Os Ultimos Sete Meses de Anne Frank-Willy Lindwer

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OS ÚLTIMOS SETE MESES DE ANNE FRANK por WILLY LINDWER O Diário de Anne Frank - interrompido em 1 de Agosto de 1944 - constitui um documento de alto pundonor humano e o libelo acusatório nele contido ainda choca todos os leitores pela sua autenticidade. Agora em Os Últimos Sete Meses de Anne Frank é revelada a parte final, e pouco conhecida, da breve existência da pequena judia que, vítima das perseguições nazis, viria a falecer no campo de concentração de Bergen-Belsen em Março de 1945. Seis mulheres partilharam este cativeiro e o testemunho que prestaram foi recolhido pelo jornalista Willy Lindwer. Com palavras simples e comovedoras, as sobreviventes falam delas e do calvário de Anne. A descrição da sua vida nos últimos sete meses surge, assim, como o complemento natural do inesquecível Diário e proporciona novos esclarecimentos acerca de uma das páginas mais tenebrosas da história da Humanidade. OS ÚLTIMOS SETE MESES DE ANNE FRANK LIVROS DO BRASIL, S. A. Rua dos Caetanos. 22 - 1200 Lisboa Título - OS ÚLTIMOS SETE MESES DE ANNE FRANK Autor- WILLIAM LINDWER Coleccão-VIDA E CULTURA-Nó 124 Preço C O L E C,C Ä O V I D A E C U L T U R A Z¦'ILLl' Ll \ D ¦¦ER

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OS ÚLTIMOS SETE MESES DE ANNE FRANK por WILLY LINDWER O Diário de Anne Frank - interrompido em 1 de Agosto de 1944 - constitui um documento de alto pundonor humano e o libelo acusatório nele contido ainda choca todos os leitores pela sua autenticidade. Agora em Os Últimos Sete Meses de Anne Frank é revelada a parte final, e pouco conhecida, da breve existência da pequena judia que, vítima das perseguições nazis, viria a falecer no campo de concentração de Bergen-Belsen em Março de 1945. Seis mulheres partilharam este cativeiro e o testemunho que prestaram foi recolhido pelo jornalista Willy Lindwer. Com palavras simples e comovedoras, as sobreviventes falam delas e do calvário de Anne. A descrição da sua vida nos últimos sete meses surge, assim, como o complemento natural do inesquecível Diário e proporciona novos esclarecimentos acerca de uma das páginas mais tenebrosas da história da Humanidade. OS ÚLTIMOS SETE MESES DE ANNE FRANK LIVROS DO BRASIL, S. A. Rua dos Caetanos. 22 - 1200 Lisboa Título - OS ÚLTIMOS SETE MESES DE ANNE FRANK Autor- WILLIAM LINDWER Coleccão-VIDA E CULTURA-Nó 124 Preço C O L E C,C Ä O V I D A E C U L T U R A Z¦'ILLl' Ll \ D ¦¦ER

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OS ûLTIMOS SETE MESES DE Traducão de EDUARDO SALƒ * Capa de A. PEDRO * Título da edição origìnal DE LAATSTE ZEVEN h1AANDEN Vrou¦ven in het spoor van Anne Frank * Copyright ; 1988, Willy Lindwer * Reservados todos os direitos pela legislação em v;gor * Lishoa - t 992 * VEND.AINTERDITA NA REPOBLICA FEDERATIVA DOBRASIL ANNE FRANK ÿi EDIÇÄO ¦LIVROS DO BRASIL. LlSBOA Rua dos Caetanos, 22 A MINHA AVƒ RlVKA, E¦ECUTAOA NA POLÖNJA PELOS NAZIS FOROUë ESTE LlVRO? Este volume reproduz rntegralmente as revelações feitas para o meu filme doeumentário difundido pela televisão holandesa em Maio de 1988 e pela belga em Dezembro do mesmo ano. Aquando da

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montagem, apercebi-me de que apenas uma parte muito reduzida poderia ser utifizada, enquanto cada um dos testemunhos, tomado separadamente, comportava material com interesse suficiente para se conservar na sua totalidade. A presente obra não constitui somente um complemento da película, pois tornou-se sobretudo um documento histórieo sobre a coragem notável das mulheres interrogadas. Este trabafho prolongou-se por maìs de dois anos, durante os quais numerosas entrevistas precederam as gravações definitivas. As mulheres que aqui fafam tiveram de superar uma emoção considerável, mas a necessidade de contar a sua história acabou por prevalecer. C¦I Estou enormemente interessado na publicação integral desses encontros, pois ela esclarece a motivacão, as razões que insistem em se exprimir. æ semelhan5a d filme, o Iivro reconstitui um período da Segunda Guerra Nlundial, revelado por aquelas que conviveram com Anne Frank nos últimos sete meses da sua vida. A história delas é, também. a de Anne. Estabeleceu-se em cada uma um laço particular de contiança, de amizade. É imensa a minha admiração pela sua coragem extraordinária. Ensinaram-me a compreender melhor o fardo suportado pelos sobreviventes dos campos de concentração. Pertenço à geracão do pós-guerra, mas descendo de uma família judia que atravessou a Ocupação pelo preço de duros sofrimentos. O tema era-me familiar, apesar de que a confrontação com Auschwitz constituiu uma experiéncia perturbadora. Agradeço muito particularmente a A. H. Paape. director do Instituto Nacional Holandés de Documen- tação sobre a Guerra, em Amesterdão, e à jornalista Renée Sanders, que colaborou neste projecto, assim como a Bob Bremer, director de programas da tele- visão holandesa. Estou igualmente grato à Sr.¦ Elfriede Frank e ao Fundo Anne Frank, em Basileia, pela sua cordial colaboração. Quero também exprimir o meu reconhecimento a minha mulher, Hannah, que me apoiou nos momentos crucìais e muito trabalhou no filme e no livro.

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Amstelveen, 12 de Junho de 7988 WlLLY LINDWER C9¦ r¦¦rR¦Dz¦c¦¦o Anne Frank tornou-se uma das figuras mais vigorosas da Segunda Guerra Mundial, à qual o seu nome está ligado indissoluvelmente, muito para além dos Países Baixos. 0 seu Diário, redigido entre 12 de Junho de 1942 e 1 de Agosto de 1944, período em que esteve escondida no ¦¦Anexo¦¦, publicado em mais de cinquenta países, foi incansavelmente montado no teatro, programado na televisão ou pro- jectado nos ecrãs dos cinemas. O Anexo foi convertido em museu e há nume- rosos anos que atrai a Amesterdão centenas de milha- res de visitantes do mundo inteiro. Anne escreveu a última página do seu Diário na terça-feira, 1 de Agosto de 1944. A 4 do mesmo mês, o Sicherheitsdienst [SD) invadiu o Anexo ao número 263 da Prinsengracht e todos os

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ocupantes foram detidos e levados. O relato autobiográfico de Anne Frank termina aí. A prisão, deportação e extermínio constituem os [13] últimos capítulos não escritos do Diário. A clandestinidade e o Anexo, nas páginas do 0iário, são varridos pela terrível realidade dos campos de concentracão alemães onde foi perpetrado o maior genocídio de todos os tempos. Anne, a irmã Margot e a mãe encontraram aí a morte. Esses derradeiros meses da curta vida de Anne Frank suscitaram, até agora. reduzido interesse, sem dúvida por se saber pouco a seu respeito. Apenas se Ihes referem um capítulo do livro de Ernst Schnabel, Anne Frank, Spur eines Kindes, 1958 (Anne Frank, rasto de uma criança) e a introdução de 0e Dagboeken van Anne Frank, 1986 (Os Diários de Anne Frank), publicados pelo Instituto Nacional Holandês de Documentacão sobre a Guerra. Desconhece-se quase t¦do desses sete meses e da maneira como Anne suportou a horrível provacão de Westerbork(') e de Auschwitz-Birkenau, para sucumbir finalmente à doença, fome e esgotamento em Mareo de 1945, em Bergen-Belsen, poucas semanas antes da libertaeão desse campo. Passados mais de quarenta anos. poucás pessoas estão dispostas a evocar esse período e capazes de o fazer: sobreviventes. Durante muito tempo não [) Campo de passagem nos Países Baixos C¦¦¦ puderam falar. Para algumas a situação mantém-se. A pouco e pouco, aceitam e experimentam então a neeessidade de revelar-uma vitória sobre si próprias e vontade de testemunhar para a posteridade. Essas mulheres são as últimas testemunhas daquele período irreal. insondável, da História da Humanidade. No filme e no livro, deportadas que, como Anne, se encontravam

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em Westerbork, Auschwitz-Birkenau e Bergen-Belsen, recuperam a voz e descrevem o que acontecia nos comboios e nas casernas. Conheceram Anne e sua família. Algumas eram amigas de escola. Ao reproduzir as entrevistas integralmente, o livro proporeiona uma imagem do meio e da história de cada uma e situa a época num contexto mais amplo. Anìta Mayer-Roos só é citada no tilme porque as suas declarações já foram objecto de uma publicação. Existem versões um pouco diferentes dos últimos sete meses da vida de Anne Frank. Talvez a exactidão histórica não seja primordial. É mais importante descrever o que essas mulheres conheceram, interrogarmo-nos sobre os limites da resistência humana. O medo da morte, a sua presença eontínua, o olhar destituído de sentimentos ante a extincão dos outros. Os pormenores ínfimos. porém essenciais, o desaparecimento de todas as normas. Na sua tese publicada em 1952. o Dr. Eli Cohen escreveu: "Não podemos exigir àqueles que nunca [15) viveram lá que imaginem em que consiste na realidade um campo de concentraçãa.,. Após meses de pesquisas e diversas entrevistas, encontrei, em parte graças ao Instituto Nacional Holan¦ês de Documentação sobre a Guerra, mulheres decididas a revelar, diante da câmara e do microfone, as suas experiências pessoais. Todas conheceram ou contactaram com Anne e a família Franlc. Atravessaram uma grande provação e, cada uma à sua maneira, nsobreviveram¦, ou tentaram aceitar. É um sofrimento que ficou enraizado para sempre. São as porta-vozes de Anne. Pareeeu-nos importante ampliar os conhecimentos do grande público, evocar a terrível angústia do campo de concentração depois da vida no Anexo. A clandestinidade constituía um meio de escapar à morte certa da deportação. Ainda existem entre nós testemunhas das atrocidades de Auschwitz. São as últimas pessoas que podem revelar, a partir da sua própria experiéncia, em particular aos jovens, o que aconteceu à história. O fascismo, neonazismo, discriminação racial e anti-semitismo estão sempre na ordem do dia. Ainda há quem conteste a autenticidade do próprio Diário de Anne Frank. Algumas das

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reacções suscitadas pelo filme representam a prova! É por isso que essas mulheres querem faiar hoje, a fim de combater a injust;ça da nossa ¦ociedade. O seu destino raramente foi evocado até ao presente. O que contribuí para aumentar o horror. Este livro descreve o que elas sentiam no momento das mais intensas privações. O homem estava reduzido ao estado de animal. A eonsciência humana aníquilada. É um milagre que conseguissem sobreviver. Auschwitz e Bergen-Belsen tinham sido concebidos para destruir. Elas arcarão toda a sua vida com o enorme fardo dos últimos sete meses. ( 16 ¦ g - Aime Frank RESLT¦lO HISTƒF¦ICO Em 1933. Otto Frank tomou a decisão de abandonar Francoforte onde vivia e existia uma importante comunidade judaica, para

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se instalar. com a família, em Amesterdão. pois previa que a subida ao poder de Hitler não prometìa nada de bom. Anne, nascida a 12 de Junho de 1929, vivia, com os pais e a irmã Margot. três anos mais velha, no número 37 da Praça Merwede daquela cidade holandesa. Filha de pais abastados, conheceu uma infância :lespreocupada. alterada pela invasão alemã aos Países Baixos, em Maio úe 1940 e. em 1941, pelas medidas cada vez mais penosas a que os judeus se achavam submetidos. Por exemplo: a obrigacão de os filhos serem obrigados a frequentar exclusivamente as escolas judaicas. No entanto. no liceu judeu (criado pelos ocupantes alemães sob os auspícios do Conselho Judaico para Amesterdão), Anne atravessava um período ainda relativamente agradável. marcado por uma vida social muito activa, pois Edith e Otto Frank [21] esforçavam-se por preservar as filhas da opressão da Ocupação. A situação prolongou-se até Julho de 1942, data em que Margot recebeu uma convocação para o trabalho obrigatório ano Leste¦¦. Para Otto, foi o sinal para passar à clandestinidade. Os Franl< tinham a sorte de contar com amigos dispostos a ajudá-Ios (como Miep e Jan Geis) contactos de que a maioria dos judeus não benefíciava. Outra particularidade: a família permaneceu agrupada no Anexo durante todo o período. Tratava-se de uma excepção entre os vinte e cinco mil judeus. refugiados nos Países Baixos. que tiveram de se separar para se ocultar. Graças à ajuda de colahoradores da sua empresa, a Opetl;a, Otto Frank tivera a possibilidade de mobilar inteiramente o Anexo do prédio situado no 263 da Prinsengracht, onde viveriam em companhia dos seus amigos Van Daan e do dentista Dussel. Nesse endereço encontravam-se instalados os escritórios, oficina e armazém daquela firma. fundada em 1934, a qual comercializava um produto próprio para emulsões: a pectina. A família Frank entrou na clandestinidade no princípio c1e Julho de 1942. Anne descreve esse período pormenorizadamente no Diário que recebera como prenda do décimo terceiro aniversário, poucas semanas antes, e em que começara a escrever a 12 de Junho do ano precedente. Evoca aí os eventas da vida afectiva de uma adolescente que crescia; as relações com os pais e irmã e as tensões existentes entre os ocupantes do esconderijo.

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AnotOu as suas impressões pela última vez a 1 de Agosto de 1944. IVo dia 4, um camião com polícias alem¦¦es e auxiliares holandeses à paisana imObilizou-se dianie da porta. O suboficial do SD, Silberbauer, mandou conduzir os clandestinos e seus protectores à Euterpestraat, quartel-general daquele serviço alemão em Amesterelão. IVo dia seguinte, a família Frank foi transferida p¦,ra ¦ p¦is¦,0 CIe V\lCtól'ingSCllalls. A ó de Agosto, partiu da eSi;¦¦ ¦¦0 centr¦;l da ciclade para o campo cAe ¦llesterhorl,:, uiiliz¦¦do desde 1942 como local de passagem - pont0 de agruoamento dos judeus antes da de;¦c¦ tação - e vigiaclo pela polícia e gendarmeria holandesa. Entre o início da sua entrada em funCões e a Primavera de 1944. oitenta e cinco coníl¦0ios seguiram para oS campos de extermínio. senClo c:czanove clestinados a Sobibor e sessenta e scis a Auschwitz. Depois, os Frank passaram um més num recinto disciplinar (caserna 67). Recebiam um tratamento ¦especiala, porque não se tinham inscrito espontaneamente na deportação e haviam sìdo detidos na clandestinidade. A 3 de Setembro de 1944, Anne Frank e os seus companheiros partiram no último [22) [23) comboio com destino a Auschwitz-Birkenau - 498 homens, 442 mulheres e 79 crianças, num total de 1¦19 pessoas. Naquela época, mais de cem mil judeus tinham sido deportados dos Países Baixos. Apenas duzentos quilómetros separavam esse comboio dos Aliados, que já tinham alcançado Bruxelas. !Va noite de 5 para 6 de Setembro, o comboio chegou a Auschwitz e os homens e mulheres foram imediatamente separados - 549 pessoas, em que todas as crianças tinham menos de quinze anos, morreram asfixiadas pelo ¦¦ás nesse mesmo dia. As mulheres ainda válidas tíveram de seguir a pé até ao campo de Birkenau. Entre elas, encontravam-se Edith Frank e as filhas. Desenrolava-se em Ausehwitz-Birkenau, com uma perfeição ¦.terrorizaúora, um ¦enocídi.o com vista ao extermínio de povos inteiros, como os judeus e os ciganos. Um genocídio cuja organização e amplitude não têm precedentes na História. Até Setembro de 1944, foram exterminados pelo gás cerca de dois milhões de pessoas, na sua maioria judeus. Após a chegada do último comboio proveniente de Westerbork, encontravam-se cm Birkena¦ trinta mil mulheres. Edith Frank e as tilhas fcram parar ao Frau¦nblock 29.

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Nlargot e Anne passaram dois meses nesse [24) campo e enviaram-nas por uns tempos ao Kratzeblock. porque sofriam de sarna. A mãe não queria deíxá-las sós. pelo que se conservou junto delas até à partida para Bergen-Belsen, provavelmente a 28 de Outubro de 1944. Expirou a 6 de Janeiro ¦e 1945, em Auschwitz-Birkenau. de desgosto e esgotamento. Entretanto, em Auschwitz perfilava-se o t2rmo do reinado nazi. Em fins de Outubro de 1944, os russos encontravam-se a c¦m quilómetros, e a partir dessa altura as mulhe es começaram a ser transfer:ú^s pa ra out; os campos de concentração. Uma parie foi expe¦!icla para o de trabaiho c!e Libau, a fim de desenvolverem a sua activiclade nas fábricas de guerra alemãs. Por conseguinte. a 28 de Outubro, Anne e "rtargot seguiram para Bergen-Belsen, que, a princípio, servira úe Austauschlager (campo de troca) para judeus. alguns úos quais destinados a ser enviados para a Palestina, situado na charneca úe Luneburgo, na Alemanha. Não havia cãmaras úe gás, porém as condições de vida. em part;cul¦r no último período da guerra, eram tão horríveis, que clezenas de milhares de pessoas morreram lá. Em fins de 1944, construíram casernas no Sternlager-a parte mais inóspita do campo. onde a situação se degradava a toc!o o momento. Não havia praticamente nada para comer e. em pleno Inverno, as doenças faziam auténticas razias. E. com a che [2i) gada de vários comboios provenientes de Auschwitz, no fínal de Outubro e princípio de Novembro, as coisas agravaram-se. Ante o avanço dos Aliados, os alemães não sabiam o que fazer com os prisioneiros, e um número elevado de deportados foi agrupado em Bergen-Belsen, o que provocou um afluxo de população. No campo das mulheres, como as casernas ainda não estavam prontas, montavam-se tendas apressadamente. Uma semana depois da chegada do comboio em que se encontravam as duas irmãs Franl<, houve uma violenta tempestade. A maior parte dos eie!,ortados morreu nos últimos meses que precec¦eram a libertação de Bergen-Qelsen - ou nas semanas imediatas. Em Março de 1á45, Margot e Anne Frank sucumbiram, com poucos dias

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de diferença, ao tifo e esgotamento. O campo foi libertado pelos ingleses a t5 de Abril. Segundo as estatísticas da Cruz Vermelha holandesa publicadas em 1953, sobreviveram 45 homens e 82 mulheres dos 1019 deportados do comboio que partira de Westerbork com destino a Auschwitz, a 3 de Setembro de 1944- [26) H AI¦TN AH ELISAI¦ETH PICK-GOSLAR ("Lies Goosens") O nosso prirneiro encontro em Amesterdão. em Dezembro de 1987. foi precedido de várias conversas telefón:icas. Com a irmã mais nova. Hannah Pick-Goslar sobrevìveu a Bergen-Belsen e instalou-se em lsrael. pouco depois da guer-ra, graças à ajuda de Otto Frank. Era uma mulher afável, alegre, aberta. que exteriorizava pouco as emoçòes, aparenternente muito ponderada nas suas opiniões. Passados quarenta anos, ainda se ex¦,rirnira num holandês rnuìto correcto. Não hesitou um segundo, quando Ihe propus regressar ao local onde falara pela últirna vez com Anne, a sua melhor amiga de irrfância. Acompanhou-a o filho Chagi, que não queria que e!a voltasse só a Bergen-Belsen. No dìário de Anne, Hannah Pick figura várias vezes com o pseudón¦imo de Lies Goosens. Para as filmagens. visitei com ela os diferentes lugares das suas recordações de infância com Anne, as quais coincidiam em muitos pontos. Ambas tinham quatro anos de idade, quando, em 1933. trocaram a [29] Alemanha pelos Paises Baixos. Eram vizinhas na Praca Merwede.

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em Amesterdão-SuJ, e cresceram juntas. Nas aulas - no jardim-escola, depois na instrução primária e mais tarde no liceu -, sentaram-se ao lado uma da outra até a passagem à clandestinidade da familia Frank, em Julho de 1942. Desde principios de 1945, em Bergen-Belsen, até pouco arries da morte de Anne, falaram-se várias vezes, separadas por arame farpado. Nasci em 1928 numa família judia praticante. A minha mãe, Ruth Judith Klee, filha de um conhecido advogado de Berlim, era professora e o meu pai, Hans Goslar, ministro-adjunto no Ministério do Interior e porta-voz oficial do governo da Prússia na capital alemã. Ele previra os acontecimentos ainda antes da subida de Hitler ao poder e tínhamos começado a preparar a fuga para os Países Baixos. Aí, o meu pai, que era economista, abriu um modesto gabinete de conselhos, associando-se a um advogado chamado Ledermann, que se destinava a fornecer pareceres jurídicos e financeiros áos refugiados. Não se tratava de uma actividade muito lucrativa, mas bastava para viver. Instalámo-nos na Praça Merwede, em 1933. Na Alemanha, o meu pai era um dos fundadores da Mizrachi, uma organização sionista religiosa; conhecia todos os seus membros holandeses e participava nos congressos cada quatro anos. Essas pessoas ajudaram-nos muito. pois ele fez rapidamente numerosas amizades. De resto. não tínhamos relações fora do meio judaico. O meu primeiro encontro com Anne Frank merece ser descrito. Durante toda a primeira semana da nossa instalação em Amesterdão, eu ia comprar manteiga e leite com a mulher a dias e, na loja. conhecemos um apátrida que também não falava holandés. Inteirei-me de que outra família de refugiados vivia do mesmo lado da Praça Merwede, no número 31, enquanto nós ocupávamos o 37. No dia seguinte. avistei-me pela primeira vez com a família Frank. Margot tinha mais trés anos do que eu e a maìs jovem, Artne. menos seis meses. Os meus pais não tardaram a tornar-se amigos do casal Frank, embora este proviesse de outro meio social. Ele dedicaya-se aos negócios e a esposa não exercia qualquer pro¦ fissão. além de que não eram praticantes. A amizade solidifícou-se, em virtude da similaridade das situações: ambas as tamílias tinham sido Qbrigadas a abandonar a Alemanha para se refugiarem nos Países Baixos.

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Frank tinha uma natureza optimista e estava sempre bem humorado. 0 meu pai. ao invés, via tudo negro. As circunstãncias acabaram por Ihe dar [30) razão, mas era muito mais reconfortante eseutar as palavras de Oito Frank. A família Frank ía todas as sextas-feiras à noite a nossa casa. onde festejávamos o Pessah. Todos os anos, pelo Souccoth('). erguíamos uma cabana de folhagem no estreito arruamento entre os jardins da Praca f¦ierwede e os da Avenida Zuíderamstel e Anne apar-ecia I¦or vezes para a contemplar e participar na clecoracão. No Yom Kippour, o Grande Perdão, tínhamos de jejuar todo o dia. Otto Frank e Anne Deslocavam-se a nossa casa para nos ajudarem a preparar o jantar, enquanto a esposa e Margot seguiam para a sinagoga com os meus pais. Como eu era ainda ¦equena - o jejum só é obrigatório a partír dos cioze anos- mandavam-me para casa deles para comer. A minha mãe podia assim acompanhar o serviço religioso com todo o recolhimento. A Sr.d Frank e Margot dirigiarn-se de vez em quando à sinagoga, mas Anne e o pai faziam-no com menos frequência. Em casa de Anne Frank, como na escola, festejava-se o São Nicolau. Nós, porém, como família judaica praticante, celebrávamos o Hannoukah. Eu era ainda filha única e a família Frank tinha uma da minha idade. pelo que ia a casa deles com [') Festividade das Cabanas. [32) satisfação. Anne e eu encontrámo-nos muito naturalmente na mesma classe da escola primária. Ainda me recordo bem do primeiro dia. A minha mãe tinha-me acompanhado, pois eu não falava holandês e ela receava as minhas reacções. Quando entrei na aula, Anne estava de pé, diante da porta junto de pequenas sinetas, que fazia tilintar. Voltou-se e precipitei-me para os seus braços. Eu perdera a timidez e, ao mesmo tempo, esquecera a minha mãe. Depois da primária, frequentámos o mesmo estaI¦elecimento de

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ensino durante seis anos: a sexta escola de Montessori, que hoje tem o nome de Anne Frank. Depois, continuámos juntas no liceu, do que ralarei mais adiante. Eu nunca ia às aulas ao sábado, porque, como já referi, ér-amos praticantes, rrras Anne não faltava. Por conseguinte, todos os domingos, reuníamo-nos em casa dela para me inteirar da matéria dada naquele dia. Acontecia com frequência, nesse dia, irmos com o pai dela ao escritório deste último na Prinsengracht, hoje Casa de Anne Frank. Na época, eu desconhecia a existência do Anexo. Havia um telefone errr cada sala e aproveitávamos a oportunìdade para nos dedicarmos ao jogo preferido: falar uma com a outra de aposentos diferentes. Era um autêntico acontecimento. Também brincávamos na rua; ao jogo da macaca, por exemplo. Divertíamo-nos e - Anne Frank [33) igualmente a atirar água das janelas a quem passava, na Praça vlerwede. Ncs feriados, não estávamos sempre juntas. Eu tinha licões de hebreu quarta-feira à tarde e domingo de manhã, aulas que lVlargot também frequentava. Anne. à semelhança do pai, não era minimamente pratic i;te. Os Fr¦n;c iam a nossa easa todas as festividades judaic¦s e, ;¦or ccasíão de São Silvestre. éramos nós que os visitávamos. Tínhamos então autorizacão para dormir juntas. Acordavam-nos à meia-noite para nos dar um cosccrão e uma bebida; no dia seguint¦. estávamos dispensadas e podíamos levantar-n¦s tarde. Achávamos divertido instalar-nos em casa uma da outra. No Verão, quando partíamos para férias. levávamos a Anne. Como se pode ver no seu quarto. pendurara, por cima da cama, uma fotografia da nossa casinha. Ela decerto gostava muito do local. Quando nos deslocávamos a Zandvoort, pedíamos à Sr.¦ Frank que deixasse Anne e Margot acompanhar-nos: As nossas mães consideravam-se irmãs. Tínhamos três amigas, Anne, Hanne e Sanne, mas esta última frequentava outra escola e eu tinha também uma do Shabbat, que estudava no colégio Jeker. Encontrávamo-nos todos os sábados na sinagoga e, à tarde, brlncava com ela. Anne tinha alguns ciúmes. como, de resto; menciona no seu Diário,

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[34) na secção respeitante a 27 de Novembro de 1943. Explica aí que sonhou comigo. Imaginava-me já morta, e escreve i¦ualmente que considerava reprovável de sua parte querer privar-me dessa amiga e revela os meus sentimentos sobre essa separação. iambém brigávamos, mas éramos crianças como as outras e isso fazia parte do jogo. De um modo geral, entendíamo-nos bem e conversávamos incansavelmente. Anne gostava d¦ constituir álbuns de poesia, em que. cada uma de nós escrevia. Ela tinha muitos amigos. Mais do que amigas, sobretudo no último ano da escola primária e no primeiro do liceu. Sentia sempre prazer em os ver olhá-la. Gastava muito tempo a cuidar dos longos cabelos. Na verdade. a sua cabeleira constituía uma preocupação constante. Ela possuía uma particularidade cómica de que eu até então não me apercebera: fingia que desarticulava o ombro para fazer rir as crianças. Tinha uma saúde delicada, mas nunca me inteirei da verdadeira natureza da sua doença. Os acessos duravam alguns dias. Sofria aparentemente de febre reumática. Nesses momentos, eu não deixava de a visitar e põ-la ao corrente dos trabalhos de casa. Apesar disso, mostrava-se sempre alegre. Adorava as farsas, os segredinhos e a cavaqueira. Coleccionava as fotografias de vedetas de cinema que se podem ver nas paredes da Casa de Anne Frank: Díane Derby e algumas outras. Confesso que isso [35) não me interessava muito. Permutávamos as fotos dos filhos das famílias reais dos Países Baixos e Inglaterra. Ela começara a escrever. Era uma moça decidida, muito atável, apreciada por toda a gente, sempre no centro das nossas festazinhas. Acontecia a mesma coisa na escola. Lembro-me de a minha mãe, que gostava muito dela. dizer: ¦¦Deus sabe tudo, mas a Anne ainda sabe mais..¦ Ofereceram-Ihe o Diário no décimo terceiro aniversário. Não sei se era o primeiro ou o segundo. Recordo-me de a ter visto escrever constantemente nos cadernos, mesmo na escola durante o recreio, enquanto encobria o texto com a mão. Ninguém estava autorizado a espreitar. Eu tinha grande curiosidade em conhecer o conteúdo, mas eIa nunca o mostrou a ninguém.

