidelidade" e, poroutro, "justia ou salvao". So as palavras tpicas para celebrar a aliana que une oSenhor ao seu povo e a cada um dos fiis.

    4. Por fim, eis que se projecta no horizonte a obscura figura da terceirapersonagem deste drama quotidiano: so os inimigos, os malvados, que j seapontavam nos versculos precedentes. Depois do "Tu" de Deus e do "Eu" do orante,encontra-se agora um Eles que indica uma multido hostil, smbolo do mal do mundo(vv. 10-11). A sua fisionomia esboada com base num elemento fundamental nacomunicao social, a palavra. Quatro elementos boca, corao, garganta, lnguaexprimem a radicalidade da maldade inerente s suas escolhas. A sua boca est cheia defalsidade, o seu corao planeia constantemente traies, a sua garganta como umsepulcro aberto, preparada para desejar apenas a morte, a sua lngua sedutora, mas"carregada de veneno mortal" (Tg 3, 8).

    5. Depois deste severo e realstico retrato do perverso que atenta contra o justo,o Salmista invoca a condenao divina num versculo (v. 11), que a liturgia crist omite,querendo desta forma conformar-se com a revelao neo-testamentria do amormisericordioso, que oferece tambm ao malvado a possibilidade da converso.

    Neste ponto, a orao do Salmista tem um final cheio de luz e de paz (vv. 12-13), depois do obscuro perfil do pecador que acabamos de delinear. Uma vaga deserenidade e de alegria envolve quem fiel ao Senhor. O dia que agora se inicia para ocrente, apesar de ser marcado por canseiras e ansiedades, ter sempre sobre si o sol da

    bno divina. O Salmista, que conhece profundamente o corao e o estilo de Deus,

    no tem nenhuma dvida: "Pois Vs, Senhor, abenoais o justo; dum escudo de graaso circundais" (v. 13).

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    PAPA JOO PAULO II

    AUDINCIA

    Quarta-Feira 24 de setembro de 2003

    No comeo da Audincia Geral de 24 de Setembro, que teve lugar na SalaPaulo VI, o Cardeal Angelo Sodano, Secretrio de Estado, introduziu esta catequesecom as seguintes palavras:

    Venerados Irmos no Episcopado Irmos e Irms no Senhor,

    Devido a um mal-estar, o Santo Padre no pode estar presente nesta Audinciageral. Juntos rezaremos por ele, esperando que se restabelea o mais depressa possvel.

    Por seu lado, o Papa deseja fazer saber que nos segue atravs da televiso e, nofim deste encontro, entrar em ligao connosco para nos dirigir a sua palavra. Desde jlhe agradecemos. Leio agora, por seu encargo, o texto predisposto para este encontro,que comenta o Salmo8, e exalta a grandeza do Senhor e a dignidade do homem.

    Eis o texto da Mensagem do Papa:

    Salmo 8

    1. Meditando o Salmo 8, um admirvel hino de louvor, encaminhamo-nos paraa concluso do nosso longo itinerrio no mbito dos Salmos e dos Cnticos queconstituem a alma orante da Liturgia das Laudes. Durante estas catequeses, a nossareflexo deteve-se sobre 84 oraes bblicas, das quais procurmos realar sobretudo aintensidade espiritual, mesmo sem descurar a beleza potica.

    De facto, a Bblia convida-nos a abrir o caminho do nosso dia com um cnticoque no proclame apenas as maravilhas realizadas por Deus e a nossa resposta de f,mas que tambm as celebre "com arte" (cf. Sl 46, 8), isto , de maneira bonita,luminosa, suave e, ao mesmo tempo, forte.

    Maravilhoso entre todos o Salmo 8, no qual o homem, inserido num quadro

    nocturno, quando na imensido do cu comeam a brilhar a lua e as estrelas (cf. v. 4),sente-se como um gro de areia no infinito e no espao ilimitado que esto acima dele.

    2. Com efeito, no centro do Salmo 8 emerge uma dupla experincia. Por umlado, a pessoa humana sente-se quase esmagada pela grandeza da criao, "obra dosdedos" divinos. Esta curiosa expresso substitui a "obra das mos" de Deus (cf. v. 7),quase para indicar que o Criador traou um desenho ou um bordado com os astrosmaravilhosos, lanados na grandeza do cosmos.Mas por outro lado, Deus inclina-se sobre o homem e coroa-o como o seu vice-rei: "Deglria e de honra o coroastes" (v. 6). Melhor, a esta criatura to frgil confia todo ouniverso, para que o conhea e dele tire o sustento de vida (cf. vv. 7-9).

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    O horizonte da soberania do homem sobre as outras criaturas especificadocomo que a recordar a pgina de abertura do Gnesis: rebanhos, gado, animais docampo, aves do cu e peixes do mar so confiados ao homem para que, impondo-lhesum nome (cf. Gn 2, 19-20), descubra a sua profunda realidade, a respeite e a transformecom o trabalho e a destine para fonte de beleza e de vida. O Salmo torna-nos

    conscientes da nossa grandeza, mas tambm da nossa responsabilidade em relao criao (cf. Sb9, 3).

    3. Lendo de novo o Salmo 8, o autor da Carta aos Hebreusdescobriu nele umacompreenso mais profunda do desgnio de Deus em relao ao homem. A vocao dohomem no pode ser limitada ao actual mundo terreno; se o Salmista afirma que Deus

    ps tudo sob o domnio do homem, significa que deseja que ele submeta tambm "omundo futuro" (Hb2, 5), "um reino inabalvel" (12, 28). Numa palavra, a vocao dohomem uma "vocao celeste" (3, 1). Deus quer "conduzir glria" celeste "umamultido de filhos" (2, 10). Para que este projecto divino se realizasse, era necessrioque a vida fosse traada por um "pioneiro" (cf. ibid.), no qual a vocao do homem

    encontrasse o seu primeiro cumprimento perfeito. Este pioneiro Cristo.

