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Os zapatistas e o significado da experiência de autogoverno indígena e camponesa no México contemporâneo Cassio Brancaleone * I. Introdução História, velha toupeira, você fez um bom trabalho! Rosa Luxemburgo Não foram poucas as vozes representativas entre uma certa intelectualidade de esquerda que elevaram o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) à condição de emergente guerrilha pós-moderna 1 . Aliás, entre os próprios porta-vozes dos zapatistas, semelhante alusiva pode ser observada em alguns dos seus primeiros comunicados. Não obstante, creio ser desnecessário defender o estabelecimento de um novo marco de temporalidade para substantivar os traços característicos de sua “contemporaneidade mais recente”, ainda que justificado como recurso para evidenciar os novos elementos que situariam o levante armado zapatista como diferente de tudo o que lhe antecedeu em matéria de movimento popular de matiz revolucionário. É expressamente claro que o fenômeno chiapaneco abre novos horizontes para a compreensão dos processos sociais em curso na América Latina e no mundo, mas, se queremos lhe atribuir algum estatuto diferencial de temporalidade, que seja o de último movimento revolucionário expressivo do século XX e o primeiro do século XXI 2 , sem a necessidade de abandonar os jardins suspensos da modernidade. O conteúdo da reivindicação zapatista, celebrado nas palavras de ordem “democracia, liberdade e justiça”, é visceralmente moderno, enraizado no tema politicamente universalizado da dignidade humana, evocando o periclitante e insone espectro do assim entendido “projeto inconcluso da modernidade”. Fruto de velhas e novas condições e processos sociais, contradições sistêmicas e conjunturais, o zapatismo vem à luz como um daqueles tipos de fenômenos-coringa, capazes de condensar em si os variados aspectos do que é ascendente e decadente, nascente e poente, superficial e subterrâneo, evidenciando pistas sugestivas de múltiplas tendências sociais em movimento. Com isso nos adverte que a história, como a velha toupeira, ainda é capaz de pregar peças. Além do mais, sua especificidade remete a um certo topos, muitas vezes ignorado ou sublimado, de uma dada região da * Doutorando em sociologia pelo IUPERJ e bolsista do CNPq. Email: [email protected] . 1 Cf. BURBACH, Roger (2001). Globalization and Postmodern Politics: From Zapatistas to High-Tech Robber Barons. Pluto Press,London; CARRIGAN, Ana (2000). “Chiapas, The First Postmodern Revolution”. In: PONCE DE LEÓN, Juana (ed). Our Word is Our Weapon: Selected Writings of Subcomandante Marcos. Seven Stories Press, New York.; HOLLOWAY, John (2003). Mudar o mundo sem tomar o poder: o significado da revolução hoje. Viramundo, São Paulo. 2 Cf. CECEÑA, Ana Esther (1998). “De cómo se construye la esperanza”. Em: Chiapas, n.6, Instituto de Investigaciones Económicas, UNAM-Era, México.

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Os zapatistas e o significado da experiência de autogoverno indígena e camponesa no México contemporâneo

Cassio Brancaleone* I. Introdução

História, velha toupeira, você fez um bom trabalho! Rosa Luxemburgo

Não foram poucas as vozes representativas entre uma certa intelectualidade de esquerda que elevaram o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) à condição de emergente guerrilha pós-moderna1. Aliás, entre os próprios porta-vozes dos zapatistas, semelhante alusiva pode ser observada em alguns dos seus primeiros comunicados. Não obstante, creio ser desnecessário defender o estabelecimento de um novo marco de temporalidade para substantivar os traços característicos de sua “contemporaneidade mais recente”, ainda que justificado como recurso para evidenciar os novos elementos que situariam o levante armado zapatista como diferente de tudo o que lhe antecedeu em matéria de movimento popular de matiz revolucionário. É expressamente claro que o fenômeno chiapaneco abre novos horizontes para a compreensão dos processos sociais em curso na América Latina e no mundo, mas, se queremos lhe atribuir algum estatuto diferencial de temporalidade, que seja o de último movimento revolucionário expressivo do século XX e o primeiro do século XXI2, sem a necessidade de abandonar os jardins suspensos da modernidade.

O conteúdo da reivindicação zapatista, celebrado nas palavras de

ordem “democracia, liberdade e justiça”, é visceralmente moderno, enraizado no tema politicamente universalizado da dignidade humana, evocando o periclitante e insone espectro do assim entendido “projeto inconcluso da modernidade”. Fruto de velhas e novas condições e processos sociais, contradições sistêmicas e conjunturais, o zapatismo vem à luz como um daqueles tipos de fenômenos-coringa, capazes de condensar em si os variados aspectos do que é ascendente e decadente, nascente e poente, superficial e subterrâneo, evidenciando pistas sugestivas de múltiplas tendências sociais em movimento. Com isso nos adverte que a história, como a velha toupeira, ainda é capaz de pregar peças. Além do mais, sua especificidade remete a um certo topos, muitas vezes ignorado ou sublimado, de uma dada região da

* Doutorando em sociologia pelo IUPERJ e bolsista do CNPq. Email: [email protected]. 1 Cf. BURBACH, Roger (2001). Globalization and Postmodern Politics: From Zapatistas to High-Tech Robber Barons. Pluto Press,London; CARRIGAN, Ana (2000). “Chiapas, The First Postmodern Revolution”. In: PONCE DE LEÓN, Juana (ed). Our Word is Our Weapon: Selected Writings of

Subcomandante Marcos. Seven Stories Press, New York.; HOLLOWAY, John (2003). Mudar o mundo

sem tomar o poder: o significado da revolução hoje. Viramundo, São Paulo. 2 Cf. CECEÑA, Ana Esther (1998). “De cómo se construye la esperanza”. Em: Chiapas, n.6, Instituto de Investigaciones Económicas, UNAM-Era, México.

modernidade que reivindica seu direito à fala: a modernidade (pós)colonial e periférica3.

Um aspecto importante quanto ao grau de visibilidade que o zapatismo adquiriu ao longo dos últimos anos se deve a disposição do movimento em articular uma intensa e criativa ofensiva através de seu “ativismo midiático”, não somente pela permeabilidade aos meios de comunicações nacionais e internacionais4, mas especialmente, pela capacidade de difusão de informações e pelo lançamento de inúmeras iniciativas políticas através internet5.

Este artigo, ainda que aborde sumariamente elementos históricos e

sociológicos que expliquem parcialmente o surgimento do EZLN, e sua especificidade como movimento camponês-indígena, pretende dirigir suas reflexões sobre fenômeno zapatista no sentido de tornar mais inteligível um acontecimento relativamente recente: o nascimento dos chamados Caracóis, das Juntas de Bom Governo e a culminante reorganização das municipalidades rebeldes6 no bojo da realização do projeto de autonomia e autogoverno defendido pelo EZLN.

Os zapatistas estimularam a partir de 1994 a instituição de governos

civis autônomos locais, chamados MAREZ (Municípios Autônomos Rebeldes Zapatistas), experimentos evocados como herdeiros da tradição comunitária indígena e camponesa ácrata7. Os Caracóis se constituíram como coroamento tardio desse processo, enquanto espaços de articulação e coordenação política, social, econômica e cultural, criados em agosto de 2003, e operacionalizados através de conselhos de delegados locais chamados Juntas de Bom Governo, reunindo o conjunto de municipalidades rebeldes sob proteção do EZLN. Estas novas configurações representam uma visão da autonomia despida do localismo exarcebado e atomizado, e sua experiência está se realizando frente a uma concepção da tarefa de governar que enfatiza primordialmente o incentivo de novas práticas sociais onde o exercício do poder é fundamentalmente civil e mediado por critérios radicalmente 3 Cf. MIGNOLO, Walter (2003). Histórias locais/projetos globais. UFMG, Belo Horizonte. 4 Para maiores detalhes sobre o “ativismo midiático” dos zapatistas, ver: CLEAVER, Harry (1998). “The Zapatistas and the Electronic Fabric of Struggle”. In: HOLLOWAY, John & PELÁEZ, Eloína (eds). Zapatista! Reinventing Revolution in México. Pluto Press, London; RIBEIRO, Gustavo Lins (1998). “Cybercultural Politics: Political Activism at a Distance in a Transnational World”. In: ALVAREZ, Sonia et al. Cultures of Politics, Politics of Culture: Re-visioning Latin American Social Movements. Westview Press, Boulder; FIGUEIREDO, Guilherme Gitahy de (2006). A guerra é o espetáculo. FAPESP/RIMA, São Paulo. 5 Ver em http://www.ezln.org.mx. 6 Levando em conta que a criação dos Caracóis data da segunda metade de 2003, localizei apenas uma reflexão mais sistemática sobre a questão, basicamente em dois trabalhos de uma mesma pesquisadora. Cf. CAL Y MAYOR, Araceli Burguete, & SOLANO, Xochitl Leyva (coord) (2004). Estudios