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Não encontrei uma maneira de descobrir o que os cadernos encerravam, mas sempre pensei que havia muito mais material que o do Diário publicado. Talvez não conseguissem encontrar o que escreveu antes de passar à clandestinidade. Lembro-me muito bem de que havia já alguns anos que o fazia. No seu Diário, explica igualmente que, se, um dia, pudesse escolher uma profissâo, desejaria tornar-se escritora nos Países Baixos. Tanto quanto consigo recordar, foi sempre um pouco mais mimada pelo pai. Margot era mais che [36] gada à mãe e dizia com frequência que, depois da guerra. se tornaria enfermeira em Israel. A situação manteve-se suportável até que os Pa¦ses Baixos foram também ocupados por Hitler. A princípio, ainda não se notavam grandes diferenças. Em Outubro de 1940, passei a ter uma irmãzinha, que se tornou no brinquedo da família Frank. Todos os domingos, Anne e Margot vinham assistir an banho e à mamada, após o que íamos passear no landó ['). As coisas começaram, todavia, a mudar lentamente. Deixámos de ter o direito de utilizar o ~eléctrico~ e, nas lojas, os judeus só podiam efectuar as suas compras entre as três e as cinco horas da t¦irde, apenas nas pertencentes a semitas. Os alemães princípiaram a enviar os jovens das convocações para os campos de trabalho. Não tínhamos a menor dúvida do que isso na realidade significava. No final do último ano da instrução primária, deixávamos de poder continuar a estudar onde desejássemos. Todas as crianças judias tinham de frequentar um estabelecimento judaico. Foi preparado um liceu especial para nós nos antigos jardins municipais de Amesterdão. O colégio judaico existente desde sempre situava-se em frente. No liceu, Anne e eu continuávamos a sentar-nos [') Carruagem de quatro rodas, cuja dupla capota se pode levantar ou baixar, como melhor convier. (N. do T.) juntas. Copiávamos uma da outra, e recordo-me de, um dia, termos sido castigadas por isso. Outra ocasião, um professor agarrou Anne peio pescoço e mandou-a para outra sala. a fim de

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nos separar, pois considerou que conversávamos de mais. Já não sei o que aconteceu, mas. meia hora mais tarde, encontrava-me sentada ao lado dela e, a partir dessa data, deixaram-nos ficar juntas. Era sempre assim. Naquela época, Anne já escrevia muito bem. Quando tinha de eumprir um castigo, invariavelmente devido à sua tagarelice. fazia-o de um modo muito divertido. Certa vez, compõs todo um poema, considerado tão divertido pelo professor que o leu em voz alta. Lembro-me de que começava assim: nOlha, olha, olha, dizia a menina Olha-Olha... u Para encerramento do primeiro ano do liceu, realizou-se uma grande testa. Margot transitou à classe imediata com um louvor, pois era uma excelente aluna. Anne e eu também passámos, embora com dificuldade, por não sermos tão boas como ela em matemática. Recordo-me de que regressámos a casa juntas e estive alguns dias sem notícias. A fábrica de Otto Frank, Opekta, produz¦a pectina, e a minha mãe beneficiava sempre de embalagens grátis. Naquele dia, mandou-me buscar [38] a balança, porque queria fazer compota. Estava um tempo estupendo. Dirigi-me, como era hábito, a casa dos Frank, toquei à campainha, mas não apareceu ninguém, sem que eu compreendesse o motivo. Por tim, uma su¦locatária, Sr.' Goudsmit, abriu a porta e, surpreendida, perguntou: - Que queres? -Vinha pedir emprestada a balança. -Não sabes que toda a família Frank partiu para a Suíça? - Por que motivo? - inquiri, perplexa. I\nas ela também o ignorava. Fiquei com a impressão de ter recebido uma cacetada na cabeça. Oue teriam ido fazer à Suíça? A mãe de Otto Frank constituía a sua única ligaçâo com aquele país. Apurou-se mais tarde que a família sempre pensara que as coisas iriam cada vez pior para os jucfeus. Havia um ano que os Frank tomavam disposições de passar à clandestinidade, porém nós não estávamos ao corrente. Não se podia comunicar a ninguém uma informação desse género, pois uma inconfidência, aínda que involuntária, deitaria tudo a perder.

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Não nos podíamos esconder, porque a mfnha mãe estava grávida e eu tinha uma irmãzinha de dois anos. Nunca havíamos pensado sequer em tomar [39 sernelhante decisão. Otto Frank vinha com frequência a nossa casa, uma vez que o meu pai se achava ;!eprimido: a guerr-a, os alemães, como terminaria tudo aquilo? i¦o entanto, o de Anne dizia sempre: ¦,Corre tudo bem. A guerra está praticamente no fim.h Perguntaram-me várias vezes por que razão ele escoll,era a família Van Daan para alojar no Anexo, em vez da nossa, já que éramos tão bons amigos. Convém não esquecer que eu tinha uma irmã de dois anos. Lê-se no 0iário que os ocupantes do Anexo não tinham o direito de puxar o autoclismo, nem se podiam movimentar livrernente durante o dia. Ora, semelhante disciplina é inaplicável a uma criança de tão tenra iclade. De resto, a minha mãe estava de novo grávida. Voltei para casa e anunciei: -Aqui está a balança. A famíÿia Frank foi-se. Os meus pais ficaram estupefactos, enquanto eu não compreendia nada daquela ausência. Em todo o caso, pelo caminho, eu tinha encontrado um amigo, que me dissera: -Sabes uma coisa? Recebi uma carta dos alemães. Sigo para um campo de trabalho, na semana que vem. Tinha dezasseis anos. Estabelecemos então uma relação entre os dois factos e supusemos que Margot talvez também houvesse recebido uma ordem similar. Isso revelou-se exacto, mais tarde. Tiriham-Ihe env ada uma canvocação e o pai escolhera aquele momento para declarar: - Não comparecerás. Vamos passar à clandestinidade. Mas nunca soubemos que os preparativos haviam durado um ano. Só me inteirei depois da guerra, dos lábios do próprio Otto Frank. Não nos passou sequer pela cabeça. naturalmente, que continuavam em Amesterdão. Em contrapartida. sabíamos que a mãe úele vivia na Suíça. Ao difundirem as novas da sua partìda. os Frank acalentavam a esperança de que náo os procurassem. Naquela ¦poca. numerosos judeus tentavam passar a fronteira para aquele país, ¦elo que não havia nada de estranho na versão posta ¦, circular. A maioria viu as intentos frustrados. Anne foi a primeira amiga que perdi. Era, sem dúvida. horrível, mas começávamos a habituar-nos àqueles dramas.

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Quando regressei às aulas. em Setembro, o número dos alunos diminuía diariamente. P'ermanecemos em Amesterdão até 20 de Junho de 1943. apenas um a¦o. Entretanto, a situação não parava de se deteriorar. Os judeus eram obrigados a usar uma estrela amarela. Tínhamos um Ausweis arnamentado com um ~J¦ enarme: judeu. Na rua, uma pessoa era inter [40] ceptada, intimada a mostrar o seu Ausweis, judeu, e detinham-na então, para jamais regressar a casa. Cada dia que passava, o torno apertava¦se mais um pouco. A nossa aula esvaziava-se. De manhã, quando chegávamos, desaparecera mais uma criança. Nunca consegui esquecer determinado episódio. Um dia, o Sr. Presser, nosso professor de História, abordou o tema da Renascença e começou a ler em voz alta o encontro de Dante e Beatriz, no Paraíso. A meio da aula, rompeú em lágrimas e saiu apressadamente. A esposa fora Ievada naquela noite. Foi uma cena horrível. Consigo rever sem dificuldade aquele homem de pé diante da classe. Eu supunha que não tinha filhos. A mulher era tudo para ele. Ouando regressara a casa, ela desaparecera. A minha família tivera a sorte de, por intermédio de um tio na Suíça, conseguir comprar a nacionalidade sul-americana. Éramos apátridas, o que facilitou as coisas. Obtivemos um passaporte paraguaio. O meu pai recomendara, bem-humorado: - Precisas de saber alguma coisa sobre o Paraguai, para o caso de te interrogarem. Fixei, pois, o nome da capital: Assunção. Era a única coisa que sabia, mas nunca me abordaram sobre o assunto. Graças a esse passaporte, podíamos circular na rua sem tremer, embora ignorássemos o que o amanhã nos reservava. Possuíamos um segundo documento que nos foi útil. O meu pai tinha sido um dos dirigentes do Mizrachi na Alemanha e desenvolvia grande actívidade nos Países Baixos. Creio que organizara quarenta listas, reconhecidas pelos alemães, dos sionistas mais activos que desejavam seguir para o Eretz Israel. l'1 e estávamos inscritos na segunda. Conseguíamos continuar a viver com pouca comiáa e. aa menos.

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encontrávamo-nos em nossa casa. A minha mãe morreu durante o parto. em Outubro, e o be¦é nasceu sem vida. Isto figura no Diário de Anne. Alguém a informara do desaparecimento do bebé, mas não da morte de minha mãe. Talvez não se atrevessem a elucidá-la. O meu pai perguntou-me então se queria esconder-me com a minha ìrmã mais nova, mas recusei porque os nossos nomes estavam inscritos no passaporte e, em caso de problema, ele teria sido deportado imediatamente para Auschwitz. Ignoro se, na época, conhecia o significado desse nome, mas estava segura de uma coisa: a prisão de uma pessoa na au¦ência dos outros membros da família implicava a clandestinidade e internamento num campo disciplinar. Por conseguinte. respondi a meu pai: -N¦o, partiremos juntos. C') O Estádo de lsrael. [az¦ [43) Ainda acalentávamos o sonho de não nos se¦ararmos. A nossa mulher a dias foi levada e nunca regressou. A primeira vez, meu pai conseguira salvá-la, mas depois deportaram-na e ficámos apenas os três: ele, a minha irmãzinha e eu. Os nossos avós, que tinham abandonado a Alemanha cam destino aos Países Baixos, em 1938, viviam na casa ao lado da nossa. Tudo correu bem até 20 de Junho de 1943, dia da grande rusga em Amesterdão-Sul. Os alemães tinham cercado o bairro às cinco da manhã, quando toda a gente dormia. 8atiam à porta e perguntavam: - Moram aqui judeus? - Moram. -Têm um quarto de hora. Encham um saco e venham cá para fora rapidamente. Tínhamos de preparar as nossas coisas, pois nenhum passaporte poderia já proteger-nos. Há pessoas que às vezes me perguntam: aComo puderam partir sem resistir? Por que não os enfrentaram, por que não disseram nada?. Era impossível. Estávamos sós, impotentes, diante de centenas de alemães armados. Se algum de nós ousasse esboçar um gesto ou palavra, todos os outros seriam severamente castigados. Não podíamos fazer nada. Levaram-nos em camiões de

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carga. Uma vizinha afemã. não judaica, que vivia, havia seis meses. com o marido no apartamento por baixo do nosso e adorava a minha irmãzinha, dirigiu-se ao oficial e suplicou-Ihe: - Posso ficar com esta criança à minha guarda? O homem replicou com brusquidão: -Não tem vergonha, como holandesa e cristã? Obteve a seguinte resposta: -De modo algum! Sou alemã e não tenho vergonha. E desmaiou Fomos, pois, deportados para Westerbork. Meu pai foi encerrado numa imensa caserna, enquanto eu e a minha irmãzinha seguíamos para um orfanato, cnde a comida era mais abundante, cujo director o meu pai conhecera quando vivíamos na Alemanha. A minha irmãzinha não tardou a abandoná-lo, pois adoeceu e teve de ser operada a ambos os ouvidos. Permaneceu no hospital durante quase todo o nosso período de detenção naquele campo. Entretanto, eu tinha de trabalhar. As instalações sanitárias situavam-se nas proximidades da porta exterior, e toda a gente ficou satisfeita quando me ofereci para proceder à limpeza, embora ninguém compreendesse por que o fizera. A razão era bem simples: dedicava-me àquela actividade mais ou [45] menos repousante, porque sabia que meu paì poderia passar de vez em quando. A vida no orfanato era suportável. Havia professores que nos davam aulas. Só estavam lá os filhos de judeus ocultos. Os alemães tinham encontrado as crianças, mas não os pais. Também acontecia o inverso. æs terças e sextas-feiras. os comboios para a Polónia tinham de partir cheios. Todavia, graças aos nossos documentos sul-americanos, podíamos ficar. Ainda não esqueci aquela terrível noite de Novembro em que anunciaram que, de todas as listas para a Palestina. só as duas primeiras continuavam válidas. Todas as pessoas cujos nomes figuravam nas outras deviam partir naquela noite. O orfanato esvaziou-se de todos os ocupantes. Revejo o rabino

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Vorst reunir todos os filhos, cobrir-Ihes a cabeça com um grande taleth(') e abençoá-los. A maior parte dos professores partiu com eles. Era horrível. Na tarde de sexta-feira, após a partida desse comboio, eu continuava lá com duas ou três crianças, enquanto a minha irmã estava no hospital. Todos os outros figuravam nas listas e haviam desaparecido... Os nossos documentos para a Palestina e os passaportes expiravam a 15 de Fevereiro de 1944, l¦) Xaile de preces mas tinham-nos permitido não sermos deportados para Auschwitz. Se o fôssemos em 1943, não me encontraria agora aqui para revelar tudo isto. Mas, na altura, eu desconhecia o que Auschwitz era na realidade. Falava-se de um campo de trabalho. no Leste. Eu repetia, sem a noção exacta da verdade: "Os alemães querem guardar-nos para nos trocar pelos soldados. N Deportaram-nos para Bergen-Belsen a 15 de Fevereiro de 1944. Tratava-se de um campo ¦.privilegiado¦¦. Não fomos transportados em vagões de gado. mas em carruagens de passageiros. æ chegada, pudemos conservar o vestuário e as famílias não foram separadas. O meu pai e a minha irmãzinha ficaram comigo. Dormíamos em lugares diferentes, mas tínhamos a possibilidade de nos ver diariamente. A viagem durou dois ou três días; confesso que já não me recordo com exactidão. No entanto, ainda me lembro muito bem da fila de soldados alemães. com os seus cães. à chegada. Apesar de passado tanto tempo, tremo de medo ao evocá-los. Ouando alguém estranha a minha reacção, respondo: ¦¦Se tivesse visto aqueles cães, também havia de tremer.¦, A seguir, tívemos de fartar-nos de andar antes de avistar um campo enorme. com arame farpado em toda a parte e pessoas de roupa às listas. Não sabíamos de onde vinham aqueles deportados. Mais tarde, quando fomos tomar banho de chuveiro perto da [46) [47] estação, a uma hora de caminho, pudemos vê-los, mas nunca conseguimos entrar em contacto com eles. Famos conduzidos para uma área nova do campo, onde havia quarenta e cinco judeus da Grécia, os quais, naturalmente, tinham todo o poder sobre nós, parque já lá se encontravam desde longa data. Procediam à distribuição da comida e

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ocupavam todos os lugares importantes. O médico era de Salonica e o campo ostentava o nome de Alballa. Nos primeiros dias, estivemos separados, mas depois conseguimos reunir-nos. O meu pai teve de começar por ficar de quarentena. Continuávamos com a nossa indumentária - um,.privilégio¦¦. Fazia muito frio no Inverno, em Bergen-Belsen, e tivemos de o suportar em condições duras. Como fôramos detidos em Junho, não nos ocorrera pensar no vestuário pró¦rio para suportar temperaturas baixas, além de que eu era muìto pequena para cuidar da bagagem sozinha. Em todo o caso, conseguira conservar tudo o que trouxera. A minha irmãzinha tinha sido operada aos ouvidos em Westerbork e usava uma larga ligadura. No dia da chegada a Bergen-Belsen, contraí uma hepatite viral. Os alemães obrigavam os doentes a baixa ao hospital para não contaminarem os outros detidos. O meu pai fora encerrado noutro lugar, pelo que não Ihe podia confiar a minha irmã. Senti-me totalmente desamparada. Resolvi então contar as minhas dificuldades a uma mulher idosa. -Amanhã, tenho de ir para o hospital e n㦠sei o que fazer com a minha irmã. Duas horas mais tarde, procurou-me outra muIher, que disse: -Chamo-me Abrahams. A Sr.¦ Lange informou-me do teu problema. Tenho sete filhos, pelo que posso perfeitamente cuidar de mais uma criança. No día seguinte, uma sua filha, que tinha a minha idade, levou a minha irmãzinha. Entretanto, o meu pai conseguiu visitar-me, e continuámos com aquela família até ao fim. Ainda hoje mantemos laços de amizade. Os alemães contavam-nos todos os dias, com medo de que fugíssemos. Mas para onde poderíamos ir, com uma estrela judaica e sem dínheiro ou qualquer outro meio de subsisténcia? Permanecíamos de pé durante horas, em filas de cinco, enquanto procedìam à chamada. Já fazia frio, quando nos inteirámos da presença de numerosas tendas. Dois ou trés meses mais tarde, fortes rajadas de vento arrancaram-nas. Recebemos então ordem para substituir os beliches de dois níveis por outros de trés. Passámos a dormir trés em cada um, para desimpedir metade do campo. Ergueram uma vedação de arame farpado do recinto, para nos impedir de ver os deportados trans [48) 4 - Anne Frank (4g) feridos para as casernas. Não obstante, e apesar dos guardas

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postados no topo de torres de vigilância. tentámos estabelecer contacto com eles. Era terminantemente proibido falar-Ihes. e os alemães disparariam sem aviso prévio ao mínimo movimento suspeito nesse sentido. A noite, alguns prisioneiros acercavam-se para recolher informações. Nunca o fiz. mas soubemos que chegavam comboios da Polónia. Um mês depois, talvez em princípios de Fevereiro, uma das minhas conhecidas. uma mulher assaz idosa, abordou-me e segredou: -Sabes que também há lá holandesas? Falei com a Sr.a Van Daan. Eu conhecera-a antes da deportacão e revelou-me que Anne se encontrava lá, pois estava ao corrente de que éramos amigas. -Tenta passar ao longo do arame farpado, para Ihe falares - aconselhou-me. Fi-lo à noite e o acaso interveio a meu favor. pois a Sr.a Van Daan estava presente e perguntei-Ihe: -Pode chamar a Anne? -Com certeza - assentiu com prontidão.Vou preveni-la, mas a Margot está muito doente e deitada. Eu ardia de impaciência por falar com Anne e aguardei alguns minutos com ansiedade. C50] Ela aproximou-se do arame farpado, mas eu mal a conseguia ver. Estava muito escuro e havia palha amontoada. Anne era uma moça acabrunhada a um ponto impressionante. Rompeu em soluços e balbuciou: -Os meus pais morreram. A cena ficou-me gravada na memória. Ela¦ experimentava uma angústia infinita. pois não podia imaginar que o pai sobrevivera. Otto Frank ainda era jovem. de boa saúde, e os alemães procediam à selecção pela aparêncía e não pela idade. Um prisioneiro enfermo era enviado directamente para a cámara de gás. Se Anne soubesse que o pai vivia, talvez reunisse vigor suficiente para resistir. E1a morreu muito pouco tempo antes da libertação do campo. Pusemo-nos a chorar juntas. Referi a morte de minha mãe, que ela ignorava, pois apenas estava inteirada do que acontecera ao bebé. Falei-Ihe da minha írmãzinha e do meu pai. que. se encontrava no hospital e faleceu duas semanas mais tarde. Anne

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revelou-me que Margot estava muito doente e eles não tinham visitado a família na Suíça. Os Frank haviam posto a circular essa versão para que toda a gente pensasse que ¦a realidade se achavam em casa da avó. E acrescentou: -Aqui, não há nada para comer, passamos frio, não temos agasalhos, emagreci muito e raparam-me o cabelo. [5T) Era horrível, sobretudo para ela, que sempre se orgulhara da sua cabeleira. Talvez tivesse crescido um pouco desde então, mas nada que se comparasse com os tempos em que podia fazer caracóis. A sua situação era muito mais dramática que a nossa. Expliquei-Ihe que tínhamos podido conservar os nossos hábitos. Foi assim o nosso primeiro encontro. Naquela época, havíamos recebido pela primeira vez uma minúscula encomenda da Cruz Vermelha para o meu pai, para a minha írmã e para n im. O embrulho tinha o formato e tamanho de um livro e continha pão escuro e alguns bolos. Hoje, quando falo disso, o meu filho costuma dizer:,¦Mas sempre era alguma coisa, mãe.¦¦ Cada um de nós conseguiu põr de parte metade de um bolo, uma peúga e uma luva: um pouco de calor e de alimento. As minhas amigas também me deram alguma coisa para Anne. No entanto, era-me impossível atirar um objecto volumoso por cima do arame tarpado. Combinámos efectuar uma tentatíva na noite seguinte, às oito [eu conservava o relógio de pulso). Conseguí na verdade arremessar o embrulho. Instantes depois, ouvi Anne gritar, e perguntei: - Que aconteceu? -Uma mulher apanhou-o e não mo quer dar! [52) Procurei tranquilizá-la: -Voltarei a tentar, mas não tenho a certeza se conseguirei. Decidimos marcar novo encontro para dois ou trés dias depois, e dessa vez fui bem sucedida e ela póde recolher o pequeno embrulho que Ihe preparara. Era o essencial. Após três ou quatro encontros junto do arame farpado de

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Bergen-Belsen, não a tornei a ver. Perto do final de Fevereiro, as companheiras de deportacão dela foram transferidas para outro campo. Foi essa a última vez que a vi. O meu pai faleceu a 25 de Fevereiro de 1945 e não saí da caserna durante alguns dias. Quando voltei a procurar Anne, descobrí o campo deserto. Devia efectuar-se uma mudanca. Na noite em que meu pai morreu, apareceu um médico para índicar aqueles que, de entre nós. estavam aptos para partir. Víu que o estado dele não Ihe permitiria acompanhar-nos, mas escolheu-o, talvez porque supliquei que o fizesse. Vestiram-no o melhor possível, para nada. O meu pai expirou assim vestido. Esperara porventura que nós partiríamos. mas ficámos. Em príncípios de 1945, um grupo tivera de ficar em Bibe [53) rach, até à Libertação. Apenas uma pessoa conseguiu chegar à Palestina. A minha avó faleceu em fins de Março e, no princípio de Abril, fomos obrigados a evacuar o campo. Somente as pessoas muito doentes tinham o direito de ficar. Eu sofria de tifo, mas partiria, porque o meu estado não era considerado grave. Passámos uma noite inteira ao relento. Por fim, chegou um comboio muito longo, que comportava uma carruagem de passageiros, reservada aos alemães, vinte Begleituiigsmanschaften [escoltas), e quarenta va ões ae transporte de gado. para os quais subimos, com uma parte dos deportados do campo íntermediário, judeus húngaros. O destino era provavelmente Theresienstadt. . . e a cãmara de gás. Nunca lá chegámos. A Alemanha vivia a derradeira fase de uma guerra terríve!, e o comboio não podia avançar. Explodiam fuzilarias quase em toda a parte e tivemos de descer para dormir nos campos. A composicão não se podia elirigir a lado algum. Não nos fora dístribuída a mínima comida. Um dia, um soldado alemão deu um biscoito à minha irmã. Considerei-o a personificação de Deus. Eu possuía um anel da minha avó, outras famílias ofereceram os seus e, em troca, obtivemos um coelho. De qualquer modo. não voltaríamos a necessitá-los, se morrêssemos. Uma mulher assou o animal numa fogueira. Ficámos assim um pouco reconfortados.