    O autor da Carta aos Hebreus observou a respeito disto que as expresses doSalmo se aplicam a Cristo de maneira privilegiada, ou seja, mais pormenorizada do que

    para os outros homens. De facto, o Salmista usa o verbo "inferiorizar", dizendo a Deus:"fizeste-o por um pouco de tempo inferior aos anjos, coroaste-o de glria e de honra"(cf. Sl 8, 6;Hb 2, 6). Para os homens comuns, este verbo no apropriado; no foram"inferiorizados" em relao aos anjos, dado que nunca foram superiores a eles. Mas paraCristo, o verbo exacto, porque, sendo Filho de Deus, ele era superior aos anjos e foidiminudo quando se fez homem, sendo depois coroado de glria com a suaressurreio. Assim Cristo cumpriu plenamente a vocao do homem e cumpriu-a,explica o autor, "em benefcio de todos" (Hb 2, 9).

    4. A esta luz, Santo Agostinho comenta o Salmo e aplica-o a ns. Ele parte dafrase na qual se delineia a "coroao" do homem: "De glria e de honra o coroastes" (v.6). Contudo, naquela glria ele v o prmio que o Senhor nos d quando superarmos a

    prova da tentao.

    Eis as palavras do grande Padre da Igreja na sua Exposio do Evangelhosegundo Lucas: "O Senhor coroou o seu dilecto tambm de glria e de magnificncia.Aquele Deus que deseja distribuir as coroas, procura as tentaes: por isso, quando s

    tentado, s consciente de que te preparada a coroa. Se extingues os combates dosmrtires, extinguirs tambm as suas coroas; se extingues os seus suplcios, tambmextinguirs as suas bem-aventuranas" (IV, 41: SAEMO 12, pgs. 330-333).

    Deus prepara para ns aquela "coroa de justia" (2 Tm4, 8) que recompensara nossa fidelidade para com Ele, mantida tambm no tempo da tempestade, que abala onosso corao e a nossa mente. Mas ele est, em todos os tempos, atento sua criatura

    predilecta e desejaria que nela brilhasse sempre a "imagem" divina (cf. Gn 1, 26), paraque saiba ser, no mundo, sinal de harmonia, de luz e de paz.

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    JOO PAULO II

    AUDINCIA

    Quarta-feira 26 de junho de 2002

    Salmo 8: A grandeza do Senhor e a dignidade do homem

    Queridos irmos e irms,

    1. "O homem..., no centro deste empreendimento, revela-se umgigante. Revela-se divino, no em si, mas no seu princpio e no seu destino.Por conseguinte, seja honrado o homem, a sua dignidade, o seu esprito, a suavida". Com estas palavras, em Julho de 1969 Paulo VI confiava aos

    astronautas americanos que partiam para a lua o texto do Salmo 8, que agoraaqui se ouviu, para que entrasse nos espaos csmicos (Insegnamenti VII[1969], pgs. 493-494).

    De facto, este hino uma celebrao do homem, uma criatura que, sefor comparada com a grandeza do universo, insignificante, uma "cana"frgil, para usar uma imagem do grande filsofo BlaisePascal (Pensamentos, n. 264). Contudo, uma "cana pensante" que podecompreender a criao, porque senhor da criao, "coroado" pelo prprioDeus (cf. Sl 8, 6). Como acontece com frequncia nos hinos que exaltam oCriador, o Salmo 8 comea e acaba com uma solene antfona dirigida aoSenhor, cuja magnificncia est espalhada no universo: " Senhor, nossoDeus, como grande o vosso nome em toda a terra" (vv. 2.10).

    2. O verdadeiro e prprio contedo do cntico deixa imaginar umaatmosfera nocturna, com a lua e as estrelas que se acendem no cu. A primeiraestrofe do hino (cf. vv. 2-5) dominada por um confronto entre Deus, ohomem e o universo. Na cena sobressai antes de tudo o Senhor, cuja glria cantada pelos cus, mas tambm pelos lbios da humanidade. O louvor que

    surge espontneo nos lbios das crianas silencia e confunde as conversasarrogantes dos que negam Deus (cf. v. 3). Eles so definidos como"insensatos, corruptos e abominveis", porque se iludem que podem desafiar eopor-se ao Criador com a sua razo e aco (cf. Sl 13, 1).

    Logo a seguir, eis que se abre um sugestivo cenrio de uma noiteestrelada. Face a este horizonte infinito surge a eterna pergunta: "Que ohomem?" (Sl 8, 5). A primeira e imediata resposta fala de nulidade, quer emrelao grandeza dos cus, quer sobretudo a respeito da majestade doCriador. Com efeito, o cu, diz o Salmista, "teu", a lua e as estrelas "por ti

    foram fixadas" e so "obra dos teus dedos" (cf. v. 4). bonita esta ltimaexpresso, mais do que a mais comum "obra das tuas mos" (v. 7): Deus

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    Os Salmos interpretados pelos papas Joo Paulo II e Bento XVI

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    criou estas realidades colossais com a facilidade e o esmero de um bordado ouum trabalho de cinzel, com o toque leve de quem faz deslizar os seus dedos

    pelas cordas da arpa.

    3. Por conseguinte, a primeira reaco de assombro: como podeDeus "recordar-se" e "ocupar-se" desta criatura to frgil e delicada (cf. v. 5)?Mas eis a grande surpresa: ao homem, criatura frgil, Deus concedeu umadignidade maravilhosa: fez com que ele fosse pouco inferior aos anjosou, como tambm pode ser traduzido o original hebraico, pouco inferior a um

    Deus (cf. v. 6).