Monográficos: nuevos municipios en Chiapas. Vols I e II, Biblioteca Popular de Chiapas, Tuxtla Gutierrez; CAL Y MAYOR, Araceli Burguete (2004) “Chiapas: nuevos municipios para espantar municipios autónomos”, en Rosalva Aída HERNÁNDEZ, Sarela PAZ & María Teresa SIERRA (coord.). El Estado y los indígenas en tiempos del PAN. Neoindigenismo, legalidad e identidad. CIESAS/H. Cámara de Diputados/Miguel Ángel Porrúa, México. Não obstante, uma dezena de artigos muito interessantes estão referenciados nas próximas seções. 7 Cf. HART, Michael (1978). Anarchism and the Mexican Working Class, 1860-1931. University of Texas Press, Texas.

democráticos: gestão colegiada, abolição do soldo político, mandatos imperativos, alternância das funções públicas, etc. Não é fortuito o lema de “mandar obedecendo”, que traduz com fidelidade os valores que orientam o ordenamento das funções políticas e sociais nessas novas instâncias de deliberação e organização da vida coletiva. II- Indígenas, camponeses e a questão agrária no México moderno

É impossível compreender a configuração dos processos, dinâmicas e estruturas sociais no México, bem como na maior parte da América Latina, sem levar em consideração a condução política do problema agrário8, e o papel jogado pelos atores sociais historicamente envolvidos no lado mais frágil dessas contendas: os camponeses e os indígenas9. No caso desses últimos, majoritariamente acumulando também a condição camponesa, é fundamental atentar para o protagonismo que vêm assumindo nas últimas décadas a partir do crescimento e fortalecimento de suas organizações e movimentos, com intensiva penetração de seus representantes em muitas das principais instituições políticas de seus respectivos países10.

O que alguns intelectuais denominam por “processos de

(re)emergência étnica”11 certamente foi impulsionado pelas dramáticas modificações ocorridas no interior da estrutura fundiária e produtiva, aceleradas pelas forças “modernizadoras” representadas pela industrialização e urbanização capitalista e pela liberalização econômica, em prol dos processos de consolidação da economia de mercado internacional. A força com que desponta o movimento camponês-indígena, substituindo a centralidade discursiva então conferida por analistas e agentes políticos ao movimento operário urbano, representa uma nova remodelagem do mundo popular

8 Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion & BRIGNOLI, Hector Perez (1987). História econômica de América

Latina. Vol. I. 4ª ed. Editorial Crítica, Barcelona. 9 Cf. HUIZER, Gerrit (1971). El potencial revolucionario del campesino en América Latina. Siglo XXI: México; MARIATEGUI, Jose Carlos (1975). Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. Alfa-Omega, São Paulo. 10 Cf. Varese, Stefano (org) (1996). Pueblos indios, soberanía y globalismo. Abya-Yala, Quito; Dávalos, Pablo (org) (2005). Pueblos indígenas, estado y democracia. CLACSO, Buenos Aires. A maioria da população reconhecidamente indígena latinoamericana está concentrada respectivamente em Bolívia, Equador, Guatemala, México e Peru 11 Para revisitar alguns dos pontos essenciais do argumento sobre as transformações operadas na teoria social que daria conta desses processos, ver ALEXANDER, C. Jeffrey (1986). "O novo movimento teórico". Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 4, vol. 2, jun; e WAGNER, Peter (1994). A sociology

of modernity: liberty and discupline. Routledge: New York/London. Para acompanhar algumas das tendências e posições presentes no debate sobre as modernas manifestações de reemergência étnica na América Latina, ver VARESE, Stefano (1996). Parroquianismo y globalización. Las Etnicidades Indígenas ante el Tercer Milenio. Em VARESE, Stefano (coord). Pueblos indios, soberanía y globalismo. Abya-Yala: Quito; PATZI, Félix (2003). “Rebelión indígena contra la colonialidad y la transnacionalización de la economía: Triunfos y vicisitudes del movimiento indígena desde 2000 a 2003”, Em HYLTON, Forrest et al, Ya es otro tiempo el presente, Muela del Diablo: La Paz; PACHECO, João (org) (2004). A viagem de volta. Etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2 ed. Contracapa: Rio de Janeiro; DÁVALOS, Pablo (2005). “Movimientos indígenas en América Latina: el derecho a la palabra”. Em DÁVALOS, Pablo (org). Pueblos indígenas, estado y democracia.CLACSO: Buenos Aires; MANÇANO FERNÁNDEZ, Bernardo (2005). "Movimentos socioterritoriais e movimentos socioespaciais". Em OSAL n.16., CLACSO: Buenos Aires.

organizado na periferia, transladando do clássico eixo da consciência de classe (pelo menos de sua versão histórica urbano-fabril) para o da recomposição de elementos das tradições etno-culturais como pólo de aglutinação para a ação política. Para além do diagnóstico do fim da classe operária, o que se coloca é a validação da sua concreta existência em termos substantivos como maioria do contingente assalariado na esfera produtiva, onde a própria relação de assalariamento, em seu modelo vigente durante boa parcela do século XX, entra em fase de decomposição.

E para complexificar mais a questão, o fato é que a maioria dos

países da periferia capitalista jamais lograram dar materialidade a um tipo e a um contingente da classe operária similar aos seus padrões constitutivos no centro capitalista. A tese que acompanha parte dessa percepção já se tornou um truísmo: o desenvolvimento internacional do capitalismo se realiza de modo desigual e combinado, tanto em termos da relação entre os países (centro e periferia) quanto no interior das nações (no modo das “diferenças regionais”)12. Assim, algumas formações sócio-econômicas poderiam assumir configurações em termos de formas e relações de produção, e suas correspondentes estruturas de classes, paralelas e solidárias a elementos “não-mercantis”, e/ou àquilo que se convencionou denominar em tempos de voga da ortodoxia marxista, “pré-capitalistas”13.

No México, o estouro da revolução de 1911-1917 permitiu às

oligarquias modernizadoras firmarem um pacto social com o mundo agrário ainda não disciplinado pelo capital (tanto em sua versão popular quanto caudilhista), orientando o desenvolvimento social e econômico do país por quase todo o século XX. A revolução mexicana não representou, pois, uma ruptura contra a miséria, o atraso e a opressão de algum tipo de “antigo regime”. Ao contrário, foi uma revolução de resistência, de oposição aos custos sociais de uma certa via de desenvolvimento do mundo moderno capitalista14. Os efeitos da acumulação primitiva no México foram adiados, postergados e minimizados com a preservação de boa parcela da propriedade agrária comunal. E o Estado mexicano, curiosamente, entrou em cena como protetor e árbitro do antigo regime comunal de terras.

A estabilidade política institucional mexicana15 tem seu maior trunfo

na relação que estabeleceu com o campo. A constituição de 1917 manteve os 12 Esta idéia, que pode ser localizada em análises clássicas de Hilferding, Bukharin, Lenin e Trotsky sobre o imperialismo, na América Latina com suas devidas variações parece ter ecoado pelas vozes de Raul Prebish, Rui Mauro Marini, Celso Furtado, Enzo Faleto e Fernando Henrique Cardoso. 13 Este é um debate que acredito ainda possuir algum valor, na condição de instrumento problematizador, afastando-se de uma tendência essencialista e etapista em associar o pré-capitalista ao arcaico, desviando-se da tentação de submeter a essa lógica tudo o que é não-capitalista. Uma inspiração especial para isso encontrei nas obras de HINDESS, Barry & HIRST, Paul (1975). Pre-capitalist modes of

production. Routledge & Kegan Paul, London; e KAHN, Joel & LLOBERA, Josep (ed) (1981). The

anthropology of pre-capitalist societies. Macmillan Press, Hong Kong. 14 Cf. CAMÍN, Hector & MEYER, Lorenzo (1993). À sombra da revolução mexicana. Edusp, São Paulo. 15 Desde a revolução mexicana o país realizou ritualisticamente todas as eleições, não passou por nenhum golpe de Estado, a despeito de todo tensionamento inter-oligárquico, das denúncias de fraude e da proximidade territorial com os EUA. O principal partido do país e herdeiro da revolução, o PRI (Partido da Revolução Institucionalizada), até o ano 2000 nunca havia perdido uma disputa presidencial. Cf. CASANOVA, Pablo (1969). La democracia en México. 3 ed. Ediciones Era, México.

ejidos, uma modalidade de propriedade coletiva da terra voltada especialmente para a subsistência16, herança indígena-camponesa colonial que, em sua lógica de funcionamento, compatilhava algumas semelhanças com mir russo17, como a principal célula de reprodução econômica no campo. Com isso, em muitas regiões do país, com especial exceção o sul México18, foram criados obstáculos para o desenvolvimento das haciendas, estas sim, grandes propriedades rurais voltadas para o monocultivo de exportação. Muitas delas foram desapropriadas e colocadas à disposição dos camponeses ao longo das insurreições do período. O resultado foi que governo mexicano quase sempre teve ao seu lado, pelo menos até a década de 1980, as principais e mais poderosas organizações camponesas, em um país onde ainda hoje os camponeses constituem cerca de 30% da população.

