Segredos 3 E 4 - Os 7 Segredos Do Comércio Eletrônico - 30mai09
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE
JOÃO PAULO BANDEIRA DE SOUZA
OS SEGREDOS DO MEDALHÃO:
O IMAGINÁRIO DA ARTE DE FAZER POLÍTICA NO BRASIL
FORTALEZA
2012
JOÃO PAULO BANDEIRA DE SOUZA
OS SEGREDOS DO MEDALHÃO:
O IMAGINÁRIO DA ARTE DE FAZER POLÍTICA NO BRASIL
Dissertação submetida à Coordenação do Curso de Mestrado
Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade - MAPPS da
Universidade Estadual do Ceará - UECE, como requisito para
obtenção do grau de Mestre em Políticas Públicas e Sociedade
Orientação: Prof. Dr. Hermano Machado Ferreira Lima
FORTALEZA
2012
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Estadual do Ceará
Biblioteca Central Prof. Antônio Martins Filho
S729s Souza, João Paulo Bandeira de Os segredos do medalhão: o imaginário da arte de fazer
política no Brasil / João Paulo Bandeira de Souza. – 2012. 109 f. : il. color., enc. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual do
Ceará, Centro de Estudos Sociais Aplicados, Curso de Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas, Fortaleza, 2012.
Área de Concentração: Políticas Públicas Orientação: Prof. Dr. Hermano Machado Ferreira Lima 1. Imaginário. 2. Cultura política. 3. Machado de Assis. I.
Título.
CDD: 320.6
Deda a quem devo tudo! Sem ela nenhuma dessas páginas teria sido escrita.
Minha Mãe, Meu Pai, Fernanda, Roberta e Odenizio Filho meus exemplos, meus
amores.
Alexandra Arruda, amiga querida! (In Memoriam)
AGRADECIMENTOS
À Deus, Jesus, Hermes, Iemanjá, Francisco de Assis e os outros deuses que sempre me
ajudaram nos momentos de incertezas.
À minha querida, boa e sábia fada madrinha Celeste Cordeiro por ter acreditado na
minha idéia de canário, mas principalmente pela amizade, companheirismo,
ensinamentos, conselhos, livros, carinho e atenção que sempre teve comigo. Como um
dia me falaram “-Nem parece Orientadora!”
Ao amigo, companheiro e orientador Hermano Machado Ferreira Lima, exemplo de
educador, pelos cafés, almoços, livros e principalmente por sempre ter me tratado com
dignidade e respeito, sempre cuidando de me ensinar algo novo e de me fazer olhar e
pensar as coisas por outros lados.
À minha amada Mírian e seu amor companheiro que sempre conseguem deixar a
realidade mais colorida, obrigado por não ter me deixado sozinho nesses tempos tão
conturbados.
Aos cearenses que financiaram a bolsa de estudos disponibilizada pela FUNCAP,
instituição fundamental para o desenvolvimento do Ceará, que hoje é administrada por
insensatos. Senhor governador Cid Gomes, apesar de sua inabilidade para tratar com
intelectuais amanhã há de ser outro dia!
Aos velhos amigos de uma vida inteira que sempre torcem por mim em especial aos
camaradas: Manuel Bandeira, João Paulo, Paulo Danilo, Luiz Doglas, Nilo, Wesley
Fernando José, Dudu, Túlio, Janice, Lissandra, Vanessa e a Yandra que um dia me
apresentou a obra Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio.
Aos professores do Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade e em
especial ao mestre e amigo Josênio Parente por tudo que me ensinou.
Ao amigo Francisco Moreira Ribeiro orientador e amigo desde os tempos da Unifor.
Ao Professor Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes por ter aceitado ler e debater essa
dissertação, fato que me valeu como uma condecoração.
À Tia Dadá, Dodó (In Memoriam), Didia, Vó Naninha (In Memoriam) , Tia Osair, Tia
Lúcia, Tia Rejane, Vó Bárbara, Maninha, Mário Porfírio, Graça, Zenir, Dona Rita que
contribuíram cada um ao seu modo com esse trabalho.
À Cristina e a Débora por nunca terem me deixado na mão muitas vezes fazendo muito
mais que suas obrigações.
Às companheiras (o) do MAPPS que tanto contribuíram na minha formação nesses
meses de convivência.
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para
ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na
caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho
para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me
disse, abanando a cabeça:
—Também eu tenho servido de agulha a muita linha
ordinária!
Machado de Assis
RESUMO
O diálogo entre as ciências sociais e as artes se dá por meio da literatura que é lugar
privilegiado da permanência do imaginário, interseção de saberes humanos, campo fértil
para quem se propõe a olhar e entender os segredos de uma cultura política. As
comunicações vão dialogar com a cultura política brasileira a partir das lições dadas por
Machado de Assis no conto Teoria do Medalhão sobre os saberes guardados nos
segredos que envolvem a arte de fazer política no Brasil: o regime do aprumo e do
compasso, a difícil arte de pensar o pensado, usar a publicidade para se fazer
conhecido, usar jantares para fazer amigos influentes. O conto de 1881, republicado em
Papéis Avulsos (1884), é um diálogo entre um pai zeloso e seu filho bacharel, na noite
do aniversário de sua maioridade. Após sair o último convidado do jantar no silêncio da
noite o pai propõe ao filho uma conversa de portas fechadas de teor secreto e valioso,
onde ensina os meios e caminhos para conquistar poder, glória e prestígio no Brasil do
século XIX. Conselhos que segundo o pai guardadas as devidas proporções valem O
Príncipe de Maquiavel.
Palavras Chaves: Imaginário, Cultura Política, Machado de Assis
ABSTRACT
The dialogue between the science social and the arts is done through the literature which
is a privileged place where remains the imagination, intersection of humans knowledge,
fertile field for the ones who offer to look and understand the secrets of a political
culture. The communication will dialogue with the Brazilian political culture from the
lessons given by Machado de Assis in the story “Teoria do Medalhão” about the
knowledge kept in the secrets that involve the art of doing politics in Brazil: the regime
of the arrogance and of the bars, the difficult art of think about the thought, use the
publicity to make yourself known, take part of dinners to make influent friends. The
story from 1881, republished in Papéis Avulsos (1884), is a dialogue between a careful
father and his son bachelor, in the night of his majority. After the last guest had left the
dinner, in the silent night, the father proposes his son a secret and valuable conversation,
in which he teaches him the ways to conquer power, glory and prestige in Brazil in the
19th
century. Advices, according to his father, kept the proportions, can value “The
Prince, of Machiavel.
Keywords: Imaginary, Culture Politics, Machado de Assis
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................10
1. UMA IDÉIA DE CANÁRIO: RELIGANDO OS SABERES PARA TECER
UMA PESQUISA BIODEGRADÁVEL......................................................................18
1.1 O Paradigma da Complexidade.............................................................................20
1.2 Imaginário, Vida Social e Literatura.....................................................................23
1.3 A mosca e o Canário................................................................................................33
2. HOMEM DO SEU TEMPO E DO SEU PAÍS........................................................39
2.1 O Homem e seus desejos.........................................................................................44
2.1.1 O desejo de ser Feliz e o desejo de morrer.............................................................45
2.1.2 O Desejo de ler e o desejo de escrever...................................................................53
2.2 Breves lições sobre a sociedade e a política brasileira nos tempos de Pedro II e
Machado de Assis...........................................................................................................63
2.3 Machado de Assis e a arte de escrever contos no Brasil......................................67
3. A ARTE DE FAZER POLÍTICA NO BRASIL
NA TEORIA DO MEDALHÃO...................................................................................72
3.1 O regime do aprumo e do compasso......................................................................83
3.2 A arte de pensar o pensado.....................................................................................87
3.3 Compra um carneiro e dá-o aos amigos................................................................93
3.4 O medalhão-príncipe ou o príncipe medalhão?...................................................99
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................101
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................104
10
INTRODUÇÃO
Leitura e interpretação são, em última análise ‗tradução‘
que dá vida, que empresta vida à obra gelada, morta.
Através da ‗tradução‘, a minha própria linguagem torna-
se una com a do criador. No entanto, cedo nos
apercebemos de que essa linguagem não é simples.
Pode fazer-se diversas ‗leituras‘ dela. (DURAND, 1996,
p.252)
Machado de Assis muito se esforçou para compreender seu tempo, seu país e seus
contemporâneos, ao exercitar sua arte e ao falar da vida cotidiana que ele conheceu acabou
por legar uma obra que muito ajuda ao pesquisador que se propõe a pensar a invenção da
cultura política brasileira pelos caminhos do pensamento complexo.
Nos contos de Machado de Assis temos uma ampla galeria de imagens que nos
remetem ao ainda tão próximo e já tão longínquo Brasil do século XIX. Entre algibeiras e
tílburis, se imitarmos o míope e aproximarmos o olhar com um pouco mais de acuidade,
poderemos ver a dança dos mitos, imagens e símbolos de nossa mitologia política. Da união
dessas pequenas jóias da literatura universal com a complexidade e os mitos poderemos
pensar outros meios de aprender e ensinar cultura política brasileira.
A dissertação que apresento gira em torno de uma compreensão política do Brasil
que não se limite à aparência de sua superfície institucional e formal, mas que se demore no
que seria a subjetividade que a sustenta. Permeando toda estrutura há valores e crenças que
não estão explicitados nos compêndios teóricos nem mortos e enterrados por nossas certezas
Modernas, mas vivem sutis nos provérbios, nas piadas, nas narrativas populares, na literatura.
Suas histórias, contadas dentro de uma determinada ambiência cultural, dão vida a
personagens e cenários que refletem os desejos e temores, certezas e incertezas, possibilidades
e limites da sociedade na qual são inventadas e vividas.
Há muito que ver sobre o Brasil e seu imaginário coletivo, na literatura, que não
será encontrado na vetusta historiografia, nos compêndios de direito e nos manuais de ciência
política e legislações. Não se trata de ignorar esses saberes, mas de religá-los aos saberes da
literatura para que possamos abrir outras possibilidades e formas de compreender e interpretar
a cultura política.
11
Daí nosso desejo de pensar o imaginário político brasileiro a partir do século XIX
pelas lentes do grande Machado de Assis, pois é esse um período histórico marcante para as
inflexões da modernidade entre nós, em seu embate, muitas vezes conciliador, com toda a
tradição de sociabilidade que se desenvolve desde o primeiro encontro do índio com o
português em terras do novo mundo. Trataremos disso elegendo dois modos fundamentais de
dinamização intersubjetiva em nosso país: o favor e o contrato, representados e ironizados
numa imagem fundamental de nossa formação política e social, o mais vaidoso dos Deuses do
nosso Olimpo Político: o grave Medalhão.
Empreendemos uma interpretação hermenêutica em forma de espiral de caráter
transdisciplinar das dinâmicas e saberes guardados no imaginário brasileiro sobre os sentidos
sociais, políticos e culturais das tensões do que aqui chamamos de Mito do Medalhão, e a
influência de seus segredos, imagens e capitais simbólicos na formação da cultura política
brasileira. Propõe-se uma leitura feliz do conto Teoria do Medalhão por meio de um diálogo
com os saberes e segredos revelados/escondidos em outros contos de Machado de Assis sobre
as lições que o Pai, um não Medalhão, revela ao filho, futuro ―adjetivo da sociedade‖, na noite
de sua maioridade.
É certo que existe sempre um risco em ‗interpretar‘, mas a ‗leitura‘, que é
interpretação, constitui a felicidade da ‗leitura feliz‘ (G. Bachelard) e interpretar um
texto literário é (lê-lo!) como uma peça musical ou como a tela de um pintor
constitui um ‗belo risco a correr‘ (como dizia, num outro contexto), Sócrates. O ‗
sentido‘ de uma obra humana, de uma obra de arte, está sempre por descobrir, ele
não é automaticamente dado através de uma receita fastfood de análise. E é o ‗mito‘
que ‗descobre‘ a interpretação, o mito com as suas marcas de referência
metalépticas, as suas redundâncias diferenciais do ‗alguns‘, seja ele ‗mito pessoal‘,
seja mito de uma época, seja mito de uma cultura, seja mito eterno e universal...
(DURAND, 1996, p. 251)
Por meio de um exercício de mitocrítica e mitoanálise no conto, a pesquisa
proposta busca compreender a complexidade da relação entre a literatura, a vida social e os
mitos que envolvem as práticas e tensões políticas e culturais que medeiam e representam o
acesso e o não acesso aos capitais simbólicos que fazem no Brasil alguém ser considerado
bem sucedido, socialmente importante, digno da glória, da nomeada, de salamaleques e
honrarias, numa palavra, um Medalhão.
O Medalhão é aquele que não precisa perguntar ―você sabe com quem está
falando?” Pois todos sabem quem ele é, e quem são seus amigos, todos sabem do seu poder e
sabem que ele não hesitará em usar tal privilégio de forma violenta para se beneficiar ou
12
ajudar um amigo; ele vai mexer seus pauzinhos e fará uso de sua influência e prestígio para
colocar alguém que fira seus caprichos no seu devido lugar.
Um Medalhão tem que ter movimentos cadenciados, como se sempre estivesse a
dançar com uma baronesa, num baile no Teatro Municipal. Sem arroubos, como se sempre
estivesse metido numa casaca preta, um exímio cultivador do ar sério caro aos bem nascidos e
ilustres. Mas sem esquecer-se de rir das piadas dos amigos, dos poderosos ou da miséria
alheia; deve ter um ou dois conceitos guardados na algibeira para os discursos de sobremesa
e claro, sorrir, ser simpático, distribuir uns tapinhas nas costas, e nunca, jamais, ser irônico,
questionador e criativo!
O verdadeiro medalhão sabe como usar a bajulação, a dissimulação, as
aparências, os salamaleques, a retórica, a malandragem para conseguir boas amizades. Sabe
cultivar o silêncio para simular circunspecção e na presença dos poderosos não provoca sua
ira com ideias que os desagradem ou que causem qualquer dissabor. Ao contrário sempre que
pode homenageia os ilustres, os bem nascidos, os grandes feitos, os grandes medalhões, ou
pelo menos sonha em homenageá-los, ser conhecido por eles para um dia ser um deles. Uma
vez medalhão:
Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão ter
contigo, com o seu ar pesadão e cru de substantivos desadjetivados, e tu serás o
adjetivo dessas orações opacas, o odorífero das flores, o anilado dos céus, o
prestimoso dos cidadãos, o noticioso e suculento dos relatórios. E ser isso é o
principal, porque o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica.
O substantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário. (ASSIS,
2008, Vol. II, p. 274)
O conto será lido a partir da inspiração da teoria da complexidade ensinada por
Edgar Morin e seguindo os caminhos mitodológicos da teoria do imaginário desenvolvida por
Gilbert Durand, num diálogo com Machado e a fortuna crítica que se criou ao seu redor nos
últimos cento e cinquenta anos. Para que tivéssemos uma melhor compreensão de como lidar
com um campo tão peculiar como a literatura incorporamos à pesquisa os ensinamentos da
sociologia e da crítica da literatura.
Mas como podemos, a partir de Machado de Assis, tentar compreender a
complexidade das relações políticas construídas na sociedade brasileira hoje? Quais os
limites, interfaces, fronteiras e possibilidades do diálogo entre a literatura e a as ciências
sociais? Como as pistas e caminhos presentes na obra machadiana nos trazem elementos,
13
para refletirmos criticamente sobre os fundamentos e conexões das relações sociais
alicerçadas em nossa cultura política? Como um estudo de mitocrítica e mitoanálise pode
ajudar a trazer elementos que proporcionem uma reflexão sobre a vida no Brasil do século
XXI?
Essas questões vão ser respondidas ao longo da dissertação, mas é possível
antecipar que vamos navegar na confluência, no interstício, de duas grandes bacias semânticas
que desembarcam de caravela com os portugueses, seus espelhos e seu mundo doente, para
lembrar um poeta da minha geração: o Favor e o Contrato. E ganham força semântica com a
chegada da família Real em 1808 ao ponto de suas tensões envolverem a vida humana no
Brasil de pouco mais de 150 anos, tornado-se a fonte de verdades, padrões, ritos e mitos, o
software1, da vida brasileira.
O que chamamos de Favor, remete às relações clientelistas2, as trocas de favores,
que assumiram diferentes formas e sentidos na história humana e no Brasil tais relações foram
reforçadas pela cultura do patrimonialismo, do mandonismo, da Escravidão e da cordialidade
que como bem ensinou Sérgio Buarque de Holanda não significam ―[...]'boas maneiras',
civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e
transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em
mandamentos e sentenças. [...]‖ (HOLANDA, 1995, p. 146)
No Brasil o Contrato chegou pelo mar e trouxe junto com ele seus símbolos e
mitos influenciados pelo pensamento político e a teoria política desenvolvidos no Ocidente
desde Maquiavel. Têm como envoltório os grandes ideias modernas: a razão, a ciência, o
progresso e a evolução. Saber fundado nas categorias liberdade e igualdade que dominaram
as conversas dos contratualistas e seus herdeiros, onde a imanência tem lugar privilegiado,
para não dizer único nas páginas de nossos manuais de política: propriedade, governos, leis,
formas, técnicas, policy. Nesse ramo dos conhecimentos humanos o mercado é a fonte da
verdade, o mundo das trocas, suas práticas, crenças, valores e mitos envolvem as estratégias
de vida e de sociabilidade. O dinheiro é o Deus. Outros Mitos que pela força da ideologia
racionalista e das armas burguesas chamaram aos outros de mitos, mentiras, persuasões,
1 Para lembrar Gertz
2O clientelismo é definido como ―uma típica aliança vertical, onde ocorre um acordo entre duas pessoas que
possuem poder e recursos desiguais, sendo que cada uma julga conveniente possuir um aliado superior ou
inferior a si mesmo (GONÇALVES, 1988:8) Para além da troca de favores, o clientelismo tem uma dimensão
estrutural, estabelecendo solidariedade e funcionando como meio de interação social, como modo de
estruturação das desigualdades sociais. [...] (CORDEIRO, 2000, p.27)
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trevas e a si mesmo de única verdade, de luz dos homens. Em duas palavras, o que Rousseau
chamou de religião civil, tais Mitos influenciaram as narrativas e práticas sobre as relações
burguesas no Brasil do século XIX.
A tensão entre Favor e Contrato é pintada em grande estilo por Machado de Assis
em sua obra, ele foi observador agudo e genuíno intérprete da sociedade brasileira, que
segundo ele, sempre mudava para permanecer a mesma, pois, mudava de roupa sem trocar de
pele. O míope construiu artisticamente imagens que nos permitem especular sobre como a
sociedade imperial do século XIX vivia e recriava sua realidade complexa. Ao mesmo tempo
liberal e conservadora, nova e arcaica, moderna no discurso e colonial nas ações, onde
tínhamos um imperador poliglota e 90% de analfabetos, empresários promissores, baronatos
comprados, uma imensidão de escravos e uma população de dependentes e agregados.
Ler um conto machadiano é uma experiência social, histórica, cultural, política,
humana, que é ao mesmo tempo interseção da antropologia, sociologia, ciência política,
economia, história, arqueologia, direito. Cada frase entendida, interpretada, dá a sensação de
escavação da cultura brasileira. Bachelard demonstrou que a vida ―não é resultado de uma
série de raciocínios, mas a elaboração de uma função da mente (psíquica) que leva em conta
afetos e emoções.‖ (BACHELARD apud PITTA, 2005, p.16) Segundo o pensador ―a validade
do conhecimento é a mesma, seja ele adquirido pela experimentação ou poesia.‖
(BACHELARD apud PITTA, 2005. p.16) Assim, não é absurdo falar de um Machado de
Assis produtor de conhecimento sobre política mediante sua pena.
Machado de Assis nos leva a descobrir que ao falar sobre detalhes, situações,
casos aparentemente banais da vida cotidiana brasileira do século XIX, ele acaba explicando,
explicitando, contrapondo, descrevendo, analisando, dissimulando e enaltecendo, traços
essenciais da sociedade brasileira, bem como seus imaginários, dando ênfase às relações de
dependência, favor, mando e suas interseções e tensões com as ideias e formas do mundo
burguês ocidental europeu, suas ideias e práticas. A melhor forma de compreender Machado
de Assis é lendo Machado de Assis3, ele diz sem dizer e mais do que ler o que foi escrito, é
preciso aprender a ler o não dito, as pausas, as omissões, decifrar os enigmas e pistas
habilmente deixadas pelo caminho muitas vezes por um narrador dissimulado, irônico e digno
de desconfiança.
3 Antonio Candido
15
Da vasta obra de Machado de Assis, escolhemos trabalhar mais de perto com seus
contos. Segundo John Gledson (2006, p. 59), nos contos, Machado de Assis lida com pessoas
e grupos sociais mais amplos, principalmente aqueles empobrecidos e marginalizados
(crianças, escravos, e agregados) que não teriam o tratamento merecido nos romances. Os
contos machadianos foram, na sua melhor parte, estudos sobre alguns temas, não narram
relações sociais estáticas, mas a vida humana envolta nos costumes desta sociedade, bem
como nos sentimentos e interesses individuais numa relação complexa entre, de um lado os
costumes e valores daquela sociedade e, de outro, os seres humanos, suas incertezas e desejos.
A obra machadiana é complementar tanto no sentido da narrativa histórica, como
na compreensão de alguns conceitos, tipos e formas. É impossível entender quem eram
Bentinho ou Cubas, sem termos em mãos a Teoria do Medalhão. Não entenderíamos muito
bem a importância política dos jantares para os ―pomadistas‖, do conto ―O segredo do
Bonzo‖, se não entendemos o amor da glória e a sede da nomeada. Sem todas as suas outras
obras, o genial Um Apólogo não nos revela todo seu brilho.
Assim intenciono desenvolver um estudo de mitodologia aplicada ao conto Teoria
do Medalhão buscando as nuances, os interditos, o que ainda está por ser interpretado a
respeito das estratégias e fundamentos sobre o que seria preciso ser feito para que um homem
pudesse ter honra e glória na vida social brasileira. Sociedade na qual a desigualdade é
cultuada e reinventada para manter velhos e novos privilégios e as relações entre as pessoas
são mediadas pelos princípios do mercado e do contrato e ao mesmo tempo pelas relações da
tríade: Origem Fidalga, Grossos Cabedais e Relações Pessoais (Chalhoub, 2000). Onde não
importa quem você é, quais seus sonhos, amores e dores, saiba que você tem que vestir a
farda do Alferes e tornar-se um Medalhão.
No conto vamos acompanhar como a tensão mítica já explicitada, assume várias
formas, e se caracteriza por ensinar as mesmas lições, ao mesmo tempo em que as esconde,
num jogo de desvelar e velar nuances que ajudam à interpretar nosso imaginário político, nos
colocando frente a frente com as mais coriáceas4 características da nossa cultura política.
4 [...] as sociedades não são ‗mortais‘ [...] Existe nelas um núcleo ‗coriáceo‘ que coincide justamente com o
corpus sagrado dos mitos. Tal como a história, as sociedades não têm um ‗fim‘ mais ou menos apocalíptico. Nas
piores situações, elas sobrevivem através das ‗congères‘ culturais ou através do ilhéus tenazes das línguas
naturais. Ora, as heranças de palavras são heranças de imagens. E mais, a este nível mais profundo das
imobilidades da história, o inconsciente social vai ao encontro do inconsciente específico. (DURAND, 1996,
p.136)
16
No conto ―Teoria do Medalhão‖ temos uma passagem secreta para espiarmos os
ritos e os mitos da invenção da política e da sociedade no Brasil pelo viés da luta para ser
Medalhão, que no conto é exercida, ensaiada, ensinada, imposta e pensada para ser usada com
o fim dos fins: exercer o direito de contemplar a ponta do próprio nariz, segundo a velha
teoria de Cubas, ou de gozar das ―boas amizades‖ e ter acesso ao banquete do poder, ou pelo
menos suas sobras.
Essa caminhada também intenciona refletir a interpretação da pertinência e da
permanência do conto machadiano na compreensão da política na contemporaneidade,
dialogando com as interfaces entre a literatura e as Ciências Sociais para experimentar a
religação dos saberes e suas contribuições para uma melhor compreensão sobre a invenção da
democracia brasileira contemporânea, não suas formas e meios, mas suas sombras, suas
anedotas de folhetim.
Proponho compreender a tensão existente entre as ideologias e práticas
clientelistas e liberais, bem como a tensão entre o tradicional e o Moderno, para entender
como essa tensão influenciou a formação da sociedade brasileira e de seu imaginário no Brasil
imperial; assim como conhecer e compreender as dinâmicas, segredos, e ensinamentos do
Medalhão, suas interfaces com os outros mitos e ritos da vida brasileira, para melhor entender
as dinâmicas, perenidade, desgastes e derivações desse Mito na vida brasileira.
A outra linha desse trabalho buscou compreender a trajetória da formação de
Machado de Assis como escritor, suas relações com seu público, os outros artistas, o Estado,
seus amigos e críticos e os Mitos do seu tempo, para descobrir como um homem se faz Mito
ao mesmo tempo em que é o Hermes que nos conta o que lhes disseram os Mitos, com uma
ajudinha das ninfas, que segundo um crítico5, sempre beijavam Machado ao amanhecer o que
rendia bons filhos aos leitores do escritor.
A dissertação é dividida em três partes. O primeiro capítulo intitulado Uma ideia
de canário: Religando os saberes para tecer uma Pesquisa Biodegradável é um diálogo com
a teoria da complexidade, com a ―mitodologia‖ e com a sociologia da Arte e da Literatura.
No segundo capítulo, Homem do seu tempo e do seu país. Conheceremos um
pouco sobre quem foi esse menino pobre, mestiço, filho de uma lavadeira e de um pintor de
paredes, e como ele atravessou a sociedade de seu tempo, e foi jornalista e funcionário
5 Citação está na obra de Dau Bastos
17
público exemplar, que pintou em cores vivas seus contemporâneos e seu cotidiano, tornando-
se um ―gênio da raça‖.
No terceiro capítulo a Arte de fazer política no Brasil na Teoria do Medalhão
temos minha interpretação do conto resultado da mitocrítica realizada no Teoria do Medalhão
e da mitoanálise a que ela me levou.
Ler Machado de Assis foi um prazer, atividade dialógica e retroativa que envolveu
leitor e o texto lido. Um processo de explicação-compreensão que foi para além das análises
mutiladoras, miméticas e reducionistas. O encontro de realidades distintas aparentemente
separadas pelos conceitos de tempo e espaço da física newtoniana cria um movimento de mão
dupla, que reconstruiu texto lido e leitor, me fazendo compreender a noção de tempo em
espiral que, da mesma forma que passa, permanece criando uma relação de ir e vir entre
realidades históricas, sociais, políticas e culturais que se complementam e divergem recriando
e significando os sujeitos dessa interação.
Enfim, ou melhor, em princípio é fato que a cultura política brasileira tem sido
revirada de cabeça para baixo por cientistas, escritores eruditos, políticos, artistas, músicos
populares, etc. Minha tentativa aqui não é propor uma nova interpretação do Brasil, trazer
uma inédita e grandiosa descoberta sobre a obra machadiana ou apresentar a verdade
definitiva sobre a Teoria do Medalhão, mas tão somente pensar um caminho para melhor
compreender a arte de fazer política no Brasil, tendo como campo a literatura, lugar do nosso
imaginário político, reservatório de nossos mitos e de suas relações com a vida cotidiana, na
elegante e agradável companhia de Machado de Assis, suas ideias, sua vida e seu tempo.
18
CAPÍTULO I
UMA IDEIA DE CANÁRIO: RELIGANDO OS SABERES PARA TECER UMA
PESQUISA BIODEGRADÁVEL
Hoje, quando ele aí vai, de áloe e cardamomo
Na cabeça, com ar taful,
Dizem que ensandeceu, e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.
(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 579)
Morin diz que o grande desafio do século XXI é refazer a ligação dos
conhecimentos, outrora fragmentados pelo paradigma simplificador e afirma que o método
proposto para tal aventura não significa necessariamente uma metodologia. Pois, pesquisar é
como viver, sendo assim não existem receitas universais, certezas eternas, modos de fazer
padronizados que sejam suficientes para dar conta da multiplicidade da realidade caótica e
multidimensional da qual fazemos parte. Qualquer tentativa de padronização ou receitas passo
a passo de como fazer um objeto falar é por si mesma mutiladora e redutora, sendo assim
sujeito pesquisador e o objeto pesquisado, diante das incertezas e do acaso que regem a vida
devem estabelecer uma relação ―eu-eu‖ e não ―eu-coisa‖.
Esta pesquisa é um resultado de uma interpretação-análise qualitativa que tem
como campo principal fontes bibliográficas, sua tessitura se dá através de uma pesquisa
bibliográfica, tendo como fonte primária o conto ―Teoria do Medalhão‖. Em nossas fontes
secundárias temos o restante da obra de Machado de Assis, romances, crônicas,
correspondência, crítica literária, poesia e a fortuna crítica produzidas por leitores atentos,
desde seus contemporâneos como José Veríssimo e Silvio Romero, passando por Mario de
Andrade, Antonio CANDIDO, até chegar aos nossos machadianos contemporâneos, aqui as
principais referências são Raymundo Faoro, Roberto Schwarz, Jonh Gledson e Sidney
Chalhoub6. Essas leituras permitiram entender, como ficção e realidade dialogam na obra
6 Desde a década de 1970 vêm surgindo importantes obras que lançaram um novo olhar sobre a obra e o
pensamento machadiano. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio de Raymundo Faoro; Ao vencedor as
batatas de Roberto Schwarz; na década de 80 aparecem os trabalhos de Jonh Gledson. Nos anos 90 temos Um
mestre na periferia do capitalismo e Duas meninas também de Schwarz. No início do século ocorre um ―boom‖
de produções sobre a obra de Machado em virtude de seu centenário de morte, em 2008: temos Sidney Chalhoub
seu rico Machado de Assis: historiador; Por um novo Machado de Assis de Gledson, Alfredo Bosi, entre tantos
outros.