    Entramos, desta forma, na segunda estrofe do Salmo (cf. vv. 6-10). Ohomem visto como o lugar-tenente real do prprio Criador. De facto, Deus"coroou-o" como um vice-rei, destinando-o a um senhorio universal: "Tudo

    submetestes debaixo dos seus ps" e o adjectivo "tudo" ressoa enquantodesfilam as vrias criaturas (cf. vv. 7-9). Mas este domnio no conquistadopela capacidade do homem, realidade frgil e limitada, nem obtido com umavitria sobre Deus, como queria o mito grego de Prometeu. um domnio

    proporcionado por Deus: s mos frgeis e por vezes egostas do homem estconfiado todo o horizonte das criaturas, para que ele conserve a sua harmoniae beleza, o use mas no abuse, faa emergir os seus segredos e desenvolva assuas potencialidades.

    Como declara a Constituio pastoral Gaudium et spes do

    Conclio Vaticano II, "o homem foi criado "imagem de Deus", capaz dereconhecer e amar o seu Criador, que o constitui senhor de todas as criaturasterrenas, para as governar e usar, glorificando a Deus" (n. 12).

    4. Infelizmente, o governo do homem, afirmado no Salmo 8, pode sermal compreendido e deformado pelo homem egosta, que muitas vezes serevelou mais um tirano insensato do que um governador sbio e inteligente. OLivro da Sabedoria adverte-nos contra os desvios deste gnero, quandoesclarece que Deus formou "o homem... para dominar sobre as criaturas..., egovernar o mundo com santidade e justia" (9, 2-3). Mesmo num contextodiferente, tambm Job faz apelo ao nosso Salmo para recordar sobretudo adebilidade humana, que no mereceria tanta ateno por parte de Deus: "Que o homem, para que faas caso dele e ponhas nele a tua ateno, para queo visites todas as manhs e o proves a cada instante?" (7, 17-18). A histriadocumenta o mal que a liberdade humana semeia no mundo com asdevastaes ambientais e com as injustias sociais mais clamorosas.

    Ao contrrio dos seres humanos, que humilham os prpriossemelhantes e a criao, Cristo apresenta-se como o homem perfeito,

    "coroado de glria e de honra... em virtude de ter padecido a morte, a fim deque, pela graa de Deus, provasse a morte por todos" (Heb 2, 9). Ele reina

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    sobre o universo com aquele domnio de paz e de amor que prepara o novomundo, os novos cus e a nova terra (cf. 2 Pd3, 13), Alis, a sua autoridadereal como sugere o autor da Carta aos Hebreus aplicando-lhe o Salmo 8 exercida atravs da entrega suprema de si na morte "em benefcio de todos".

    Cristo no um soberano que se deixa servir, mas que serve e seconsagra ao prximo: "Porque o Filho do Homem tambm no veio para serservido, mas para servir e dar a vida em resgate de muitos" (Mc 10, 45). Destaforma, Ele recapitula em si "todas as coisas que h no Cu e na Terra" (Ef 1,10). Nesta luz cristolgica, o Salmo 8 revela toda a fora da sua mensagem eda sua esperana, convidando-nos a exercer a nossa soberania sobre a criao,no dominando-a, mas amando-a.

    PAPA JOO PAULO II

    AUDINCIA

    Quarta-Feira 28 de janeiro de 2004

    Salmo 10: O justo tem confiana no Senhor

    1. Continua a nossa reflexo sobre os textos dos Salmos, que constituemo elemento substancial da Liturgia das Vsperas. O que agora fizemos ressoar nosnossos coraes foi o Salmo 10, uma breve orao de confiana que, no original

    hebraico, est marcada pelo sagrado nome divino, 'Adonaj,o Senhor. Este nome ressoana abertura (cf. v. 1), encontra-se trs vezes no centro do Salmo (cf. vv. 4-5) e volta nofim (cf. v. 17).

    A tonalidade espiritual de todo o cntico muito bem expressa pelo versculoconclusivo: "O Senhor justo e ama a justia". esta a raiz de qualquer confiana e afonte de toda a esperana no dia da obscuridade e da prova. Deus no permaneceindiferente em relao ao bem e ao mal, um Deus bom e no um acontecimentoobscuro, indecifrvel e misterioso.

    2. O Salmo desenvolve-se substancialmente em dois cenrios. No primeiro (cf.

    vv. 1-3) est descrito o mpio no seu triunfo aparente. Ele caracterizado por imagensde tipos blico e venial: o pervertido, que retesa o arco da guerra ou da caa paradisparar com violncia contra as suas vtimas, isto , os de corao recto (cf. v. 2). Porisso, eles so tentados pela ideia de evadir e de se libertar de uma presa to implacvel.Gostaria de fugir "para o monte como as aves" (v. 1), longe do vrtice do mal, doassdio dos malvados, das setas das calnias lanadas traio pelos pecadores.

    H uma espcie de desconforto no fiel que se sente s e impossibilitadoface irrupo do mal. Parece que os fundamentos da justa ordem social soabalados e as prprias bases da convivncia humana esto ameaadas. (cf. v. 3).

    3. Eis ento a mudana, traada no segundo cenrio (cf. vv. 4-7). O Senhor,sentado no seu trono celeste, abrange com o seu olhar penetrante todo o horizonte

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    humano. Daquele lugar transcendente, sinal da omniscincia e da omnipotncia divina,Deus pode perscrutar e examinar cada pessoa, distinguindo o bem do mal e condenandocom vigor a injustia (cf. vv. 4-5).

    muito sugestiva e confortadora a imagem dos olhos divinos, cujas pupilas

    contemplam e observam as nossas aces. O Senhor no um remoto soberano,fechado no seu mundo dourado, mas uma Presena vigilante que se declara da parte dobem e da justia. Ele v e providencia, intervindo com a sua palavra e com a sua aco.

