Os signos do gozo I

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1 www.marciopeter.com.br ENSINO CONTINUADO 1996/97 OS SIGNOS DO GOZO · I Os signos do gozo I Seminário de 1986-87 J.A.Miller Márcio Peter de Souza Leite 06 de março 1996 Anotações do Curso dado pelo Márcio Peter durante o ano de 1996. O título original desse Seminário de J.A.Miller, seu sexto curso a partir da morte de Jacques Lacan em 1981, é “Ce qui fait insigne” e foi traduzido para o espanhol como “Los sígnos del goce”. Ainda não temos a tradução para o português. “Ce que fait un signe” - homofonia com “Ce que fait insigne” de 1987, é o Seminário no qual Miller termina a leitura de Lacan com a noção de sinthome. Ele relê todo Lacan, uma releitura iniciada em 1982 com “Do Sintoma ao Fantasma e Retorno” que acaba com o Seminário “Ce que fait un signe”, que tem a ver com o signo, com o UM, com a diferença entre significante e signo, base de uma nova psicanálise. Nesse Seminário de 1987 Miller reorganiza toda a teoria a partir dessa nova leitura. Fala de S 1 , de sinthome, da Letra. A partir daí os outros Seminários de Miller são um desdobramento das conseqüências disso. De 1982 a 1987 Miller fez a releitura da obra de Lacan, estabelecendo um sentido para essa obra. Termina nesse de 1987, “Ce qui fait un signe”. Depois de 1987 os Seminários são mais voltados para a questão da formalização da instituição. Pára durante três anos, depois retoma a teoria. Muito importante são os Seminários “Causa e Consentimento” e “Silet”, que trata da questão do sujeito da pulsão, o assunto menos desenvolvido em Lacan. Já na primeira aula Miller está, nas entrelinhas, introduzindo a questão do Um, questão que permeia todo o seminário. Existe o Um? Um signo, Um gozado, S 1 como marca da completude? Um Deus? Um com Deus? O Um tem a ver com a Letra, com o traço unário, com o fora da linguagem. Miller aproxima-se da essência da teoria de Lacan e sua proposta de trabalho consiste num avanço, pois trata-se de texto ainda não conhecido. Esse é o primeiro seminário da nova psicanálise, se a idéia que agora se impõe é que a letra é o que condiciona o significante. O eixo da releitura da psicanálise lacaniana no último Lacan é o S 1 , o unário, o traço, a marca, o Um, o que é muito diferente do unificante, que é o que une. O Um é o que porta a insígnia, o que faz insígnia. O que fica da insígnia é essa idéia do Um, partindo da diferença entre unificante e unário. Lacan aponta o Uniano e sai da estrutura binária, sai da idéia de “um significante representa o sujeito para outro significante” para a idéia de um significante único que se representa a si mesmo. No Unário não há a alienação significante, não há a representação, não há a relação, não há a série. Em Lacan estão muito bem explicitados o A, o $, o S 2 como saber, mas o S 1 não está bem explicado e é isso que Miller está fazendo neste curso. Trata-se de uma nova leitura da psicanálise, na qual um dos conceitos mais importantes é o da identificação. Há um retorno à teoria do trauma e a interpretação é a partir de uma abordagem fora do sentido. No final do 1º capítulo Miller introduz o Outro; diz que está retomando de onde parou no ano anterior, ponto no qual tinha formulado que o Outro é a Coisa. O Outro, alienante, coletivizante, é o pai, a mãe,

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www.marciopeter.com.br ENSINO CONTINUADO • 1996/97 • OS SIGNOS DO GOZO · I

Os signos do gozo I Seminário de 1986-87 J.A.Miller

Márcio Peter de Souza Leite

06 de março 1996

Anotações do Curso dado pelo Márcio Peter durante o ano de 1996.

O título original desse Seminário de J.A.Miller, seu sexto curso a partir da morte de Jacques Lacan em 1981, é “Ce qui fait insigne” e foi traduzido para o espanhol como “Los sígnos del goce”. Ainda não temos a tradução para o português. “Ce que fait un signe” - homofonia com “Ce que fait insigne” de 1987, é o Seminário no qual Miller termina a leitura de Lacan com a noção de sinthome. Ele relê todo Lacan, uma releitura iniciada em 1982 com “Do Sintoma ao Fantasma e Retorno” que acaba com o Seminário “Ce que fait un signe”, que tem a ver com o signo, com o UM, com a diferença entre significante e signo, base de uma nova psicanálise. Nesse Seminário de 1987 Miller reorganiza toda a teoria a partir dessa nova leitura. Fala de S1, de sinthome, da Letra. A partir daí os outros Seminários de Miller são um desdobramento das conseqüências disso.

De 1982 a 1987 Miller fez a releitura da obra de Lacan, estabelecendo um sentido para essa obra. Termina nesse de 1987, “Ce qui fait un signe”. Depois de 1987 os Seminários são mais voltados para a questão da formalização da instituição. Pára durante três anos, depois retoma a teoria. Muito importante são os Seminários “Causa e Consentimento” e “Silet”, que trata da questão do sujeito da pulsão, o assunto menos desenvolvido em Lacan.

Já na primeira aula Miller está, nas entrelinhas, introduzindo a questão do Um, questão que permeia todo o seminário. Existe o Um? Um signo, Um gozado, S1 como marca da completude? Um Deus? Um com Deus? O Um tem a ver com a Letra, com o traço unário, com o fora da linguagem. Miller aproxima-se da essência da teoria de Lacan e sua proposta de trabalho consiste num avanço, pois trata-se de texto ainda não conhecido. Esse é o primeiro seminário da nova psicanálise, se a idéia que agora se impõe é que a letra é o que condiciona o significante.

O eixo da releitura da psicanálise lacaniana no último Lacan é o S1, o unário, o traço, a marca, o Um, o que é muito diferente do unificante, que é o que une. O Um é o que porta a insígnia, o que faz insígnia. O que fica da insígnia é essa idéia do Um, partindo da diferença entre unificante e unário. Lacan aponta o Uniano e sai da estrutura binária, sai da idéia de “um significante representa o sujeito para outro significante” para a idéia de um significante único que se representa a si mesmo. No Unário não há a alienação significante, não há a representação, não há a relação, não há a série.

Em Lacan estão muito bem explicitados o A, o $, o S2 como saber, mas o S1 não está bem explicado e é isso que Miller está fazendo neste curso.

Trata-se de uma nova leitura da psicanálise, na qual um dos conceitos mais importantes é o da identificação. Há um retorno à teoria do trauma e a interpretação é a partir de uma abordagem fora do sentido.

No final do 1º capítulo Miller introduz o Outro; diz que está retomando de onde parou no ano anterior, ponto no qual tinha formulado que o Outro é a Coisa. O Outro, alienante, coletivizante, é o pai, a mãe,

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a pátria, a língua, a tradição; o Outro é êxtimo, o contrário de íntimo. Também nesse momento enuncia o programa do ano: O que faremos este ano é medir a distância entre ‘a’ e S1.

Na 2ª aula Miller fala do desejo de cada indivíduo de ser único, especial, diferente dos outros do bando, ser o melhor ou o pior mas ser especial, lembra o neurótico que se sente “aquilo que há de mais vão a existir” e se refere à questão da ex-sistência, o ex-sistir fora da linguagem, que é associada à vaidade, ao narcisismo. “Todos menos eu”; só por ex-sistir o sujeito já questiona esse Um; ‘todos menos eu’ invoca a falta, a falta-a-ser. Se estou fora de mim não sou todo, sou um entre outros. O exemplo de Piaget: tenho três irmãos: Paulo, João e eu, demonstra que no universo dos irmãos o sujeito está incluído e ao mesmo tempo está de fora, como observador. “Todos menos eu” significa a idéia de todos e mais um, o sujeito é sempre o mais um para se constituir, é a lógica do cartel. Esse exemplo ilustra a proposição de Lacan em Subversão do Sujeito mencionada por Miller na página 31 do Seminário: “O sujeito deve contar-se no Outro e, ao mesmo tempo, nele não cumprir outra função senão a de falta.”

Miller está introduzindo a questão do Outro a partir do Um; nós somos um outro Um, um a mais em relação ao Outro. No Estádio do Espelho somos Um a partir do Outro, ser Um a partir do Outro é ser o $. Freud fala do Outro enquanto Um como Ideal, como a matriz das identificações. Em Lacan: S1→ traço unário → Ideal e S2 → A → saber. Por que usamos em psicanálise esse termo, esse nome: o Outro? Porque ele não é Um, não é todo, não é completo, por isso não podemos reduzir o Outro ao Um, a um nome do Um. “O Outro falta”, eis a questão; é precisamente o sujeito que constitui o obstáculo para que o outro seja Um, é o sujeito que a ele se subtrai e que o descompleta, porque o sujeito só nasce, só se constitui na medida que se subtrai ao Outro. O que é o Outro? Ele é todos menos eu, portanto o Outro não é todo, não é completo, o Outro inclui a falta. Esse todos menos eu é o que nos coloca na relação de ex-sistência, que é a relação do sujeito com o Outro, o sujeito barrado $ com o Outro também barrado( ).Fazer do Outro o Um pelo Ideal, para Freud é chegar à completude, situação narcísica, sem falta, é chegar ao traço unário, ao Um.

Mas o que isso significa? O Um dos neo-platônicos? Pela fala, pela linguagem, pela produção de sentido o sujeito tenta se completar, ser o um do Outro, portanto fazer do Outro o Um é a complementação fantasmática. É isso que está descrito no Grafo do Desejo: o sujeito tende ao Ideal, à completude, ao traço unário.

É necessário sempre saber o histórico do conceito; por exemplo - traço unário é um conceito de Freud retomado por Lacan e é preciso pensar sempre de que fato clínico o conceito dá conta. Esse conceito de traço unário é importante porque tem a ver com o fato clínico da identificação. A teoria serve para nomear os fatos clínicos, só quando sei a teoria posso transmitir. Deve-se tentar entender a teoria a partir da clínica. Exemplo caso Dora: identificação à tosse do pai - a tosse de Dora é uma conversão histérica e a explicação é a identificação; a experiência se significa pela teoria. Freud aprendia os conceitos a partir da experiência da clínica. Identificação é tomar uma característica do outro como sendo sua. Teoria da identificação no primeiro momento em Freud tem a ver com a fase oral - incorporação canibalística do objeto.

A teoria da identificação tem um avanço em Lacan, a pergunta é se esse avanço aumenta a eficácia na clínica. Em Lacan a identificação se dá em relação ao significante - a tosse era só um significante. A identificação é o conceito mais importante do último Lacan. Identidade é o produto final das identificações.

