Os viventes - Carlos Nejar

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Os viventes é obra única, originalmente lançada em 1979 e definida pelo crítico literário português Eugênio Lisboa como um livro que reúne “algo de austeramente bíblico” e uma “poesia fraternal, que julga, mas conforta, e nos dá fórmulas simples de vida e entre-ajuda”. Nestes poemas, Carlos Nejar não expressa apenas sua profunda afeição pelos seres reais e imaginários, mas procura resgatar de cada um a sua anima, aquela essência tantas vezes esquecida ou menosprezada. Para o poeta, todas as criaturas – do torturado Jó ao explorador Roald Amundsen, de um inseto ao filósofo Friedrich Nietzsche – estão de alguma forma unidas, pois “não há pátria/a quem ama”. A esta edição foram acrescentados 300 novos poemas.

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Carlos NejarOS VIVENTES

3ª Edição – COM MAIS DE TREZENTOS NOVOS POEMAS-VIVENTES

TÁBUA – OS VIVENTES

I ANEL DO VENTO, 21

II ARCA DA ALIANÇA, 29

III OFÍCIOS TERRESTRES E DIVINOS, 87

IV ENTRE O BEM E O MAL: BALDEAÇÕES, 157

V CAVERNA DE ARTISTAS E BUFÕES, 221

VI A NAU DOS INSENSATOS, 271

VII O CORO DOS VIVENTES, 413

VIII LIVRO DAS BESTAS E DOS INSETOS, 415

IX A CASA DOS NOMES, 467

X TERMINÁLIA, OU MINUDÊNCIAS, 523

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS, 543

ÍNDICE, 547

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IANEL DO VENTO

1.

Aqui tudo é julgamento.Todos os atos vividostamborilam neste eitoe sou de mim saltimbanco.E do que vem. Os viventesse apresentem. São tão reaisquanto sois. Não me desmentem.

2.

Sabei que esta forma humananem se compra nem vende.Tampouco a força que jazsob a alma, renitente.

Ou a renitênciade ver, se desvendonas águas do poemaou no seu olhar latente.

É vosso o que nele vedes.

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3.

Viventes, o que sabeis- que mundo o poema!-?Em sua terra nada se queima.

Viventes, o que sabeisda morte e o restose nem sabemos de nósno anel do vento?

Se nem sabemos de nósou donde o ingressona condição de estar só com a alma ao menos

na alma de quem vos amadentro do poema.Viventes, o que sabeisda morte? O excesso

vinga com sua lei.Tempo viventecom estes que somos nóse os que descendem.

Viventes, o que sabeis deste poema?Aqui está vivo quemvivendo teima.

E cria a sua própria vez.

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4.

Vos ponho nomes– nomes não tendes –,sois meus parentesintransponíveis.

Ou apenas tendesaqueles nomesque vos pressentem:sinete ou risca.

Aqueles nomes de manjedouraou julgamento.Nomes avulsos

e indissolúveisa quem procuradesnomeá-los.São criaturas

os nomes, naves.E se designamao navegarem.

5.

Nós, os viventese conviventesde um mundo antigo.

A rima é cântaroperto da fonte.

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Cântaro à noitecântaro, cântaroo ritmo um jorroque se levanta.

6.

Vos ponho nomesou nome pondesem quem vos põe.

Como se o lançodalguma escadafosse alcançadoantes dos pésou a digital de um ser viesseantes do mal.

Ou nome tendes antes de mim.

7.

Povo submissojunto ao meu peito,contigo fico.O mais esqueço.Contigo ficoquando for pátriao nosso corpo,esta fuligem.Povo submissojunto ao meu peito,

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contigo fico.O mais esqueço.Contigo ficoquando for pátriao nosso corpo,esta fuligemde sofrimento.

O mais nos foge.

8.

Viventes, jazemosdesavindos.

Em força obstinada mundo sempre domingo.

O galo não cantou.Acordou um juízo.

A aurora sabe dosaras coisas.

Que outros frequentama criação?

Tempos de um só,sopesados e vivos.

Pode a moléstia mortalser entretida?

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Apodrece a aurora.

Não nos conformamoscom o que não é luz.

Nossa pobre glóriasujeita ao vento,à intempérieda solidão.

9.

Não há pátriaa quem ama.

Porque não possoseparar o amordo amanteque se faz a pátria dele. E ser da solidãoé se perder.

10.

Ainda voltarei a estes campos,a este chão, ao zumbidodas abelhas pelo tempoquerendo voejar e nelas preso.

Ainda voltarei aos meus viventes para vê-los andar comigo às faldas da montanha.

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Ainda voltarei: os mortos sabemsoluções piedosase as murmuram de ouvido.