Um dos pontos mais relevantes é que o elemento rural está

visceralmente imbricado com o elemento étnico no México. A consciência política de corte indígena, ainda que predominantemente oriunda das condições sócioeconômicas do mundo rural, finalmente mostrou sua face nas últimas décadas. E foi partindo da percepção de sua “diferença” que passou à exigência de seu reconhecimento enquanto parte da nação mexicana, que não somente é mestiça, mas pluriétnica19, sem deixar de lado a radicalização da idéia de que pertencem eles também aos setores subalternos, tanto como trabalhadores, quanto como apartados do mundo da produção, e que a superação desse regime de coisas somente se viabilizaria através de uma profunda mudança estrutural que pode ser iniciada nos marcos políticos do Estado-Nação, mesmo que para subvertê-lo enquanto tal20.

O debate sobre a diversidade étnica no México, em função da

insurreição de 1994, se tornou cada vez mais complexo e delicado. É plenamente aceitável hoje que os mexicanos descendentes das populações “tradicionais”, que somam algo em torno de 10% da população, por muito tempo foram reiteradamente impelidos a desprezar qualquer traço de sua identidade cultural autóctone, tendo em vista os elementos relacionados às condições de vida dos povos tradicionais (marginalidade, analfabetismo, pobreza e outras “precariedades”) e aos preconceitos existentes quanto às suas práticas culturais e religiosas supostamente bárbaras e atrasadas.

O curioso é que as demandas indígenas entre muitos grupos no país

progressivamente passaram a incorporar a defesa não apenas do acesso aos

16 Cf. ECKSTEIN, Salomon (1966). El ejido colectivo en México. Fondo de Cultura, México. 17 Vale a pena recordar que a comuna camponesa russa, ou obshtchina, ainda que possuísse aspectos subversivos em potencial, tal como ressaltavam os narodnik, era também tolerada pelo Tzar, que se utilizava do estatuto jurídico do mir (literalmente, assembléia comunal) para facilitar o processo de recolhimento de tributos. Cf. FERNANDES, Rubem César (org). (1982), Dilemas do socialismo: as

controvérsias entre Marx, Engels e os populistas russos. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 18 Cf. LEON, Antonio Garcia de (1997). Resistencia y Utopia. 2 ed. Editora Era, México. 19 Cf. DÍAZ-POLANCO, Héctor (1998). La rebelión zapatista y la autonomia. 2ª ed. Siglo XXI, México: p.154. 20 Cf. COMANDANTA ESTHER (2001). “Queremos ser indígenas e mexicanos”. Discurso proferido em 28 de março de 2001 no Palácio Legislativo de Sán Lázaro. Em: Cadernos CEAS, n.195, setembro-outubro, Salvador.

benefícios materiais daquilo que é socialmente produzido em seus países, mas também requerer novas condições para a apropriação social das instituições de decisão e deliberação políticas, começando pela retomada da gestão territorial: consequentemente, nos fins dos anos 1980, a luta pela autonomia passou a ser uma das principais bandeiras das mobilizações indígenas, adquirindo mesmo dimensão continental21.

Essa transposição do eixo de reivindicação do direito isolado e

restrito de autodeterminação (ligada à esfera sócio-cultural) para a busca da autonomia (vinculada às esferas política e econômica) desdobrou na defesa explícita da necessidade de transformações profundas nas estruturas de distribuição de poder, o que foi traduzido pelas organizações indígenas como a defesa de um Estado plural e democrático que permitisse a formação de autogovernos étnicos ou pluriétnicos em seu marco constitucional. Ao que parece, a periferia gestava a sua vanguarda em seus próprios termos: as populações camponesas e indígenas, vestígios do universo “pré-capitalista” e “pré-moderno”, passaram a se situar na linha de frente na busca de novas alternativas políticas radicalmente democráticas22.

No México, a discussão sobre a autonomia ocupou boa parte da

“agenda pública” da segunda metade da década de 1990. Se havia um consenso, esse era o de que os povos indígenas tinham o direito de viver segundo suas crenças e tradições culturais. Porém, na prática, o problema era de que modo viabilizá-lo, o que resumia a questão em gradações de escalas: autonomia comunal ou regional. A autonomia comunal foi acirradamente defendida pelo governo e pelos agentes do neoindigenismo (vinculados ou próximos do Instituto Nacional Indigenista - INI): significava o controle coletivo estritamente na dimensão da vida comunitária, alegado como âmbito natural da vida indígena. Já a autonomia regional, defendida pelos elementos mais organizados e ativos do movimento indígena, partia da idéia de que a comunidade era apenas o nível básico, e à medida que o tecido social em que se insere a existência dos indígenas não se reduzia à comunidade, a autonomia envolveria também esferas mais amplas: a comunal, a municipal e a regional. Tal regime implicaria profundas modificações na organização estatal, na disposição territorial, na concentração de competências e poderes, e no regime agrário, logo, em transformações potencialmente sistêmicas e estruturais.

O aparecimento do EZLN representou a ponta de lança que colocou

o tema da autonomia em sua máxima evidência. Mas ele mesmo só assumiu com ênfase a questão poucos meses depois da ação militar, afinal, era

21 Diz a Declaración de Quito, documento do Primer Encuentro Continental de Pueblos Indios, realizado em agosto de 1990: "el derecho que tenemos los pueblos al control de nuestros respectivos territorios, incluyendo el control y manejo de todos los recursos nacionales del suelo, el subsuelo y el espacio aéreo; la defensa e la conservación de la naturaleza (...), el equilibrio del ecosistema y la conservación de la vida, y además la constitución democrática de nuestros propios gobiernos". Cf. DÍAZ-POLANCO, Héctor (1998). Op.cit: 16. 22 Cf. WARMAN, Arturo & ARGUETA, Arturo (coord) (1993). Movimientos indígenas contemporáneos

en México. Miguel Angel Porrua, México; BARCENAS, Francisco (2005). Autonomía y derechos

indígenas en México.2 ed. Ediciones Coyoacan, México; PASQUEL, Lourdes de Leon (coord) (2001). Costumbres, leyes y movimiento indio en Oaxaca y Chiapas. CIESAS/Miguel Angel Porrua, México.

portador da herança política de libertação nacional. De todo modo, no final de 1994, os “autonomistas” mexicanos estavam representados, além do EZLN, por 280 organizações de Chiapas, zapotecos de Sierra de Juárez (Oaxaca), mixtecos del Movimiento Zapatista del Sur, a organização estadual de purépechas de Michoacán, a organização estadual de indígenas de Guerrero, e comunidades hñahñu do Estado do México23.

Na década de 1980 iniciaram-se os primeiros ensaios de liberalização no campo, rumo ao rompimento do pacto agrário de 1917, que se definiu em 1992 com duas importantes modificações constitucionais: a alteração do primeiro parágrafo do artigo 4, como resposta às demandas de direitos indígenas, mas que se rarefez quase exclusivamente aos direitos culturais, colocando o projeto de autonomia em xeque24; e do artigo 27, com a modificação do estatuto jurídico do ejido25. Com essas alterações, preparativos por parte do governo mexicano para a assinatura do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (TLCAN), estavam lançadas as bases para a privatização das terras dos camponeses e o “enterro da era revolucionária”. Isso reduziu a possibilidade de reconhecimento legal da maior reivindicação indígena: o controle coletivo sobre seus territórios. A nova legislação criou mecanismos jurídicos para que os ejidatários e os comuneros pudessem ceder o direito de usufruto sobre os recursos naturais, parcelar suas terras e dispô-las em mãos de terceiros para finalidades comerciais. III- “Soldados para que não mais existam soldados?”: o EZLN

Las campanas dejaron de tocar; pero la fiesta siguió. No hubo modo de hacerles comprender que se trataba de un duelo, de días de duelo. No hubo modo de hacer que se fueran; antes, por el contrario, siguieran llegando más.

Pedro Páramo (Juan Rulfo) Para nosotros, los más pequeños de estas tierras, los sin rostro y sin historia, los armados de verdad y fuego, los que venimos de la noche y la montaña, los hombres e mujeres verdaderos, los muertos de ayer, hoy y siempre... Para nosostros nada. Para todos todo.