Antes de iniciar a leitura do Seminário propriamente dito vamos estudar alguns textos sobre a última formalização da clínica lacaniana que ficou conhecida como “2ª Clínica de Lacan”.

21 de março de 1996

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Interpretação

J.A.Miller- “Vous ne dites rien” Jornadas de L’École de la Cause.

Colette Soler - “As respostas do analista”. Opção Lacaniana.

O Seminário “O que faz insígnia” de J.A.Miller explica toda a psicanálise lacaniana, impõe uma nova ordem das razões a partir da formalização da 2ª Clinica de Lacan. O centro da prática moderna é a interpretação. Estes textos tratam da interpretação no ponto de vista atual. Há uma tentativa de formalização de Colette Soler. É a maneira moderna de trabalhar.

O que é uma interpretação? Dar um sentido?

Freud tirou o termo interpretação da filosofia. Ele adquiriu seu estatuto de termo da psicanálise com “A Interpretação dos Sonhos” onde adquiriu um caráter teórico. Para Lacan o ato analítico é a interpretação, que é o centro da prática analítica. O que é Interpretação? Interpretar seria dar sentido? Na música, por exemplo, seria pôr de si, dar a própria versão frente a um fato material. Freud pensava que havia um sentido só, o que levava a uma interpretação fechada. Atualmente se acha que Freud propõe uma hermenêutica, que é muito estudada. O escritor contemporâneo Paul Ricoeur é o papa da hermenêutica, escreveu “Da interpretação”. O único a questionar isso é Lacan. Lacan lançou os Escritos para contrapor-se ao livro de Ricoeur, que é a base do que os analistas sabem (ver Elizabeth Roudinesco – História da Psicanálise na França, cap. A Publicação dos Escritos).

A interpretação em Freud sempre tem a ver com um sentido e Lacan começa a partir daí. Na Direção da Cura Lacan diz que a interpretação resignifica o dito do paciente, a partir do paciente, colocando o significante que estaria logicamente faltando. “A interpretação é um dito esclarecedor”. Em “Posição do Inconsciente”, ele muda e propõe um modelo novo, diz que o modelo antigo é uma prática sugestiva e que a interpretação não é dar um outro sentido, é apontar o intervalo da cadeia. Essa é a base do texto do Miller, “Vous ne dites rien”, texto que termina com a frase de Lacan: “Uma interpretação com sentido não é uma interpretação analítica”. Uma interpretação só é interpretação quando não aponta o sentido.

O texto Posição do Inconsciente, texto de virada, de mudança na questão da interpretação, escrito dos anos 60, que equivale à intervenção de Lacan no Congresso de Boneval, afirma que “A linguagem é condição do inconsciente”, uma proposição diferente da de J. Laplanche e S. Leclaire, e tem como eixo a desqualificação que Lacan faz da noção de inconsciente, porque a noção de inconsciente tal como era pensada pelas disciplinas da época, especialmente pela fenomenologia, não era a adequada para a psicanálise.

Freud tinha fundado o aparelho psíquico a partir da noção de consciência, tomada como um dado imediato da experiência, que podia então ser tomado como parâmetro. Lacan propõe um novo referencial diferente da noção consciente – inconsciente: a causação do sujeito, onde o inconsciente aparece como um resto.

Existem funções do inconsciente diferentes do recalcado. Por exemplo, tanto na psicose como na perversão existem efeitos do inconsciente diferentes do recalcado, efeitos que não produzem metáfora e metonímia. Portanto, o inconsciente não é apenas o recalcado, como para Freud na neurose.

Causação do sujeito - o que causa o sujeito é o significante que lhe é anterior, o que causa o significante é a Letra, o que causa a Letra é o traço unário, S1, o que causa o traço unário é o trauma. Causa - termo filosófico aristotélico - não é um termo ingênuo, tem que ser tomado como conceito e traço unário como conceito fundamental. Causações diferentes do sujeito explicariam a variedade das situações analíticas.

A transferência no modelo freudiano é uma repetição daquilo que não pode ser lembrado. O viés clínico da transferência em Freud é a repetição. Traço unário é o registro do trauma. Miller não usa

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aqui a metáfora da energia para explicar o trauma. O modelo freudiano é útil, o que é traumático é o particular de cada um. Traum - sonho, mas também trauma.Trauma - S1 - registro de completude. O traço unário é o S1, a primeira identificação.

O trauma em Freud é o registro da impossibilidade do aparelho psíquico de elaborar um excesso de carga. Teoria econômica. Em medicina é uma solução de continuidade. Tudo isso em Freud é metafórico, mesmo o aparelho psíquico. Trauma é a repetição da situação traumática. Freud não consegue explicar isso pela primeira tópica, só explica pela segunda tópica, via pulsão de morte.

Até “Posição do Inconsciente” a interpretação visava o recalcado isto é, visava restabelecer o sentido. A partir do exemplo da psicose, Lacan faz uma mudança que estende para toda a prática analítica. O que opera então, se não é a produção de sentido? Isso muda completamente a maneira do analista intervir. Quais são as conseqüências de pensar assim a psicanálise?

Até 1970 Lacan falava do signo mas apenas como signo saussuriano, depois de 1970 abandona o signo saussuriano, a arbitrariedade do signo, abandona o estruturalismo, o que é verdade apenas em parte porque o estruturalismo de Lacan é peculiar, uma vez que sua estrutura não é toda, inclui um elemento que falta, um elemento que está fora, a falta, então Lacan nunca foi realmente estruturalista.

Após 1972 Lacan é pragmático; pragmatismo é uma doutrina da Charles Peirce cuja tese fundamental é que a idéia que temos de um objeto qualquer é a soma das idéias de todos os efeitos por nós atribuídos a esse objeto, que possam ter um efeito prático. Depois de 1972 Lacan passa a falar de signo pensado a partir da definição de Peirce: “signo é o que significa alguma coisa para alguém”; J.A.Miller diz porém que Lacan adotou a definição de Peirce mas não o mesmo uso, diz que Lacan continua estruturalista.

Na noção anterior, na primeira clínica de Lacan o pensamento é binário S1 - S2; quando Lacan diz “Existe o Um” está dizendo que existe um significante que se significa a si mesmo, que o analista pode intervir num único significante, aí a razão da sessão curta. Numa intervenção que prescinde do resto dos elementos da cadeia, a primeira conseqüência é que separa o objeto ‘a’ do S1. Seria isso o intervalo da cadeia?

O ato analítico segundo a última teoria de Lacan seria separar o objeto ’a’ do S1, o analista estando na posição do NP, pela intervenção fora do sentido. Sobre isso podemos ler “232 ocorrências do ensino de Lacan” e J. Alouch “Freud, puis Lacan” onde o autor explica os efeitos desse novo tipo de ato analítico.

18 de abril de 1996

O Mais de Dizer

J.A.Miller- O mais de dizer. Texto que anuncia as XXIV Jornadas da Escola da Causa.

O texto de Miller tem a ver com as propostas de Lacan, tem a ver com a maneira de se ler as propostas da lógica do último Lacan. Nesse momento Miller está colocando que a interpretação hoje é diferente da interpretação de Freud, que era a interpretação pela via da significação, do sentido.

Em Lacan dos anos 70 sai-se do sentido, a interpretação não mais aponta o sentido. O analista agora é pensado como estando na posição de objeto ‘a’ e a prática da psicanálise não é mais fundamentada na prática do sentido. Construir a neurose infantil do sujeito segundo o modelo freudiano é uma hermenêutica, é uma prática do sentido do sintoma. Para Lacan o sintoma não tem sentido, o sentido é o gozo. Trata-se atualmente de formalizar teoricamente esse tipo de prática, a sessão curta, o corte, a interpretação fora do sentido e esse é o trabalho do Seminário “O que faz insígnia”.

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Jean-Claude Milner situa o primeiro Lacan como prática do ensino e o segundo como o Lacan da ruptura, onde está colocada a proposta da transmissão fora do sentido - via matema - o que fundamenta a prática fora do sentido. Então vamos primeiro pensar a prática para depois pensar a teoria do segundo Lacan. “A obra clara” de Jean Claude Milner explica que o projeto de Lacan é uma adesão ao projeto do grupo de Bourbaki, que é um modelo de pensamento lógico matemático. (Artigos não assinados - modelo da Scilicet).

O Seminário de Miller é a operacionalização do pensamento de Lacan, enquanto Jean Claude Milner não faz referência à clínica, é pura ciência, apenas mostra as relações lógicas da teoria. Miller usa o recurso da lógica na formalização da teoria, pelos matemas da lógica simbólica, usa os diagramas de Venn, que são da lógica e não da topologia. Não é uma coisa intuitiva, é dedutiva e a partir desses diagramas Miller está sempre pensando a relação do objeto como −ϕ . O importante na leitura do visual é a compreensão do uso desses recursos, além da leitura do texto. É necessário fazer uma leitura crítica, pois trata-se de uma posição nova e radical em relação à psicanálise.

Em “Desejo de Lacan” de J.A.Miller a elaboração de Lacan não aparece, ele só apresenta os resultados. Os estudiosos verificam que na verdade ele sabia do que estava falando. No final de sua elaboração teórica o que Lacan mais usa é a referência lógico-matemática. Uma obra se impõe por sua coerência. Lacan confiava na Letra, tudo está nos Escritos, não só no livro, mas em todos os textos escritos, como L’Étourdit, Lituraterre, etc... .Cada parágrafo se abre, quando estudado, em um plano imenso de significações, porque os textos são muito condensados.

A produção do Último Lacan resignifica toda a produção anterior, não se trata de uma colocação arbitrária, mas de algo que muda realmente. A prática fora do sentido é um avanço que Lacan trouxe, e que é realmente operativo. Miller diz que o último Lacan, não está terminado, que trata-se de uma obra em aberto. Como se pode saber dessa prática? É só pela via dos matemas, não há demonstração clínica, porque trata-se só da questão da Letra. Quando não ligada à clínica, a obra de Lacan vai para a metafísica, para a filosofia.

Sintoma Sinthome

qualquer manifestação do espírito maneira pela qual um sujeito articula o RSI produzindo um falante

uma manifestação do Simbólico no Real

Jean Allouch diz que esse seria o paradigma da psicanálise. O sintoma serve para anular a falta, consiste em um erro na amarração do nó, entretanto Miller não usa a topologia, não usa o nó; ele usa a lógica, prefere o Grafo do desejo. Cada um usa os instrumentos que prefere, que conhece. “Uma prática não precisa ser esclarecida para operar”. (Lacan,Telévision).

Análise - 1ª clínica de Lacan - de decifração - analista ‘A’.

2ª clínica de Lacan - fora do sentido - analista ‘a’.

A análise é uma arte, não é uma técnica, é preciso talento. O analista dirige a cura, não pelo que ele diz, mas pelos efeitos do que ele diz. A interpretação deve provocar equívoco, deve ser chiste, deve ser enigmática, deve ser alusiva.