    O justo prev que, como acontecera em Sodoma (cf. Gn 19, 24), o Senhor "farchover sobre os mpios carves acesos e enxofre" (Sl 10, 6), smbolos do juzo de Deusque purifica a histria, condenando o mal. O mpio, atingido por esta chuva ardente, que

    prefigura o seu destino ltimo, experimenta fielmente que "h um Deus que faz justiasobre a terra" (Sl 57, 12).

    4. Contudo, o Salmo no se conclui com este quadro trgico de punio e de

    condenao. O ltimo versculo abre o horizonte para a luz e para a paz que se destinamao justo que contempla o seu Senhor, juiz justo, mas sobretudo libertadormisericordioso: "os homens honestos contemplaro a sua face" (Sl 10, 7). Trata-se deuma experincia alegre de comunho e de confiana serena no Deus que liberta do mal.

    Fizeram uma experincia como esta os numerosos justos ao longo da histria.Muitas narraes descrevem a confiana dos mrtires cristos face s atrocidades e asua determinao que no evitava a prova.

    Nos Actos de Euplo, dicono de Catnia, falecido por volta de 304 sobDiocleciano, o mrtir exclama espontaneamente esta sequncia de oraes: "Obrigado, Cristo: protege-me porque sofro por ti... Adoro o Pai, o Filho e o Esprito Santo.Adoro a Santssima Trindade... Obrigado, Cristo. Vem em meu auxlio, Cristo!Sofro por ti, Cristo... grande a tua glria, Senhor, nos servos que te dignastechamar a ti!... A ti dou graas, Senhor Jesus Cristo, porque a tua fora me confortou;no consentiste que a minha alma perecesse com os mpios e concedeste-me a graa doteu nome. Agora confirma o que fizeste em mim, para que seja confundida aimpudncia do Adversrio" (A. HAMMAN, Oraes dos primeiros cristos, Milo1995, pgs. 72-73).

    PAPA JOO PAULO II

    AUDINCIA

    Quarta-Feira 4 de fevereiro de 2004

    Salmo 14: Quem digno de estar diante do Senhor?

    1. O Salmo 14, que oferecido nossa reflexo, muitas vezes classificadopelos estudiosos da Bblia como parte de uma "liturgia de entrada". Como acontece comalgumas composies do Saltrio (cf. por exemplo, os Salmos 23, 25 e 94), pode-se

    pensar numa espcie de procisso de fiis que se agrupa s portas do templo de Siopara aceder ao culto. Num dilogo ideal entre fiis e levitas delineiam-se as condies

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    indispensveis para ser admitido celebrao litrgica e, por conseguinte, intimidadedivina.

    De facto, por um lado, surge a pergunta: "Quem poder, Senhor, habitar no teusanturio? Quem poder residir na tua montanha santa?" (Sl 14, 1). Por outro, eis o

    elenco das qualidades exigidas para passar o limiar que leva ao "santurio", ou seja, aotemplo na "montanha santa" de Sio. As qualidades enumeradas so onze e constituemuma sntese ideal dos compromissos morais de base, presentes na lei bblica (cf. vv. 2-5).

    2. Nas fachadas dos templos egpcios e babiloneses por vezes eram gravadas ascondies exigidas para poder entrar no ambiente sagrado. Devemos notar umadiferena significativa com as que so sugeridas pelo nosso Salmo. Em muitas culturasreligiosas requerida, para ser admitido presena da Divindade, sobretudo a purezaritual exterior que comporta purificaes, gestos e vestes particulares.

    Ao contrrio, o Salmo 14 exige a purificao da conscincia, para que as suasopes sejam inspiradas no amor pela justia e pelo prximo. Portanto, sente-se nestesversculos o esprito dos profetas que convidam repetidamente a conjugar a f e a vida,orao e compromisso existencial, adorao e justia social (cf. Is 1, 10-20; 33, 14-16;Os 6, 6;Mq6, 6-8;Jr6, 20).

    Ouamos, por exemplo, a veemente repreenso do profeta Ams, que denunciaem nome de Deus um culto separado da histria quotidiana: "Eu detesto e rejeito asvossas festas, e no sinto nenhum gosto nas vossas assembleias. Se me ofereceisholocaustos e oblaes, no as aceito, nem ponho os meus olhos no sacrifcio das vossasvtimas gordas... Antes, jorre a equidade como uma fonte, e a justia como torrente queno seca" (5, 21-22.24).

    3. Tratemos agora os onze compromissos enumerados pelo Salmista, quepodero constituir a base de um exame de conscincia pessoal todas as vezes que nosprepararmos para confessar as nossas culpas a fim de sermos admitidos comunhocom o Senhor na celebrao litrgica.

    Os trs primeiros compromissos so genricos e exprimem uma opo tica:seguir o caminho da integridade moral, da prtica da justia e, por fim, da sinceridade

    perfeita ao falar (cf. Sl 14, 2).

    Seguem-se trs deveres que poderamos definir de relao com o prximo:eliminar a calnia da linguagem, evitar qualquer aco que possa prejudicar o irmo,impedir os insultos contra quem vive ao nosso lado todos os dias (cf. v. 3). Vem depoiso pedido de uma opo clara de posio no mbito social: desprezar o malvado, honrarquem teme Deus. Por fim, enumeram-se os trs ltimos preceitos sobre o modo comoexaminar a conscincia: ser fiis palavra dada, ao juramento, mesmo que isso noscause consequncias danosas; no praticar a usura, chaga que ainda nos nossos dias uma realidade vil, capaz de aniquilar a vida de muitas pessoas e, por fim, evitarqualquer forma de corrupo na vida pblica, outro compromisso que se deve saber

    praticar com rigor tambm no nosso tempo (cf. v. 5).

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    4. Seguir este caminho de decises morais autnticas significa estar preparadopara o encontro com o Senhor. Tambm Jesus, no Sermo da Montanha,propor uma"liturgia de entrada" essencial: "Se fores, portanto, apresentar uma oferta sobre o altar eali te recordares de que o teu irmo tem alguma coisa contra ti, deixa l a tua ofertadiante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmo" (Mt 5, 23-24).