CCRI-EZLN, Comunicado de março de 1994

O EZLN nasceu como órgão militar das “Forças de Libertação Nacional” (FLN), movimento armado marxista-leninista estabelecido em Chiapas que pretendia organizar núcleos revolucionários em todos os estados

23 Cf. Convención Nacional Indígena de 18 de dezembro de 1994. Declaración de la montaña de

Guerrero. 24 Eis seu conteúdo reformado: "La nación mexicana tiene uma composición pluricultural sustentada originalmente en sus pueblos indígenas. La ley protegerá y promoverá el desarrollo de sus lenguas, culturas, usos, costumbres recursos y formas específicas de organización social, y garantizará a sus integrantes el efectivo acceso a la jurisdicción del Estado. En los juicios y procedimientos agrarios en que aquéllos sean parte, se tomarán en cuenta sus prácticas y costumbres jurídicas en los términos que establezca la ley." Constituición Política de los Estados Unidos Mexicano (1993). 2ª reimpressión, México, Trilhas. 25 Cf. PODER EJECUTIVO, 1992. Diario Oficial de la federación, México, Lunes, 6 de enero; e PODER EJECUTIVO, 1992. Diario Oficial de la Federación, México, 26 de febrero, respectivamente.

do país e preparar-se para o momento em que houvesse condições maduras para a realização de uma revolução de tipo anti-imperialista26. Para tanto, um pequeno grupo de guerrilheiros instalou-se no interior da selva Lacandona, Chiapas, para iniciar ali operações militares, em 1983.

O estado de Chiapas, conhecido por suas características serras e

florestas, ocupa uma área de 75 mil km de superfície, divididos em aproximandamente 110 municípios, a maior parte de natureza rural, com 3,5 milhões de habitantes, dos quais cerca de um milhão são índios majoritariamente maias pertencentes às suas diversas etnias: tseltales, tsoltsiles, choles, zoques e tojolobares.

Por uma série de razões, quase todas as “células” das FLN foram

descobertas e desbaratadas ao longo dos anos 1970 e 1980. O núcleo de Chiapas foi um dos únicos que resistiu à política de contra-insurgência do governo27. Foram 10 anos de treinamento e intenso contato com as comunidades indígenas locais, até o levante armado, ocorrido em 1º de janeiro de 1994, que tomou as sedes dos municípios de San Cristóbal de las Casas, Ocosingo, Altamiro, Chanal, Oxchuc, Huixtán e Las Margaritas, exatamente no primeiro dia de vigência do ingresso do México no TLCN. O trabalho político e organizativo do EZLN foi sistemático e progressivo: de poucas dezenas de milicianos, chegaram ao contingente de alguns milhares de homens e mulheres em armas28.

No momento do levantamento, as FLN praticamente inexistiam como

força política, e o EZLN já havia se convertido em uma organização político-militar independente das diretrizes e dos mandos das FLN. E mais: a incorporação de populações indígenas com um particular histórico de luta em suas fileiras, algumas delas envolvidas anteriormente em organizações ejidales e comunitárias fundadas e apoiadas por ativistas maoístas e catequistas da teologia da libertação que foram para a região nos anos 1960 e 197029, produziu um impacto profundo que transmutou muitas das concepções táticas e programáticas de revolução do EZLN, dialetizando materialismo histórico, cristianismo popular e cosmologia maia30.

26 É interesante salientar que o EZLN integra uma “segunda onda” de movimentos armados no México contemporâneo, juntamente com o Ejército Revolucionário Popular (ERP) e o Ejército Revolucionário

Popular Insurgente (ERPI). Cf. MORÁN, Gustavo Hirales (2003). “Radical groups in Mexico today”. Policy papers on the Americas, Vol. XIV, study 9, September, CIS, Washington. 27 Cf. DÍAZ, Carlos Tello (1995). La rebelión de las cañadas. 3 ed. Cal y Arena, México. 28 Uma demografía dos simpatizantes e bases de apoio zapatistas, ou mesmo uma consideração sobre o contingente real do exército zapatista, é um tema altamente controverso, pela inexistência, por razões óbvias, de sondagens estatísticas na região de conflito após 1994. Cf. ESPONDA, Juan González e BARRIOS, Elizabeth Pólito (1995). "Notas para comprender el origen de la rebelión zapatista". Chiapas, n.1, Instituto de Investigaciones Económicas, UNAM-Era, México. 29 O histórico de ativismo social e político, particularmente nas regiões da selva Lacandona e de Los

Altos, onde nasceria o EZLN, é impressionante e confere algum sentido à tamanha expressividade adquirida pelo zapatismo entre as populações indígenas em pouco mais de uma década de trabalho organizativo. Cf. SAAVEDRA, Marco Estrada (2007). La comunidad armada rebelde y el EZLN. El Colegio de México, México. 30 Pelo menos no nível discursivo, isso pode ser constatado ao longo das seis declarações públicas lançadas pelos zapatistas desde 1994, assim como nos comunicados, cartas e entrevistas de muitos comandantes zapatistas, em especial, o ladino ou mestizo Subcomandante Insurgente Marcos.

Os anos 1990 foram de indiscutível defensiva dos movimentos

sociais, além do marcado refluxo de toda luta de tipo socialista. Se o plano inicial dos zapatistas era marchar até a tomada da cidade do México, fomentando a guerra revolucionária, no estalar de 1994 o levantamento em armas já havia se subsumido a uma fatalidade inexorável dirigida rumo a uma morte digna, reativa ao ingresso do país ao TLCN que pressagiava, juntamente com as reformas sobre o campo, tempos sombrios para a população pobre e excluída, em especial a indígena.

No entanto, depois de 12 dias de confronto com o exército

mexicano, o próprio governo federal declarou o cessar fogo unilateral em virtude da massiva manifestação da sociedade civil nacional e internacional contra o que se tornaria uma verdadeira guerra de extermínio contra as comunidades indígenas. Os mexicanos se pronunciaram nas ruas contra o conflito armado, ao mesmo tempo em que se colocavam favoráveis às demandas zapatistas. Os zapatistas descobriram na sociedade civil um espelho e um aliado que desde então influenciaria toda a elaboração político-estratégica do EZLN.

Um espelho porque, através das dinâmicas de aproximação com a

sociedade civil, os zapatistas tiveram condições muito favoráveis para dar seguimento ao processo de reelaboração de seu programa de revolução (iniciado a partir do contato com o ativismo indígena preexistente na selva) e de auto-reconhecimento. Se os zapatistas tiveram êxito em seu processo de constituição auto-consciente como coletividade indígena em armas e em rebeldia, e não somente camponesa e proletária, contra o governo mexicano, isso se deve pela natureza do vínculo que foi possível estabelecer com a sociedade civil nacional e internacional. Essa mesma sociedade civil, constituída por uma profusão de organizações, coletivos e mesmo indíviduos, se tornou ao mesmo tempo um aliado incondicional da luta zapatista, disponibilizando não apenas sua palavra em defesa das comunidades indígenas rebeldes, mas legitimando todo o processo de configuração do que viria a se tornar as autonomias através de apoio de várias ordens, como recursos, trabalho e conhecimentos especializados, canalizados para as áreas e as populações onde o conflito se manifestou, produzindo uma verdadeira sinergia que se converteria materialmente na formação dos municípios autônomos como os conhecemos atualmente.

Deste modo, o EZLN se estabeleceu ao redor de um grande grupo de comunidades indígenas no interior de Chiapas, até então tomadas unicamente como “bases de apoio” para a reprodução e manutenção de sua estrutura militar, e junto a elas organizou o que passou a denominar por “municipalidades rebeldes”, com novas fronteiras territoriais e governos civis autônomos paralelos aos governos dos municípios oficiais. E a partir de 2003 os militares rebeldes decidiram se afastar definitivamente de todos os postos ocupados na estrutura dos governos índigenas. A autonomia, que aparecia timidamente nas primeiras declarações zapatistas, veio a se tornar o princípio organizador das relações de poder no território insurgente, e logo em seguida, sua própria pedra angular.

É importante ressaltar o significado do afastamento dos militares

zapatistas das funções civis de governo, bem como da tarefa de vigilância dos princípios zapatistas, como um valioso esforço do núcleo dirigente do EZLN (no caso, o CCRI31, “Comitê Clandestino Revolucionário Indígena” – Comando Geral) em estimular um processo auto-organizativo que possa ser conduzido a partir das próprias comunidades. A concepção dos comandantes zapatistas é de que o exército rebelde, ainda que um “exército de outro tipo”, é uma organização centralizada, disciplinada e hierarquizada, e assim sendo, não pode ser a fonte e o fundamento dos processos de autogoverno que devem alimentar-se de princípios democráticos, igualitários e horizontais. Até onde se tem notícia, isso é inédito na história de todos os grupos armados de esquerda conhecidos. Acrescenta-se a isso o fato de que as populações zapatistas, como comunidades em armas, e portanto, como milicianos, possuem garantido o direito à rebelião contra elementos do EZLN, ou o próprio EZLN, em caso de manifestação de excessos e indícios de tirania ou corrupção.