02 de maio de 1996

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A interpretação pelo avesso

J.A.Miller – A interpretação pelo avesso; Opção nº 15 e Correio nº 14. Texto nº 60.

Texto apresentado nas XXIV Jornadas da Escola da Causa, 1995. Colette Soler – As respostas do analista.

Maud Manoni – O Silêncio.

Esse trabalho de Miller traz a conclusão lógica do Seminário “O que faz insígnia”, que é a conclusão lógica da 2ª Clínica de Lacan, diferente da 1ª Clínica do Lacan clássico, estruturalista, que apenas relê Freud reformulando-o com novos conceitos.

A meta do texto de Miller é explicar porque se trabalha hoje com a interpretação silenciosa, algo que de certa forma já tinha sido percebido por Freud. Atormentado pela doença no maxilar e pela prótese que tinha que usar constantemente ele passou a falar muito pouco e percebeu que as análises melhoravam; ele sempre se orientou pelos efeitos clínicos mesmo antes de os ter teoricamente formulado. Podemos ler em “Diário de minha análise com Freud” de Kardiner , o caso do “Homem dos Lobos” para ver como ele trabalhava. Em “Análise terminável e interminável” Freud indica que o analista tem que analisar independentemente das significações em jogo porque o que na realidade opera é a presença do analista. A análise produz efeitos independentemente das significações, das sugestões, das falas. A presença do analista traz à tona certos significantes; quando uma intervenção do analista ou apenas a sua presença incide no recalque, na representação que não estava energizada isso também muda outras representações que estavam à espera, o que quer dizer que o analista atua sem saber. Freud falava em ‘representações de espera’ .

No último Lacan a interpretação é quase silenciosa; frente a uma intervenção do analista o paciente produz novos ditos associados que vem do próprio inconsciente. A interpretação não é fora do inconsciente, embora o sentido do inconsciente seja muitas vezes atribuído pelo analisando ao analista, na verdade é do próprio inconsciente. Conclui-se a partir disso que a interpretação é o próprio inconsciente, produzido por um ato analítico, o corte, a sessão curta sem interpretações, por exemplo. O ato analítico é o que produz efeito de separação do S1 de ‘a’ produzindo a causação de um sujeito e desconstruindo o que causava a cadeia.

O sonho é uma interpretação dos restos diurnos que se ligam metonímicamente aos restos inconscientes. A interpretação de um sonho é um deciframento que leva a um novo ciframento e esse movimento só termina quando se chega ao gozo, à satisfação pulsional. Exemplo Signorelli: sua decifração termina na questão da sexualidade e da morte. Chegar a isso ainda é permanecer no deciframento do sentido, o que pode levar ao recalcado, ao sintoma, mas na realidade não muda nada porque não leva à causa do ciframento. Questionar o gozo que está contido no ciframento é trabalhar com o recalcante, com a causa do recalque, com a causação do sujeito. Descondicionada a causa não há mais o que decifrar porque não há mais ciframento que é provocado pelo gozo. A intervenção do analista é para incidir no gozo, no gozo do sentido.

No texto Miller fala em “Gozo, sentido gozado”, uma homofonia introduzida em “Televisão” que diz do programa de Lacan de ‘reduzir a libido ao ser do sentido’. O sentido é um gozo como os outros: fálico, do Outro, suplementar. O sentido é um gozo do qual se goza por exemplo quando a interpretação dá um sentido à cadeia. Outro exemplo é o do obsessivo que sempre quer dar a tudo uma explicação, um sentido que para ele constitui-se num gozo; ao descondicionar esse mecanismo o analista incide no gozo.

Em Freud e no Lacan clássico buscar o sentido, interpretar o sentido, era toda a preocupação da clínica analítica; hoje passou a ser apenas um dos aspectos da clinica. Se o analista apenas produzir sentido onde fica o ‘ser do gozo’? Podemos ver esta questão no seminário de Miller “Silet” onde trabalha o sujeito da pulsão e o gozo. J.D.Násio em “Cinco Conferências” também trabalha isso com a questão econômica, a libido como carga sexual. Hoje já não se interpreta como antes o sintoma como

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metáfora estando o analista no lugar de A, o que levava à análise interminável pela via do significante. Hoje o analista tem que estar na posição de ‘objeto a’ e a análise não visa mais obter o sentido mas chegar à causa; interpretar pelo sentido é uma coisa que se continua fazendo muitas vezes mas apenas como manobra de transferência.

20 de junho de 1996

Introdução à questão do sentido

J.A.Miller – Ato e Inconsciente; Editora Manantial. J.A.Miller - Sentido e significação - Revista Excansion nº 1

Biblioteca da Escola da Bahia - Roberto Azevedo - trad. L’Étourdit Mário de Almeida - Sentido e significação

Conferência J.A.Miller em Buenos Aires – “Adeus ao significante” – Diz que o sentido não tem mais qualquer importância na prática psicanalítica, estabelece o fora-do-sentido. Repete o tema em Paris, no texto ”A interpretação pelo avesso”, onde oficializa a prática do silêncio, do fora-do-sentido, da sessão curta. No Seminário de 1996, “A orientação lacaniana” retoma isso. C.Soler também aborda a questão em “As respostas do analista”, texto que é contemporâneo ao texto de Miller “A interpretação pelo avesso”; aliás a resposta de C. Soler precedeu a pergunta colocada por J. A. Miller.

No processo analítico o analisando pergunta porque supõe que o analista sabe a resposta, na realidade o analista estabelece pela transferência a possibilidade do acesso do analisante ao próprio saber inconsciente. Colette Soler parte disso: a resposta do analista é o ato analítico. Lacan trata disso desde o Seminário XI e mais especificamente no Seminário XV onde retoma o pensamento cartesiano como paradigma do pensamento ocidental. Descartes é o eixo epistemológico de toda a obra de Lacan. Ciência e verdade: o sujeito da ciência é o mesmo sujeito do inconsciente; é na noção de sujeito que a psicanálise se encontra com a ciência. Na ciência o sujeito está forcluído e na psicanálise o sujeito está incluído. A psicanálise subverte o sujeito da ciência que é o cartesiano - Penso, logo existo - sujeito da dúvida. Lacan porém diz – “Penso onde não sou, sou onde não penso”. Aí começa o pensamento lacaniano. O sujeito precisa saber que pensa para existir: Ou eu penso ou eu existo. Lacan pensa tudo a partir da seguinte dicotomia:

Não penso - inconsciente - relacionado ao sentido.

Não sou - passado ao ato - relacionado ao objeto.

1ª proposta analítica foi da interpretação pelo sentido: −ϕ = sentido.

2ª proposta analítica foi da interpretação pela via objetal: a−ϕ

a −ϕ −ϕ Ver: J.A.Miller – Ato e Inconsciente – Editora Manantial. Jean Allouch – Freud, puis Lacan. Lacan – Seminário XV.

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O Ato analítico acontece toda vez que acontece a/−ϕ: seriam os passos necessários para a construção da fantasia, seriam as maneiras pela qual o objeto ‘a’, completa o −ϕ, isto é a falta. Toda evolução do ensino de Lacan leva a isso que ele coloca na Proposição de Outubro de 1967, na qual há uma teoria sobre fim de análise, junto com Seminário XV – que traz as conseqüências da Proposição.

a sobre −ϕ é o matema central da psicanálise.

- ϕ é o matema da falta e também da completude, porque uma coisa implica a outra. A fala sempre vai em busca do sentido que levaria à completude. É o gozo do sentido. A vantagem dos matemas é o uso heurístico, é sua possibilidade de vários usos.

-ϕ é o efeito da falta na transferência, porque o analista na posição objetal, aponta tanto à falta quanto aos objetos da fantasia, tanto quanto para ‘a’, quanto para -ϕ ; ambos se relacionam com a falta, mas não a completam da mesma maneira.

O que sustenta o -ϕ é a clínica da neurose, do sintoma, porque o sintoma é a busca da forma de preencher a falta, é o desejo. O que sustenta o ‘a’ é a fantasia, o ‘a’ são os objetos da fantasia, objeto ‘a’ enquanto o que completa a falta. Fantasia é muito diferente de sintoma.

O final de análise seria a disjunção entre sintoma e fantasia, levaria à separação de ‘a’ de S1 - à não completude.

Clínica objetal - relações do sujeito com o objeto.

Clínica da fantasia - se sustenta na clínica da perversão.

Sintoma - clínica da histeria, é o que sustenta a clínica do sintoma, colocar um significante no lugar da falta.

Ce qui fait insigne, Ce qui fait un signe (um signo – UM) opõe-se ao sistema binário S1 - S2.

A interpretação fora do sentido tem a ver com a resposta com sentido ou pelo sentido. A resposta é anterior à pergunta, a resposta é o que estimula a pergunta isso porque a resposta já está lá.Para aquele que se dirige ao analista como Sujeito Suposto Saber Interpretar, o analista responde: você é o sujeito que detém o texto, texto que não contém a resposta completa mas os elementos da resposta. O analista, via transferência, estabelece a possibilidade do acesso do analisando ao próprio saber inconsciente.

Há três passos no dispositivo analítico:

1º A promessa feita pelo analista que dá uma resposta de promessa, que não é necessariamente formulada, mas que leva a pensar.

2º A demanda do analista ao analisando de dizer tudo.

3º A interpretação não é a resposta do analista; a resposta é a pontuação da resposta do analisando às próprias questões. O analista vai buscar na resposta do analisando pontos de real para provocar enigma e tentar chegar à separação. A interpretação, da qual só sabemos a posteriori pelos seus efeitos, é o Ato Analítico, a separação do S1 do a. Para haver interpretação tem-se que dar conta do ato, que é o que interessa. Antes disso a interpretação seria no sentido, seria pelo sentido, no último Lacan passa a ser fora do sentido, silenciosa. Lacan trata disso desde o Seminário XI e também nos Seminários XV, XVI até o Encore (XX). No Seminário XX ele fala do Um, mas anteriormente já tinha introduzido a questão com o “Il’y a de l’Un” em “Ou pire...”(XIX).

No Seminário XV sobre o Ato Analítico Lacan retoma o fundamento cartesiano como paradigma do pensamento ocidental, eixo epistemológico de toda a obra de Lacan. Podemos ler sobre isso em “A obra clara” de J.C.Milner. Em “Ciência e Verdade” Lacan afirma que o sujeito que está foracluído na ciência é o mesmo sujeito da psicanálise, o sujeito do inconsciente. Na ciência este sujeito está foracluído porque o único sujeito para a ciência é o sujeito pensante.