    Quem age da maneira indicada pelo Salmista conclui-se na nossa orao "noh-de sucumbir para sempre" (Sl14, 5). Santo Hilrio de Poitiers, Padre e Doutor daIgreja do quarto sculo, no seu Tractatus super Psalmoscomenta assim este final doSalmo, relacionando-o imagem inicial do templo de Sio: "Agindo de acordo comestes preceitos, mora-se no santurio, repousa-se no monte. Por conseguinte,

    permanecem salvaguardadas a observao dos preceitos e a obra dos mandamentos.Este Salmo deve estar fundado no ntimo, escrito no corao, anotado na memria; otesouro da sua rica brevidade deve ser confrontado connosco em todos os momentos. Eassim, adquire esta riqueza no caminho rumo eternidade e habitando na Igreja,

    poderemos finalmente repousar na glria do corpo de Cristo" (PL9, 308).

    PAPA JOO PAULO II

    AUDINCIA

    Quarta-Feira 28 de Julho de 2004

    Salmo 15: O Senhor a minha herana

    1. Temos a oportunidade de meditar sobre um Salmo de forte tenso espiritual,depois de o ter ouvido e tornado orao. No obstante as dificuldades textuais, que ooriginal hebraico revela sobretudo nos primeiros versculos, o Salmo 15 um cnticoluminoso de inspirao mstica, como sugere j a profisso de f colocada na abertura:"Tu s o meu Deus, s o meu bem e nada existe fora de ti" (v. 2). Portanto, Deus vistocomo o nico bem e por isso o orante escolhe colocar-se no mbito da comunidade detodos aqueles que so fiis ao Senhor: "Para os santos, que esto sobre a terra, homensnobres, todo o meu amor" (v. 3). Por essa razo o Salmista rejeita radicalmente atentao da idolatria com os seus ritos sanguinrios e com as suas invocaes blasfemas(cf.v. 4).

    Trata-se de uma escolha de campo categrica e decidida, que parece reflectir ado Salmo 72, outro canto de confiana em Deus, conquistada atravs de uma opomoral forte e difcil: "Quem teria eu no cu? Contigo, nada mais me agrada na terra...Quanto a mim, estar junto de Deus o meu bem! Em Deus coloquei o meu abrigo" (Sl72, 25.28).

    2. O nosso Salmo desenvolve dois temas que so expressos atravs de trssmbolos: antes de mais, o smbolo da "herana", termo que sustenta os versculos 5-6:de facto, fala-se de "herana, clice, sorte". Estes vocbulos eram usados para descrevero dom da terra prometida ao povo de Israel. Ns sabemos agora que a nica tribo queno tinha recebido uma poro de terra era a dos Levitas, porque o prprio Senhor

    constitua a sua herana. O Salmista declara justamente: "Senhor, minha herana...

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    preciosa a herana que me coube" (Sl 15, 5.6). Ele suscita, portanto, a impresso de serum sacerdote que proclama a alegria de ser totalmente dedicado ao servio de Deus.

    Santo Agostinho comenta: "O Salmista no diz: Deus, dai-me uma herana!O que me dareis como herana? Ao contrrio, diz: tudo o que me podeis dar fora de vs

    insignificante. Sede vs mesmo a minha herana. Sois vs que amo... Esperar Deus deDeus, ser pleno de Deus por Deus. Ele te basta, fora dele nada te pode bastar" (cf.Sermo334, 3:PL 38, 1469).

    3. O segundo tema o da comunho perfeita e contnua com o Senhor. OSalmista exprime a firme esperana de ser preservado da morte para poder permanecerna intimidade de Deus, que no mais possvel na morte (cf. Sl 6, 6; 87,6). Todavia, assuas expresses no limitam esta preservao; alis, podem ser entendidas como umavitria sobre a morte que assegura a intimidade eterna com Deus.

    Os smbolos usados pelo orante so dois. Antes de tudo, o corpo a ser

    evocado: os exegetas dizem-nos que no original hebraico (cf. Sl 15, 7-10) se fala de"rins", smbolo das paixes e da interioridade mais escondida, de "direita", sinal defora, de "corao", sede da conscincia, at de "fgado", que exprime a emotividade, de"carne", que indica a existncia frgil do homem, e enfim, de "sopro de vida".

    , portanto, a representao do "ser inteiro" da pessoa, que no absorvido eaniquilado na corrupo do sepulcro (cf. v. 10), mas mantido na vida plena e feliz comDeus.

    4. Eis, ento, o segundo smbolo do Salmo 15, o do "caminho": "Hs-deensinar-me o caminho da vida" (v. 11). a estrada que conduz "plena alegria na

    presena" divina, "doura sem fim, direita" do Senhor. Estas palavras adaptam-seperfeitamente a uma interpretao que alarga a perspectiva esperana da comunhocom Deus, alm da morte, na vida eterna.

    Neste ponto, fcil intuir como o Salmo foi acolhido pelo Novo Testamentoem vista da ressurreio de Cristo. So Pedro, no seu discurso de Pentecostes, cita

    precisamente a segunda parte do hino com uma aplicao pascal e cristolgicaluminosa: "Mas Deus ressuscitou-o, libertando-o dos grilhes da morte, pois no era

    possvel que ficasse sob o domnio da morte" (Act 2, 24).

    So Paulo refere-se ao Salmo 15 no anncio da Pscoa de Cristo, durante o seudiscurso na sinagoga de Antioquia da Pisdia. Nesta luz, tambm ns o proclamamos: "No deixars o teu Santo ver a corrupo.Ora David, depois de servir na sua vida osdesgnios de Deus, morreu; foi reunir-se aos seus pais e viu a corrupo. Mas aqueleque Deus ressuscitou ou seja, Jesus Cristo no viu a corrupo" (Act13, 35-37).