19
machadiana e nos preparou para identificar aí o movimento da história brasileira do século
XIX, bem como os movimentos das ideias, das éticas e das morais compartilhadas e deixadas
para trás, trocadas por novas.
Outro movimento da pesquisa foi em busca de consultar alguns intérpretes da
relação entre o Favor e o Contrato na formação da sociedade brasileira, estas leituras
ajudaram a apurar o olhar do pesquisador, sobre essa tensão o que permitiu melhor percebê-la
no texto machadiano. As nossas principais referências nesse campo são Sergio Buarque de
Holanda, Raymundo Faoro, Gilberto Freire e Darcy Ribeiro.
Também nos aventuramos pelos campos da sociologia da literatura e da arte, onde
temos como principais referências a obra de Antonio CANDIDO, as reflexões que Pierre
Bourdieu desenvolve em seu As regras da Arte e as lições dadas por Nobert Elias em seu
Mozart: Sociologia de um Gênio.
O presente capítulo visa, satisfazer uma necessidade inerente a qualquer pesquis,a
a de dizer como foi feita, gestada, criada, inventada, de explicitar por quais caminhos o
pesquisador se perdeu para se iludir na tentativa de desvendar, no emaranhado caótico da
realidade, algumas novas verdades biodegradáveis. ―[...] a concepção complexa que tentamos
elaborar pede e dá os meios da autocrítica. Ela pede num desenvolvimento natural o segundo
olhar epistemológico; ela traz verdades que são biodegradáveis, isto é, mortais, isto é, ao
mesmo tempo vivas.‖ (MORIN, 2007, p.48)
O ―como‖ de uma pesquisa é essencial na desconstrução das ilusões que poderiam
levar a pensar que o pesquisador é um gênio autônomo que escreve a partir do saber revelado,
da razão que tudo consegue explicar ou da inspiração das musas, que a pesquisa é um produto
autônomo exterior, estranho ao seu autor e sua vida envoltos no mundo material no qual é
produzido, visto tanto pelo vulgo como pelos arautos da ciência como saber sagrado.
20
1.1 O Paradigma da Complexidade
Fomos formados por uma maneira de pensar que surge a partir do século XVII
com o advento do empirismo e do racionalismo; ele diz que nosso pensamento é conduzido
exclusivamente pela Razão, esse jeito de pensar que promove a ―racionalização que encerra o
real num sistema de ideias coerente, mas parcial e unilateral, e que não sabe que uma parte do
real é irracionalizável, nem que a racionalidade tem por missão dialogar com o
irracionalizável‖. (MORIN, 2001, p.14) Nessa forma de pensar tudo segue uma certeza
matemática, regida por ―leis‖ naturais, como pensaram Descartes e Newton, que se interessam
apenas pelo dado empírico que está sempre fora de si, do lado do observável e classificável.
Essa é a ciência parodiada no conto ―O Alienista‖, publicado em A Estação entre
1881 e 1882 e republicado em Papéis Avulsos. Na anedota de Itajaí, Machado de Assis
antecipa em quase um século a crítica aos limites da Racionalidade Instrumental, ao
transformar a razão da loucura na loucura da razão. O fazer científico de Simão Bacamarte
não tem interesse pela subjetividade dos seus ―pacientes‖ ou pela sua própria, é uma mera
atividade de descrição e classificação orientadas pela racionalidade exacerbada do
investigador e por uma visão de mundo compartimentada; tal visão coloca a vida e o
conhecimento como um todo constituído por partes mecanizadas, determinadas, onde cada
parte pode ser conhecida separadamente do todo. Suas principais características são:
simplificação, disjunção, redução, unidimensionalização; eliminação dos mitos, da
interpretação que cada ser tem do mundo de forma única e original, do preconceito e senso
comum, como elementos reveladores de conhecimentos ―válidos‖ sobre a vida humana, não
tendo então como compreender a complexidade da vida humana.
O ―pensamento complexo é um pensamento que busca distinguir, mas não
separar, ao mesmo tempo em que busca reunir.‖ (MORIN In: MENDES, 2003, p.71). ―Trata-
se de um pensamento capaz de reunir, contextualizar, globalizar, mas ao mesmo tempo de
reconhecer o singular, o individual, o concreto.‖ (MORIN In: MENDES, 2003, p.77), e
acrescenta Jérôme Bindé ―o ato de compreender certo número, ou um grande número de
coisas diferentes.‖ (BINDÉ, In: MENDES, 2003,12).
Ainda sobre o pensamento complexo, Morin diz: A um primeiro olhar, a
complexidade é um tecido complexus (o que é tecido junto) de constituintes heterogêneas
21
inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo
momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações interações,
retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. Mas então a
complexidade se apresenta com traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da
desordem, da ambiguidade, da incerteza... (MORIN, 2007, p.13)
Os novos saberes científicos do último século nos mostraram que tanto no
microcosmo como no macrocosmo não existe só o uno; tudo é complexo, unitas multiplex, o
uno e múltiplo ao mesmo tempo. A complexidade possui alguns princípios-guias
interdependentes e complementares, e que nos servem como instrumento de navegação pelas
águas do Imaginário brasileiro do século XIX e suas ressacas machadianas.
Em princípio apresento a compreensão do que Morin chama de ―dialógica‖, para
começarmos a entender como é possível a partir da literatura falar sobre política:
Ela une dois princípios ou noções em face de se excluírem um ao outro, mas que são
indissociáveis em uma mesma realidade. [...] Sob as mais diversas formas, a
dialógica entre ordem, a desordem e organização, por via de inumeráveis inter-
retroações, está constantemente em ação nos mundos físico, biológico e humano. A
dialógica permite-nos aceitar racionalmente a associação de noções contraditórias
para conceber um mesmo fenômeno complexo. [...] somos seres separados e
autônomos, ao mesmo tempo em que fazemos parte de duas continuidades
separadas, a espécie e a sociedade. Quando consideramos a espécie ou a sociedade,
o indivíduo desaparece, quando consideramos o indivíduo, a espécie e a sociedade
desaparecem. O pensamento complexo aceita dialogicamente os dois termos, que
tendem a se excluir um do outro. (MORIN In: MENDES, 2003, p. 74)
Para Morin existe outro princípio, que foi decisivo no modo como aqui foi lido
Machado de Assis é a reintrodução do conhecido em todo o conhecimento. Ele diz que “da
percepção à teoria científica, todo o conhecimento é uma reconstrução-tradução por um
espírito-inteligência em uma cultura e em um tempo determinados.‖ Ele tanto nos serve para
pensarmos a relação entre o escritor Machado de Assis sua sociedade, obras e público, assim
como, para entendermos a tensão entre os mitos no imaginário de seu tempo, e se aplica para
pensarmos a interpretação aqui exposta sobre essa tensão no conto machadiano.
Seria dar um tiro no pé desse pesquisador afirmar que a tensão aqui estudada está
fotografada na obra machadiana. O conto de Machado de Assis é um enigma a ser decifrado,
um sistema muito bem elaborado, que para ser mais bem compreendido, necessita de uma
leitura sistêmica:
22
[...] que une o conhecimento das partes com o conhecimento do todo, conforme a
fórmula iniciada por Pascal, ―eu acredito ser impossível conhecer o todo sem
conhecer suas partes e de conhecer as partes sem conhecer o todo‖. A ideia
sistêmica, que se opõe à ideia reducionista, é a de que ―o todo é mais que a soma das
partes‖. [...] Acrescentamos que o todo é igualmente menos que a soma das partes
cujas qualidades são inibidas pela organização do conjunto. (MORIN, In: MENDES,
2003, p.73)
Como num holograma a leitura de Teoria do Medalhão nos proporciona uma
visão privilegiada do todo de uma construção de um padrão de sociabilidade, de um habitus,
de uma cultura política, tão brasileira como a mata branca da caatinga.
O princípio “hologramático”, inspirado no holograma, no qual cada ponto contém
quase que a totalidade de informações do objeto que ele representa, põe em
evidência esse paradoxo dos sistemas complexos, nos quais a parte não somente está
no todo, como o todo está inscrito na parte. Assim, cada célula é uma parte do todo –
o organismo global – mas o próprio todo está na parte: a totalidade do patrimônio
genético está presente em cada célula individual; a sociedade está presente em
cada indivíduo no que diz respeito ao todo, através da sua linguagem, da sua
cultura e de suas normas. [Grifos Meus] (MORIN In: MENDES, 2003, p. 72)
Retroativa e recorrentemente, o objeto indaga ao pesquisador e põe em dúvida a
validade de seu próprio conhecimento.
O princípio do ciclo retroativo, introduzido por Norbert Wiener, permite o
conhecimento dos processos auto-reguladores. Ele rompe com o princípio da
causalidade linear: a causa age sobre o efeito e o efeito age sobre a causa, [...] O
ciclo de retroação (ou feedback) permite, sob sua forma negativa, reduzir o erro e,
assim, estabilizar um sistema. Sob sua forma positiva, o feedback é um mecanismo
amplificador [...] Inflacionadoras ou estabilizadoras, as retroações são verificadas
em grande quantidade nos fenômenos econômicos, sociais, políticos ou
psicológicos. (MORIN In: MENDES, 2003, p. 72-73)
Essas ideias mediaram nossas leituras e na pesquisa tentamos desenvolver e
adotar o que Morin chamou de auto-ecoorganização7 (autonomia-dependência):
O princípio da auto-ecoorganização vale, evidentemente, de maneira específica para
os humanos, que desenvolvem sua autonomia dependentes da sua cultura, e para as
sociedades que dependem de um ambiente geológico. (MORIN In: MENDES, 2003,
p. 74)
7 Os seres vivos são seres auto-organizadores que se autoproduzem sem cessar e por isso gastam a energia para
salvaguardar sua autonomia. Como eles têm necessidade de retirar a energia, a informação e organização do seu
ambiente, sua autonomia é inseparável dessa dependência e, portanto, é necessário concebê-los como sendo
auto-ecoorganizadores. (MORIN, In: MENDES 2003, p.73)
23
1.2 Imaginário, Vida Social e Literatura
A pergunta que mais me fizeram nesses dois anos de Mestrado se referia a questão
de ser ou não pertinente que essa pesquisa estivesse sendo desenvolvida no programa que
cursava – Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade – MAPPS/UECE. Uma vez
em reunião do colegiado certo núcleo hard chegou a defender que a literatura não teria lugar
nas discussões sobre gestão, planejamento e avaliação de políticas públicas e que meu
trabalho era um estranho no ninho.
Outras vezes ouvi as pessoas dizendo, mas seu trabalho é sobre literatura? Quando
alguém não perguntava: Machado de Assis escrevia sobre política? E até me acusaram de
cometer o pecado mortal de tentar dialogar com Machado a partir das teorias que aprendi em
sala aula, e para não ser leviano não posso deixar de afirmar quanto a velha sociologia e a
velha ciência política me foram úteis no esforço de tentar pensar um texto artístico como meio
para pensar a política.
O objetivo que fundamenta a presente seção é responder à questão que acima
mencionei e na tentativa de explicar e explicitar melhor nossos argumentos sobre a
possibilidade de entender a política brasileira a partir da literatura. Assim, apresento as
seguintes questões que ao longo da presente seção vão ser respondidas: Qual a relação entre a
literatura e a vida social e política? Qual a relação entre o imaginário e a vida social e
política? Qual a relação entre Literatura e Imaginário?
A literatura é uma forma humana de expressão que desde muito antes da invenção
da escrita nos conta as histórias dos homens e do seu tempo, que foi recriada com advento da
escrita, e revolucionada após a invenção da imprensa. É a arte de contar histórias em prosa e
verso, de dominar essa tecnologia humana ainda hoje em moda: a escrita. A definição sobre o
que é a arte e sobre o que é a literatura, e as definições do que seria ou não arte ou literatura,
mudaram tanto ao longo do tempo como mudaram os homens que as inventavam. Mas, é
possível, sem querer impor verdades, demonstrar quais as ideias que ajudaram à construção
do que entendemos por arte e literatura neste trabalho.
A peculiaridade das fantasias inovadoras na forma de obras de arte é que são
fantasias que podem ser despertadas por materiais acessíveis a muitas pessoas. Em
24
uma palavra, são fantasias desprivatizadas. Parece simples, mas toda a dificuldade
da criação artística se revela quando alguém tenta cruzar esta ponte – a ponte da
desprivatização. Também pode ser chamada de ponte de sublimação. Para dar tal
passo, as pessoas precisam ser capazes de subordinar o poder da fantasia expresso
em seus sonhos ou devaneios às regularidades intrínsecas do material, de modo que
seus produtos estejam livres de todos os resíduos da experiência egóica. Em outras
palavras, além de sua relevância para o eu, elas devem dar a suas fantasias
relevância para o tu, o ele, o ela, o vós e o eles. É para satisfazer tal exigência que as
fantasias estão subordinadas a um material, seja de pedra, de cores, de palavras, de
sons ou qualquer outro. (Elias, 1995, p. 61)
Lembremos que em meados do século XX o crítico e sociólogo brasileiro
Antonio Candido nos dizia sobre o seu entendimento a respeito do que seria a arte, portanto,
também a literatura:
[...] é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal,
que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela
se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um
elemento de manipulação técnica indispensável à sua configuração, e implicando
uma atitude de gratuidade. Gratuidade tanto do criador, no momento de conceber e
executar, quanto do receptor, no momento de sentir e apreciar. [...] (CANDIDO,
1980, p. 53)
O homem não faz literatura simplesmente por que ele quer, mas por precisar, por
necessidade de comunicar aos outros, suas representações do mundo, das ideias, dos mitos e
deles mesmos. O próprio CANDIDO diz a respeito:
[...] as manifestações artísticas são coextensivas à própria vida social, não havendo
sociedade que não as manifeste como elemento necessário à sua sobrevivência, [...]
são uma das formas de atuação sobre o mundo e de equilíbrio coletivo e individual.
São portanto socialmente necessárias, traduzindo impulsos e necessidades de
expressão, de comunicação e de integração que não é possível reduzir a impulsos
marginais de natureza biológica. [...] O seu caráter mais peculiar, do ponto de vista
sociológico, com importantes consequências no terreno estético, consiste na
possibilidade que apresentam, mais que outros setores da cultura, de realização
individual. Isto permite ao mesmo tempo, uma ampla margem criadora e a
possibilidade de incorporá-la ao patrimônio comum, fazendo do artista um intérprete
de todos, através justamente do que tem de mais seu. [...](CANDIDO, 1980, p.70)
A obra de arte é uma generosidade em forma de exibição do artista, através dela
ele nos oferece caminhos para compreensão de suas ideias e de seu mundo. Mas, a obra não é
fixa, estéril, ela muda conforme mudam os leitores, surgem outras obras e outras leituras, o
leitor reconstrói a obra e a obra reconstrói o leitor. A passagem abaixo ajuda a explicar meu
argumento:
25
A literatura é pois um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os
leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a,
deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é
passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que
atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de
circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo.
(CANDIDO, 1980, p. 74)
Tempo que vai para além do tempo de uma vida humana, algumas obras de arte
atravessam as barreiras de tempo e espaço e ressoam em lugares e pessoas que o autor jamais
imaginou que pudessem existir.
[...] Uma das características mais significativas dos produtos humanos que
chamamos de ―obra de arte‖ é o fato de serem relativamente autônomos em relação
a seu produtor ou à sociedade do seu produtor. Muitas vezes uma obra de arte só é
percebida como obra-prima quando começa a tocar os sentimentos de pessoas de
uma geração posterior à do produtor. Que qualidades de uma obra, e que aspectos
estruturais da existência social e da sociedade de seu criador, fazem com que este
seja tido como ―grande‖ por gerações posteriores – algumas vezes a despeito da falta
de ressonância entre seus contemporâneos? É uma questão em aberto, e que hoje em
dia muitas vezes ainda se disfarça de mistério insolúvel. (ELIAS, 1995, p. 57)
Para além do seu valor estético, ―uma das funções da obra de arte é ser uma
maneira de a sociedade se exibir, como grupo e como uma série de indivíduos dentro do
grupo. [...]‖ (ELIAS, 1995, p. 49) Como intérprete de todos o artista tira da realidade
cotidiana, assim como o historiador, o sociólogo ou o antropólogo, suas histórias e
personagens, assim sendo, elas são influenciadas pelo grupo e sua cultura, ao mesmo tempo
em que influencia e interfere no grupo.
[...] a arte é social: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em
graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático,
modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento
dos valores sociais. Isto decorre da própria natureza da obra e independe do grau de
consciência que possam ter a respeito os artistas e os receptores de arte.
(CANDIDO, 1980, 20)
[...] não convém separar a repercussão da obra da sua feitura, pois, sociologicamente
ao menos, ela só está acabada no momento em que repercute e atua, por que,
sociologicamente, a arte é um sistema simbólico de comunicação inter-humana, e
como tal interessa ao sociólogo. Ora, todo processo de comunicação pressupõe um
comunicante, no caso o artista; um comunicado, ou seja a obra; um comunicando,
que é o público a que se dirige; graças a isso define-se o quarto elemento do
processo, isto é, o seu efeito. (CANDIDO, 1980, p. 21)
26
Vejamos o que disse Faoro a respeito:
A corte imaginária das personagens não se compõe de outro tecido, apesar de
expressas no papel, que os da legião de homens que frequentam as ruas. Todos são
filhos de igual teatro, comprometidos na mesma existência, quer a suscitada pelo
historiador, quer a evocada pelo romancista. Quem os veste, arrancando-os do
anonimato e do caos, será o olho organizador, classificador, o olho do biógrafo ou
do ficcionista. No fundo, a situação histórica e social lhes dá a densidade, retratando
as idiossincrasias de grupo: o homem que vê não está isolado, mas imerso no grupo,
performado pela conduta e pelo pensamento dos outros. O boneco de tinta cumpre
um papel social como o boneco de carne e sangue, representando ambos suas
frustrações, na fantasmagoria de um mundo criado coletivamente. (FAORO, 2001,
p. 526)
Mas existe de fato algum valor real nessa tentativa de pensar a obra de arte como
portadora de informações culturais, sociais, culturais e política? Quem seleciona o que vai ser
mostrado e escondido? A passagem é longa mas é útil e esclarecedora.
[...] O valor cultural relevante está presente na configuração seletiva do
historiador como na obra literária. No mundo real e no mundo imaginário, o
mundo supostamente real do historiador e do espectador, há estruturas homólogas,
capazes de projetar a esfera ideal, pela sua coerência e unidade, maior claridade na
própria elaboração da consciência coletiva. Coerência e unidade à realidade por via
dos tipos ideais, que simplificam, hipertrofiam e deformam os dados empíricos. A
verdade de um e a verdade do outro, o campo do imaginário e o real, encontram-se
na verdade total, que indica missões aos homens – personagens de papel ou
personagens vivas – na busca da plenitude cultural. Desta sorte, realizam-se no
campo poético, com maior densidade, funções sociais, que, com acento criador, são
as mesmas do mundo real. A visão de um momento cultural, derivada da apreciação
de valores, é sempre objetiva, mas não do objetivismo válido para todos,
cientificamente demonstrável por meio de leis. O renascimento, para um
historiador, que o desvenda com o subsídio da literatura e das artes, se forma
de muitos caminhos e direções, que, percorridos por outro, dariam lugar a
painel diverso, de diferente conteúdo. Risco inerente às objetividades possíveis e
várias, o das visões múltiplas, que assume quem, historiador ou romancistas, se
liberta das convenções artificiais. A lâmpada, que deforma a imagem no espelho,
arde em todos os altares. Negá-la seria esconder os pressupostos das ciências
sociais. Esforço inútil e estéril de escamoteamento, falsa arte que esfalfou os
positivistas e naturalistas, nem só do século passado, senão os de agora, montados
em outros dogmatismos. [...] O abandono da fórmula que reduz a criação artística ao
influxo da realidade exterior, fórmula revitalizada com os pontos de referência e
imputação da segunda sobre a primeira, não leva à identificação pura e simples de
uma à outra. O mundo cultural se articula numa ordenação valorativa, na arte e
na realidade, mas com intensidade diferente. A arte deforma a realidade, na
mimésis dialética, não raro intencionalmente, por obra de sua estrutura específica.
Na criação artística configura-se uma categoria própria de história, recolhida da
imagem quebrada e reconstruída, mediante simetria e desenho próprios. O processo
deformativo – na realidade, processo de transmutação -, superando as velhas
distinções entre forma e conteúdo, abrange o estilo e a própria realidade social.
[Grifos Meus] Meus (FAORO, 2001, p. 528-529)
27
Em outra perspectiva, Durand vai pensar a literatura como meio de acesso ao
imaginário, como o lugar do Mito: ―As letras e as artes de todos os tempos haviam sido o
refúgio tolerado do imaginário. [...]‖ (DURAND, 1996, p.232), essa é a perspectiva que
adotaremos daqui em diante.
O mito seria, de algum modo o ―modelo‖ matricial de toda a narrativa, estruturado
pelos esquemas e arquétipos fundamentais psique do sapiens sapiens, a nossa. É,
portanto, necessário, procurar qual (ou quais) o mito mais ou menos explícito (ou
latente) que anima a expressão de uma ‗linguagem‘ segunda, não mítica. Porquê?
Porque uma obra, um autor, uma época ou, pelo menos, um ‗momento‘ de uma
época – está ‗obcecada‘ (Ch. Mauron) de forma explícita ou implícita por um (ou
mais que um) mito que dá conta de modo paradigmático, das suas aspirações, dos
seus desejos, dos seus receios e dos seus terrores. (DURAND, 1996, p.246)
O autor de Campos do Imaginário aponta para uma ―filosofia do homem‖ que não
é pautada ―nem no racionalismo reflexivo alienante por defeito, nem do irracionalismo
alienado de toda a hierarquia inteligível, tal como aquele que os filósofos da existência
reivindicam.‖ (DURAND, 1996, p.57) e pensa a partir de ―[...] um humanismo generalizado e
não como um humanismo egoisticamente regionalizado pelo solipsismo reflexivo dos
racionalistas ou pelo desamparo pré-reflexivo dos existencialistas. (DURAND, 1996, p. 57)
Em sua reflexão epistemológica ele nos propõe que as ciências humanas cada vez mais se
afastem da objetividade e se convertam de vez à subjetividade.
[...] É para uma objectivação do sujeito humano que contribuem a psicopatologia, a
etnologia, a sociologia e a estética. Ou, melhor dizendo, é para uma subjectivação
generalizada e não para uma objectividade limitada e limitante que contribuem as
disciplinas antropológicas. (DURAND, 1996, p.60)
Durand propõe três postulados desenvolvidos por Dumézil e adotados por ele para
melhor explicar essas relações: ―toda intenção histórica de uma sociedade se converte em
mito; toda sociedade repousa sobre um alicerce mítico diversificado; e todo o mito é, ele
próprio, um recital de mitemas dilemáticos‖ (DURAND, 1996, p.126).
Qualquer análise categorial do irracional tem, de algum modo, o imaginário como
material, visto que as duas extremidades do trajecto antropológico mergulham nas
entradas e nas saídas infrapsíquicas que são o biológico e o social. (DURAND,
1996, p.65)
28
[...] os homens se podem compreender mutuamente através do tempo da história e
da distância das civilizações, se os mitos, as literaturas e, inclusivamente os poemas
podem ser universalmente traduzidos, é porque toda a espécie homo sapiens possui
um patrimônio inalienável e fraterno que constitui o império do imaginário
(DURAND, 1996, p. 68)
Ele nos lembra que ―o homem passa metade da sua vida a dormir... e a outra a
evocar imagens.‖ (DURAND, 1996, p. 56) assim temos que nossa área de investigação já não
é o ―dos dados imediatos da consciência, mas a dos dados imediatos do inconsciente
antropológico.‖ (DURAND, 1996, p. 56), abaixo nos esclarece sobre o objeto da antropologia
que ele desenvolve:
[...] o material da antropologia, o imaginário para o qual convergem os sectores mais
díspares da investigação antropológica, escapa ao arbitrário do signo formal, sendo
sempre simbólico, isto é, semântico e não semiológico. O objecto fundamental da
antropologia, como o já pressentia Durkheim, é realmente o símbolo e o projecto de
uma taxinomia do irracional é a realizado quando nos apercebemos de que é a
compreensão simbólica que dita os traços formais – estruturais – da explicação
taxinômica. (DURAND, 1996, p.68)
O imaginário é campo fértil àqueles que se dedicam à complexidade das relações
humanas numa dada cultura, em um dado tempo e lugar, ―[...] essência do espírito, à medida
que o ato de criação (tanto artístico, como o de tornar algo significativo), [...] impulso oriundo
do ser (individual ou coletivo) completo, [...] raiz de tudo que, para o homem existe.‖
(PITTA, 2005, p. 15) Lugar do entre saberes, se expressa dentro de algumas estruturas
universais, a partir da dominante postural, digestiva e copulativa, e tem duas entradas: o social
e o biológico, constituindo uma pulsão entre a subjetividade e o mundo da realidade objetiva
concreta, capacidade humana de dar significados, ao mundo, as coisas, a nós mesmos, ao que
pensamos e ao que fazemos e é dividido em um regime diurno e um regime noturno da
imagem, formando ―[...] um verdadeiro fantástico transcendente”. (DURAND, 1996, p.65).
Museu, reserva de museu, do conjunto de todas as imagens passadas e possíveis
produzidas pelo homo sapiens sapiens. O que implica um pluralismo das imagens e
uma estrutura sistêmica do conjunto dessas imagens infinitamente dispares, se não
mesmo divergentes... (DURAND, 1996, p.231)
Outra categoria fundamental para Durand é o que ele chama de trajeto
antropológico:
29
[...] Denominamos trajecto antropológico a descrição indiferente, sociópeta ou
sociófuga – isto é, partindo quer do sujeito individual quer do sujeito social – da
actividade humana. Porque a compreensão das categorias não escapa, quando passa
ao enunciado didáctíco, à lei da explicação (explicare), à lei do discurso que tem um
fio, um começo e um fim, e cuja lógica linear perturba e falseia a globalidade do
objecto humano analisado. [...] A ‗dominante‘ não se encontra na premissa do
discurso; é a totalização das categorias arquétipas que torna um regime dominante e
não uma ordem linear pseudodedutiva. As categorias são realia, isto é, escapam à
ordem sintáctica que as enuncia. Dito por outras palavras, não é o sentido descritivo
do trajecto antropológico que define as categorias, mas sim cada uma das categorias
que suporta trajectos característicos. É a combinatória global que constitui as realia
e não a univocidade discursiva da sua descrição explicativa. O conceito de trajecto
antropológico é a afirmação simultânea da reversibilidade da globalidade do
fenômeno humano e da obrigação lógica de começar a descrição por uma ponta
categorial do quadro. À maneira de um clínico que comenta um caso, ao
começar, por exemplo, pelo sintoma febril, embora saiba bem que não é a febre
que constitui a doença específica que irá estudar, mas que a doença, na sua
realidade, é um conjunto que escapa à ordem do formulário descritivo. ([Grifos
Meus] Meus) (DURAND, 1996, p. 63)
Mas o que são os Mitos? Do que eles são feitos? Os mitos são sistemas dinâmicos
de símbolos, arquétipos e schémes, que tendem a se compor em relatos e narrativas que a cada
vez que são vividas, contadas e ouvidas, têm seus sentidos ressignificados, como uma música,
possui refrões, os ―mitemas‖, aquilo que se repete em várias narrativas.
[...] Sabemos, em primeiro lugar, que o profundo e o mítico coincidem. O mítico
seria como o inconsciente onde se formulam e tentam resolver-se em imagens as
grandes questões às quais o consciente nunca consegue dar respostas lógicas sem
antinomias, as grandes questões da condição humana [...] (DURAND, 1996,p. 133)
[,,,] Nunca um mito se apresenta ornamentado com todas as suas ‗lições‘ como é o
caso de uns artigos de um Dicionário ou de um Léxico! O corolário desta
‗especificação‘ de cada lição, é que não há nunca um mito-modelo de origem. O
mito é – como diz Thomas Mann – o ‗poço sem fundo do passado‘. Cada época,
cada momento cultural apenas guarda o grupo de lições que lhe convém.
(DURAND, 1996, p.255)
O mito é feito de a) símbolos, b) schémes ou esquemas e c) Arquétipos. Aqui
aceitamos a definição que Pitta, baseada no pensamento que Durand faz de símbolo:
É todo signo concreto evocando, por uma relação natural, algo ausente ou
impossível de ser percebido. É uma representação que faz ―aparecer‖ um sentido
secreto. Os símbolos são visíveis nos rituais, nos mitos, na literatura, nas artes
plásticas, etc.