Por outro lado, há de se considerar as especificidades do EZLN,

para além do seu núcleo militar. Como herdeiro da estrutura das FLN, o comando geral e os CCRI’s são principalmente organismos políticos, que possuem importante função dirigente e ideológica. Ora, para complexificar a questão, sabe-se que muitos dos comandantes zapatistas não são militares, e nem mesmo se formaram militares, e foram recrutados na condição de expressivas lideranças indígenas em suas regiões. Daí uma contradição visível, e de algum modo constatável pelos próprios zapatistas: ainda que as JBG’s possuam a tarefa de vigiar os princípios zapatistas em território rebelde, elas o fazem baixo a ascendência moral dos CCRI’s e do comando geral do EZLN, e mais especialmente, do próprio Subcomandante Marcos.

Quando do levantamento armado em 1994, os zapatistas editaram

um conjunto de leis revolucionárias, escritas no espírito do que deveria ser sua luta de libertação nacional, logo, de validade para todo o México revolucionário para um período de transição, que deveria culminar com a formação de uma nova constituição e de um novo governo popular e democrático. Muitas dessas leis, como se pode observar, são de complexa execução dentro do território efetivo ocupado durante insurreição, algo como 350 mil hectares, mas território eminentemente rural, montanhoso, selvático, de precária infraestrutura e baixa densidade populacional. De todo modo, essas leis podem ser consideradas o marco normativo que orienta boa parte das dinâmicas sócio-políticas em território zapatista. Quadro 1. Leis revolucionárias do EZLN (janeiro de 1994) Lei de impostos e de guerra Voluntária para os que não são exploradores da força de trabalho e para aqueles sem posses. Para os demais, se estabelecem impostos entre 7 e 20% das rendas mensais. Os bens confiscados das forças armadas passarão a ser propriedade do EZLN, enquanto que

31 É imporante não perder de vista que as zonas onde se situavam os Aguascalientes, e agora os Caracóis, coincidem com a área de abrangência dos comandos político-militares do EZLN (há um Comitê Clandestino Revolucionário Indígena instalado em cada uma dessas regiões).

aqueles recuperados do governo passarão a ser propriedade do “governo revolucionário”. Lei de direitos e obrigações dos povos em luta Direitos iguais sem distinção de raça, religião ou filiação política. Eleição livre de representantes. Exigir do exército que não interfira em assuntos civis. Possuir armas e defender-se com elas, inclusive do exército revolucionário. Realizar a cooperação acordada pela maioria para as necessidades da revolução. Prestação de contas das autoridades civis à população civil e ao comando do exército revolucionário. Lei de direitos e obrigações das forças armadas revolucionárias Denunciar os maus governos civis. Respeitar as ações do governo revolucionário e a justiça civil. Guerrear contra o inimigo até tirá-lo do território ou aniquilá-lo. Lei agrária revolucionária Expropriação de terras que excedam 100 hectares de má qualidade ou 50 hectares de boa qualidade, podendo os pequenos proprietários juntar-se à organização comunal, em cooperativas ou sociedades camponesas. As terras concedidas aos camponeses sem posse serão propriedade coletiva. Parte das terras expropriadas se destinarão ao sustento de órfãos e viúvas de combatentes. Preservação de zonas de selva e reflorestamento. Os recursos naturais são propriedade do povo. Não serão cobrados impostos dos que trabalhem coletivamente. Lei revolucionária das mulheres Direito de decidir quantos filhos ter. Direito a serem eleitas democraticamente para um cargo militar ou civil. Não podem ser obrigadas ao matrimônio. Lei da reforma urbana Deixarão de pagar renda aqueles que vivem há quinze anos no mesmo lugar. Os que vivem há menos de 15 anos pagarão 10% do salário de chefe de família. As mansões poderão ser ocupadas como moradias de muitas famílias. Lei do trabalho As companhias estrangeiras pagarão o equivalente aos salários que pagam em seus países de origem. Aumentos mensais de salário, segundo uma comissão local de preço e salário. Os trabalhadores terão direito a ter ações da empresa, segundo antiguidade. Lei de indústria e comércio Proibida a açambarcagem. As indústrias falidas ou abandonadas passarão a fazer parte da propriedade da nação. Preços de produtos básicos regulados por uma comissão democraticamente eleita. Lei da seguridade social São prioridade os doentes incapacitados, os órfãos e os doentes sem família. As pensões dos aposentados serão iguais ao salário mínimo. Fonte: ORNELAS, Raúl (2005). “A autonomia como eixo da resistência zapatista. Do levante armado ao nascimento dos Caracoles.” Em: CECEÑA, A. Hegemonias e Emancipações, CLACSO, Buenos Aires.

As primeiras medidas revolucionárias, como podemos perceber, possuem caráter eminentemente socializante, tanto no seu aspecto político (na arquitetura das relações de poder) quanto econômico (no arranjo da estrutura agrária). Chama atenção também a preocupação dos zapatistas com a

situação de subalternidade da mulher, mesmo nas fronteiras da tradição indígena-camponesa, nesse caso, eminentemente patriarcal. O que demonstra um processo de reivenção do próprio componente étnico, alocando-o no interior de uma perspectiva de autonomia que deve ser experimentada coletiva mas também individualmente. Interessante notar como no caso zapatista o estatuto da diferença forneceu elementos para a composição de uma ótica crítica sobre a organização do mundo capitalista, demonstrando que as diferenças de classe também se sedimentam sobre as diferenças étnicas.

IV– O ocaso dos Diálogos de Paz e Conciliação

"Eu não gostei da peça, mas a vi em condições adversas - a cortina estava levantada".

Groucho Marx

O primeiro encontro com representantes do governo ocorreu na

Catedral de San Cristóbal, Chiapas, entre 21 de fevereiro e 3 de março de 1994. O EZLN demandava do governo: o reconhecimento do estado de beligerância, a constituição de um novo pacto federativo que permitisse maior autonomia econômica e cultural, possibilitando a autonomia a cada povo que a reivindicasse, a concretização de mudanças nas relações com o Estado, a criação de novos municípios e regiões pluriétnicas, a convocação de novas eleições precedida por uma reforma eleitoral, e a revogação da reforma salinista do artigo 27 da constituição e da lei agrária a ela correspondente. O governo parecia simpático às demandas dos insurrectos, mas acabou saindo pela tangente com uma proposta de modificação constitucional extremamente genérica sobre o pleno direito de manifestação cultural das populações indígenas.

Em agosto de 1994 o EZLN fundou o seu primeiro Aguascalientes,

um espaço simbólico edificado próximo ao povoado de Guadalupe Tepeyac, em Chiapas, com o objetivo de articular-se com a sociedade civil nacional e internacional, recebendo-a e realizando projetos políticos e sociais em colaboração. Outros quatros espaços similares seriam criados ao longo do ano seguinte. Nesse âmbito, se inaugurou o mesmo para sediar a realização da “Convenção Nacional Democrática”, onde o EZLN almejava consolidar seus contatos com a sociedade civil. Foi também uma oportunidade para o EZLN se aproximar dos setores da esquerda do Partido da Revolução Democrática (PRD), especialmente aqueles ligados ao então candidato a presidência Cuauhtemóc Cárdenas.

Entretanto o candidato de Salinas venceu a eleição presidencial, e o

governo Zedillo, do mesmo PRI, tomou posse em janeiro de 1995. Ao mesmo tempo que mostrava disposição pública para conversar com o EZLN, ele preparava uma traiçoeira ofensiva militar, logo em fevereiro, destruindo o Aguascalientes de Guadalupe Tepeyac e lançando ordens de apreensão contra todos os comandantes zapatistas, principalmente Marcos, que teria sua

identidade revelada32. Tal fato gerou grande repercussão na sociedade mexicana e internacional, solidária à “guerrilha” que havia optado pelo diálogo político. A agitação gerada propiciou a intervenção do poder legislativo, que em março de 1995 aprovou a “Lei para o diálogo, a conciliação e a paz digna em Chiapas”, cujo primeiro artigo definiu o EZLN como "uma organização de cidadãos mexicanos, majoritariamente indígenas, inconformados por diversas causas e que se engajou no conflito armado"33. Os zapatistas já não estavam mais à margem da lei. Sob essa plataforma legal e política, em setembro de 1995 o governo e o EZLN acordaram as bases para o segundo diálogo de negociação. Foi então preparado o “Diálogo de San Andrés”, em San Andrés Larráinzar, ou San Andrés Sakam’achen de los Pobres, como preferem os indígenas, que durou de outubro de 1995 a janeiro de 1996. O mesmo foi estruturado de maneira bastante sistemática, dinamizado por mesas temáticas em que cada parte (governo e EZLN) poderia indicar um número de convidados e assessores.