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Os alemães autorizaram-nos a esquadrilhar as imediações e pedir comida aos camponeses. Uma mulher idosa ficou a tomar conta em minha irmã, enquanto eu acompanhava os outros. Era assaz arriscaclo, pois havia a possibilidacle de o coml¦oio partir a qualquer momento. O irmão de uma das minhas ami¦as atrasou-se por esse motivo e conseguiu emharear com extrema clificuldade. Ora, eu não podia cor¦er se;ilell ante risco. pois era a única resf¦onsável c!e minha ir¦,iã. E¦zi vi¦tude disso. n¦io encontrav, n c"a cfe especial, já que nunca me ¦ fastava muito. Escoaram-se ¦:ssi;¦¦ Gez dias. Uma manhã, vimos os ale¦;iães hrancfirem uma ha ne?eira brane¦. Os russos tin¦¦am che¦ clo e ficaram sem saher o que fazer de nôs. Estávainos assustacioramente magros, o qtie devia cci¦stituir um espectáculo horrível aos seus olhos. Havia duas aldeias nas proximidades - Trobitz e Schilda [perto c!e Francoforte no Oder). A primeira não se rendera e continuava a combater contra os russos. Foi a nossa sorte. "Expulsem os alemães das suas casas", indicaram-nos estes últimos. uDepois, podem ocupá-las". Eu não passava de uma adolescente e, quando cheguei, já todas haviam sido toma (55) das. Continuava na coriipanhia da rnulher ìdosa, com o tilho e mais uma ou duas famílìas. Informaram-nos então de que havia outra aldeia, cujos habitantes tinham hasteado bandeiras brancas. No entanto, não estávamos autorizados a expulsá-los e só podíamos procurar uma casa vazia. Encontrámo-la, a quatro quilórnetros de distância, e ainda rr,e recordo de que era a residência do presidente da Cãmara. Na primeira noite de liberdade, dormi na cama da filha c!ele, cuja camisa de dormir me servia. A colcha era verde-clara, corn cruzes gamadas. e não tardei a adormecer. Os habitantes daquela aldeia. que eram camponeses, não tinharrr falta de géneros alimentares. O presidente da Cãmara, porém, constiiuía pção exce e não dispunha cie grande coisa na cave. Recorrernos aos russos. que nos infundiam algum me¦?o, e receberiios cartòes de r-aciona;¦iento, com q¦re pirde comp,-ar leite, pão e salame. Tentámos sempre permanecer em contacto com a aldeia. Entretanto, os russos tinham fornecido aos americanos listas ccm os nossos nomes e estes í:ltimos receb2ram autorização

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para nos irem buscar em camiões de carga, a 15 de Junho. Fizeram-nos sair da zona russa e conduziram para Leipzig. Ficámos dois ou três dias numa escola, após o que, em mais quatro, alcançárnos a fronteira holandesa, num maravilhoso comboio americano. Precisávarnos [56) de ter cuìdado em não comer de mais. devido ao nosso profundo estado de fraqueza. Foi a única vez da minha vìda que traguei carne de porco. e ainda por cima de conserva. Na fronteira, fomos recebidos num magnífico castelo, cujo nome esqueci, que regurgitava de gente. Perguntámos de quem se tratava e inteirárno-nos de que erarn colaboracionistas que os holandeses queriam enviar para a Alemanha. Não constituíam companhia mui;o agradável. mas abstivemo-ncs de Ihes faiar e, de resto, partirairr no dia seguinte. Todos os deportados tinham de se submeter a um exame riiédico em Maastricht, e descobriram uma Iesão nurii dos meus pulmões. Por conseguinte. não fui autorizada a seguir viagem e fiquei imediatamente internada naquela localidade. Freiras católicas muito atenciosas e um médico indonésio ocupavam-se de nós. Permanecemos I¦ desde cerca de 1 de Julho até Setembro. Em Maastricht, aguardava-me uma grande surpresa. Um dia, anunciaram-me uma visita. Vesti-me de forma impecável, graças aos donativos dos holandeses, pois tínhamos sido adoptados por várias famílias cristãs. Haviam-nos dado roupas e guloseimas. De súbito, vi Otto Frank na minha frente! Fiquei radiante e disse espontaneamente: ¦,A sua filha está [57) viva!¦¦ No entanto, desiludiu-me com prontidão. Ele já fora informado de que morrera, mas eu ignorava-o. Lera o meu nome e o de minha irmã numa lista. Esta última encontrava-se num infantário em Laren e ele visitara-a. Em seguida, contou-me toda a sua hístória. Ponderámos o futuro. A rnãe de Otto Frank vivia na Suíca e conhecia lá o meu tio. Ele estabelecera contactos, o que não era tão rápido como lioje, pois os correios ainúa não

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fu¦icionavam. O percurso úe comboio úe Amesterdáo a Maastrichc dr.irara entre seis e oito horas. Otto Frank foi como um pai ¦¦ar-a itzim c continuou a encarregar-se de resolver tuclo. E¦¦¦i Setembro. cheguei a Amesterdão e el¦ ocur¦ou-se c!e ecda a minha documentacão. Eiitrei na Suíça a 5 de Dezen,bro. Usava um pequeno cordão co¦ii un¦a medalha, a qual tinha, num dos lados, a efígie da rainha e, iia outra. gravada, a data de "5 de Dezembro úe 1945¦,. C¦tto Frank acompanhou-nos de avião. O meu tio efectuou a víagern de Genebra a Zurique para nos recolher e o nosso amigo foi visitar a mãe. Na Suíça, comecei por ser tratada num sanatório, porém o meu sonho e a minha educação impeIiam-me sempre a partir para a Palestina. Ninguém pensava ainda num Estado judaico. Ou melhor, todos pensavam nisso, mas ninguém acreditava que um [58) dia se concretizaria. Animava-me um único objectivo: chegar lá o mais depressa possível. Mas, na época, era impossível partir muito simplesmente para a Palestina, porque os ingleses deixavam entrar poucos judeus. O meu tío não concordava com o projecto - partir clandestinamentee observa: "Sabes ao que isso pode conduzir. Deves aguardar a obtenção de um certificado." Enquanto esperava que mo concedessem, frequentei uma escola suíça durante cerca de um ano, voltei a ver Otto Frank e visitei a mãe dele diversas vezes, a qual vivia em Basileia, como eu. Sempre que ele vinha, ia falar-Ilie. Antes de partir para Israel, quis voltar a Amesterdão, a fim de ver a escola e a casa peia úftima vez. Otto Frank acompanhou-me na visita a uma amiga da nossa classe, ainda muito doente. viais tarde, em Israel, nunca perdi o contacto com e!e. Era o tio Otto e escrevíamo-nos em cada aniversário e no Ano Novo. Apareceu pela primeira vez em Israel em 1963, onde conheceu os meus filhos. Recordo-me de que manifestei o desejo de o procurarmos no hotel, mas opôs-se, dizendo:.¦Não, quero ver os teus filhos no seu ambiente.¦¦ Assim fez, sempre de uma amabilidade inexcedível, ergueu-os nos braços e acarinhou-os como se tossem de uma sua filha. Eles fica

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[59) ram a adorá-lo, pois era um homem de personalidade vigorosa. Continuei muito ligada a Otto Frank, mesmo depois do seu segundo casamento. Foi muito feliz com Fritzi, e sempre me perguntei: uComo é possível viver somente no passado?., Aparentemente, ele conse¦uira deixá-lo para trás. [60) iIA¦ ¦TY BRA¦ DES-BRILLESLIJPER O meu primeiro encontro com Janny Brandes no seu apartamento à beira do Amstel, perto do Teatro Carré, em Arnesterdão, principiou numa atmoslera de completo cepticismo. O local, porém. inspirava-me coragem. Eu tinha nascido a menos de duzentos metros da casa dela e o ambiente afigurava-se-me

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familiar. Seriam necessárias obstinações e persuasão para a convencer a falar. O director do Instituto Nacional de Docurnentação sobre a Guerra, após algumas conversas telefónicas com Janny, deixara-me entrever, com razão, certas dificuldades. Sucederani a essa primeira entrevista nurnerosos contactos que acabariam por conduzir a relacôes de confianca e amizade. A conversa seria filmada seis meses mais tarde. Janny conheceu Anne e a familia a 8 de Agosto de 1944, na estacão central de Amesterdão. ponto de partida da deportacão para o campo rle Westerbork. Nascida num meio Judaico socialista, no coracão do velho bairro )udeu de Amesterdão. casou com [63] um rrão /udecr. Antifascistas, ela e o marido passararn imediatamerrte par-a a Resist ncia contra os nazis. Durante o ano de 1944, foi detida eni casa com a familia e alguns clandestinos. O rnarido, Bob, e dois filhos conseguiram escapar-se. Esteve junto de Anne e Margot até à sua r ¦orte, ern Mar-ço de l¦45, em Bergen-Belsen. Uti/izou a sua forte personalidacle e perseveranca de enfermeir-a, ocr aquilo que podia passar- como tal naquelas trágicas circunstâncias, graças a uma forrnacão fortuita de socorr-ismo. Sobreviveu a Auschwitz, Birlcenau e Ber-gen-Belsen com a irmã, LientJe, a cantora Lin Jaldati, nome artistico de Lien Reúling-Brilleslijper, falecida recentemente em Berlim-Leste. Em 1946, redigiu a certidão de óbito de Margot e Anne Frank para o pai destas, Otto. Nasci em 1916, na Rua Nieuweskerk, em Amesterdão, perto da Rua Weesper. Os meus pais tinham uma loja de mercearias finas. Enquanto a minha mãe trabalhava, a minha irmã maís velha cuidava de nós. A nossa família era muito unida. Nunca íamos à sinagoga, mas respeitávamos a tradição. Quando nos convidavam para jantar, eu perguntava sempre: eÉ sexta-feira?u Nessa noite, acendíamos o grande lustre por cima da mesa e o meu pai lia um breve exeerto da Tora. Considerava que isso fazia parte da nossa educação.

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Estávamos inscritas num clube de ginástica; uma amiga de mìnha irmã era membro da Hashomer Hatsair, organizaçãa de juventude sionista, aonde nos conduziu. Conhecemos aí filhos de intelectuais e de meios mais desafogados que o nosso. A partir cfe então, insurgi-me contra as desigualdades sociais. A Rua Marnix, em que vivíamos, situava-se num bairro não judeu, onde havia o mercado e a escola. Eu frequentava o colégio Elisabeth-Wolff, na Prinsengracht, em que a minha irmâ estudara na instrução primária. Os meus pais vigiavam a pronúncia do nosso holandês, ao passo que os meus primos estavan> marcados mais fortemente pelo ilídiche áe Amesterdão. tamos com frequéncia a casa do meu avõ, na Rua Rapenburger, perto do orfanato judeu. Olhando pela janela, padíamos ver as crianças no pátio, onde se divertiam a subir a escada de incêndio. Após a escola primária, frequentei o colégio durante algum tempo, mas o meu espírito turbulento fez com que me expulsassem. A presença de uma criança judia não era desejável. Seguiram-se numerosas peregrinações e trabaIhei alguns anos num laboratório médico-cosmético. Tive a possibilidade de tirar um curso de socorrismo e aprendì um pouco de inglês, francês e aiemão. [ 64 ) 5 - Aimo I¦ rank ( G 5 ) A pouco e pouco, afastámo-nos do sionismo, onde a posição social desempenhava um papel muito importante. A minha irmã tinha um amigo que frequentava o liceu e pretendia formar-se em medicina. A mãe deu-Ihe, todavia, a entender com clareza que ela não convinha a um jovem com uma excelente carreira na sua frente. Na época em que trabalhava no laboratório, tornei-me comunista. Aderi ao Partido no princípio da guerra, para o abandonar pouco depois da Libertação. Conheci Bob em casa da minha irmã, dançarina na National Revue, o qual era oriundo de Haia e seguia um estágio. Eu á¦-endia dança folclórìca e afirmava o nosso dever dé nos assimilarmos, com a pertença à classe proletária e vontade de lutar po uma sociedade melhor.

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Bob era dirigente da Assocìação dos Estudantes Socìais-Democratas e tinhamos discussões homéricas. A família não queria que casasse com uma jovem judia. Não obstante, vivíamos juntos desde Janeiro de 1938, em Haia, e contraímos matrimónio em 1939. Ro¦ nasceu dois meses mais tarde. Os meus pais estavam chocados e desaprovavam abertamente semelhante sìtuação. Em 1939, vimo-nos confrontados com a Alema (66) nha de Hitler e acolhemos clandestinos. Durante o Inverno. Alexandre de Leeuw, director da Pégaso. editorial comunista. encontrou refúgio sob o nosso tecto. Havia já alguns anos que estávamos convencidos de que a guerra era inevitável. A 10 de Maio, um tumulto inexprimível invadiu a cidade. Ligámos a telefonia e inteirámo-nos de que tinham principiado as hostilidades.Ficámos consternados. Embora não tivéssemos a menor experiência de actividades de resistência, impunha-se que agíssemos. De início. pensámos que os ingleses acudiriam em nosso auxílio e expulsariam os alemães, mas não tardámos a compreender que nos equivocávamos. Víramos os membros da família real partir nos seus automóveis e reconhecemos que a ocupação era inevitável. Recusámos fugir. A meio da guerra, deparou-se-nos a possibilidade de partir, más não desertámos. Tínhamos de lutar até ao fim. Bob conseguira emprego nos escritórios dos hidrocarbonetos e depois no serviço central de racionamento. Foi assim que sobrevivemos, porquanto ele teve de interromper os estudos. Envolvemo-nos imediatamente nas actividades da Resistência. Não havia necessidade de nos refugiarmos na clandestinidade. Bob não era judeu e tínhamos um filho. Um dia, no trabalho, recebeu um im [67] presso para declarar se ele ou a família eram semitas. Pegou no papel e deitou-o fora. - Que fazes? - perguntei, alarmada. - Não preencho coisa alguma. Estou-me nas tintas para isso. Nunca necessitei de entregar o meu bilhete de identidade. Circulei com os documentos verdadeiros até ao dia da nossa

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prisão. O Partido Comunista passou à clandestinidade após a confusão de 10 de Maio- Já tomáramos conhecimento de como as coisas se desenrolavam, através dos nossos camaradas alemães. Vivíamos em pleno fascismo, instalados por cima da tipografia De Bucchelm e Woerlee, onde se imprimía uma brochura pró-nazi. Dispúnhamos de um espaçoso apartamento, no qual podíamos ocultar numerosos refugiados. Três meses depois do início da guerra, imprimíamos um jornal com uma máquina rudimentar que nos enegrecia as mãos. Intitulava-se Signaal e era distribuído ¦m Haia por nós próprios. Como medida de precaução, não se mencionava qualquer endereco. Os contactos com Amesterdão ficaram reduzidos a zero aquando da greve de Fevereiro, em que foram detidas numerosas pessoas, incluindo todos C¦s) os intermediários. Nem sempre tínhamos confiança em aqueles que se apresentavam na tipografia. A Resisténcia era a nossa vida. O meu irmão mais novo deixou de ter autorização para frequentar o colégio e instalou uma garagem de bicicletas motorizadas, com um amigo. As cartas e encomendas destinadas a resistentes circulavam por lá. O apartamento foi revistado a 17 de Agosto de 1941, depois da greve de Fevereiro. Eu estava grávida do nosso segundo filho e a data prevista para o parto aproximava-se. Os alemães esquadrinharam tudo. O que Ihes interessava achava-se dissimulado dentro de tachos numa prateleira elevada de um armário. Fazia calor intenso e cada vez que eles entravam na cozinha para beber água eu começava G tremer. Saquearam a nossa biblioteca e levaram livros sem importãncia, mas não deixaram de esventrar a cama. Por sorte, não Ihes ocorreu inspeccionar os tachos. Passeì parte da noite a queimar documentos preciosos no fogão. A nossa filha nasceu trés semanas mais tarde. Entretanto, 8o¦ passara à clandestinidade no dia da busca. No entanto, uma mulher com dois filhos não tinha razão alguma para o fazer. Os meus pais e o meu írnTão mais novo foram viver comigo.

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Mantivemo-nos em Haia. Eu continuava a traba Ihar para a Resistência, entretendo-me a raspar o¦,Ju dos bilhetes de identidade com uma faca. Acontecia com frequência pessoas baterem à porta para perguntar: -O Brandes mora aqui? - Mora... -Queria fazer desaparecer o ¦,J" dos meus documentos. Era tão perigoso, que o meu pai ameaçou: -Se não páras imediatamente com isso. eu pró¦rio irei registar-me. Era necessário encontrar uma solução. O meu cunhado Jan, cuja família vivia em Bergen, encarregou-se de nos arranjar uma casa, assim como para a minha irmã Lientje e o marido, Eberhard. Obtive autorização para me transferir oficialmente p ara aquela localidade. De origem alemã, Eberhard conseguira ficar isento do serviço militar graças ao regime de emagrecimento prescrito por um médico. Uma segunda convocação obrigou-o a esconder-se. Em 1943, a cidade de Bergen foi evacuada e ficámos desamparados. Vivíamos num grupo de sete pessoas. Além dos judeus, os clandestinos e indivíduos passíveis do STO eram detidos. Todas as regiões para onde queríamos ir tinham sido declaradas zonas interditas. No entanto, recorrerrdo aos seus conhecimentos, o meu cunhado descobriu em Huizen uma casa pertencente a dois estudantes. I70] Entretanto. Bob reunira-se-nos, proveniente do seu esconderìjo em Bergen. Com a ajuda de intermediários, recuperara o emprego no comissariado do racionamento e fora nomeado para Laren ou Blaricum, o que nos permitiu viver em Huizen com toda a legalidade. Eberhard e Lientje tinham-se tornado senhor e senhora Bosch, com um filho asmático, e puderam juntar-se-nos eomo os clandestinos. A casa situada no Driftweg chamava-se "Ninho Suspenso", uma bela construção circundada por um vasto terreno, com um pequeno bosque que se estendia até ao rìo. Vivemos aí, com os nossos companheiros, todas as aventuras possíveis a.um sei humano. A nossa actividade prosseguia. Bob desviava alimentos para a Resistência e eu era agente de ligação entre Utrecht, Amesterdão e Haia, a maior parte das vezes acompanhada de um dos filhos.

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Um dia do Verão de 1944, tive de me deslocar ao Município de Amesterdão onde as pessoas que beneficiavam de cumplicidades internas reclamavam os bilhetes de identidade de indivíduos falecidos e não registados como tal pelos empregados da respectìva repartição. Em caso de detenção, declaravam que os documentos eram falsos, para proteger os fornecedares. Levando dois sacos de material, com o meu filho [71] pela mão, regressei a Huizen amargurada, porque a s chamado o médico, o qua I obteve autoe tínhamo zação para essoa com a ual me devia encontrar na Praça a levar para casa do irmão e Katinka, Roelof-Hart de Amesterdão não comparecera. Pelo sua prima. camin¦o, em Weesp, comprámos um pão de trigo A polícia de Huizen era-nos favorável e advertiu a¦anre da janela de um dos aPosentos desaP¦receria. nicar a presença dos nossos filhos em sua casa, e Nunca soube de certeza quem nos traiu. Eles já Bob levou-os para a dos pais. se encontravam derrtro, quando cheguei. Aperce- Foram obrigados a procurar durante muito tempo, bera-me da ausência do vaso, mas a mìnha filha antes de localizar todos os esconderijos. Algumas ficara em casa e não a queria abandonar. DePositei das pessoas ocultas permaneceram lá durante três os sacos entre os arbustos do bosque e toquei à ciias e passaram foine, porque as provisões eram Nuxou-me para dentro e deu-me uma bofetada. c¦m ela Rua Marnix. Quando Noes, Bram Teixeira

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¦uc¦, "u, A situacão era horrível. Havia clandestinos ocul- levados mais tarde Os interrogatórios prolongatos em todas as direcções, mas o meu irmão conce- ram-se por dias inteìros. bera um alçapão que comunicava com um refú io Por ocasião da nossa última transferência da 9 no qual eles podìam desaparecer. O botão de uma Rua Marnix ara a S aarndammerdijk, Eberhard saltou P P campainha dissimulado debaixo da carpeta servia dfl carrn celular, en uanto eu neutralizava o guarda e tuerhard já se achavam presos. Acabei por desmaiar. No comissariado, fora A minha filha estava doente, com tet>re elevada, protegida pela polícia até à particta para a Rua Euterpe. [12] [73] No elevador, os alemães imobilizaram-me contra a porta e fui chicoteada. Willy Lages atingiu-me as pernas com as pesadas botas, magoando-as atrozmente. Encerraram-me cEurante vinte e quatro horas numa cave da Rua Euterpe. Quando me foram buscar, pensei:,¦Vão fuzilar-me." ¦o entanto, ante o meu proiundo assombro, fui transferida para a prisão do Amstelveenseweg. Eles não sabiam nada a meu respeito. Conservaram-me, durante cerca de seis semanas, numa cela onde se acumulavam oito detidos. A tia Bet da Jordânia, uma mulher corajosa, não compreendia o i¦¦otivo da sua detenção e explicava que havia apenas efois avós judeus na sua família. Em princípios de Agosto, foram buscar-nos às primeiras horas do dia. Era uma manhã de Verão calma, soalheira, com o orvalho da noite ainda não totalmente evaporado e o frio da madrugada a envolver a cidade. Escoltados, tomámos o ¦,eléctrico.¦ em direcção à estação central, onde entrámos por uma porta lateral e passámos sobre o balastro para alcançar a plataforma de embarque. Ao mesmo tempo, chegava outro grupo, em que se encontrava a família Frank. A nossa atenção toi atraída por duas jovens de ar desportivo, roupas pesadas e mochilas às costas, como se partissem para uma estãncia de desportos de Inverno. Tinham

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[74j aspecto de estar contentes por se acharem ao ar Iivre, respirar e movimentar-se à vontade, como que após longo cativeiro. Apercebi-me da aparência pálida. anéiiiica mesmo. Imperava uma atmosfera um pouco irreal, naquela platatorma - o céu azul. o calar do Sol e todas aquelas pessoas que empurravam para os comboios. Anne olhava à sua volta. como se não visse um ser humano desde longa data. Os compartimentos estavam fechados por portas nas duas extremidades. Não trocámos uma única palavra com as jovens Frank durante o percurso. Consetvavam-se junto dos pais. conscientes do que aconteceria. Tinham ouvido como nós as emissões da BBC nos meses passados no Anexo. æ chegada a Westerbork. sentíamo-nos terrivelmente chocadas. Desconhecíamos por completo o que nos estava reservado. Distribuíram-nos pelas casernas disciplinares. A família Frank também. Todos tínhamos as nossas preocupaçôes. Encontrei a minha irmã. os meus pais e irmão, mas não conseguia esquecer aquela família, com duas crianças de olhar cintilante, curioso. Nós conhecíamos a sua história. Oue drama terem sido detidos no último momento! Sabíamos que se haviam escondido graças a um engenho extraordinário. Tinham suportado dificuldades enormes, animados pela esperança de encontrar, um día, a liberdade, e tudo se esfumara bruscamente. O meu coração contraía-se de pesar. C7¦] Conversámos diversas vezes com as raparigas. durante a desmontagem de baterias - um trabalho assaz sórdido cuja utilidade ninguém descortinava. Havia necessidade de as abrir com escopro e martelo, verter o pó negro numa cesta e os paus de lenhite noutra, antes de retirar a pequena cápsula metálica com uma chave de parafusos. para a depositar num terceiro recipiente. O pó que se desprendia provocava-nos tosse. No entanto, a imbecil ocupação tinha a vantagem de permitir que trocássemos impressões. Anne e Margot revelaram-nos como haviam organizado a sua vida no Anexo, as dificuldades relacionadas com a permanéncia de oito ¦essoas num espaço limitado, as suas esperancas e pequenas alegrias, até ao último dia. A minha irmã achava-se com trequê¦eia em companhia de Edith Frank. Falava-Ihe das suas relações com as raparigas, tão diferentes. Margot era a mais chegada, enquanto Anne mantinha

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uma maior cumplicidade com o pai. Sentadas junto de longas mesas. conversávamos e ríamos, evitando deixar transparecer a tristeza que nos invadia e abstendo-nos de evocar o nosso destino ou dos nossos companheiros de deportação. Essa atitude corria o risco de nos colocar em perigo. Naquele momento, supúnhamos que já não haveria comboio para nós. Tínhamo-nos inteirado através da IPA (Agência de Imprensa Israelita) do avanço [76] dos russos, dos progressos dos americanos e das brechas abertas pelos ingleses, que se encontravam perto de Arnhem. Quando se difundiu a notícia da partida de um novo comboio, ficámos horrivelmente desolados. ¦iodos tentámos escapar-nos. Os cirurgiões e médicos mais competentes de Westerbork imaginaram toda a espécie de enfermidades graves, para poupar vidas. Todavia, como os Frank e nós estávamos nas casernas disciplinares, só tínhamos contacto indirecto com eles. Um comunicado prometia a Libertação para breve. Mas não a veríamos, e o nosso desespero era imenso. Sabíamos que Auschwitz era um campo de extermínio e procurámos dissimular a nossa condição de judeus, tentando ser recenseados como presos políticos. Preteríamos tudo a Auschwitz, Treblinka ou Maidanek. Quando ouvimos anunciar os nossos nomes, fomos dominados pelo pânico e cada um tentou esconder-se atrás do vizinho. Mais um dia e teríamos a vida salva. A Libertação aproximava-se e queríamos vivê-la nos Países Baixos. Otto Frank corria de um lado para o outro, com frequência acompanhado de Anne, ainda esperançado em partir para Theresienst¦dt, que destrutava de melhor reputação. Os seus esforços toram vãos. O meu irmão mais novo partiu com os meus [77] pais. Lientje e eu éramos presas pclíticas, e não cfectuámos a menor tentativa para seguir com eles. A nossa família arriscava-se a sof!-er um castigo colectivo. Com a esperança de um desenlace rápido da guerra, pensámos que resistiriam e ¦¦oltámos a vê-los de Icnge na plataforma da estação dá Auschwitz.