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A psicanálise subverte o conceito do sujeito da ciência, que é o “Penso, logo sou” cartesiano ao qual Lacan antepõe “Penso onde não sou, sou onde não penso”

Agosto de 1996

Prefácio ao Parmênides e aos Filósofos Neo-Platônicos

Os neoplatônicos são os filósofos do UM, que é de onde vem a existência. Eles chegam à idéia de que a essência do ser é o UM - são gnósticos - Deus é todos, todos são Deus. Para os neoplatônicos Deus é interior: nós somos UM com Deus, não temos que buscar Deus fora mas dentro de nós (gnosticismo para os católicos é uma heresia, porque acreditam que Deus é uma entidade exterior). O mais gnóstico de todos os psicanalistas é Jung com seu conceito de “self”.

Para os filósofos neoplatônicos há um “UM” totalizante, que abarca todos - o UM de Plotino. Trata-se do Um universal, é o Um em si mesmo que abrange todos os outros. O Deus que é todo e que é tudo. Plotino é o pensador do Um; ele identifica o ser ao Um. Plotino parte de Parmênides: “o ser é e não pode não ser”. Plotino confunde o ser e o Um, isso implica que o Um é o pensamento. O Um de Lacan não é o Um de Plotino para quem existe só Um ser, para Lacan há vários Uns.

O último Lacan usa esse fundamento, abandona o inconsciente estruturado como linguagem que tinha sido seu primeiro retorno a Freud, no qual pensava a linguagem enquanto instrumento analítico. No segundo retorno a Freud o que tem importância não é mais a linguagem, mas a escrita. A tendência atual da psicanálise lacaniana é pesquisar a escrita, que é a idéia de um registro material. O segundo retorno considera que Freud também teria partido do fato que há um registro, o traço mnêmico, que se atualiza na pulsão; seria o traço unário, o primeiro elemento, significa que existe algo em si mesmo que produz efeitos por si mesmo, o que Lacan formula com a sua proposição: Existe d’ Um, não mais como uma relação entre elementos S1 - S2. Existe o Um cujo efeito simbólico não é a materialidade; portanto toda prática atual é para incidir no S1, insensato, fora do sentido, não mais na relação S1 - S2 que é o Simbólico.

O traço unário em Psicologia das Massas aparece como identificação a um traço. Para Freud fazer com que o paciente reconstrua sua história é reatualizar os S1, os traços mnêmicos que ao serem atualizados mudam os outros traços (efeito borboleta). Traço mnêmico é o conceito fundamental atrás do traço unário. Porque algo se registra? O que implica esse registro para Miller, é o trauma, é o S1 como registro material condicionante do destino do sujeito. Lacan vai falar do traço unário como identificação ao ideal, isto é, o que faz com que tudo apareça sem falta, completo, portanto Uno.

No primeiro Lacan o ser se constrói pela fala como efeito do simbólico; no segundo Lacan há algo em si que constitui o ser. Para os neo-platônicos a essência do ser é o UM. Para Lacan existe o UM enquanto S1. Isto é algo que produz efeitos por si mesmo e a justificativa clínica disso é o fenômeno elementar no qual não há cadeia, algo se produz por si mesmo. Daí Lacan abordar a neurose a partir da psicose, pois o sentido é efeito do simbólico, mas não o S1 que tem efeito material, que emerge pelo corte, pelo enigma, pelo sem sentido que produz uma reorganização da cadeia, desvinculando o S1 do S2. Miller agora introduz o S1 em relação ao ser, o mesmo S1 que antes era colocado mais do lado do objeto.

Jacques Derrida é pós-estruturalista. Em Gramatologia, especialmente no texto “Escritura e Diferença”, crítica o estruturalismo como uma falácia logocêntrica (que significa colocar tudo no Simbólico, na razão, no conhecimento) e fonocêntrica (que significa que tudo depende da palavra, o que não é falado não existe). Derrida derruba o estruturalismo, critica o Lacan do Simbólico, diz que o conceito de Escrita já estava em Freud (os sonhos são feitos pela escrita). A metodologia usada por

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Freud não é logocêntrica ou fonocêntrica. É um rébus - uma escrita enigmática primeiro. Depois é um hieróglifo, como evidência de uma estrutura psíquica - a lógica da escritura egípcia é a lógica usada por Freud, às vezes pelo som, às vezes pela representação gráfica. A pergunta por trás disso é: Por que se escreve? Por que isso é sagrado? Porque está ligado ao Deus e ao Um, por isso só os sacerdotes tinham acesso aos textos sagrados. O texto no qual Lacan responde às críticas de J. Derrida é o Lituraterre onde fala do signo com dois aspectos: o gozo e o saber. O que fica no lugar do estruturalismo ultrapassado é a topologia do Nó Borromeano, bom instrumento para a prática, que articula as relações do gozo e do saber nos três registros, R.S.I.

Lacan depois se interessa pela escrita chinesa que não é fonemática, mas é apenas ideográfica. A hipótese é que antes da fala há a escrita; a escrita é um puro registro, e porque algo se escreve, alguém fala. A questão da escrita, da pesquisa sobre a escrita, é um denominador comum entre as várias correntes psicanalíticas, que as está aproximando. A grande ponte da Psicanálise é a escrita, porque se existe o Um existe o Zero. O S1 é significante: é a inscrição da letra; (pragma-cunhagem); a Letra é o suporte material do significante S1.

O ser agora é pensado pelos filósofos matemáticos, Cantor por exemplo, como um conjunto vazio, porque é pensado em termos matemáticos.

O Real que suporta o simbólico, é a letra e a articulação das letras é a escrita. S1é um significante: é a inscrição da Letra. A Letra - pragma - é o suporte material do significante. Será que aí pode-se apontar uma aporia? A conseqüência do Simbólico é que não há a relação sexual, mas então como propor que existe o Um? Na pag. 41 do Seminário afirma “ O que está no centro da identificação é a relação sexual; ao mesmo tempo que Lacan acentua que esta relação não existe, ele enuncia: Existe o Um. De onde se deduz que se Existe o Um não é o Um da relação sexual; na psicanálise esse Um não é requerido pelo que seria a relação sexual mas pela linguagem”. Essa é a questão central de todo o seminário. J.A.Miller vai demonstrar pela lógica que, ao mesmo tempo, não há relação sexual e existe o Um. Utiliza a lógica dos círculos de Euler (como Lacan no Seminário XI), para demonstrar a disjunção e a conjunção. No centro de tudo, está a questão da separação do S1 do a.

Na 3ª aula, para introduzir a questão do Um, com prefácio ao Parmênides, Miller propõe que se leia de Damacius, ‘le Diadoque’ (príncipe herdeiro), o último chefe de escola dos neo-platônicos, o livro 1 de sua obra “Tratado dos Primeiros Princípios” intitulado: “Sobre o Inefável e o Um” onde o autor trata da ‘aporia do princípio’ É a questão de dois termos: o termo ‘princípio’ e o termo ‘todo’: o que Damacius chama de aporia?

Desenhemos o todo e onde colocamos o princípio, dentro ou fora do todo? É isso que Damacius chama de aporia do princípio.

Todo

Se o princípio está fora do Todo o Todo não é todo. Todo

Princípio X

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Se o princípio se inclui no todo, mas se o princípio é a origem, o princípio de outra coisa também, nesse caso o todo não é todo.

Todo Conclusão: O Todo não é o princípio nem procede do princípio.

Princípio

O princípio incluído no Todo faz o Um aristotélico.

O princípio fora do Todo faz o Um platônico.

O que Damacius produz essencialmente é a necessidade de se colocar algo além do Um, que não basta, que não é suficiente e ao que está além do Um Damacius dá o nome de Inefável. Podemos pensar: O Um, S1 é coordenado ao Todo, S2 , e além do Todo e além do Um, o além do discurso, o Inefável. É o que está na pag. 50 do Seminário.

Parmênides é muito mais complicado, diz Miller a seguir. Ele começa o comentário sobre esse famoso diálogo de Platão falando sobre a escola dos filósofos neo-platônicos, os filósofos pensadores do Um, Plotino, Syrianus, Proclus, Damacius, Jamblico. Trata-se de retomar as vias da reflexão sobre o Um, examinar a hipótese se o Outro na psicanálise seria o Outro desse Um. Lacan aborda o Um pela questão da identificação, pelo viés da problemática freudiana da identificação que implica em ‘fazer Um’.

Miller retoma Proclus que fez do Parmênides o centro de seu comentário dos diálogos de Platão e afirma que foi a partir de Proclus que a filosofia neo-platônica considerou que Platão teria dito, em seu Parmênides, o essencial daquilo que concerne ao “pensamento sobre o Um”. Na segunda parte do Parmênides Platão enumera suas nove hipóteses sobre o Um e sua relação com o Ser: 1) Se o Um é um; 2) Se o Um é; (existe) 3) Se o Um é e não é; 4) Se o Um é, o que serão os outros; 5) Se o Um é, o que serão negativamente os outros; 6) Se o Um não é, quais serão as conseqüências disso para ele; 7) Se o Um não é não existe nenhuma determinação; 8) Se o Um não é, o que serão os outros; 9) Se o Um não é, que negações se seguem para os outros.

Miller propõe centralizar o debate em torno das três primeiras: 1) Se o Um é Um, 2) Se o Um é, 3) Se o Um é e não é.

A conclusão da primeira hipótese é que o Um não participa de forma alguma do ser, há uma disjunção entre o Um e o Ser, o X significa que o Um não é (não existe); se o Um não é e o $ está fora porque o $ tem existência. O Um da 1ª hipótese é o Inefável. ( pag. 53 do Semin.)

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Com a 2ª hipótese percebemos que o Um se torna capaz de todos os predicados, essa hipótese demonstra a participação do Um no Ser, o Um e o Ser estão em conjunção, o X se localiza na intersecção dos dois círculos, é o Um que pode ser escrito S1. O Um da 2ª hipótese é o Ser.

Na 3ª hipótese Miller localiza o X no círculo do Ser e o chama S2 ou saber.

Entre a 1ª e a 2ª hipóteses há inversão, entre a 1ª e a 3ª hipótese há continuidade. Esta é a tríade fundamental dos neo-platônicos, diz Miller na pag. 54. O Um da 3ª hipótese é o Um. Miller usa os Círculos de Euler, o mesmo modelo de Lacan no Sem 11, uma via matêmica, para explicar as três hipóteses. O desenho é sempre o mesmo, o importante é a localização do X que significa o Um com seus diferentes predicados, conforme a hipótese.

No capítulo seguinte Miller retoma de forma detalhada o estudo das hipóteses de Parmênides. Trata-se da questão: todos menos eu. Quem pensa o Todo está fora do Todo ou faz parte do Todo? Então o Um é um? Porque se o Um é todo quem fala do Todo faz parte do Todo. É uma questão lógica mas também clínica que remete à primeira identificação. O sujeito que se conta está dentro ou fora? Se ele se identifica ao Um está dentro, mas então quem se identifica ao Outro? Não dá para pensar o Um sozinho porque há também aquele que pensa o Um. É a idéia do Um e do Ser, não se pode ter o Um sem aquele que pensa o Um que é o Ser e é a partir disso que Lacan propõe o S1. Quando uma coisa existe? A existência é em si mesma ou é um predicado anterior a essa existência? A existência existe por si mesma ou depende de alguém para pensá-la? Miller se propõe a resolver essa questão por meio de um raciocínio lógico baseado na teoria dos conjuntos, isto é não existe Um sem o Outro, não se trata de Um causar o Outro, mas de que o Um e o Ser estão absolutamente implicados, é daí que nasce a idéia de cadeia significante, S1, S2, objeto a, é a idéia filosófica da cadeia significante.

No esquema, Miller está pensando o ser como o Outro(pág. 76). O Outro que não é o Um. Pode-se pensar o Um como Eu, idéia bem freudiana que tem a ver com a identificação. O que não é o Eu é o Outro, esse esquema serve para pensar as relações do Eu com o Outro. Miller está falando dessa questão que é a questão primordial da psicanálise, a relação Sujeito – Outro. Ele está mostrando que existe em Platão e em Parmênides um

fundamento para um questionamento que permite estabelecer essas relações que também serão pensadas pela psicanálise.

A partir dos neo-platônicos Miller está propondo pensar a relação do Um com o Ser (a relação Eu com o Outro, do sujeito com o objeto) pelos Círculos de Euler. O que é do ser não é do Um, o que é do Um não é do Ser, com uma zona de intersecção que pertence ao Um e ao Ser e duas zonas de borda e diz que são os Uns dos neo-platônicos.

O “Il y a de l’Un” de Lacan é o que está na intersecção entre o Ser e o Um. A relação do sujeito com o Outro é de alienação e separação (Sem.11). O sujeito na relação com o A se perde porque há um momento em que o sujeito está fora mas ao mesmo tempo está contido pelo A. Existe o Um do qual tudo se inicia mas esse Um só existe em relação ao A que o pensa. Essa função lógica, essa figura na qual ambos estão imbricados, que não é um nem outro mas é a propriedade lógica dos dois, esse é o Um da psicanálise, é a figura da pág. 81. O que Lacan está formalizando com o Il y a de l’Un é a origem da cadeia, a psicanálise supõe um Um original de onde partem as produções do sujeito.

Setembro 1996

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A paixão do neurótico é a falta-a-ser

No capítulo 5 do Seminário, após a passagem pelas hipóteses do Parmênides, Miller volta para a psicanálise buscando a relação que aí pode existir. Ele diz: “Trata-se de estudar o estatuto do “Il y a de l’Un” de Lacan na análise, que se localiza, no esquema proposto, na zona de intersecção entre o Um e o Ser: E eu completo o esquema de acordo com o que indiquei na última vez. Esse Il y a de l’Un

é um julgamento de existência que se distingue do juízo de atribuição.” (pág.80)

Essa é uma questão filosófica mas também é o ponto central da releitura de Freud por Lacan. O texto que dá conta da questão é “A Denegação” no qual Freud fala da gênese do juízo de existência do ponto de vista analítico. Lacan vai acrescentar seu “Il y a de l’Un” ao juízo de existência freudiano. Na denegação trata-se de um mecanismo pelo qual o sujeito pode pensar sem ter que levantar o recalque e Freud se pergunta como isso se

passa. A partir do juízo de existência que é feito por uma operação psíquica, a Bejahung, que consiste na afirmação primordial desse elemento que é o Ser, é o Um. Se ele não existe não se forma a cadeia. A questão do juízo de existência está na pergunta: O que afirma a existência do S1? Está lá ou não?

Miller está tentando formalizar este momento inicial: o Um verdadeiro só existe nessas relações da 2ª hipótese parmênídica; ele tenta responder à questão: Quem é que pensa quem? Quem vem primeiro, o Ser ou o Um? É preciso ter os dois para se ter o ‘Il y a de l’Un’ e este é o Um verdadeiro. A problemática que a partir daí se coloca é situar a materialidade disso, porque o S1 tem a materialidade da Letra; mas se isso é material como fica o julgamento? A solução parece ser que não há um ser que julga; o julgamento de existência se limitaria à questão: faz Um ou não; se faz Um, existe, se não faz Um não existe. O que faz com que faça Um é a conjunção de certos requisitos de ser sem falta, aquilo que opera excluindo os efeitos da castração, é o impensável, é do real. Seria o Traço Unário, a primeira identificação.

Essa é a questão da psicanálise que Miller tenta resolver no seu seminário “Causa e Consentimento”; isso de que estamos falando seria a causa. Mas podemos nos perguntar: Como Freud podia chegar ao recalcado? Sabemos como se dá o recalcamento e o que é o recalcado, mas como trabalhar a partir disso? O que aprendemos com a experiência analítica é que ao incidir na questão da causa o analista coloca o paciente numa nova posição sobre recalcar ou não, posição que permite ao sujeito aceitar o recalcado, seria o que Miller chama de consentimento. O sujeito consente com a angústia de aceitar a dor da sexualidade e da morte. O que na experiência analítica possibilitaria que fosse levantada a função do recalque? Qual seria a função do consentimento? Porque, se existe a possibilidade de mudar a relação do sujeito com a função do recalque esta é a razão de ser da clínica psicanalítica, embora a resposta para isso ainda não seja clara.

Na minha opinião o analista age só na materialidade e o consentimento é só o do paciente, porque cada vez que se recalca há uma escolha inconsciente de manter ou não esse recalque. Cada vez que o analista intervém está possibilitando essa escolha, mas não se trata de pura técnica, tem que haver uma implicação do paciente, portanto a função do analista é a forma pela qual ele age como causa, como agente, como objeto ‘a’ e o lado do paciente é o consentimento, causado talvez pelo amor de transferência que lhe proporciona uma ilusão de completude pelo apoio que ele encontra no analista, que permite que ele possa suportar a dor pela perda narcísica. O sujeito pode até suportar a falta como uma forma de ser amado pelo analista, isso é a neurose de transferência freudiana. O analista como objeto ‘a’ atua completando a fantasia do paciente e por isso o final da análise é pela fantasia, porque a fantasia fundamental é sustentada pelo analista para que o paciente possa chegar ao limite de sua castração.

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Miller conclui, na pág. 81, a partir das hipóteses do Parmênides que existem muitos Uns na psicanálise:

1) Há o Um do significante que não é o Um mas mesmo assim existe; não é o Um verdadeiro porque o Um do significante é o do estruturalismo e portanto precisa de outro para se significar: S1 - S2 .

2) Há o Um do Outro, o Um como A no lugar do Ser.

3) Há o Um fálico que certamente merece ser chamado Um porque na construção freudiana é o mesmo para os dois sexos; é o significante “sem par” de Lacan.

4) Há o Um da relação sexual, da completude. O fato de não existir esse Um não implica que não possa ser pensado; é uma coisa puramente lógica.

5) Há o Um da identificação, esse Um que na ordem simbólica se chama o Unário, é por esse último Um, o mais elaborado da teoria, que Miller propõe a formalização da psicanálise.

Desse ponto em diante do Seminário ele vai relacionar essa formalização com a clínica, vai articular de que maneira se pode pensar as estruturas em relação ao Um, se bem que quando fala no Um esteja se referindo aos vários Uns acima mencionados. A falta-a-ser é o centro da experiência analítica porque se o sujeito não tivesse a falta ele seria Um.

Quando Lacan propõe o “Il y a de l’Un” ele não está anulando toda a sua teorização anterior na qual o Um era o A. Negar a falta no Outro enquanto paradigma da psicopatologia é apontar o A enquanto não Um, é o S(A).Essa é a forma mais clássica.

O que aparece como novo agora é o Um da identificação, o traço unário. Qual é a relação do traço unário com a falta no A? Esta é uma questão clínica. A clínica que se ocupa em desvendar a falta no A é a que busca a significação; foi a clínica lacaniana dos anos 50. A novidade está no Um da identificação que é dos Uns da psicanálise o mais importante, porque se a análise ficar no Um do A ela não termina; é preciso chegar ao Um da identificação, que é o que vai falar do dever do neurótico de inventar suas razões para existir.

A Paixão do Neurótico, tema escolhido por Miller para um Encontro em Valença, é o que ele retoma a seguir, remetendo à pag. 613 dos Escritos onde Lacan fala da falta-a-ser. Se a questão do sujeito é a falta-a-ser o que vai lhe dar a ilusão de que ele é? Miller está pesquisando isso pelas estruturas neurótica e o perversa. Ele está apontando em cada uma das categorias clínicas, que são apenas estilos diferentes de por em ato a identificação primordial, o que o sujeito busca para ter a ilusão da completude.

O capítulo 5 introduz a questão da castração real, que é diferente da castração imaginária e da castração simbólica, a partir da questão: como ‘a’ pode sair de S1? que é a questão central do seminário. É a isso que visa a prática da interpretação sem sentido; o analista na posição de objeto descondiciona a complementação objetal do sujeito e nesse Seminário estudamos essa questão com Miller que a enfoca a partir da questão do sujeito, que é a base da clínica analítica.

O paradigma da clínica psicanalítica, aceito por todas as correntes, é a noção de inconsciente, embora a concepção de inconsciente possa diferir. Outro paradigma é a noção de transferência. O paradigma da prática freudiana é a questão pulsional. O paradigma da prática lacaniana é a causação do sujeito, é a noção de sujeito.

O que é o sujeito? Sujeito é o que estabelece, de um significante para outro significante, um determinado sentido. O que estamos estudando, a separação do S1 do ‘a’, é o que vai dar conta da causação do sujeito. A prática lacaniana visa o sujeito e suas causas, o sujeito como decorrente de um significante particular, faltante por causa da extração de ‘a’.

O sujeito é o paradigma da prática lacaniana, porque quando um sujeito fala na clínica ele é tomado, não na sua essência de sujeito, ou pelo sentido do que está dizendo, mas a partir da idéia que o sujeito decorre de uma cadeia significante e que o significante não se significa a si mesmo, mas só significa o sujeito em relação a outro significante. Tudo depende do contexto da linguagem.

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O neurótico sofre pela falta-a-ser, que gera o desejo; é a primeira clínica de Lacan. Na segunda clínica o que o neurótico tem é o gozo, há um desejo que já não se dirige para a busca da completude, mas que se dirige para o gozo. O percurso de uma análise seria, não eliminar a falta-a-ser, levar o sujeito a não mais querer ser o UM do Outro, seria levar o sujeito a buscar o UM da identidade e o gozo permitido. O neurótico sofre da falta-a-ser, sofre por não ser UM, sofre pela falta que se manifesta de formas diferentes na histeria, na obsessão, na perversão; nesse momento Miller não fala da psicose. Não ser UM é a idéia articulada com a castração, é a questão fundamental da psicanálise.

A castração em Lacan tem uma elaboração diferente conforme o momento do seu ensino. No período do Imaginário a falta é colocada na insuficiência biológica, no desamparo; a criança não se vê como UM, e ao receber sua imagem completa desde o A percebe que se o A é completo, ela é faltante, falta sua possibilidade de ser completa, devido à não coordenação motora, -ϕ ou castração imaginária; o que faz Um é a imagem do A (imago ou gestalt).

No período do Simbólico não se trata mais de uma gestalt organizando o UM; há vários Uns da psicanálise em relação aos quais a falta se instala, pensa-se a falta como inerente à estrutura do significante fálico φ, o que instaura a falta é o N.P barrando o D.M.

No período do Real a falta não está mais sustentada na noção de estrutura, passa a ser pensada em relação ao S1, o significante-mestre, o traço unário; se existe o UM, daí decorre a falta, uma idéia completamente nova. A falta é situada como a separação do objeto ‘a’ do significante-mestre; o S1, frente a uma separação objetal, institui a falta.

O S1, é um significante, o objeto ‘a’ não é significante, a questão incide sobre a possibilidade de se tirar de um significante um objeto. Essa é a questão que Miller tenta responder nesse Seminário. Quando se diz que o sujeito decorre da cadeia significante, estamos tratando com elementos homogêneos. O sujeito é uma conseqüência do significante, o objeto porém, não é significante, são elementos heterogêneos. Essa questão do Seminário pode ser inferida da lógica das proposições de Lacan, embora não tenha por ele sido formulada explicitamente.

Começamos com um impasse: como se pode tirar um objeto de um significante? Se a Letra é o suporte material do significante qual a relação da Letra com o objeto ‘a’? Qual a relação da Letra com o S1? Existe essa relação ou não? São questões em aberto.

Outubro de 1996

S1 – ‘a’ = $ Pode um objeto ser extraído de um significante?

O capítulo 6 é o mais importante de todo esse Seminário porque é onde a questão principal é colocada.

Se o neurótico sofre por não ser Um, é porque em algum momento ele o foi, e depois deixou de ser. Esse não poder ser Um chama-se falta-a-ser, expressão heideggeriana que corresponde em psicanálise à noção de castração. Falta-a-ser é o ponto crucial da clínica psicanalítica e o equivalente clínico da falta-a-ser é a posição do sujeito, que é o estilo do sujeito negar a falta, neurótico, perverso ou psicótico. A falta-a-ser é o essencial do sujeito, $, porque o sujeito investe na falta, libidiniza a falta, goza dela. Na pág. 97 do Seminário, Miller diz: “ A falta-a-ser é isso ao que o neurótico mais se agarra e propomos completar essa insígnia, $ com uma outra, -ϕ.” É a escrita da castração em Lacan:

$ . Por que alguém não é Um? Porque há a castração.

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Em termos dessa ordem dos Uns da psicanálise, o Um do significante, o Um do A, o Um do significante fálico, o Um da completude, o Um da identificação, a castração foi pensada por Lacan, na época do Imaginário, como falta - a castração imaginária (-ϕ), a idéia da incompletude no A.

Na época do Simbólico a castração é pensada como falta de um significante no A e de que maneira um significante pode parecer completo. É através de outro significante que se busca uma significação de completude, uma significação fálica, um sentido que cria uma ilusão de completude na significação, completude que no Imaginário estava na Gestalt.

No período do Real essa falta vai ser pensada em termos do objeto ‘a’ e o que instaura a falta no Real é a separação do objeto ‘a’ do S1. É disso que se trata nesse Seminário, de como se instaura a falta no Um, não mais em termos de uma lógica estruturalista, S1 - S2, mas dentro de uma outra lógica que inclui o objeto ‘a’.

Miller diz que também se pode escrever a falta (ou castração) de outra forma: $ .

a

Também aqui, ele está procurando a relação entre -ϕ e ‘a’, isto é, as formas de complementação do sujeito como -ϕ, que é significante, o significante fálico e como ‘a’, que não é significante.

S1 - a = $, mas como entender isso? Como ‘a’ pode sair de S1? Se o ‘a’ sai de S1 ,o S1 fica faltante e se junta a S2 na busca da completude e aí se produz o sujeito.

A ilusão dessa completude é a fantasia, $ ◊ a, o sujeito completado pelo objeto. Matemicamente é bonito, mas é preciso que seja certo que o ‘a’ sai de S1, do Um pressuposto completo. O S1 é o Um, são os Uns, cada S1 é um Um que dá origem a uma cadeia, a partir da extração do objeto ’a’. Mas se S1 é significante, como pode sair um objeto de um significante? Temos que pensar isso pela clínica e não pela teoria. Nesse capítulo Miller faz a formalização da castração como sendo a separação do S1 do a.

Essa é a questão que percorre todo o Seminário. Porque o sujeito se complementa pelo significante ou pelo objeto ‘a’? Quais as condições que levam o sujeito a se complementar de uma forma ou de outra? Qual a relação de um tipo de complementação com a outra? Isto é: de que forma a fantasia determina o sintoma? Então o final da análise tem a ver com a complementação objetal e não com a complementação significante.

As fórmulas da sexuação dão conta das formas de um sujeito se completar, que são diferentes para o homem e para a mulher. Para o homem é pelo objeto ‘a’, e para a mulher é pelo falo enquanto significante, ou pelo gozo Outro, próprio da mulher. O homem coloca a mulher no lugar de objeto ‘a’. Existem diferentes modalidades de gozo; o A gozo, é uma delas. Será que se pode definir a essência feminina pela modalidade do gozo? O gozo masculino é o fálico que tem características específicas, o homem não passa pelo incubo ideal, pelo homem morto (referência a Cristo), a que Lacan se refere em Propostas para um congresso sobre sexualidade feminina, que são específicos do gozo feminino. Incubo é uma fantasia popular, exemplo brasileiro é o Boto amazônico. Incubo tem a ver com uma inversão do desejo.

Na pag. 102 Miller continua com a questão da complementação: “Ao sujeito, enquanto falta-a-ser dois complementos são necessários. Já falei das duas mortes, dos dois sexos, falo agora dos dois complementos do sujeito. Há para o sujeito um complemento significante; é o que escrevemos S1. Também lhe é preciso um complemento do Ser, e é o que escrevemos ‘a’. Os dois são diferentes e não devem ser confundidos.”

Ser é um termo filosófico complexo que pode ter diferentes acepções. Podemos dizer que em Lacan a referência ao Ser é sempre heideggeriana. Heidegger parte de uma dicotomia “Ser e Ente”. O ente se refere à sustentação biológica do Ser que é uma conseqüência da linguagem. Quando Lacan fala no Ser, fala como um produto da linguagem enquanto excêntrico à linguagem, tal como o sujeito. Ele coloca o sujeito ao lado da significação e ser do lado do objeto ‘a’.

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Lacan trabalha a questão do ser no Seminário do Ato Analítico, Seminário 15, no qual estuda a questão em relação a Descartes. Mais tarde ele inventa o termo “parlêtre”, aquele que existe enquanto fala. Essa existência pode estar no sentido ou fora do sentido; no sentido o sujeito busca sua complementação na articulação significante, tem uma existência baseada no sentido; a idéia da existência do parlêtre dissociada do sentido é a idéia de Ser em Lacan. Ser para Lacan não é o ente, é algo fora do sentido, é objetal. No Seminário 15 o paradigma do sujeito é o “Eu penso”, isto é, o inconsciente, o sentido, o significante; o paradigma do objeto ‘a’ é o “Eu sou”, uma existência sem pensamento, clinicamente do lado da ‘passagem ao ato’, que é um fato do sujeito, fora do sentido, que nada tem a ver com o ente, é o ato, que é objeto e não está ligado ao significante.

O objeto ‘a’ é definido como consistência lógica, é definido de todas as maneiras, para não ser materializado, é definido como o que está fora do significante, o inominável, mas isso não quer dizer que seja material, ao contrário da Letra, cuja definição é “suporte material do significante”. Essa é a questão principal do Seminário, tirar um objeto de um significante.

Temos que aprender a pensar sobre isso. É a partir da experiência clínica e não da lógica que temos que pensar, porque não há outra maneira de pensar essas questões. A partir da clínica vou me apoiar nessa escrita teórica, para me referir à experiência. Trata-se aqui de ver na clínica o que é a Letra, o que é objeto ‘a’ e pensar as relações entre esses elementos.

Miller está partindo do que é verificável na clínica, que é o sujeito do inconsciente, diferente do sujeito do conhecimento da filosofia. Sujeito do inconsciente porque na fala dirigida ao Outro, há um saber não sabido, é nesse sujeito que o analista intervém para fazê-lo significar-se e na medida que esse sujeito produz uma cadeia, um significante, outro significante, outro significante, S1-----S2------Sn, o analista coloca outro significante. A idéia é que atrás disso há uma máquina material que são as Letras condicionando os significantes.

A idéia de sujeito é central na psicanálise. O sujeito em Lacan está ligado a funções de linguagem a partir da idéia do inconsciente estruturado como linguagem. Se o sujeito da psicanálise é o sujeito do inconsciente e essa é a evidência da própria prática analítica, a evidência clínica a que essa prática conduz é que esse sujeito é faltante. Daí, diz Miller, o sujeito faltante tem duas formas de se completar, a primeira é pela via do significante, que é a via do sintoma, a outra é a via objetal, que é a da fantasia. Esse é o eixo clínico de Miller desde seu primeiro Seminário, fundamental para compreender a idéia do sujeito complementando-se objetalmente. Aqui, para pensar o que causa a falta, Miller está partindo da clínica, pode-se saber da falta pelas formas que o sujeito tem de tentar complementar-se.

$ → S1 - o sujeito tende para o ideal, o sujeito tende a aparecer como completo, através de uma significação fálica, é o que aprendemos com Lacan do simbólico.

A segunda maneira, é $ → a, o sujeito completando-se objetalmente, sabemos disso pela clínica da fantasia. $ ◊ a é a formalização teórica da evidência clínica de que há formas fixas do sujeito se ver como completo. Diferente do sintoma em que pode haver deslocamento e condensação, a fantasia é fixa, não tem deslocamento, é uma frase, é prazerosa; é a leitura que Miller faz de Lacan em “Kant com Sade”. A clínica confirma essa forma do sujeito completar-se objetalmente, como vemos em Freud, “Bate-se numa criança”. Miller estabelece a relação entre $ e S1, verificável clinicamente e a relação $ e objeto ‘a’, que também pode ser comprovada pela clínica. Baseado nessa lógica, $ → S1, e $ → ‘a’ ele vai deduzir a relação S1 → a, via $.