30
A definição de schémes ou esquemas e o seu lugar na construção da obra humana
é o ponto fundamental para entendermos o pensamento de Durand e suas diferenças em face
das outras correntes que estudam o irracional na área da psicanálise.
Porém, ao colocar o esquema na raiz da figuração simbólica, separo-me tanto da
teoria jungiana, que coloca em último lugar um reservatório de arquétipos
elaborados num inconsciente coletivo, como das reduções da figura simbólica, tanto
freudianas (redução ao sintoma de uma única libido obcecada pelo buraco, o
digestivo e o genital) como lacanianas (redução desta linguagem pré-linguistica às
sintaxes e aos jogos de palavras de uma língua natural). Como Mauss, acredito
firmemente que a primeira ‗linguagem‘, o ‗verbo‘, é a expressão corporal. [...] A
mímica, a dança, o gesto – aquilo que Hurssel apelida de ‗pré-reflexivo‘ – são
anteriores à palavra e, com mais razão ainda, a escrita. (DURAND, 1996, p.75-76)
Assim ele define esquema:
o ‗esquema‘ – que, metaforicamente denominei ‗verbal‘, uma vez que nas línguas
naturais o verbo é o que exprime a ação -, o mais imediato para a representação
figurativa, que se eleva directamente – graças as conexões reflexas no ‗grande
cérebro‘ humano – no inconsciente reflexo do corpo vivo. Os esquemas são o capital
referencial de todos os gestos possíveis da espécie homo sapiens. [...].(DURAND,
1996, p.75-76)
Sua definição de arquétipos também é bem diferente de seu sentido em Jung. As
passagens abaixo ajudam as compreender o sentido de arquétipos que Durand usa em sua
teoria.
[...] as categorias do irracional são dotadas das qualidades de arquétipo, não
atribuindo a este termo o seu sentido jungiano, isto é, insistindo no carácter
cronológico do radical ‗arque‘, mas simplesmente como o Sócrates do Filebo, o
sentido dos princípios, capazes de se comporem em termos cumulativos. As
categorias não são exclusivas, elas apelam, pelo contrário, a uma combinatória, de
um factor mais ou menos capaz de se integrar, se não numa equação, pelo menos
num conjunto de transformação. [...] (DURAND, 1996, p.62)
Os famosos ‗arquétipos‘ não são senão segundos. E essas ‗imagens primeiras e
universais à espécie‘ ainda, se dividem [...], em ‗epitéticas‘ e em ‗substantivas‘,
consoante se trata de qualidades sensíveis ou perceptíveis [...] ou então objectos
apreendidos e denominados substantivamente; [...] Os arquétipos são a via da
diferenciação preceptiva e da distanciação exógena. [...] particularizam-se ainda sob
a influência qualificadora de incidentes puramente exógenos: o clima, a tecnologia, a
área geográfica, a fauna, a situação cultural, etc. É o local do aparelho simbólico a
que se pode chamar ‗símbolo‘ stricto sensu. (DURAND, 1996, p. 76)
O mito é caracterizado pela redundância, pela repetição, pela metábole.
31
[...] A redundância que caracteriza o mito, a ‗metábole‘, está bem inserida no
domínio da linguagem musical – ela é o ponto de referência quer de um certo
‗contínuo‘ (canção popular, chacóina...) por detrás das variações, quer de um certo
‗tema‘ através dos ‗desenvolvimentos‘ (forma sonata, minuete, rondo, refrão,
leitmotiv, etc.), quer ainda de um certo ‗modo‘ (a partir de J. S. Bach, o maior e o
menor) que colora o conjunto da peça. Modo musical, tema e contínuo ‗qualificam‘
o efeito produzido por uma peça musical, qualificam a sua compreensão.
(DURAND, 1996, p. 250)
Na integração semântica destes dados, o mito vai utilizar a metalinguagem dos
símbolos. O ritmo, para si, vai ser redundâncias simbólicas de preferência a
assonância fonética ou repetição métrica. Através de aproximações sucessivas, o
mito tende a criar uma espécie de persuasão iluminante, uma espécie de intuição.
[...] intuição que nunca é satisfeita pela expressão literária, expressão que ela desfaz
e refaz sem cessar a fim de que a imagem expulse a imagem em redundâncias
‗sincrônicas‘ cada vez mais adequadas. O mito vive dessa progressão semântica da
convicção e da iluminação [...] (DURAND, 1996, p.44-45)
As artes são o lugar de refúgio dos arquétipos, mitos e símbolos, depois que a
racionalização tentou bani-los para as profundezas do esquecimento. Esse pequeno estudo é
um exercício de religação da literatura aos estudos sobre cultura política brasileira, pois, para
além das leis, da burocracia e da luta pelo poder, a política é uma invenção cotidiana ao
mesmo tempo objetiva e subjetiva, simbólica. Acolhido pelas musas, o imaginário conservou-
se nas literaturas, museu privilegiado aberto àqueles que desejam compreender os homens e
sua ação, a partir de seus devaneios, incertezas e desejos.
O ―eu‖ de uma sociedade, é a sua encenação. O teatro, o cinema, a literatura, e
particularmente esse ―teatro de bolso‖ que é o romanesco, são a mostra por
excelência de uma sociedade. (DURAND, 1996, p.141)
Mas essa literatura necessita e sempre necessitará de novas interpretações e o
caminho proposto para essa interpretação é a mitocrítica, caminho de acesso ao sermo
mythicus da política brasileira, uma melhor forma de ouvir nossos deuses e heróis do nosso
Olimpo político:
Todo o pensamento humano que se ‗formula‘, ‗desenrola-se‘ no modo do sermo
mythicus (é nomeadamente, como é óbvio, qualquer narrativa ‗literaria‘, da
consciente ficção romanesca ou poética até ao mitologema inconsciente da narrativa
‗histórica‘, ou inclusivamente até aos preocessos do ‗raciocínio‘ científico [...]). É,
então, que a mitologia desce do Olimpo e, ao generalizar-se, ao banalizar-se, se
torna ‗mitocrítica‘.( DURAND, 1996, p. 154)
32
A ―mitodologia‖ proposta leva a uma leitura transdiciplinar e será o instrumental
usado na pesquisa, onde a subjetivação é a meta primeira. A mitocrítica e a mitoanálise são
meios para acessarmos esses dados, para usar uma metáfora de nosso tempo. A mitocrítica é a
―caça ao mito‖, nessa busca identificamos quais são os mitos de um tempo e como eles
dialogam entre si. Fazer mitoanálise é buscar como as pessoas de um tempo, uma sociedade,
dialogavam com seus mitos, é saber como eles as influenciavam, saindo da obra e caindo na
sociedade e em outro sentido indo da sociedade para a obra, pois, não há mitocritica, sem
mitoanálise; uma leva à outra, numa relação dialógica.
A mitocrítica e mitoanálise são os instrumentais da mitodologia, uma proposta de
interpretação transdisciplinar, ampla, complexa que ensina como se deve proceder no
espinhoso terreno do imaginário.
A primeira mais estática, diz respeito, à delimitação dos nossos terrenos de caça e ao
espinhoso problema do levantamento dos vestígios, dos indícios da presença da caça
mítica. A segunda, mais dinâmica, será consagrada aos movimentos do mito: como é
que um mito se modifica, como é que a modificação se processa?‖(DURAND, 1996,
p. 246)
Um velho conselho me ajudará a concluir o tópico e o capítulo, ele nos
proporciona entender que compreender uma obra é juntar:
texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho
ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela
convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como
momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no
caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento
que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto,
interno.‖ (CANDIDO, 1980, p. 04)
Para nós o texto é o de Machado de Assis, o contexto é o Mito e o externo não é
apenas o social, mas o imaginário que o envolve e que é ao mesmo tempo externo e interno à
obra e seu processo de criação e recepção.
33
1.3 A Mosca e o Canário
O jovem Machado de Assis, no livro de poesias Ocidentais, nos ensina com o
poema a Mosca Azul, que corremos um enorme risco em perder a beleza das coisas se ao
invés de nos entretermos com o fértil exercício de contemplá-las, senti-las e interpretá-las, nos
dermos à estéril tarefa de explicá-las, reduzi-las, dissecá-las. A sugestão do poema foi da
professora Danielle Rocha Pitta numa breve conversa que tivemos sobre Machado de Assis
durante o Ciclo do Imaginário por ela organizado na cidade do Recife em 2011. A aluna de
Durand afirma que a atitude diante do imaginário seja a oposta tomada pelo personagem do
poema.
No poema um homem encontra-se por acaso com uma Mosca Azul, e se encanta
com sua beleza, e logo se põe a tentar descobrir seus segredos e mistério; de forma tão
incisiva e cientifica ao ponto de a mosca morrer e perder o encanto que antes o atraia,
deixando-o louco e inconformado. Vejamos as estrofes finais do poema:
A Mosca Azul
[...]
Então ele, estendendo a mão calosa e tosca,
Afeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso a examinar.
Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.
Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
Dissecar a sua ilusão.
Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil
Sucumbiu; e com isso esvaiu-se lhe aquela
Visão fantástica e sutil. (ASSIS, 2008, Vol. III, p.578-579)
Na disposição espacial não linear dos versos no papel, o poeta sugere o vôo da
mosca e ao mesmo tempo as idas e vindas do entendimento humano que na ilusão da não
ilusão, na ânsia de descobrir, de revelar e explicar acaba por perder o prazer da fantasia. O
poema mereceria uma seção inteira e pelo avançar dos prazos, que não permitem demorarmo-
nos em poesias, deixo o veneno pingado na boca do leitor, e mudarei de gênero e de forma
34
para continuar falando do mesmo tema que reaparece em outra obra de Machado de Assis, no
conto Ideias de Canário, publicado pela primeira vez na Gazeta de Notícias no dia 15 de
novembro de 1895, e republicado em 1899 na coletânea Páginas Recolhidas.
É uma anedota sobre um encontro entre Macedo, um homem, rico e dado à
ornitologia, sem parentes próximos, que vivia em uma chácara confortável, na companhia de
dois criados, e um esperto canário tagarela. O narrador afirma que ouvira a história do
próprio ornitólogo. O homem lhe disse que por obra do acaso, após safar-se de um
atropelamento por um tílburi, entrara numa velha loja de Belchior, também chamado de casa
de Belchior, hoje chamamos de brechó.
A loja era escura, atulhada das cousas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas,
enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem
própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem
tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de
palha e de pêlo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado,
um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dous
cabides, um bodoque, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado
Sisson, um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso
e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da
porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas.
[Grifos Meus] (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 567)
O narrador trata a desordem com desdém, o escritor faz arte com ela e enaltece
sua organização/desorganização. À banalidade sempre foi atribuída o não científico pelo
próprio paradigma científico moderno, excluindo, da construção do conhecimento humano
sobre ele mesmo, o senso comum, o cotidiano, o detalhe. Uma nova lida com mais calma na
citação acima nos dará a possibilidade de ver em vivas cores no meio desse cemitério do
consumismo desmedido do Império, nosso gosto pelo que é estrangeiro, o carnaval, a devoção
ao mercado, ao luxo, tentativas de refinamento em busca da admiração pública. O mundo das
coisas construído pelos homens para enfrentar a morte, reduzido às quinquilharias de um
homem tão reduzido à coisa como as próprias coisas que vendia. Atentemos para o desprezo
como o narrador trata o dono da loja:
Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro
esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele
nenhuma história, como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe
sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas. [Grifos Meus]
(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 567)
35
Mas voltemos ao Macedo e dizia ele:
Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter
o mesmo aspecto da desolação geral, faltava-lhe estar vazia. Não estava vazia.
Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele
amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. [...] Logo que olhei para
ele, entrou a saltar mais abaixo e acima de poleiro em poleiro, como se quisesse
dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa
imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não
pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois. [Grifos Meus] Meus
(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 567-568)
Macedo pôs-se a murmurar com azedume questionamentos sobre o tipo de
pessoas que são os seus concidadãos, que tinham coragem de abandonar uma indefesa
criatura, como aquela, em troca de algum prazer efêmero. Era o assombro da elite imperial
com a nova ordem que se construía, embora timidamente, eram os novos tempos do mercado,
da competição, do contrato. Por outro lado, temos um homem que vivia num país
escravocrata, ele mesmo possuidor de escravos, se indignando com a maldade feita ao canário
e naturalizando a escravidão.
- Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele
por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse
companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para
ir jogar uma quiniela? (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 568)
Para espanto do homem, o canário ouviu e entendeu o que dissera. E trilou uma
advertência que o homem também entendeu, chamou-lhe de lunático, que nunca houvera um
dono ou um menino, e que o homem sentado ali era apenas seu criado, pois o mundo era
propriedade do canário. Espantado com a eloquência e a clareza das ideias do pequeno
pássaro, perguntou-lhe o que era o mundo. E assim respondeu canário:
— O mundo, redarguiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de
belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um
prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo
é ilusão e mentira. [Grifos Meus] (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 568)
Para o canário, o mundo era o que ele via, cego e ao mesmo tempo iludido de que
o que sabia era a verdade. Mas quem seria o maior iludido Macedo ou o Canário? Após breve
negociação, Macedo acabou por levar o canário, para estudá-lo.
36
Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e
arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa,
donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul.
Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até
poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por
alfabetar a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações com a música,
os sentimentos estéticos do bicho, as suas ideias e reminiscências. Feita essa análise
filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem
deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha
conhecimento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as
notas, ele esperando, saltando, trilando. [Grifos Meus] (ASSIS, 2008, Vol. II, p.
569)
O trecho acima poderia ter sido dito por qualquer cientista-medalhão da obra
machadiana. Mostra o uso da terminologia científica da época, com o intuito de atingir a
nomeada, a glória. Atentemos para atitude ―eu-coisa‖, própria da ciência cartesiana, entre o
pesquisador e o canário. Vejamos que a gaiola não é mais quadrada e acanhada é agora
circular; pomposa e rica, gaiola da ciência, e não mais a quadrada gaiola do senso comum.
Agora, diante do sujeito todo poderoso, o objeto poderia ser metodologicamente dissecado,
mutilado, decomposto em mínimas partes e recomposto como um todo. Mas o objeto
surpreendeu o observador:
—Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite,
passeava à toa, sentia-me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler,
acrescentar, emendar. Retifiquei mais de uma observação, — ou por havê-la
entendido mal, ou porque ele não a tivesse expresso claramente. A definição do
mundo foi uma delas. Três semanas depois da entrada do canário em minha casa,
pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.
— O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio,
flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o
canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde
mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira. Também a linguagem sofreu
algumas retificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que
eram temerárias, Não podia ainda escrever a memória que havia de mandar ao
Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às universidades alemãs, não porque
faltasse matéria, mas para acumular primeiro todas as observações e ratificá-
las. [Grifos Meus] (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 569)
Aqui podemos perceber a mudança de opinião do canário devido à sua mudança
de vida. Muda o mundo, mudam-se as certezas. O exaustivo trabalho adoeceu o cientista que
teve que abandonar sua pesquisa por uns dias. Ao retornar da enfermidade, a gaiola estava
vazia.
37
Nos últimos dias, não saía de casa, não respondia a cartas, não quis saber de amigos
nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados tinha a seu cargo
limpar a gaiola e por-lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se
soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico. Também o
serviço era o mais sumário do mundo; o criado não era amador de pássaros.
[Grifos Meus] (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 569)
O cientista obcecado por achar uma verdade para conseguir enviar para Europa e
assim conseguir a glória e o prestígio público, não se deu conta das outras interações que se
davam entre o canário e os outros sujeitos. O escravo, ao invés de prender o canário para
conhecê-lo, acabou talvez por libertá-lo para que este pudesse conhecer o mundo sozinho e
ser livre, coisa que o escravo também não podia fazer por si mesmo.
Num derradeiro encontro entre objeto e sujeito, pois, ao contrário da Mosca Azul o
objeto consegue escapar do sujeito, e ser feliz! Macedo, em passeio em uma chácara vizinha a
sua em companhia de um amigo, encontrou o passarinho.
— Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?
Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe
disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doido; mas que me importavam
cuidados de amigos?
Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele
nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular. . .
— Que jardim? que repuxo?
— O mundo, meu querido.
— Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo,
concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.
Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora
uma loja de belchior. . . (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 570)
Num desfecho surpreendente Machado põe a dúvida metódica na boca do canário
que apenas aceitava o mundo e as questões do pesquisador sem questioná-los e deixa o
cientista e o leitor com as calças e as certezas nas mãos diante de um canarinho irônico que
lhe pergunta:
— De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de
belchior? (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 570)
Aqui o canário lembra o corvo de Poe8, que significa o novo tempo da
sociabilidade moderna, o tempo do efêmero, que leva o passado e suas velhas tradições e
quinquilharias para o mundo do esquecimento, do imemorial e do mito. Esse exílio é apenas
8 Uso aqui a tradução de Machado de Assis.
38
aparente, pois ao questionar a real existência do passado, acabamos por encontrar não o real,
mas um passado ressignificado pelo olhar contemporâneo, portanto um passado novo.
Esses são os canários, moscas e gaiolas que encontrei nesse caminho de tentar
pensar a política a partir da literatura, na próxima seção nos deteremos a pensar sobre essa
relação, amplamente possibilitada pelo exercício de pensar complexamente, que favoreceu o
desenvolvimento de uma mitodologia que possa se basear na mais sincera interpretação, sobre
o autor, sua época sua sociedade, seus leitores e campos de poderes de sua época e suas
formas simbólicas de mediação.
39
CAPÍTULO II
HOMEM DO SEU TEMPO E DO SEU PAÍS
Queres saber o que fiz no domingo? Trabalhei e
estive em casa. Carta à Carolina em março de 1869
(ASSIS, 2008, Vol. III, p.1348)
Deixe-me dizer lhe: ao fim de uma vida de trabalho e
certo amor da arte que sempre me animou, vale
muito sentir que encontro eco em espíritos
ponderados e cultos. Carta a Afrânio Peixoto de julho
de 1908 (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1422)
Conhecer Machado de Assis, saber quem era ele, como foi sua vida, quais suas
opiniões políticas, quem eram seus amigos, inimigos, quais eram seus desejos, como era sua
vida pública e privada deram um novo sentido a esta pesquisa. A empreitada surgiu como
necessidade da própria pesquisa. O conhecimento sobre o autor, seu tempo, sua obra, seu
público, proporcionou melhores condições para o exercício da mitodologia que aqui
propomos. Diz Candido ―[...] a série autor-público-obra, junta-se outra: autor-obra-público.
Mas o autor, do seu lado, é intermediário entre a obra, que criou, e o público, a que se dirige;
é o agente que desencadeia processo, definindo uma terceira série interativa: obra-autor-
público.‖ (CANDIDO, 1980, p. 38)
Assim, a primeira tarefa é investigar as influencias concretas exercidas pelos fatores
socioculturais. É difícil discriminá-los, na sua quantidade e variedade, mas pode-se
dizer que os mais decisivos se ligam à estrutura social, aos valores e ideologias, às
técnicas de comunicação. O grau e a maneira por que influem estes três grupos de
fatores variam, conforme o aspecto considerado no processo artístico. Assim, os
primeiros se manifestam mais visivelmente na definição da posição social do artista,
ou na configuração de grupos receptores; os segundos, na forma e conteúdo da obra;
os terceiros, na sua fatura e transmissão. Eles marcam em todo caso, os quatro
momentos da produção, pois a) o artista, sob o impulso de uma necessidade interior,
orienta-o segundo os padrões da sua época, b) escolhe certos temas, c) usa certas
formas e d) a síntese resultante age sobre o meio. (CANDIDO, 1980, p. 21)
Aqui ainda falaremos do mito, mas do mito em movimento, numa espécie de
mitanálise, pois, falar da vida e do tempo de Machado de Assis é mergulhar nas águas míticas
do Favor e do Contrato, afinal era ele o homem do seu tempo e do seu país.
40
Este capítulo foi ao mesmo tempo a mais prazerosa e gratificante e a mais difícil e
atemorizante etapa desta pesquisa. Explico-me. Prazerosa e gratificante porque pude
conhecer um homem admirável, mas cheio de contradições, artista respeitado e reverenciado
até pelos desafetos, pude conhecer a vida do mais imortal brasileiro do século XIX, e saber
que ele era um cidadão, correto, pacato, trabalhador que por esforços próprios e umas
ajudinhas de uns bons amigos, soube usar sua inteligência e talento privilegiados para
aproveitar como poucos as poucas oportunidades existentes em seu tempo para os
empobrecidos materialmente como ele.
Por outro lado, confesso que enquanto Machado de Assis era um nome dourado
numa capa de um livro, minha convivência com ele era bem indiferente e por isso tranquila,
porém ao passo que eu começava a conhecer sua trajetória de vida e as posições que ocupou
no campo cultural de seu tempo, as suas origens, esforços e ensinamentos, temi o momento de
falar sobre sua vida, pois realmente percebi que estava diante de um homem que merecia todo
cuidado e zelo ao falar de sua vida, um homem que se denominava o mais encolhido dos
caramujos, discreto e inimigo do arruído, da superexposição de sua vida, que escolheu a face
que queria mostrar para o mundo e deixou bem guardado aquilo que melhor lhe aprouvera
esconder.
Se o maior problema dos outros com minha pesquisa foi o que já disse no item
1.2, o meu maior problema com ela foi essa desconfiança que ainda tenho de saber até que
ponto é legítimo me intrometer ao ler as cartas de um homem aos seus amigos e amores, de
sair por aí bisbilhotando o que outros falaram sobre ele de forma apressada correndo o risco
de espalhar boatos sobre alguém que não tem como se defender e refutar interpretações que
não fazem justiça ao que ele pensava sobre si mesmo e o que ele queria que os outros
pensassem e soubessem ao seu respeito; mas não tive como fugir desse risco, pois, é quase um
axioma da sociologia da literatura e da arte o entendimento da relação autor-obra-sociedade
de outro modo vejamos como Nobert Elias explica a referida relação:
[...] a autonomia da obra de arte e o complexo de problemas a ela associados não nos
eximem da obrigação de investigar a conexão entre a experiência e o destino do
artista criador em sua sociedade, ou seja, entre esta sociedade e as obras produzidas
pelo artista. [...] O esclarecimento das conexões entre a experiência de um artista e
sua obra também é importante para uma compreensão de nós mesmos como seres
humanos.[...] (ELIAS, 1995, p. 57)
41
Na década de cinquenta do século XX Antonio Candido nos ensinava como
deveria ser entendida a relação entre sociedade e literatura:
[...] levamos em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que
permite identificar, na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma
sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo
historicamente; mas como fator da própria construção artística, estudo no nível
explicativo e não ilustrativo. [...] Neste caso, saímos dos aspectos periféricos da
sociologia, ou da história sociologicamente orientada, para chegar a uma
interpretação estética que assimilou a dimensão social como fator de arte. Quando
isto se dá, ocorre o paradoxo assinalado inicialmente: o externo se torna interno e a
crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica. O elemento social se torna
um dos muitos que interferem na economia do livro, ao lado dos psicológicos,
religiosos, linguísticos e outros. Neste nível de análise, em que a estrutura constitui o
ponto de referência, as divisões pouco importam, pois tudo se transforma, para o
crítico, em fermento de que resultou a diversidade coesa do todo. [...] Está visto que,
segundo esta ordem de ideias, o ângulo sociológico adquire uma validade maior que
tinha. Em compensação, não pode mais ser imposto como critério único, ou mesmo
preferencial, pois a importância de cada fator depende do caso a ser analisado. Uma
crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica,
psicológica ou linguística, para utilizar livremente os elementos capazes de
conduzirem a uma interpretação coerente. Mas nada impede que cada crítico
ressalte o elemento da sua preferência, desde que o utilize como componente da
estruturação da obra. E nós verificamos que o que a crítica moderna superou não foi
a orientação sociológica, sempre possível e legítima, mas o sociologismo crítico, a
tendência devoradora de tudo explicar por meio dos fatores sociais. (CANDIDO,
1980, p.07)
Recentemente nos disse Pierre Bourdieu:
A ciência das obras culturais supõe três operações tão necessárias e necessariamente
ligadas quanto os três planos da realidade social que apreendem: primeiramente, a
análise da posição do campo literário (etc.) no seio do campo de poder, e de sua
evolução no decorrer do tempo; em segundo lugar, a análise da estrutura interna do
campo literário (etc.), universo que obedece às suas próprias leis de funcionamento e
de transformação, isto é, a estrutura das relações objetivas entre as posições que aí
ocupam os indivíduos ou grupos colocados em situação de concorrência pela
legitimidade; enfim, a análise da gênese dos habitus dos ocupantes dessas posições,
ou seja, os sistemas de disposições que, sendo o produto de uma trajetória social e
de uma posição no interior do campo literário (etc.), encontram nessa posição uma
oportunidade mais ou menos favorável de atualizar-se (a construção do campo é a
condição lógica prévia para a construção da trajetória social como série as posições
ocupadas sucessivamente nesse campo. (Bourdieu, 1996, p. 243)
Não é pretensão do presente capítulo um relato da biografia, tão pouco historiar
linearmente os fatos da vida de Machado de Assis, e muito menos apresentar um rol de
anedotas pitorescas de sua vida pública e privada reduzindo toda uma vida a uma exposição
42
arbitrária de alguns clichês biográficos ou preconceitos mal intencionados. Mas então como
falar algo original sobre alguém que morreu a mais de cem anos, de quem já se disse quase
tudo? Como falar da vida de Machado de Assis sem ser leviano, repetitivo ou deselegante?
Eis uma resposta possível:
É preciso ser capaz de traçar um quadro claro das pressões sociais que agem sobre o
indivíduo. Tal estudo não é uma narrativa histórica, mas a elaboração de um modelo
teórico verificável da colaboração que uma pessoa - [...] – formava, em sua
interdependência com outras figuras sociais da época. (ELIAS, 1995, p. 18-19)
As ideias há pouco expostas me deram não apenas a possibilidade de obter dados
de que necessitava, mas também novos caminhos para pensarmos a vida, a obra e o tempo de
Machado de Assis.
A primeira que tive foi a de ler a correspondência de Machado de Assis, ideia que
primeiramente me pareceu supérflua logo e tornou-se fundamental na trajetória da pesquisa na
medida em que eu me demorava nas leituras das cartas. Na correspondência que começa em
1862 e termina em 1908 descobri o Machado amante, amigo, empregado, chefe, jovem, velho,
feliz, triste, amável e delicado com os amigos, generoso, presidente, enfim textos de um
homem, de um tempo de mudanças e incertezas, escrevendo aos amigos. Em tais cartas
encontrei um Joaquim Maria que a leitura dos contos, romances e da fortuna crítica escrita em
torno de Machado ainda não tinha me propiciado encontrar. A autorização para a leitura de
sua correspondência veio do próprio Machado de Assis, autorização em tom de desafio!
Poucos meses antes de morrer em abril de 1908 ele diz em tom desafiador a José Veríssimo:
Não me parece que de tantas cartas que escrevi a amigos e estranhos se possa apurar
nada interessante, salvo as recordações pessoais que conservarem para alguns. Uma
vez, porém, que é satisfazer o seu desejo, estou pronto a cumpri-lo, deixando-lhe a
autorização de recolher e a liberdade de reduzir as letras que lhe pareçam merecer
divulgação póstuma. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1419)
A outra ideia me veio do conselho que o Pai de Brás Cubas o ensina sobre o
valor da opinião alheia para a vida de um homem, dizia Pai Cubas que a melhor forma de
valer alguma coisa nesse mundo é valer pela opinião dos outros9, então decidi saber qual a
opinião dos outros sobre Machado de Assis? Como seus contemporâneos, e os que depois
9 Já diria o Pai de Cubas. VR
43
dele vieram falaram de sua vida, sua obra e suas relações como os outros de seu tempo?
Assim me pus a ler biografias, artigos, cartas que me esclarecessem as questões há pouco
expressadas.
O resultado dessas leituras é o capítulo que estou iniciando, dividido em três
partes, a primeira delas, O homem e seus desejos, é uma apresentação do Machado que
conheci a partir das leituras que fiz de sua correspondência privada10
. Nosso segundo
momento, é feito de breves reflexões sobre o tabuleiro político e social do Brasil no século
XIX, Lições sobre a política brasileira nos tempos de Pedro II e Machado de Assis. Enfim,
termino o capítulo refletindo sobre Machado e o desenvolvimento da sua arte de contar
histórias curtas, Machado de Assis e a arte dos contos.