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    PAPA JOO PAULO II

    AUDINCIA

    Quarta-Feira 10 de maro de 2004

    Salmo 19: Salmo pela vitria do Rei-Messias

    Carssimos Irmos e Irms

    1. A invocao final: Senhor, d o triunfo ao rei e atende-nos quando teinvocarmos (Sl 19, 10), revela-nos a origem do Salmo 19, que escutmos e que agorameditamos. Por conseguinte, estamos na presena de um Salmo real do antigo Israel,

    proclamado no templo de Sio durante um rito solene. Com ele invocada a bnodivina sobre o soberano, sobretudo no dia da angstia (v. 2), isto , no tempo em que

    toda a nao se sente atormentada por uma angstia profunda devido ameaa de umaguerra. De facto, so recordados os carros e os cavalos (cf. v. 8) que parecem avanarno horizonte; a eles, o rei e o povo, contrapem a sua confiana no Senhor, que sedeclara da parte dos fracos, dos oprimidos, das vtimas da arrogncia dosconquistadores.

    fcil compreender como a tradio crist tenha transformado este Salmo numhino a Cristo-Rei, o consagrado por excelncia, o Messias (cf. v. 7). Ele entra nomundo sem exrcitos, mas com o poder do Esprito, e desencadeia o ataque definitivocontra o mal e a prevaricao, contra a prepotncia e o orgulho, contra a mentira e oegosmo. Ressoam tambm aos nossos ouvidos levemente as palavras que Cristo

    pronuncia, respondendo a Pilatos, emblema do poder imperial terrestre: Eu sou rei.Para isto nasci, para isto vim ao mundo: para dar testemunho da Verdade. Todo aqueleque vive da Verdade escuta a minha voz (Jo18, 37).

    2. Examinando o desenvolvimento deste Salmo, apercebemo-nos de que elerevela minuciosamente uma liturgia celebrada no templo hierosolimitano. Fazem partedo cenrio os filhos de Israel, que rezam pelo rei, chefe da nao. Alis, na aberturaentrev-se um rito sacrifical, em sintonia com os vrios sacrifcios e holocaustosoferecidos pelo soberano ao Deus de Jacob (Sl 19, 2), que no abandona o seuungido (v. 7), mas protege-o e defende-o.

    A orao est marcada em grande medida pela convico de que o Senhor afonte da segurana: ele vai ao encontro do desejo confiante do rei e de toda acomunidade qual est ligado pelo vnculo da aliana. O clima , sem dvida, o de umacontecimento blico, com todos os receios e riscos que suscita. A Palavra de Deus no portanto uma mensagem abstracta, mas uma voz que se adapta s pequenas e grandesmisrias da humanidade. Por isso, o Salmo reflecte a linguagem militar e a atmosferaque domina Israel em tempo de guerra (cf. v. 6), adaptando-se assim aos sentimentos dohomem em dificuldade.

    3. No texto do Salmo o v. 7 marca uma mudana. Enquanto os versculos

    anteriores exprimem implicitamente pedidos dirigidos a Deus (cf. vv. 2-5), o v. 7 afirmaa certeza do atendimento obtido: Agora tenho a certezade que o Senhor d a vitria ao

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    seu ungido; Ele responde-lhe do alto do seu santurio. O Salmo no esclarece qualsinal deu essa certeza.

    Contudo, expressa claramente um contraste entre a posio dos inimigos, quecontam com a fora material dos seus carros e cavalos, e a posio dos Israelitas, que

    tm confiana em Deus e, por conseguinte, so vitoriosos. O pensamento corre para oclebre episdio de David e Golias: o jovem hebreu contrasta as armas e a prepotnciado guerreiro filisteu com a invocao do nome do Senhor, que protege os fracos einermes. De facto, David diz a Golias: Tu vens para mim de espada, lana e escudo;eu, porm, vou a ti em nome do Senhor do universo... no com a espada nem com alana que o Senhor triunfa, porque ele o rbitro da guerra (1 Sm17, 45.47).

    4. O Salmo, no seu concreto histrico to ligado lgica da guerra, podetornar-se um convite a nunca se deixar capturar pela atraco da violncia. TambmIsaas exclamava: Ai dos que... pem a sua confiana na cavalaria! Confiam nos carros

    porque so muitos, e nos cavaleiros porque so fortes. No olham para o Santo de

    Israel, nem consultam o Senhor (Is 31, 1).

    A qualquer forma de maldade o justo contrape a f, a benevolncia, o perdo,a oferenda de paz. O apstolo Paulo admoesta os cristos: No pagueis a ningum omal com o mal; interessai-vos pelo que bom diante de todos os homens (Rm 12, 17).E o historiador da Igreja dos primeiros sculos, Eusbio de Cesareia (sculos III-IV), aocomentar o nosso Salmo, alargar o olhar tambm sobre o mal da morte que o cristosabe que pode vencer por obra de Cristo: Todas as potncias adversrias e os inimigosde Deus escondidos e invisveis, rostos em fuga do prprio Salvador, decairo. Mastodos aqueles que receberem a salvao, ressurgiro da sua antiga runa.

    Por isso Simeo dizia: Ele veio para queda e ressurreio de muitos, ou seja,

    para a runa dos seus adversrios e inimigos e para a resurreio daqueles que outroracaram mas agora foram por ele ressuscitados (PG 23, 197).

    PAPA JOO PAULO II

    AUDINCIA

    Quarta-Feira 17 de maro de 2004

    Salmo 20: Aco de graas pela vitria do Rei

    1. No mbito do Salmo 20 a Liturgia das Vsperas destacou a parte que agoraescutamos, omitindo outra de carcter imprecatrio (cf. vv. 9-13). A parte conservadafala no passado e no presente dos favores concedidos por Deus ao rei, enquanto aparte omitida fala no futuro da vitria do rei sobre os seus inimigos.

    O texto que constitui o objecto da nossa meditao (cf. vv. 2-8.14) pertence aognero dos Salmos reais. Por conseguinte, no centro encontra-se a obra de Deus a favordo soberano hebraico representado talvez no dia solene da sua entronizao. No incio

    (cf. v. 2) e no fim (cf. v. 14) parece que ressoa uma aclamao de toda a assembleia,enquanto o centro do hino tem tonalidades de um cntico de gratido, que o Salmista

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    dirige a Deus pelos favores concedidos ao rei: "bnos preciosas" (v. 4), "vida longa"(v. 5), "glria" (v. 6) e "alegria" (v. 7).

    fcil intuir que a este cntico como aconteceu com os outros Salmos reais doSaltrio foi designada uma nova interpretao quando, em Israel, desapareceu a

    monarquia. J com o Judasmo, ele se tinha tornado um hino em honra do rei-Messias:desta forma, aplainava-se o caminho da interpretao cristolgica, que precisamenteadoptada pela liturgia.

    2. Mas, lancemos primeiro um olhar ao texto no seu sentido originrio.Respira-se uma atmosfera jubilosa e que ressoa de cnticos, tendo em considerao asolenidade do acontecimento:

    "Senhor, o rei alegra-se com o teu poder e regozija-se com o teu auxlio...Cantaremos e celebraremos a tua fora!" (vv. 2.14). Depois, so referidos os dons deDeus ao soberano: Deus satisfez as suas preces (cf. v. 3), coloca-lhe sobre a cabea

    uma coroa de ouro (cf. v. 4). O esplendor do rei est relacionado com a luz divina que oenvolve como um manto protector: "cumulaste-o de esplendor e majestade" (v. 6).

    No antigo Mdio Oriente considerava-se que o rei estivesse circundado poruma aurola luminosa, que confirmava a sua participao na prpria essncia dadivindade. Naturalmente para a Bblia o soberano , sem dvida, "filho" de Deus (cf. Sl2, 7), mas apenas em sentido metafrico e adoptivo. Ento, ele deve ser o lugar-tenentedo Senhor em tutelar a justia. Precisamente por esta misso Deus o circunda com a luz

    benfica e com a sua bno.

    3. A bno um tema relevante neste hino breve: "Foste ao seu encontro combnos preciosas... abenoaste-o para sempre" (Sl 20, 4.7). A bno sinal dapresena divina que intervm no rei que, desta forma, se torna um reflexo da luz deDeus na humanidade.

    Na tradio bblica, a bno inclui tambm o dom da vida que precisamenteefundido sobre o consagrado: "Pediu-te a vida e Tu lha concedeste, vida longa, pelossculos alm" (v. 5). Tambm o profeta Natan tinha garantido a David esta bno,fonte de estabilidade, subsistncia e segurana, e David rezou da seguinte forma:"Abenoa, desde agora, a sua casa, para que ela subsista para sempre diante de ti:

    porque Tu, Senhor Deus, falaste e, graas tua bno, a casa do teu servo ser

    abenoada eternamente!" (2 Sm7, 29).4. Recitando este Salmo, vemos delinear-se por detrs do retrato do rei

    hebraico o rosto de Cristo, rei messinico. Ele "irradiao da glria" (Hb1, 3). Porconseguinte, Ele o Filho em sentido pleno e a presena perfeita de Deus no meio dahumanidade. Ele luz e vida, como proclama So Joo no prlogo do seu Evangelho:"Nele que estava a Vida... e a Vida era a Luz dos homens" (1, 4).

    Nesta perspectiva, Santo Ireneu, Bispo de Lio, ao comentar o Salmo, aplicaro tema da vida (cf. Sl 20, 5) ressurreio de Cristo: "Por que motivo o Salmista diz:"Pediu-te a vida", visto que Cristo estava para morrer? Por conseguinte, o Salmista

    anuncia a sua ressurreio dos mortos e que ele, ressuscitado dos mortos, imortal.

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    Com efeito, assumiu a vida para ressurgir, e longo espao de tempo na eternidade paraser incorruptvel"(Exposio da pregao apostlica,72, Milo 1979, pg. 519).

    Com base nesta certeza tambm o cristo cultiva em si a esperana no dom davida eterna.

    PAPA BENTO XVI

    AUDINCIA GERAL

    Sala Paulo VIQuarta-feira, 14 de Setembro de 2011

    Salmo 22: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?"

    Queridos irmos e irms,

    Na catequese hodierna gostaria de meditar sobre um Salmo com fortesimplicaes cristolgicas, que sobressai continuamente nas narraes daPaixo de Jesus, com a sua dplice dimenso de humilhao e glria, de mortee vida. o Salmo 22segundo a tradio judaica, 21 segundo a tradio greco-latina, uma orao intensa e comovedora, de uma densidade humana e de umariqueza teolgica que fazem dele um dos Salmos mais recitados e estudadosde todo o Saltrio. Trata-se de uma longa composio potica, e meditaremos

    de modo particular sobre a sua primeira parte, centrada na lamentao, paraaprofundar algumas dimenses significativas da orao de splica a Deus.

    Este Salmo apresenta a figura de um inocente perseguido e circundadode adversrios que desejam a sua morte; e ele recorre a Deus numalamentao dolorosa que, na certeza da f, se abre misteriosamente ao louvor.

    Na sua orao, a realidade angustiante do presente e a memria consoladorado passado alternam-se, numa difcil tomada de conscincia acerca da suasituao desesperada que, no entanto, no quer renunciar esperana. O seuclamor inicial um apelo dirigido a um Deus que parece distante, que no

    responde e parece t-lo abandonado:

    Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?As palavras do meu clamor no so por Vs ouvidas.Meu Deus, clamo de dia e no me respondeis;imploro durante a noite, sem conseguir sossegar (vv. 2-3).

    Deus cala-se, e este silncio dilacera a alma do orante, que chamaincessantemente, mas sem encontrar uma resposta. Os dias e as noitessucedem-se, numa busca incansvel de uma palavra, de uma ajuda que nochega; Deus parece to distante, to esquecido, to ausente! A orao pede

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    Os Salmos interpretados pelos papas Joo Paulo II e Bento XVI

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    escuta e resposta, solicita um contacto, procura uma relao que possaconferir conforto e salvao. Mas se Deus no responde, o grito de ajuda

    perde-se no vazio e a solido torna-se insustentvel. E no entanto o orante donosso Salmo, no seu brado, chama trs vezes o Senhor meu Deus, numextremo gesto de confiana e de f. No obstante qualquer aparncia, oSalmista no pode acreditar que o vnculo com o Senhor se tenhainterrompido totalmente; e enquanto pergunta o porqu do presumvelabandono incompreensvel, afirma que o seu Deus no o pode abandonar.

    Como se sabe, o clamor inicial do Salmo, Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?, citado pelos Evangelhos de Mateus e de Marcoscomo o grito lanado por Jesus agonizante na Cruz (cf.Mt27, 46;Mc15, 34).Ele manifesta toda a desolao do Messias, Filho de Deus, que enfrenta odrama da morte, uma realidade totalmente oposta ao Senhor da vida.

    Abandonado por quase todos os seus, atraioado e renegado pelos discpulos,circundado por quantos o insultam, Jesus encontra-se sob o peso esmagadorde uma misso que deve passar pela humilhao e o aniquilamento. Por isso,clama ao Pai, e o seu sofrimento assume as palavras dolorosas do Salmo. Maso seu grito no desesperado, como 0 do Salmista, que na sua splica

    percorre um caminho atormentado, mas que no final acaba numa perspectivade l0uvor, na confiana da vitria divina. E dado que no uso hebraico citar oincio de um Salmo implicava uma referncia ao poema inteiro, a precedilacerante de Jesus, embora mantenha a sua carga de sofrimento indizvel,abre-se certeza da glria. No tinha o Messias de sofrer estas coisas para

    entrar na sua glria?, dir o Ressuscitado aos discpulos de Emas (Lc24,26). Na sua paixo, em obedincia ao Pai, o Senhor Jesus atravessa oabandono e a morte para alcanar a vida e para a doar a todos os fiis.

    A este brado inicial de splica, no nosso Salmo 22, segue-se numcontraste doloroso a recordao do passado:

    Em Vs confiaram os nossos pais,confiaram, e Vs os livrastes;a vs clamaram e foram salvos;confiaram em Vs e no foram confundidos (vv. 5-6).

    Aquele Deus que hoje ao Salmista parece to distante , no entanto, oSenhor misericordioso que Israel sempre experimentou na sua histria. O

    povo ao qual o orante pertence foi objecto do amor de Deus, e pode dartestemunho da sua fidelidade. A comear pelos Patriarcas, e depois no Egiptoe durante a longa peregrinao pelo deserto, na permanncia na terra

    prometida em contacto com populaes agressivas e inimigas, at aoobscurecimento do exlio, toda a histria bblica foi uma histria de clamores

    de ajuda da parte do povo e de respostas salvficas da parte de Deus. E oSalmista faz referncia f inabalvel dos seus Pais, que confiaramesta

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    palavra repetida trs vezes sem jamais permanecer confundidos. Agora,no entanto, parece que esta srie de invocaes confiantes e de respostasdivinas se interrompeu; a situao do Salmista parece desmentir toda ahistria da salvao, tornando ainda mais dolorosa a realidade presente.

    Mas Deus no pode desmentir-se, e eis ento que a orao volta adescrever a situao penosa do orante, para induzir o Senhor a ter piedade e aintervir, como sempre tinha feito no passado. O Salmista define-se umverme, no um homem, o oprbrio de todos e a abjeco da plebe (v. 7), escarnecido, zombado (cf. v. 8) e ferido precisamente na f: Confiou noSenhor, que Ele o livre, que o salve, se o ama (v. 9), dizem. Sob os golpesultrajantes da ironia e do desprezo, parece quase que o perseguido perde assuas conotaes humanas, como o Servo sofredor delineado noLivro de

    Isaas(cf.Is52, 14; 53, 2b-3). E como o justo oprimido, doLivro da

    Sabedoria (cf. 2, 12-20), ou como Jesus no Calvrio (cf.Mt27, 39-43), oSalmista v posta em dvida a prpria relao com o seu Senhor, na evidnciacruel e sarcstica daquilo que o faz sofrer: o silncio de Deus, a sua aparenteausncia. E no entanto, Deus esteve presente na existncia do orante com uma

    proximidade e uma ternura inquestionveis. O Salmista recorda-o ao Senhor:Na verdade, Vs me tirastes do ventre materno, confiastes-me aos seios deminha me. Perteno-vos desde o ventre materno (vv. 10-11a). O Senhor oDeus da vida, que faz nascer e acolher o recm-nascido, e cuida dele comcarinho paterno. E se antes recordara a fidelidade de Deus na histria do povo,agora o orante volta a evocar a prpria histria pessoal de relao com o

    Senhor, remontando ao momento particularmente significativo do incio dasua vida. E ali, no obstante a desolao do presente, o Salmista reconheceuma proximidade e um amor divinos to radicais que agora pode exclamar,numa confisso cheia de f e geradora de esperana: Desde o seio de minhame, Vs sois o meu Deus (v. 11b).

    Agora, a lamentao torna-se uma splica intensa: No vos afasteisde mim, porque estou atribulado; no h quem me ajude (v. 12). A nica

    proximidade que o Salmista sente e que o amedronta a dos seus inimigos.

    Portanto, necessrio que Deus se aproxime e que o socorra, porque osinimigos circundam e rodeiam o orante, e