O projeto de Miller é responder essa questão: Existe uma relação entre S1 e a? Qual é? Como se estabelece?

Se o paradigma da prática lacaniana é a noção de sujeito, Miller coloca que a clínica ensina que há duas formas do sujeito se complementar: a complementação significante que é o Lacan do simbólico. O sujeito se completa através do significante que aponta o Ideal, o sem-falta, ou seja a significação fálica, ou a noção de falo, do que faz UM. O sujeito se representando por aquela significação tem a ilusão de aparecer completo, é a noção de Ideal que dá conta dessa vertente significante, do porque o

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sujeito se aliena nessas significações, porque existe uma significação que é o Pai, que é aquele sem falta.

Mas também aparece na clínica a evidência da complementação objetal, que é a clínica da fantasia em oposição à anterior, que é a clínica do sintoma. Sintoma e fantasia: é o eixo proposto por Miller para se entender a psicanálise, sendo que a idéia da complementação fantasmática é uma leitura do Miller da obra de Lacan. O texto é Kant com Sade, que segundo Miller demonstra a complementação objetal do sujeito, e também o quinto capítulo de Direção do Tratamento.

Então temos a relação do sujeito com o significante $ → S1, e a relação do sujeito com o objeto $ → a, o que Miller está buscando é a relação do S1 e a. A única forma de saber isso é pela mediação do sujeito, não há como saber essa relação diretamente, é apenas uma inferência, não é uma constatação da clínica. Não é difícil entender a complementação do sujeito pelo significante porque são isomorfos, são da mesma estrutura, o sujeito decorre, é um produto do significante, o sujeito não tem substância, o significante sim. Pensar na complementação do sujeito pelo significante é: um significante faltante se desloca e tenta aparecer como não faltante através de outro. Esse plus que se acrescenta ao significante para ele aparecer não faltante é outro significante, o significante privilegiado, o falo. Então significante + falo é a completude, é o ideal.

Mas e a complementação objetal? Pois o objeto não é isomorfo ao significante, ele se opõe ao significante. Então, pergunta Miller, como coisas diferentes podem se juntar? Como se complementa o sujeito com o objeto?

Na prática clínica sabemos que não existe o objeto que complemente o sujeito. Então Lacan inventa o objeto ‘a’, que não é uma objeto material, mas é um objeto causa, um objeto que tem consistência lógica e que não é significante. O único recurso que Lacan encontrou para colocar coisas heterogêneas no mesmo plano foi a topologia. Coisas diferentes podem ser relacionadas numa superfície topológica. O que demonstra a relação significante - objeto, é o cross-cap. Miller não usa a topologia, como pode então pensar S1 e a? Esse é o eixo do Seminário. Outro nome para isso → a castração real.

Por que as fórmulas quânticas da sexuação se contrapõem à idéia de “Existe o UM”? Porque “Existe o UM”, é igual a “Existe o Todo”, é o Pai não castrado: ∃ x φx isto é: Existe o UM, é a partir disso que Lacan desenvolve as fórmulas da sexuação e é também a partir de Aristóteles que Lacan pensa o UM pela lógica, pelas categorias aristotélicas.

31 de outubro de 96

“ O escrito na palavra” Texto: J.A.Miller – O escrito na palavra, Revista Opção nº 16, pag. 94.

Trata-se de uma aula do Seminário que Miller está dando atualmente na Escola da Causa. Nessa aula está dizendo onde, para ele, está o lugar da Letra. Comparando com o artigo do Celso Renó na mesma revista, percebe-se que ao falar do traço e do traço unário Celso Renó segue a elaboração de Freud, que não é a mesma de Lacan. Lacan usa a idéia de traço unário colocando-a dentro de uma lógica própria, diferente da forma que Freud usou. Trata-se de um tema atual e não existe ainda uma doutrina sobre isso. Nessa aula Miller coloca a sua opinião sobre essas questões. (Lemos a parte II na pág.96,97 e 98, até quando começa a falar de Malarmé).

A idéia de “gramma”, é fundamental porque o que Derrida fundou é a Gramatologia, que é o estudo da Letra. Miller vai dizer que Lacan falou sobre isso em “Instância da Letra”, mas na verdade em 1957 ele não dava o estatuto radical para a escrita, como no último Lacan.

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Miller pretende demonstrar que a escrita está após a palavra e que a idéia de traço é algo anterior. O que Lacan usa para pensar a questão, é a idéia de significante e de letra. Lacan só usa a noção de traço para justificar a constituição do significante unário, S1, mas quando já se tem o S1, não se precisa mais da noção de traço. A pergunta que fica para responder é: qual a relação entre a noção de traço e a letra? Celso Renó não coloca essa questão, ele está trabalhando com traço e significante, não está abordando a questão da Letra.

A questão que eu destaco é que Lacan em Lituraterre, coloca a Letra como precipitado do significante; então primeiro haveria o significante depois a Letra. Isso parece contrário à idéia de que a Letra é o suporte material do significante, mas na verdade não é, porque se pensarmos que o significante unário é sinônimo de traço, temos no princípio o traço ou significante S1, se a Letra é um precipitado do significante o significante vem antes. Porque a Letra, seria o suporte material do significante? O que eu entendo é que, se no começo há um traço significante há um registro, mas esse registro, não tem materialidade, ele se materializa na Letra.

Primeiro aparece como significante, o que fica de registro é a Letra, que forma uma escrita, S1,S1,S1, que é resignificada. Anterior portanto à escrita está o significante, essa é a lógica que se impõe de Lacan. É lendo Lituraterre, trabalho de Lacan de 12/5/71 que se pode concluir que a escrita é posterior, a partir da metáfora das nuvens, “as nuvens de significantes chovem letras”. Ele está falando num momento de reorganização, de resignificação teórica. O impacto que produz acontece porque não se trata de uma coisa óbvia, não se trata de uma maneira comum de pensar. Os autores usam essas referências cada um do seu jeito, mas ninguém ousa fazer sistemas, tentam usar isso para dar conta da experiência, mas há contradições. Temos que ver em cada autor e como articulam a razão dessas ordens.

Nesse artigo de Miller “O escrito na palavra” tem-se a impressão que ele coloca a Letra como anterior ao significante, como um suporte material que condiciona o significante. Eu acho que Miller toma a lógica do pensamento de Lacan e ignora, passa por cima das possíveis contradições, ele só fala do que faz sentido. Eu acho que para ser coerente, se se quiser dar uma ordem, é muito mais interessante pensar que o S1 já é uma escrita, que a escrita é anterior a fala, portanto a escrita e a Letra são anteriores ao significante. Isso responde melhor à clínica do que colocar a Letra depois do significante.

Trata-se porém de uma questão ainda em aberto, passível de ser explicada por duas leituras diferentes. A clínica da psicossomática é uma questão fora do sujeito, mas não fora do significante. O que se tem aí é o S1 insensato, que não quer dizer nada, aí não existe o Outro no qual ele buscaria o reconhecimento.

Minha tendência particular é pensar a ordenação do seguinte modo: traço e letra, teriam um mesmo uso, eu prefiro usar Letra, é mais moderno. Traço é um termo que se presta a diferentes usos, traço mnêmico, traço unário, traço de percepção, o artigo de Celso Renó, poderia muito bem ter falado em Letra, caso ele não estivesse pesquisando a questão do traço.

Toda busca da clínica seria incidir nos S1, os efeitos seriam o que Lacan chama, ressonâncias de palavras e ainda a cura por acréscimo. Em Freud chama-se ligação, um conceito fundamental da clínica freudiana, energia ligada e não ligada. É um conceito econômico: quando o analista faz uma interpretação que levanta um recalque, ele muda a relação econômica, libera uma quantidade de carga investida numa representação; ao mexer num determinado elemento recalcado, aquela carga se desloca para outras representações ligadas àquela, ou o que se desloca é a carga. Mas quando o analista consegue tornar consciente uma representação, aquela carga não precisa mais ser deslocada, logo modifica todas as representações ligadas naquela na qual o analista incidiu. É assim que os analistas freudianos explicam os efeitos do tratamento analítico: não é preciso tornar consciente tudo o que é inconsciente porque ao incidir numa representação modifica-se todas as representações ligadas a ela.

Separar S1 de a é reintroduzir a falta na análise.

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Pergunta - Se tudo o que estamos falando se refere à separação de S1 e S2, quando você fala em separação de S1 do a, do que se trata?

Trata-se do que produz a ligação, do que faz com que uma representação esteja ligada a outra. Para entender temos que pensar que a clínica analítica vem do final para o começo, no final é o deslocamento que se descobre: uma coisa está ligada a outra pela associação; o que faz com que uma coisa se ligue a outra é o desejo, que provém da falta. O que uma representação procura na outra é a sua completude, ao tentar se tornar completa na outra, tenta escapar da falta. É isso que dirige uma cadeia, a busca da completude, uma coisa buscando outra, até chegar no primeiro elemento que ficou perdido; como nunca se chega aí, fica-se sempre na falta. Na verdade, o que interessa, é o que produz a falta, não o S2, mas sim o S1.

A falta se instala no S1 que é inteiro, quando dele sai o objeto ‘a’. O S1 fica então faltante e aí se liga a S2 onde vai tentar buscar a completude perdida.

O momento atual da clínica psicanalítica é dar conta da falta, da falta-a-ser, do desejo, interpretar o desejo; isso seria dizer o que uma representação está buscando na outra, seria interpretar o que faz ligação no sentido freudiano. O que Lacan propõe é, ao invés de interpretar o sentido, o porque S1 se liga a S2, intervir no que produz a falta a partir do analista na posição objetal.

Quando se produz a falta, a separação do S1 do a, também automaticamente se produz a fantasia. A análise introduz a falta, produz o sintoma e ao mesmo tempo a fantasia que condiciona o sintoma. Estruturalmente, trata-se de alienação e separação. Nesse momento o analista está preocupado, não com a falta e seus deslocamentos, mas com o que instaurou a falta. A interpretação fora do sentido consiste, não em nomear a falta, mas em condicionar esse efeito de separação. Porque na situação analítica o analista está condicionando as fantasias do paciente, está servindo à completude e ao agir desde aí o analista incide como causa; ao interpretar por equívoco, ou por corte, está desconstruindo a significação; está na função do NP enquanto agente de separação do S1 do a, ou seja, o S1 está descondicionado o sujeito dos seus sentidos e das ligações que ele poderia fazer a partir desses sentidos.

28 de novembro de 1996

O que faz insígnia Recapitulação do Seminário até cap.V

Trauma é uma formulação freudiana que leva em conta o ponto de vista econômico como uma quantidade de carga que excede a capacidade do aparelho psíquico, um excesso inassimilável. Lacan não usa esse ponto de vista mas pensa o trauma em relação ao gozo, trauma que não é a marca inassimilável, mas da qual deve haver um registro que é traumático. Que registro é esse no sistema lacaniano? O que corresponde à metáfora energética de Freud?

O que J.A.Miller vai sugerir é que o registro do trauma é o traço unário e a relação disso com o gozo é o que ele vai desenvolver no Seminário “O que faz insígnia”. Em Lacan a própria noção de gozo vai ser reformulada em relação a Freud, que postulava gozo como satisfação da pulsão, contudo pulsão de morte, tendência a repetir a primeira experiência de satisfação, de completude. Só assim o gozo teria sentido. Isso está no Seminário da Ética: está aí a relação com o trauma: se é pulsão de morte, como se satisfaz? É o paradoxo do Além do Princípio Prazer. Existe um lado do que desconstrói, que é a idéia da pulsão de morte, do que não faz Um e do outro lado existe a satisfação que é o que faz Um, são duas vertentes opostas e em cada uma delas existe o Outro (A e a).

O traço unário é a vivência de satisfação pela eliminação da tendência à pulsão de morte (se já há a completude no S1 não há mais a tendência à completude na pulsão de morte), mas continua condicionada por ela. Essa é a maneira pela qual Miller articula traço unário, pulsão de morte e gozo. É uma construção teórica. Para a questão do nosso trabalho, sobre o Seminário “O que faz insígnia”, pode-se inferir a articulação da pulsão com o significante. Se se articula gozo com traço unário, está

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se articulando pulsão e significante. O gozo tem a ver com a pulsão, gozo tomado como satisfação da pulsão e o traço unário é um significante.

Questão: como o gozo incide no significante?

Vai incidir pelo traço unário, que é a idéia central, que se aproxima da vivência de satisfação, a constituição do primeiro UM. O que Miller está articulando no Seminário é a idéia de Freud do inconsciente causado pela castração, (castração como alguma coisa que era inteira e deixa de ser, algo que era e deixa de ser, sexo ou é masculino ou castrado) é a idéia de como um todo pode perder algo. Para se saber como um todo perde algo é preciso saber primeiro o que é o Todo.

Esse Todo em Freud vai receber o nome de Eu (ego), porque o Eu é a sede das defesas, é do Eu que sai o recalque. Este Eu é um todo que se sente ameaçado, é isso que Freud depois teoriza como Narcisismo. Isso fica misturado em Freud com o que Lacan vai chamar de vertente do Imaginário, que se articula com a vertente do Simbólico. De que modo algo dito no Simbólico ameaça esse Eu narcísico do sujeito? Lacan diz que o Simbólico predomina sobre o Imaginário. O que ameaça o Eu narcísico imaginário, vem do simbólico, vem do significante. Para Freud o UM é o corpo, é o Eu, é o Eu narcísico, imaginário. Para Lacan, o que ataca esse Eu narcísico vem do simbólico. Onde no simbólico se instaura o Todo e o não Todo? O que do simbólico produz ameaça? É a partir daí que Lacan demonstra a idéia da falta no significante S(). Há a idéia de que o significante é portador da falta por sua própria estrutura.

Num terceiro momento Lacan vai colocar a noção de Real como condicionando o simbólico, a falta está no real, o todo está no real e o significante é faltante por causa do real. Partindo dessa idéia J.A.Miller se pergunta: se esse real fura o simbólico, como isso se dá?

Toda a idéia do Seminário é trabalhar a questão do Um a partir do que existe de doxa em relação ao Um. Miller propõe pensar a partir da idéia do Um como o que faz o Todo, pelo viés lacaniano e pelas categorias neo-platônicas, que já fazem parte da tradição. Os neo-platônicos dizem que há muitos UNS, com diferentes nomes e Lacan pergunta: Qual o Um da psicanálise? De que Todo se trata na psicanálise?

Miller começa pelos neo-platônicos e pelos tipos de Um deduzidos pelos neo-platônicos, a partir da idéia como pré-existente à existência, a idéia da idéia, a idéia primordial que poderia se aproximar da noção de Deus, isso seria equivalente ao Um de onde tudo se origina e para onde tudo converge. A pergunta platônica é: esse Um se contém a si mesmo? Esse Um é causa de si mesmo? Haveria o Um que se contém a si mesmo, noção de Deus que se cria a si mesmo, mas também pode haver um Um que observa o Um, é a posição do sujeito que observa Deus, um Um cuja causa está fora de si mesmo, então é um Um diferente do primeiro Um, já são dois Uns diferentes. Isso tem a ver com a psicanálise porque a partir daí se pode pensar a relação de Eu e do Outro, que é uma relação de linguagem e que implica essa noção do Um. Por ex: Piaget: “Eu tenho três irmãos, Pedro, João e eu”; o sujeito aí se inclui no conjunto dos irmãos, conjunto pensado como Um. Se pensarmos no exemplo “Todos menos eu” veremos que o ‘Todos’ é o ‘Um todo’ do qual o sujeito se exclui. O conceito chave que aí predomina é o de Identificação, de Eu, de Narcisismo primário.

Miller fala dos Uns da psicanálise a partir do Parmênides, para chegar à conclusão que o Um a que Lacan se refere está na intersecção entre o Ser e o Um. (Texto “Ou pire” Scilicet nº 5/6 pág. 7). Há o Todo do Todo, aquele que é em si mesmo, esse é Deus, que contém tudo. Há o Todo que depende do que está fora dele para pensá-lo. Frente a toda essa elaboração lógico-filosófica Lacan vai situar o Il y a de l’Un, o todo da psicanálise em relação aos todos da filosofia. É nesse momento que Lacan nomeia, precisa, o objeto da psicanálise. O Seminário de Miller entra por aí para falar do Todo da psicanálise, do UM da psicanálise, do UM do qual se vai tirar alguma coisa e se vai constituir o sujeito. Como se constitui o sujeito é a questão na visão analítica. Se constitui o sujeito porque no início era o Todo, do Todo se tira algo e se constitui o sujeito.

O Seminário no primeiro momento fala do que é o Todo na psicanálise. No segundo momento fala da maneira pela qual desse Todo se tira alguma coisa. No terceiro momento do Seminário Miller situa isso em relação à clínica psicanalítica porque a prática analítica é isso, é extrair algo do todo. Dizer

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“Existe o Um” é um julgamento de existência, é como articular enunciados tais como “Não existe a relação sexual” e “A mulher não existe” já que dizer que “Não existe a relação sexual” é uma forma de dizer que não existe o Um.

Onde situar o Um em psicanálise? O neurótico sofre por não ser Um, sofre pela falta-a-ser, tanto na histeria como na neurose obsessiva (ver pag. 111 e seguintes). No ponto em que chegamos do Seminário (cap.5), Miller fala do Um dos neo-platônicos e articula com o Um de Lacan, aponta o lugar do Il y a de l’Un na intersecção do Um e do Ser. Porque Il y a de l’Un é o lugar entre o Um e o Ser? É isso que interessa a psicanálise. O Um da psicanálise decorre dessa relação “Todos menos eu” (no sentido da exterioridade, de que há um que observa, que pensa o Todo, então o Todo não é todo, falta-lhe esse um). O sujeito para se nomear em função de seu conjunto de significações se coloca numa posição de exterioridade, há o sujeito e o Outro, o sujeito coloca esse outro tipo de Um como um Outro, pode-se pensar o sujeito a partir daí. Então Miller vai falar dos vários Uns da psicanálise. Assim como há vários Uns para os neo-platônicos, há também vários Uns para a psicanálise, isso depende do que se está pensando enquanto Um, que é uma noção operatória. Miller fala do Um do significante. É a idéia de que tudo parte do significante, é o ponto de partida da maneira lacaniana pensar a psicanálise. É o Um que não é Um, a partir da fórmula: UM significante é o que representa o sujeito para outro significante, então não é Um, são dois.

Esse Um do significante é uma superação da idéia do Eu como Um que está em Freud. Freud pensava o representante como centro do ser, então podia pensar o Eu como Um, porque havia alguma coisa que representava o Eu. Lacan desloca dizendo que isso só funciona num sistema de significações, então o que interessa para Lacan sobre o Eu é o significante fálico, é o falo. Para Lacan o eu não é uma coisa em si mesma, é só uma ilusão de completude.

Passando a idéia do que faz a completude do Imaginário para o Simbólico o que temos é o falo. O significante em si mesmo só produz essa ilusão de completude em relação ao Outro, logo a completude está no Outro, é aí que entra a idéia do Outro como passível de ser completo.

Resumo

A idéia do Seminário é trabalhar a questão do “Il’y a de l’Un”, que tem a ver com a Letra, com o traço unário, a partir do que existe de doxa em relação ao Um. O que Lacan disse começa pelos neo-platônicos e pelos tipos de Um deduzidos pelos neo-platônicos, a partir da idéia platônica da idéia como pré-existente à existência, a idéia da idéia. A idéia primordial poderia se aproximar da noção de Deus, isso seria equivalente ao UM, de onde tudo se origina e para onde tudo converge. A pergunta platônica é: Esse Um se contém a si mesmo? Esse Um é a causa de si mesmo? Haveria o Um que se contém a si mesmo, noção de Deus que se cria a si mesmo, mas também pode haver um Um que observa o Um, é a posição do sujeito que observa Deus, um Um cuja causa está fora de si mesmo, então é um Um diferente do primeiro Um, já são dois Uns diferentes. Isso tem a ver com a psicanálise, porque a partir daí, se pode pensar a relação do Eu e do Outro, que é uma relação de linguagem e que implica essa noção do Um. Se pensarmos no exemplo: Todos menos eu, o todos é o Um todo do qual o sujeito se exclui. O conceito chave aí é o de identificação, de eu, de narcisismo primário. Miller fala dos Uns da psicanálise a partir do Parmênides, para chegar à conclusão que o Um a que Lacan se refere está na intersecção entre o ser e o Um (Texto “Ou pire”, Scilicet nº 5 pág. 7).

Onde situar o Um em psicanálise? O neurótico sofre por não ser Um, sofre pela falta-a-ser, tanto na histeria quanto na neurose obsessiva (pág.113 e seguintes). E o perverso? E o psicótico? (pág. 109).

Dizer “Existe o Um” é um julgamento de existência, como também o é articular enunciados tais como “Não há relação sexual” e “A mulher não existe”, já que dizer que “Não há a relação sexual” é uma forma de dizer que não existe o UM, como também é dizer “A mulher não existe”. Isso parece paradoxal, embora Miller diga que se trata de uma lógica diferente.