10
Utilizamos a correspondência que consta na Edição da Obra Completa de Machado de Assis da Editora nova
Aguilar Volume III. Diz a nota do editor sobre as cartas ― A seção correspondência é uma reprodução da que foi
preparada... (NOTA EDITORIALVol I, p. IV)
44
2.1 O Homem e seus desejos
Por onde começar a falar de uma vida? Pelo começo ou pelo fim? Qualquer uma
das opções é arbitraria e não consegue dar conta das infinitas temporalidades que atravessam
uma vida. Assim escolhi seguir o que indica Nobert Elias, sociólogo que diz:
Para se compreender alguém, é preciso conhecer os anseios primordiais que este
deseja satisfazer. A vida faz sentido ou não para as pessoas, dependendo da medida
em que elas conseguem realizar tais aspirações. Mas os anseios não estão definidos
antes de todas as experiências. Desde os primeiros anos de vida, os desejos vão
evoluindo, através do convívio com outras pessoas, e vão sendo definidos,
gradualmente, ao longo dos anos, na forma determinada pelo curso da vida; algumas
vezes, porém, isto ocorre de repente, associado a uma experiência especialmente
grave. Sem dúvida alguma, é comum não se ter consciência do papel dominante e
determinante destes desejos. E nem sempre cabe à pessoa decidir se seus desejos
serão satisfeitos, ou até que ponto o serão, já que eles sempre estão dirigidos para
outros, para o meio social. Quase todos tem desejos claros, passiveis de ser
satisfeitos; quase todos têm alguns desejos mais profundos impossíveis de ser
satisfeitos, pelo menos no presente estágio do conhecimento. (ELIAS, 1995, p. 13)
Quais os anseios e desejos de Machado de Assis? O que dava sentido a sua vida?
Quais eram suas necessidades e possibilidades? Como ele pode na sociedade na qual viveu
conquistar seus sonhos? Como foi sua relação com os outros no curso de sua vida?
Responder a tais questões demandada uma nova dissertação, mas para não perder
a inspiração e aproveitar a leitura das correspondências e biografias que consultei nas fases
exploratórias da pesquisa, aliado aos conceitos que aprendi com Candido, Bourdieu e Elias
desenvolvi a seguinte forma para apresentar um pouco do que aprendi sobre o como de uma
vida. Tarefa que já digo sem resultados definitivos.
Proponho então que nos detenhamos em quatro desejos de Machado de Assis que
pude perceber na leitura de suas cartas, não os mais importantes ou os mais pitorescos, mas os
que eu penso que podem mostrar um pouco do homem do qual estamos falando: o desejo de
ser feliz, o desejo de morrer, o desejo de ler, o desejo de escrever. Das cartas que restaram li
todas e escolhi alguma para servir como leitmotiv nessa ousada, porém, despretensiosa
interpretação de uma vida inteira através de cartas e opiniões alheias.
45
2.1.1 O desejo de ser Feliz e o desejo de morrer.
O homem deseja ser feliz, o jovem Machado de Assis também assim o desejava.
Escolhi duas cartas de dois de março de 1869, escritas por Machadinho à sua ainda noiva11
Carolina Augusta Xavier Novais, para ilustrar esse desejo de ser feliz. As cartas tratam de
coisas do coração e de negócios, assinadas por um apaixonado Machadinho, homem de trinta
anos, cansado da vida de solteiro, que via no casamento uma oportunidade para ser feliz e
viver bem, nesse tempo era já conhecido na cena jornalística e artística carioca, por suas peças
teatrais, poesias, crônicas e contos publicados nos jornais, e que ainda não tinha lançado
nenhum livro, trabalhador, esforçado e apaixonado pela portuguesa e irmã de seu amigo
Faustino Xavier.
Naquele dois de março, Machadinho respondia às duas cartas que lhe mandara
Carolina, que por culpa dos correios, chegaram com atraso de Nova Friburgo, onde ela estava
para acompanhar e ajudar nos cuidados com a saúde de seu irmão Faustino. O jovem era um
galanteador, apaixonado e dizia estar triste devido as saudades que sentia de sua amada e
aflito pela demora de notícias, mas se mostrava contente por estar próximo o fim de sua
separação pois o casamento seria em breve.
Nas cartas, ele dava explicações à moça sobre suas experiências amorosas e
tratava de deixá-la segura quanto a força de seu amor, vejamos o que dizia o galante
apaixonado:
A minha história passada do coração resume-se em dois capítulos: um amor, não
correspondido; outro correspondido. Do primeiro nada tenho que dizer; do outro não
me queixo; fui eu o primeiro a rompê-lo. [...] O que te afirmo é que dos dois o mais
amado foi o segundo. Mas nem o primeiro nem o segundo se parecem em nada com
o terceiro e último capítulo do meu coração. Diz a Staël que os primeiros amores
não são os mais fortes porque nascem simplesmente da necessidade de amar.
(ASSIS, 2008, Vol. III, p.1348)
Logo em seguida, temos outra linda declaração de amor à Carolina, na qual
podemos perceber a veneração e admiração que ele tinha por ela e a intensidade do amor de
Machado:
11
Machado de Assis e Carolina se casaram em 12 de novembro de 1869, no mesmo ano em agosto morreu
Faustino Xavier de Novais, poeta e jornalista, grande amigo de Machado de Assis e irmão de Carolina.
46
[...] tu não te pareces nada com as mulheres vulgares que tenho conhecido. Espírito e
coração como os teus são prendas raras; alma tão boa e tão elevada, sensibilidade tão
melindrosa, razão tão reta não são bens que a natureza espalhasse de mão cheia pelo
teu sexo. Tu pertences ao número de mulheres que ainda sabem amar, sentir e
pensar. Como não te amaria eu? (ASSIS, 2008, Vol. III, p.1349)
Mas o que fazia de Carolina tão diferente das outras que ele conheceu? Quais seus
desejos e ambições para com ela? Na mesma carta, temos essas respostas, continua Machado:
Além disso tens para mim um dote que realça os mais: sofreste. É minha ambição
dizer à tua grande alma desanimada: ―levanta-te, crê e ama; aqui está uma alma que
te compreende e te ama também.‖/ A responsabilidade de fazer-te feliz é decerto
melindrosa; mas eu aceito-a com alegria, e estou que saberei desempenhar este
agradável encargo./ Olha, querida; também eu tenho pressentimento acerca da minha
felicidade; mas que é isto senão o justo receio de quem não foi ainda completamente
feliz? (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1349)
Aos trinta anos, ele considerava não ter sido feliz, mas por quê? Quais foram os
sofrimentos e dificuldades pelas quais passou e o fizeram tão sensível ao ponto de ver no
sofrimento de Carolina qualidades e virtudes?
A resposta mais óbvia que vem a nossa mente é a origem pobre de Joaquim Maria
Machado de Assis, rapaz de vida difícil, que desde muito cedo teve que sustentar uma
existência material com pouca diversão e muito trabalho. É lugar comum fazer referências ao
seu nascimento em 21 de junho de 1839, no morro do Livramento, no Rio de Janeiro. Seus
pais eram Francisco José de Assis, filho de pais forros, pintor de paredes, dourador, natural do
Rio de Janeiro e Maria Leopoldina Machado, lavadeira, portuguesa que era agregada na casa
da Madrinha de Machado. Após a Morte da mãe, seu pai casou-se novamente. A verdade é
que infância e adolescência de Machado de Assis são ainda pouco conhecidas por seus
biógrafos talvez por isso muitas coisas fossem criadas em torno de suas origens, para dar uma
cota de sofrimento e dramaticidade a sua vida, às vezes de forma exagerada12
.
A grande maioria de seus críticos, como lembra Candido, ―nunca deixaram de
inventariar e realçar as causas eventuais de tormento, social e individual: cor escura, origem
humilde, carreira difícil, humilhações, doença nervosa.‖ (CANDIDO In: ASSIS, Vol 1 p.113)
Um contemporâneo e amigo particular de Machado de Assis, José Veríssimo nos lembra que
o escritor:
12
Cf. Trípoli, p. 83
47
[...] Por coisa alguma quisera que as humildes condições em que nascera servissem
para exalçar-lhe a situação que alcançara. Ao seu recatadíssimo orgulho repugnava,
como um expediente vulgar, fazer entrar no lustre que conquistara esse elemento de
estima. A sua biografia eram seus livros, a sua arte era sua prosápia. Não lhes quis
misturar nada que pudesse parecer um apelo à benevolência dos seus
contemporâneos em prol da exaltação do seu nome. Fazer reclamo da mesquinhez de
sua origens, como é tão vulgar, lhe era profundamente antipático. Só a incapacidade
de compreender natureza tão finamente aristocrática como Machado de Assis e a
esquisita nobreza destes sentimentos, poderia reprochar-lhos. (VERÍSSIMO, 1963 p.
304-305)
Ainda sobre esses sofrimentos originados da pobreza Antonio Candido nos diz:
Mas na verdade os seus sofrimentos não parecem ter excedido aos de toda gente,
nem sua vida foi particularmente árdua. Mestiços de origem humilde foram alguns
homens representativos no nosso Império liberal. Homens que sendo da sua cor e
tendo começado pobres, acabaram recebendo títulos de nobreza e carregando pastas
ministeriais. Não exageremos, portanto, o tema do gênio versus destino. Antes, pelo
contrário, conviria assinalar a normalidade exterior e a relativa facilidade da sua vida
pública. [...] A cor parece não ter sido motivo de desprestígio e talvez só tenha
servido de contratempo num momento brevemente superado, quando casou com
uma senhora portuguesa. E a sua condição social nunca impediu que fosse íntimo
desde moço dos filhos do conselheiro Nabuco, Sizenando e Joaquim, rapazes finos e
cheios de talentos. (CANDIDO In: ASSIS, p.113 VOL. I)
Sobre os primeiros anos de sua vida diz Dau Bastos: ―Pouco se sabe sobre a vida
de Machado até os quinze anos de idade. Sua modesta família não protagonizou proeza, tão
pouco acumulou patrimônio ou fez nome.‖ (BASTOS, 2008, p.15), e o empenho do escritor
em não falar sobre essas questões, ―Por sua vez, o escritor obscureceu as origens de modo a
criar de si a imagem que convinha expor ao mundo.‖ (BASTOS, 2008, p.15)
E o que era a felicidade para Machado de Assis? Na mesma carta ele diz:
―Depois... depois, querida, queimaremos o mundo, por que só é verdadeiramente senhor do
mundo quem está acima das suas glórias fofas e das suas ambições estéreis.‖ Essa passagem
não era retórica de enamorado de acordo com Veríssimo:
Ninguém na literatura brasileira foi mais, ou sequer tanto como ele, estranho a toda a
espécie de cabotinagem, de vaidade, de exibicionismo. De raiz odiava toda a
publicidade, toda a vulgarização que não fosse puramente a dos seus livros
publicados. Do seu mesmo trabalho literário, como de tudo o que lhe dizia respeito,
tinha um exagerado recato. Refugiara-se absolutamente às confidências tanto
pessoais como literárias. (VERÍSSIMO, 1963, p. 304)
48
Machado sempre foi homem discreto e recatado, não queria ser um Medalhão, o
que não significa que ele não tenha exercido e reproduzido em sua vida as relações de favor
tão caras aos Medalhões como pedira favores para amigos e indicar pessoas próximas dele
para a ABL.
O casamento com Carolina deixa o jovem de trinta anos empolgado, na segunda
carta enviada diz ele:
Dizes que, quando lês um livro, ouves unicamente as minhas palavras, e que eu te
apareço em tudo e em toda a parte? É então certo que eu ocupo o teu pensamento e a
sua vida? Já mo disseste tanta vez, e eu sempre a perguntar-te a mesma coisa,
tamanha me parece está felicidade. Pois, olha; eu queria que lesses um livro que eu
acabei de ler há dias; intitulasse: A família. Hei de comprar um exemplar para
lermos em nossa casa como uma espécie de Bíblia Sagrada. É um livro sério,
elevado e profundo; a simples leitura dele da vontade de casar. (ASSIS, 2008, Vol.
III, p. 1350)
Casaram-se, foram morar na rua dos Andradas, 22 e depois com a ascensão social
do marido mudaram para o Cosme Velho, 18, casa que nunca compraram, mas lá viveram e
terminaram seus dias. Eles não tiveram filhos, sempre aos domingos visitavam e jantavam
com seus poucos, mas frequentes amigos, que sempre os visitavam também. As más línguas
dizem que houve uma traição e que ela soube o que teria lhe causado um imenso
ressentimento, mas na verdade é que, não existe comprovação dessa informação.
Carolina foi fundamental na vida de Machado de Assis, não vou entrar na
polêmica entre Lúcia Miguel e Magalhães Júnior sobre as influencias da mulher na obra do
marido, mas não há como deixar salientar que uma vez casado, Machado de Assis pode
dedicar-se aos talvez dois maiores anseios e desejos seus: ler e escrever e o mais importante
depois de muito tempo ele voltava a ter uma família, uma lar, alguém para quem voltar depois
da dura lida com a pena.
O amor das primeiras cartas é comprovado no poema ―Carolina‖, que veio ao
conhecimento público no livro Relíquias da Casa Velha, considerada como a melhor poesia
do poeta, que não aparecia em público já havia longos anos e que voltara aos braços das
musas para homenagear Carolina pela derradeira vez e presentear seus leitores com uma joia
da poesia em língua portuguesa. Assim escreveu o velho poeta:
A Carolina
Querida, ao pé do leito derradeiro.
49
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.
Trago-te flores,- restos arrancados.
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.
Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 631)
A morte de Carolina, aos setenta anos, no dia 20 de Outubro de 1904, também foi
o inicio da morte do marido, que a despeito do longo período que perdurava a doença da
esposa, não esperava sua morte repentina. Desde 1896 ela começou a sentir os efeitos do
câncer no intestino que a acometeu, doença que a matava aos poucos e aos poucos consumia
Machado, um homem de 65 anos, maltratado pelo trabalho demasiado e pela epilepsia, que se
dedicou a acompanhar o definhamento de sua amada, deixou todas as obrigações que
dependiam dele, a literatura e as contribuições aos jornais, só saia de casa para ir ao trabalho
no ministério.
No dia 28 de Outubro do mesmo ano ele escreve ao amigo Salvador de
Mendonça, em bilhete de agradecimento pelos pêsames recebidos, ―[...] Eu, meu querido
amigo, estou ainda atordoado, pela imensidade do golpe, como pela injustiça que a feriu.
Após trinta e cinco anos de casado é um preparo para a morte‖ (ASSIS, 2008, Vol. III p.
1398) Um mês depois do falecimento de Carolina, Machado de Assis escrevia ao amigo
Nabuco:
[...] Foi-se a melhor parte da minha vida, e aqui estou só no mundo. Note que a
solidão não me é enfadonha, antes me é grata, porque é um modo de viver com ela,
ouvi-la, assistir, aos mil cuidados que essa companheira de trinta e cinco anos de
casados tinha comigo; mas não há imaginação que não acorde, e a vigília aumenta a
falta da pessoa amada. Éramos velhos, e eu contava morrer antes dela, o que seria
um grande favor; primeiro, porque não acharia ninguém que melhor me ajudasse a
morrer; segundo por que ela deixa alguns parentes que a consolariam das saudades,
eu não tenho nenhum. Os meus são os amigos, e verdadeiramente são os melhores;
mas a vida os dispersa, no espaço, nas preocupações do espírito e na própria carreira
que a cada um cabe. Aqui me fico, por ora na mesma casa, no mesmo aposento, com
os mesmos adornos seus. Tudo me lembra a minha meiga Carolina. Como estou à
beira do eterno aposento, não gastarei muito tempo em recordá-la. Irei vê-la, ela me
esperará. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1398)
50
Sem Carolina, Machado como ele previa passou a contar com seus poucos amigos
para ajudá-lo a morrer. Em junho de 1906, em agradecimento a uma carta de felicitação por
seu sexagésimo sétimo aniversário, Machado disse a Belmiro Braga, ―[...] tal data não é de
alegrias para mim, depois que perdi a minha boa companheira de trinta e cinco anos. Estou
aqui um triste velho desamparado, contando alguns poucos amigos [...]‖ (ASSIS, 2008, Vol.
III, p. 1405)
Seu velho amigo Joaquim Nabuco por intermédio de Graça Aranha prestou ao
escritor uma grande homenagem em 1905, Machado de Assis ficou muito emocionado e feliz
com o gesto. Vejamos um trecho da carta de Nabuco ao Graça Aranha em abril de 1905,
informando que lhe enviava um ramo do carvalho de Tasso para ser oferecido ao presidente
da academia:
O que vai nessa caixa é um ramo do carvalho de Tasso, que lhe mando oferecer ao
Machado de Assis do modo que lhe parecer mais simbólico. O melhor é talvez que a
academia lho ofereça, mas quando e como são problemas para o senhor mesmo
resolver [...] Devemos tratá-lo com o carinho e a veneração com que no Oriente
tratam as caravanas a palmeira às vezes solitária do oásis. [...] (ASSIS, 2008, Vol.
III, p. 1402)
A entrega da relíquia e a seção solene da Academia ocorreram em 10 de agosto do
mesmo ano Machado de Assis ficou muito emocionado e feliz com o gesto, colocou o galho e
a carta ao Graça em sua sala abaixo de um retrato de Nabuco e escreveu ao amigo
agradecendo:
Escrevo algumas horas depois do seu ato de grande amigo. Em qualquer quadra da
minha vida ele me comoveria profundamente; nesta em que vou a comoção foi
muito maior. Você deu bem a entender, com a arte fina e substanciosa, a palmeira
solitária a que vinha o galho do poeta. O que a Academia, a seu conselho, me fez
ontem, basta de sobra a compensar os esforços da minha vida inteira; eu lhe
agradeço haver-se lembrando de mim tão longe e generosamente. [...] Velho Amigo/
M. de Assis 11 de Agosto de 1905 (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1402)
Na ocasião, Machado recebeu outra homenagem, vejamos como ele mesmo a
contou ao seu caro Nabuco, em carta escrita no fim de agosto de 1905:
Os nossos amigos da Academia, ao par daquela fineza, quiseram fazer-me outra, pôr
o meu retrato na sala das sessões, e confiaram obra ao pincel de Henrique
Bernardelli; está pronto, e vai primeiro à exposição da Escola Nacional de Belas-
Artes. O artista reproduziu o galho sobre uns livros que meteu na tela. Todos me têm
51
acostumado à benevolência. Valha esta consolação à amargura da velhice. [...]
(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1403)
Na mesma carta podemos perceber que não era só amargura que fazia companhia
ao velho escritor, as lembranças do tempo, das pessoas e do velho mundo que conheceu
sempre visitam sua velha alma:
[...] Ainda agora achei um bilhete seu convidando-me à reunião da rua da Princesa
para fundar a sociedade abolicionista; é de 6 de setembro de 1880. Quanta coisa
passada! Quanta gente morta! Sobrevivem corações que, como o seu, sabem amar e
merecem o amor. Adeus, meu caro Nabuco, não esqueça. O velho am.º, ad.mor e
companheiro. M. de Assis (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1403)
Apesar de desejar a morte nos últimos anos de sua vida, Machado não deixou de
produzir, ele ainda teve fôlego para escrever dois livros, Memorial de Aires e Relíquias da
Casa Velha. Além disso, cumpria suas obrigações no ministério, que só deixou bem perto da
morte, porque o ministro seu admirador o obrigou. Sobre o Memorial ele falava em junho de
1908 para Joaquim Nabuco
Acabo de receber a sua carta com seu abraço pelo livro, e venho agradecer-lha
cordialmente. Sabendo que foi sempre sincero comigo, senti-me pago do esforço
empregado; muito obrigado, meu amigo. O livro é o derradeiro; já não estou em
idade de folias literárias nem outras. O meu receio é que fizesse a alguém perguntar
por que não parara no anterior, mas se tal não é a impressão que ele deixa, melhor.
[...] (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1421-1422)
O mundo em que vivia não era mais o seu, as pessoas que conhecera e admirava
tinham morrido, viu morrer a maioria dos amigos dos velhos tempos de mocidade Paula Brito,
Manuel Antônio de Almeida, Faustino Xavier, Artur de Oliveira, Artur Barreiros, Henrique
César Muzzio, Ferreira de Meneses, Joaquim Serra, Pedro Luís e Sizenando Nabuco. Ele
tinha muitos amigos, prefaciava os livros dos moços, era generoso e usava sua influência para
ajudar os amigos:
[...] A morte levou-nos muitos daqueles que eram conosco outrora; possivelmente a
vida nos terá levado também alguns outros, é seu costume dela, mas chegando ao
fim da carreira é doce a voz que me alente seja a mesma voz antiga que nem a
morte nem a vida fizeram calar. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1426)
No fim da vida aproximou-se muito de Mário Alencar, filho de seu amigo José de
Alencar, a quem tratava como um filho, que não teve. Mario sempre visitava-o e assistia-o
52
quando preciso, sempre estava interessado em saber sobre sua saúde e andamento das
doenças.
MA 20/07/1908 Muito obrigado também pelo que me diz do livro. Aguardo o seu
artigo amanhã; não escrevo mais por causa dos olhos, mas sempre há vista para
acrescentar que os seus carinhos me vão animando neste final de vida. (ASSIS,
2008, Vol. III, p. 1432)
MA 09/08/1908 Esta moléstia é lenta e custa a sair das costas; passei mal e o dia
pouco melhor; vou ver a noite que passo. Tomei os seus remédios (a calcarea –
principalmente) e outros, além dos bochechos. Desde ontem à tarde a minha
alimentação é puro leite.[...] (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1425)
Ele foi feliz, sofreu muito ao fim da vida, mas foi feliz, morreu sem ter
propriedades, com algumas economias juntas ao longo da vida, conheceu a fama, mas não se
perdeu por ela.
53
2.1.2 O Desejo de ler e o desejo de escrever
Ser escritor é difícil em nosso tempo imaginem em meados do século XIX,
principalmente para um homem com poucos recursos financeiros, que precisava trabalhar
para sustentar a si e a esposa. Somente um homem movido por um forte desejo de tornar-se
escritor tomaria tal aventura como projeto de vida. E assim o fez Machado de Assis. Ele
escrevia desde muito jovem e morreu exercendo a atividade, através da escrita tornou-se
imortal.
É opinião comum entre seus biógrafos e críticos que ele conseguiu por méritos
próprios ascender socialmente e ser conhecido e reconhecido pelos seus contemporâneos
como o maior escritor brasileiro, sinônimo de intelectualidade e rebusco no uso da língua
portuguesa, líder máximo das letras brasileiras.
Era dos engenhos privilegiados que, sentindo fortemente a vocação literária, com a
clara consciência da necessidade de ajudá-la pela aplicação ao trabalho, a si mesmo
se educam. Fez-se ele próprio. Teria apenas frequentado a ínfima escola primária
da sua meninice, aprendido ao acaso das oportunidades algo mais do que ali lhe
ensinaram, e lido assídua e atentamente. [...] (VERÍSSIMO, 1963, p. 305)
Qual foi formação de Machado de Assis como leitor? Quais foram esses acasos da
oportunidade aos quais se referiu Veríssimo e ajudaram Machado de Assis a ser quem foi?
Como um menino de pouco estudo virou um escritor famoso? Será que é mesmo possível
alguém fazer-se sozinho? Seria o menino um gênio? Comecemos pensando essa ideia de
Gênio. Nobert Elias nos diz:
Com frequência nos deparamos com a ideia de que a maturação do talento de um
―gênio‖ é um processo autônomo, ―interior‖, que acontece de modo mais ou menos
isolado do destino humano do indivíduo em questão. Esta ideia está associada a
outra noção comum, a de que a criação de grandes obras de arte é independente da
existência social de seu criador, de seu desenvolvimento e experiência como ser
humano no meio de outros seres humanos. [...] Esta separação é artificial,
enganadora, desnecessária. [...] No presente estágio de civilização, a transfiguração
do elemento misterioso em gênio pode satisfazer uma necessidade profundamente
sentida. Ao mesmo tempo, é uma das muitas formas da deificação dos ―grandes‖
homens, cuja outra face é o desprezo pelas pessoas comuns. Ao elevar o primeiro
acima da medida humana, reduzem-se as outras a um nível abaixo dela. Nossa
compreensão das realizações de um artista e a alegria que se tem com suas obras não
diminui, mas se reforçam e aprofundam quando tentamos captar a conexão entre as
obras e o destino do artista na sociedade de seus semelhantes. (ELIAS, p. 53- 54)
54
Ao criador de arte é atribuído um papel específico na sociedade [...] as forças
sociais condicionantes guiam o artista em grau maior ou menor. [...] determinando a ocasião
da obra ser produzida,[...] julgando da necessidade dela ser produzida; [...] se vai ou não se
tornar um bem coletivo. (CANDIDO, 1980, p. 25).
[...] o escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo capaz de
exprimir a sua originalidade, (que o delimita e o especifica entre todos), mas alguém
desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo
profissional e correspondendo a certas expectativas dos leitores ou auditores. A
matéria e a forma da sua obra dependerão em parte da tensão entre as veleidades
profundas e a consonância ao meio, caracterizando um diálogo mais ou menos vivo
entre criador e público. (CANDIDO, 1980, p. 74)
Os escritores dependem do seu público13
e das condições materiais existentes em
seu tempo:
O fato deste grupo configurar-se nitidamente ou permanecer virtual depende em boa
parte do segundo fator: as condições de existência que os seus membros, enquanto
tais, encontram na sociedade. Decorre ou não daí a profissionalização, que,
embrionária noutras épocas, é tendência no mundo moderno, mas não fator essencial
para estruturar um grupo de escritores. Com efeito, há diversas formas de remunerar
o trabalho de criação literária nas diferentes sociedades e épocas: mecenato,
incorporação ao corpo de servidores, atribuição de cargos, geralmente prebendas,
etc. (CANDIDO, 1980, p. 75)
Se a obra é mediadora entre autor e o público, este é mediador entre o autor e a obra,
na medida em que o autor só adquire plena consciência da obra quando ela lhe é
mostrada através da reação de terceiros. Isto quer dizer que o público é condição do
autor, cujo esforço se perderia caso não lhe correspondesse uma reposta, que é
definição dele próprio. Quando se diz que escrever é imprescindível ao verdadeiro
escritor, quer isto dizer que ele é psiquicamente organizado de tal modo que a reação
do outro, necessária para a autoconsciência, é por ele motivada através da criação.
Escrever é propiciar a manifestação alheia, em que a nossa imagem se revela a nós
mesmos. (CANDIDO, 1980, p.75-76)
13 Para Von Wiese (a quem devemos a melhor caracterização sociológica desse fenômeno tão mal estudado
desde os primórdios da sociologia contemporânea), o público nunca é um grupo social, sendo sempre coleção
inorgânica de indivíduos, cujo denominador comum é o interesse por um fato. É a ―massa abstrata‖, ou ―virtual‖,
da sua terminologia. Entretanto, dentro dela podem diferenciar-se agrupamentos menores, mais coesos, à vezes
com tendência a organiza-se, como são os círculos de leitores e amadores entre os quais recrutam quase sempre
as elites, que pesarão mais diretamente na orientação do autor. (CÂNDIDO, 1980, p. 76-77)
55
Ainda sobre essa relação temos
O desenvolvimento da capacidade de alguém como artista não depende apenas de
seu destino individual, é necessário entender as coerções (modelo das estruturas
sociais e diferença de poder) inevitáveis que agem sobre ele e como de comportou
diante delas, cedendo ou escapando das suas influencias em sua arte. (ELIAS, 1995,
p. 19)
Então como Machado de Assis tornou-se escritor? Para começar a responder essa
questão lembremos que:
[...] os padrões e métodos sociais pelos quais as pessoas constroem os controles dos
instintos em sua vida comunitária não são produzidos deliberadamente; evoluem por
longos períodos, cegamente e sem planos. Irregularidades e contradições nos
controles, imensas flutuações em sua severidade ou leniência [...] (ELIAS, 1995, p.
56)
[...] é preciso perguntar não como tal escritor chegou a ser o que foi – com o risco
de cair na ilusão retrospectiva de uma coerência reconstruída -, mas como, sendo
dadas a sua origem social e as propriedades socialmente constituídas que ele lhe
devia, pôde ocupar ou, em certos casos produzir as posições já feitas ou por fazer
oferecidas por um estado determinado do campo literário (etc.) e dar, assim, uma
expressão mais ou menos completa e coerente das tomadas de posição que estavam
inscritas em estado potencial nessas posições [...] (BOURDIEU, 1996, p. 244)
Talvez tenha sido devido a uma paixão que ele cultivou por toda a vida a paixão
pela leitura. Paixão que por obra do acaso deve ter tido se início em casa, pois, apesar de
pobre, Machado de Assis teve uma vantagem na vida nasceu numa família de leitores num
país onde apenas 30% dos eleitores sabiam ler.