A síntese dos diálogos reconhecia a luta pela autonomia como

contribuição indígena à democracia mexicana, e que aquela somente poderia se concretizar sob dadas condições, implicando em modificações no marco jurídico e na política econômica vigente. No final do processo, o governo e o EZLN assinaram um documento onde constavam os seguintes compromissos: o reconhecimento, como garantia constitucional, do direito de autodeterminação dos povos indígenas (especialmente levando em conta o fato do México ser signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho); a realização de reformas legais e constitucionais visando ampliar a participação e a representação política local e nacional dos povos indígenas, conformando um novo federalismo; a garantia do acesso pleno dos povos indígenas aos instrumentos jurídicos do Estado, e sua utilização levando em conta as suas especificidades culturais e seus sistemas normativos internos34.

Assim, em janeiro de 1996 o EZLN convocou o Fórum Nacional

Indígena, um grande encontro para referendar o acordo de San Andrés e promover a elaboração de estratégias e mecanismos de pressão em relação ao governo. O problema foi que, no ano seguinte, o governo Zedillo elaborou uma proposta unilateral, desconsiderando abertamente os acordos presentes nos documentos finais dos diálogos. Mais uma vez, outra modificação constitucional genérica seria encaminhada ao Congresso, perdendo-se no discurso amplo “da necessidade de se preservar e defender o patrimônio cultural indígena”.

Mais um governo passaria, e os acordos de San Andrés seriam

novamente lançados ao limbo. Enquanto isso, os zapatistas passaram a

32 Em um programa de TV em cadeia nacional, o governo federal festejou a eficiência de seu serviço de inteligência pela descoberta da identidade real do Subcomandante Marcos: Rafael Guillén, ex-professor de artes gráficas e design da UAM-Xochimilco. 33 Cf. Congreso de la Unión, 1995. “Ley para el diálogo, la conciliación y la paz digna en Chiapas”. Diario de la Federación. México, 11 de marzo. 34 Cf. GOBIERNO FEDERAL-EZLN. (1996). "Acuerdos sobre derechos y cultura indígena - Documentos". Chiapas, n.2, Instituto de Investigaciones Económicas, UNAM-Era, México.

acumular problemas com a atuação de grupos paramilitares na região35. Não foi diferente com o governo de extrema direita de Vicent Fox, do Partido da Ação Nacional (PAN), eleito sob a derrota histórica do PRI, que há mais de 70 anos permanecera no poder. O presidente Fox, como seus antecessores, também prometeu solucionar o conflito, e de fato em 2001 enviaria ao Congresso um projeto de lei “minimalista” que contemplava alguns dos pontos exigidos pelos zapatistas36. Porém, não foi com o mesmo empenho que o governo “pressionaria” seus parlamentares a votar favorável, e assim sua própria iniciativa foi derrotada e modificada substantivamente37.

O fracasso contínuo nas negociações com os agentes

governamentais e dos dois diálogos levou o EZLN a iniciar uma nova fase de ações, pautadas em duas direções: prosseguir na resistência armada e passar a concretização unilateral do processo de autonomia. De modo que viria à luz, em 2003, um intenso esforço de reordenamento interno da região ocupada pelos zapatistas, culminando na criação dos “Caracóis”38, e em 2005, a formação de um grande movimento civil denominado “A Outra Campanha”39, pautado na crítica severa aos partidos políticos e ao Estado mexicano, convocando uma grande frente popular itinerante em busca da criação de um “programa nacional de luta”.

V- Os Caracóis, as Juntas de Bom Governo e a reorganização dos Municípios Autónomos: rumo à “autonomia de fato”

Dicen aquí que los más antiguos dicen que otros más anteriores dijeron que los más primeros de estas tierras tenían aprecio por la figura del caracol. Dicen que dicen que decían que el caracol representa el entrarse al corazón, que así le decían los más primeros al conocimiento. Y dicen que dicen que decían que el caracol también representa el salir del corazón para andar el mundo, que así llamaron los primeros a la vida. Y no sólo, dicen que dicen que decían que con el caracol se llamaba al colectivo para que la palabra fuera de uno a otro y naciera el acuerdo. Y también dicen que dicen que decían que el caracol era ayuda para que el oído escuchara incluso la palabra más lejana. Eso dicen que dicen que decían. Yo no sé. Yo camino contigo de la mano y te muestro lo que ve

35 Cf. RIVAS, Gilberto López y (2003). "Contrainsurgencia y paramilitarismo en Chiapas en el gobierno de Vicente Fox". Chiapas, n.15, Instituto de Investigaciones Económicas, UNAM-Era, México. 36 Vicent Fox entrou para o almanaque do insólito e extravagante na vida política mexicana pela inesquecível promessa de resolver a questão chiapaneca em quinze minutos, estando disposto até em conversar pessoalmente sobre o assunto com o próprio Subcomandante Marcos, o qual convidou em entrevista coletiva para um jantar de reconciliação na casa presidencial. 37 O processo de 2001 envolveu mais uma vez uma grande mobilização do EZLN e das organizações indígenas, culminando com uma marcha zapatista até o Congresso Nacional, onde os zapatistas fizeram uso da tribuna. Cf. COMANDANTA ESTHER (2001). “Queremos ser indígenas e mexicanos”. Discurso proferido em 28 de março de 2001 no Palácio Legislativo de Sán Lázaro. Em: Cadernos CEAS, n.195, setembro-outubro, Salvador. 38 Cf. SUBCOMANDATE MARCOS (2003). La treceva estela. Em: http//:www.ezln.org.mx. 39 Cf. CCRI-CG EZLN (2005). Sexta Declaración de la selva Lacandona. Em: http//:www.ezln.org.mx. Uma discussão interessante sobre a Outra Campanha pode ser localizada em: ROJAS, Carlos Aguirre (2006). Chiapas, planeta Tierra. Contrahistorias, México.

mi oído y escucha mi mirada. Y veo y escucho un caracol, el "pu"y", como le dicen en lengua acá.

Subcomandante Insurgente Marcos, La treceava estela Rompendo um silêncio público de quase 2 anos desde a “Marcha

pela Dignidade Indígena” à cidade do México, no dia 8 de agosto de 2003 o CCIR-CG do EZLN anunciou o sepultamento dos Aguascalientes e o nascimento dos Caracóis40. Os festejos fúnebres e natalícios, imersos em muito simbolismo, duraram três dias no munícipio rebelde de Oventik, em Chiapas (comunidade situada em San Andrés Sakam’chen de los Pobres, sede dos diálogos de 1995-1996).

Os Aguascalientes representavam espaços de interlocução entre as

municipalidades rebeldes e a sociedade civil, e ao converter-se em Caracóis, não só mudaram de nome, mas também de funções e de estrutura. Entre as principais transformações inseridas nessa passagem para uma “fase superior de autonomia”, podemos destacar as seguintes41: mudanças na organização interna desses espaços, deixando de ser um “movimento” para converter-se em uma estrutura com membros afiliados; definição mais clara de direitos e obrigações de seus membros e a natureza das relações entre os órgãos das estruturas civil e político-militar; estabelecimento de um novo nível de autoridade nos governos autônomos: a região autônoma; constituição das Juntas de Bom Governo (JBG) como estruturas para a vigilância do “bom governo” das entidades autônomas zapatistas e como instâncias civis para a representação e negociação, interna e externamente; e definição de competências e atribuições dos órgãos de governo das entidades autônomas zapatistas (comunidade, município, e região). Pelo lado das mudanças mais externas, foram redefinidas as regras de relação com “as sociedades civis” nacional e internacional e com as comunidades e organizações sociais de seu entorno. Quadro 2. Os Caracóis e as Juntas de Bom Governo (agosto de 2003)

Caracóies Junta de Bom Governo

Sede Povos

Madre de los caracoles del mar de nuestros sueños

Hacia la esperanza (Selva Fronteriza)

La Realidad Tojolabales, Tseltales e Mames.

Torbellino de nuestras palabras

Corazón del arcoíris de la esperanza

Morelia Tseltales, Tsotsiles e Tojolabales.

Resistencia hacia un nuevo amanecer

El camino de futuro La Garrucha Tseltales

El caracol que habla para todos

Nueva semilla que va a producir

Roberto Barrios Choles, Zoques e Tseltales.

Resistencia y rebeldía por la humanidad

Corazón céntrico de los zapatistas delante del mundo

Oventik Tsoltsiles e Tseltales.

Fonte: Subcomandante Insurgente Marcos, 2003. La treceava estela.

40 Para uma melhor visualização da disposição territorial dos municípios rebeldes e dos Caracoles zapatistas, ver mapas em anexo. 41 Cf. BURGUETE CAL Y MAYOR, Araceli (2003). “Las Juntas de Buen Gobierno”. Memoria. Cemos, n.177, novembro, México; DÍAZ-POLANCO, Héctor (2003). "Juntas de Buen Gobierno ¿una etapa superior de la autonomía?" Memoria. Cemos, n.176, outubro, México.