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No comboio, mantínhamo-nos comprimidos uns contra os outros. Os vagões não eram totalmente herméticos e o ar penetrava por largas fendas e duas grades metálicas muito grossas. A família de Frank encontrava-se perto de nós, mas eu só falava com a minha irmã. O pai rodeava Anne com o braço e apertava-a, como se pretendesse protegê-Ia da promiscuidade. Quanto mais tempo a viagem durava, mais se avolumavam as tensões e as pessoas tornavam-se agressivas. Era esgotante permanecer de pé. Se alguém se sentava por um momento na palha, recebia pontapés e alguns chegavam mesmo a vias de facto. Lientje conseguira abrir um pequeno espaço para mim. Junto dos ferroIhos, um buraco permitia ver a paisagem e evitar o mau cheiro. Sempre que podia, Anne olhava para fora e respirava o ar glacial que cortava o alento. Naturalmente, não era a única a apreciar o lugar de onde se podia admirar uma paisagem pacífica, soalheira. Como se estivéssemos noutro local, longe C78) da guerra. E contribuía para insuflar coragem a uma pessoa. Ignorávamos o nosso destino. Só sabíamos que seguíamos para Woltfenbuttel, de onde estávamos convcncidos de que nunca regressaríamos. Os russos achavam-se quase em Eerlim, e temíamos a Polónia acima de tudo. Chegámos a Auschwitz à noite. A seguir às grades, vimos o sinistro avìso: Arbeit mach frei. Reinava um silêncio opressivo. Passámos ao longo dos postos de observação, pequenas construções circundadas por arame farpado e pilares eléctricos. Estávamos esgotados, depois de quatro dias de viagem. De súbito, uma voz bradou pelo altifalante: aTodos cá para fora, depressa, depressa! Deixem ficar a bagagem. As mulheres num lado e os homens no outro.u Ainda hoje fico com pele de galinha. quando oiço avisar, nas estações de caminho-de-ferro: ¦Atenção, senhoras e senhores! O comboio está atrasado, Queiram passar à sala de espera!" O clarão dos tubos de néon era intenso e azulado. Homens de uniforme listrado murmuravam: uVocês são válìdos, avancemu, numa tentativa para nos prevenir. Sentíamo-nos, porém, demasiado chocados para compreender o que nos acontecia. Foram pronunciados os nomes de várias mulheres, entre os quais o de Lientje e o meu. Um oficial

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[79) subalterno reuniu o pequeno grupo, verificou novamente os nomes e, exprimindo-se em altos clamores, mandou-nos entrar para um local. Como deportadas ;¦olíticas, éramos tratadas à parte. Homens ou mulheres, indistintamente, lavaram-nos e raparam os pêlos do corpo. A seguir, tatuaram-nos. O meu número de matrícula era muito elevado, pois pertencia aos últimos comboios. O pesadelo prolongou-se até ao romper do dia, Uma Kapo conduziu-nos na direcção das casernas de pedra. Tínhamos fome e sede. Depois, foi-nos permitida a ducha - um pequeno fio de água para cinco, quando estávamos imundas. Uma escova, sem sabão. A seguir, expulsaram-nos do local e distribuíram uma peçà de vestuário e um par de tamancos, que, por sorte. tinham a medìda apropriada. Logo após a chegada a Auschwitz, conhecemos a existência das câmaras de gás. Tínhamos na nossa frente a grande chama negra dos crematórios. E apercebíamo-nos do odor. 0ue jamais esquecerei. Ainda não sabíamos que escapáramos à selecção. Já nos achávamos em Birkenau, pois a estação de chegada era a de Auschwitz-Birkenau. Voltámos a encontrar-nos com vários holandeses do mesmo comboio. No bloco de quarentena, misturavam-se todas as nacionalidades. Russas, italianas e até algumas norueguesas ou dinamarquesas. As italianas davam provas de uma grande pugnacidaáe, e¦¦quanto as francesas me deixaram uma recorctação curiosa. Tinham encontrado um pequeno pedaço de espelho e um pente com três dentes e alisavam as sobrancelhas, colocan¦o um lenço em torno da cabeça, para acrescentar um toque de elegância. Urna maneira extraordinária de lutar contra a degradação. No campo, tínhamos a ímpressão de ser continuamente agredidas, magoadas por dentro, anestesiadas pelas pancadas. Para mim, como para Anne Frank, o único meio de sobreviver ao desespero consistia em proteger a minha irmã. Suportávamos toda a espécie de insultos. Ainda hoje, as chagas não sararam. Julguei morrer imediatamente. Obrigadas a transportar Nedras, tentávamos escolher as mais leves, mesmn assim demasiado grandes para nós. Uma Kapo vigiava-nos de chicote em punho, com uma magnítica camísola de angora, saia curta e botas. Odiávamo-la solenemente. Éramos mantidas de quarentena em virtude de uma escarlatina muito contagiosa, capaz de dizimar os deportados em poucos dias. Uma simples hepatite viral podia resultar fatal. Os

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doentes tin¦am a obrigação de declarar o seu estado. Por volta clas três horas da madrugada, vozes autoritárias vibravam na noite: aSaiam para a chamada!= Gemidos, gritos, e abandonávamos os beli 6 - Anne Frank ches. As Kapos impeliam-nos para fora sem delica, deza. O bidão que servia de sanita durante a noite era esvaziado. Na nossa pequena marmita; vertiam ' doís dedos de café quente. A intame mistela servia para lavarmos os dentes e as mãos e beber. Seguia-se nova ordem, .¦Formar em tileiras de cincol,., para constituir um quadrado. Colocávamo-nos de modo a apoiar-nos umas às outras. Depois de sermos contadas, estendíamos os braços, para verificação de que a álstância regulamentar era respeitada. Todos os oficiais subalternos, Kapos e auxiliares tinham cães solidamente presos por trelas. Na praça onde se realizava a chamada, mil deportados permaneciam de é até p %ue eles se considerassem satisfeitos. Um erro, uma ausência, e voltava tudo ao princípio. Os doentes não resistiam. Arrastavam-nos para o lado e, se o número não correspondia. reatavam a contagem até à exaustão. i A chamada terminava finalmente por volta das nove, dez horas. Podíamos então regressar aos i nossos blocos, onde por vezes nos distribuíam café ' e um naco de pão: Recorrendo a um pedaço de P ç cordel ou uma pequena lata, dividíamos uma or ão de bolo por seis. De ols, cortávamos esse fragmento i P ; quase em lâmlnas, a fim de obtermos fatlas; que duravam mais tempo. Desenvolvera-se um comércio intenso- Possuía[82] mos apenas uma camisa e um par de sapatos. Durante o dia. o calor era tórrido, mas as noites podiam considerar-se glaciais. As deportadas possuidoras ¦e úois cobertores duramente adquiridos, cortavam um em quatro partes e atavam uma ao corpo por baixo da camisa, a fim de terem a ilusão de que usavam colete. A pouco e pouco, as combinações e outra roupa interior fizeram a sua aparição. Para conseguir alguma dessas peças, havia necessidade de economizar a ração de pão. Todas padecíamos de aftas dolorosas, devidas à sequidão e falta de vitaminas - uma cebola ou um pouco de sal tinham um

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valor incrível. As vezes, conseguíamos mesmo obter um pouco de chucruta. Lìentje e eu estávamos continuamente juntas. No entanto, separaram-nos quando foi acometida de febre elevada, mas acompanhei-a à caserna dos enfermos onde a conservaram. Sentia-me terrivelmente angustiada. A ideia de perder a minha irmã era-me insuportável. Trés dias depois, pude levá-la. Ainda não se restabelecera por completo, mas cuidámos bem dela. Em Auschwitz. vimos as filhas de Otto Frank muito raramente, mas tornámos a encontrar-nos em Bergen-Belsen. Todavia, não ficávamos na mesma caserna, nem trabalhávamos no mesmo local. Eram organizadas regularmente selecções. após a chamada. Em vez de nos mandarem dispersar, [83] quG¦¦i"a u vv. xamináva-nos da cabeça aos pés e indìcava:.Tu tecimentos do mundo. As mulheres condenadas or para aqui, tu para acolá. Tu tens sarna, vai ao olíticos achavam-se ao corrente dos proble- Kratzeblock.¦ A enorme chama ne ra aterrorizava-nos. Q ando nos tornávamos demasiado ruidosas, mas. Durante todo o tempo de detenção, nenhuma uma Kapo acudia para advertir: aAqui,não se palra. mulher teve o período menstrual,e supúnhamos que Morre-se.. o facto se devia à mistura de qualquer produto na Em virtude das d¦ploráveis condições de higiene, Após a libertação,tive de aguardar seis meses para estremeço de repulsa, quando penso nisso. Não s pou m part algum ue o ciclo normal rea arecesse. odíamó sar as mãos e e a e quase Os beliches comportavam trés catres sobre os- P não conseguíamos andar.mas tínhamos de nos des- , tos destinados teoricamente a seis pessoas.Deitá- Pachar, porque depois não devíamos abandonar o

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vamo-nos no sentido da lar ura em grupos de cineo. nosso gr¦po.Éramos o5rigadas a fazer as necessi- A pro dade era incrível. Aquelas estruturas dades nas cuecas.desde que as possuíssemos.Urinar miscui de madeira rangiam incessantemente sob o nosso resultava desagradável,porque depois precisávamos peso.As vezes,as tábuas eram cobertas de alha de carninhar de pernas abertas. i P e utilizávamos os punhos à guisa de travesseiro. Os chuveiros estavam sempre a abarrotar. Acontecia um objecto consenado na marmita ser Ad uiríramos o hábito de lavar os dentes e as mãos, ; roubado à noite.Dormir constituía i ualmerite um e x erimentávamos a necessidade im eriosa de g P problema.Era horroroso sentir de re ente uma mão um le de á ua ara bochechar.Arrancavam-nos g 9 P , ou um rato deslizar sob a cabeça. o recipiente das mãos e tínhamos de abrir caminho Apesar de tanto desconforto,tentávamos con- entre a multidão. Conservar parte de um lenço ' versar. húmido para esfregar as mãos podia considerar-se Sucedia por vezes as amigas mais íntimas bri- uma vitória. garem por algumas cascas de batata.A fome e Ruth Feldman,outrora enfermeira-chete no d'is- penúria privavavam-rros de todo o sentimento humano. ¦ensário israelita, encontrava-se no nosso bloco. ; C84) [85] faziam-nos regressar ao nosso bloco e reaparecer, uma após outra, inteiramente despidas. Mengele examináva-nos da cabeça aos pés e indicava: =Tu para aqui, tu para acolá. Tu tens sarna, vai ao Kratzeblock.¦ A enorme chama negra aterrorizava-nos. Durante todo o tempo de detenção, nenhuma mulher teve o período menstrual, e supúnhamos que o facto se devia à mistura de qualquer produto na comida. Em todn o caso, era normal que, vivendo em semelhantes condições, o corpo humano reagisse. Após a libertação, tive de aguardar seis meses para que o ciclo normal reaparecesse.

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Os beliches comportavam três catres sobrepostos destinados teoricamente a seis pessoas. Deitávamo-nos no sentido da largura em grupos de cinco. A promiscuidade era incrível. Aquelas estruturas de madeira rangiam incessantemente sob o nosso peso. As vezes, as tábuas eram cobertas de palha e utilizávamos os punhos à guisa de travesseiro. Acontecia um objecto conservado na marmita ser roubado à noite. Dormir constituía ìgualmente um problema. Era horroroso sentir de repente uma mão ou um rato deslizar sob a cabeça. Apesar de tanto desconforto, tentávamos conversar. Sucedia por vezes as amigas mais íntimas brigarem por algumas cascas de batata. A fome e penúria privavavam-nos de todo o sentimento humano. [84)

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¦: As conversas nos beliches referiam-se com frequência à comida e passávamos em revista os acontecimentos do mundo. As mulheres condenadas por crimes políticos achavam-se ao corrente dos problemas. Quando nos tornávamos demasiado ruidosas, uma Kapo acudia para advertir: aAqui, não se palra. Morre-se.~ Em virtude das d¦ploráveis condições de higiene, íamos várias ao mesmo tempo às imensas latrinas, nausea5urdas e de uma sujidade repugnante. Ainda estremeço de repulsa. quando penso nisso. Não nodíamós pousar as mãos em parte alguma e quase não conseguíamos andar. mas tínhamos de nos despachar, porque depois não devíamos abandonar o nosso nr¦po. Éramos obrigadas a fazer as necessiclades nas cuecas, desde que as possuíssemos. Urinar resultava desagradável. porque depois precisávamos de carninhar de pernas abertas. Os chuveiros estavam sempre a abarrotar. Adquiríramos o hábito de lavar os dentes e as mãos, e experimentávamos a necessidade imperiosa de um gole de água para bochechar. Arrancavam-nos o recipiente das mãos e tínhamos de abrir caminho entre a multidão. Conservar parte de um lenço húmido para esfregar as mãos podia considerar-se uma vitóría. Ruth Feldman, outrora enfermeira-chefe no dispensário israelita, encontrava-se no nosso bloco. [85] Declarara-se como tal e queria que Ihe seguíssemos o exemplo. Um dia, a nossa kapo atirou-a para as latrinas, e Lientje ficou tão revoltada que descalçou um tamanco e a atingiu na eabeça. A mulher põs-se a uivar e tentou agarrá-la, mas a

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minha irmã foi mais rápida. Como castigo, acabou por ser selvaticamente espancada. Ruth mostrou-se protundamente grata e disse-nos: HTemos de nos esforçar por permanecer juntas." No entanto, o desejo não se concretizou. Fomos todas parar a Bergen-Belsen, mas em períodos diferentes. Em princípio de Novembro. fomos escolhidos durante a chamada. Os SS não forneceram qualquer explicação. Queriam evacuar o campo antes da chegada dos russos. Na época em que havíamos abandonado Westerbork, pensávamos ser sacrificadas pouco antes da Libertação. Quem saberia, pois. onde estávamos? O inferno de Auschwitz abatera-se sobre nós. Foram buscar-nos muito rapidamente e distribuíram-nos pão, enquanto nós levávamos alguns tachos de água. A viagem foi interminável, devido aos repetidos avisos de ataques aéreos. O nosso comboio foi metralhado pelos ingleses, decerto convencidos de [86] que atacavam um transporte de tropas. Durante os bombard¦amentos, os guardas apeavam-se sem nos dizer nada. Nas estações, davam-nos água fresca e, por vezes, um pedaço de pão. A.utorizaram-nos a descer em diversas ocasiões. Ouando vo!távamos para os vagões, esforçávamo-nos por figurar entre as últimas, a fim de ficarmos o maís perto possível das portas. Tínhamos a sensação de andar às voltas até à paragem em Celle, altura em que compreendemos que nos dirigíamos para Bergen-Belsen. Sob chuva torrencial e gelada, fortemente comprimidas umas contra as outras, encolhidas dentro de dois cobertores, recomeçámos a acalentar esperanças. Uns escassos quilómetros separavam a estação da do campo de Bergen-Belsen. Fortemente escoltadas, atravessámos úm bosque, enchemos os pulmões do odor da vegetação e cruzámos a pequena povoação, sem que alguém nos estendesse uma mão arrriga. Chegámos finalmente ao campo. rro meio da charneca sulcada de árvores, e aguardámos, sentadas num pequeno montículo. De súbito, surgiram dois vultos cinzentos e levantámo-nos e exclamámos: ¦,Também cá estão!¦¦ Eram Anne e Margot. Continuo convencida de que fazíam parte do mesnto comboio. Penetrava no campo uma coluna internzináVel. Vimos avançar as

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jovens envoltas em CB7I cobertores. A alegria dominou-me bruscamente. £las tinham sobrevivido. De momento, só contava a felicidade de voltarmos a encontrar-nos. Mantivemo-nos juntas até à entrada nas tendas. Conversávamos e tínhamos a in>;¦ressão de voltar a encontrar um pedaço do nosso passado, tornar a existir. A imagem da estação central de Amesterdão e a ilusão de liberdade afiguravam-se-nos uma recordação muito antiga. Um sentimento de solidariedade impelia-nos para aquelas duas crianças, irmãs inseparáveis como nós. Experimentávamos por elas uma espécie de atecto maternal, pois éramos dez anos mais velhas. Acudia-nos a impressão de Ihes ser úteis. substituir um pouco os pais, orientá-las. Voltáramos a ver outras deportadas muito jovens no mesmo comboio. Encontrávamo-nos entre nós, o que ¦ajudava a lutar contr¦ o infortúnio, as dificuldades materiais de cada dia. Haviam sido montadas apressadamente tendas rnilitares, porque não contavam com aqueles comboios suplementares. As camas tinham trés níveis. Registou-se uma confusão terrível. Empurradas, aguardámos cá fora. As irmãs Frank hesitavarn, sem decidirem quem entraria primeiro. Aquilo ajudava a esquecer o frio, a fazer com que os momentos parecessem um pouco mais humanos. Por fim, optaram por uma tenda. [88) Permanecemos um momento à chuva e terminámos por entrar com as últimas, em obediência à nossa estratégia I>abitual que tantas vezes nos salvara. Tivemos de nos instalar em lugares elevados. Durante a noite, desencadeou-se violenta tempestade e a acun>ulação do granizo sobre as tendas acabou por derrubá-las, registando-se ferimentos e mesmo rnortes. No entanto, a sorte protegeu-nos. Como nos encontrávamos num nível superior e a Ic:-¦a se rasgou, pudemos sair ilesas. De manhã, acudiu-nos a sensação de viver um naufrágio. As n>ulheres gemiam e o ambiente era de absoluta ciesolação. Só voltámos a ver as irmãs Frank alguns dias n>ais tarde, depois de nos terem transferido para casernas n>ais sólidas.

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Decidimos então procurá-las. Encontrámos muitas das nossas companheiras de deportação cuja vida partilháramos. Com Anne e Margot, festejámos simultanean>ente São Nicolau, Natal, Hannoukah e São Silvestre. Estavam presentes todas as nossas amigas de confiança. Anne levou pão e tudo o que pôde encontrar. Lientje cantou para a responsável do bloco, encarregaeta úe fiscalizar a partilha das rações. 6bteve assim algumas fatias de pão, que guardámos. Naquela noite, as quatro instaladas ttos beliches superiores. cantámos com as outras. Havia húngaras, checas [89) e russas, muitas das quais foram mais tarde gaseadas. Esfcrçávamo-nos por não romper em soluços, ao pensar nos nossos familiares. As holandesas não paravam de cantar ¦¦A pequena carroca no caminho arenoso". Anne particípava a plenos pulmões, com a pequena canção sentimental que aprendera na escola: ¦,O carroceiro diz ao seu cavalo: "Vais levar-me a casa, meu amigo"...", etc. Nós optámos por outras: ¦¦O sol vai deixar-nos", .¦Uma mãe curva-se perante o Salvador", .¦Ding, dong, faz o sino,¦, ¦¦A prece da tarde¦,. As checas estavam furiosas por não intervirem e, finalmente, bradaram:,¦Caluda, que vamos cantar uma área holandesa.,¦ A proposta era tão enternecedora, que nos pusemos todas a chorar, enqusnto entoavam, a quatro vozes: ¦¦O Constantino tinha um cavalo de pau sem cauda, nem cabeça, que dava voltas na sala...¦¦ Anne e Margot davam-se as mãos com força e soluçavam. É um hábito muito rteerlandês conservar a amargura no íntimo e explodír repentinamente. No dia seguinte, Muller estava revoltado, porque não pudera ir a casa passar o Natal e Ano Novo. Perdido de bébedo, tentou fazer-nos sair dos beliches à chicotada, mas defendemo-nos como leoas, segurando-nos às colunas. As irmãs Frank encontravam-se junto de nós, [90) ajoelhadas no beliche superior, com o tecto inclinado sobre as nossas cabeças. Embatemos nele um número ncalculável de vezes.

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Anne cerrava os dentes para não chorar. No dia seguinte, estávamos cobertas de nódoas negras. Um dia. Lientje disse-me ~Vem comigo, Janny" e dirigimo-nos a um bloco onde, ante a nossa profunda estupefacção, só encontrámos holandesas: Zus Asscher, a Sr.¦ Levie de Zoet, Roosje Pinkhof, Carry Vos. Até ao momento da partida para Auschwitz, essas deportadas inscritas em listas bloqueadas tinham beneficiado de protecções, entregando cada dia uma certa quantidade de diamantes, e eram ameaçadas pelas autoridades do campo de serem excïuídas do grupo de troca para a Palestina. Conservar a vida podia considerar-se sobre-humano. Uma das punições consistia em obrigar-nos a ajoelhar diante do bloco. com uma pedra em cada mão. Era proibida falar a uma deportada nessa situação. Bastava, sem dúvida, lançar-se contra a vedação electrificada. Aliás, os suicídios eram frequentes. As crianças achavam-se num estado deplorável. As que estavam no campo há mais tempo, haviam suportado numerosas privaçóes. Resistiam enquanto a família se conservava a seu lado. O frágil equilíbrio desmoronaVa-se bruscamente, quando ficavam sós. C91) Socorremos tantas quantas pudemos, fazendo o possíve! para as manter asseadas. Recorrendo a tachos e outros recipientes que possuíamos, íamos buscar água para, de vez eni quando, Ihes lavar a roupa, verdadeiros andrajos. Na nossa qualidade de enfermeiras, tínhamos acesso à farmácia e podíamos circular um pouco mais livremente e agir com maior eficácia. Roubei uma quantidade enorme de um produto nauseabundo para exterminar percevejos e pulgas. Lientje obteve autorização no secretariado para permanecer naquele bloco holandês. Havia outro grupo de crianças que se ignorava se eram judias ou nascidas de casamentos mistos. Mais tarde. poderiam surgir perguntas sobre o seu destino. pelo que as autoridades não se atreviam a fazê-las desaparecer. Anne e Margot visitavam-nas com frequência, para Ihes levar um pouco de conforto, contar histórias de que se achavam privadas. porque só viviam com Kapos e chefes de blocos que apenas pensavam em melhorar a sua sorte. Elas cortavam as

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unhas e até o cabelo a todos os miúdos, revelando uma atitude geral assaz maternal. Felizmente. a maior parte d'eles seguiu para Eindhoven logo após a libertação, por intermédio da Cruz Vermelha. A nossa principal preocupação consistia em escapar ao horror. Eu própria, diante da vala cheia de cadáveres, ergui os olhos para o céu estrelado e invoquei Deus: ¦.Se realmente existes, como podes permitir isto?,¦ , para Resistíamos a tudo até ao esgotamento e cúmulo de infortúnio, Lientje adoeceu. Contraiu o tifo exantematoso. Como enfermeiras, tínhamos de determinar e declarar as doentes durante a chamada. Em Auschwitz-Birkenau, seguiam para as casernas reservadas, porém em Bergen-Belsen o espaço estava todo superlotado. As irmãs Frank apareciam irregularmente. Quando as queríamos ver no caos que nos rodeava, era impossível localizá-las. O bloco voltara a mudar de lugar. A anarquia generalizara-se. mas a chamada matinal prosseguia, interminável como sempre. Eu usava uma braçadeira branca, e Margot e Anne acompanhavam-me por vezes para ir buscar água. Encarregava-me do tacho porque havia o perigo de pretenderem apoderar-se dele. O período de espera junto da bomba era insuportável e a distribuição de comida muito fantasista. Tínhamos acesso à farmácia dos SS, onde roubávamos toda a espécie de medicamentos, como ¦spirinas e pomada para os piolhos. Partilhávamos tudo com as irmãs Frank, que não pertenciam ao nosso bloco - tão profunda era a nossa amizade por elas e a necessidade de as reconfortar. [93) [92] Não havia forno crematório. Levávamos as nossas niortas p¦;ra uma enorme vala, envoltas num cobertor. O odor fétido era indescritível. Aves negras sobrevcavan¦ o local. Anne também padecia de tifo exantematoso e achava-se desidratada. Quúse n o se mantinha c?¦ pé e apresentava um aspecto impressionante, mas resistiu enquanto Margot viveu. Eu eonsumía a aspirina que podia, poìs já me assolava aquele tipo de febre que fazia delirar. Ocupava-me sobretudo de Lientje, que permanecia deitada. Não queria regressar aos Países Baixos sem a minha irmã. Após a morte de Margot. Anne deixou de lutar. A coragem e

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autodomínio abandonaram-na. Todas as resistências se extinguiram, pois já nada se revestia de sentido, para ela. As duas irmãs mantinham-se na caserna. porque fazia muito frio cá fora. Havia numerosos casos de enregelamento. Após as longas horas da chamada, os dedos dos pés. o nariz e os lobos das orelhas tornavam-se violáceos e depois negros. Utilizávamos como protecção rolos de papel muìto estreitos. Anne e Margot passaram algum tempo na caserna reservada às doentes e depois tiraram-nas de lá. Anne. envolta num cobertor, procurou-me três dias antes de morrer. Acudiam-Ihe visões assustadoras provocadas pelo tifo. Delirava. falava dos pais, tinha fome, dizia que queria chorar, mas há muìto [94] ¦u¦ as l grimas se haviam secado, e carecia de vigor para se manter de pé. Os andrajos que a cobriam regurgi2avam úe parasitas. Esìávamos nos pincaros do Inverno e a temperatura era extremamente baixa. Reuni tudo o que encontrei para vestir e envolvi-Ihe os pés em panos. Não dispúnhamos de grande coisa para comer. Embora Lientje continuasse em estado grave. dei a Anne parte da nossa ração c1e pão e água. Alguns dias mais tarde, fui ver as duas moças. Tinham morrido ambas. Sofri um abalo profundo, como se fossem minhas irmãs. A primeira foi Margot, que caiu do beliche. Uma vez no chão. não teve forças para se levantar. Anne sueumbiu no dia seguinte. Havíamos perdido a noção do tempo. Talvez ainda pudesse estar viva. Ao inteirar-se de que os deportados eram contagiosos, os ingleses cercaram o campo. Não obtiveram autorização para entrar e tiveram de aguardar as tropas sanitárias. que chegaram sem demora. mas entretanto os alemães procuraram evacuar o maior número possível de prisioneiros válidos. As húngaras diziam: ¦¦Temos de tentar sair com eles, pois o campo está minado e querem fazé-lo explodir antes da entrada dos ingles¦s.n Os alertas aéreos redobraram, até que o silenc¦o se instalou subitamente. Os alemães tinham partido! Nesse dia, não

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I95¦ houve nada para comer. A noite, verificou-se uma orgia inimaginável. Uma montanha de rutabagas[') da altura de uma casa desapareceu em poucos segundos. As instalações dos guardas foram incendiadas. Jaziam no chão fotografias de Hitler, com os olhos perfurados. Os raros soldados ainda presentes faziam fogo sobre tudo o que se movia. Corríamos o risco de ser abatidas no último minuto. O comandante. Josef Kramer, subiu a um estrado e vociferou: - Aproximem-se! Queria explicar-nos a sua decisão de entregar o campo aos ingleses estacionados do outro lado das grades. Foi a última reunião. Assìsti à sua detenção. Atiraram-no para dentro de um jipe e arrancaram-Ihe os galões, após o que o algemaram. Nessa altura, perdi os sentidos. Quando os recuperei, dois enfermeiros retiravam-me a roupa e rasgavam-na. Em voz débil, protestei: HNão, não, não!v A seguir. senti muito frio. Ouvia um murmúrio vago, mas a confusão na minha cabeça era excessiva para que pudesse determinar a causa. Envolveram-me, despida, numa manta, depositaram-me numa maca e ievaram para um barracão espaçoso. Perto de mim, duas mulheres de branco discutiam, mas não consegui compreender o que [') Nabos-da-Suécia. lN. do T.) [96) ¦ 1- Han¦ah Elisabeth pick-Goslar [Lies Goosens), em 1941. com a irmã

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2 - N¦ escol¦ ¦P ¦`."¦"t"¦çnri, em 1935. A direita, Anne Frank, e Hannelli, à esquerda ¦i

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3 - Anne e Hann¦li, em Maio d'e 1939 4 - Ann¦ Frank, na estola Montessori 5-Amzsterdao, 1937. Na caixa d¦ areia, à esquerda, Hann¦li. Ann¦, a seu lado 8

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: g - Convite para uma m¦renda, assinado por Anne Frank, por ocasião do seu décimo aniversário, endere ado a Hanneli 7 - Diante d¦ escola Montesson que agora ostenta o nome d¦

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Anne Frank, Hannah Pick-Goslar durante a rodagerrr ¦o tilm¦ 8 - Jarw¦y Bran¦es-Brilleslijper, em 1941, em Amesterd'ão

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-Rachel Van Ameronerr-Frankfoordler, no prin¦ i cípio da guerra - Bloen¦e Evers-Emden, rm licev, ¦ 1- Ronnie Gol¦stein Van Cleet, e¦> 1940 1941 a 1¦ ¦e Dezèmbro die Setembro d'e 12 - Lenie d¦ Jorrg¦Van Naar'¦en II l

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13-A 8 de Agosto de 1944, a família Frank parte da estação central de Amesterdão, com destino ao eampo ¦e Westerbork

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14 - A 3 de Setembro, foi transferid'a de Westerbork para Au¦chwitz ¦,ff ¦'1 ¦ ,¦6 a" 3 15 - Lista dos membros do comboio de 3 de Seterrrbro, entre os quais os Frank

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16 - Chegad'a de um comboio a Aus¦hwitz ¦- ¦ l ¦ R t d ¦ £ ¦c¦l ¦' ¦t ¦¦

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, . 17-A 13 de Janeiro d'è 1946, Jarrny Brand'es-Brilleslijper atesta a mnrte d'e Margot e Arme Frank, em Bergen-Belsen rruma c¦nta enviada a Otto Frank dizian>. Supliduei-ll>es que não me cortassem o cabelo, ¦.!egandc: ¦¦0 ¦¦Ei¦ n>ari¦o n¦o me aceita, se Ihe aparccer ccm caf¦¦ca ¦¦a;¦¦,da!'¦ epo;s, trans;eriran>-n>¦ l¦ara o grande f>ospital das S¦, si¦uado :i¦ntro i1o can>po. Só então tive consciência da Libertacão. No meu delírio, Bob e as criancas encon¦ravam-se de novo ¦, n>eu lado. Esdu¦cer LiEnt¦e por con ;p;eto. Acl>ava-me obcecada Nela sede. O meu s>>arido entregavG-i>>E ¦¦n>a ¦arrafa c!E Iimonacia, ei>cluanto os ncs¦¦s ¦:;:>cs se aproxia,p e n¦u,-muravan>: ¦¦Darme, dorme. I\ós bebemos tuc:o.¦¦ Gritei. ¦¦Leva-os, Bob! Est¦:o a atorn ientar-n ie! ¦¦ Ouando recobrei os sentidos, vi uma enfermeira ¦ sentada à cabeceira da minha cama. -Agora, vais poder tornar a ver o teu Bob Partirás para Amesterdão. - E a Lientje¦ - perguntei, angustiada. - Quem é? -A minha irmâ. -Nâo sei onde está. Pus-me a chorar e tive vontade de morrer. Não ¦conseguia secar as lágrimas, porque me faltavam as torças para erguer os braços. A enfermeira foi falar com o médico.

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- Está horrivelmente chocada. Não sabe da irmã. q - Anne Frarik [97) 18 - Fotografia tirada em Bergen-Belsen Ouvi apenas a parte final da resposta: . . . deve ter rnorrido. Na realidade, Lientje ei;contrava-se no bloco das cieportaclas válidas e procurava-me, convencida de que eu estava viva. Já reservara di.ias passagens de avião para Eindhoveii. Pas¦ava todos os dias diante das janelas da minha caserna para se dirigir' à secretaria. a fim de perguntar se me haviam encontrado, até ao momento em que Ihe ouvi a voz. Ouando atravessava a sala. chamei-a. Desfizemo-nos ern lágrimas, nos bracos uma da outra. Foi chamar duas cleportadas, que me transportaram para uma cama. enquanto eu não parava de chorar. Quando tentararn introduzir-me um pedaço de pão na boca. quase fiquei sufocada. Em face disso, mastigaram-no nreviamente. Eu continuava contagiosa e as enfermeiras conduziram-¦ne ce novo para o hospital. O :¦vião descolou sem nós. Partimos unia semana mais tarde, de camião. em ¦¦qu¦nas ciracias de trinta ¦ qu¦;renta dui!ómetros. Dois dias depois, a¦uardávamos uma delegacão do governo holandês que nos de¦¦ia receber em Enschede e nunca aparec¦u. Atravessámos a fronteira. Tinham-nos clis¦iribuído bandeiras tricolores, que desfraldámos no momento em que ergueram as cancelas. Foi o ínstante mais emocionante. Com o rosto inundado de lágrirnas. cantámos o hino patrió C98j tico Wilhelinus, em tom estrangulado, mas veemente. p, nossa chegaela a Drienderweg, milhares de criancas brandiam pequenas bandeiras e vitoriavam-nos.

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conduzidas ao estabelecimento de banhos Fomos , para local. Em cada etapa do percurso, despiam-nos inspeccionar o vestuário, e éramos interrogadas mais uma vez. Pretendiam sobretudo evitar a contaminacão e desinascarar as pessoas que, fazendo-se passar por resistentes, viajavam connosco. Em Enschede, deram-nos um florim. Lientje e eu comprámos um arenque, que achámos maravilhosamente saboroso. Levaram-nos a seguir para uma uma construção em ruínas, e depois para escola, um internato mais confortável. Encontr'ámos um dos filhos elos Boissevain, Harry, que trabalhara com meu cunhado, Jan. Reconheceu-me e prometeu fazer tudo ao seu alcance para que regressássemos r¦pidamente a Amesterdão. Subimos o carro de um dentista, que ia para visitar um membro da família. As linhas estavam encerradas, porque grassavam doenças contagiosas no norte da Holanda, porém e!e obtivera uma auto¦ rizacão especial para circular nelas. æ medida que nos aproximávamos de Amesterdão, a nossa apreensão aumentava, pois não conhecíamos a situação exacta naquela cidade. Dispúnhamos de dois endereços, o primeiro dos quais era C99¦ o de Haakon e Mieke Stotijn, na Rua Joh2nnes-Verhulst. 2G. Não havia ninguém em casa, mas um bilhete cravado na porta indicava: "Se Lientje e Janny vierem aqui, encontrarão uma longa carta que Ihes é destinada, três casas adiante. onde mora Jopie Bennet.u Aí, deparou-se-nos uma mensanem do meu cunhado Eberhard:.O Bob vive, com os dois filhos. no cais do Amstel, 101. Eu moro em Oegstgeest, em casa do Sr. Blom.¦, Atravessámos a ponte e Lientje apontou.

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-É ali. Há pequenas cortinas nas janelas. como em Haia. Eu não me atrevia a olhar. Quando o carro parou, eIa precipitou-se imediatamente para lá e desapareceu. Bob não tardou a surgir da casa, para me abraçar e levar para dentro. - Tenho de ir a Oegstgeest - explicou Lientje. -O Eberhard mora lá com a Katinka. Entretanto, o meu filho Rob gritava: -Venham todos, que está aqui a minha mãe! Eu sempre disse que ela voltaria paí. Tinha-mo prometido e nunca deixou de cumprir uma promessa. Apressei-me a ir à Cruz Vermelha, para consultar as listas dos sobreviventes. Risquei os nomes daqueles que sabia que jamais regressariam, juntamente com os de Anne e Margot. Muito mais tarde, no Verão de 1945, um homem elegante; aristocrático, bateu à porta. Bob espreitou pela janela e foi abrir. Protegia-me, porque apareciam com frequência famílias às quais eu tinha de anunciar que os filhos, tilhas ou cônjuges não voltariam. Era Otto Frank, que me perguntou se sabia o que acontecera às duas filhas. Senti extrema dificuldade em Ihe revelar a verdade. Já se inteirara através da Cruz Vermelha, mas queria obter conlirmação. Visitou igualmente Lientje, que estava muito doente. As minhas p lavras ;¦rovocaram-Ihe uma amargura atroz. D¦screvi a agonia das filhas, porque insistiu em conhecer todos os pormenores. Parecia empenhado em se martirizar, mas abstinha-se de deixar transparecer os sentimentos. Voltámos a vê-lo diversas vezes. Qvis o acaso c¦ue o manuscrito de Anne tosse parar a casa de Annie Romijn. a qual fazia parte do nosso círculo c!e relaçóes. Otto Frank continuava a viver na Rua Kalver, no Hotel Suíça, frequentado pela minha tamí= ¦ lia de Bruxelas. É impossível aceitar o horror. A cólera contrai a garganta. Esta narrativa reveste-se de grande crueldade para mim. Voltámos a aprender a viver. Mas não p odemos esquecer. Basta um gesto. um C100] C101] ruído insólito. um refogado queimado para que o sofrimento

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reapareça. Nada conseguirá jamais sua- vizá-lo. Temos de contribuir para que a barbárie nunca possa repetir-se F¦ACHEI. VA¦ A¦iERUNGEN-rR¦¦I¦F¦¦ORDER [102) Havia vários anos que eu conhecia Rachel e o marido. Edd Van Arnerongen. antiyo diiector e redactor cio ¦lieuw Israelitisch Weekblacl. Instalarar¦i-se ern lsrae! em 195G. corn os dois fiJhos. Par'a feryir'em ao calor, visitam qerase todos os anos os Paises

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Baixos, que air¦da ocuparn ur¦i luyar especial no seu coracão. Ouando telefonei a Rachel para per'gerntar- se e:¦lr¦¦ente estivera corn Anne Frank. fíquei com a sensacão de ter desencadeado algo nela. Derrante a nossa lonya conversa. descr'eveu-me a sua ciepor;¦cão. Inteir¦i-rne clepcis de cjue rararnente alerelia a esse p3ssadc.,, e confesso clue não compr'eendo i¦cr' que abricr uma excepcão cornigo. A gr'avâcão para a TV decor'reu no Verão de 198 e contr'ibuiu para clere os nossos lacos se cimentassem. ' Víu Otto e Anne Frank pela pr-irneira vez ern b Vesterbork. Em Bergen-Belsen. viveu na caser'na de Anne e Maryof, sendo t;ansferida para Raghun em Fevereiro de i945 e finalmente libertada de Theresienstadt. [105) Nasci em 1914, no hospital israelita holandês. no Nieuwe Keizersgracht, e cresci na Rua Nachtegaal, do outro lado do Ij, na parte norte de Amesterdão. Conheci uma juventude protegida num meio socialista. O meu pai era tipógrafo. Tinha dois irmãos que. à semelhança dos meus pais, morreram em campos de concentração. Durante a guerra, desenvolvi actividade na Resistência. Conseguira obter cartões de racionamento na Bolsa, no Damrak, e distribuía-os pelos clandestinos. Fut capturada no comboio entre Roterdão e Amesterdão por um SS holandês. Ainda o recordo com nitidez na minha frente - baixo. ruivo. com um minúsculo bigode. Uma autoridade em docu¦;ientos talsos. Fui conduzida ao posto da polícia da estação central e depois à prisão de Amstelveenseweg. onde me conservaram três semanas. Todos os detidos eram transferidos para Westerbork. Distribuíram-nos um fato-macaco e um par de tamancos, para em seguida nos levar para a caserna dos disciplinares. Os homens eram rapados e tinham de usar boina. Amargurava-me não saber o que acontecera à família. Nos primeiros dias, trabalhei na limpeza de baterias. Depois. precisaram de mulheres para o serviço interno do campo e fui recrutada. Tinha de Ct06l

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lavar sanitas. ocupar-n,e dos novos comboios e distribuir roupa. As vezes, devíamos servir os prisioneiros. quando não Ihes davam de comer nas oficinas. O serviço interno era muito cobiçado. mas não tive a menor dificuldade em conseguir essa colocação. A nossa equipa compunha-se de seis mulheres. Conheci a tamília Fr¦;nk nas casernas disciplinares. Otto Frank aproxi¦nou-se de mim. acompanhaáo por Anne, e nerguntou se ela podia ajudar-me. A garota era muito terna e prop8s-me os seus préstimos. ~Posso fazer tudo~. assegurou-me. -Sou habilìdosa.~ Uma moca realmente adorável. alegre, viva. um pouco mais velha do que na fotografia dela que conhecemos. Intelizmente. eu não tinha a menor intluéncia e enviei-a à direcção. pois não Ihe podia conceder mais tempo. Creio que acabou por ir parar. alguns dias mais tarde. às baterias. com a irmã e a mãe. uma vez que quase tod s as mulheres eram colocadas nessa secção . Todas as tarefas estavam distribuídas pelos detidos. O serviço interno era o menos esgotante. po;s não havia necessidade de sair debaixo da ¦ chuva e entre o lodaçal. A limpeza das baterias ou das sanitas não tinha nada de agradável, mas era suportável. Creio que Otto Frank, sempre com a preocupação de proteger a filha mais nova. desejava que a encarregassem desse trabalho. Foì por (107) esse motívo que me ¦rocurou sem a mulher nem v'argot. Via-se com clareza que Anne era a sua filha dilecta. Apercebi-me de que ele possuía uma profunda delicadeza. sensível, amável, e conhecera tempos melhores. Tratava-se de uma família simpá;ica. e lamentei não Ihe poder ser mais útil. Depois. não os tornei a ver e supus que tinham sido transferidos para uma caserna não disciplinar. Verifiquei que isso não permitia escapar ao comboio. Sabíamos que partiam prisioneiros para Bergen-Belsen. e ir parar a Theresienstadt prenunciava o fim. No entanto. tudo aquilo deixava-me indiferente, pois só desejava uma coisa: a liberdade. A chegada de um comboio constituía sempre um momento atroz. Havia que guardar as coisas dos detidos em sacos alinhados em

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prateleiras, sob a vigilância de Abraham Van Witsen. Ouando os prisioneiros eram escolhidos para a deportação. tínhamos de Ihos enviar, tareta a todos os títulos assustadora. Imperava uma atmosfera de Ioucura em toda a parte. Aquela partida fatal representava uma evidència para mim, e creìo que a maior parte dos deportados estava ao corrente. Embora ninguém se atrevesse a exprimì-!o, todos se esforçavam por permanecer o máximo possível nos Países Baixos. Isto correspondia também aos interesses de Westerbork. A troca de palavras com Otto Frank fora breve. C¦osl como todos os contactos no campo. Mais tarde. voftei a ver as duas jovens; infelizmente, em circunstâncias diferentes. Os nomes das pessoas e!-am comunicados à noite. sempre sob uma tensão terrível. Esperávamos todos os dias uma soltura rápi¦a. pois as notícias anunciavam uma libertacão geral próxima. Alguns dias antes da nossa part¦d . os presos políticos, em particular os resistentes, foram conc:uzidos à presença de Gemmeker. Aus der Funften e Fischer. Acudiu-me então o pressentimento de q¦!e se preparava algo de irremediável. Tratava-se daquele último comboío de 3 de Setembro de 1944. Os nomes foram anunciados à noite e o meu figurava na lista. Compreendí que a esperança terminara. Fomos transportados em vagões de gado, através de pequenas etapas. Não tardei a depreender que seguíssemos para a Polónia. As pessoas faziam as suas necessidades diante de todos, o que resultava muito embaraçoso. Achava-se connosco um polaco chamado Loew. cuja estatura elevada Ihe permitia espreitar pela abertura gradeada e observar o caminho percorrido. Um dia, ¦ reconheceu a sua aldeia, o que revelou que nos aproximávamos de Auschwitz. æ nossa chegada, os acontecimentos precipitaram-se. Eu perdia a noção do bem e do mal. Os homens, pessoas idosas, jovens mães e respectivos [109] filhos foram separados de nós. Conduziram-nos a uma pequena sala. onde estavam sentadas em longos bancos numerosas

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mulheres. Tínhamos de expor o braço esquerdo para sermos tatuados. Matricularam-me com o número 88410. Obrigaram-nos a abrir a boca para inventariar as coroas de ouro e o chumbo das obturações; uma situacão insólita, aviltante. Eu sentia-me reduzida ao estado de animal. A seguir, submeteram-nos a uma selecção. Formaram-se filas intermináveis diante de Mengele. æ esquerda e à direita. Conservei-me imóvel a olhar, por um momento, e recebi uma bofetada monumental. -Oueres ir também para esse lado?-rugiu. E empurrou-me para a direita. Chegámos a Birkenau. campo de niulheres, e encafuaram-nos em casernas, auténticos barracões de gado. A perspectiva de não poder sair para satisfazer as necessidades era simplesmente insu¦ortável. Eneontrávamo-nos com polacas, checas, francesas, belgas e húngaras. As mulheres do nosso comboio tinham desaparecido quase todas. A chamada era o momento mais terrível e em 8írkenau não escapava à regra. Tínhamos de abandonar a caserna sob frio intenso, despidas, para sermos examinadas. O mínimo gesto de contrariedacle podia enviar-nos para a morte. As polacas, mais experientes, estorçavam-se por evitar a chamada. Con [110) tudo. as holandesas mantinham-se docilmente de pé. De qualquer moclo, para onde poderiam ir? Chegavam até nós rumores sobre a Libertação e aproximação dos russos, e perguntávamo-nos: ¦Conseguiremos escapar às cãmaras de gás?~ Ouando aviões sobrevoavam o campo, eu reflectia: nPor que será que não bombardeiam isto?~ Morrer sob as bombas parecia-me mais digno do que terminar a vida num torno crematório. O campo não foi. parém, bombardeado. No entanto, os Aliados conheciam a situação. por que nos deixam dizimar assim? Por que não impediam os comboios de continuar a chegar a Auschwitz-Birkenau? Sabemos hoje que a guerra constituía para eles uma questão muito mais importante que os judeus. Eu invejava as aves que podiam levantar voo. Havia-as em toda a parte, mesmo em Auschwitz, Birkenau e Bergen-Belsen. onde a paisagem era ao mesmo tempo verdejante e horrivelmente cinzenta.

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As holandesas não passavam muita fome, em Auschwitz. A comida não era suficiente, mas em Westerbork os prisioneiros recebiam encomendas, ¦ mesmo nas casernas disciplinares. Uma ocasião, ¦ veio-n e parar uma às mãos. Reinava um excelente ambiente de solidariedade. Vi seres que definhavam lentamente. Chamavam-Ihes muçulmanos. Nunca me inteirei das cir [111) cunstâncias da sua chegada, nem da razão por cfue não os extei-minaram nas c maras cie gás. Em Auschwitz, nunca me perguntei como me fivrari¦ de tudo aquifo. Habituara-me à enorme fumaceira negra e renunciara a compreender o que se ¦assava. fgnorava por que tinha de permanecer de pé durante a chamada e não era devorada por aqueie oceano de chamas. Creio na verdade que foi esse sentimento cfe irreafidade due me permitiu sobreviver - aquela distância eiri refação a mim própria, ao ambiente, às privações. A vida no campo era horrivelmente penos¦. O esp¦ctácufo dos esáuefetos vivos revelava-se ir~sustentável, destruía as sensações. Não queria entregar-nie à comiseração de mim própria e dos outros. Sabfa que as minhas probabifidades de escapar à morte eram nulas, mas apegava-me à vida. Afigurava-se-me inverosímil que alguma de nós pudesse sobreviver. Um dia, ntransferiram-nos¦, e alegrámo-nos por bandonar Auschwitz. Os nossos comboios pareciam tomar o rumo de Bergen-Belsen. Os russos acercavam-se cada vez mais e os nazis queriam afastar-nos do seu alcance. O grupo compunha-se de várias muIheres que encontrara em Birkenau e outras conhecidas em Westerbork. Em cada transferência, os alemães procedíam a novos agrupamentos. Toda [1í2) via, foram raras as holandesas que sobreviveram ao meu itìnerário. Partimos felizes por nos afastarem do horror do quotidiano e

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da ameaça das câmaras de gás. Talvez seguíssemos para um destino melhor, para a vida. Deram a cada um de nós uma grande fatia de pão, com um pedaço de margarina e um pouco de queìjo de cabra. Os polacos adoram o alho e estavam dispostos a trocar a sua por um dente de alho. Cada deslocação de comboio o¦-iginava tensões. Reinava o medo, as condições eram abomináveis e r:ão nos informavam da duração da viagem nem do nosso destino. Fazia frio intenso, contra o qual o nosso resumido vestuário nada podia. A promiscuidade provocava conflitos. O fedor, ¦margura e os gritos eram constantes e crescentes. Passámos vários días no compartimento, com um soldado armado à entrada. Tornava-se impossível conciliar o sono. Depois de Auschwitz, Bergen-Belsen parecia¦ -nos atraente, entre as árvores e vegetação. A capacidade do campo era insuficiente. Foram reunidas centenas de mulheres numa tenda enorme, ' que cedeu às rajadas de vento de uma tempestade. A chuva transformava o recinto num gigantesco lamaçaI gelado em que tínhamos de chafurdar. Declararam-se cistites e diarreias. Imperava um ve¦adeiro caos. 8 - Anna Frank ¦ 11 ¦ ¦ Não compreendíamos nada do que nos acontecia. As holandesas eram pouco numerosas. mas as deportadas de outros países mostravam-se muito atenciosas comigo. Mantivemo-nos diversos dias sob a tenda desmoronada. Por fim, proporcionaram-nos um abrigo em casernas disponíveis. As mulheres entretinham-se por vezes a especular sobre o que comeriam após a Libertação: um ovo estrelado ou escalfado. Elaboravam ementas completas. Eu sentia o coração contrair-se e abstinha-me de participar no jogo. O meu espírito concentrava-se totalmente na liberdade. Cada vinte e quatro horas que passavam eram mais um dia ganho. As considerações sobre a comida não.serviam para nada. A fome atormentava-me, sem dúvida; como a todas as outras, mas conservava a imagem da liberdade diante dos olhos. Receava pelo meu marido e filho e essa angústía sobrepunha-se a tudo o

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resto. O sentimento de medo ocupava realmente um lugar importante na nossa vida. Que representava, pois, uma fatia de pão duramente obtida por cima do arame farpado? Por conseguinte, renunciei. Temia ser castigada se me surpreendessem, além de que queria poupar as energias. Na caserna, voltei a encontrar Anne e Margot Frank, mas os pais não estavam lá. Não se faziam perguntas - Qressentiam-se as coisas. As duas irmãs achavam-se praticamente írreconhecíveis, porque Ihes [114] tinham rapado a cabeça, e não compreendi a razão. pela qual se apresentavam mais calvas do que nós. Estávamos em pleno Inverno e não possuíamos qualquer agasalho. Haviam-se reunido todos os elementos favoráveis às doenças. e elas encontravam-se particularmente predispostas. Definhavam de dia para dia e tinham emagrecido muito. Não obstante. encaminhavam-se todos os dias para a vedação de arame farpado do campo ~livre¦, na esperança de obter alguma coisa. Penso que contactavam com alguém conhecido. Expunham-se a um risco enorme. pois era proibido e as nossas Kapos não se podiam considerar condescendentes. As vezes, atiravam-Ihes um pequeno embrulho e elas regressavam encantadas e apressavam-se a inventariar o conteúdo, que tragavam com prazer. Era, no entanto, bem visível que estavam muito doentes. As irmãs Frank discutiam por causa da sua doença. O tifo achava-se muito difundido em Bergen-Belsen. Elas tinham o rosto macilento e pouco mais do que a pele por cima dos ossos. Tiritavam continuamente. O seu beliche era o mais mal situado, junto da entrada, que se abria constantemente¦ Ouvíamo-las gritar com frequência: aFechem a orta¦. porém as vozes enfraquecidas de dia para dia. Anne e Margot agonizavam como muitas outras, mas o seu caso era ainda mais triste por se tratar [115) de moças tão jovens. Oue horroroso destino! Ainda não tinham recebido nada da vida. A primeira esperava muito da sua

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existência, após a Libertação, e, uma ocasião, com uma maturidade surpreendente, falou-me do seu desejo de escrever. Os sintomas do tifo declararam-se nela, sem a menor dúvida possível: um enfraquecimento progressivo e uma apatia pontuada por sobressaltos. Estavam ambas tão doentes, que não Ihes restava a menor esperança. Não sei qual das duas toì levada da caserna em primeiro lugar. Deixei bruscamente de as ver e ouvir. Tive de admitir que já não se encontravam lá. Numerosas deportadas sucumbiam ou perdiam a noção do tempo e da morte à sua volta. Os cadáveres eram transportados sistematicamente para o exteriór e depositados diante da caserna. De manhã, quando nos autorizavam a visitar as latrinas, havia necessidade de os afastar. Um drama terrível. Estávamos todas contaminadas pelo tifo. Havia um pequeno bidão em frente da porta e competia-nos esvaziá-lo. Numa das minhas idas e vindas, devo ter passado junto dos corpos das irmãs Frank, pois eu sabia que os haviam calocado diante da caserna, como os outros. Eram evacuadas quantidades maciças de cadáveres e abrimos uma cova protunda para os amontoar. Anne e Margot tiveram a mesma sorte. Acabei por contrair o tifo e deitava-me no nível [116) inferior de um beliche, porque já não tinha forças para trepar. Ouando pediram ao nosso médico, Dr. Knorringa-Boedrukker, que me desse uma aspirina, ouvi-o responder ao longe: ¦¦Não merece a pena, porque ela nâo passa desta noite. É possível que essas palavras me estimulassem. Na verdade, sobrevivi e ele morreu. Morria-se menos em Bergen-Belsen do que em Birkenau, mas a morte era mais visível. Neste último campo, grupos inteiros desapareciam sem alarde, como os ciganos. Nem sequer os choravam: magra ou não, doente ou não, uma pessoa partia. Bastava a inscrição da matrícula. Em Bergen-8elsen, não se faziam despedidas; morria-se lentamente de doença, esgotamento, fome ou frio. A maior parte das deportadas achava-se mergulhada em estado de apatia devido ao tifo, enfermidade que ataca o cérebro. Não é possível habituarmo-nos a viver com a morte. Quando ia ver a minha sogra, tropeçava em cadáveres na escuridão. Só a podia visitar de manhã muito cedo, antes da chamada. Colidimos constantemente com corpos e havia de cada vez um novo abalo, demolidor.