Pouco se sabe de sua formação primária e sobre a ínfima escola a qual a citação
acima se refere, talvez, fosse muito parecida com a escola por ele descrita no conto Conto de
Escola, não existem registros seus nas escolas do Rio de Janeiro, mas muito indícios levam a
especular que foi mesmo em casa o início da paixão pelas letras. Em 1846-47, o pai de
Machado de Assis era assinante do Almanaque Laemmert, segundo Massa, citado por Viana,
o pai de Machado de Assis era ―um artista inteligente e de alguma leitura‖ e sua mãe também
sabia ler e escrever, e pode ter até chegado a desenvolver atividade de ensino, além de bordar,
56
costurar e realizar outras atividades reservadas ao sexo feminino no século XIX. (Cf. Viana,
In Jobim, 2001, p.108)
Machado soube aproveitar essa vantagem. O maior contista brasileiro era um
voraz leitor, desde muito cedo frequentava o Gabinete Português de Leitura e tinha acesso aos
livros de amigos que deixavam o jovem ter acesso às suas bibliotecas particulares. Machado
preservou o hábito por toda a vida. Quando pode comprar livros, comprou-os e ao contrário
de nossa elite ilustrada não apenas para enfeitar as estantes, sua biblioteca particular era
vastíssima, muito se perdeu durante o tempo, atualmente o acervo está na ABL e é formado
por 674 volumes14
. Sobre o conteúdo das obras nos diz Viana:
[...] as literaturas ocupam aproximadamente 50% da biblioteca de Machado, já os
livros e revistas de história e geografia abarcam cerca de 25% do acervo, enquanto à
filosofia, à história e à crítica literárias ficam reservados 15% da coleção. Os 10%
dos volumes restantes podem ser distribuídos entre vários assuntos tais como
história natural, medicina, ciências sociais, memórias, correspondência etc. (Viana,
In Jobim, 2001, p.124)
Muitos foram os mestres de Machado de Assis para citarmos só alguns entre
outros tantos podemos lembrar Aristófanes, Aristóteles, Ésquilo, Heródoto, Homero, Luciano,
Platão, Plutarco, Sófocles, Catulo, Horácio, Tácito, Ovídio, Virgílio, Sade, Dante, Ariosto,
Leopardi, Ossian, Maquiavel, Cervantes, Calderon, Gil Vicente, Camões, Shakespeare,
Dickens, Thomas Moore, Shelley, Sterne, Darwin, Huxley, Poe, Goethe, Heine, Schiller,
Schopenhauer, Renan, Stendhal, Taine, Vitor Hugo, Gonçalves Dias, Joaquim Manuel de
Macedo, José de Alencar entre outros.
Destaquemos uma pequena curiosidade sobre um dos livros que faz parte do
acervo: a versão de O Príncipe de sua propriedade. Machado leu a obra em francês: Essai sur
lês oeuvres et la doctrine de Machiavel, avec La traduction littérale du Prince et de quelques
14
Estão escritos 383 em francês, destes 237 são originais e 146 são traduções, 43 do inglês, 36 do alemão, 24 do
latim, 22 do grego, 9 do italiano, 7 do espanhol, 2 do sânscrito, 1 do hindu, 1 do hebraico, 1 do polonês ; 166 em
português, destes 17 traduzidos do inglês e 2 traduzidos do alemão ; 88 em inglês; 27 em alemão; 8 em espanhol
e 2 em italiano. (Cf. Viana, In Jobim p. 125) Os livros foram presentes de muitas pessoas ou comprados por ele
mesmo, cerca de 50%, a maioria 156 volumes foram comprado na Rua do Ouvidor, 69, endereço da Livraria
Garnier,e na Livraria Lombaerts, na rua do Ourives 7/rua da Assembléia 77, onde Machado adquiriu 110
volumes. Ele também foi cliente da maioria das livrarias cariocas, a saber, Livraria Acadêmica de J.G. Azevedo
(21 volumes), Livraria Nicolau Alves (14 volumes), Livraria Laemmert & Co. (9 volumes) e outras 11 livrarias
do Rio de Janeiro, uma de Pelotas, uma de Berlim e uma de Pernambuco. (Cf. Viana, In Jobim p.127)
57
fragments historiques et littéraires, o livro foi editado em volume único pela C. Reinwald no
ano 1867 em Paris e comprado na Livraria Garnier.
Machado também lia os jornais e revistas brasileiras, bem como as inglesas e as
francesas que sempre eram enviados por seus amigos que moravam na Europa, Nabuco
sempre lhe enviava recortes e revistas como o Temps.
Machado leu até quando pôde, um mês antes de morrer ainda lia e ruminava a
leitura, disse ao amigo Mario Alencar:
Agora, ao levantar-me, apesar do cansaço de ontem, meti-me a reler algumas
páginas do Prometeu de Ésquilo, através de Leconte de Lisle, ontem entretive-me
com o Phedon de Platão, também de manhã,; veja como ando grego, meu amigo.
Oxalá possa chegar a ver, parte que seja desse seu trabalho. E folgo muito que ponha
nele a paciência da obra perfeita. [...] De mim, vou bem, apenas com os achaques da
velhice, mas suportando sem novidade o pecado original, deixe-me chamar-lhe
assim. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1416)
[...] Meu querido amigo, hoje a tarde, reli uma página da biografia do Flaubert; achei
a mesma solidão e tristeza e até o mesmo mal, como sabe, o outro... 29/08/1908
(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1425)
Desde muito jovem convivia com escritores e intelectuais do seu tempo na livraria
de Paula Brito, para termos uma ideia do mercado livreiro na época, além de livros a loja
vendia outras mercadorias como fumo de rolo, chá, remédio, pregos. Frequentavam a livraria
figuras como Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias, Joaquim Manuel de Macedo, Manuel
Antonio de Almeida e José de Alencar.
Com Paula Brito, Machado começou a trabalhar como caixeiro, depois passou a
trabalhar como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, mas não obteve êxito, o
adolescente sempre fugia do trabalho para ler, e a permanência por dois anos no trabalho foi
devido a proteção que o diretor da Imprensa Nacional, Manuel Antônio de Almeida, a ele
dispensava.
No mesmo período, continuava produzindo e colaborando não mais apenas na
Marmota Fluminense, mas também no Diário do Rio de Janeiro, dirigido por José de
Alencar. Trocou o ofício de tipógrafo, pelo de revisor, que se iniciou ainda na empresa de
Paula Brito e logo em seguida foi continuado no Correio Mercantil. Aliado aos vultosos e
cansativos trabalhos como revisor, aos poucos ele foi aumentando suas colaborações nos
58
jornais, A Marmota Fluminense, Paraíba, Espelho e Correio Mercantil, enfim tinha decidido
viver da pena.
Os apertos foram muitos, mas o emprego como redator do Diário do Rio de
Janeiro15
, em 1860 deu lhe certa estabilidade. ―O salário não era alto e nem sempre esteve em
dia, porém reduziu a incerteza de depender de bicos feitos para vários periódicos ao mesmo
tempo.‖ (BASTOS, p. 39) Abaixo vemos quão difícil era sua situação, a carta é de 19/11/69 e
destinada a Francisco Ramos Paz:
Eu contava com aquele adiantamento e a tua carta anulou todas as minhas
esperanças. Não imaginas o que me foi preciso fazer desde segunda-feira à noite até
sexta feira de manhã. De ordinário é sempre de rosas o período que antecede o
noivado; para mim foi de espinhos. Felizmente o meu esforço esteve na altura de
minha responsabilidade, e eu pude obter por outros meios os recursos necessários na
ocasião. Ainda assim não pude ir além disso; de maneira que, agora mesmo, estou
trabalhando para as necessidades do dia, visto que só começo do mês em diante
poderei regularizar a minha vida. Tais são as coisas pelas quais não pude continuar o
nosso trabalho; continuá-lo-ei desde que tiver folga para isso. Ele me será
necessário, e tu sabe que eu não poupo esforços. Espero porém que me desculpes se
neste momento estou curando da solução de dificuldades que não previa nem
esperava.(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1350)
Poucos meses depois em maio de 1870, a situação ainda era complicada. Em carta
ao mesmo Ramos Paz suplicava o jovem:
Sei que tens andado ocupado, e temo importunar-te com estes pedidos; mas como te
disse, não tenho outro recurso, e desejava concluir o negócio o mais cedo que fosse
possível. Não insisto sobre a importância capital do serviço que me estás prestando;
tu bem o compreendes, e sabes além disso qual é a minha situação. Não pude
arranjar a coisa só por mim, vê se consegues isso, e repara que os dias vão correndo.
Ajuda-me, Paz; eu não tenho ninguém que o faça. Conselhos, sim; serviço, nada. (
ASSIS, 2008, Vol. III p. 1351)
Mas, as coisas começaram a melhorar e os serviços aumentaram, ao ponto de
Machado começar a recusar trabalho:
Sobreveio, porém uma circunstância que me obriga a modificar aquela resolução, e
dizer a vossa excelência que não posso continuar a traduzir o folhetim, como até
agora fazia. Não querendo pôr embaraços ao Jornal da Tarde, continuarei a tradução
até sábado. Não me demorarei em dizer a vossa excelência, com que pesar sou
15
―[...] fundado em 1821, fora o primeiro cotidiano a funcionar em nossa pátria. Depois de algum tempo fora de
circulação, voltava a ser impresso, tendo agora como redator-chefe Quintino Bocaiúva, que contratou Machado
como braço direito. (BASTOS, 2008, p.40)
59
obrigado a interromper este trabalho que eu fazia com maior vontade que aptidão;
temo que se possa confundir um sentimento verdadeiro como fórmula de ocasião.
IGNORADO 14/06/70 (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1352)
Porém, foi na década de 70, que as coisas mudaram. Machado foi admitido no
Ministério da Agricultura. Ele era um funcionário público exemplar, logo se destacou no
serviço público e passou a desenvolver as duas atividades em paralelo.
[...] Muitos dos nossos maiores escritores, - inclusive Gonçalves Dias e Machado de
Assis – foram homens ajustados à superestrutura administrativa. A condição de
escritor funcionou muitas vezes como justificativa de prebenda ou de sinecura; e
para o público, como reconhecimento do direito a ambas, - num Estado
patrimonialista como era o nosso. [...] (CANDIDO, 1980, p. 84)
O imperador era um amante das Artes e colocou sob sua proteção escritores e
artistas, uma forma muito inteligente de garantir a ilustração e as fundações culturais que a
nação necessitava, era uma forma sutil de exercer o controle ideológico sobre a liberdade de
imprensa que havia no país.
[...] a atitude paternal do Governo, numa sociedade em que o escritor esperava
acomodar-se nas carreiras paralelas e respeitáveis, que lhe permitiam viver com
aprovação pública, redimindo ou compensando a originalidade e a rebeldia. Por isso
mesmo, talvez tenha sido uma felicidade a morte de tantos escritores de talento antes
da servidão burocrática. (CANDIDO, 1980, p. 84)
Essa ajuda do Estado de acordo com Candido levou nossa literatura a:
[...] certo conformismo de forma e fundo, apesar das exceções [...] Ele se liga ao
caráter, não raro assumido pelo escritor, de apêndice da vida social, pronto para
submeter sua criação a uma tonalidade média, enquadrando a expressão numa certa
bitola de gosto. [...] O Estado e os grupos dirigentes não funcionavam, porém,
apenas como patrono, mas como sucedâneo do público; público vicariante,
poderíamos dizer. Com efeito, na ausência de público amplos e conscientes, o apoio
ou pelo menos o reconhecimento oficial valeram como estímulo, apreciação e
retribuição da obra, colocando-se ante o autor como ponto de referência.
(CANDIDO, 1980, p. 84)
60
Machado de Assis conhecia muito bem como funcionava o campo literário
brasileiro, tinha muita consciência de que escrevia para poucos, ele dizia em carta ao crítico
José Veríssimo em 1883, quando tratavam sobre fundação da Revista Amazônica:
Há alguns dias, escrevendo de um livro, e referindo-me à Revista Brasileira tão
malograda, disse esta verdade de La Palisse: ―que não há revista sem leitores, sem
um público de revistas‖. Tal é o caso do Brasil. Não temos ainda a massa de leitores
necessária para essa espécie de publicação. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1359)
Essa escassez de público levou nossos escritores a produzirem:
[...] para públicos simpáticos, mas restritos, e a contar com a aprovação dos grupos
dirigentes, igualmente reduzidos. Ora, esta circunstância, ligada à esmagadora
maioria de iletrados que ainda hoje caracteriza o país, nunca lhe permitiu diálogo
efetivo com a massa, ou com um público de leitores suficientemente vasto para
substituir o apoio e o estímulo das pequenas elites. Ao mesmo tempo, a pobreza
cultural destas nunca permitiu a formação de uma literatura complexa, de qualidade
rara, salvo as devidas exceções. Elite literária no Brasil, significou até bem pouco
tempo, não refinamento de gosto, mas apenas capacidade de interessar-se pelas
letras. (CANDIDO, 1980, p. 85-86)
Machado contava com a leitura dos amigos aos quais ele sempre mandava suas
obras para apreciação. Vejamos o mesmo gesto em quatro diferentes momentos de sua vida:
SM 13/11/1876 Vai por este vapor um exemplar de Helena, romance que publiquei
no Globo. Dizem que dos meus livros é o menos mau; não sei, lá verás.Faço o que
posso e quando posso. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1355)
Remeto-te um exemplar das minhas Americanas. Publiquei-as há poucos dias, e
creio que agradaram algum tanto. Vê lá o que isso vale; se tiveres tempo, escreve-
me as tuas impressões. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1353) SM
JV 19/03/1900 Esta carta leva-lhe um grande abraço pelo seu artigo de hoje. Dom
Casmurro agradece-lhe comigo a bondade da crítica, a análise simpática e o exame
comparativo. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1375)
JN 01/08/1908 Lá vai o meu Memorial de Aires. Você me dirá o que lhe parece.
Insisto em dizer que é o meu último livro; além de fraco e enfermo, vou adiantado
em anos, entrei na casa dos setenta, meu querido amigo. [...] Acabei. Uma vez que o
livro não desagradou, basta como ponto final. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1424)
Mas, não só os amigos próximos eram leitores em carta a Belmiro Braga
Machado afagava ao leitor:
61
[...] Não tendo o gosto de conhecer-vos, mais tocante me foi a vossa lembrança. Pelo
que me dizeis em vossa bela e afetuosa carta, foram os meus escritos que vos deram
a simpatia que manifestais a meu respeito. Há desses amigos, que um escritor tem a
fortuna de ganhar sem conhecer, e são dos melhores. É doce ao espírito saber que
um eco responde ao que ele pensou, e mais ainda se o pensamento, trasladado ao
papel, é guardado entre as coisas mais queridas de alguém. (ASSIS, 2008, Vol. III,
p. 1361)
Ao falar sobre a relação entre publico e obra nos ensina Bourdieu:
O produtor do valor da obra de arte não é o artista, mas o campo de produção
enquanto universo de crença que produz o valor da obra de arte como fetiche ao
produzir a crença no poder criador do artista. Sendo dado que a obra de arte só existe
enquanto objeto simbólico dotado de valor se é conhecida e reconhecida, ou seja,
socialmente instituída como obra de arte por espectadores dotados da disposição e
competência estéticas necessárias para a conhecer e reconhecer como tal, a ciência
das obras tem por objeto não apenas a produção material da obra, mas também a
produção do valor da obra ou, o que dá no mesmo, da crença no valor da obra.
(BOURDIEU, 1996, p. 259)
Felizes os escritores que morriam livres da enfadonha e dura vida dos gabinetes;
na década de 1880, temos Machado de Assis, cheio de trabalho, dizendo a um colega:
São tais porém os meus trabalhos e apoquentações, que espero me desculpe a
demora. Entretanto. Não retardei a resposta a ponto de não poder me aproveitar dela
no domingo próximo. Ou no próximo, ou em qualquer outro, achar-me-á em casa,
porque eu raramente saio nesses dias, exceto de noite, em que vou sempre a alguma
visita. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1356)
Vemos aqui novamente o hábito cultivado desde os tempo de moço, não sair de
casa aos domingos. Entre 1880 e 1881, ele escreveu Memórias Póstumas de Brás Cubas e
uma grande quantidade de contos, ―Teoria do Medalhão‖ foi escrito nesse período, além de
sua atividade no ministério e sua vida social que se em resumo era frequentar o Clube
Beethoven, jogar Xadrez por correspondência, visitar amigos, ir ao teatro, frequentar as
livrarias e os grêmios literários de que fazia parte.
Ao contrário do que foi por um período um dogma sobre Machado, a sua suposta
indiferenças e frieza, a vida pública de Machado sempre foi bem intensa, tinha muitos amigos,
mas poucos íntimos, e participou de agremiações e grupos por toda a vida, mas essa vida
ficou muito prejudicada nos anos de 1880 e 1881, no período os trabalhos foram tão intensos
62
que ele precisou de um descanso mais prolongado. Sobre suas férias ele comunicou a Joaquim
Nabuco: ―Escrevo esta carta prestes a sair da corte por uns dois meses, a fim de restaurar as
forças perdidas no trabalho extraordinário que tive em 1880 e 1881.‖ (ASSIS, 2008, Vol. III,
p. 1357). Machado era um servidor público aplicado, ele fazia questão de ser o que chamamos
de Caxias; o serviço burocrático o consumia e o afastava da convivência com os amigos. O
volume de trabalho não diminuiu ao longo da vida do escritor, já como funcionário na
República ele dizia a Veríssimo: ―Hoje estou aqui preso pelo trabalho. Mas, assim como os
pilhei de assalto um dia, assim os pilharei outro. [...]‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p.1367). O
trabalho não diminuiu com o novo século; nos primeiro dias de 1901, falava ao mesmo José
Veríssimo: ―[...] o Gabinete está cheio de gente e a mesa de papel.‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p.
)
E quase no fim da vida, o trabalho tornou-se terapia para esquecer a dor pela
ausência de Carolina, confessava a Mario Alencar em dezembro de 1906:
MA 26/12/1906 [...] Agora estou bastante cansado, particularmente do pescoço, que
me dói, visto que ontem gastei todo o dia curvado a trabalhar em casa. Para quem já
havia trabalhado todo o domingo (nos outros dias tenho a interrupção das tardes), foi
realmente demasiado. Mas eu não me corrijo. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1405)
63
2.2 Lições sobre a sociedade e a política brasileira nos tempos de Pedro II e Machado de
Assis
Não espero nem tento nomeação do governo, porque
naturalmente os nomes estão escolhidos. Mais tarde é
possível talvez. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1353)
[...] Quanto ao século, os médicos que estão presentes
ao parto reconhecem que este é difícil, crendo uns que o
que aparece é a cabeça do XX, e outros que são os pés
do XIX. Eu sou pela cabeça, como sabe, (ASSIS, 2008,
Vol. III, p. 1374)
Nos tempos do Imperador, o Brasil ocupava um lugar periférico na geopolítica e
no capitalismo mundial do século XIX, num mundo sob o domínio da hegemonia econômica
e bélica inglesa e cultural francesa, éramos atores totalmente dependentes das formas de
internacionalização do capital financeiro, ocupávamos o mesmo lugar de produtor e
exportador de matérias primas e bens primários.
Economia herdada do antigo modelo de plantation dos tempos que ainda éramos
colônia portuguesa. ―O império era o café e o café era o escravo‖, essa era a fórmula bem
sucedida da economia imperial. Café plantado por mãos escravas, compradas com dinheiro
emprestado de bancos ingleses, que dominavam o mercado financeiro e comercial brasileiro
desde a chegada de D. João VI, nos quais os barões do café conseguiam crédito para financiar
e manter sua economia de base agrícola.
Ao redor dessa Herança Rural, como a chamou Buarque de Holanda, surgiu uma
sociedade de, como ele mesmo afirmou, ―desterrados em nossa terra‖, que devido sua origem
peculiar, o encontro de velhas ideias como uma realidade geográfica e humana nova, para os
europeus, no nosso caso os portugueses criou uma forma de vida social e política ainda não
vivida, diz Buarque: ―[...] o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça
parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima de outra paisagem.‖
(HOLANDA,1995, p. 31) No trecho de abaixo de uma carta enviada a Salvador de
Mendonça, Machado de Assis expõe essa tensão (a carta é de 1876):
Nós amamos e casamos aqui no Brasil, como se ama e se casa na Europa; nesse país
parece que as coisas são uma espécie de compromisso entre o romanesco e o
patriarcal. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1354)
64
Não havia indústrias, dependíamos totalmente de produtos importados da Europa, a
produção de alimentos era escassa e seus preços muito altos, nas fazendas, nos sobrados e nas
casas de classe média criavam-se animais e plantava-se o que desse para garantir a
alimentação cotidiana. O comércio era incipiente, mas glamoroso no Rio de Janeiro e todo
ele se concentrava na famosa rua do Ouvidor; nas capitais das províncias, o comércio era
bem menos desenvolvido, devido as péssimas condições das estradas e até a inexistência
delas, mas principalmente pela ausência de um mercado consumidor.
A escravidão estava em total acordo com os interesses do capital financeiro
inglês, até o momento que eles entenderam que seria melhor incentivar a mão o trabalho livre,
com o intuito de criar uma massa de assalariados que serviria de mercado consumidor das
maravilhas da grande indústria moderna.
A forma política era a Monarquia parlamentarista, vivíamos num Império liberal,
governado por um imperador poliglota, ilustrado, lido que mantinha sua força apoiado pelas
elites agrárias provinciais, que sempre eram agradadas com baronatos e comendas, uma das
formas usadas D. Pedro II para garantir a paz interna e evitar oposição.
SALVADOR DE MENDONÇA 24/12/1875 Por aqui não há novidade importante.
Calor e pasmaceira, duas coisas que talvez não tenhas por lá em tanta dose. Aí, ao
menos, anda-se depressa, conforme me dizes na tua carta, e na correspondência que
li no Globo. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1353)
No cenário externo, o Brasil tinha paz. O país sempre foi considerado nas
relações internacionais como pacífico, apesar da Guerra do Paraguai, único conflito
internacional de grandes proporções de que o Império participou.
A constituição era muito sofisticada, tanto nas garantias dos Direitos do Homem,
pois, repetia em seu texto a declaração de 1789, como na forma política e burocrática, nosso
sistema de governo era o parlamentarismo muito bem copiado dos ingleses, seguindo o
sistema da tripartição do exercício do poder, mas com uma inovação, o poder Moderador, que
dava ao Imperador a prerrogativa de poder estar acima dos outros poderes e da própria
Constituição, colocando nosso parlamentarismo às avessas.
O Poder legislativo era bicameral, havia um senado vitalício e uma assembléia de
deputados ocupada pelas elites provinciais ou seus apadrinhados, eleitos por um sistema
eleitoral pouco confiável, sempre fraudado, que tinha como eleitores uns poucos que
65
possuíam a renda necessária para exercer o direito de votar. No famoso conto A Sereníssima
República, Machado de Assis apresenta uma critica muito rica sobre o sistema eleitoral do
império.
Os partidos políticos não passavam de adorno de grupos rivais que lutavam não
por programas e ideias, mas por cargos, prestígio e favores do Imperador. Claro que a frase
conhecida que dizia serem iguais Luzias e Saquaremas não é verdadeira, pois, muitas eram
suas diferenças programáticas e de ideias, o que não impediu, por exemplo, de ter sido um
gabinete conservador o responsável pela instituição da pedra fundamental do inicio do
crepúsculo do Império, a lei do ventre livre.
Escravidão e ideias modernas conviviam em aparente harmonia no Império liberal
governado pelo ilustrado, lido e culto Pedro II. Ficou célebre a expressão cunhada por
Schwarz, de que no Brasil as ideias estavam foram do lugar. No seu Ao vencedor as batatas
ele diz:
Sendo embora a relação produtiva fundamental, a escravidão não era o nexo efetivo
da vida ideológica. A chave dessa era diversa. Para descrevê-la é preciso retomar o
país como um todo. Esquematizando, pode-se dizer que a colonização produziu,
com base no monopólio da terra, três classes de população: o latifundiário, o
escravo, e o ‗homem livre‘, na verdade dependente.[...] seu acesso à vida social e a
seus bens depende materialmente do favor [...] mecanismo através do qual se
reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos
que têm. [...] com mil formas e nomes, o favor atravessou e afetou no conjunto a
existência nacional‖ [Grifos Meus] (Schwarz, 2000,p.16)
Faoro nos diz que a Sociedade brasileira é formada por duas estruturas que se
sobrepõe. A classe e o Estamento, a primeira é regida pelos princípios do dinheiro e da
competição, e o segundo pelos princípios do favor e das convenções sociais. Tínhamos a
classe de proprietários, os escravos e os dependentes, que precisavam do favor alheio, para
garantir sua sobrevivência material.
Não bastava ter dinheiro para ser aceito, o novo rico precisava das benesses,
prebendas e títulos imperiais para poder frequentar o paço e ser considerado um medalhão.
Essa prebendas eram fundamentais para a manutenção do jogo político imperial, por meio de
postos na Guarda Nacional, títulos nobiliárquicos, Pedro II garantia sua influencia e
apaziguava os conflitos. O imperador era o grande sustentáculo político e social do Império.
66
Machado como ele mesmo disse: não frequentava o paço, mas gostava do
Imperador. Era Monarquista, dizem que mais por comodismo que por convicção. Na
juventude, foi ligado aos liberais, mas logo ficou acima das lutas partidárias. Nesta fase da
vida chegou a escrever um soneto para o imperador e sempre se referia a ele de forma
carinhosa e com admiração.
O imperador também gostava dele, agraciou-o com a Ordem da Rosa e quase o
fez conselheiro da mesma Ordem, o que só não ocorreu porque a república foi instaurada.
Machado chegou a dizer que com fim do império apareceria no Brasil a mais sanguinária
oligarquia que o mundo já viu. Não era nem Luzia e muito menos Saquarema, estava acima
de tudo isso. O que não significa que era um indiferente, o contrário acompanhava a política
atentamente. Machado, na sua experiência como jornalista, cobriu o parlamento o que apurou
o seu olhar e a sua pena para esse aspecto da vida social, conheceu de perto os Medalhões do
império e sua arte.
O Rio de Janeiro era uma cidade atrasada em processo de modernização. Quase
no fim do século, em 1897, ele dizia a José Veríssimo em carta:
JV 22/06/1897 [...] Eu sou um peco fruto da capital, onde nasci, vivo e creio que hei
de morrer, não indo ao interior senão por acaso e de relâmpago, mas compreendo
que prefira um campo a esse misto de roça e cidade (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1364)
Machado amava o Rio de Janeiro, sua história e assim como os de sua geração
não acompanharam, ou melhor não se acostumaram como as mudanças tão rápidas que
arrastaram seu mundo e as pessoas que nele viviam.
SM 22/09/1895 Tens razão; compreendo que ao ver tanta gente nova, em 1891, toda
ela te parece intrusa por nada saber dos nossos bons tempos nem dos homens e
coisas que lá vão. Alguns intrusos vingam-se em rir do que passou, datando o
mundo em si,e crendo que o Rio de Janeiro começou depois da Guerra do Paraguai.
Os que não riem e respeitam a cidade que não conheceram, não têm a sensação
direta e viva; é o mesmo que lessem um quadro antigo que só intelectualmente nos
transporta ao lugar da cidade. Este Rio de Janeiro de hoje é tão outro do que era, que
parece antes, salvo o número de pessoas, uma cidade de exposição universal.
(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1361)
67
2.3 Machado de Assis e a arte de escrever contos no Brasil
Machado de Assis seguiu em sua obra o programa que ele mesmo propôs em
artigo publicado em 24 de março de 1873, na revista O Novo Mundo. A revista era editada em
Nova Iorque e o artigo consta na revista número trinta. Eis o célebre trecho:
Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve
principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não
estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que deve se exigir do
escritor, antes de tudo, é certo sentimento intimo, que o torne homem do seu
tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no
espaço. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1205)
A seção, que ora se inicia, vai se ater ao Machado de Assis contista. Talvez o meu
maior interesse nos contos seja pelas qualidades que o próprio Machado designa aos contos na
advertência que abre o coletânea Várias Histórias de 1895, Diz o contista: ―[...] O tamanho
não é o que faz mal a este gênero de histórias, é naturalmente a qualidade; mas há sempre uma
qualidade nos contos, que os trona superiores aos grandes romances, se uns e outros são
medíocres: é serem curtos‖ (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 446) Na mesma advertência, Machado
nos mostra seu apreço pelos contos, principalmente por contistas do quilate de Diderot,
Mérimée e Poe, os únicos citados por ele. Um pensamento de Diderot vem como epígrafe da
coletânea, ―Moneu mi, faisons toujours des contes... Le temps se passe, et Le conte de La vie
s´achvé, sans qu´no s´en aperçoive.‖ (DIDEROT, apud, (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 446), a
citação é o mote usado para explicar o motivo que o levava a escrever tantos contos.
É um modo de passar o tempo. Não pretendem sobreviver como os do filósofo. Não
são feitos daquela matéria, nem daquele estilo que dão aos de Mérimée o caráter de
obras-primas, e colocam os de Poe entre o primeiros escritos da América. (ASSIS,
2008, Vol. II, p. 446)
Essa referencia a Diderot e sua paixão pelos contos já haviam aparecido treze anos
antes na advertência da coletânea Papéis Avulsos de 1882:
Quanto a Diderot, ninguém ignora que ele, não só escrevia contos, e alguns
deliciosos, mas até aconselhava a um amigo que os escrevesse também. E eis a razão
do enciclopedista: é que quando se faz um conto, o espírito fica alegre, o tempo
68
escoa-se, e o conto da vida acaba, sem a gente dar por isso. (ASSIS, 2008, Vol. II, p.
236)
Machado de Assis escrevia contos desde os dezenove anos e continuou a escrevê-
los por toda sua vida de escritor, entre 1858 e 1907. O primeiro conto que Machado de Assis
publicou foi ―Três tesouros perdidos‖, na Marmota Fluminense em 1858 e os últimos foram
escritos para coletânea Relíquias da Casa Velha.
De acordo com Gledson, ―os contos de Machado não são levados tão a sério
quanto mereceriam.‖ (GLEDSON, 2006, p.35), que ―boa parte do sabor desses contos provém
de sua íntima relação com o Brasil, e em particular com o Rio de Janeiro.‖ (GLEDSON, 2006,
p.36) e ―que eles ainda contêm surpresas para quem souber lê-los com o espírito do autor‖
(GLEDSON, 2006, p.37)
Os contistas do século XIX tinham como veículo de publicação de suas histórias
as revistas e os jornais16
, com Machado de Assis não foi diferente. Ele publicou
principalmente no Jornal das Famílias, 70 contos, entre 1864 e 1878; na revista A Estação,
37 contos, de 1879 a 1898, na Gazeta de Notícias entre 1881 e 1897 foram 56 contos,
publicou também em O Cruzeiro (Cf. GLEDSON, 2006, p.35-36) Vamos enfatizar a Gazeta
de Notícias onde foi publicado ―Teoria do Medalhão‖.
A Gazeta de Notícias, onde Machado publicou muito de seus contos mais
memoráveis, [...] foi fundada em 1874. Foi uma novidade entre os jornais
brasileiros, pois era vendida nas ruas, e não apenas para assinantes. Era um jornal
liberal no melhor sentido da palavra, politicamente independente, vivo e empenhado
em apoiar boas produções literárias. (GLEDSON, 2006, p.37)
Das sete coletâneas de contos que Machado publicou em vida, uma é a mais
significativas a já citada Papéis Avulsos de 1882. Um ano depois de Memórias póstumas de
Brás Cubas, na qual ―Teoria do Medalhão‖‘ foi republicado.
16Como traço importante, devido ao desenvolvimento social do Segundo Reinado, mencionemos o papel das
revistas e jornais familiares, que habituaram os autores a escrever para um público de mulheres, ou para os
serões onde se lia em voz alta. Daí um amaneiramento bastante acentuado que pegou em muito estilo; um tom de
crônica, de fácil humorismo, de pieguice, que está em Macedo, Alencar e até Machado de Assis. Poucas
literaturas terão sofrido, tanto quanto a nossa, em seus melhores níveis, esta influência caseira e dengosa, que
leva o escritor a prefigurar um público feminino e a ele se ajustar. (CANDIDO, 1980, p. 85)
69
[...] é a mais notável coletânea de Machado, a mais original e radical, [...] tem uma
unidade peculiar, muito difícil de definir, [...] Entre essas histórias as melhores têm
também uma força peculiar [...]. Machado conseguiu encarnar uma espécie de força
mítica [...] (GLEDSON, 2006, p.45)
É preciso dizer, desde já, que acredito que aqui, mais do que nunca, as especulações
de Machado se centram na questão da identidade nacional que tão frequentemente
tem preocupado os intelectuais latino-americanos desde a independência.
(GLEDSON, 2006, p.72)
Papéis Avulsos ―representa para o Machado de Assis contista o que as Memórias
póstumas de Brás Cubas representaram para o Machado romancista.‖ (GLEDSON, 2006,
p.51) Ambos marcam o início do que se convencionou chamar de segunda fase da obra
machadiana, período da ―crise dos quarenta anos‖, em que o capricho e a volubilidade do
senhor dominante e todas as suas excludentes redes de relações sociais, políticas e culturais
deixam de ser assunto dos romances e passam a ser a voz ativa da narrativa animada pela
ironia.
Mudanças que ―quase sempre implicam não levar as coisas a sério, tratando-as
com desrespeito bem-humorado ou sarcástico [...] Isso é algo que não se pode conseguir sem
a ironia‖ (GLEDSON, 2006, p.46).
Roberto Schwarz nos mostrou uma parte crucial da dinâmica desse processo no
contexto dos romances [...] Simplificando seu argumento: Machado já não podia
retratar uma sociedade baseada na escravidão e privilégios em termos que fossem ao
mesmo tempo diretos e conformistas; assim, teve de recorrer a uma narração indireta
que não era somente irônica, mas de uma ironia total e radical, narrando tudo do
ponto de vista de Brás Cubas [...] (GLEDSON, 2006, p.44)
Em Papéis Avulsos o tom é sempre irônico, as circunstâncias do contos ―estão
envoltas em ironias, que simplesmente abre espaço para outras ironias‖ (GLEDSON, 2006,
p.46). Na ―Teoria do Medalhão‖, temos uma definição de ironia ―esse movimento ao canto da
boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano,
transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados.‖ (ASSIS, 2008,
Vol. II p. 275) Essa nova forma de criar sua prosa dá-lhe ―[...] intensidade e confiança
inéditas‖.
[...] É como se, de fato, tivesse dominado uma série de efeitos novos, uma música
nova. [...] É como se ele tivesse que criar uma forma própria para cada conto:
70
diálogo, pastiche, sátira, contos longos, médios, curtos. A prosa de torna
multidimensional, em grande parte por conta do humor. (GLEDSON, 2006, p.47)
Vejamos:
Uma parte fascinante desse processo é que esse novo poder inclui uma notável
dimensão histórica específica, local: com efeitos, os enredos, de alguns dos contos
adquirem significados adicionais, por conta da presença de certos detalhes
aparentemente supérfluos, mas que, vistos em conjunto, constroem uma espécie de
história nacional bastante cética e original, e para qual não há precedentes na
produção anterior às Memórias póstumas de Brás Cubas (GLEDSON, 2006, p.47-
48)
Em Papéis Avulsos e Brás Cubas, a energia é, acima de tudo, satírica: o Machado
bem-comportado dos romances da década anterior, que só tinha mostrado o seu lado
mais perigoso em contos ―A parasita azul‖ (1872) ou nas estranhas ―fantasias‖
publicadas em O Cruzeiro, em 1878, revela-se, finalmente, em pé de igualdade com
os grande temas de um Erasmo ou um Swift. (GLEDSON, 2006, p. 71)
Voltemos a advertência.
Este título de Papéis avulsos parece negar ao livro uma certa unidade; faz crer que o
autor coligiu vários escritos de ordem diversa para o fim de os não perder. A
verdade é essa, sem ser bem essa. Avulsos são eles, mas não vieram para aqui como
passageiros, que acertam de entrar na mesma hospedaria. São pessoas de uma só
família, que a obrigação do pai fez sentar à mesma mesa. Quanto ao gênero deles,
não sei que diga que não seja inútil. O livro está nas mãos do leitor. Direi somente,
que se há aqui páginas que parecem meros contos, e outras que o não são, defendo-
me das segundas com dizer que os leitores das outras podem achar nelas algum
interesse, e das primeiras defendo-me com São João e Diderot. O evangelista,
descrevendo a famosa besta apocalíptica, acrescentava (XVII, 9): "E aqui há sentido,
que tem sabedoria." Menos a sabedoria, cubro-me com aquela palavra.[...] (ASSIS,
2008, Vol. II, p. 236)
Gledson nos lembra que a precisão das datas não é algo comum na escrita
machadiana, por isso quando aparece, merece um pouco mais de nossa atenção por revelar
detalhes escondidos17
. Sobre o lugar da história e das datas na obra de Machado nos esclarece
Chalhoub:
Ao contar suas histórias, Machado de Assis escreveu e reescreveu a história do
Brasil no século XIX. Essa hipótese vem sendo defendida, a meu ver de forma
17
Cf. Gledson 91-102, 2008
71
bastante convincente, por críticos literários como Roberto Schwarz e John Gledson,
e tem se revelado importante para desvendar e potencializar significados nos textos
machadianos. Na ótica de Schwarz, a obra de Machado é interpretada como um
comentário ―estrutural‖, por assim dizer, sobre a sociedade brasileira do século XIX:
o romancista expressa e analisa aspectos essenciais ao funcionamento e reprodução
da estrutura de autoridade e exploração vigentes no período. Schwarz procura
mesmo explicar a trajetória da obra machadiana como um processo de
experimentação e busca de um ―dispositivo literário‖ que ―capta e dramatiza a
estrutura do país, transformada em regra escrita. Gledson, por outro lado, está mais
preocupado em perseguir o movimento da história nos escritos de Machado: o
crítico demonstra, num procedimento sistemático de decifração de alusões e
alegorias, que o romancista comentou intensamente as transformações sociais e
políticas de seu tempo. Se a pena de Gledson revela um Machado empenhado em
interpretar o sentido da história, também mostra que tal esforço é acompanhado de
um processo não menos intenso de dissimulação e despistamento do leitor, que não
raro vê o seu esforço solenemente enviados para as calendas gregas. (CHALHOUB,
2003, p. 17-18)
Na última seção de seu Machado de Assis: ficção e história, nos esclarece
Gledson:
Claro que Machado nunca escreveu um livro, um artigo que fosse, de ―pura‖
história, mas nas suas obras de ficção, e nas suas crônicas, há uma profusão de
referências a história brasileira que nos dão acesso a um pensamento complexo,
sutil, mutável, e que sabia acomodar dúvidas e ironias. (GLEDSON, 2003, p. 293)
Mas para nós não só o tempo histórico importa, estamos no terreno do imaginário.
[...] a história social é feita do eterno retorno e do eterno eclipse de mitos que
emerge lentamente do inconsciente colectivo, pactuam e enganam os mitologemas,
das instituições e numa longa duração fagocitam, mitema atrás de mitema, os
magistérios racionalizados, os seus códigos e as suas instituições. O verdadeiro
‘contrato social’ é o do amálgama das contradições, das inflexões das maiorias,
das concessões sistêmicas no lento bailado da história. E isto de uma forma tanto
mais complexa quando a sociedade não possui um ‗isto‘ obsessivo e único, é ela
própria um nexo de subconjuntos, nexo mecânico, ou orgânico, tanto faz, tendo ele
próprios a sua própria singularidade e a sua mitologia fundadora particular. É um
imenso polipeiro hierárquico, mas onde a hierarquia não é mais do que o principio
generalizado do ‗querer estar junto, e persistir nesse ser‘. Imenso polipeiro onde a
arqueologia descobre por vezes atóis, imputrescíveis, corais coriáceos que não há
maré nem tempestade que destrua. [Grifos Meus] meus( DURAND, 1996, p. 139-
140)
72
CAPÍTULO III
A ARTE DE FAZER POLÍTICA NO BRASIL NA TEORIA DO MEDALHÃO
- Nenhuma filosofia?
- Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na
realidade nada. [...] proíbo-te que chegues a outras
conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge
a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc.,
etc. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 275)
Publicado pela primeira vez em 1881, na Gazeta de Notícias e republicado no
livro Papéis Avulsos em 1882, ―Teoria do Medalhão‖ é uma aula sobre a política brasileira:
[...] se consome numa única cena, mostrada em tempo real, ou seja, fazendo
coincidir o tempo do discurso com o da história: uma conversa entre pai e filho. A
ação, que não extrapola o nível verbal, é claramente persuasiva. (CINTRA, In:
MARIANO & OLIVEIRA, 2003, p.160)
Esse conto é uma chave para entender os outros Medalhões que Machado de Assis
criou em sua obra. O escritor nos deixou uma galeria de grandes medalhões, magníficos
estudos sobre esse Mito da vida política brasileira. Muitos são os Medalhões Machadianos.
Eles aparecem em toda sua obra como tema, assunto ou personagens como o Estácio, de
Helena ou o Simão Bacamarte de O Alienista, outras vezes como narrador da própria história
como Brás Cubas, Bentinho e Aires.
A teoria do medalhão é, pois, a fórmula indicada para obtenção do sucesso num
mundo social dominado pelo convencionalismo, pela ortodoxia das teorias e
doutrinas, pela rigidez das práticas jurídicas, pelo modismo e conformismo que
impedem as soluções originais e profundas; numa palavra pelo sistema
hierarquizado que coloca tudo em seus lugares, sempre acha o lugar de todas as
inovações, detesta examinar-se e, por meio de suas próprias forças e dinamismo,
mudar o lugar das coisas que nele existem. (DA MATTA, 1997, p. 203)
O conto é uma obra-prima do ―estilo satírico da maturidade‖18
de Machado de
Assis em poucas páginas temos em essência ―A fórmula do discurso de Brás Cubas‖19
, um
18
(SCHWARZ, 1990, p.53) 19
(FAORO, 2001, p.189)
73
manual sobre a melhor forma de agradar aos poderosos, uma miscelânea de conselhos,
mentiras, verdades e segredos que podem fazer um homem bem sucedido ou não, próximo ou
não das barbas do Imperador.
Crítica mordaz à sociedade que ao mesmo tempo em que sonhava com o
progresso, fazia questão de reproduzir e recriar o Medalhão, dizendo o mesmo de outro modo,
uma sociedade que embora o mercado e o contrato começassem a produzir, mesmo que
timidamente seus efeitos na vida cotidiana da corte brasileira, o culto ao Medalhão ao invés
de fenecer, foi reforçado e resignificado mantendo-se inabalado.
O medalhão é um vaidoso. Ele tem amigos importantes e parentes de fina estirpe,
tem o poder de tudo subordinar a ponta do próprio Nariz e reduzir os outros, sua autonomia e
desejos ao seu capricho pessoal, vive a buscar algo que lhe garanta ―uma superioridade
qualquer‖ 20
. Superioridade que pode ser a roupa, a fama, o dinheiro, os amigos, as mulheres,
a retórica, enfim, qualquer coisa que o faça parecer fazer parte dos que merecem o aplauso e
as reverências.
Um dos seus méritos é, a meu ver, a possibilidade de clarificar a relação entre o
nosso sistema de classificar pessoas e, como consequência, o rito autoritário do
―sabe com quem está falando?‖ Pois essa fórmula só deve ou pode operar
funcionalmente numa sociedade de gentes, de pessoas que se lavam, de brancos, de
boa gente, de medalhões, em oposição às gentinhas, ao zé-povinho, à arraia miúda, à
gentalha, à massa; numa palavra aos impulsos em geral. (DA MATTA, 1997, p.
204)
O Medalhão não está apenas entre os ricos, entre os políticos, o conto em questão
tem como personagem um quase-Medalhão e um protótipo de Medalhão, ambos da classe
média carioca.
[...] O medalhão, como uma cristalização pessoal de qualidades morais de
determinado domínio social, pode surgir onde quer que haja um grupo. Temos
medalhões entre os pobres e os ricos, entre os fracos e os fortes. Trata-se, parece-me,
de um modo de estabelecer diferenças e hierarquias em todos os grupos, em todas as
categorias, em todas as situações; sobretudo, entre pessoas iguais. Embora exista
uma tendência a equacionar o medalhão com a classe dominante, essa ligação é
simples demais. De fato, existem medalhões em todos os domínios da vida social
brasileira: na favela e no Congresso; na arte e na política; na universidade e no
futebol; entre policiais e ladrões. São pessoas que podem ser chamadas de
―homens‖, ―cobras‖, ―figuras‖, ―personagens‖ etc. e que ocorrem em qualquer
campo. São os que já transcenderam as regras que constrangem as pessoas comuns
20
Ver SCHWARZ, 1990
74
daquela esfera social. É alguém que não precisa mais ser apresentado e com quem se
deve primeiro falar (e/ou ―se entender‖). (DA MATTA, 1997, p.205)
Não começo por explicar o título, pois concordo com o que diz Machado de Assis
na advertência de Historia Sem Data21
―o melhor dos títulos é ainda aquele que não precisa de
explicação.‖ (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 346 ) E Teoria do Medalhão é um dos melhores títulos
da extensa galeria de títulos célebres da obra machadiana, interpretá-lo é interpretar o próprio
conto.
O subtítulo é o primeiro piparote dado no leitor: Diálogo. O subtítulo funciona
―[...] como signo de verossimilhança, induzindo o leitor desde o início a crer na veracidade do
relato, serve como guia para localizá-lo a propósito do formato escolhido.‖ (CINTRA In:
MARIANO & OLIVEIRA, 2003, p.159). Para além do formato essa é primeira grande ilusão
do conto: a aparente ausência do narrador, que opta por se esconder totalmente da narrativa,
um narrador que se esconde por trás de ironias ao contar um diálogo entre Pai e Filho.
Não esqueçamos que o conto foi escrito no mesmo período de Memórias
póstumas, em que temos o defunto autor como narrador e personagem, narrador que faz
questão de aparecer e mostrar que a história é feita a partir de seu ponto de vista.
Outra ilusão criada pela forma de um descontraído diálogo é sugestão de liberdade
e igualdade entre os interlocutores, num diálogo cada um diz o que quer, mas o conto logo se
transforma num monólogo autoritário, persuasivo, amável e violento.
Embora aparente a descontração da conversa dialogada, da doação de conselho,
tende ao monólogo pelo tom autoritário adotado na postura linguística da figura
paterna, para caracterizar o protótipo do medalhão, ironicamente referido como
aspiração máxima para selar a marcar de vencedor perante a sociedade. (CINTRA,
In: MARIANO & OLIVEIRA, 2003, p.160)
As relações entre Pai e Filho eram o modelo da desigualdade daquela sociedade,
nas quais o poder do Pai era quase de um Deus, que mandava na morte e na vida dos seus
subordinados, filhos, crianças, mulheres, escravos e dependentes.
Em Sobrados e Mocambos, Gylberto Freire dedica um capítulo inteiro a essas
relações. Relações que quase inexistem na infância, pois as crianças logo eram entregues para
21
Coletânea de Contos de 1884
75
educação. Educação rígida, dura e violenta. Ou dengos e mimos. Lembremos a deseducação
de Brás que quebrava a cabeça das escravas, montava em Prudêncio e na juventude gastava
todo o dinheiro que tinha com Marcela. E o que faz o Pai de Brás? Manda-o à Europa para
que os ares de Coimbra fizessem - no um homem ilustrado.
Os segredos que vão ser proferidos pelo Pai ao mancebo Janjão exigem a máxima
atenção, pois, são espertezas que devem ser muito bem apreendidas, e para isso é preciso estar
bem acordado, enquanto os outros dormem. Atentemos para o avançado da hora, e para o
detalhe que onze era o número de amigos que acompanharam o enterro do Medalhão Brás
Cubas, uma quantidade inglória ao homem que buscou em sua vida a nomeada e a
imortalidade.
Para amenizar o calor da noite carioca, o pai deixa a janela aberta, talvez tenha
sido por ela que alguém ao passar tenha ouvido essa conversa secreta. Janela, que o escritor
nos abre de forma hábil, como se nos induzisse a bisbilhotar e a esconder-nos junto a ele para
ouvir atentamente os sussurros vindos da alcova.
Janela aberta, que também pode significar que o ofício de Medalhão é forjado nas
ruas e não em casa, lugar do ostracismo e do esquecimento, logo podemos lembrar da
indistinção entre o privado e o público na vida brasileira, pois é dentro de casa que o filho terá
as lições de como se comportar da vida pública. E continua o Pai:
- Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta, chegaste
aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu
à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros...
(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 270)
A história ocorre após um jantar, guardemos essa informação, pois, voltarei a ela
mais adiante. Concentremo-nos nas outras duas: a data e a definição que o pai faz da
trajetória do filho. Já vimos que as relações entre pais e filhos no Brasil eram mediadas pelo
poder, indiferenças e mimos. De forma doce o Pai reduz o filho e sua vida até ali a uma frase
e só se apercebe que o pirralho de nada cresceu pelos bigodes e namoradas. Nada estranho
para a relação de distanciamento entre pais poderosos e filhos com pouco valor, voz e direitos,
desde cedo ensinados que o que valia era vontade do Pai, suas leis, regras e caprichos.
A data que aparece na citação acima é uma das chaves para entendermos as
tensões políticas da época do conto. O capítulo 2, seção 2.3, já debateu como a história é
76
importante na obra de Machado de Assis. O dia do nascimento de Janjão é 5 de agosto de
1854. A explicação a seguir é sobre Helena, mas nos serve para entendermos o panorama das
ideias e tensões em jogo, durante o ―tempo saquarema‖, diz Chalhoub:
Estamos na década de 1850, período que na memória política construída no século
XIX configurou-se como o apogeu do Segundo Reinado. A supressão das revoltas
provinciais que haviam marcado o período regencial e a década de 1840, o
arrefecimento das disputas políticas com a formação dos gabinetes de conciliação
dos partidos, o afastamento do perigo de intervenção inglesa com o fim do tráfico
negreiro, tudo isso serviu para construir a imagem de paz e prosperidade das décadas
de 1850 e 1860 (―o tempo saquarema‖), ao menos até o advento da Guerra do
Paraguai e das primeiras escaramuças parlamentares sobre a ―questão servil‖ – para
usar um eufemismo da época. (CHALHOUB, 2003, p. 65)
O ano em que Janjão nasceu é o ano que se inicia o período de domínio do
partido conservador, ou saquaremas, no gabinete imperial, auge do domínio senhorial no
império, da manutenção da escravidão, da década de cinqüenta é também a criação da Lei de
Terras, que legitimou e consolidou os poderes dos grandes latifundiários em detrimento da
usurpação das terras dos mais pobres. Nesse período se passa o romance Helena, que de
acordo com Chalhoub:
[...] é a descrição do período de hegemonia inconteste da classe senhorial-escravista,
cuja crise profunda o romancista vivenciaria entre 1866 e 1871, e cujo desmanchar
ele assistia com olhar investigativo no decorrer da década de 1870. Ao escrever
Helena, Machado não tinha mais ilusões quanto à continuidade das estruturas
tradicionais de poder. (CHALHOUB, 2003, p. 41)
Acontecimentos fundamentais para o entendimento da vida brasileira no século
XIX ocorrem em 1854, Janjão veio à luz no mesmo ano da inauguração da iluminação a gás
nas principais ruas cidade do Rio de Janeiro em 25 de março. No mesmo ano, Manuel
Antônio de Almeida publica o fundamental, Memórias de um sargento de milícias em
volume22
, outra luz para iluminar os brasileiros. As luzes não param por aí.
Em abril, é criada a Faculdade de Direito do Império e em setembro tiveram início as obras da
Estrada de Ferro D. Pedro II. Era o progresso chegando. Sobre a importância do progresso na
obra de Machado veja o que anota Faoro:
22
Cf. Candido – Dialética da Malandragem
77
O século XIX está bem presente na ficção do escritor e se expande no mito mais
caro ao tempo. Há, sempre que os fatos o demonstram, a manifesta alegria no
progresso de uma forma nova sobre uma velha: o bonde de eletricidade sobre o
bonde de burros, a influência do jornal (Misc., O jornal e o livro). A ideia de
progresso – o mito do progresso – penetra na ficção de Machado de Assis por meio
de uma inovação particular, que o simboliza e o expressa. Não o sensibiliza, senão
incidentalmente, o industrialismo, ou a revolução industrial. O progresso, para o
brasileiro no Segundo Reinado, ainda não se traduz em fábricas e usinas, em
siderurgia e estaleiros. Ele vive nas suas manifestações exteriores, acabadas: a
iluminação, o bonde, os serviços públicos. Trata-se de um progresso importado,
sobreposto a um país agrícola – resultado e não processo. [...] (FAORO, 2001,
p.191)
Mas 21 anos depois, em 5 de agosto de 1875, temos um Conservador ensinando
ao filho uma velha ideologia que ainda soa como nova, pois ainda era fundamental para a
construção do devir de sucesso a pouco menos de quinze anos antes da República. Temos
aqui outra pista, o jantar é na década setenta, o período é fundamental na obra machadiana,
quando ele acompanhou como funcionário público as tentativas de fazer valer a lei de 1871.
E claro o desrespeito a ela. Nesse período de vida do mancebo ainda temos os
acontecimentos de 1869, que abalaram o Império. A data do nascimento de Janjão nos remete
a outras duas datas, muitos tempos e várias historicidades, tempos dos homens, do conto, do
mito, do instante. Temos a data de publicação do conto 18 de Dezembro de 1881. Em 1881
completava dez anos da lei do ventre livre.
O filho é o que as moças casadouras chamavam de bom partido: advogado, com
algumas poses e posses que lhe serviam como senha para entrada no mundo dos amigos
influentes e importantes. Isso vale muito numa sociedade onde melhor que ser Imperador é ser
amigo do Imperador, ou de qualquer um que gravite ao redor desse grande sol.
O Pai logo deixa claro ao filho que a conversa não mais será entre o pai e filho,
mas entre iguais ou quase iguais, pertencentes ao mesmo estamento, a mesma classe, aos
mesmos códigos, aos mesmos embustes ideológicos, mas, como vimos, a igualdade é apenas
aparente:
- Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela
porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos,
algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na
imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas
carreiras diante de ti. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 270)
78
A necessidade de fechar a porta da sala é sinal de que agora serão revelados
segredos que só podem ser revelados a poucos privilegiados. Segredos sobre a rua cujas
pessoas não podem ouvir. Velha estratégia brasileira de manter o outro incapaz de ter
condições de refletir sobre sua própria realidade.
Imediatamente após mandar fechar a porta, o Pai começa a elencar os atributos do
filho que facilitarão para ele as portas sempre abertas: apólices e diploma. A ausência de um
dos dois dificultaria mais o projeto que está por ser exposto. Entre nós, como lembra Sérgio
Buarque de Holanda, o diploma substituiu os títulos de nobreza:
Numa sociedade como a nossa, em que certas virtudes senhoriais ainda merecem
largo crédito, as qualidades do espírito substituem, não raro, os títulos honoríficos, e
alguns dos seus distintivos materiais, como o anel de grau e a carta de bacharel,
podem equivaler a autênticos brasões de nobreza.(HOLANDA, 1995, p.83)
Uma vez endinheirado e diplomado no Brasil, você pode ocupar qualquer cargo
público, prefeito, deputado, dono de ONG, cantor... Aqui um indivíduo pode ser o que quiser
desde é claro que ele tenha amigos poderosos e algo para trocar com eles. É preciosa a
interpretação de Buarque de Holanda sobre o assunto. O historiador paulista nos diz:
...as atividades profissionais são, aqui, meros acidentes na vida dos indivíduos, ao
oposto do que sucede entre outros povos, onde as próprias palavras que indicam
semelhantes atividades podem adquirir acento quase religioso. Ainda hoje são raros,
no Brasil, os médicos, advogados,engenheiros, jornalistas, professores, funcionários,
que se limitem a ser homens de sua profissão.(HOLANDA, 1995, p.83)
Ao citar modelo de homem para o filho, diz o pai: ―Vinte e um anos, meu rapaz,
formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar de
precoces, não foram tudo aos vinte e um anos.‖ (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 270)
A citação do inglês e do francês não espanta numa sociedade que negava sua
história recente e seu passado colonial. Uma sociedade que ainda valorizava os seus heróis e
quase não os reconhecia, não tínhamos o amor por nossos bandeirantes como os americanos
do Norte tinham por seus pioneiros. O Imperador que tinha o poder desde a adolescência
chegara ao trono devido um golpe político. O dever ser de Janjão não deveria ter como meta
heróis brasileiros, mas heróis do velho mundo, o que mais uma vez explicita aquilo que
Roberto Schwarz chamou de ideias fora do lugar, o uso de ideologias, formas que aqui
79
chamamos de Contrato por uma sociedade que em sua essência negava a liberdade e a
igualdade. A forma do herói é importada, sua essência nacional!
Ao Pai não importava a profissão que o filho escolhesse, desde que ele
conseguisse torna-se ―grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da
obscuridade comum.‖. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 270) O pai diferencia o grande e o ilustre dos
notáveis, ambos jogam o mesmo jogo, mas nele brilham de forma diferente. Os primeiros
frequentam o paço, estão nas notícias, não vão ser esquecidos; os outros têm fama, mas
passageira, não passam despercebidos na rua e nas festas, os olhares e os cochichos os
acompanham, mas vão ser esquecidos. O mesmo conselho é dado por Bento Cubas ao filho
Brás:
Teme a obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por
diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros
homens. Não estragues as vantagens da tua posição, os teus meios... (ASSIS, 2008,
Vol. I, p. 662)
As vantagens da posição e os meios de Cubas, filho da elite, senhor proprietário,
não eram os mesmos de Janjão, bacharel, mas que fazia parte da classe média carioca. Cubas
sonhou em ser ministro, o pai de Janjão se contentaria com a notabilidade, o que limita os
sonhos de cada um são as diferentes e desiguais formas de acessos aos meios disponíveis de
subir na vida, disponíveis e compatíveis com a posição de um deles na vida social. Nas
relações clientelistas que pudessem estabelecer com outros em suas vidas Brás Cubas seria o
Senhor e o Janjão o Dependente, que combina a subserviência aos superiores na hierarquia
social e o autoritarismo com os pobres e dependentes.
A opinião dos outros vale mais que qualquer coisa e viver pela opinião dos outros
é renunciar a si mesmo para desenvolver a arte que diz que o importante não é o que você é,
mas o que você aparenta ser. Essa fórmula foi caracterizada por Buarque de Holanda como
um ―certo viver nos outros‖, que embora pareça que seja uma forma de aproximação é na
verdade um meio de criar barreiras entre as pessoas, pois, o outro incomoda tanto que é
preciso criar uma armadura de proteção, uma ―alma exterior‖, que ao mesmo que tempo que
isola as pessoas uns dos outros permitindo o exercício da indiferença social serve para fazer a
―alma interior‖ valer alguma coisa por meio de uma falsa aproximação e preocupação com a
opinião dos outros homens, só interessa a opinião de certos homens, os padrinhos e os
bajuladores, não de todos eles.
80
Essa teoria aparece no conto, O espelho que narra a história de Jacobina cuja farda
de alferes, sua ―alma exterior‖, o seu lado inequivocamente social, aparece como o vencedor
da ―alma interior‖, em que residiria primeiro o ―homem‖, antes de ser dominado pelo
interesse de subir na vida e destacar-se dos demais. A mensagem da história é que ―o alferes
elimina o homem‖, mas a farda sem uma sociedade que a admire, sem seus bajuladores não
passava de uma moldura carcomida sem valor algum.
O Pai garante ao filho que melhor atitude na sua sociedade é não questionar e não
criticar a posição dos estamentos e das classes, é útil ser conservador e exercitar o não
questionamento, para não correr o risco de desagradar àqueles a quem não interessa a
interrupção da ―ordem‖ das coisas, pois, o ―rasgo peculiar do medalhão‖ é ―uma certa atitude
de deus Término‖, o Deus da imobilidade, da conservação, da não mudança. Na citação
abaixo, temos uma comparação entre a vida e a loteria, que isenta os homens de qualquer
culpa sobre sua realidade, ao mesmo tempo acaso e destino são usados como explicação para
aceitar a vida de forma passiva sem questionamentos, criticas e autocríticas.
- A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados
inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de
outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas
integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.
[Grifos Meus] (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 270)
Se a sociedade era escravocrata e a libertação dos escravos representa perigo ao
lucro dos Senhores, não existiriam motivos razoáveis para arriscar a estabilidade de uma
ordem que sustentava as elites desde as priscas eras coloniais, afinal nossa Escravidão era
doce, como diziam os defensores dessa imprescindível instituição do Brasil Imperial. Ou para
questionar o poder de nossos Senhores se era tão boa nossa elite ao ponto de acolher parentes
e dependentes pobres em seus sobrados e fazendas. Cada um cuide de seus percalços no
caminho da glória deixando que os outros arquem seus ônus sem incomodar.
Não basta ter dinheiro para torna-se Medalhão, mas sem dinheiro é quase
impossível que alguém consiga chegar a ser um, o Pai lembra ao filho: ―que é de boa
economia guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um
ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da
nossa ambição.‖ A forma concisa que importância de guardar dinheiro para velhice aparece
no conto resume com muito desdém o que em outro célebre conselho Benjamin Franklin leva
81
alguns parágrafos para dizer.23
Lembrando que o planejamento não fazia mesmo parte da
forma como os brasileiros viviam sua vida, somos os Aventureiros como nos chamou Sergio
Buarque.
Ambição do Pai é imposta ao filho como forma de remediar sua frustração por ele
mesmo não ser Medalhão, nem mesmo teve a experiência de ser um notável, assim atentemos
para o detalhe que aquilo está sendo ensinado não é fruto de sua experiência pessoal, da sua
vivência cotidiana, mas fruto de como ele compreendeu o Medalhão a partir de suas
impressões, do seu convívio próximo ou não de alguns Graves que ele conheceu e
principalmente daquilo que ele ―ouviu dizer‖, nas ruas, nos bailes, nas anedotas, enfim no
imaginário social dominante.
Antes de avançarmos nos segredos, observemos que a escolha da maioridade para
revelação desses segredos pode ser uma alusão a própria maioridade do Imperador, antecipada
por um golpe, mas que na verdade entrou para história oficial e para o imaginário coletivo
como uma obediência ao direito e a maturidade do Imperador de assumir o poder com a
famosa frase: ―Quero já!‖. O diálogo entre pai e filho é um tipo de rito de passagem do
mancebo ao homem da polis, e por aqui ter sucesso na Ágora significa ser Medalhão.
A alusão ao Imperador também reaparece na referência a idade ideal para se
tornar um completo Medalhão: quarenta e cinco anos.
- É verdade, por que quarenta e cinco anos?
- Não é, como podes supor, um limite arbitrário, filho do puro capricho; é a data
normal do fenômeno. Geralmente, o verdadeiro medalhão começa a manifestar-se
entre os quarenta e cinco e cinquenta anos, conquanto alguns exemplos se dêem
entre os cinquenta e cinco e os sessenta; mas estes são raros. Há-os também de
quarenta anos, e outros mais precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são, todavia,
vulgares. Não falo dos de vinte e cinco anos: esse madrugar é privilégio do gênio.
(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 271)
Uma hipótese para a idade ideal de um Medalhão ser quarenta e cinco anos é o
fato que foi por volta dessa idade que a barba de D. Pedro II começou a embranquecer,
herança de família, pois, os Bragança ficavam grisalhos bem jovens. Mas essa passagem da
idade guarda outra coisa bem interessante, o Pai faz questão de deixar claro o que ele diz
sobre a idade não tem como fundamento o puro capricho. Será mesmo que não? Afinal, a
23
Conselho de Benjamin Franklin citado por Weber na Ética Protestante.
82
própria conversa não é um capricho do Pai? A advertência também vale para pensarmos
quantas vezes esse Pai já impôs ao filho suas verdades vindas do capricho?
Afinal de contas entre nós o capricho e a vontade do mais forte na relação de
poder sempre valem mais que até mesmo a vida do outro. Lembremos os caprichos de Brás
Cubas, aliás, o Brás que Schwarz nos apresentou é um sujeito caprichoso e volúvel que por
força da sua condição de senhor impõe aos outros suas vontades e os fazem dançar ao som da
música que ele tocar.
Num clima de imposição açucarada o Pai continua incutindo no filho várias ideias
e dicas de como ir galgando seu caminho para longe da obscuridade, para que pudéssemos
trabalhar com tantas informações de forma mais segura propomos três pacotes de imagens que
vamos chamar de os três Segredos do Medalhão, são eles: a) O regime do aprumo e do
compasso b) A arte de pensar o pensado c) Compra um carneiro e da-o aos amigos. Vamos a
cada um deles isoladamente, mas fazendo a ressalva que eles só podem ser entendidos de
forma complexa, sistêmica e dialógica.
83
3.1 O regime do aprumo e do compasso
Se fizermos uma enquete rápida com pessoas nas ruas de Fortaleza sobre que
imagem lhe vem à cabeça quando lhe pedimos para falarem sobre os ocupantes dos cargos
públicos no Brasil, não seria espantoso se muitos se referissem aos paletós, aos gestos
perfilados, aos tapinhas nas costas; alguém até poderia dizer que quem já viu um deputado já
viu todos, pois, parecem que todos seguem o mesmo figurino, o mesmo compasso, a mesma
coreografia. Coreografia que tem na gravidade seu ponto de equilíbrio, que Machado de Assis
nos apresenta como o regime do aprumo e do compasso. O medalhão é antes de tudo um
grave e esse será o tema da presente seção.
O sábio que disse: "a gravidade é um mistério do corpo", definiu a compostura do
Medalhão. Não confundas essa gravidade com aquela outra que, embora resida no
aspecto, é um puro reflexo ou emanação do espírito; essa é do corpo, tão-somente do
corpo, um sinal da natureza ou um jeito da vida. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 270)24
O regime do aprumo e do compasso é a máscara do Medalhão, a ―bandeira dos
neutros em tempo de guerra: salva do exame a carga que cobre.‖ (Bodas de Luiz Duarte); é o
cultivo do ar pesadão, na busca por decorar as composturas e posturas sociais. Ser um grave é
compreender a linguagem corporal da ―cordialidade‖, é saber encenar o como olhar; falar;
calar; vestir-se com esmero à moda europeia e abandonar modos e hábitos não condizentes
com os manuais de etiqueta ingleses e franceses habilmente imitados pelas elites do Brasile de
então.
Um grave sabe ficar calado para simular circunspecção; comportar-se nos
jantares, na presença dos poderosos e não importuná-los; sabe arquear os braços com graça ao
usar imagens gregas num discurso seja ele no parlamento, ao piano, no Alcazar Lírico, nos
velórios ou na União dos Cabeleireiros.
24 O sábio citado pelo pai é o moralista francês Duque de La Rochefoucauld (1613-1680), autor do livro
Reflexões ou sentenças e máximas morais, de 1664.
84
Faoro nos explica a função dessa gravidade na vida brasileira e como Machado
consegue perceber como ela aparece diluída por toda sociedade, como uma segunda verdade,
que serve ao mesmo tempo como escudo e estandarte no jogo social das aparências:
[...] nos seus trajes e na sua elegância, dão nota da pretensiosa classe média do
tempo. Casa arrumada, vacuidade intelectual, gravidade artificial de maneiras, estão
aí para caracterizar toda uma espécie. A gravidade do corpo – não o ―puro reflexo ou
emanação do espírito‖[...] – servirá de adorno a uma reputação sem alcance. [...]
requisito primeiro para a nomeada pública. [...] Instrumento único para duas
funções: o acatamento incolor das reuniões caseiras e a projeção maquiavélica no
alto mundo. O escritor percebe o fundo comum e o acentua sutilmente. Ambos os
círculos ostentam, na sua segunda verdade, na verdade para uso exterior e moeda de
troca, a falsidade íntima de toda a sociedade, seu pecado secreto. O moralismo põe,
em todas as ocasiões, no sarcasmo e na aparente seriedade, as garras de fora. Todos
são vítimas, atores e autores, do pomadismo (P.A O segredo do bonzo), teoria que
modela a vida social e espreita as consciências, com o riso torto nos lábios, no
retrato caricatural das personagens e na correção da casaca. [Grifos Meus] do autor
(FAORO, 2001, p.298)
Ao jogar luz sobre o grave, o moralista denuncia a artificialidade das maneiras e
das formas sociais importadas denuncia uma sociedade que está sempre fingido ser algo que
não é, que busca o ouro, mas se contenta com o dourado, criando um jogo onde a casaca
esconde as intenções secretas dos interesses dos homens por baixo dos títulos e comendas.
Agora é Machado de Assis que nos explica melhor a gravidade. A passagem é do
conto as Bodas de Luiz Duarte, de 1873 e republicado no Histórias da Meia Noite, temos aqui
uma cena que expõe esse modo de coreografia social a que Faoro se referiu:
José Lemos correu a abraçar o Dr. Valença; mas este que era homem formalista e
cerimonioso, repeliu brandamente o amigo, dizendo-lhe ao ouvido que naquele dia
toda a gravidade era pouca.
Era ele homem de seus cinquenta anos, nem gordo nem magro, mas dotado de um
largo peito e um largo abdômen que lhe davam maior gravidade ao rosto e às
maneiras. O abdômen é a expressão mais positiva da gravidade humana; um homem
magro tem necessariamente os movimentos rápidos; ao passo que para ser
completamente grave precisa ter os movimentos tardos e medidos. Um homem
verdadeiramente grave não pode gastar menos de dois minutos em tirar o lenço e
assoar-se. O Dr. Valença gastava três quando estava com defluxo e quatro no estado
normal. Era um homem gravíssimo. Insisto neste ponto porque é a maior prova da
inteligência do Dr. Valença. Compreendeu este advogado, logo que saiu da
academia, que a primeira condição para merecer a consideração dos outros era ser
grave; [...] Podia-se dar uma boa gratificação a quem descobrisse uma ruga na
casaca do Dr. Valença. O colete tinha apenas três botões e abria-se até ao pescoço
em forma de coração. Um elegante claque completava a toilette do Dr. Valença.
(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 178-179)
85
Temos no trecho um retrato do Grave com seus gestos lentos, indumentária
impecável e largo abdômen. A casaca e os vestidos de festa eram a alma exterior do Medalhão
e de sua Consorte, a atenção ao detalhe da não existência de uma só ruga na roupa mostra
como o cuidado com a elegância é fundamental para as convenções sociais. No conto
―Ernesto de Tal‖, o personagem deixar de participar de um evento social por não possuir uma
casaca o cúmulo do constrangimento social numa sociedade na qual os ministros tinham
fardões ricamente confeccionados.
No conto ―Visita de Alcebíades‖, temos uma completa descrição da moda
masculina no século XIX, no conto um homem narra que foi obrigado a vestir-se para ir a um
baile tendo como espectador o grego Alcebíades que com muita ironia analisava e desdenhava
da sua indumentária. O visitante da Antiguidade chamou-lhes as calças de canudos pretos e
achara o preto uma cor feia para usar em roupas. ―— Feia, mas séria, disse-lhe. Olha,
entretanto, a graça do corte, vê como cai sobre o sapato, que é de verniz, embora preto, e
trabalhado com muita perfeição.‖ (ASSIS, 2008, Vol. II, p.332)
No Brasil, os sapatos sempre foram símbolo de poder e glamour, lembremos que
os escravos não usavam sapatos, seu uso era privilégio dos homens livres, artigo de luxo que
brilhava nas vitrines da rua do Ouvidor, quanto mais caros os sapatos mais respeitados eram
os homens diz Machado: ―Mais de um não olha para suas ideias com a mesma satisfação com
que olha para suas botas. [...] a bota é a metade da circunspecção, todo caso é a base da
sociedade civil...‖( ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1245)
O narrador do conto continuou a vestir-se, atou a gravata, colocou a casaca e
ouviu do visitante grego que disse-lhe consternado:
— Por Afrodite! exclamou ele. És a coisa mais singular que jamais vi na vida e na
morte. Estás todo cor da noite — uma noite com três estrelas apenas —
continuou apontando para os botões do peito. O mundo deve andar
imensamente melancólico, se escolheu para uso uma cor tão morta e tão triste.
Nós éramos mais alegres; vivíamos... (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 332)
A melancolia é um dos traços, segundo um pensamento hegemônico no século
XIX, que fazia parte da formação dos brasileiros, uma característica da nossa ―raça‖ híbrida,
mas que na verdade era originário dessa formação social na qual não existia condições de
objetivas e subjetivas que garantissem a felicidade e o bem estar da maioria da população. O
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conto termina com Alcebíades desmaiando quando o homem completa sua armadura social ao
colocar o chapéu uma última ironia sobre os trajes do tempo:
— Oh! venha alguma coisa que possa corrigir o resto! tornou Alcibíades com voz
suplicante. Venha, venha. Assim pois, toda a elegância que vos legamos está
reduzida a um par de canudos fechados e outro par de canudos abertos (e dizia isto
levantando-me as abas da casaca), e tudo dessa cor enfadonha e negativa? Não, não
posso crê-lo! Venha alguma coisa que corrija isso. O que é que, falta, dizes tu?
— O chapéu.
— Põe o que te falta, meu caro, põe o que te falta.
Obedeci; fui dali ao cabide, despendurei o chapéu, e pu-lo na cabeça. Alcibíades
olhou para mim, cambaleou e caiu. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 333)
Um texto de 1878 publicado na revista O Cruzeiro, por Machado de Assis, usando
o pseudônimo de Eleazar nos traz uma última ilustração da importância dessa elegância na
vida social e sobre o que ele representava. O texto se chama Filosofia de um par de botas, um
homem ao digerir seu almoço na praia acaba por presencia um par de botas velho filosofava
sobre sua vida na beira da praia. Elas diziam que o melhor período de suas vidas foi quando
foram compradas pelo Dr. Crispim um homem que não andava muito a pé, não dançava e
passava boa parte do dia jogando o voltarete, sempre andava de carro e trocava de sapatos
sempre. À medida que iam envelhecendo, iam sendo dadas a alguém mais pobre que o dono
anterior até terminarem abandonadas na praia e depois apanhadas por um mendigo que por ali
passava descalço. Mas antes de serem apanhadas elas são portadoras de uma verdade:
Bota esquerda – Não reparaste que, à medida que íamos envelhecendo, éramos
menos cumprimentadas?
Bota Direita – Talvez.
Bota Esquerda – Éramos, e o chapéu não de engana. O chapéu fareja a bota...
(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1245)
87
3.2 A arte de pensar o pensado
Alguns costumam renovar o sabor de uma citação
intercalando-a numa frase nova, original e bela, mas não
te aconselho esse artifício: seria desnaturar-lhe as graças
vetustas. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 272)
Pensar o pensado é arte mais cara ao Medalhão, aquele que a domina e sabe usá-la
evita muitos dissabores em sua vida, pois, protege do perigoso ato de ter ideias próprias, que
leva ao risco de criar novas relações e possibilidades de vida que podem chocar e se chocar
contra o que é socialmente legitimado.
- Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas
ideias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter
absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator
defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o
defeito aos olhos da platéia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá
com as ideias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem
essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida.
(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 271)
As ideias uma vez nascidas devem ser abafadas, mas o melhor é cuidar para que
não apareçam, ou seja, quanto menos a reflexão for exercitada, mais fácil será o ofício. O
homem deve gastar suas opiniões e sua capacidade de reflexão com sapatos, casacas e
chapéus, sempre de forma eloquente e elegante.
A retórica e a eloquência que aos gregos servia como meio para buscar a
imortalidade para os medalhões são armas para enganar, ludibriar, convencer aos outros que
uma ideia que beneficia unicamente a quem a defende é de interesse público. É a aplicação de
uma fórmula criada por um velho Bonzo que diz: ―se uma coisa pode existir na opinião, sem
existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas
existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas
conveniente.‖ (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 303) A retórica praticada como a arte da enganação é
o fundamento dessa doutrina e seus adornos são velhas fórmulas consagradas pelo imaginário
coletivo.
Janjão é portador da inópia mental necessária ao desenvolvimento da arte por sua
habilidade de repetir sem refletir numa sala as ideias ouvidas numa esquina e vice versa, mas
pela forma como discorria verborragicamente e perfilado sobre futilidades e coisas inúteis.
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- Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental,
conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que
repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato,
posto indique certa carência de ideias, ainda assim pode não passar de uma traição
da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender
francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das
dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma
eloquente, eis aí uma esperança, (ASSIS, 2008, Vol. II, p.271)
O vulgo sabe distinguir o Medalhão completo do incompleto por essa capacidade
que o Medalhão tem de dizer sempre as mesmas coisas, de falar de futilidades e frivolidades
como tamanha circunspecção e garbo que as faz parecer importantes e dignas de um discurso
tão bem elaborado. Mas o que fazer para não ter ideias?
O pai sugere que o filho siga um ―regime debilitante‖ lendo compêndios de
retórica, ouvindo certos discursos, jogando o voltarete, o dominó, o whist e o bilhar ou
caminhando pelas de ruas de recreio e parada, em resumo sempre buscar a companhia de
outros, não por pretender que eles lhe acrescentem algo novo, mas com o fim de evitar a
solidão que é oficina de ideias.
Porém, duas dessas atividades tem melhor resultado, elas estão diretamente
relacionadas ao oficio de Medalhão: ―O whist tem até a rara vantagem de acostumar ao
silêncio, que é a forma mais acentuada da circunspecção.‖ e o bilhar, pois, ―as estatísticas
mais escrupulosas mostram que três quartas partes dos habituados do taco partilham as
opiniões do mesmo taco.‖ (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 271)
Outra forma de exercitar o pensar o pensado é não ler, mas sempre tendo o
cuidado de ir às livrarias para ser visto, catar uma ou duas ideias lançadas ou simplesmente
para:
[...] falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma
calúnia, de um cometa, de qualquer coisa, quando não prefiras interrogar
diretamente os leitores habituais das belas crônicas de Mazade; setenta e cinco por
cento desses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões, e uma tal
monotonia é grandemente saudável. [...] Não trato do vocabulário, porque ele está
subentendido no uso das ideias; há de ser naturalmente simples, tíbio, apoucado,
sem notas vermelhas, sem cores de clarim... (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 272)
Hoje em tempos de games, redes sociais, BBB, esportes ao vivo na TV, indústria
cultural ficou bem mais fácil reduzir o intelecto, acostumar-se ao silêncio e ao mesmo tempo
compartilhar milhões de futilidades e opiniões dos amigos. Como ficou mais fácil encontrar
frases prontas, ideias alheias e dizer que elas são suas e de forma tão rápida e eficiente que
poucos vão mesmo atrás de saber se você leu o livro todo ou resumo no Google. Frequentar
89
livrarias para ser visto, conversar amenidades ou ouvir opiniões sobre coisas que não levem a
reflexão das contradições cotidianas, tudo é válido na busca pela saudável monotonia.
Monotonia que se estendia à vida política e social no Brasil. Numa crônica de 29
de maio de 1892 mostra os resultados dessa falta de ideias, dessa aversão ao debate:
Ora, é certo que nós não damos para reuniões. Não me repliquem com teatros
nem bailes; a gente pode ir ou não a eles, e se vai é porque quer, e quando
quer sair, sai. Há os ajuntamentos de rua, quando alguém mostra um assovio
de dois sopros, ou um frango de quatro cristas. Uma facada reúne gente em
torno do ferido, para ouvir a narração do crime, como foi que a vítima vinha
andando, como recebeu o empurrão, e se sentiu logo o golpe. Quando algum
bonde pisa uma pessoa, só não acode o cocheiro, porque tem de evadir-se;
mas todos cercam a vítima. Há dias, na Rua do Ouvidor, um gatuno agarrou
os pulsos de uma senhora, abriu-lhe as pulseiras, meteu-as em si, e fez como,
os cocheiros. Mas não faltaram pessoas que rodeassem a senhora, apitando
muito.
Tudo por quê? Porque são atos voluntários, não há calendários, nem relógio,
nem ordem do dia; não há regimentos. O que não podemos tolerar é a
obrigação. Obrigação é eufemismo de cativeiro: tanto que os antigos escravos
diziam sempre que iam à sua obrigação, para significar que iam à casa dos
senhores. Nós fazemos tudo por vontade, por escolha, por gosto; e, de duas
uma: ou isto é a perfeição final do homem, ou não passa das primeiras
verduras. Não é preciso desenvolver a primeira hipótese; é clara de si mesma.
A segunda é a nossa virgindade, e, quando menos em matéria de amofinações
políticas ou municipais, é preciso aceitar a teoria de Rousseau: o homem
nasce puro. Para que corromper-nos? (ASSIS, 2008, Vol. IV, p. 892)
A comparação da ausência da prática da política na vida cotidiana no Rio de
Janeiro ao estado de Natureza de Rousseau no qual o homem ainda não tinha sido corrompido
e, portanto não precisava preocupar-se com política, estratégias de defesa e conflitos pela
propriedade é desconcertante pela intensidade e sofisticação do argumento. O cronista é tão
zombeteiro e sarcástico quanto o contista. A fuga do cocheiro do bonde que como o ladrão
erra e foge mostra que a indiferença é diluída na sociedade que é por si mesma totalmente
corrompida. Em 1901, Machado de Assis contava ao amigo Veríssimo a seguinte anedota que
ilustra bem nosso argumento
[...] Foi no tempo da Constituinte, que se reunia no palácio de São Cristovão. Uma
vez, indo eu para lá, encontrei no bonde um membro daquela assembléia, que me
falou queixoso, aborrecido, zangado com a estafa e morto por que acabasse a
Constituição e voltassem as câmaras para baixo. Eu refleti comigo que, se para
fundar um regime, não havia da parte de alguns paciência bastante, pouca haverá
para outras obras menos relevantes. [...] (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1380)
Se não há paciência para pensar e refletir a política e reinventar a vida o que resta
ao Medalhão? As frases feitas, as fórmulas consagradas, as mesmas ideias já pensadas para
90
uso em discursos à mesa, ao túmulo, para agradecer ou felicitar: ―de fórmulas consagradas
pelos anos, incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de
não obrigar os outros a um esforço inútil.‖ Melhor do que fazer um grande esforço para mudar
uma lei éter que discutir, analisar, refletir o Pai aconselha ao filho a simplesmente dizer por
piedade aos seus semelhantes ―Antes das leis, reformemos os costumes! - E esta frase
sintética, transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum, resolve mais depressa o problema,
entra pelos espíritos como um jorro súbito de sol.‖
De todas as imagens gregas e latinas que poderia usar Machado de Assis escolheu
quatro para ilustrar a fala do pai ―A hidra de Lerna, a cabeça de Medusa, o tonel das
Danaides, as asas de Ícaro, [...]‖Ao analisar essas citações mitológicas escolhidas por
Machado, Montesini aponta para o fato o qual elas possuem um mitema comum e guardam
uma lição preciosa:
A nosso ver, a reunião das citações mitológicas no parágrafo do texto machadiano
induz a uma reflexão sobre os conselhos do pai de Janjão, pois foi mostrado pelos
mitos, por um lado, que a sabedoria e a inteligência vencem. Por exemplo, apesar de
Hércules ser muito forte, é pela inteligência que ele vence a Hidra de Lerna; o
mesmo acontece com Perseu, que somente derrotou Medusa pelo estratagema
ensinado pelos deuses. Outra forma de ironia consiste na seleção de personagens
mitológicos que perderam a cabeça. Acreditamos que seja um emprego irônico, pois
o pai de Janjão o aconselha a agir de forma a ―vencer na vida‖, mas tornando-se uma
pessoa sem vontade, sem inteligência, sem vocabulário, como ficaram a Hidra, a
Medusa, e os maridos das Danaides que tiveram as cabeças decepadas. Ícaro, por
sua vez, não teve juízo ou, popularmente falando, não teve ―cabeça‖ e acabou
perdendo a vida por isso. (MONTESINI, 2003 p.334)
A autora nos sugere outra interessante interpretação sobre o significado do Mito
de Ícaro para esse conto:
Preste atenção, Ícaro. Quando você se lançar ao ar, Não voe muito baixo, ou a água
molhará as penas desta asa e elas pesarão e você cairá. E não voe muito alto, ou o
calor do sol as queimará. Fique sempre no meio termo. E mais uma coisa, Não se
iluda pensando que é uma estrela ou constelação, Siga a minha orientação!
(OVÍDIO apud MONTESINI, 2003 p.334)
A prudência é outra arma numa sociedade onde o poder pessoal e os caprichos
ditam as normas todos os cuidados são pouco para não desagradar, lembremos Capitu que
sabia que a melhor forma de uma pessoa como ela vencer na vida era aos saltinhos. Quem
tenta quebrar as distâncias sociais de forma abrupta tem o mesmo destino de Ícaro que
esqueceu os conselhos do pai e voou tão alto que os raios do sol amoleceram a cera mantinha
as penas de suas asas unidas e elas se dissolveram, levando Ícaro a cair e morrer afogado. O
91
grande Medalhão sabe manter-se no limite da invejável vulgaridade, sabe apropriar-se da
denominação das terminologias Modernas, mas cuidando de não tentar meditá-las e jamais
aplicá-las. O filho pergunta ao pai:
- Vejo por aí que vosmecê condena toda e qualquer aplicação de processos
modernos.
- Entendamo-nos. Condeno a aplicação, louvo a denominação. O mesmo direi de
toda a recente terminologia científica; deves decorá-la. (ASSIS, 2008, Vol. II, p.273)
Janjão é bacharel, sendo assim conhecia o pensamento Moderno que reforçado
pelo conselho do pai continuou ser mero instrumento de construção de uma falsa imagem de
homem Moderno, cidadão, participante de um contrato entre iguais, pensamos igualdade
como a pensou Tocqueville, como condições iguais de exercício das liberdades. Os valores do
mercado, do contrato e seus arautos não passam de nomes dourados para enfeitar a sala e
impressionar as visitas, servem ao Medalhão meramente para ser metido num debate sobre
frivolidades ou questões sociais desde que deixe nos ouvintes um pontinha de inveja por tanta
sabedoria. O uso dessa terminologia deve ser comedida e com esperteza como a costureira
esperta e afreguesada que: ―Quanto mais pano tem, mais poupa o corte, Menos monte
alardeia de retalhos; e este fenômeno, tratando-se de um medalhão, é que não seria científico.‖
(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 273)
A costura dessas ideias importadas, de todo o nosso arsenal de verdades vindas de
uma realidade tão distantes e diferentes das nossas com a nossa colonial cultura e estrutura
patriarcal causavam um complexo desconcerto ideológico e social que para Schwarz é o fio
de Ariadne que pode nos conduzir nesse labirinto que é a obra de Machado de Assis.
Embora as ideias fora do lugar permeiem todos os espaços da vida brasileira nos
limites que acabamos de explicar o campo privilegiado para acompanharmos seu desenrolar é
a vida política. O medalhão não deve ter convicções e paixões partidárias, deve usar o partido
como o scibboleth bíblico, uma senha que lhe garanta o acesso ao convívio com os poderosos.
Não importa ser liberal, conservador ou republicano desde que essas palavras sejam simples
meios de gozar da atenção pública.
O mesmo ocorre quanto aos discursos eles devem ser pensados, como forma de
chamar a atenção, provocar os apartes, as réplicas e tréplicas. Os discursos podem ser sobre
os negócios miúdos ou metafísica política
[...] Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de bom-
tom, própria de um medalhão acabado; mas, se puderes, adota a metafísica; - é mais
fácil e mais atraente. Supõe que desejas saber por que motivo a 7ª companhia de
92
infantaria foi transferida de Uruguaiana para Canguçu; serás ouvido tão-somente
pelo ministro da guerra, que te explicará em dez minutos as razões desse ato. Não
assim a metafísica. Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os
partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e
descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado,
rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória.(ASSIS, 2008, Vol. II p.
275)
Faoro nos explica melhor sobre a aplicação do pensar o pensado aos discursos no
parlamento, o mais impressionante na passagem é que a crítica ainda faz muito sentindo se a
aplicarmos a boa parte dos discursos que ouvimos nas tribunas contemporâneas.