Cada Caracol abrange uma certa delimitação territorial composta por um número específico de municípios rebeldes. Estes, que já praticavam formas de autogovernos inspiradas em mecanismos de democracia direta, como o mandato imperativo de conselhos, batizado pelos zapatistas como “mandar obedecendo”, integrariam um Caracol através de delegados enviados a sua respectiva JBG42. A nova configuração, além de acentuar as funções dos MAREZ na condução da administração da justiça, da saúde comunitária, da educação, da habitação, da terra, do trabalho, da informação e da cultura, da produção, do comércio e do trânsito local, possibilitou a edificação de uma instância de articulação regional que cumpriria funções exclusivas de coordenação de tarefas partilhadas por um certo número de MAREZ e passariam a zelar pela vigilância dos princípios zapatistas (muitos contidos nas leis revolucionárias, outros em constante elaboração nos seus fóruns, assembléias e encontros internos43), papel antes reservado ao Comando do EZLN, que se passaria a se colocar como força de autodefesa a serviço das comunidades44.

Quadro 3. Objetivos, tarefas e primeiras medidas das Juntas de Buen Gobierno (agosto de 2003) Tentar neutralizar o desequilíbrio no desenvolvimento dos municípios autônomos e das comunidades. Mediar os conflitos entre municípios autônomos, e entre municípios autônomos e governamentais. Atender as denúncias contra os Conselhos Autônomos por violações dos direitos humanos, protestos e inconformidades, investigar sua veracidade, ordenar aos Conselhos Autônomos a correção desses erros, e vigiar seu cumprimento. Vigiar a realização de projetos e tarefas comunitárias nos municípios autônomos rebeldes zapatistas (MAREZ), tomando o cuidado para que sejam cumpridos os tempos e as formas estabelecidos em comum acordo pelas comunidades; e para promover o apoio a projetos comunitários nos MAREZ. Vigiar o cumprimento das leis que, de comum acordo com as comunidades, funcionem nos Marez. Atender e guiar a sociedade civil nacional e internacional na visita às comunidades, levar adiante projetos produtivos, instalar acampamentos de paz, realizar pesquisas (deixando algum benefício para as comunidades), e qualquer atividade permitida em comunidades rebeldes. De comum acordo com o CCRI-CG do EZLN, promover e aprovar a participação de companheiros e companheiras dos MAREZ em atividades ou eventos fora das comunidades rebeldes, e para eleger e preparar os mesmos. Cuidar para que, em território rebelde zapatista, aquele que manda, mande obedecendo. Decidir, depois de avaliar a situação das comunidades, onde é mais necessário que se dirijam os apoios externos. É obrigatório a todos os projetos o chamado “imposto irmão”, que é de 10% do montante do total do projeto, destinado a outra comunidade que não recebe apoio, para equilibrar um pouco o desenvolvimento econômico das comunidades em resistência. Registrar pessoas, comunidades e sociedades de produção e comercialização zapatistas. Os excedentes ou bonificações pela comercialização de produtos de cooperativas e sociedades zapatistas serão entregues às JBGs para apoiarem aqueles que não podem comercializar seus produtos ou não recebam nenhum tipo de apoio. Fonte: Subcomandante Insurgente Marcos, 2003. La treceava estela.

42 Cf. MONJARDIN, Adriana López e Millán, Dulce María Rebolledo (1999). "Los municipios autónomos zapatistas". Chiapas, n. 7, Instituto de Investigaciones Económicas, UNAM-Era, México. 43 Em 2008 por exemplo, quando da minha estadia na região do Caracol de La Garrucha, os zapatistas estavam formulando sua lei de educação e produzindo um novo estatuto sobre a ocupação das terras recuperadas em 1994. 44 Cf. ALMEYRA, Guillermo (2003). "Las juntas de buen gobierno zapatistas y la autonomía". Memoria. Cemos, n.176, outubro, México.

Cada região autônoma zapatista passaria a contar com três níveis

de governo civil: o regional, com uma JBG; o municipal, integrado por um Conselho Autônomo de um MAREZ, e o comunitário, com representantes das “comunidades em resistência”. Mas com a especificidade de que os representantes regionais operam como estruturas coordenadoras, municiado pelas deliberações e decisões emanadas dos municípios e comunidades. Quanto ao ponto, é perceptível a preocupação dos zapatistas integrantes das Juntas em manter em máximo funcionamento um bom nível de capilaridade com as comunidades e os municípios.

O número de membros das Juntas variam em cada Caracol, de

acordo com suas particularidades. Eleitos para mandatos de 3 anos, revogáveis a qualquer instante por pedido de representação das comunidades ou municípios, sem receberem nenhum soldo, os membros das Juntas turnam suas atividades entre si, alternando seu tempo entre o trabalho no Caracol e o trabalho (doméstico e produtivo) em sua comunidade de origem. O que garante a permanência de um zapatista em uma Junta ou conselho municipal é o esforço colaborativo de sua comunidade ou município, seja enviando alimentos, animais, pequenas contribuições em dinheiro para a locomoção, seja trabalhando sua parcela de terra durante a ausência em período de plantio e colheita. A família de um zapatista conselheiro também cumpre um papel fundamental nesse processo de dispensa temporária das atividades produtivas e domésticas, e geralmente, quanto maior o núcleo familiar, maior a capacidade de dispensar um ou mais de seus membros para tarefas de organização política.

Nas Juntas também se organizam comissões de educação, saúde,

justiça, questões agrárias, comunicação, etc, e muitos zapatistas quando nessas funções recebem uma formação especial por parte de membros do EZLN, bem como por ativistas da sociedade civil que se dedicam a projetos de capacitação. Hoje, muitas comissões já são capazes de conduzir a formação de seus novos quadros.

As áreas de educação e saúde mereceram um cuidado muito

especial por parte dos zapatistas. Quase toda comunidade possui sua escola primária, com seu promotor de educação. Nos municípios e nos Caracóis, nos últimos anos já começaram a aparecer as primeiras escolas de segundo nível, bem como clínicas de saúde com significativa estrutura. Os promotores de educação e saúde geralmente são jovens zapatistas que recebem formação especial e dedicam parte de seu tempo a essas atividades, mas nunca abandonando o trabalho na terra, ainda que apoiados por suas comunidades quando existe alguma incompatibilidade de tempo entre as duas atividades.

Nos municípios, os conselhos autônomos também possuem

mandatos de 3 anos e comissões de área, nos mesmo moldes de organização das Juntas. Porém, esses conselhos acumulam mais funções administrativas, e são responsáveis por conduzir deliberações a partir da convocação de assembléias municipais, congregando todas as comunidades pertencentes ao município. Nas comunidades escolhidas como sedes dos municípios se

encontram as estruturas físicas, escritórios e casas, que abrigam os conselhos. Um município geralmente é formado por algumas dezenas de comunidades, mas é complicado estabelecer um parâmetro de sua ordenação interna. A explicação mais corrente entre os zapatistas é de que os municípios se formaram por comunidades filiadas a sua estrutura militar, obviamente, a partir da formação inicial dos núcleos de apoio ao movimento no período de clandestinidade, se transformando posteriormente em uma espécie de assentamentos demográficos politicamente federados.

Nesse aspecto, é curioso observar como muitos municípios

zapatistas não possuem contiguidade territorial. Além de estarem virtualmente inseridos na área de abrangência de um ou mais municípios oficiais chiapanecos, entre uma comunidade zapatista e outra é provável que se poderá encontrar uma comunidade não zapatista, ou mesmo hostil aos zapatistas45. Mais: dentro de uma comunidade zapatista é provável que existam famílias não zapatistas (a maioria delas ex-zapatistas, mas não somente), e mesmo dentro de uma família zapatista, indivíduos não zapatistas. Tal evidência corrobora minha hipótese do modelo de autogoverno zapatista como uma federação de comunidades rebeldes em armas46.

Longe de possuir, ou mesmo advogar domínio absoluto sobre a

totalidade do território ocupado, os zapatistas defendem rigorosamente um princípio do próprio Emiliano Zapata, evocado durante a Revolução Mexicana de 1911: a terra é de quem a trabalha. Assim, não encontram nenhum entrave na presença de não zapatistas em “seus” territórios (ou como se referem: nas “terras recuperadas”) desde que a terra não seja objeto de mercantilização ou negociação com agentes do governo.

As comunidades zapatistas, por sua vez, podem variar entre

algumas dezenas até centenas de famílias, em distintas dimensões de faixas de terras. Nelas se concentram todas as dinâmicas da vida doméstica e produtiva. A família camponesa extensa é o núcleo de organização do trabalho no campo. As terras, ocupadas por parcelas familiares, são trabalhadas por parentes. Por outro lado, algumas parcelas de terras são destinadas ao trabalho cooperado e coletivo, cujos produtos geralmente são destinados para a manutenção de determinadas atividades nas comunidades, nos municípios, e mesmo nos Caracóis. Portanto, os coletivos de trabalho inter-familiar, organizados politicamente, são instrumentos fundamentais para manutenção da vida social zapatista47.