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; Q período passado em Bergen-Belsen foi sem ¦ dúvida o mais atroz. Estávamos pouco ao cotrente da evolução da guerra, pelo que ignorávamos por auanto tempo a situação se prolongará - doentes, achávamo-nos convencidas de que a morte nos [117] espreitava. Em Birkenau, éramos jovens, ainda razoavelmente saudáveis. Não existia o perigo de nos aparecerem úlceras, turúnculos. Desde que nos conservássemos apresentáveis, subsistia uma opartunidade de sobreviver. Em Bergen-Belsen, pairava a morte por toda a parte. Lia-se nos olhares a cada momento. Com receio pelas outras, por si própria. As forças abandonavam-nos e, quando contraí o tifo, pensei: ¦É o fim.= Estava mesmo persuadida disso. A minha cura constituiu um milagre. Certo dia, fomos convocadas para a chamada, a que as deportadas, após os anos de vida no campo, tentavam esquivar-se. Ao contrário do que sucedia comigo, receavam a partida. Eu pensava dispor de uma oportunidade de sair daquele interno. Surgiram três alemães à paisana. A ausência de uniforme era surpreendente, mas infundiu-nos coragem. Em breve se tornou aparente que íamos partir para Raguhn, uma aldeola perto de Halle, nas cercanias de Leipzig. Fora instalada no local uma fábrica de aviões onde trabalhavam civis, ajudados por deportados. Chegámos lá a 12 de Fevereiro de 1945. Juntamente com oito de-portadas polacas, fui incumbida de descascar hatatas numa cave. Era o paraíso. Atribuíram-nos casernas asseadas e recebemos um cobertor. As outras queriam que Ihes levássemos provisões. Fi-lo, fui surpreendida e cas [118] tigada. Tive de ir buscar água ao rio num balde - os alemães haviam feito saltar uma ponte e queriam fabricar explosivos. Ouando o comandante me peruntou por que não trabalhava na cozinha, contei-Ihe os meus dissabores. Acto contínuo, autorizou-me a reatar a actividade anterior.

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Por fim, partimos. A viagem foi horrível, pois estávamos na iminência de ser libertadas e os alemães tentavam evitá-lo. As deportadas já não tinham coragem de descer dos vagões de transporte de gado para satisfazer as necessidades. No entanto, havia algo de ainda mais terrível: algumas não dispunham de vigor para voltar a subir, e ficavam junto da via férrea. irremediavelmente abandonadas. Já não restava nada de comer. A viagem durou vários ¦ias. Desconhecíamos o nosso destino, e creio que o maquinista não estava mais bem informado. Durante o percurso, Ebbe, uma mulher de pequena estatura que só falava e compreendia o italiano, assaz ingénua, desapareceu, ante o nosso assombro, numa das várias paragens, e julgo que fugiu. Por último, os alemães inteiraram-se sem dúvida ¦ de que o campo de Theresienstadt ainda não fora ., desactivado e detívemo-nos aí, onde viemos a ser libertadas. Pude viver um momento extraordinário. Poucos [119] dias mais tarde, chegou um veículo a gasogénio tripulado por americanos. Eu e mais duas mulheres tomos as primeiras a partir para Bamberg e registaram-nos em outro campo. A seguir, rumámos aos Países Baixos numa barcaça. Soube mais tarde que dezasseis mulheres do nosso grupo. que haviam chegado esgotadas a Ragunh, tínham sucumbido. Sobrevìvi, porque talvez tivesse mais experiência da vida, assim como mais força de vontade. Todos os dias me regozijava por ainda existir. Esse vigor moral constituiu um elemento determinante. A minha filha afirma com frequéncia: -A minha mãe é um rochedo. Em lsrael, onde actualmente vivemos, Anne Frank é simultaneamente uma lenda e uma jovem que continua a viver. Suscita profundQ interesse e há algures uma Rua Anne frank. O Diário foi traduzido em hebreu. Quando a minha filha se deslocou aos Países Baixos, a sua primeira visita foi à Casa de Anne Frank, apesar da minha persistente oposição; pois rejeitara aquele passado havia mais de quarenta anos e desejava viver normalmente. Não obstante, terminei por ceder e experimentei uma sensação estranha. Encontrara-me com Anne à sua chegada a Westerbork, tão viva e prestável, quando o pai me pedira que a ajudasse.

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Os visitan [T20] tes fotografavam cada canto, cada móvel, em particular os japoneses. A minha filha sabia que eu conhecera Anne e disse-me: -Deves revelar às pessoas que falaste com elas. Faz alguma coisa. Explica-Ihes as suas vicissitudes. Faltava-me, porém, a coragem. Não saberia como exprimir-me. A Casa de Anne Frank inspirava-me uma reacção curiosa, com toda aquela gente e máquinas fotográficas. Voltei a ver a jovem Anne em Bergen-Belsen, macilenta, esquelética, doente, que me falava de uma forma pungente dos seus sonhos de adolescente, do desejo de escrever, viajar, amar, c reflecti que toda aquela encenação e excitacão não se Ihe adaptavam. æ saída, escrevi no livro de ouro: nAnne não teria querido isto.¦, Em memória de Charles Désiré Lu-a-Si, executado pelos nazis em 1942. [121) BLOEME EVERS-EMDEN Bloerne Evers, uma mulher corajosa e notável, muito activa na vida comunitária judaica de Amesterdão, ocupa um lugar importante na Associação Deborah. É inseparável do marido, Hans, que participa, como ela, na organização de eventos culturais e religiosos.

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Bloeme disse-me que guarda poucas recordacões do periodo passado num campo de concentracão. Não obstante, sabe analisar de um modo infa= livel as consequências dessa experiência na vida de uma jovem de dezoito anos. Após a guerra, teve a energia de empreender estudos de psicologia e hoje prepara a sua tese. O seu encontro com Anne e Margót remonta ao liceu judeu, tornado obrigatório para as crianças judi¦s em 1941 ¦ Em Auschwitz-Birkenau, construiu uma sólida amizade com Lenie de Jong-Van Naarden, Anita Mayer-Roos e outras dez mulheres, das quais apenas cinco sobreviveram. [125] De entre elas, oito não se separaram durante nove meses e partilharam amor e sofrlmento: Nettie, Lydia, Lenie, Annie, Rosy, RootJe, Anita e Bloeme. Ainda hoJe as une um laço muito forte. Vim ao mundo em 1926, no meio operário de Amesterdão. O meu pai era diamantista e a minha mãe costureira. Vivi uma juventude feliz. embora modesta, animada essencialmente por debates políticos. A partir de 1933, numerosas pessoas acudiam regularmente a nossa casa para evocar os acontecimentos da Alemanha e o destino dos judeus naquele país. Quando eclodiu a guerra, em 1940, compreendemos que a perseguição não se limitaria aos judeus alemães. O meu pai repetia: nVamos sofrer, mas a Alemanha também.¦ Apesar disso, não tentou fugir, nem passou à clandestinidade. Em fins de 1942, desenvolveu diligências heróicas para me salvar da deportação. Eu tinha recebido uma convocação. Dominado pelo desespero, ele dirigíu-se à Rua Euterpe, onde funcionava o Gabinete Central da Emigração Judaica, e contactou com Aus der Fiinften, ignorando o seu elevado grau. resultado que atingia as raias do milagre. As primeiras medidas antijudaicas contra os estudantes foram tomadas em 194t. Os docentes judeus viram-se afastados da actividade e obriga [12G]

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ram-nos a frequentar o liceu judeu recentemente criado. Enviaram-nos para um edifício do Mauristskade e depois mudámo-nos para os jardins municipais de Amesterdão, em frente do colégio judeu. As minhas primeiras relações com Margot e Anne datam dessa época. Margot frequentava uma classe paralela. Muito boa aluna, queria ser mais tarde enfermeira. Mantínhamos contactos regulares, embora não fõssemos propriamente amigas. Falávamos sobretudo de tópicos escolares, dos trabalhos de casa, dos protessores. Eu conhecia Anne, que era brilhante, apesar de mais fantasista que a irmã, sempre rodeada de amigas. a qual desfrutava de larga popularidade entre os rapazes. Conquanto eu não prestasse muita atenção a uma aluna mais jovem, pois já frequentava o segundo ano, a sua vitalidade e alegria tinham-me impressionado. As duas irmãs davam a impressão de ser extremamente inteligentes, dotadas da arte de saber viver. As sua qualidades fazianí com que se salientassem na escola, mas eu não tinha consciência disso na altura. No regresso às aulas de 1942, não as voltámos ¦ a ver. Constava que a família tinha partido para a Suíça, a fim de viver com a mãe de Otto Frank. Entretanto, os efectívos das aulas diminuíam. Na manhã de segunda-feira, verificávamos o desaparecimento de alunos e supúnhamos que estavam doen [127) tes, mas na realidade haviam-nos capturado ou passavam à elandestinidade. Eu alegrava-me por saber Annie e Margot em segurança. Os meus colegas tinham perdido o gosto pelas partidas habituais. Sob a pressão dos acontecimentos exteriores, reinava um ambiente de trabalho obstinado. Ainda conservávamos o privilégio de poder aprender. Em 1943, encontrava-me na primeira classe, ano de exame final. Quando comecou a prova escrita, em príncípios de Maio, restávamos apenas três. Dois rapazes e eu. Eles desapareceram antes da prova ora!. Fui, pois, a única aluna a passar. No final d sessão da manhã, o meu namorado procurou-me e anunciou:

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-Efectuaram uma busca em tua casa e irão prender-te, esta noite. Foram na verdade buscar-me e retiveram-me alguns dias no Teatro Holandês. A minha mãe recomendara-me: uTenta evitar que te registem. junta-te a uma família que possa passar pela tua.¦ Segui os conselhos à letra. No terceira ou quarto dia, consegui fugir. Dispunha de um endereço de amigos de meus pais, que obtivera nas seguintes circunstãncias. Quando subia para o camião, partira o salto de um dos sapatos e dera-o para consertar naquela noite, passando a¦andar com um dos pés descalço. O meu (128) primo comunicou-me: ¦As crianças vãn reunir-se no átrio dentro de momentos, se forem autorizadas a visitar a creche. Tu atravessarás com elas.,¦ A creche situava-se diante do teatro. O sapateiro não cumpriu a promessa. Tocou a campain¦a e os garotos receberam ordem para se separar dos pais. A cena era pungente, pois não sabiam se os tornariam a ver. Encaminhei-me para o átrìo e vi que um SS vi iava a entrada. Parei, indecisa, e ele virou-se para ui¦", rugiu. Fiquei como que premim. ¦¦Que faz aq ¦ada ao chão. Os seus olhos percorreram-me, para se fixarem no pé descalço, e acabou por encolher os ombros . As crianças chegaram pouco depois. Peguei em mâos e atravessámos a rua. Recuperei o sapato mais tarde. Na manhã seguinte, muito cedo, mandaram-me sair. Dissimulei a minha estrela e caminhei durante três horas, até Nieuw-Oeste, na periferia da c ¦ade. A casa dos nossos amigos estava deserta, porque eles trabalhavam todo o dia. Eu tinha uma tia e um tio, que preveniram os meus pais. \li-os então pela última vez. æ noite, dirigi-me à morada de Truus e Floor te Groen. que alojavam um PC de actividades da Resistência. Permaneci lá cerca de sete semanas, até que me encontraram outro poiso. Essa pequena experiência da clandestinidade

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¦ - ¦t¦llf, I¦.¦,k [ 129 ) marcou-me profundamente. Passava uma semana aqui, uma tarde ali. e percorri assim uns quinze endereços em três meses. Fui finalmente parar a um centro hospitalar como enfermeira auxiliar durante nove meses. Um dia. houve uma rusga e os doentes judeus foram levados. Embora não me procurassem, tive de sair de lá na manhã seguinte. por razões de segurança. Admitiram-me como empregada doméstica em Roterdão. Obedecendo às indicações da minha rede, ocultei a condição de judia. Passei alguns meses maravilhosos junto de uma senhora muito atenciosa e do seu filho. Eu ainda ignorava a barbárie. Aquela vida clandestina provocou-me um traumatismo que se prolongou por anos. Significava a inactividade, a perda de identidade, do ambiente familiar, a auséncia de um lugar só meu. de relações sociais, de livros. Não obstante, era preferíve¦ ao destino que os alemães nos reservavam. Consewei-me oculta quinze meses - de Maio de 1943 a Agosto de 1944. Após duas semanas na prisão de Roterdão, a Haagse Veer, aguardava-me o comboio para Westerbork. A primeira familia que encontrei naquele campo toi a dos Frank e trocámos impressões sobre as nos (130) sas experiências de vida clandestina. na realidade muito diferentes. Eles tinham conseguido manter uma existéncia comum. uma unidade. mas sofrido o encerramento, a promiscuidade. a ausência de movimento. Por meu turno. eu vagueara de um lugar para outro e até perdera o meu próprio nome. No entanto. o medo constituíra um factor comum. Passámos a ver-nos com regularidade. De entre as minhas companheiras de detenção. r¦odo e muito nitidamente de Margot. em Weste trabalhava na limpeza das baterias, como eu. Usávamos os mesmos fatos-macaco. O trabalho era terrivelmente sujo. O período a que estávamos obrigadas parecia interminável nove até dez horas.

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- oito. Todas as disciplinares usavam aquela indumentária. de castigo, por haver optado pela clanuma forma não se destinidade. Mais tarde, isso revestiria da menor importãncia. Dispúnhamos mesmo de tempo livre. Somente os comboios das terças-teiras nos aterrorizavam. Os nomes das prisioneiras escolhidas eram anunciados na véspera. Falávamos de campos de extermínio. sem dúvida. mas sem nos convencermos da sua existéncia. Achávamo-nos resas no torno nazi. Conservo oucas- recordações das horas intermináveis do trajecto de Westerbork a Auschwitz. Em contraPartida. lembro-me muito bem da promiscuidade e da falta de espaço. (131] æ chegada, as portas do vagão foram abertas e vimos que nos aguardavam homens de vestuário listrado azul e branco, que se puseram a gritar e a bater-nos para que saíssemos. De súbito, uma muIher dirigiu-se a um dos individuos uniformìzados. Depreendi que o conhecia e compreendi então que aqueles homens também eram prisioneiros. Conduziram-nos, com a bagagem, a uma vasta esplanada iluminada por projectores extremamente potentes. O solo era lamacento e alguns deportados tentaram enterrar os seus bens mais valiosos. A seguir, entrámos em salas espaçosas. onde nos obrigaram a despir. Senti-me profundamente ehocada. Tinha dezoíto anos e fora educada no respeito pelo pudor. Assim, representava uma humilhação horrível expor-me desnuda aos olhares dos homens. Produziam-se os dramas mais horríveis. Seres humanos exterminavam os seus semelhantes, torturavam-nos. Eu tivera uma visáo diferente do mundo. Embora connervasse na memórìa os acontecimentos de 1941 no bairro judeu de Amesterdão, esforçara-me por pensar que se tratava de um excesso ou acidente. de um tumulto que degenerara. A acção dos SS tinha por objectivo aviltar o ser humano, esmagá-lo, fazer-Ihe perder o respeito por si próprio. O isolamento mantinha-nos na incerteza total quanto à guerra, à sua evolução, ao mundo

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[132] exterior. Não sabíamos nada do amanhã. Toda esta ignorância constituía um suplício. Os alemães pretendiam a desintegração da nossa personalidade. Estávamos amontoadas em grupos de dez num beliche. Já não me recordo como procedemos. mas, após troca de impressões. organizámo-nos e passámos a experimentar conforto por permanecermos escutarmos as histórias de cada uma juntas e , Essas horas, passadurante as longas horas vazias c?as sem nada que fazer, representavam uma das torturas de Auschwitz. As discussões tinham com frequência a alimentacão como objectivo. Mas cada uma de nós também falava da sua vida, do seu meio, dos seus sentimentos e do período passado na clandestínidade. Os laços tecidos entre =irmãs¦ e Hmães¦ eram consolidados elo respeito mútuo, pela vontade de não esquecer a data. Dizíamos cada dia. comum por exemplo: ~Hoje é quarta-feira, 21 de Dezembro ¦e 1g44* e certificávamo-nos de que estava certo. ¦ As maìs jovens ocupavam-se, tanto quanto poss;vel. das tarefas mais penosas. Lydia e Nettie, em articular, tinham mais vinte anos do que eu e as tavam-Ihzs. Assim, eu ia buscar-Ihes águ¦ ¦ forças fal ' pessoal ou executava qualquer outro ¦, para a higiene [133)

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trabalho para elas. A solidariedade do grupo robustecia-se com isso: à medida que a situação exterior endurecia, os nossos laços apertavam-se. Os nazis tinham o domínio total do nosso corpo. Podiam enviar-nos aonde Ihes apetecesse e fazer de nós o que quisessem. Um trabalho imbecil como deslocar um monte de pedras da direita para a esquerda demolia-nos. Eu experimentava um medo e desespero profundos. Em fins de Outubro, mudámo-nos de Auschwitz para um campo de trabalho situado em Libau, pequena localídade da Alta Silésia. Fazíamos longos turnos de serviço durante a noite. em que havia uma pausa de quinze minutos. Estou a rever a imensa entrada da fábrica, onde nos reuníamos para preparar uma sopa. Uma húngara de pequena estatura levantou-se e cantou com voz cristalina uma melodia de uma beleza surpreendente. Um dia em que me encontrava de pé para a chamada. Lenie empurrou-me e, aproveitando um instante de distracção do SS, segredou-me: ¦,Repara nas montanhas nevadas... Ouando nos libertarem, havemos de as escalar. . . n Falar nestes termos infundia-nos coragem. As tentativas para nos reduzir a meros números abortaram. Eu não me convertera numa matrícula por causa de uma tatuagem no braço. Continuava a ser Bloerne Emden. (134] produzira-se. porém, o fenómeno inverso. Durante a clandestinidade, usávamos outros nomes. Os Frank não tiveram de se preocupar com esse problema. Reencontrar o nosso próprio nome era maravilhoso e eu pronunciava o meu em voz a!ta. Os SS impunham-nos um novo comportamento. mas as suas exigências não modificavam a n055ú persona!idade em profundidade. Tínhamos de obedecer, todavia a submissão não imp!icava cle modo ¦l¦um adesão. As injúrias e maus tratos passavam por cima de mim. a, enquanto Continuávamos a trabalhar na f¦ ¦¦ ic os russos se aproximavam. O tornecimento de material ara as nossas cadeias de montagem era cada

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Um dia. porém, chegou uma vez mais irregular. remessa e a mu!her sentada à minha frente acolheu a entrega com as palavras: ¦Deus seja louvado. material! a Pensava como os seus ¦amosn. Eu tinha apenas dezoito anos, mas para mim uma alma de escravo identifica-se com a do opressor. Embora fosse impossível furtarmo-nos aos acon, uma tecimentos, erigíamos em comum um edifício muralha de protecção. Nluitas deportadas pensavam que se tratava de uma catástrofe natural da qual os SS não se (135) `¦ podiam considerar responsáveis e o sistema não era obra de seres humanos. A partir do final da guerra, passei a sentir desprezo absoluto por tudo o que fosse alemão. N¦o me apoderei de nada das casas deles, ao co¦trário das minhas companheiras de cativeiro. 1¦9uito depois da Libertacão, recebemos um subsídio, uma indemnização pela perda de objectos usuais. Dirigi-nre ao banco e indiquei em que instituição judaica o dinheiro devia ser depositado. Sinto uma re¦ulsa profunda, quero esquecer tudo. Jamais porei os pés na Alemanha ou na åustria. Na maior parte do tempo consigo, fe¦izmente. superar os traumatìsmos da guerra. No entanto, nos momentos cruciais da vida, esse período pesa terrivelmente. Coni a idade, a

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vulnerabilidade torna-se rnaior. Não obstante. sou optimista por natureza e esforço-me por me apegar às facetas boas da vida. Conservo a recordação exacta do meu último encontro com a família Frank. Foi efectuaáa uma nova selecção e falei com a Sr.' Frank e Margot. Anne não se achava presente, pois sofria de sarna. Tinham-Ihe descoberto uma pequena erupção e. nesses casos, os alemães, sem quaisquef conhecimentos de medicina - pelo menos aqueles que tinham de decidir sobre a nossa vida - receavam [136] terrivelmente a epidemia e isolavam os eleportados. Por conseguinte. Anne não podia juntar-se ao nosso grupo. e a Srá Frank. apoiada por Margot. declarou: .¦Não a abandonaremos.¦, Lembro-me de ter inclinado a cabeça em sinal de assentimento. Daí em diante, encontrámo-iios com regularidade e troquei impressões com elas frequentemente. A mãe e as duas filhas eram inseparáveis e decerto se ajudaram muito mutuamente. Todos os conflitos que podemos deduzir da leitura do Diário eram varridos pela angústia. Tudo o que uma adolescente pode pensar da mãe deixa de ter importãncia em semeIhantes condições. Vou explicar-me inelhor: algumas ¦essoas falam da guerra e descrevem o único drama que Ihes aconteceu - a requisição da sua bicicleta. Não vã4 além disso. Pretender fazer-Ihes compreenque outros se viram obrigados a passar à clander para destinidade e. pior ainda, foram deportados campos de concentração. carece de qualquer senLimitam-se a responder: ¦¦Sim. deve ter sido tido. horrível, mas eu fiquei sem a bicicleta.¦ Há uma certa analogia com a situação de Anne. A vi¦a era sufocante. no Anexo, e o menor conflito assumia largas proporções. Ela revoltava-se contra , mas no campo a oQosição desapareceu por a mãe ¦dido com¦leto. Graças a esse apoio mútuo, teriam escapa¦r à mo¦te. mas ninguém pode fazer nada contra o tifo.

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[137) Recordo-me de duas mulheres isoladas, em Libau. que formaram rapidamente um grupo. Um campo impõe exigências impensáveis a uma vida normal e suportámos essas provaçõe¦ juntas. Isto cria laços que não se comparam sequer aos existentes entre irmãs e mães e até os ultrapasszm. Aí, temos as consequências positivas da nossa experi¦ncia. Havia subgrupos, no interior desse grupo de oito pessoas, sendo Anita e eu as mais jovens. As mais vefhas. Nettie e Lydia. eram as nossas mães de cativeiro. Quando uma de nós recebia uma fatia de pão suplementar, dividia-a em oito partes. 0 gesto careciz c!e significado especial em termos físicos. mas proporcionava um reconforto moral. Outro exempfo de solidariedade: Anita não tinha sapatos. Havia, nos últimos tempos, um bom amigo meu. um francês do STO que trabalhava na fábrica e me abastecia em segredo. e pedi-Ihe que me arranjasse um par. Mais tarde, coloquei-o debaixo da cama de Anita sem Ihe dizer nada e ela descobriu-o como um milagre caído do céu. Só recentemente se inteirou da sua origem. Eu tinha a sorte de possuir um vestido quente. Aquando da passagem para os chuveiros após uma selecção. recebêramos ordem para largar num monte todo o vestuário, que depois nos seria distribuído arhitrariamente. Rosy viu o meu vestido no chão [138] e p¦-ecipitou-se para o recolher. Recebeu uma chicotaá¦.. m¦s entregou-mo. Ale¦uém me recordou. há pouco tempo. que, uma ocasião. lhe dei pão. Confesso clue não me lembro. pois o gesto resultzva quase automático. A evocação da Libertação continua a ser um iialo luminoso. Na fábrica, estávamos inactivas.. porelue o fornecimento de material fora interrompido. Recru;aram-nos então. apesar do nosso esgotamento. para preparar um terreno de zviação. fornecendo-nos pás enormes quase da altura de um homem.

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Trabalhámos c:ebaixo de trombas de água até à Libertação. Ouanco consideraram que a tarefa estava concluída. mandaram-nos recolher às casernas. Rapazes ¦ holandeses da fábrica percorriam o caminho arenoso ¦f¦c ao longo do campo e cantavam. à maneira de Piet ¦` Hein:,¦Vamos ser libertados, a libertação está pró5. ximz. Amanhã seremos livres. para tora, a fim de ouvir o que Precipit¦:mo-nos cantavãm. porque estavam proibidos de entrar ou aproximar-se do campo. Comunicavam connosco por meio de canções. Depois, fomos informar as outras: ,A e¦uerrz terminou.¦, ¦¦, manhã de e de Maio, fazia um tempo magnifico. Encontr¦;vamo-nos reunidas para a chamada, [139] due sc ciesenrolava de um modo estranho: a nhefe do l¦loco conservava-se de pé, as costas voltadas nara nós, e a que anunciava o núm2ro de detidas emitia r;sadas escarninhas. Registou-se um movimento no posto de guarda à entrada. A chamada durou muito pouco tempo, após o que nos autorizaram a regressar às casernas. Mais tarde, não muito, assistimos à partida dos alemães e ho¦andeses, e dois franceses do STO penetraram no campo. Éramos livres, podíamos mover-nos como quiséssemos! Foi o dia mais belo da min¦a vida. A sensação de aiegria que me invadia, assim como às minhas companheiras, excedia toda a possibilidade de com- ¦ preensão. Não pensávamos no futuro. Calcámos com os pés os montes de areia depositados contra as casernas, que fôramos obrigadas a erguer e nivelar com as mãos. Não me percorre o menor sentimento d¦ culpa- bilidade. mas não tenho qualquer dificuláade etn conceber que uma pessoa se possa sentir culpada por ter escapado ao destino da maíor parte de nós. Considero isso uma casualidade. uma situaçáo

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impre- visíveJ. Sinto-me feliz por não ter partilhado do destirio cruel d¦ muitas deportadas. A sobrevivência deu-me a oportunidade de trazer aa mu¦do uma nova geração. Se o meu regresso teve Qo¦rentura algum sentido, foi haver-nos permitido - a Hans e a mim (140] órópria - criar os nossos filhos, que, por sua vez. rundaram uma família. Contribuímos assim para a perpetuaçáo do povo judeu. O bom humor também tinha o seu lugar no campo, apesar de todos os horrores. Estou certa disso e quero favorecer e encorajar acima de tudo as facetas boas do homem. De uma maneira ou de outra. nunca perdi a minha confiança ingénua no ser htn¦nano. Semelhante fé parece insensata, mas corresponde à verdade. A agressividade do homem nunca enfraqueceu através dos séculos. A tecnologia proporciona a possibilidade de aniquilar cada vez mais as pessoas ao mesmo tempo. Estou optimista quanto ao indivíduo, mas não no que se refere à Humanidade. [141] LENIE DE iIONG¦¦A¦ ¦T¦¦RDEN

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As rninhas prirneiras entr-evistas corn Lenie realizar-am-se na presenca de Bloeme Ever-s. O facto cle t¦r-em soBrevivido )untas cr-iou lacos rnuito fortes entre elas. É uma rncrlher sensíve!. calorosa. Eu tinha plena consciência das emocões que estas narrativas provocariarn. El¦ contou a sua histár-ia ser:¦ e;<ageros. ponáer-ando cacla palavra e aludindo aos seus sofrimentos com sirnplicidade. Casámos durante a guerra, em Agosto de 1942. Os mec.¦s sogros, qc.ie viviam em Antuérpia, tinham-se refugiac!o no sul da França, mas não reeebíamos notícias deles. Gostaríamos que se encontrassem i¦¦nto de nós, porém, as leis tornavam-se cada vez mais rigorosas. Não tínhamos o direito de nos dirigir ao Registo Civil. O casamento foi celebrado no edifício da comunidade judaica, situado na Avenida Plantage 10 - Aiine Frank [145] ¦ark. Ncsse dia não pudemos utilizar o ~eléctrico~, em virtude das rusgas. Vimo-nos forçados a passar à clandestinidade em princípios de 1945 e ocultámo-nos em casa de um sobrinho do meu marido, em Haia, até ao final do ano. Por último, denunciaram-nos e metemo-nos num comboio com destino a Amesterdão. para nos instalarmos na residência de um amigo íntimo que nos recomendara por diversas vezes: ~Se alguma coisa Ihes correr mal. venham para minha casa.. Vivemos lá vários meses. na expectativa de uma mensagem da Frísia. que finalmente chegou, e o nosso amigo conduziu-nos a Jura. æ chegadá. oito horas da noite, já principiara o recolher obrigatório. Ficara combinado que iriam buscar-nos e, com efeito, apareceu um carro. com matrícula alemã e faróis camutlados. O meu marido pronunciou a senha e entrámos os três. æ frente, sentavam-se dois frísios. que nos ofereceram cigarros americanos. Partimos e algures, em pleno campo. um deles indicou: -Apeiem-se e dirijam-se para aquelas árvores. !¦ em baixo,

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onde se encontra alguém que se ocupará de vocés. Tudo se desenrolou como fora previsto. Aguardavam-nos um agricultor e a esposa, com a mesa posta. C'l¦ô) - Tomem o que desejarem: chá ou café - convidou ele. A nossa estada durou uma noite. Algumas semanas mais tarde, inteirámo-nos de que os alemães tinham abatido o homem. Na manhã seguinte. o mesmo carro veio buscar-nos para conduzir à polícia fluvial de Delfstrauhuizen, onde nos conservámos alguns dias. Em Abril. levaram-nos ao nosso endereço detinitivo, nas cercanias de Oosterzee, na minúscula casa de uma família de operários - um jovem casal da nossa idade. com duas filhas pequenas. Não havia qualquer conforto e o meu marido tinha de partir continuamente carbureto para alimentar um candeeiro de acetileno. A água era utilizada a conta-gotas às refeições e íamos buscá-la a casa de um vizinho. Lavávamo-nos com a do poço. Uns jovens residentes que nos visitaram disseram: ~Temos de instalar aqui um esconderijo.~ Tratámos , pois. de abrir uma cova no chão. que devia parecer uma espécie de subterrâneo habilmente dissimulado. No princípio de Agosto de 1944, fui acordada pelo barulho em torno da casa. Saltei. com o meu marido, precipitadamente da cama. para nos refugiarmos no esconderijo com o homem que nos albergava. Entrou gente e ouvimos passos sobre as nossas cabeças. Após várias pesquisas. conseguiram [147) descobrir-nos e destruírâm o sobrado à nussa volta. Saímos de pijama e vimos que eran;: SS holandeses. - Vistam-se, para nos acompan¦ar - foi a orden-¦ seca. E, ao nosso protector: -Tu t¦:mbém vens. Conseguimos recolher algumas coisas e, a coberto da noite,

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partimos rapiclarnente de bicicletú em dir¦cção Lemmer. Tinham obrigado a mulher a saír, de camisa, ameaçando abatê-!a se não revelasse onde nos éncontrávamos. No entanto, ela guardara silêncio. No momento em que pudemos trocar algumas palavras. confidenciou-me: -Freferia ser morta a traí-los. Em Lemmer, seguimos para o posto da polícia alemã. onde fomos interrogadd's. Tomaram nota da ~ ncssa identióade e p¦¦rtimos de carro para Heerenvcen e depois para a prisão de Leeuwarden. Aí, fomos registados e obrigados a entregar os nossos bens, relógios e alianças. 0 meu marido ficou encerrado com o nosso protector na parte reservada aos homens e eu numa cela em que se encontrava uma mulher idosa que tazia parte do meu comboio. Permanecemos aí alguns dias. Certa manhã, reuniram-nos à entrada e voltei a ver o meu marido, enquanto o nosso protector continuava encarcerado em Leeuwarden. Achava-se presente urn SS holandês, que nos algemou. Cruzámos assim a vila, como delinquentes perigosos, escoltados por outros SS holandeses. As ruas estavam desertas. Era horríval verificar que nenhuma mão amiga se estendia para nós. Abandonavam-nos à nossa sorte. Seguimos de comboio para Assen. bem escoltados, e conduziram-nos à prisão. Fomos registados mais uma vez e, . devido à nossa condição de disciplinares, colocaram-nos numa caserna especial. Os homens estavam separados ú¦.s mulheres, mas eu podia ver o meu marido durante o dia. Criei uma certa amizade com uma prisioneira da minha idade. com a qual ocupava a ;:arte superior de um beliche. A caserna, de uma su;idade imunda, astava superlotada e dormíamos vesticias para nos protegermos das pulgas. Em Westerbork. uma pessoa travava conhecimento com companheiras de infortúnio muito rapic¦¦,mente. `Jivíamo, todas na mesma atmosfera e reinava um clima de solidariedade. Encontrei-me aí ¦¦i¦ ¦; ¦¦"~;l;¦ ; ;ank pela p¦imeira vez. O meu marido depressa estabeleceu co,tacto mais assíduo com Otto Frank. cor, o qual se entendia muito bem e mantinha conversas assaz formais. Tínhamos igualrrente boas relações com a esposa. na realidade¦ uma mulher extraordinária. Cuidava das filhas. das ¦uais se ocupava continuamente. Anne, em particular. era uma moça encantadora. Atormentava-me vé-las tão ;ovens. sem poder fazer nada para as tirar dali. pois ainda tinham tudo a esperar da vida. Embora

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[149] fosse também o nosso caso, éramos alguns anos mais velhos - eu contava vinte e oito e o meu marido trinta e um. Essa impotência assumia foros de tragédia. Incumbiram-nos da limpeza de baterias, numa espécie de oficina onde tínhamos de extrair a lenhite. Antes, distril¦uíram-nos um fato-macaco azul-escuro, com uma insígnia de tecido vermelho, e tamancos. æ entra¦a do local de trabalho, devíamos deixar o vestuário. Tínhamos de nos agrupar todos os dias, a fim de seguirmos para lá. Eu sentava-me ao lado de Anne e Margot, envoltas numa nuvem provocada pelo pó pardo que lançávamos em grancies caixas. Era horroroso. Um prisioneiro da caserna não dis- ¦ ciplinar que se inteirara da nossa presença conseguiu fazer-nos chegar às mãos um pequeno pedaço de sabão. Para nós, porém, era enorme. A água não escasseava, pelo que pudemos lavar-nos. Outras detidas trabalhavam na cozinha, limp¦vam as casernas ou varriam cuidadosamente as passagens de terra e areia. Os doentes não estavam autorizados a ficar na cama e evacuavam-nos para um hospital. Enquanto havia energias para permanecer de pé, esforçávamo-nos por resistir. Estávamos acumuladas umas em cima das outras, mas comíamos com regularidade, e se a qualidade da alimentação não se podia considerar boa, ao menos não faltava. No entanto, as grávidas ou mães [150] de crianças de tenra idade não dispunham de tudo o que necessitavam, o c¦ue era dramático. Sabíamos que acabaríamos por partir num dos comboios núo tazíamos a menor ideia do que , mas nos aguardava. Embora o nome de Auschwitz não nos fosse estranho. ignorávamos o seu verdadeiro significado e !oca!izacão. Haviam sido encontrados vagões c!e tr¦nsporte de g ¦lo bi¦he¦e¦ rabisI¦OS cados à r¦ressa, todavia as mensagens tinl>am-se difune!ido c%¦ t¦,¦ i¦odo que nodiam não passar de inve¦,c¦es. Assin¦. agua¦dávamos o nosso destino com resinnação.

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Em Westerbork, conheci igualmente. Bloeme. uma pessoa totalmente à parte. Estava só e reunia-se-nos com frequência, como Anne e Margot. Cada uma contava a sua história, e as irmãs Frank falavam da sua vida no Anexo com nostalgia, como de um período isolado do mundo. Seguiram no mesmo comboio que nós. A partida era sempre à terça-feira. O último comboio, o nosso, pôs-se em marcha a um domingo. pois os alemães tinham pressa. Os nomes toram anunciados na véspera. A Sr¦ Frank chorava e apertava as filhas ao peito. Dirigimo-nos para o interminável comboio de manhã muito cedo. Homens dos SS com cães estapostados na plataforma de embarque. Impeliramvam nos para dentro de vagões de gado e os doentes foram [151) içados sem meiguice. Era um espectáculo perturbador. Subimos com a família Frank, devido aos laços de amizade do meu marido e Otto. Tinham espalhado palha no sobrado. Ouando o ¦agão se encheu - cerca de setenta pessoas -, as portas foram aferrolhadas por fora. Podíamos permanecer de pé ou sentar-nos no espaço disponível. Um rapaz instalado junto de um postigo gradeado indicava o rumo que seguíamos. Uma lãmpada suspensa do tecto iluminava-nos debilmente. Passada uma hora, o balde em que fazíamos as necessidades transbordava. Reinava uma confusão impressionante. æs vezes, o comboio conservava-se parado durante horas. Noutro vagão, deportados tinham cor= tado uma abertura no sobrado e deslizavam para a linha. Uma mulher ficou com as mãos amputadas e um homem perdeu um braço. Ainda ¦nos encontrávamos nos Países Eaixos. A Sr.^ Frank conseguira subtrair um fato-macaco e descosia a insígnia de tecido vermelho à luz de uma lanterna de bolso. Decerto supunha que assim os alemães não veriam que eram disciplinares. 0 seu gesto carecia. contudo, de qualquer senti.do, pois à chegada tivemos de deixar tudo nos vagões. Não obstante. aquilo infundia-Ihe coragem; sempre fazia alguma coisa.

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As irmãs Frank dormiam apoiadas aos pais, dominadas pelo cansaço. A atmosfera era muito [152) tensa. O comboio podia descarrilar e corríamos o risco de ser bombardeados. No fundo, desejávamos que tal acontecesse. Mas não ocorreu nada de anormal, nesse aspecto. Alguns deportados sucumbiram durante a viagem. Conservámo-nos assim encerrados dois dias e duas noites. Não tínhamos nada para comer. Em ¦ada altura, o rapaz junto do postigo informou: -Seguimos para leste, em direcção à Polónia. Vamos para Auschwitz. Anne e Margot haviam estendido um pano¦ lavado em Weszerbork, para secar. Eu olhava-as, sem compreender. Estava convencida de que não nos restava a mínima esperança. As pessoas mostravam-se calmas; ninguém chorava nem gritava. Como éramos holandesas, não conhecíamos a barbárie. Mais bem preparadas. as polacas e as húngaras, como veriamos, tinham adquirido a arte de se esquivar às tarefas mais pesadas. O respeito ainda não fora esquecido e os jovens cediam o lugar às pessoas mais idosas. Essa viagem de comboio acode-me ao espírito com frequência durante a noite. Não consigo dormir, oiço o ruído das ródas dos vagões. volto a ver a pequena Anne Frank aconchegada ao pai. Uma noite. o comboio começou a abrandar a marcha. Por fim. as portas foram abertas e um urro fez vibrar os altifalantes. Soldados e polícias farda [153] dos tinham invadido as plataformas de desembarque. Ao emergirem dos vagões, os deportados rolavam uns sobre os outros - os doentes, as crianças e até os mortos. Ordenaram-nos que deixássemos a bagagem no comboio e formássemos - as mulheres num lado e os homens no outro. Dirigimo-nos para Mengele e soou o veredicto: aPara a

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esquerda, para a direita.,¦ Muitas seguiram para a esquerda. Acenávamos com a mão para indicar naté à vistau, mas não as tornámos a ver. Entretanto, eu tinha o período menstrual e consegui ir buscar pensos higiénicos ao vagão. Nlantiveram-nos de pé durante horas. Víamos a enorme fumarada negra, mas ninguém fazia perguntas sobre a sua origem. Homens de uniformes listrados, holandeses. aproximaram-se de nós e abordei um. -Que é aquilo lá adiante? - Nada que Ihe interesse - foi a resposta evasiva. - Vocês vão ficar de quarentena. Assím, hão-de escapar-Ihe. Tínhamos fome e sede e conduziram-nos a uma sala espaçosa, onde ouvi falar holandés. Era Anette, uma moça muito atenciosa que trabalhava na cozinha. Indicou-nos que aguardássemos e não tardou a reaparecer com um recipiente cheio de sumo de beterraba. de que cada uma de nós ingeriu um trago. [154¦ A seguir, desfilámos por ordem alfabética diante de uma polaca. que me pegou no braço esquerdo e cravou uma agulha. Ainda usávamos o nosso vestuário. Tatuada a matrícula, mandaram-nos sair. Encaminharam-nos para outra sala, onde recebemos ordem para nos despir por completo. Depois. raparam-nos o cabelo e a região púbica. Consegui ficar com os ganchos. Durante a chamada, já não nos parecíamos com nada. Eu sangrava abundantemente. totalmente nua, porque um alemão me arrancara as cuecas. No entanto, uma chefe do bloco ofereceu-me um penso. Esta longa tortura foi poupada à minha família. gaseada imediatamente. As mães travavam uma luta terrível para conservar os filhos. As filhas um pouco mais velhas, capazes de trabalhar, eram autorizadas a ficar com elas. Foi o caso de Margot e Anne. que apoiaram Edith Frank o mais longamente possível. As mulheres perguntavam sem cessar: "Viu o meu filho? Diga-mo, por favor.u Eu esforçava-me por Ihes criar esperanças, consciente de como se achavam amarguradas. Muitas lançaram-se contra o arame farpado electrizado.

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Durante os dois meses passados em Auschwitz, a Sr e Frank desenvolveu esforços penosos para manter as filhas vivas, permanecer junto dela e prote [155] gé-las. Falávamo-nos, mas éramos impotentes. Oue Ihe podia aconselhar, senão =Acompanhe-as, quando têm de ir à sanita? Com efeito, mesmo a caminho úas latrinas, podia ocorrer um drama. Se uma pessoa era interceptada por um SS, a sua existência terminava aí, pois eles espancavam as deportadas até ¦ morte. Para eles, um ser humano não valia nada. O nosso trabalho consistia em transportar pedras de uma extremidade do campo para a outra, uma tarefa cuja utilidade nos escapava, pelo que tentávamos reduzir-lhe o ritmo. Mesmo mais tarde, na fábrica de Libau, fazíamos tudo para que as máqui-¦ nas se avariassem. Em Auschwitz, apoiávamo-nos umas às outras. Excedíamos os limites das nossas forcas. As condições de higiene eram abomináveis. Anne Frank foi transferida para o Kratzeblock, com sarna, e Margot reuniu-se-Ihe voluntariamente. As duas irmãs continuaram juntas. A mãe achava-se desesperada e deixara de comer a sua ração de pão. Ajudei-a a abrir um pequeno orifício no tabique de madeira da caserna onde as duas jovens estavam deitadas. O sobrado era relativamente móvel e, desde que se ¦ossuísse a força necessária. tornava-se possível actuar. Esgaravatei no local apropriado e pudemos falar [156) com as raparigas. Margot recolheu o pedaço de pão que fiz deslizar para dentro e partilhou-o com Anne. Pouco tempo depois, partiram, doentes, para Bergen-Belsen. Já sabíamos que Anne, pelo menos. corria perigo de morte. A Sr.a Frank não fazia parte do nosso comboio. Ficou em Auschwitz, no gigantesco Iodaçal sem moscas, aves ou flores.

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Nunca ccmpreendi a razão pela qual um Ser supremo, se existe, não impediu aquele genocídio. æ aproximação do Kippur, judeus polacos tiveram a ideia de pedir que a distribuição de pão fosse transferida para a noite do dia seguinte. Pudemos assim observar ¦ jejum. Afinal, não nos deram nenhum. Antes da partida para Libau, fomos de novo rapadas e desinfectadas. Untaram-nos as axilas e a púbis com uma pomada nauseabunda contra os piolhos. Deram-me um vestido azul-celeste e um casaco demasiado apertados. Sobrevivêramos mais uma vez à selecção de Mengele. Nettie desaparecera. De súbito, vimo-la com um pequeno embrulho, inteiramente despida, o indicador pousado nos lábios. Fora conduzida ao local por onde passavam todas as mulheres antes de gaseadas. Quando a porta se tornou a abrir, deslizou por baixo do braço do SS e evadiu-se com um punhado de roupas. Foi um momento incrível... Voltámos a viajar nos mesmos vagões de gado, [157] escoltadas por soldados. O trajecto foi interminável. Atravessámos a Silésia nevada. Mulheres alemãs aguardavam-nos na estação. As casernas situavam-se numa espécie de vale. Desprendia-se fumo de algumas chaminés, mas haviam-nos tranquilizado: tratava-se de fornalhas de aquecimento. Embora estivessem acesas quando entrámos, não voltaram a funcionar. Morreram numerosas deportadas em Libau, em virtude do clima rigoroso e do trabalho árduo. TrabaIhámos na preparação de uma pista de aviação do outro lado da montanha. Seguíamos para lá, de manhã cedo, sob um frio glacial, pois quando não nevava chovia. Havia mulheres que caíam. para não voltarem a levantar-se. As holandesas não eram as únicas que tinham sido escolhidas para o trabalho, num total de cerca de quinhentas. A princípio, fabricámos correntes para as viaturas dos SS. Participámos igualmente em actividades domésticas, varremos as salas das fábricas e limpámos as sanitas. Havia necessidade de quebrar o gelo. æs vezes, utilizávamos serradura, proveniente da fábrica de caixões. Tínhamos um aspecto assustador, com as cabeças rapadas. Havia um francés que nos abria sempre a porta, dizendo: ¦¦Primeiro, as senhoras..¦ Voltávamos então a

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sentir-nos mulheres. Sabíamos que a guerra se aproximava do fim. Uma chefe de bloco declarou, certa ocasião: -Têm de trabalhar, mas tudo farei para que se conservem aqui. Não precisarão de marchar na neve. como as pessoas que fogem dos russos. Isso náo a impedia, porém. de nos fazer esperar ao ar livre, sob o frio. Cerca de trinta graus abaixo de zero. . . Eu não tinha roupa interior. Estávamos isoladas. sem rádio. e ninguém nos intormava de nada. Por último, deixámos de fazer coisa alguma. Os bombardeamentos aproximavam-se, mas não tínhamos a menor ideia da distância, devido ao eco produzido pelas montanhas. A 6 de Maio, Annie e eu estávamos encarregadas de serrar grandes pedaços de madeira. Acercámo-nos da estrada e passaram uns jovens franceses, que nos disseram: ~A guerra acabou.e Não fomos além do arame farpado. Os primeiros russos chegaram naquele momento. Oficiais reuniram todas as sobreviventes. Exprimiam-se em alemão ou inglês. Cantámos a lnternacional em todos os idiomas. As holandesas não tinham a menor noção da organização. No dia em que abandonámos o campo. polacas e húngaras expulsaram um camponés d¦ sua carroça e roubaram todos os bidões de leite. æ excepção de Anita, Nettie e Lydia, que seguiram outro itinerário. regressámos a pé aos Países [159) Baixos, pernoitando em casa de camponeses. Alguns jovens holandeses efectuavam o percur¦o connosco. Chegámos em princípios de Julho, após trés semanas de marcha na Alemanha em ruínas. Os russos retiveram-nos em Bunzlau, ponto de concentração elos prisioneiros ingleses e franceses que se dirigiam para oeste, como nós. Em fins de Junho. encontrávamo-nos em Leipzig, na zona dos americanos, que nos

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trataram admiravelmente. 0 meu marido foi libertado juntamente com Otto Frank, em Auschwitz. Em Janeiro de 1945, ele tinha as mãos e os pés enregelados e dizia: ¦Não voltarei a ¦ndar. Se quiserem matar-me, que o façam aqui.~ Pzrtiram colunas, mas numerosos deportados, entreos quais Otto Frank, ficaram. A libertação do campo desenrolou-se de forma assaz inesperada. Os alemães organizaram uma chamada, com todos os homens presentes, e a¦ontaram-Ihes metralhacloras. No momento em ¦ue os prisioneiros pensavam que iam ser fuzilados, os russos entraram no campo em pequenas carroças puxadas por cavalos. Os alemães partiram precipitadamente ou foram feitos prisioneiros. Os barracões regurgitavam de sapatos, cobertores e vestuário. Os russos deram de comer aos deportados, em particular pão escuro, e os serviços de saúde apressaram-se a administrar medicamentos. (1G0) Vários prisioneiros, entre os quais o meu marido e Otto Frznk. partiram depois de recuperar parcialmente as energìas. e. apt,s um longo percurso, alcancaram Odessa. Um bar¦:o de transporte de tropas estava prestes a levantar ferro para os conduzir a França. O acolhimento foi extraordinário. A seguir, rumaram na direcção dos Países Baixos. através da Bélgica. Um agente da polícia disse-Ihes: - Vamos partir para Teterigen. com um pequeno grupo. Le¦vo-os para casa de um camponés. onde ficarão até haver um meio de transporte disponível. Cada um seguiu para o seu lado. O nosso grupo conservou-se unido até Masstricht. Um transporte de hortaliça levou-nos a Amesterdão, desci na ponte Bartage e encaminhei-me para o endereço onde devia encontrar-me com o meu marido. A porta foi aberta pelo nosso amigo. que. sem uma ¦al vr¦, me puxou para dentro. Chorei de alegria

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I1- Anne Fre¦k ( 161 ) RON NIE GOLDSTEI'¦i -V ¦N CLEEF Ronnie 5 uma mulher extraordinária. A sua narrarotundamente. A melancolia do olhar tiva marcou-me p u, Como no caso denuncia as provações que conhece tração pr¦das outras mulheres, o campo de concen duziu traços indeléveis na sua vida. a desde o Participou activamente na Resistêncí p ¦ 0 es íríto criativo permitiu-lhe sobreviver. princí io p e fez desenhos Durante a guerra, compôs poemas ces publiinspirados no sofrimento. Teve dois roman cados. Conheceu a familia Frank em ¦esterbork e p¦rtiu para Auschwitz no último comboio de 3 de Setembro de 1544¦ judia Descendo de uma famílía liberal de Haia: ¦¦ O meu p a; visitava a Alemanha com trequência, mas fui criada num espírito muito antigermãnico. Tudo nos im¦elia a a9¦r . Em breve se alojava na nossa cave e orgauma tipografia da Resistência I e¦ ex¦rcia nizámns nossa própria rede: [165) Ronnie 5 uma mulher extraordinária. A sua narrativa marcou-me profundamente. A melancolia do olhar denuncia as provações que

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conheceu. Como no caso o'as outras mulheres, o campo de concentração produziu traços indeléveis na sua vida. Participou activamente na Resistência desde o principio. O espirito criativo permitiu-Ihe sobreviver. Durante a guerra. compôs poemas e fez desenhos inspirados no sofrimento. Teve dois romances publicados. Conheceu a familia Frank em ¦Yesterbork e partiu para Auschwitz no último comboio de 3 de Setembro de 1944. Descendo de uma família judia liberal de Haia: ~ O meu pai visitava a Alemanha com frequência, mas fui criada num espírito muito antigerm¦nico. Tudo nos impelia a agir. Em breve s¦ alojava uma tipografia da Resistência na nossa cave e organizámvs a nossa própria rede; na qual eu exercia [165] funções de ligação, sobretudo depois da prisão do meu pai. Fabricávamos bilhetes de identidade falsos. Após as rusgas de Amesterdão, fomos viver com toda a tamília numa pensão da Rua R: Van-Coen. onde nos conservámos cerca de três meses, para em seguida voltarmos a instalar-nos em casa. Apenas alguns escaparam. Transferi-me depois para a Rua Nieuwe. em Amesterdão, em casa da tia Dora - um esconderijo perfeito num apartamento declarado inabitável em que se alojavam catorze clandestinos. Aquando dos controlos nos comboios, eu esquivava-me sempre satisfatoriamente, pois possuí¦ documentação em regra. Tudo decorreu sem problemas até meados de 1944. Havia necessidade de tomar conta dos clandestinos e arranjar-Ihes elementos de identidade e cartões de racionamento. As pessoas que protegi sobreviveram quase todas. Já não me recordo do seu número exacto, mas foram dezenas. æs vezes, eu conduzia a Haia ou Amesterdão rapazes que se esquivavam ao trabalho obrigatório na Alemanha, pois podia circular lívremente. Com o meu cabelo louro quase platinado, não tinha aspecto de judìa. O medo não se achava ausente do meu quotidiano, sem dúvida, mas animava-me uma força de vontade inabalável. Na realidade, actuava sem reflectir.

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(166) Fui denunciada em Junho de 1944. Era seguida por elementos do SD sem que me desse conta. Tinha um quarto na Rua Acacia, em Haia, perpendicular à Avenida Meerdervoort. Certa rnanhã, encontrei no final da linha doze uma antiga companheira de estudos, que tremia intensamente e tinha a boca coberta de sangue. - Podes ajudar-me? - implorou com voz trémula. - O nosso apartamento foi revistado. Consenui fugir, mas não tenho absolutamente nada. - Voltamos a encontrar-nos amanhã à noite;ndiquei.-Nessa altura. entrego-te um bilhete de identidade. O nosso agente de ligação aconselhou-me a desconfiar, convencido de que se tratava de uma armadilha. Não¦obstante, a meio da noite, conduzimos a jovem a casa da minha amiga, que me levou ao café Lensvelt Nicolaas, na Avenida Meerdervoort. onde havia um largo espelho. Interrompeu-se bruscamente ara me apresentar a um membro do SD, Kaptein, ¦ uma personagem sinistra, que. a artir de então. me mandou vigiar. Em Junho, desloquei-me a Amesterdão, para me munir de bilhetes de identidade virgens. Não tinha comigo nada de comprometedor, o comboio estava superlotado e eu viajava de pé no meio de muitos outros passageiros. na plataforma entre duas carruagens. De súbito, surgiram os polícias, um dos [167) quais disse: ¦Olha lá está ela.¦ Obriqarsm-me a i acompanhá-los a outro compartimento. enquanto me ¦ esforçava por dissimular o medo. Cunduziram-me à Rua Euterpe, em Amesterdão. para interrogatório. Tive a presença de espírito de declarar: -Não compreendo o que pretendetn de mim. Sou judia e procuro

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um quarto. E expliquei que os meus pais tinham sido presos, o que não correspondia à verdade, no caso de minha mãe. Fui transferida para a prisão de Wetetingschans, onde me encerraram numa cela com outras mulhe, res. Éramos cerca de quarenta, depois de chegarem outras - umas quase desvairadas. embora algumas parecessem aliviadas. Reinava uma tensão terrível entre as clandestinas. Na primeira noite dormi profundamente. privada de um peso enorme. Passados uns dez dias, enviaram-nos para Werterbork. Diante da porta da prisão encontravam-se vários ueléctricosu. Tínhamos escrito cartas às nossas fam¦ílias e amigos para comunicar que fôramos presas e pedimos ao condutor de um que metesse as cartas num marco postal. Está bem.. acedeu. ~Deixem-nas na rede da bagagem.. Um SS subiu para o carro e entregou-Ihe o maço. Partimos para Westerbork de com¦oio. Entre [t68) tanto, não compreendíamos o que se passava. Oue tencionavam fazer de nós? Em Westerbork, tivemos de revelar de onde vínhamos. quem éramos. se possuíamos dinheiro ou jóias e os nossos pais ainda viviam. Todas as respostas eram cuidadosamente anotadas. A seguir, confiscaram-nos o vestuário e distribuíram um fato-macaco e um par de tamancos a cada um. A princípio; julguei que não conseguiria andar com calçado daquela natureza, mas acabei por me habituar. Enviaram-nos para uma caserna de disciplinares. Durante a nossa permanência. não partiu qualquer comboio. Cheguei nos primeiros dias de Julho e a partida do último efectuou-se em Setembro. Mandaram-me trabalhar na Iimpeza das baterias. A comida podia considerar-se aceitável e tínhamos o direito de receber encomendas. Dispúnhamos de frango. Ovomaltine. flocos de aveia e até escovas de dentes. No campo não disciplinar. havia uma Qequena Ioja. Davam-nos dinheiro que só circulava no campo. Conheci a família Frank em Westerbork. Fiquei surpreendida quando me ìnteirei de que tinham permanecido escondidos no mesmo local durante dois anos. Esforçávamo-nos sempre por separar as crianças dos pais e até os casaìs. O risco era demasiado grande. Se denunciavam um. todos os outros eram

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surpreend dos no mesmo endereço. ¦tssl Os Frank achavam-se muito deprimidos. Tinham acalentado a esperança de escapar à captura, até ao último momento. Haviam dado provas de um engenho extraordinário. Era uma família unida, enternecedora. No entanto, tive pouco contacto com eles. aue quase se limitava a saudarmo-ncis. Chegavam regularmente comboios de Amesterdão e às vezes encontrávamo-nos com pessoas conhecidas. "Oue drama vermo-nos aqui!, dizíamos. Estávamos horrivelmente nervosos. Inteiráramo-nos. através dos gendar¦nes que efeetuavam a vigilância, de que Paris tinha sido libertada. ~Agora. já não nos pode acontecer mais nada~. concluímos. ccnvencidos de que permaneceríamos em Westerbork. O que constituía um erro. evidentemente. Uma noite, um membro do serviço da ordem acompanhado por um alemão irrompeu na caserna para anunciar os nomes. Escutámo-lo dominadas pelo medo. As que ficavam procuravam consolar as outras: ~Vocés não irão para Auschwitz, mas para Bergen-Befsen." Supúnhamos que era esse o campo mais próximo. A família Frank partiu no mesmo comboio que eu. Impeliram-nos para dentro de vagões de gado. As pessoas idosas e doentes eram levadas em carroças de rodas enormes. Eu não compreendia o Que os alemães querìam fazer com elas. Também subiam para os vagões órfãos, cujos familiares estavam L170) esconcfidos ou em fuga, e o seu desespero oprimia-me. Seguiram igualmente para Auschwitz. Os vagões eram fechados hermeticamente, mas descortinávamos os carris por entre frestas no sobrado. i¦um perto do nosso, alguns deportados !ie.viam-se munido de um serrote e material para fugir. 0uatro pessoas conseguiram evadir-se. A tamília Frank não se encontrava no meu vagão da composição extremamente longa. Durante a via gem, tentámos espreitar entre as tábuas, para termos ¦¦ma ideia da nossa situação, e alguém anunciou uue atravessávamos Katowice. ~Vamos para Auschwitz" acrescentou, e experimentámos um abalo terrível. O comboio parou finalmente e homens de uniforme listrado

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abriram as portas. Obrigaram-nos a deixar ficar a bagagem - sacos em que guardáramos os parcos haveres. Revestia-se tudo de irrealidade. Eu via pessoas ciescrever arabescos como num ringue de patinagem. iluminadas pela atroz luz amarela. - Oue faz toda aquela gente? - perg¦ntei a uma companheira de infortúnio a meu lado. - Corre. Tratava-se de um castigo infligido aos deportados, que consistia em correr à volta do recinto da chamada. Depois. fomos submetidos à selecção. Um gesto (171) de ¦lengele era suficiente. Os jovens seguiam para a direita e as pessoas idosas e crianças para a esquerda. A minha tia desapareceu. O meu tio aproximou-se e perguntou-me: -Viste a Suze? - Vou perguntar a um daqueles homens de farda listrada. Eram holandeses. e a resposta foi terrível: ¦Já morreu, com os outros.¦ Imaginei que não podia ser. O homem não era normal, queria saber se eu conservava alguma jóia. A seguir, mandaram-nos despir. Apesar de ser ainda uma pessoa muito recatada, não me restava qualquer alternativa. æ semelhanca de muitas mulhe-` res, eu continuava a ter o períoclo menstrual. aTira as cuecasu, bradou um alemão. Eu usava uma espécie de pequena cinta. e ele acercou-se para ma arrancar. Muiheres polacas tatuaram-nos números de matrícula nos braços. Permanecíamos de pé, inteiramente despidas. Os homens voltavam-¦os as costas e também tinham de se desrrudar. Depois, passámos ao chuveiro. Precisávamos de mergulhar os pés numa água violácea para a desinfecção. Entrou um SS de perna de pau. que pegou numa mangueira e nos encharcou. Para nos secarmos, utilizámos pedaços de pano. Saímos de lá completamente despida5. 0ecorria o més d¦ Setembro e já tazia frio. Distribuíram-nos algumas roupas, mas não cuecas, após o que empreendemos o caminho de Birkenau. A caserna achava-se equipada com beliches de vários níveis em que chegavam a instalar-se nove mulheres. Quando querí¦ mos voltar-nos. tínhamos de o fazer todas ao mesmo

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tempo. Na primeira noite, uma deportada aventurou-se a sair e foi abatida. Gemeu horrivelmente até amanhecer, altura em que a encontraram sem vida. Muito cedo, quando estávamos alinhadas para a chamada. traziam-nos um bidão enorme cheio de uiiza mistela repugnante a que chamavam café e na qual mergulhávamos os nossos recipientes. Voltei a encontrar Anne Frank numa dessas distribuições. Encontrava-se à minha frente, envolta num vestido demasiado pequeno para ela, e tiritava. Bebemos do mesmo tacho, sem trocarmos uma ún¦ca palavra. æ noite, não nos atrevíamos a sair para ir às sentinas e servíamo-nos de um dos recipientes, que depois lavávamos o melhor possível. Haviam-nos prevenido no dia da chegada: KEvitem beber água para não apanharem o tifo.r As retretes compunham-se de selhas de paredes altas. com uma tábua por cima e uma abertura circular, na qual tínhamos de nos sentar. As húngaras. porém, preferiam pôr-se de pé nela e agachar-se. Algumas até se instalavam aí para comer a sua [172) [173) ração de pão. As holandesas nunca foram ca¦azes de as imitar. Passadas duas semanas, contraí escarlatina. Havia deportadas que se lançavam sobre a vedação electrificada. e os corpos permaneciam aí expostos. para exemplo desencorajador. Explicaram-me que os prisioneiros desaparecidos tinham sido gaseados. porque se aehavam incapacitados para trabalhar. A quarentena era uma maneira de testar a nossa resistência. Imersa numa espécie de estado de embrutecimento, efectuei todas as espécies de coisas surpreendentes e terrivelmente perigosas de que não tinha a menor consciência. Procederam a uma selecção e Anne e Margot ficaram na minha tila. A prímeira estava muito calada, recolhida em si mesma. O facto de ter sido internada num campo depois de meses de uma existência muito protegida marcara protundamente as duas irmãs, como era bem visível. Haviam perdido as energias para lutar, enfrentar as dificuldades. Entretanto. eu enfraquecera notavelme¦te e tinha um ferimento profundo no ombro. O Dr: Knorringa, que se ocupava de nós, aconselhou-me a dissimulá-lo. Havia uma pequena parede, da altura de uma mesa, em cima da qual as chefes do bloco deambulavam, de chieote em punho. Transp¦-Ia num salto ráQid¦

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e aproximei-me da pessoa que irlscrevia [174) as matrículas dos deportados. pois a selecção dizia respeito à partida de um comboio. "Passei!¦, anunciei com desprendimento. Tratava-se de um gesto muito audacioso. que aprendera no decurso das minhas actividades na Resistência. Anne e Margot não possuíam o mesmo treino. Nos primeiros tempos. não sabíamos nada de Mengele. Não o conhecíamos. Mas as húngaras. que tinham uma experiência mais vasta. chamavam-Ihe ¦¦anjo da morte¦. porque aparecia com regularidade para escolher deportadas. Um dia. incluiu na lista uma moça muito jovem e ticámos profundamente chocadas. Tomou-a nos braços e levou-a para uma longa viatura do exército alemão. na qual entraram igualmente quatro raparigas holandesas. que. com um heroísmo incrível, partiam para as câmaras de gás. Durante o período em que Anne. Margot e eu estivemos internadas na caserna dos doentes. a Sr" Frank ocupou-se de mim e Frieda. Nunca se afastava muito das filhas e arranjava maneira de Ihes levar um pouco de alimento. Acabámos por nos tornar assaz hábeis. Se traziam uma panela que não se nos destinava. aguardávamos o momento propício e corríamos para lá, a fim de roubarmos batatas ou qualquer outra coisa. que deQois partilhávamos. Ouando não havia chamada. [175) saíamos sistematicamente para nos apoderarmos de comida. A Sr.¦ Frank procedia do mesmo modo. Ouando estávamos mais doentes, era ela que ia procu;-ar provisões. Tratava-se de uma mulher muito generosa. Ela abrira um buraco por baixo da parede da caserna e chamava-me. porque. como tinha adoecido em primeiro lugar, eu era a mais corajosa. Entregava-me então pão, pedaços de carne ou ainda sardinhas de barrica roubados dos armazéns, que d¦pois part¦lhava com Anne e Margot. Nos primeiros dias da minha escarlatina. sujei a cama enquanto dormia, pois sofria de uma diarreia. horrível. Sentia-me inteliz e desamparada, e não dispúnhamos de sabão nem água. Apareceu uma chefe de bloco, que ordenou: ~Lá para fora. lá

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para fora!u lndicou-me uma torneira na parede e entregou-me uma pequena bacia esmaltada, para que lavasse a roupa da cama. Permaneci horas de pé e por várias vezes julguei que perderia os sentidos. Passei o dia a executar aquela tarefa imbecil. Terminei-a finalmente, mas fui obrigada a dormir entre os lençóis húmidos. No entanto, não contraí a pneumonia que receava: Tínhamos momentos de intenso desespero. Não podíamos contar com ninguém para nos ajudar. Cada uma devia desembaraçar-se como soubesse e pudesse. [176) Eu p¦rtilhava um catre estreito com a Srá Frank. no qual nos instalávamos em poslções contrárias. æ chegaáa. cortaram-nos o cabelo curto. mas durante a minha doença todas as cabeças foram rapadas, pelo que escapei pelo menos a essa provação. As minhas companheiras iam ver-me da entrada da caserna, mas eu não reconhecia ninguém. Notámos um objecto duro na nossa enxerga <Fe aalha e descobrimos um relógio de bolso de platina. uVamos comprar um pedaço de pãon, murmurei à Sr.¦ Frank. No entanto, obteve um pão inteiro, autêntico milagre. um pequeno pedaço de queijo fedorento e meia dúzia de centímetros de chou¦ico. o que nos proporcionou uma refeição maravìlhosa. Uma holandesa que sc deitava perto de mim. víra-me entrar e uivava: ~Ajuda-me, Holanda!¦ Padecia de tifo particularmente virulento, e não ousei aproximar-me. Ao invés. repliquei: ~O médico talvez te possa aliviar.n Foi trans¦ortada para fora da caserna numa maca. entre os mortos. Antes de sair. olhou-me pela última vez e voltou a gritar: ~Ajuda-me. Holanda!¦ Contive as lágrimas com dificuldade. Era odioso abandonarem os cadáveres até os levarem em carroças, que também serviam para transportar as selhas das sanitas. Aquelas cenas pareciam provir de outro mundo. As irmãs Frank assi5tiram aos mesmos horro

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)2 - ¦rme Frank ( T i 7 ¦ res. Achavam-se, como nós. angustiadas, oprimidas. confusas por presenciarem semelhante barbárie. Anne e Margot tinham contraído sarna. Suponho que haviam chegado ao bloco reservado aos doentes sem serem sujeitas à selecção. Mostravam-se muito reservadas e não se misturavam com as outras. Levantavam-se por alguns minutos aquando da distribuição de comida, que partilhavam, e trocavam então algumas palavras com as outras. Durante esse período. cantei muitas vezes para elas, a tim de ás apoiar moralmente. ¦Canta-nos alguma coisa, Ronnie!~, pediam-me. Na realidade, isso incutia um pouco de paz no ambiente. Havia entre nós úma jovem muito terna, cujo nome já esqueci. Um dia, rogou-me que interrompesse a canção, pois o marido tinha o hábito de a trautear. Não me ocorrem outros pormenores a seu respeito -mergulharam nas profundezas da minha memória. As vezes, o Dr. Julika conseguia obter para nós um comprimido de aspirina ou carvão para a desinteria. Não exerciam o menor eteito. mas o gesto consolava-nos. A selecção produziu uma razia na nossa caserna, onde grassavam a escarlatina e o tifo. e reuníamo-nos em grupos de cinco ou seis. Uma noite, apareceu o Dr. Julika acompanhado de uma enfermeira, a qual recomendou que nos mantivéssemos silen [178) ciosas dia e noite, para dar a impressão de que a caserna estava vazia. Mais tarde. naquela noite, conduziu-nos ao bloco próximo reservado às deportadas que sofriam de sarna, Voltámos. assim, a ver Margot e Anne, assim como a Sr.a Frank. Esta última vagueava em torno da caserna, como uma mãe a proteger a prole, e dava-nos de comer. Elas faziam parte de um grupo composto de habitantes do Anexo e alguns judeus alemães que se apoiavam mutuamente. Na altura, c;esconhecíamos tudo o que se referia àquele esconderijo. As duas irmãs Frank tinham o corpo coberto de nódoas negras e pústulas. e contraía-se-me o coração ao vê-las. Aplicavam-se um pouco de unguento, mas pouco ou nada adiantavam com isso. Estavam tristes. gravemente doentes. Tinham-nos contiscado o vestuário. pelo que estávamos totalmente nuas. Partilhávamos. em grupos de duas, um catre e um cobertor e estranhávamos não ver um número de doentes mais elevado. Na maioria das vezes.

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as deportadas em semelhante estado eram exterminadas. Naquela caserna, a selecção desenrolava-se de uma forma incompreensível. Mulheres válidas eram enviadas para a câmara de gás. Eu alimentara-me bem em Westerbork, pelo que não me. achava muito debilitada e postava-me diante de Mengele numa [179] atitude bem determinada. Escapei assin, à aposiçào de uma cruz à frente do meu nome e pude voltar para o catre. Anne e Margot, aterradas, procuravam refúgio atrás da mãe. A nossa vida achava-se suspensa da decisão de Mengele. Anne falava-me com trequéncia de uma moça muito jovem ajoelhada nas pedras da rua principal do campo. Ouando passavam junto dela, os SS batiam-Ihe, tortura horrível que se prolongou por vários dias. A pobre rapariga agonizava. Deixada sem comida, ninguém se preocupava com ela. Havia muíto perto um depósito de água à flor do solo, e Anne receava que a infortunada caísse dentra. Não sobreviveu ao campo. Quando contraí a escarlatina, ouvi dizer por várias vezes que morreria. As enfermeiras polacas opinavam com insisténcia: =Ponham-na lá fora, que não resistirá.. Gritei que não queria morrer e as mínhas companheiras arranjaram-me um lugar em troca de pão. Tive também de Ihes emprestar o vestido, que nanca me devolveram. Pouco tempo antes da nossa partida para Libau, tivemos muito medo. Já não me encontrava no bloco das doentes contaminadas pela sarna. Durante a noite, conduziram-nos para uma caserna_ magnificamente decorada, com cortinas diante das camas e cobertores colori [180) dos. Pensámos que eram as nossas últimas horas de vida e eles pretendiam torná-las o menos penosas possível ao deixar-nos dormir aí. Nâo aconteceu nada. Em Libau, eu e as minhas amigas tornámo-nos mais unidas. Comecei a perder as forças. Beppie procurou-me, e imagine-se que escrevemos então uma comédia musical e uma opereta, que montámos juntas. revezando-nos constantemente junto da porta. para evitar que as chefes do bloco se dessem conta. Vivemos momentos de alegria alucinada. Custa a crer, ¦o evocá-lo

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agora, mas foi na verdade o que aconteceu. Em Auschwitz não tínhamos vontade de rir como em Libau. onde o regime era menos severo. Todavia. auós uma semana, as alemãs mudaram de atitude e principiaram a maltratar-nos. Gritavam e obrigavam-nos a permanecer de pé ao longo de horas, às vózcs durante uma noite inteira, afundadas na neve até aos joelhos. Não chegou qualquer auxílio exterior. Aviões. russos sobrevoavam o campo e lançavam panfletos. Houve igualmente um bombardeamento deles que ¦tingiu um campo dos SS. Dominava-nos profunda amargura. De vez em c¦uando. readquiríamos coragem. mas não acontecia nada. [t81] Eu tinha a convícção de que nos encontrávamos num lugar que todos haviam esquecido. Dispúnhamos apenas do nosso corpo e. em alguns casos, um vestido e uma jaqueta. Em Auschwitz, eu não tivera possibilidade de escrever, porém em Libau pude constituir uma pequena colectânea de poemas. Como não havia papel, utilizava o colocado sob a enxerga. Arrancámos pequenos pedaços e uma linha do co5ertor e fabricámos uma agulha com um troço de arame fino. Cosemos assim um pequeno livro. Na forirsatura da chamada. pendurávamos nas costas umas cuecas lavadas na neve, que o Sol então secava. A trás das montanhas, Avistei o voo das aves E em pensamento acompanher-as. Pousei por um instante no arame farpado Atrás das montanhas. até ao apito. Na formatura da chamada, congelada na imobilidade Contemplei o So!-poente; Em pensamento desapareci com ele, Atrás das montanhas, para a pátria que eu desejava, para a mão de minha mãe que aguardavam o meu regresso e orava pela paz.

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[182) Fomos libertadas a 8 de Maio. Vimos as chefes do bloco partir de bicicleta. Não obstante, naquela manhã, sujeitámo-nos à cl¦a;iiada. O portão abriu-se de repente e jovens holandeses que trabalhavam connosco na fá5rica, transpuseram-no, munidos de um rádio. - Saiam! - gritaram-nos. - Não têm nada que continuar aqui ! - Estão livres! - exclamavam outros. - Vêm aí os russos! A notícia provocou-nos profunda agitação e saltámos-Ihes virtualmente ao pescoço. Inteirámo-nos em primeiro lugar de Theresienstadt, onde se declarara o tifo e aguardavam auxílio médico com urgência. Abandnnámos o campo a 18 de Maio. sem sabermos que rumo seguir. Assim, deslocávamo-nos ao acaso numa carroça puxada por uma mula, confiscada aos camponeses. Quando chegámos à fronteira checa. tivemos possibili¦ade de tomar um comboio para Praga, após um percurso de dois dias. Mantivemo-nos naquela cidade três ou quatro semanas. Explicaram-nos que o regresso aos Países Baixos já não fazia o menor sentidn. Haia fora destruída, sem qualquer sobrevivente. Mais tarde, fui informada de que somente o bairro de Bezuidenhout tinha sido bombardeadlo. A minha mãe não vivia muito longe daí. (183] De Praga, seguin>¦s num transporte belga até Pilsec, cnde cs russos nos depositaram nas mãos dos americanos. Camiões do exército conduziram-nos a 8amberg e permanecemns uma semana numa c¦serna imensa. Depois, empreendemos lentamente o re¦resso aos Países Baixos. 0 meio de transporte era pouco confortável, porém o ambiente atectuoso. A Cruz Vermelha holandesa esperava-nos em Maastricht, com uma chávena de café. A recepção nos Países Baixos foi maravilhosa. Num convento em Vlodrop, no Limburgo, fomos examinadas e radiografadas. A pausa teve breve duração, para em seguida nos dirigirmos de carro para Eindhoven, onde dei entrada num hospital instalado pela firma Philips. porque tinha febre. Apesar dos meus protestos, fiquei internada no serviço dos doentes de tifo. O nosso grupo prosseguiria viagem e eu queria acompanhá-lo, todavia o médico que me examinou declarou que não me achava em estado para tais aventuras. Isso não me impediu. no entanto. de protestar:

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-Já não tenho tifo! Vou vestir-me e viajar com elas! Eu usava umas calças dos SS, uma blusa-camisa e um par de sapatos com solas de pau. Durante a viagem, a febre aumentou, mas à medida que me aproximava de Haia, sentia as forças reaparecerem. r: ¦¦ Em Bois-le-Duc. deram-nos pão e um pedaço de broa de mel. Continuávamos terrivelmente famintas. A seguir, tomámos o barco para Roterdão e o combcio até Haia. Uma amiga que trabalhava no estúdio FIFO e fazia parte da rnesma rede vivia em Spoorwijk, onde o comboio parava. Apeei-me e caminhei ao longo da via férrea, ansiosa por averiguar o que acontecera a minha mãe. Fui interceptada por dois homens -Onde vai? Foge? -Vou ao número 9 da Rua Van Vloeten. - Se calhar é uma colaboracionista. Tive de me esforçar quase até ao desespero para os convencer de que fora deportada. Por fim, conduzíram-me à estação na bicicleta de um deles, mas o comboio já partira para Amesterdão. - Não volta para casa? - perguntaram-me. -Volto. mas não sei se ainda está de pé. Indiquei o endereço e aconselharam-me a procurar o número 4 da Rua Pletterij, onde viviam amigos da mãe daquele que me transportara. Com efeito, essas pessoas foram chamar a minha mãe, que morava em frente. la todas as tardes esperar-me à estação, mas começava a perder a esperança. porque regressámos várias semanas após a Libertação. Naquele dia, não o fizeta. [184) [185] Conversámos ao longo de toda a,:oite, e ela não se cansava de repetir: - Mas como foi isso possível, minha filha? Na verdade, eu descrevi coisas aparentemente inconcebíveis.

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Como reencontrar a paz Após anos consecutivos De urros das kapos, 0o silvar dos chicotes, Do martelar das botas Dos cantos a plenos pulmões? Vi-as, tão numerosas, avançar para a morte IVum caminho de cinza em que os seus passos Se arrastavam para a porta. A fumarada silenciosa Escapava-se das chaminés Arrastada pelo vento E senti-me nua, apesar de vestida. Nada se pacifica Os chicotes silvam As imagens surgem Vitreas, macilentas, pardas do fumo, æ naite, quando quero adormecer. ORIGEM DAS FOTOGRAFIAS t-Colecção de Hannah Pick-Goslar. 2 - Colecção de Jan Wiegel. 3 - Colecção de Hannah Pick-Goslar. 4 - Colecção de Anne Frank Stichting. 5-Colecção de Hannah Pick-Goslar. 6 - Colecção de Hannah Pick-Goslar. 7 - Willy Lindwer. 8 - Colecção de Janny Brandes-Brilleslijper. 9 - Colecção de Rachel Van Amerongen-Frankfoorder 10 - Colecção de Bloeme Evers-Emden. 11- Colecção de Ronnie Golstein-Van Cleef. t2 - Colecção de Lenie de Jong-Van Naarden. f3-Rijkinstituut Van Oorlogsdocumentatie. 14 - Rijkinstituut Van Oorlogsdocumentatie. t5 - Colecção de Miep Geis. 16 - Rìjkinstituut Van Oorlogsdocumentatie. t7 - Colecção de Miep Geis. 18-Rijkinstituut Van Oorlogsdocumentatie.

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fNDICE POROUE ESTE LIVRO? INTRODUÇæO.. RESUMO HISTóRICO. HANNAH ELISABETH PICK-GOSLAR... JANNY BRANDES-BRILLESLIJPER . 61 RACHEL VAN AMERONGEN-FRANKFOORDER.. ... 103 BLOEME EVERS-EMDEN LENIE DE JONG-VAN NAARDEN . . 143 RONNIE GOLDSTEIN-VAN CLEEF . . . 163 ORIGEM DAS FOTOGRAFIAS.. OFICINAS GRåFICAS DE LIVROS DO BRASIL LISBOA Por MICHEL ALBERT Após a derrocada do comunismo - aliás consequência natural da ineficácia da sua teoria económica na prát;ca - o capitalismo ficou sozinho em campo, livre de qualquer concor¦ rência. Mas, alcançada a hegemo¦ nia, voltou a tornar-se perigoso e o nosso futuro oscila doravante entre esta vitória e este perigo. Como? É o grande debate Capitalismo contra Capitalismo que, para já decorre na Europa, na América e no Japão mas que, em breve, interessará também os países de Leste. Este debate opõe dois modelos de capitalismo: o modelo nneo¦americanou, assente no sucesso indivi¦ dual e no lucro financeiro a curto prazo, e o modelo nrenano¦,, praticado na Ale¦ manha, na Suíça, no Benelux, na Europa do Norte e, com variantes, no Japâo, privilegiando o sucesso colectivo, o consenso e o longo prazo. A rivalidade entre os dois modelos faz-se já sentir e reflecte-se fortemente em todo o nosso futuro.