[...] Os oradores ocupam a tribuna, com solenidade e circunspecção, para dizer
coisas triviais ou para vôos que o autor qualifica metafísicos. Há os dois extremos e
os dois estilos: o terra-a-terra, que discute o orçamento e as nomeações, e a águia,
que não se preocupa com as moscas. João Brás (H.S.D.) ‗fez discursos bons, não
brilhantes, mas sólidos, cheios de fatos refletidos‖, [...] Do mesmo estofo era a
oratória de Lobo Neves, agarrada ao orçamento e aos fatos, preocupada com os
cabos eleitorais e os chefes políticos de paróquia (M.P. CXXVIII e LVIII). Brás
Cubas está no outro lado: parte do fato miúdo para se erguer à filosofia e à literatura.
Até aos cinquenta anos cortejava a cobiçada pasta ministerial, com o jogo sem
brilho: ―rapapés, chás, comissões e votos‖. Apoderava-se da tribuna para fazer o
nome consagrado, e elege, a propósito da barretina da Guarda Nacional, o debate
alto, intangível aos rasteiros cuidados dos cortejadores do fardão ministerial, os de
passo miúdo e cauteloso (M.P. CXXXVII). O trivial e o sublime se misturam,
confundindo os dois gêneros de oratória do tempo, com o predomínio do estilo dito
filosófico. [...] O conteúdo trescala liberalismo, em forma de sátira, a tese verdadeira
do discurso, armado sobre um problema ínfimo. A miniatura inchada, a citação sem
propósito, o enxerto literário e filosófico a propósito de quase nada – esta a crítica
oratória parlamentar. (FAORO, 2001, p.188-189)
Ainda analisando o tema Faoro diz que ao contrário do que pensa o Pai de Janjão
os negócios miúdos também põem fogo no parlamento e inflamam as paixões a tal ponto que
de uma simples demissão de coletores de impostos pode gerar monções que derrubam
ministérios. (Cf. FAORO, 2001, p.190) Assim concluímos essa seção com a sensação de que
apesar das mudanças dos temas a forma dos discursos pouco mudou nos últimos cento e
cinquenta anos pintando em novas cores a velha invejável vulgaridade.
93
3.3 Compra um carneiro e dá-o aos amigos
[...] Dessa maneira o nome fica ligado à pessoa; os que
houverem lido o teu recente discurso (suponhamos) na
sessão inaugural da União dos Cabeleireiros,
reconhecerão na compostura das feições o autor dessa
obra grave, em que a "alavanca do progresso" e o "suor
do trabalho" vencem as "fauces hiantes" da miséria.
(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 274)
Se compararmos o medalhão a um ator, podemos dizer que a gravidade é sua
expressão corporal, a casaca seu figurino, a arte de pensar o pensado seu texto e qual seria o
seu cenário, o seu palco? O parlamento, as livrarias, os bares, as esquinas servem muito bem,
mas não há palco melhor e mais propício para um medalhão do que um jantar.
Os jantares, os bailes, os saraus, as festas sempre aparecem na obra de Machado
de Assis como lugar de encontros dos que compartilham ou fingem compartilhar das mesmas
ideias refinadas e gostos europeus, lugar para fazer alianças, casamentos, homenagear ilustres
ou a si mesmos, numa linguagem mais atual para conseguir aumentar seu networking de
favores.
Nos jantares é possível combinar a gravidade, a elegância, a retórica e a
publicidade. De acordo como Pai quase medalhão a publicidade é ―uma dona loureira e
senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas
miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição.‖
(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 273)
A constância ao invés do atrevimento relembra o conselho do Dédalo a Ícaro de
que todo cuidado é pouco para não infringir as distâncias pré-estabelecidas, de não parecer
ambicioso, numa linguagem mais coloquial como dizem no interior do Ceará, de não ―querer
ser o que não pode‖. O melhor alvitre é bajular, mimar, esperar a hora certa. A glória não cai
do céu, o Medalhão tem que lutar para fugir da obscuridade e ser lembrando, convidado,
consultado, não por ações heróicas, mas por outros caminhos:
Que D. Quixote solicite os favores dela mediante, ações heróicas ou custosas, é um
sestro próprio desse ilustre lunático. O verdadeiro medalhão tem outra política.
Longe de inventar um Tratado científico da criação dos carneiros, compra um
carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser
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indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe
o teu nome ante os olhos do mundo. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 273)
Na ―tribo‖ dos Medalhões um jantar para os amigos é melhor caminho que as
ideias científicas à glória e a nomeada, o medalhão ganha sustento, se legitima socialmente e
torna-se fórmula de sucesso público.
[...] Por motivo de casamento, aniversário, batizado, sem nenhum motivo, o
funcionário aposentado, o militar reformado, o pequeno comerciante promovem
festas e jantares. A nota expressiva dos encontros cabe às pessoas, nos seus trajes e
na sua solenidade, e às ideias, extravasadas em tom oratório, a pretexto de brindes.
As pessoas e as ideias formam a classe média, com suas esperanças ingênuas e sua
cultura de terceira mão, enfeitada de mau gosto. (FAORO, 2001, p.302)
A política do Medalhão não se faz pela cabeça, mas pelo estômago, afinal em
boca fechada não entra mosca e nada melhor que uma mesa farta para manter as bocas
ocupadas com algo menos perigoso que ideias. Em um país onde a fome da maioria da sua
população é um dado quase estrutural, onde a produção de alimentos não era feita em massa e
os preços dos insumos eram muito altos, a mesa farta era sinal de riqueza.
As mesas de jantar dos sobrados como não eram tão grandes quanto as mesas das
Casas Grandes e bem maiores talvez do que a que ocorreu o jantar de Janjão, o tamanho da
mesa define o prestígio do dono da casa. Uma mesa grande que possa receber uma seleta, mas
não pequena sociedade é o lugar onde o Medalhão brilha. Na digestão o pensamento fica mais
lento e tudo que alguém escuta vira obra prima, uma boa compota adoça o mais amargo
discurso.
Com os ouvintes empapuçados de peru, as fórmulas feitas ganham ar de
genialidade e penetram pelos ouvidos daqueles que as repetirão no jantar do dia seguinte ou
da próxima semana. Medalhões verdadeiros têm sempre a agenda cheia de convites e sempre
gozam da presença de outros notáveis em sua mesa.
O prato escolhido pelo Pai para o jantar foi o carneiro, que pode ser servido
cozido com legumes. Para Da Matta, o cozido é um prato sagrado na culinária brasileira,
opinião que partilhamos, nele ―[...] temos o alimento que junta vegetais, legumes e carnes
variadas num prato que tem peso social muito importante, pois que inventa a sua própria
ocasião social. Quando se come um cozido, não se come um prato qualquer‖.(MATTA, 1986,
p.54) O antropólogo afirma que os brasileiros têm preferência por pratos cozidos:
95
[...] Do cozido à peixada e à feijoada. Da farofa ao pirão e aos molhos, guisados e
mexidos, às dobradinhas e papas. Parece que temos especial predileção pelo
alimento que fica entre o líquido e sólido, evitando — nessas grandes refeições onde
se celebram as amizades . — o assado, alimento que não permite a mistura. [...]
Assim, entre o sólido (que caracteriza o prato principal das comidas européias e
americanas) e o líquido, preferimos uma forma intermediária. O cozido é sólido e
líquido. Entre a carne e a verdura — que entram nos pratos europeus como comidas
principais e secundárias —, somos muito mais dados a uma ligação entre os dois.
[...] Temos, então, uma culinária relacional que expressa de modo privilegiado uma
sociedade igualmente relacional. Isto é, um sistema onde as relações são mais que
mero resultado de ações, desejos e encontros individuais; pois aqui entre nós elas se
constituem, em muitas ocasiões, em verdadeiros sujeitos das situações, trazendo
para elas o seu ponto de vista. Um ponto de vista, claro está, que sintetiza sempre as
posições de quem está engajado na própria relação. [...] Temos, então, na nossa
cozinha, na nossa comida e no nosso modo de comer, uma obsessão pelo código
culinário relacional e intermediário. Um código marcado pela ligação. [...] (
MATTA, 1986 p. 63)
E por que um carneiro? Talvez por ser uma carne de preço mais acessível ao Pai
de Janjão, anfitrião da festa, mas também podemos pensar que a imagem ilustra que no jantar
de medalhões, os mansos e inocentes são devorados pelos lobos e suas artimanhas. O carneiro
é qualquer um que não seja um Medalhão, qualquer um que sofra com as injustiças e falta de
oportunidades geradas pelo autoritarismo e indiferença das elites que comandam o país.
Muitos são os jantares famosos que saíram da pena machadiana escolhemos dois
deles para que tenhamos uma melhor compreensão do evento: o primeiro que lembro é o
jantar que o pai de Bento Cubas promove por ocasião da queda de Napoleão. A descrição do
jantar é exemplar para fundamentar nosso argumento.
Não se contentou a minha família em ter um quinhão anônimo no regozijo público;
entendeu oportuno e indispensável celebrar a destituição do imperador com um
jantar, e tal jantar que o ruído das aclamações chegasse aos ouvidos de Sua Alteza,
ou quando menos, de seus ministros. Dito e feito. Veio abaixo toda a velha prataria,
herdada do meu avô Luís Cubas; vieram as toalhas de Flandres, as grandes jarras da
Índia; matou-se um capado; encomendaram-se às madres de Ajuda as compotas e
marmeladas; lavaram-se, arearam-se, poliram-se as salas, escadas, castiçais,
arandelas, as vastas mangas de vidro, todos os aparelhos do luxo clássico. Dada a
hora, achou-se reunida uma sociedade seleta, o juiz de fora, três ou quatro oficiais
militares, alguns comerciantes e letrados, vários funcionários da administração, uns
com suas mulheres e filhas, outros sem elas, mas todos comungando no desejo de
atolar a memória de Bonaparte no papo de um peru. [Grifos Meus] (ASSIS, 2008,
Vol. I, p. 641)
Ansioso pela sobremesa o garoto Cubas que fitava o pai e as compotas sabia que o
velho Cubas não lhe dava mínima só se importava com o sucesso de seu jantar e a satisfação
de seus convivas, e aproveitando o momento para admirar a ponta de seu nariz e ver apenas a
si mesmo em pleno gozo da glória e da nomeada.
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Meu pai, à cabeceira, saboreava a goles extensos a alegria dos convivas, mirava-se
todo nos carões alegres, nos pratos, nas flores, deliciava-se com a familiaridade
travada entre os mais distantes espíritos, influxo de um bom jantar. Eu via isso,
porque arrastava os olhos da compota para ele e dele para a compota, como a pedir-
lhe que ma servisse; mas fazia-o em vão. Ele não via nada; via-se a si mesmo.
[Grifos Meus] (ASSIS, 2008, Vol. I, p. 642)
No conto Dona Benedita, temos outro jantar famoso:
São seis horas da tarde; a mesa da família está ladeada de parentes e amigos, em
número de vinte ou vinte e cinco pessoas. Muitas dessas estiveram no jantar de
1868, no de 1867 e no de 1866, e ouviram sempre aludir francamente à idade da
dona da casa. A alegria dos convivas, a excelência do jantar, certas negociações
matrimoniais incumbidas ao cônego Roxo, aqui presente, e das quais se falará mais
abaixo, as boas qualidades da dona da casa, tudo isso dá à festa um caráter íntimo e
feliz. O cônego levanta-se para trinchar o peru. D. Benedita acatava esse uso
nacional das casas modestas de confiar o peru a um dos convivas, em vez de o fazer
retalhar fora da mesa por mãos servis, e o cônego era o pianista daquelas ocasiões
solenes. Ninguém conhecia melhor a anatomia do animal, nem sabia operar com
mais presteza. Talvez, — e este fenômeno fica para os entendidos, — talvez a
circunstância do canonicato aumentasse ao trinchante, no espírito dos convivas, uma
certa soma de prestígio, que ele não teria, por exemplo, se fosse um simples
estudante de matemáticas, ou um amanuense de secretaria. Mas, por outro lado, um
estudante ou um amanuense, sem a lição do longo uso, poderia dispor da arte
consumada do cônego? É outra questão importante. O cônego, pela sua parte, com o
fim de apagar a lembrança do incidente, procurou generalizar a conversa, dando-lhe
por assunto a eleição do melhor doce. Os pareceres divergiram muito. Uns acharam
que era o de coco, outros o de caju, alguns o de laranja, etc. (ASSIS, 2008, Vol. II,
p. 289)
As duas cenas que nos ajudam a consolidar o argumento aqui desenvolvido de que
é nos jantares que os laços da cordialidade são tecidos numa mesa com amigos chegados
saboreando discursos e a si mesmos. Mas, nem só de pão vive o homem, e para ser aquele que
―corta o peru‖ existem outros modos de alcançar a publicidade que segundo o Pai de Janjão
pode ser de dois modos: uma ―publicidade constante, barata, fácil, de todos os dias
publicidade‖ que pode ser conseguida através das seguintes estratégias:
Comissões ou deputações para felicitar um agraciado, um benemérito, um forasteiro,
têm singulares merecimentos, e assim as irmandades e associações diversas, sejam
mitológicas, cinegéticas ou coreográficas. Os sucessos de certa ordem, embora de
pouca monta, podem ser trazidos a lume, contanto que ponham em relevo a tua
pessoa. (ASSIS, 2008, Vol. II, p.273)
A outra publicidade é a mais importante e mais duradoura, é a publicidade dos
bem nascidos:
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[...] Qualquer que seja a teoria das artes, é fora de dúvida que o sentimento da
família, a amizade pessoal e a estima pública instigam à reprodução das feições de
um homem amado ou benemérito. Nada obsta a que sejas objeto de uma tal
distinção, principalmente se a sagacidade dos amigos não achar em ti repugnância.
Em semelhante caso, não só as regras da mais vulgar polidez mandam aceitar o
retrato ou o busto, como seria desazado impedir que os amigos o expusessem em
qualquer casa pública. [...] No caso de que uma comissão te leve a casa o retrato,
deves agradecer-lhe o obséquio com um discurso cheio de gratidão e um copo
d'água: é uso antigo, razoável e honesto. (ASSIS, 2008, Vol. II, p.273)
Dependendo do sobrenome de alguém ou dos seus padrinhos suas forças e
recursos no xadrez de medalhões podem aumentar ou diminuir. Não esqueçamos que quando
menino Brás Cubas aprendeu de cor no nome do padrinho, expertise que deixava seu pai
cheio de orgulho. Por isso a publicidade da família é mais importante uma vez nascido numa
família de Medalhões a caminho da glória e da nomeada fica menos árido. As relações entre
os ricos sempre envolveram as decisões públicas mais importantes da vida social no Brasil, as
elites brasileiras ainda permanecem indiferentes as dores da maioria da população repetindo a
mesma estratégia de manter a pobreza em níveis que garantam a estabilidade social e suas
vidas de barões.
Algo que constata isso é a quantidade de jovens que foram eleitos, nas últimas
três eleições para deputado federal, estadual e vereadores no Ceará, pelo simples fato de
serem filhos de homens ricos que ocupam atualmente lugares no governo do estado, ao ponto
do deputado federal mais votado no Ceará em 2010 ser um ilustre desconhecido de 24 anos
que tem como cabo eleitoral o dinheiro do pai Medalhão. Sem esquecer todos tantos outros
filhos de políticos que não conseguiram ser eleitos, mas conseguiram um bom emprego em
algum órgão público.
Ainda demorando um pouco mais na última citação lembremos que para
conseguir que os amigos lhe façam homenagens um Medalhão precisa merece-lhes, mas como
vimos por não ter afeição ao heroísmo o meio que o lhe resta é ser benemérito, em outras
palavras sustentar uma vasta parentela, agregados, empregados, assessores uma corte de
bajuladores que quanto maior for maior será o cortejo nos dias de homenagens. E homenagens
devem ser sempre insufladas, realimentadas, se és objeto de uma não só agradeça, mas
retribua com a mesma benevolência aqueles que não cansam de agradecer a sua bondade. Que
não deve ser feita as escondias, mas anunciadas aos quatro ventos. Caridosos tudo bem, mas a
mão esquerda, deve sempre saber o que faz a direita. Vale lembrar que no fim da vida
Machado de Assis foi homenageado pelos seus pares da ABL com um retrato que antes se
ocupar o lugar que até hoje ocupa no salão nobre da academia à exposição no Museu
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Nacional de Belas Artes ironias da vida! No Brasil quem se destaca mesmo sem querer tem a
si atribuído o afago social de ser considerado ―ornamento indispensável, de figura obrigada,
de rótulo‖! Não podemos é claro confundir a justa homenagem a quem por merecimento de
seus esforços alcança a verdadeira glória da imortalidade, com as bajulações aos ricos e
poderosos referida no conto.
Medalhões são amigos de Medalhões e inimigo de amigo é inimigo mesmo que
por justiça não seja o amigo aquele que realmente mereceria o apoio devido, o que hoje
chamamos de tráfico de influências nada mais é que arte do medalhão sendo exercida, para
amigos tudo, para os inimigos a lei.
Convidarás então os melhores amigos, os parentes, e, se for possível, uma ou duas
pessoas de representação. Mais. Se esse dia é um dia de glória ou regozijo, não vejo
que possas, decentemente, recusar um lugar à mesa aos repórteres dos jornais. Em
todo o caso, se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podes ajudá-
los de certa maneira, redigindo tu mesmo a notícia da festa; e, dado que por um tal
ou qual escrúpulo, aliás desculpável, não queiras com a própria mão anexar ao teu
nome os qualificativos dignos dele, incumbe a notícia a algum amigo ou parente.
(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 273) [Grifos Meus] Nossos
As colunas sociais cada vez mais têm seus espaços aumentados nos jornais da
capital cearense, mas em temos de Facebook, Twitter cada vez mais as pessoas usam essas
redes para se noticiar, falar de suas festas, viagens, conquistas pessoais e prêmios recebidos,
os medalhões contemporâneos têm milhares de seguidores, além do que os próprios repórteres
são eles mesmos candidatos a Medalhões, ou melhor, pensam que são, pois, já sabemos que
apesar de indispensáveis a casaca e as ideias pensadas sozinhas não fazem um medalhão.
99
3.4 O Medalhão-Príncipe ou o Príncipe-Medalhão?
O final do conto guarda talvez as mais irônicas passagens escritas por Machado de
Assis. Por três aspectos, o primeiro é o fato de que exatamente no conto sobre o Medalhão
aparece a melhor definição saída da pena do escritor: ―[...] a ironia, esse movimento ao canto
da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano,
transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados.‖ Ora, o conto como
falamos ironiza o leitor e a sua sociedade em cada uma de suas linhas, a frase funciona como
advertência e faz o leitor retornar ao texto desconfiando das lições dadas pelo pai, sem saber
se deve ou não confiar naquelas lições, que parecem tão reais, mas logo deixam de ser, pois,
muitas leituras depois o leitor vai para as calendas gregas ao descobrir que foi enganado por
que ao invés de ensinamentos dignificantes o texto o lido não passa na verdade de uma grande
lição de charlatanismo em tom grave.
O segundo aspecto é o pai dizer ao filho para não ser irônico ao mesmo tempo
que a própria situação de um não medalhão ensinando o ofício é por si só irônica. Como
ensinar algo que não se sabe? Isso não é problema na sociedade que pensa o pensado. O pai
ordena ao filho que prefira a chalaça “- Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga,
gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala
como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios.‖
O grande mestre do humour sabe que a piada é o recurso do tolo, ao contrário do
sarcasmo inteligente do escritor que provoca no leitor ruminante o tal sorriso de canto de boca
discreto e mortal. O melhor é gargalhar, manter boca e mente ocupadas com piadas amenas,
anedotas e causos das vidas alheias, aliás, a prática de rir dos outros, de sua limitações e
dissabores é uso muito apreciado nas rodinhas entre os canapés e o capão.
O terceiro e último aspecto se refere à frase final do conto que diz ―Rumina bem o
que te disse meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de
Machiavelli. Vamos dormir. (ASSIS, 2008, Vol. II p. 270)‖ Ruminando tantas vezes a lições
do pai acabei chegando a seguintes questões: A conversa entre eles vale o Príncipe de
Maquiavel? A Teoria do Medalhão vale o Príncipe?
A conversa entre pai e filho vale e não vale a obra-prima do pensador florentino,
em primeiro lugar não vale por ser um absurdo que uma conversa que não durou nem uma
100
hora completa valha os ensinamentos de uma obra tão complexa como é O Príncipe, mas não
só por isso.
O que Maquiavel pretendia com o livro além de conseguir um bom emprego, que,
aliás, não conseguiu, era ensinar aos príncipes e ao povo como disse Rousseau, como
funciona a política numa sociedade na qual a ética liberal é a ética hegemônica e princípios do
mercado a igualdade e a liberdade já contaminavam as relações sociais.
A virtú e a fortuna em nada se comparam ao arruído e a artificialidade das glórias
estéreis e fofas dos sonhos dos Medalhões brasileiros, nem a essa a habilidade de enfiar
citações entre a sobremesa e o café com vistas a agradar o benemérito que oferece o jantar
com vistas a conseguir que um dia ele caso seja preciso ele tenha a vontade de retribuir a
gentileza facilitando um contrato ou mediando uma aprovação em concursos.
O bem comum é central na construção da teoria política desenvolvida no Príncipe
em sentido oposto é a conversa do Pai de Janjão, para eles o que interessa é que o filho
consiga se dar bem na vida. O livro não é um manual para mentirosos, embora o Príncipe
tenha a prerrogativa de não cumprir suas promessas, ou parecer ser ao invés do ser, só devem
ser usada como forma de evitar a desestabilização do seu poder e não por pura malandragem.
O Príncipe não é o malandro, mas o Medalhão é! Afinal embora o Pai diga que
está ensinado como andar num caminho difícil na realidade, ele está ensinado como conseguir
por caminhos mais fáceis dissimular os valores tão caros a elite imperial. O velho segredo do
Bonzo. Honra, glória, imortalidade de pervertem em paixão a publicidade fácil, convites a
jantares e capacidade de conseguir empregos para parentes e amigos.
Chegamos ao cabo do capítulo respondendo ao segundo questionamento que
fizemos sobre se o conto de Machado vale o livro de Maquiavel. Vale é claro que vale, mas o
melhor é ler os dois, pois, só assim é possível ter um retrato mais amplo do que seria a
imagem do homem público brasileiro em nosso imaginário essa espécie de Principe-
Medalhão ou Medalhão-Príncipe caprichoso, sorridente, falando bonito e dizendo nada e
pouco confiável que anda muito distante de ser superada.
101
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Segundo o pensador contemporâneo, Josênio Parente, a sensação de igualdade e
liberdade proporcionada pela sociedade de mercado somente agora ao chegar às massas
conseguiu contaminar as relações sociais ao ponto de que a ética liberal já tenha contaminado
completamente a vida social cotidiana.
Para o professor, a ética cristã, o medo de Deus e o respeito ao Capricho do
Senhor e do Coronel enfim foram substituídos pela ética do Mercado, o Medo do Estado e o
respeito à lei. Enfim, está completa nossa revolução burguesa e, quem diria feita pelas mãos
de um operário! Eis outra ironia de nossa formação política, irmã mais nova de outra ironia, o
fato de ter sido um Gabinete Conservador o responsável por redigir a lei do ventre livre em
1871. O pensador tem mesmo razão, mas, como vimos o imaginário é coriáceo, nele os mitos
permanecem e assim apesar já estarmos quase acostumados com a igualdade e a liberdade não
abandonamos o culto ao Medalhão.
Assim, o debate sobre as políticas públicas no século XXI no Brasil deve passar
pela discussão de nossa cultura política. A construção da cidadania é necessariamente a
desconstrução do Medalhão, de suas práticas e dos seus favores que fazem: incompetentes
gestores, políticas e programas copiados e reproduzidos. Ações que resultam em intervenções
estatais, paliativas e desastrosas, que pouco contribuem para a efetiva melhora da vida
individual e coletiva.
Não é mais possível que os saberes das políticas públicas não se religuem às
tentativas de compreensão da cultura política brasileira por meio das artes, da literatura, da
música, lugar dos movimentos retroativos dos mitos que estruturam o imaginário político
brasileiro. Negar tal religação é correr o risco de continuar pensando o pensado.
A pesquisa sobre a compreensão das tensões que fazem a cultura política
brasileira tendo o imaginário como campo de estudos e Machado de Assis e parte da sua obra
como informante privilegiado, para usar um termo caro aos antropólogos, mostrou que o
núcleo hard que muitas vezes disse que o MAPPS não era o melhor lugar para meu trabalho
por ele não tratar de planejamento, avaliação e gestão de políticas públicas estava equivocado.
102
O contato com a literatura me levou a possibilidades e caminhos até então não
vislumbrados, pensar a política com Machado de Assis e não por ele me ajudou a
compreender que o Mito é muito mais decisivo que qualquer política social ou econômica e
que cada vez mais devemos radicalizar rumo ao caminho sem volta ao regime noturno do
imaginário.
Na terra dos Medalhões o desenvolvimento da cidadania sempre foi lento e por
muitas vezes impedido de acontecer, pois, as lições ouvidas por Janjão atravessaram a
Colônia, o Império, a República e ainda permanecem vivas no imaginário político brasileiro
envolvendo e mediando as práticas e os discursos políticos contemporâneos.
No Brasil quem não quer ser Medalhão? Quem não quer poder usar da vantagem
de ser amigo do porteiro de um hospital público para furar a fila? Beneficiar-se numa seleção
de emprego por ser amigo do dono da empresa? Ou ter um programa de televisão como
trampolim para um assento no legislativo? Ocupar um cargo de confiança na administração
pública? Ser escolhido para ser gestor de uma política pública? Talvez o leitor não deseje, e
assumo que eu também não, embora confessemos que canto da sereia é deslumbrante. Mas, há
certamente aqueles que não vão ler a ―Teoria do Medalhão‖ e mesmo assim concordarão em
seguir os conselhos a risca para tentar vencer no jogo de ser dar bem no Brasil.
Nunca antes na história desse país foi tão fácil ser Medalhão, todos agora se
arvoram ao direito de ser Medalhão, de usar as conquistas sociais construídas contra o mito
do Medalhão para potencializar o caminho para ser medalhão, um modo de usar a igualdade e
a liberdade como armas na luta para tornarmo-nos desiguais, melhor que ao outros, pelo
menos na opinião dos outros.
Nunca pensar o pensado foi exercitado com tanta intensidade e louvado como
hoje o é, muitas são as formas de exibir a invejável vulgaridade que para além dos
parlamentos se faz também presente nas universidades, nas televisões, nas redes sociais, nas
escolas, nas esquinas e bares.
Se ficarmos atentos aos debates mais atuais sobre os rumos das políticas públicas
no Brasil e principalmente aos homens que o fazem, logo identificaremos os filhotes de
Janjão, mesmo que alguns nunca tenham lido Machado de Assis. Os desafios são novos: o
combate ao Crack, a questão ambiental, o fim da pobreza, a Copa do Mundo de Futebol –
FIFA 2014 e as Olimpíadas de 2016. Os homens e seus discursos também são tão novos
103
quanto os desafios, mas suas práticas e ações por muitas vezes são as mesmas do Medalhão. E
continuamos mudando para permanecer os mesmos.
Duvida? Pois me diga, o que o palhaço Tiririca, os jogadores Romário e Ronaldo,
e um jovem de 25 anos do interior do Ceará, filho de pai rico têm em comum? Eles
alimentam, e recriam o culto ao Medalhão, com discursos contemporâneos montados por
assessorias bem pagas, continuando a iludir e reproduzir o mais do mesmo, a mesma pele com
outras roupas.
Hoje me sinto como o canário que ao ver a janela da gaiola aberta voou pelo
infinito azul celeste e acabou por descobrir uma possibilidade jamais vislumbrada. A obra de
Machado é o azul celeste de onde pude enxergar essa interessante possibilidade de conhecer o
mundo, pensado em sua complexidade e não sua separação, ao religar o que eu já tinha
aprendido sobre ciência política aos saberes da literatura e tudo o que gira ao seu redor, me
encantei com o imaginário.
Não matei minha Mosca Azul, ela continua com o mesmo brilho que me
encantou. Ler Machado de Assis é diversão para uma vida inteira e não há como dar conta de
tudo que obra oferece ao leitor que estiver realmente disposto a se perder nesse labirinto tão
bem arquitetado. Termino essa pesquisa com muitas inquietações, bem mais do que tinha
quando a iniciei e se bem entendi a complexidade e teoria do imaginário, fico com a sensação
de dever cumprindo e uma certeza: em terra de medalhão é muito difícil ser cidadão!
O grande desafio não é a sustentabilidade, nem a educação, nem a saúde, nem a
tecnologia, pois, essas e outras boas ideias e novos conceitos já foram tocadas pelo nosso
Medalhão, que é o Midas às avessas, por ter a capacidade de transformar grandes ideias
humanas e seu brilho libertador em douradas fórmulas para fingir uma capacidade falsa e
conseguir uma vantagem qualquer para si e para os seus protegidos. O grande esforço público
seria uma cruzada contra o Medalhão e todas as forças que mantém o Mito vivo, ainda tão
jovem e cheio de potencial. Quem será o nosso Hércules que ousará desafiar o Deus? O que
consterna e desola é saber que os deuses sempre vencem, mas depois me empolgo ao lembrar
que até Zeus feneceu e hoje não manda mais em muita coisa! Matemos o Medalhão em nome
do cidadão!
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