A assembléia comunitária, com a participação aberta de todos

(inclusive os mais jovens), é o eixo de organização da vida política e social 45 Foi justamente nesses elementos que o governo mexicano encontrou terreno fértil para a formação de muitos grupos paramilitares, na segunda metade dos anos 1990. 46 Tema induzido a partir de minha estadia em várias comunidades zapatistas durante o ano de 2008 e que pretendo desenvolver em outra oportunidade. 47 Dada a inexistência, ou mesmo o rechaço, de um sistema tributário rebelde, os zapatistas preferem sustentar o que poderíamos chamar por suas “políticas públicas” através dos coletivos de trabalho. A produção originária desse esforço coletivo, ou os recursos adquiridos com a sua venda nos mercados e feiras mais próximos, são utilizados para a aquisição de bens ou o financiamento de suas estruturas educacionais, de saúde, etc.

zapatista. Tudo se decide em assembléia, desde a elaboração de propostas para o plantio em áreas coletivas, o encaminhamento de sugestões e consultas dos municípios ou JBG’s, a colonização de faixas de terras por novos indíviduos, a alternância das faixas de terras para descanso ou realocação entre famílias, o uso dos bosques e recursos naturais, propostas de trabalho com a sociedade civil, conflito entre cônjuges, disputas pessoais, organização de festas e atividades religiosas, etc. Algumas questões podem ser encaminhadas para outros fóruns e espaços, quando a comunidade se crê incapaz de solucioná-las (especialmente no que tange a aplicação da justiça, muitas vezes o espaço do munícipio, com a presença de membros de outras comunidades, parece depositário de maior legitimidade e parcialidade). De toda forma, a busca do consenso é a chave de operação das assembléias zapatistas, o que significa que geralmente, se uma discussão é delicada, uma assembléia pode correr o curso de dias e semanas, em prolongadas sessões.

As comunidades também possuem suas autoridades internas,

delegadas pelas assembléias locais. Os mandatos das autoridades locais, entretanto, podem ter validade diferenciada, ainda que revogáveis a qualquer instante. Invariavelmente, por questões de mérito, um veterano de 1994 costuma assumir alguma dessas funções. São elas: o comissário agrário, o agente e o responsável. Os dois primeiros cargos foram apropriados da antiga estrutura ejidal, estabelecidos a partir da legislação agrária mexicana de 1917, e muito presente no cotidiano político dos ativistas indígenas que precederam a chegada das FLN em Chiapas, e o último, uma criação destas. Ao comissário, cabe encaminhar os procedimentos de resolução dos conflitos agrários e discutir com a comunidade projetos produtivos relacionados a ocupação da terra. O agente é o laço da comunidade com as autoridades municipais zapatistas. E o responsável, por sua vez, o representante da comunidade diante da “organização”48: o EZLN. O responsável muitas vezes ocupa algum posto hierárquico diante do corpo de milicianos zapatistas, e é o elo da comunidade com o CCRI da região.

VI- Considerações finais

“Da perspectiva da práxis, todo fragmento é totalidade. Da perspectiva do poder, todo fragmento é totalitário”.

Raoul Vaneigem

O processo de autonomia regional que os zapatistas começaram a construir com os Caracóis está se realizando explicitamente na contra-corrente de qualquer marco legal no México, e sua legitimação está baseada nos conteúdos dos Acordos de San Andrés e no apoio constante que a sociedade civil nacional e internacional depositou no EZLN. Este processo implicou em uma curiosa redefinição de sua estratégia de luta, pois ratificou: a via política como caminho; a resistência como sua principal forma de luta, ainda que somente nos últimos anos se consolidou o rechaço total a qualquer negociação com o Estado mexicano; a instauração de governos locais como uma forma de

48 A “organização”: este é o modo corrente como as comunidades zapatistas se referem ao EZLN.

organização social inovadora aplicando, pelas vias de fato, seu projeto de autonomia; e a centralidade da via civil para o impulsionamento de mudanças sociais.

Muito se tem discutido se o zapatismo estaria lançando ou não um

novo paradigma que poderia vir a representar uma tendência configurativa dos movimentos sociais do século XXI. John Holloway, por exemplo, popularizou a expressão “mudar o mundo sem tomar o poder” a partir de sua leitura do fenômeno zapatista. Creio que é ponto pacífico que o modelo de revolução do século XX baseado na estratégia dos “dois tempos”, para citar argumento utilizado por Wallerstein, em que 1) os subalternos, ou sua vanguarda, edificam uma organização revolucionária para assaltar o poder de Estado, e 2) a partir do controle do aparato estatal, se revoluciona (ou mais bem, se reforma) de cima para baixo toda a sociedade, já não possui atrativo ou apelo mobilizador como outrora. É correto pensar que o EZLN se formou sob essa perspectiva, mas sua prática política e seu discurso pós-1994 o coloca muito em sintonia com a caracterização dada por Holloway. De forma que existem intérpretes do zapatismo que o situam tanto de um lado como de outro desta trincheira. Aliás, isso é o que mais impressiona no zapatismo: sua capacidade de ser apropriado e defendido por indivíduos e organizações dos mais diversos matizes ideológicos dentro da “esquerda”: de reformistas indigenistas, socialdemocratas “de raiz”, humanistas progressistas, comunistas (de todas as estirpes), neohippies, espiritualistas, libertários, existencialistas a anarcopunks hightechs49.

Que o zapatismo representa algo de novo no universo das lutas

sociais anti-sistêmicas, quanto a isso não resta muita dúvida. Que essa escalada de lutas anti-sistêmicas do século XXI se ampara, mais do que nunca, na oposição frontal a toda forma de dominação e exploração institucionalizadas por uma certa forma de organização da economia e da política, isso também me parece claro. O mais paradoxal, na minha concepção, é que o zapatismo, como movimento nascido no seio da “luta de libertação nacional”, soube com algum êxito transladar de uma posição onde utilizou-se da luta armada para perseguir fins reformistas (uma nova constituição para o México, a democratização do sistema político, a incorporação das populações indígenas na arquitetura do poder), para uma onde se utilizou de meios aparentemente reformistas (reformulação dos artigos 4 e 27 da constituição mexicana, validação legal dos acordos de San Andres, defesa das autonomias) para conseguir finalidades revolucionárias (o experimento de autogoverno, e todo o seu impacto no debate sobre a democracia no México e no mundo), sem nenhuma defesa dogmática e essencialista por um caminho ou por outro. Nesse sentido, o zapatismo nos inspira a repensar o velho dualismo entre “reforma e revolução” sob outro ângulo, pelo menos naquilo que dizia respeito a uma certa articulação “necessária” e “coerente” (para não dizer canônica) de determinados meios e fins.

A direção que um movimento como o zapatismo parece apontar (e que não é novidade, apenas possui melhores condições atualmente de se fazer 49 Toda essa complexa ecologia social e política pode ser conferida por aqueles que em algum momento já participaram de alguma convocatória ou encontro internacional zapatistas em Chiapas.

tangível e vocalizável) é que a radicalização da democracia pode ser a forma mais incisiva e consequente de corroer e minar a lógica que sustenta tanto o Estado como o mercado como eixos vertebrais da mundo social moderno, abrindo margem para a possibilidade de reorganização (ou mesmo abolição) dessas entidades tal como a conhecemos e a concebemos.

A experiência zapatista de autonomia e autogoverno, aliás, nos

induz a refletir sobre o monopólio liberal exercido sobre o imaginário democrático ocidental, nos auxiliando na condução de uma concepção de ideal democrático que vá mais além da noção de regime político ou procedimentos institucionalizados, mas visualizar a democracia em duas dimensões: 1) como um determinado tipo de configuração societária organizada por práticas, valores e representações que tenha o homem e a humanidade socializada como meio e como fim, nos remetendo a uma certa antropologia da autonomia fundada no ser humano como a realização da política e da política como a realização das potencialidades humanas; 2) um movimento contínuo e sinuoso (o que não quer dizer linear) de complexificação da vida social dinamizado pela universalização de determinadas condições sociais tendentes ao igualitarismo que garantem a produção de novos espaços de liberdade e de individuação dos sujeitos sociais.

Longe de representar o paraíso na terra, ou uma nova idade de ouro

em emergência, o projeto zapatista de autonomia e autogoverno está carregado de problemas, vícios e obstáculos, tanto de tipo exógeno (militarização da região; ação de paramilitares; política social de contra-insurgência do governo) quanto endógeno (a ascêndencia do “zapatismo militar” sobre o “zapatismo civil” e divisões internas). Entretanto, é justamente a constatação dessas tensões que nos convoca com uma certa urgência a nos aproximar política e analiticamente do experimento zapatista, naquilo que ele ainda é capaz de nos surpreender em relação ao processo de naturalização e reificação das nossas próprias instituições sociais e políticas quase consolidado, e nossos modos convencionais de explicá-las e justificá-las.

VI- Anexo: Mapas de interesse: