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OutrasOutras 

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JORGE LUISJORGE LUIS 

BORGESBORGES

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 Este livro: Outras inquisições , é parte integrante da coleção:

JORGE LUIS BORGESJORGE LUIS BORGES––OBRAS COMPLETASOBRAS COMPLETASVOLUME II 

1952-1972Título do original em espanhol: Jorge Luis Borges - Obras Completas

Copyright © 1998 by Maria Kodama

Copyright © 1999 das traduções by Editora Globo S.A.1ª Reimpressão-9/99 2ª Reimpressão-12/OO

Edição baseada em Jorge Luis Borges - Obras Completas,

 publicada por Emecé Editores S.A., 1989, Barcelona - Espanha.

Coordenação editorial: Carlos V. FriasCapa: Joseph Ubach / Emecé Editores

Ilustração: Alberto Ciupiak Coordenação editorial da edição brasileira: Eliana Sá

Assessoria editorial: Jorge Schwartz

Revisão das traduções: Jorge Schwartz e Maria Carolina de Araujo

Preparação de originais: Maria Carolina de Araujo

Revisão de textos: Márcia Menin

Projeto gráfico: Alves e Miranda Editorial Ltda.Fotolitos: AM Produções Gráficas Ltda.

 Agradecimentos a Adria Frizzi, Ana Giménez, Christopher E Laferl, Edgardo Krebs, Élida Lois, Eliot Weinberger, Enrique Fierro, Francisco Achcar,

 Haroldo de Campos, Ida Vitale, José Antônio Arantes e Maite Celada

Direitos mundiais em língua portuguesa, para o Brasil, cedidos à

EDITORA GLOBO S.A.

Avenida Jaguaré, 1485

CEP O5346-9O2 - Tel.: 3767-7OOO, São Paulo, SP

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etc. - nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização da editora.Impressão e acabamento:

Gráfica Círculo

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte - Câmara Brasileira do Livro, SPBorges, Jorge Luis, 1899-1986.

Obras completas de Jorge Luis Borges, volume 2 / Jorge Luis Borges. - São Paulo : Globo, 2OOO.

Título original: Obras completas Jorge Luis Borges. Vários tradutores.v. 1. 1923-1949 / v. 2.1952-1972 ISBN 85-25O-2877-O (v. 1) ISBN 85-25O-2878-9 (v. 2)

1. Ficção argentina 1. Título.

CDD-ar863.4Índices para catálogo sistemático

1. Ficção : Século 2O : Literatura argentina ar863.4

1. Século 2O : Ficção : Literatura argentina ar863.4

OUTRAS INQUISIÇÕESOtras Inquisiciones

Tradução de Sérgio Molina

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OUTRASOUTRAS 

INQUISIÇÕESINQUISIÇÕES – 1952 -

 A Margot Guerrero

A MURALHA E OS LIVROS

 He, whose long wall the wand’ ring 

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Tartar bounds... Dunciad , II, 76.

Li, dias atrás, que o homem que ordenou a edificação da quase infinita

muralha chinesa foi aquele primeiro Imperador, Che Huang-ti, que tambémmandou queimar todos os livros anteriores a ele. O fato de as duas vastasoperações – as quinhentas a seiscentas léguas de pedra opostas aos bárbaros, arigorosa abolição da história, isto é, do passado – procederem da mesma pessoae serem de certo modo seus atributos inexplicavelmente agradou-me e, aomesmo tempo, inquietou-me. Indagar as razões dessa emoção é o fito destanota.

Historicamente, não há mistério nas duas medidas. Contemporâneo das

guerras de Aníbal, Che Huang-ti, rei de Tsin, reduziu os Seis Reinos a seu poder e aboliu o sistema feudal; erigiu a muralha, porque as muralhas eramdefesas; queimou os livros, porque a oposição os invocava para louvar osantigos imperadores. Queimar livros e erigir fortificações é tarefa comum dos príncipes; a única singularidade de Che Huang-ti foi a escala em que ele atuou.É o que dão a entender alguns sinólogos, mas eu sinto que os fatos referidossão algo mais que um exagero ou uma hipérbole de disposições triviais. Cercar uma horta ou um jardim é comum; não, cercar um império. Tampouco é

rotineiro pretender que a mais tradicional das raças renuncie à memória de seu passado, mítico ou verdadeiro. Três mil anos de cronologia tinham os chineses(e, nesses anos, o Imperador Amarelo, e Chuang Tzu, e Confúcio, e Lao-tsé),quando Che Huang-ti ordenou que a história começasse com ele.

Che Huang-ti condenara a mãe ao desterro por libertinagem; em sua dura justiça, os ortodoxos não viram senão impiedade; Che Huang-ti talvez quisessesuprimir os livros canônicos porque estes o acusavam; Che Huang-ti talvezquisesse abolir todo o passado para abolir uma única lembrança: a infâmia de

sua mãe. (Não de outra sorte um rei, na Judéia, mandou matar todas as crianças para matar uma.) Essa conjetura é aceitável, mas nada nos diz da muralha, dasegunda face do mito. Che Huang-ti, segundo os historiadores, proibiuqualquer menção à morte, e procurou o elixir da imortalidade, e recluiu-se emum palácio figurativo, que constava de tantos aposentos como dias tem o ano;esses dados sugerem que a muralha no espaço e o incêndio no tempo foram barreiras mágicas destinadas a deter a morte. Todas as coisas querem persistir em seu ser, escreveu Baruch Spinoza; pode ser que o imperador e seus magosacreditassem que a imortalidade é intrínseca e que a corrupção não pode entrar em um orbe fechado. Pode ser que o Imperador tenha tentado recriar o princípio do tempo, tenha-se chamado Primeiro para ser realmente o primeiro,e Huang-ti para de certo modo ser Huang-ti, o legendário imperador que

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inventou a escrita e a bússola. Este, segundo o Livro dos Ritos, deu às coisasseu nome verdadeiro; semelhantemente, Che Huang-ti jactou-se, em inscriçõesque perduram, de que, sob seu império, todas as coisas receberam o nome quelhes convém. Sonhou em fundar uma dinastia imortal; ordenou que seusherdeiros se chamassem Segundo Imperador, Terceiro Imperador, Quarto

Imperador, e assem até o infinito... Falei de um propósito mágico; também poderíamos supor que erigir a muralha e queimar os livros não foram atossimultâneos. Isso (segundo a ordem que escolhêssemos) dar-nos-ia a imagemde um rei que começou por destruir e mais tarde resignou-se a conservar, ou ade um rei desiludido que destruiu o que antes defendia. Ambas as conjeturassão dramáticas, mas, que eu saiba, carecem de base histórica. Herbert AllenGiles conta que aqueles que ocultaram livros foram marcados a ferro candentee condenados a construir, até o dia de sua morte, a desmedida muralha. Essa

notícia favorece ou tolera outra interpretação. Talvez a muralha fosse umametáfora, talvez Che Huang-ti tenha condenado aqueles que adoravam o passado a uma obra tão vasta quanto o passado, tão néscia e tão inútil. Talvez amuralha fosse um desafio e Che Huang-ti tenha pensado: "Os homens amam o passado, e contra esse amor nada posso nem podem meus carrascos, mas umdia há de viver um homem que sinta como eu, e ele destruirá minha muralha,como eu destruí os livros, e ele apagará minha memória e será minha sombra emeu espelho, e não o saberá". Talvez Che Huang-ti tenha amuralhado o

império porque sabia que este era precário e destruído os livros por entender que eram livros sagrados, ou seja, livros que ensinam o que ensina o universointeiro ou a consciência de cada homem. Talvez o incêndio das bibliotecas e aedificação da muralha sejam operações que de modo secreto se anulam.

A muralha tenaz que neste momento, e em todos, projeta seu sistema desombras sobre terras que não verei é a sombra de um César que ordenou que amais reverente das nações queimasse seu passado; é verossímil que a idéia nostoque por si mesma, para além das conjeturas que permite. (Sua virtude pode

estar na oposição entre construir e destruir, em enorme escala.) Generalizandoo caso anterior, poderíamos inferir que todas as formas têm sua virtude em simesmas e não em um "conteúdo" conjeturai. Isso coincidiria com a tese deBenedetto Croce; já Pater, em 1877, afirmou que todas as artes aspiram àcondição da música, que é apenas forma. A música, os estados de felicidade, amitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugaresquerem dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão prestes a dizer algo; essa iminência de uma revelação, que não se produz, étalvez o fato estético.

 Buenos Aires, 1950.

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A ESFERA DE PASCAL

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Talvez a história universal seja a história de algumas metáforas. Esboçar um capítulo dessa história é o fito desta nota.

Seis séculos antes da era cristã, o rapsodo Xenófanes de Colofônio, fartodos versos homéricos que recitava de cidade em cidade, condenou os poetasque atribuíram traços antropomórficos aos deuses e propôs aos gregos um

único Deus, que era uma esfera eterna. No Timeu, de Platão, lê-se que a esferaé a figura mais perfeita e mais uniforme, porque todos os pontos da superfícieeqüidistam do centro; Olof Gigon (Ursprang der Griechischen Philosophie,183) entende que Xenófanes falou analogicamente; o Deus era esferoidal por ser essa forma a melhor, ou menos má, para representar a divindade.Parmênides, quarenta anos depois, repetiu a imagem ("o Ser é semelhante àmassa de uma esfera bem arredondada, cuja força é constante do centro emqualquer direção"); Calogero e Mondolfo entendem que ele intuiu uma esfera

infinita, ou infinitamente crescente, e que as palavras transcritas acima têm umsentido dinâmico (Albertelli: Gli Eleati, 148). Parmênides lecionou na Itália; poucos anos antes de sua morte, o siciliano Empédocles de Agrigento urdiuuma laboriosa cosmogonia; há uma etapa em que as partículas da terra, daágua, do ar e do fogo integram uma esfera sem fim, "o Sphairos redondo, queexulta em sua solidão circular".

A história universal seguiu seu curso, os deuses demasiado humanos queXenófanes atacara foram rebaixados a ficções poéticas ou a demônios, mas

afirmou-se que um deles, Hermes Trismegisto, ditara um número variável delivros (42, segundo Clemente de Alexandria; 20.000, segundo Jâmblico;36.525, segundo os sacerdotes de Thot, que também era Hermes), em cujas páginas estavam escritas todas as coisas. Fragmentos dessa biblioteca ilusória,compilados ou forjados desde o século I1, formam aquilo que recebe o nome deCorpus Hermeticum; em um desses fragmentos, ou no  Asclépio, tambématribuído a Trismegisto, o teólogo francês Alain de Lille – Alanus de Insulis – descobriu em fins do século XII a seguinte fórmula, que as idades vindouras

não esqueceriam: "Deus é uma esfera inteligível, cujo centro está em toda a parte e a circunferência em nenhuma". Os pré-socráticos falaram de uma esferasem fim; Albertelli (como, antes, Aristóteles) pensa que falar assim é cometer uma contradictio in adjecto, pois sujeito e predicado se anulam; isso bem podeser verdade, mas a fórmula dos livros herméticos deixa-nos, quase, intuir essaesfera. No século XIII, a imagem reapareceu no simbólico  Roman de la Rose,que a apresenta como sendo de Platão, e na enciclopédia Speculum Triplex; noXVI, o último capítulo do último livro de  Pantagruel referiu-se a "essa esferaintelectual, cujo centro está em toda a parte e a circunferência em nenhuma,que chamamos Deus". Para a mente medieval, o sentido era claro: Deus estáem cada uma de suas criaturas, mas nenhuma O limita. "O céu, o céu dos céus,

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não te contém", disse Salomão (I Reis 8, 27); a metáfora geométrica da esferadeve ter parecido uma glosa dessas palavras.

O poema de Dante preservou a astronomia ptolomaica, que durante mil equatrocentos anos regeu a imaginação dos homens. A terra ocupa o centro douniverso. É uma esfera imóvel; em torno dela giram nove esferas concêntricas.

As sete primeiras são os céus planetários (céus da Lua, de Mercúrio, de Vênus,do Sol, de Marte, de Júpiter, de Saturno); a oitava, o céu das estrelas fixas; anona, o céu cristalino, também chamado Primeiro Móvel. Este é rodeado peloEmpíreo, que é feito de luz. Toda essa laboriosa máquina de esferas ocas,transparentes e giratórias (um dos sistemas requeria cinqüenta e cinco) chegaraa ser uma necessidade mental;  De Hipothesibus Motuum CoelestiumCommentariolus é o tímido titulo que Copérnico, negador de Aristóteles, deuao manuscrito que transformou nossa visão do cosmos. Para um homem, para

Giordano Bruno, a ruptura das abóbadas estelares foi uma libertação. Este proclamou, na Ceia das Cinzas, que o mundo é o efeito infinito de uma causainfinita e que a divindade está próxima, "pois está dentro de nós mais ainda quenós mesmos estamos dentro de nós". Procurou palavras para explicar o espaçocopernicano aos homens e em uma página famosa estampou: "Podemosafirmar com certeza que o universo é todo centro, ou que o centro do universoestá em toda a parte e a circunferência em nenhuma" ( Da Causa, do Princípioe da Unidade, V).

Isso foi escrito com exultação em 1584, ainda à luz do Renascimento;setenta anos depois, não restava nem um reflexo desse fervor, e os homenssentiram-se perdidos no tempo e no espaço. No tempo, porque, se o futuro e o passado são infinitos, não haverá realmente um quando; no espaço, porque, setodo ser eqüidista do infinito e do infinitesimal, tampouco haverá um onde. Ninguém está em algum dia, em algum lugar; ninguém sabe o tamanho de seurosto. No Renascimento, a humanidade acreditou que chegara à idade viril, eassim o declarou pela boca de Bruno, de Carnpanella e de Bacon. No século

XVII acovardou-a uma sensação de velhice; para se justificar, exumou a crençaem uma lenta e fatal degeneração de todas as criaturas, por obra do pecado deAdão. (No quinto capítulo do Gênesis consta que "todos os dias de Matusalémforam novecentos e setenta e nove anos"; no sexto, que "havia gigantes sobre aterra naqueles dias".) O primeiro aniversário da elegia  Anatomy of the World ,de John Donne, lamentou a vida brevíssima e a estatura mínima dos homenscontemporâneos, que são como as fadas e os pigmeus; Milton, segundo a biografia de Johnson, temeu que o gênero épico já fosse impossível na terra;Glanvill entendeu que Adão, "medalha de Deus", desfrutou de uma visãotelescópica e microscópica; Robert South famosamente escreveu: "UmAristóteles não foi mais que escombros de Adão, e Atenas, os rudimentos doParaíso". Naquele século desanimado, o espaço absoluto que inspirou os

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hexâmetros de Lucrécio, o espaço absoluto que para Bruno fora umalibertação, foi um labirinto e um abismo para Pascal. Este abominava ouniverso e desejaria adorar a Deus, mas Deus, para ele, era menos real que oabominado universo. Deplorou que o firmamento não falasse, comparou nossavida à de náufragos em uma ilha deserta. Sentiu o peso incessante do mundo

físico, sentiu vertigem, medo e solidão, e expressou-os em outras palavras: "Anatureza é uma esfera infinita, cujo centro está em toda a parte e acircunferência em nenhuma". O texto é assim publicado por Brunschvicg, masa edição crítica de Tourneur (Paris, 1941), que reproduz as rasuras e vacilaçõesdo manuscrito, revela que Pascal começou a escrever effroyable: "Uma esferaterrível, cujo centro está em toda a parte e a circunferência em nenhuma".

Talvez a história universal seja a história da vária entonação de algumasmetáforas.

 Buenos Aires, 1951.

A FLOR DE COLERIDGE

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Por volta de 1938, Paul Valéry escreveu: "A história da literatura nãodeveria ser a história dos autores e dos acidentes de sua carreira ou da carreirade suas obras, e sim a história do Espírito como produtor ou consumidor deliteratura. Essa história poderia ser levada a termo sem mencionar um único

escritor". Não era a primeira vez que o Espírito formulava essa observação; em1844, no povoado de Concord, outro de seus amanuenses anotara: "Dir-se-iaque uma única pessoa redigiu quantos livros há no mundo; há neles tal unidadecentral que é inegável serem obra de um único cavalheiro onisciente"(Emerson: Essays, 2, VIII). Vinte anos antes, Shelley sentenciou que todos os poemas do passado, do presente e do porvir são episódios ou fragmentos de umúnico poema infinito, construído por todos os poetas do orbe (A  Defence of  Poetry, 1821).

Essas considerações (implícitas, sem dúvida, no panteísmo) permitiriamum infindável debate; eu, agora, invoco-as para executar um modesto propósito: a história da evolução de uma idéia, por meio dos textosheterogêneos de três autores. O primeiro texto é uma nota de Coleridge, ignorose escrita em fins do século XV11I ou princípios do XIX. Diz, literalmente:

"Se um homem atravessasse o Paraíso em um sonho e lhe dessem umaflor como prova de que estivera ali, e ao despertar encontrasse essa flor em suamão... O que pensar?"

 Não sei qual será a opinião de meu leitor acerca dessa imaginação; eu aconsidero perfeita. Usá-la como base de outras invenções felizes parece previamente impossível; tem a integridade e a unidade de um terminus ad quem, de uma meta. Claro que o é; na ordem da literatura, como em outras, nãohá ato que não seja coroação de uma infinita série de causas e manancial deuma infinita série de efeitos. Por trás da invenção de Coleridge está a geral eantiga invenção das gerações de amantes que pediram uma flor como prova.

O segundo texto que alegarei é um romance que Wells esboçou em 1887

e reescreveu sete anos mais tarde, no verão de 1894. A primeira versãointitulava-se The Chronic Argonauts (neste titulo descartado, chronic tem ovalor etimológico de "temporal"); a definitiva, The Time Machine. Wells, nesseromance, continua e reforma uma antiqüíssima tradição literária: a previsão defatos futuros. Isaías vê a desolação de Babilônia e a restauração de Israel;Enéias, o destino militar de sua posteridade, os romanos; a profetisa de  EddaSaemundi, o retorno dos deuses que, depois da cíclica batalha em que nossaterra há de perecer, descobrirão, espalhadas entre as ervas de uma nova pradaria, as peças de xadrez com que antes jogaram... O protagonista de Wells,ao contrário desses espectadores proféticos, viaja fisicamente ao futuro. Voltaexausto, empoeirado e muito abatido; volta de uma remota humanidade que se bifurcou em espécies que se odeiam (os ociosos eloi, que habitam em palácios

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dilapidados e ruinosos jardins; os subterrâneos e nictalopes morlocks, que sealimentam dos primeiros); volta com as têmporas encanecidas e traz do porvir uma flor murcha. Essa é a segunda versão da imagem de Coleridge. Maisinacreditável que uma flor celestial ou que a flor de um sonho é a flor futura, acontraditória flor cujos átomos agora ocupam outros lugares e ainda não se

combinaram.A terceira versão que comentarei, a mais trabalhada, é invenção de umescritor muito mais complexo que Wells, embora menos dotado dessasagradáveis virtudes que se costuma chamar de clássicas. Refiro-me ao autor de A Humilhação dos Northmore, o triste e labiríntico Henry James. Este, aomorrer, deixou inacabado um romance de caráter fantástico, The Sense of the Past , que é uma variante ou elaboração de The Time Machine.1 O protagonistade Wells viaja ao futuro em um inconcebível veículo, que avança ou recua no

tempo como os outros veículos no espaço; o de James volta ao passado, aoséculo XVIII, à força de compenetrar-se dessa época. (Os dois procedimentossão impossíveis, mas o de James é menos arbitrário.) Em The Sense of the Past ,o nexo entre o real e o imaginário (entre atualidade e passado) não é uma flor,como nas ficções anteriores; é um retrato que data do século XVIII e quemisteriosamente representa o protagonista. Este, fascinado por essa tela,consegue trasladar-se à data em que foi executada. Entre as pessoas queencontra, figura, necessariamente, o pintor; este o pinta com temor e aversão,

 pois intui algo de incomum e anômalo nessas feições futuras... James cria,assim, um incomparável regressos in infinitum, já que seu herói, RalphPendrel, traslada-se ao século XVIII. A causa é posterior ao efeito, o motivo daviagem é uma das conseqüências da viagem.

Wells, verossimilmente, desconhecia o texto de Coleridge; Henry Jamesconhecia e admirava o texto de Wells. Claro que, se for válida a doutrina deque todos os autores são um autor,2 tais fatos são irrelevantes. A rigor, não éindispensável ir tão longe; o panteísta que declara que a pluralidade dos autores

é ilusória encontra inesperado apoio no classicista, segundo o qual essa pluralidade importa muito pouco. Para as mentes clássicas, a literatura é oessencial, não os indivíduos. George Moore e James Joyce incorporaram, emsuas obras, páginas e sentenças alheias; Oscar Wilde costumava dar seusargumentos de presente para que outros os executassem; ambas as condutas,

1  Não li The Sense of Past , mas conheço a suficiente análise de Stephen Spender, em sua obra The Destructive Element  (p. 1O5-1O). James foi amigo de Wells; sobre a relação deles pode-se consultar ovasto Experiment in Autobiography, deste último.

2 Em meados do século XVII, o epigramatista do panteísmo Angelus Silesius disse que todos os bem-aventurados são um (Cherubinischer Wandersmann, V, 7) e que todo cristão deve ser Cristo (op. cit., V,9).

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embora superficialmente opostas, podem evidenciar um mesmo sentido da arte.Um sentido ecumênico, impessoal... Outra testemunha da unidade profunda doVerbo, outro pegador dos limites do sujeito, foi o insigne Ben Johnson, que,empenhado na tarefa de formular seu testamento literário e os ditamesfavoráveis ou adversos que dele mereciam seus contemporâneos, limitou-se a

combinar fragmentos de Sêneca, de Quintiliano, de Justo Lipsio, de Vives, deErasmo, de Maquiavel, de Bacon e dos dois Escalígeros.Uma última observação. Aqueles que copiam minuciosamente um

escritor fazem-no de modo impessoal, fazem-no por confundir esse escritor com a literatura, fazem-no por supor que se afastar dele em um ponto é afastar-se da razão e da ortodoxia. Durante muitos anos, eu acreditei que a quaseinfinita literatura estava em um homem. Esse homem foi Carlyle, foi JohannesBecher, foi Whitman, foi Rafael Caninos-Asséns, foi De Quincey.

O SONHO DE COLERIDGE

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O fragmento lírico  Kubla Khan (cinqüenta e tantos versos rimados eirregulares, de refinada prosódia) foi sonhado pelo poeta inglês Samuel Taylor Coleridge, em um dos dias do verão de 1797. Coleridge escreve que se retirara para uma chácara nos confins de Exmoor; uma indisposição obrigou-o a tomar 

um hipnótico; foi vencido pelo sono momentos depois de ler uma passagem dePurchas que descreve a edificação de um palácio por Kubilai Khan, oimperador cuja fama ocidental foi obra de Marco Polo. No sonho de Coleridge,o texto lido por acaso principiou a germinar e a se multiplicar; o homem quedormia intuiu uma série de imagens visuais e, simplesmente, de palavras que asmanifestavam; passadas algumas horas, acordou, com a certeza de ter composto, ou recebido, um poema de cerca de trezentos versos. Recordava-oscom singular clareza e conseguiu transcrever o fragmento que perdura em suas

obras. Uma visita inesperada interrompeu-o e foi-lhe impossível, depois,recordar o restante. "Descobri, com não pequena surpresa e mortificação – conta Coleridge –, que, embora retivesse de modo vago a forma geral da visão,tudo o mais, salvo umas oito ou dez linhas soltas, tinha desaparecido como asimagens na superfície de um rio onde se atira uma pedra, mas, ai de mim, sema ulterior restauração delas." Swinburne sentiu que os versos resgatados eram omais alto exemplo da música do inglês e que o homem capaz de analisá-los poderia (a metáfora é de John Keats) destecer um arco-íris. As traduções ou

resumos de poemas cuja virtude fundamental é a música são vãos e por vezes prejudiciais; basta-nos reter, por ora, que a Coleridge foi dada em um sonhouma página de não discutido esplendor.

O caso, embora extraordinário, não é único. No estudo psicológico TheWorld of Dreams, Havelock Ellis equiparou-o com o do violinista e compositor Giuseppe Tartini, que sonhara que o Diabo (seu escravo) executava no violinouma prodigiosa sonata; o sonhador, ao despertar, deduziu de sua imperfeitalembrança o Trillo del Diavolo. Outro exemplo clássico de cerebração

inconsciente é o de Robert Louis Stevenson, a quem um sonho (segundo elemesmo contou em seu Chapter on Dreams) deu o argumento de Olalla e outro,em 1884, o de  Jekyll & Hide. Tartini quis imitar na vigília a música de umsonho; Stevenson recebeu do sonho argumentos, isto é, formas gerais; maisafim com a inspiração verbal de Coleridge é a que Beda, o Venerável, atribui aCaedmon ( Historia Ecclesiastica Gentis Anglocum, IV, 24). O caso ocorreu emfins do século VII, na Inglaterra missionária e guerreira dos reinos saxões.Caedmon era um rústico pastor e já não era jovem; uma noite, esgueirou-se deuma festa por prever que lhe passariam a harpa, e ele sabia-se incapaz decantar. Recolheu-se ao estábulo, para dormir entre os cavalos, e no sonhoalguém o chamou pelo nome e lhe ordenou que cantasse. Caedmon respondeuque não sabia, mas o outro disse: "Canta o princípio das coisas criadas".

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Caedmon, então, recitou versos que jamais ouvira. Não os esqueceu, aodespertar, e pôde repeti-los diante dos monges do vizinho mosteiro de Hild. Não aprendeu a ler, mas os monges explicavam-lhe passagens da históriasagrada e ele "as ruminava como um puro animal e as transformava emdulcíssimos versos, e assim cantou a criação do mundo e do homem e toda a

história do Gênesis e do êxodo dos filhos de Israel e sua entrada na terra prometida, e muitas outras coisas da Escritura, e a encarnação, paixão,ressurreição e ascensão do Senhor, e a vinda do Espírito Santo e o ensinamentodos apóstolos, e também o terror do Juízo Final, o horror dos castigos infernais,as doçuras do céu e as mercês e os juízos de Deus". Foi o primeiro poeta sacroda nação inglesa; "ninguém igualou-se a ele – diz Beda –, porque não aprendeudos homens, e sim de Deus". Anos mais tarde, previu a hora em que morreria eaguardou-a dormindo. Esperemos que tenha reencontrado seu anjo.

À primeira vista, o sonho de Coleridge corre o risco de parecer menosassombroso que o de seu precursor. Kubla Khan é uma composição admirávele as nove linhas do hino sonhado por Caedmon quase não apresentam outravirtude exceto sua origem onírica, mas Coleridge já era um poeta, enquanto aCaedmon foi revelada uma vocação. Há, entretanto, um fato ulterior, quemagnífica até o insondável a maravilha do sonho em que  Kubla Khan foigerado. Se esse fato for verdadeiro, a história do sonho de Coleridge antecedeColeridge em muitos séculos e ainda não chegou a seu fim.

O poeta sonhou em 1797 (outros entendem que em 1798) e publicou seurelato do sonho em 1816, sob a forma de glosa ou justificativa do poemainacabado. Vinte anos depois, apareceu em Paris, fragmentariamente, a primeira versão ocidental de uma dessas histórias universais em que a literatura persa é tão rica, o Compêndio de Histórias, de Rachid ed-Din, que data doséculo XIV. Em uma página, lê-se: "A leste de Chan-tong,  Kubla Khan erigiuum palácio, de acordo com uma planta que vira em sonho e que guardava namemória". Quem escreveu isso era vizir de Ghazan Mahmud, que descendia de

Kubla.Um imperador mongol, no século XIII, sonha um palácio e o edificaconforme a visão; no século XVIII, um poeta inglês, que não tinha como saber que essa construção se derivara de um sonho, sonha um poema sobre o palácio.Confrontadas com essa simetria, que trabalha com almas de homens quedormem e abarca continentes e séculos, nada ou muito pouco são, a meu ver, aslevitações, ressurreições e aparições dos livros piedosos.

Que explicação preferiremos? Aqueles que de antemão rejeitam osobrenatural (eu procuro, sempre, incluir-me nesse grupo) julgarão que ahistória dos dois sonhos é uma coincidência, um desenho traçado pelo acaso,como as formas de leões ou de cavalos que as nuvens por vezes configuram.Outros argüirão que o poeta soube de algum modo que o imperador sonhara o

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 palácio e disse ter sonhado o poema para criar uma esplêndida ficção, capaz,também, de paliar ou justificar o que nele há de truncado e rapsódico.1 Essaconjetura é verossímil, mas obriga-nos a postular, arbitrariamente, um textonão identificado pelos sinólogos em que Coleridge pudesse ter lido, antes de1816, o sonho de Kubla.2 Mais encantadoras são as hipóteses que transcendem

o racional. Por exemplo, é cabível supor que, destruído o palácio, a alma doimperador tenha penetrado na alma de Coleridge para que este o reconstruísseem palavras, mais duradouras que mármores e metais.

O primeiro sonho acrescentou um palácio à realidade; o segundo, que sedeu cinco séculos mais tarde, um poema (ou princípio de poema) sugerido pelo palácio; a semelhança dos sonhos deixa entrever um plano; o período enormerevela um executor sobre-humano. Indagar o propósito desse imortal ou desselongevo seria, talvez, não menos atrevido que inútil, mas é lícito suspeitar que

ele não teve êxito. Em 1691, o padre Gerbillon, da Companhia de Jesus,constatou que do palácio de Kubilai Khan só restavam ruínas; do poemaconsta-nos que foram resgatados não mais que cinqüenta versos. Tais fatos permitem conjeturar que a série de sonhos e de trabalhos não chegou ao fim.Ao primeiro sonhador foi oferecida, na noite, a visão do palácio, e ele oconstruiu; ao segundo, que não soube do sonho do anterior, o poema sobre o palácio. Se o esquema não falhar, alguém, em uma noite a séculos de nós,sonhará o mesmo sonho sem suspeitar que outros o sonharam e lhe dará a

forma de um mármore ou de uma música. Talvez a série de sonhos não tenhafim, talvez a chave esteja no último.Já escrita a explicação acima, entrevejo ou creio entrever outra. Quem

sabe um arquétipo ainda não revelado aos homens, um objeto eterno (para usar a nomenclatura de Whitehead), esteja ingressando paulatinamente no mundo;sua primeira manifestação foi o palácio; a segunda, o poema. Quem oscomparasse teria visto que eram essencialmente iguais.

O TEMPO E J. W. DUNNE

1 No início do século XIX ou final do XVIII, julgado por leitores de gosto clássico, Kubla Khan era muito

mais ousado que hoje. Em 1884, o primeiro biógrafo de Coleridge, Traill, ainda pôde escrever: "Oextravagante poema onírico Kubla Khan é pouco mais que uma curiosidade psicológica".

2 Ver John Livingston Lowes: The Road to Xanadu, 1927, p. 358, 585.

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 No número 63 da revista Sur  (dezembro de 1939), publiquei uma pré-história, uma primeira história rudimentar, da regressão infinita. Nem todas asomissões desse esboço eram involuntárias: excluí deliberadamente a menção aJ. W. Dunne, que extraiu do interminável regressus uma doutrina bastanteassombrosa do sujeito e do tempo. A discussão (a mera exposição) de sua tese

teria excedido os limites dessa nota. Sua complexidade requeria um artigoindependente: este que agora ensaiarei. Alenta-me a escrevê-lo o exame doúltimo livro de Dunne –  Nothing Dies (1940, Faber & Faber) –, que repete ouresume os argumentos dos três anteriores.

O argumento único, para ser mais exato. Seu mecanismo nada tem denovo; o que é quase escandaloso, insólito, são as inferências do autor. Antes decomentá-las, anoto alguns prévios avatares das premissas.

O sétimo dos muitos sistemas filosóficos da índia que registra Paul

Deussen1

nega que o eu possa ser objeto imediato do conhecimento, "pois, senossa alma fosse conhecível, seria necessária uma segunda alma para conhecer a primeira e uma terceira para conhecer a segunda". Os hindus não têm sentidohistórico (isto é: perversamente, preferem o exame das idéias ao dos nomes edatas dos filósofos), mas consta-nos que essa negação radical da introspecçãotem cerca de oito séculos. Por volta de 1843, Schopenhauer a redescobre. "Osujeito conhecedor", repete ele, "não é conhecido como tal, pois seria objeto deconhecimento de outro sujeito conhecedor" (Welt als Wille und Vorstellung ,

tomo 2, capítulo 19). Herbart também jogou com essa multiplicaçãoontológica. Antes dos vinte anos, já deduzira que o eu é inevitavelmenteinfinito, pois o fato de conhecer-se a si mesmo postula outro eu que também seconhece a si mesmo, e esse eu postula por sua vez outro eu (Deussen:  Die Neuere Philosophie, 1920, p. 367). Exornado de histórias, de parábolas, de boas ironias e de diagramas, esse é o argumento em que os tratados de Dunnese baseiam.

Este ( An Experiment with Time, capítulo XXII) raciocina que um sujeito

consciente não só é consciente daquilo que observa, mas de um sujeito A queobserva e, portanto, de outro sujeito B que é consciente de A e, portanto, deoutro sujeito C consciente de B... Não sem mistério, acrescenta que essesinumeráveis sujeitos íntimos não cabem nas três dimensões do espaço, e simnas não menos inumeráveis dimensões do tempo. Antes de esclarecer esseesclarecimento, convido meu leitor para repensarmos o que diz este parágrafo.

Huxley, como bom herdeiro dos nominalistas britânicos, sustenta que háapenas uma diferença verbal entre o fato de perceber uma dor e o de saber quea percebemos e zomba dos metafísicos puros, que em toda sensação distinguem"um sujeito sensível, um objeto sensígeno e esse personagem imperioso: o Eu"

1  Nachvedische Philosophie der Inder , p. 318.

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( Essays, tomo 6, p. 87). Gustav Spiller (The Mind of Man, 1902) admite que aconsciência da dor e a dor são dois fatos distintos, mas considera-os tãocompreensíveis quanto a simultânea percepção de uma voz e de um rosto. Suaopinião parece-me válida. Quanto à consciência da consciência, invocada por Dunne para instalar em cada indivíduo uma vertiginosa e nebulosa hierarquia

de sujeitos, prefiro supor que se trata de estados sucessivos (ou imaginários) dosujeito inicial. "Se o espírito – disse Leibniz – tivesse de repensar o pensado, bastaria perceber um sentimento para pensar nele e para depois pensar no pensamento e depois no pensamento do pensamento, e assim até o infinito"( Nouveaux Essais sor l’Entendement Humain, livro 2, capítulo 1).

O procedimento criado por Dunne para a obtenção imediata de umnúmero infinito de tempos é menos convincente e mais engenhoso. Assimcomo Juan de Mena em seu Labyrintho,2 como Uspenski no Tertium Organum,

ele postula que o futuro já existe, com suas vicissitudes e pormenores. Para ofuturo preexistente (ou do futuro preexistente, como prefere Bradley) flui o rioabsoluto do tempo cósmico, ou os rios mortais de nossas vidas. Essatranslação, esse fluir, exige, como todos os movimentos, um tempodeterminado; teremos, portanto, um tempo segundo para o traslado do primeiro; um terceiro para o traslado do segundo, e assim até o infinito...3 

Assim é a máquina proposta por Dunne. Nesses tempos hipotéticos ou ilusóriostêm interminável morada os sujeitos imperceptíveis que o outro regressus

multiplica.‘Não sei qual será a opinião de meu leitor. Não pretendo saber que coisa éo tempo (nem mesmo se é uma "coisa"), mas intuo que o curso do tempo e otempo são um único mistério, e não dois. Dunne, suspeito, comete um errosemelhante ao dos distraídos poetas que falam (digamos) da lua que mostra seurubro disco, substituindo assim uma indivisa imagem visual por um sujeito, umverbo e um complemento, que não é outro senão o próprio sujeito, ligeiramentemascarado... Dunne é uma vítima ilustre desse mau hábito intelectual

denunciado por Bergson: conceber o tempo como uma quarta dimensão doespaço. Postula que o futuro já existe e que devemos trasladar-nos a ele, masesse postulado basta para transformá-lo em espaço e para requerer um temposegundo (que também é concebido sob forma espacial, sob a forma de linha oude rio) e depois um terceiro e um milionésimo. Nenhum dos quatro livros de

2  Neste poema do século XV há uma visão de "três mui grandes rodas": a primeira, imóvel, é o passado; asegunda, giratória, o presente; a terceira, imóvel, o futuro.

3 Meio século antes de ser proposta por Dunne, "a absurda conjetura de um segundo tempo, no qual flui,rápida ou lentamente, o primeiro", fora descoberta e recusada por Schopenhauer, em uma nota manuscritaanexa a seu Welt als Wille und Vorstellung . Consta na página 829 do segundo volume da edição histórico-crítica de Otto Weiss.

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Dunne deixa de propor infinitas dimensões do tempo,4 mas essas dimensões sãoespaciais. O tempo verdadeiro, para Dunne, é o inatingível último termo deuma série infinita.

Que razões haveria para postular que o futuro já existe? Dunne forneceduas: uma, os sonhos premonitórios; outra, a relativa simplicidade que essa

hipótese outorga aos inextricáveis diagramas típicos de seu estilo. Ele tambémquer evitar os problemas de uma criação contínua...Os teólogos definem a eternidade como a simultânea e lúcida posse de

todos os instantes do tempo e declaram-na um dos atributos divinos. Dunne,surpreendentemente, supõe que a eternidade já nos pertence e que isso écorroborado pelos sonhos de cada noite. Nestes, segundo ele, confluem o passado imediato e o imediato porvir. Na vigília percorremos o temposucessivo a uma velocidade uniforme, no sonho abarcamos uma área que pode

ser vastíssima. Sonhar é coordenar os vislumbres dessa contemplação e comeles urdir uma história, ou uma série de histórias. Vemos a imagem de umaesfinge e a de uma botica e inventamos que uma botica se transforma emesfinge. No homem que amanhã conheceremos colocamos a boca de um rostoque nos olhou ontem à noite... (Schopenhauer escreveu que a vida e os sonhossão folhas de um mesmo livro e que lê-las em ordem é viver; folheá-las,sonhar.)

Dunne garante que na morte aprenderemos o feliz manejo da eternidade.

Recuperaremos todos os instantes de nossa vida e os combinaremos como bementendermos. Deus, e nossos amigos, e Shakespeare colaborarão conosco.Diante de uma tese tão esplêndida, qualquer falácia cometida pelo autor 

resulta insignificante.

A CRIAÇÃO E P H. GOSSE

4 A frase é reveladora. No capítulo XXI do livro An Experiment with Time, o autor fala de um tempo queé perpendicular a outro.

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"The man without a Navel yet lives in me" (o homem sem Umbigo perdura em mim), escreve, curiosamente, Sir Thomas Browne ( Religio Medici,1642), para denotar que foi concebido em pecado, por descender de Adão. No primeiro capítulo do Ulisses, Joyce também evoca o ventre imaculado e liso damulher sem mãe: " Heva, naked Eve. She had no navel ". O tema (sei bem) corre

o risco de parecer grotesco e banal, mas o zoólogo Philip Henry Gossevinculou-o ao problema central da metafísica: o problema do tempo. Essavinculação é de 1857; oitenta anos de esquecimento talvez equivalham ànovidade.

Duas passagens da Escritura (Romanos 5; 1 Coríntios 15) contrapõem o primeiro homem, Adão, aquele em que morrem todos os homens, ao derradeiroAdão, que é Jesus.1 Essa contraposição, para ser mais que uma simples blasfêmia, pressupõe certa enigmática paridade, traduzida em mitos e em

simetria. A  Lenda Áurea diz que o lenho da Cruz provém daquela Árvore proibida que está no Paraíso; os teólogos, que Adão foi criado pelo Pai e peloFilho com a idade exata que o Filho teria ao morrer: trinta e três anos. Essainsensata precisão certamente influenciou a cosmogonia de Gosse.

Este a divulgou no livro Omphalos (Londres, 1857), cujo subtítulo éTentativa de Desatar o Nó Geológico. Em vão vasculhei as bibliotecas em busca desse livro; para redigir esta nota, recorrerei aos resumos de EdmundGosse ( Father and Son, 1907) e de H. G. Wells ( All Aboard for Ararat , 1940).

Introduzo exemplos ilustrativos que não constam nessas breves páginas, masque julgo compatíveis com o pensamento de Gosse. No capítulo de sua  Lógica que trata da lei da causalidade, John Stuart

Mill sustenta que o estado do universo em qualquer instante é conseqüência deseu estado no instante precedente e que a uma inteligência infinita bastaria oconhecimento perfeito de um único instante para saber a história do universo, passada e vindoura. (Também deduz – oh, Louis Auguste Blanqui! oh, Nietzsche! oh, Pitágoras! – que a repetição de qualquer estado comportaria a

repetição de todos os outros e faria da história universal uma série cíclica.) Nessa moderada versão de certa fantasia de Laplace – a de que o estado presente do universo é, em teoria, redutível a uma fórmula, da qual Alguém poderia deduzir todo o porvir e todo o passado –, Mill não descarta a possibilidade de uma futura intervenção externa capaz de interromper a série.

1 Na poesia devota, essa conjunção é comum. Talvez o exemplo mais intenso esteja na penúltima estrofede "Hymn to God, my God, in my sickness", March 23,163O, composto por John Donne:

We think that Paradise and Calvary ,Christ’s Cross, and Adam’s tree, stood in one place, Look Lord, and find both Adams met in me; As the first Adam’s sweat surrounds, my face, May the last Adam’s blood my soul embrace.

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Afirma que o estado q fatalmente produzirá o estado r ; o estado r , o s; o estado s, o t ; mas admite que, antes de t , uma catástrofe divina – a consummatiomundi, digamos – pode aniquilar o planeta. O futuro é inevitável, preciso, mas pode não ocorrer. Deus espreita nos intervalos.

Em 1857, uma discrepância preocupava os homens. O Gênesis atribuía

seis dias – seis dias hebreus inequívocos, de ocaso a ocaso – à criação divinado mundo; os paleontólogos impiedosamente exigiam enormes acumulações detempo. Em vão repetia De Quincey que a Escritura tem a obrigação de nãoinstruir os homens em ciência alguma, já que as ciências constituem um vastomecanismo para desenvolver e exercitar o intelecto humano... Como conciliar Deus com os fósseis, Sir Charles Lyell com Moisés? Gosse, fortalecido pela prece, propôs uma solução assombrosa.

Mill imagina um tempo causal, infinito, que pode ser interrompido por 

um ato futuro de Deus; Gosse, um tempo rigorosamente causal, infinito, jáinterrompido por um ato pretérito: a Criação. O estado n fatalmente produzirá oestado v, mas antes de v pode ocorrer o Juízo Universal; o estado n pressupõe oestado c, mas c não ocorreu, porque o mundo foi criado em  f  ou em h. O primeiro instante do tempo coincide com o instante da Criação, como ditaSanto Agostinho, mas esse primeiro instante comporta não só um infinito porvir, mas também um infinito passado. Um passado hipotético, claro, masminucioso e fatal. Surge Adão, e seus dentes e seu esqueleto contam trinta e

três anos; surge Adão (escreve Edmund Gosse) e ele ostenta um umbigo,embora nenhum cordão umbilical o ligue a uma mãe. O princípio da razãoexige que nenhum efeito careça de causa; essas causas requerem outras causas,que regressivamente se multiplicam,2 todas deixam vestígios concretos, mas sóas posteriores à Criação existiram realmente. No vale de Luján perduramesqueletos de gliptodonte, mas jamais houve gliptodontes. Essa é a teseengenhosa (e, acima de tudo, inacreditável) que Philip Henry Gosse propôs àreligião e à ciência.

As duas a rejeitaram. Os jornalistas reduziram-na à doutrina de que Deusteria escondido fósseis sob a terra para pôr à prova a fé dos geólogos; CharlesKingsley desmentiu que o Senhor tivesse gravado nas rochas "uma supérflua evasta mentira". De nada adiantou Gosse expor a base metafísica da tese: quãoinconcebível é um instante de tempo sem outro instante precedente e outroulterior, e assim até o infinito. Não sei se ele conheceu a antiga sentença queconsta das páginas iniciais da antologia talmúdica de Rafael Caninos-Asséns:"Não era senão a primeira noite, mas uma série de séculos já a precedera".

Duas virtudes quero reivindicar para a esquecida tese de Gosse. A primeira: sua elegância um tanto monstruosa. A segunda: sua involuntária

2 Cf. Spencer: Facts and Comments, 1902, p. 148-51.

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redução ao absurdo de uma creatio ex Nihilo, sua demonstração indireta de queo universo é eterno, como pensaram o Vedanta e Heráclito, Spinoza e osatomistas... Bertrand Russell atualizou-a. No capítulo nove do livro The Analysis of Mind  (Londres, 1921), supõe que o planeta foi criado há poucosminutos, provido de uma humanidade que "recorda" um passado ilusório.

 Buenos Aires, 1941.

 Post-Scriptum. Em 1802, Chateaubriand (Génie du Christianisme, I, 4, 5)formulou, partindo de razões estéticas, uma tese idêntica à de Gosse. Revelouquão insípido, e irrisório, teria sido um primeiro dia da Criação povoado de

filhotes, larvas, crias e sementes. Escreveu: "Sans une vieillesse originaire, lanature dans son innocence eût été moins belle qu’elle ne 1"est aujourd’huidans sa corruption".

OS ALARMES DO DOUTOR 

AMÉRICO CASTRO1

1  La Peculiaridad Lingüística Rioplatense y Su Sentido Histórico (Losada, Buenos Aires, 1941).

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A palavra problema pode ser uma insidiosa petição de princípio. Falar em problema judeu é postular que os judeus são um problema; é vaticinar (e

recomendar) as perseguições, a expoliação, o fuzilamento, a degola, o estupro ea leitura da prosa do doutor Rosenberg. Outro demérito dos falsos problemas éo de promoverem soluções também falsas. Plínio ( História Natural , livrooitavo) não se contenta em observar que os dragões atacam os elefantes duranteo verão: arrisca a hipótese de que o fazem para beber todo seu sangue, que,como ninguém ignora, é muito frio. O doutor Castro ( La Peculiaridad  Lingüística, etc.) não se contenta em observar uma "confusão lingüística emBuenos Aires": arrisca a hipótese do "lunfardismo" e da "mística gauchofilia".

Para demonstrar a primeira tese – a corrupção do idioma espanhol noPrata –, o doutor apela a um procedimento que devemos qualificar de sofístico, para não pôr em dúvida sua inteligência; de cândido, para não duvidar de sua probidade. Acumula retalhos de Pacheco, de Vacarezza, de Lima, de  Last  Reason, de Contursi, de Enrique González Tuñón, de Palermo, de Llanderas ede Malfatti, transcreve-os com infantil gravidade e depois os exibe urbi et orbicomo exemplos de nossa degenerada linguagem. Não suspeita que taisexercícios ("Con un feca con chele / y una ensaimada / vos te venís pal 

Centro / de grau bacán”)

2

são caricaturais; declara-os "sintomas de gravealteração", cuja causa remota são "as conhecidas circunstâncias que fizeramdos países platinos zonas aonde a pulsação do império hispânico chegava jásem brio". Com idêntica eficácia caberia argumentar que em Madri já nãorestam vestígios do espanhol, como o demonstram as coplas transcritas por Rafael Salillas ( El Delincuente Español: Su Lenguaje, 1896):

 El minche de esa rumi

dicen no tenela bales;los he dicaito yo,los tenela muy juncales...

 El chibel barba del brejemenjindé a los burós:apincharé ararajay y menda la pirabó.3

2

2 Tradução literal dos versos, sendo o primeiro em vesre (de al revés, ao contrário; inversão proposital dassílabas): "Com um pingado / e um pão doce / você vem para a cidade / bancando o grã-fino". (N. da T.)

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Diante de sua poderosa treva, é quase límpida esta pobre copla emlunfardo:

 El bacán le acanaló

el escracho a la minushia;después espirajushió por temor a la canushia.4

 Na página 139, o doutor Castro anuncia-nos outro livro sobre o problemada língua em Buenos Aires; na 87, jacta-se de ter decifrado um diálogocampestre de Lynch "em que os personagens usam os meios mais bárbaros de

expressão, que só podem ser inteiramente compreendidos por quem estáfamiliarizado com as gírias rio-platenses". As gírias: ce pluriel est bien singulier . Com exceção do lunfardo (modesto esboço carcerário que ninguémsequer sonha em comparar ao exuberante caló dos espanhóis), não há gíriasneste país. Não padecemos de dialetos, embora padeçamos, sim, de institutosdialetológicos. Essas corporações vivem de reprovar os sucessivos jargões queinventam. Improvisaram o  gauchesco, baseados em Hernández; o cocoliche, baseados em um palhaço que trabalhou com os Podestá; o vesre, baseados nos

alunos da terceira série. Em tais detritos se apóiam; tais riquezas lhes devemose deveremos. Não menos falsos são "os graves problemas que a fala representa em

Buenos Aires". Viajei pela Catalunha, por Alicante, pela Andaluzia, por Castela; morei alguns anos em Valldemosa e um em Madri; guardo gratíssimaslembranças desses lugares; jamais observei que os espanhóis falassem melhor que nós. (Falam, sim, em voz mais alta, com o aprumo de quem ignora adúvida.) O doutor Castro imputa-nos arcaísmo. Seu método é curioso: descobre

que as pessoas mais cultas de San Mamed de Puga, em Orense, esqueceramesta ou aquela acepção desta ou daquela palavra; imediatamente resolve que osargentinos também devem esquecê-la... É fato que o idioma espanhol padece

3 Tradução literal dos versos em caló (linguagem dos ciganos na Espanha): "O sexo dessa mulher / dizemque não tem pêlos; / eu mesmo os vi, / ela os tem muito vistosos... / / No melhor dia do ano / peguei otouro à unha: / conheci uma freira / e me deitei com ela". (N. da T.)

4

Consta do vocabulário giriesco de Luis Villamayor: El Lenguaje del Bajo Fondo (Buenos Aires, 1915).Castro ignora esse léxico, talvez por ter sido citado por Arturo Costa Álvarez em um livro essencial:  El Castellano en la Argentina (La Plata, 1928). Desnecessário advertir que ninguém diz minushia [mulher],canushia [polícia], espirajushiar [fugir]. [Tradução literal dos versos em lunfardo: "O grã-fino retalhou /a cara da mulher / e depois fugiu / por medo da polícia". (N. da T.)]

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de várias imperfeições (monótono predomínio das vogais, excessivo relevo das palavras, inépcia para formar palavras compostas), mas não da imperfeição queseus desastrados vindicadores lhe assacam: a dificuldade. O espanhol éfacílimo. Só os espanhóis julgam-no árduo: talvez porque os perturbem asatrações do catalão, do bable, do maiorquino, do galego, do basco e do

valenciano; talvez por um erro da vaidade; talvez por certa rudeza verbal(confundem acusativo com dativo, dizem le mató em vez de lo mató,costumam ser incapazes de pronunciar  Atlántico ou  Madrid , acham que umlivro pode suportar este cacofônico título:  La Peculiaridad Lingüística Rioplatense y Su Sentido Histórico).

O doutor Castro, em cada página desse livro, é pródigo em superstiçõesconvencionais. Despreza López e venera Ricardo Rojas; nega os tangos erefere-se às xácaras com respeito; pensa que Rosas foi um caudilho de

guerrilhas, um homem ao estilo de Ramírez ou Artigas, e ridiculamente chama-o "centauro máximo". (Com melhor estilo e juízo mais lúcido, Groussac preferiu a definição: "miliciano de retaguarda".) Proscreve – entendo que comtoda a razão – a palavra cachada, por zombaria, mas aceita a tomadura de pelo,que, visivelmente, não é mais lógica nem mais encantadora. Condena osidiotismos americanos, por preferir os idiotismos espanhóis. Não quer quedigamos de arriba; quer que digamos de gorra... Esse examinador do "fatolingüístico buenairense" registra seriamente que os portenhos chamam o

gafanhoto de acrídio; esse inexplicável leitor de Carlos de la Púa e de Yacarérevela-nos que taita significa "pai" no linguajar suburbano. Nesse livro, a forma não contradiz o conteúdo. Às vezes o estilo é

comercial: "As bibliotecas do México possuíam livros de alta qualidade" (p.49); "A alfândega seca... impunha preços fabulosos" (p. 52). Por vezes, acontínua trivialidade do pensamento não exclui o pitoresco dislate: "Surgeentão a única coisa possível, o tirano, condensação da energia sem rumo damassa, que ele não canaliza porque não é guia, e sim corpulência esmagadora,

ingente aparelho ortopédico que mecanicamente, bestialmente, encurrala orebanho disperso" (p. 71, 72). Às vezes o pesquisador de Vacarezza tenta o mot  juste: "Pelos mesmos motivos alegados para torpedear a maravilhosa gramáticade A. Alonso e P. Henríquez Ureña" (p. 31).

Os compadritos de  Last Reason emitem metáforas hípicas;o doutor Castro, mais versátil no erro, conjuga a radiotelefonia com o  football : "O pensamento e a arte rio-platense são valiosas antenas para tudo aquilo que nomundo significa valor e esforço, atitude intensamente receptiva que nãodemorará a converter-se em força criadora, se o destino não torcer o rumo dossinais propícios. A poesia, o romance e o ensaio conseguiram muito mais queum  goal  perfeito. A ciência e o pensamento filosófico têm nomes de extremadistinção entre seus cultivadores" (p. 9).

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À errônea e mínima erudição o doutor Castro acrescenta o incansávelexercício da adulação, da prosa rimada e do terrorismo.

 P.S. – Leio na página 136: "Tentar escrever como Ascasubi, Del Campoou Hernández, a sério, sem ironia, é algo que dá o que pensar". Transcrevoaqui as últimas estrofes do Martín Fierro:

Cruz e Fierro numa estânciaUma tropilha apanharam, À frente os bichos tocaramComo crioulos bem curtidos E logo, sem serem ouvidos, A fronteira atravessaram.

 E depois de ter passado Numa madrugada clara, Disse Cruz ao camaradaQue olhasse pros casarios; E pelo rosto do amigo Duas lágrimas rolaram.

 E seguindo o fiel do rumo,

 Adentraram no deserto, Eu não sei se, em campo aberto,Tombaram nas correrias Mas espero, algum dia,Saber deles algo certo.

 E já com estas notícias Minha canção terminei,

 Por ser verdade conteiTodas as desgraças ditas: É um tear de desditasTodo gaúcho de lei.

 Mas ponha sua esperança No Deus que tudo assinou, Eu me despeço e já vouQue aqui cantei a meu modo, Males que conhecem todos Mas qu’inda ninguém contou.

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"A sério, sem ironia", eu pergunto: Quem é mais dialetal? O cantor daslímpidas estrofes que repeti acima ou o incoerente redator dos aparelhosortopédicos que encurralam rebanhos, dos gêneros literários que jogam football e das gramáticas torpedeadas?

 Na página 122, o doutor Castro enumerou alguns escritores cujo estiloconsidera correto; apesar da inclusão de meu nome nesse catálogo, não me julgo totalmente incapacitado para falar de estilística.

 NOSSO POBRE INDIVIDUALISMO

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As ilusões do patriotismo não têm fim. No primeiro século de nossa era,Plutarco zombou daqueles que declaram ser a lua de Atenas melhor que a luade Corinto; Milton, no XVII, reparou que Deus tinha por hábito revelar-se

 primeiro a Seus ingleses; Fichte, no início do XIX, declarou que ter caráter eser alemão são, evidentemente, a mesma coisa. Aqui os nacionalistas pululam;o que os move, segundo eles, é o compreensível ou inocente propósito defomentar os melhores traços argentinos. Ignoram, porém, os argentinos; na polêmica, preferem defini-los em função de algum fato exterior; dosconquistadores espanhóis (digamos), ou de uma imaginária tradição católica,ou do "imperialismo saxão".

O argentino, ao contrário dos americanos do Norte e de quase todos os

europeus, não se identifica com o Estado. Isso pode ser atribuído àcircunstância de que, neste país, os governos costumam ser péssimos ou ao fatogeral de que o Estado é uma inconcebível abstração,1 a verdade é que oargentino é um indivíduo, não um cidadão. Aforismos como o de Hegel "OEstado é a realidade da idéia moral" parecem-lhe piadas sinistras. Os filmeselaborados em Hollywood costumam oferecer à admiração o caso de umhomem (geralmente um jornalista) que busca a amizade de um criminoso paradepois entregá-lo à polícia; o argentino, para quem a amizade é uma paixão e a

 polícia uma maffia, sente que esse "herói" é um incompreensível canalha.Sente, como  Dom Quixote, que "cada qual que se avenha com seu pecado" eque "não é certo o homem honrado ser algoz de outros homens, sem que nadalhe vá nisso" (Quixote, l, XXII). Mais de uma vez, em face das vãs simetrias doestilo espanhol, suspeitei que diferimos irremediavelmente da Espanha; essasduas linhas do Quixote bastaram para convencer-me de meu erro; são como osímbolo tranqüilo e secreto de nossa afinidade. Algo que é profundamenteconfirmado por uma noite da literatura argentina: essa desesperada noite em

que um sargento da polícia rural gritou que não ia consentir o delito dematarem um valente e pôs-se a lutar contra seus próprios soldados, ao lado dodesertor Martín Fierro.

O mundo, para o europeu, é um cosmos em que cada um correspondeintimamente à função que exerce; para o argentino, é um caos. O europeu e oamericano do Norte entendem que há de ser bom um livro que mereceu um prêmio qualquer; o argentino admite a possibilidade de não ser ruim, apesar do prêmio. Em geral, o argentino descrê das circunstâncias. Pode ignorar a fábulade que a humanidade sempre inclui trinta e seis homens justos – os  Lamed Wufniks – que não se conhecem entre si, mas que secretamente sustentam o1 O Estado é impessoal: o argentino só concebe relações pessoais. Por isso, para ele, roubar dinheiro

 público não é crime. Apenas constato um fato; não o justifico nem desculpo.

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universo; quando a ouvir, não estranhará que esses beneméritos sejam obscurose anônimos... Seu herói popular é o homem só que luta contra a partida, sejaem ato (Fierro, Moreira, Hormiga Negra), seja em potência ou no passado(Segundo Sombra). Outras literaturas não registram fatos análogos. Tomemos, por exemplo, dois grandes escritores europeus: Kipling e Franz Kafka. A

 primeira vista, nada há em comum entre os dois, mas o tema do primeiro é avindicação da ordem, de uma ordem (a estrada em  Kim, a ponte em The Bridge-Builders, a muralha romana em  Puck of Pook’s Hill ); o do segundo, ainsuportável e trágica solidão de quem carece de um lugar, por humilíssimoque seja, na ordem do universo.

Dirão que os traços que assinalei são meramente negativos ou anárquicos;acrescentarão que não comportam explicação política. Ouso sugerir ocontrário. O mais urgente dos problemas de nossa época (já denunciado com

 profética lucidez pelo quase esquecido Spencer) é a gradual intromissão doEstado nos atos do indivíduo; na luta contra esse mal, cujos nomes sãocomunismo e nazismo, o individualismo argentino, talvez inútil ou prejudicialaté agora, há de encontrar justificativa e deveres.

Sem esperança e com nostalgia, penso na abstrata possibilidade de um partido que tivesse alguma afinidade com os argentinos; um partido que nos prometesse (digamos) um severo mínimo de governo.

O nacionalismo pretende embair-nos com a visão de um Estado

infinitamente incômodo; essa utopia, uma vez alcançada na terra, teria a providencial virtude de fazer com que todos almejassem, e por fimconstruíssem, sua antítese.

 Buenos Aires, 1946.

QUEVEDO

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Assim como a outra, a história da literatura é pródiga em enigmas. Nenhum deles inquietou-me, nem me inquieta, tanto quanto a estranha glória parcial que coube por sorte a Quevedo. Nos censos de nomes universais, o delenão consta. Muito tentei inquirir as razões dessa extravagante omissão; certa

vez, em uma conferência esquecida, julguei encontrá-las no fato de suas duras páginas não fomentarem, nem sequer tolerarem, o menor desabafo sentimental.("Abusar do sentimentalismo é ter êxito", observou George Moore.) Paraalcançar a glória, eu dizia, não é indispensável que um escritor se mostresentimental, mas é indispensável que sua obra ou alguma circunstância biográfica estimulem o patetismo. Nem a vida nem a arte de Quevedo, ponderei, prestam-se a essas ternas hipérboles cuja repetição faz a glória...

Ignoro se essa explicação é correta; hoje eu a complementaria com esta:

virtualmente, Quevedo não é inferior a ninguém, mas não encontrou umsímbolo que se apoderasse da imaginação das pessoas. Homero tem Príamo,que beija as homicidas mãos de Aquiles; Sófocles tem um rei que decifraenigmas e que os oráculos levam a decifrar o horror de seu próprio destino;Lucrécio tem o infinito abismo estelar e a discórdia dos átomos; Dante, os novecírculos infernais e a Rosa paradisíaca; Shakespeare, seus mundos de violênciae de música; Cervantes, o venturoso vaivém de Sancho e Quixote; Swift, suarepública de cavalos virtuosos e de Yahoos bestiais; Melville, a abominação e o

amor da Baleia Branca; Franz Kafka, seus crescentes e sórdidos labirintos. Nãohá escritor de fama universal que não tenha cunhado um símbolo; este, convémlembrar, nem sempre é objetivo e externo. Góngora ou Mallarmé, Verbi gratia, perduram como tipos do escritor que laboriosamente elabora uma obra secreta;Whitman, como protagonista semidivino de  Leaves of Grass. De Quevedo, aocontrário, perdura apenas uma imagem caricatural. "O mais nobre estilistaespanhol transformou-se em um protótipo de trocista", observa LeopoldoLugones ( El Imperio jesuítico, 1904, p. 59).

Lamb disse que Edmund Spencer era the poets’ poet , o poeta dos poetas.De Quevedo, teria de resignar-se a dizer que é o literato dos literatos. Paragostar de Quevedo é preciso ser (em ato ou em potência) um homem de letras;inversamente, ninguém que tenha vocação literária pode não gostar deQuevedo.

A grandeza de Quevedo é verbal. Julgá-lo um filósofo, um teólogo ou(como pretende Aureliano Fernández Guerra) um homem de Estado é um erroque podem permitir os títulos de suas obras, não o conteúdo. Seu tratado Providencia de Dios, Padecida de los que la Niegan y Gozada de los que laConfiesan: Doctrina Estudiada en los Gusanos y Persecuciones de Job preferea intimidação ao argumento. Como Cícero ( De Natura Deorum, II, 40-44), prova uma ordem divina mediante a ordem observada nos astros, "ingente

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república de luzes", e, expedida essa variante estelar do argumentocosmológico, acrescenta: "Poucos foram os que absolutamente negaram haver Deus; exporei à vergonha os que pouca tiveram, e são: Diágoras de Mileto,Protágoras de Abdera, discípulos de Demócrito e Teodoro (vulgarmentechamado Ateu), e Bião de Boristenas, discípulo do imundo e desatinado

Teodoro", o que não passa de terrorismo. Na história da filosofia há doutrinas, provavelmente falsas, que exercem obscuro encanto sobre a imaginação doshomens: a doutrina platônica e pitagórica do trânsito da alma por muitoscorpos, a doutrina gnóstica de que o mundo é obra de um deus hostil ourudimentar. Quevedo, apenas estudioso da verdade, é invulnerável a esseencanto. Escreve que a transmigração das almas é uma "bestial bobagem" euma "loucura bruta". Empédocles de Agrigento afirmou: "Já fui criança, moça,touceira, pássaro e mudo peixe que surge do mar"; Quevedo anota

( Providencia de Dios): "Revelou-se juiz e legislador deste enredo Empédocles,homem tão insensato que, afirmando ter sido peixe, mudou-se em tão contráriae oposta natureza que morreu borboleta do Etna; e à vista do mar, do qual fora povo, precipitou-se no fogo". Os gnósticos, Quevedo moteja de infames,malditos, loucos e inventores de disparates ( Zahurdas de Plutón, in fine).

Sua  Política de Dios y Gobierno de Cristo Nuestro Señor  deve ser considerada, segundo Aureliano Fernández Guerra, "um completo sistema degoverno, o mais atinado, nobre e conveniente". Para estimar o valor dessa

sentença, basta-nos lembrar que os quarenta e sete capítulos desse livroignoram todo e qualquer fundamento que não seja a curiosa hipótese de que osatos e palavras de Cristo (que foi, como se sabe, Rex Judaeorum) são símbolossecretos a cuja luz o político deve resolver seus problemas. Fiel a essecabalístico pressuposto, Quevedo depreende, do episódio da samaritana, que ostributos exigidos pelos reis devem ser leves; do episódio dos pães e dos peixes,que os reis devem remediar as necessidades; da repetição da fórmula sequebantur , que "o rei deve conduzir os ministros, e não os ministros o rei"...

O assombro vacila entre a arbitrariedade do método e a trivialidade dasconclusões. Entretanto, Quevedo tudo salva, ou quase, com a dignidade dalinguagem.1 O leitor distraído pode julgar-se edificado por essa obra. Análogadiscrepância percebe-se no Marco Bruto, onde o pensamento não é memorável,embora as cláusulas o sejam. Nesse tratado, o mais imponente dentre os estilosexercidos por Quevedo atinge a perfeição. O espanhol, em suas páginaslapidares, parece regressar ao árduo latim de Sêneca, de Tácito e de Lucano, ao

1

Reyes certeiramente observa (Capítulos de Literatura Española, 1939, p.133): "As obras políticas deQuevedo não propõem uma nova interpretação dos valores políticos nem têm, agora, nenhum valor alémdo retórico... Ou são panfletos circunstanciais, ou são obras de declamação acadêmica. A Política de Dios,apesar de sua ambiciosa aparência, não passa de um arrazoado contra os maus ministros. Mas entre essas

 páginas podem encontrar-se alguns dos traços mais característicos de Quevedo".

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atormentado e duro latim da idade de prata. O ostentoso laconismo, ohipérbato, o quase algébrico rigor, a oposição de termos, a aridez, a repetiçãode palavras dão a esse texto uma precisão ilusória. Muitos períodos merecem,ou exigem, ser julgados de perfeitos. Verbi gratia, este que transcrevo:"Honraram com folhas de louro uma linhagem; pagaram grandes e soberanas

vitórias com as aclamações de um triunfo; recompensaram vidas quase divinascom estátuas; e, para que não descaíssem de prerrogativas de tesouro os ramos,as ervas, o mármore e as vozes, não as permitiram à pretensão, e sim aomérito". Outros estilos freqüentou Quevedo com não menos felicidade: o estiloaparentemente oral do  Buscón, o estilo desmesurado e orgiástico (mas nãoilógico) de La Hora de Todos.

"A linguagem – observou Chesterton (G. F. Watts, 1904, p. 91) – não éum fato cientifico, e sim artístico; foi inventada por guerreiros e caçadores e é

muito anterior à ciência." Quevedo nunca a entendeu assim; para ele alinguagem foi, essencialmente, um instrumento lógico. As trivialidades oueternidades da poesia – águas equiparadas a cristais, mãos equiparadas a neve,olhos que brilham como estrelas e estrelas que fitam como olhos – incomodavam-no por serem fáceis, mas muito mais por serem falsas.Esqueceu-se, ao censurá-las, de que a metáfora é o contato momentâneo deduas imagens, não a metódica assimilação de duas coisas... Também execrouos idiotismos. Com o propósito de "expô-los à vergonha", urdiu com eles a

rapsódia intitulada Cuento de Cuentos; muitas gerações, fascinadas, preferiramver nessa redução ao absurdo um museu de primores, divinamente destinado asalvar do esquecimento as locuções  zurriburi, abarrisco, cochite hervite,quítame allá esas pajas e a trochi-moche.2

Quevedo foi equiparado, em mais de uma ocasião, a Luciano deSamósata. Há uma diferença fundamental: Luciano, combatendo as divindadesolímpicas no século II, faz uma obra de polêmica religiosa; Quevedo, ao repetir esse ataque no século XVI de nossa era, limita-se a observar uma tradição

literária.Examinada, ainda que brevemente, sua prosa, passo a discutir sua poesia,não menos múltipla.

Considerados documentos de uma paixão, os poemas eróticos deQuevedo são insatisfatórios; considerados jogos de hipérboles, deliberadosexercícios de petrarquismo, costumam ser admiráveis. Quevedo, homem deapetites veementes, nunca deixou de aspirar ao ascetismo estóico; tambémdeve ter achado insensato depender de mulheres ("bem-avisado aquele que usade suas carícias e nestas não se fia"); esses motivos bastam para explicar o

2  Zurriburi: 1. sujeito desprezível, canalha; 2. confusão.  Abarrisco, ou a barrisco: conjuntamente e semdistinção. Cochite y hervite: 1. feito rápida e atabalhoadamente; 2. pessoa precipitada. Quítame allá esas

 pajas (en un): num átimo. Trochi-moche(a), ou a troche y moche: às tontas; sem eira nem beira. (N. da T.)

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artificialismo voluntário daquela Musa IV de seu Parnaso, que "canta façanhasde amor e formosura". O acento pessoal de Quevedo está em outros poemas;naqueles que lhe permitem publicar sua melancolia, sua coragem ou seudesengano. Por exemplo, neste soneto que ele enviou, de sua Torre de JuanAbad, a Dom José de Salas ( Musa, H, 109):

 Recolhido na paz destes desertos,Com poucos, porém doutos, livros juntos, Eu vivo dialogando co’os defuntos E os mortos com os olhos ouço ao perto.

Se nem sempre entendidos, sempre abertos,

 Emendam e secundam meus assuntos, Em músicos, calados contrapontos Ao sonho desta vida oram despertos.

 As grandes almas que a morte ausenta, Das injúrias dos anos, vingadora, Livra, bom dom Joseph, a douta Imprensa.

 Em fuga irrevogável corre a hora; E aquela o melhor cálculo assenta,Que na lição e estudo nos melhora.

 Não faltam traços cultistas ao poema anterior (ouvir com os olhos, orar despertos ao sonho da vida), mas o soneto é eficaz a despeito deles, não por causa deles. Não direi que se trata de uma transcrição da realidade, porque a

realidade não é verbal, mas sim que suas palavras importam menos que a cenaque evocam ou que o acento viril que parece animá-las. Nem sempre ocorre omesmo; no mais ilustre soneto desse volume – "Memoria inmortal de donPedro Girón, duque de Osuna, muerto en la prisión" –, a esplêndida eficácia dodístico

Sua Tumba são de Flandres as Campanhase seu Epitáfio a sangrenta Lua

é anterior a toda interpretação e não depende dela. Digo o mesmo da seguinteexpressão: o pranto militar , cujo sentido não é enigmático, e sim corriqueiro, o

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 pranto dos militares. Quanto à sangrenta Lua, é melhor ignorar que se trata dosímbolo dos turcos, eclipsado por não sei que piratarias de Dom Pedro TéllezGirón.

 Não poucas vezes, o ponto de partida de Quevedo é um texto clássico.Assim, a memorável linha ( Musa, IV, 31):

Serão pó, porém pó apaixonado

é uma recriação, ou exaltação, de uma de Propércio, ( Elegias, 1, 19):

Ut meus oblito pulvis amore vacet.3

Grande é o âmbito da obra poética de Quevedo. Compreende pensativos

sonetos, que de algum modo prefiguram Wordsworth; opacas e rangentesseveridades,4 bruscas magias de teólogo ("Com os doze ceei: eu fui a ceia");gongorismos intercalados, para provar que ele também era capaz de jogar esse jogo,5 urbanidades e doçuras da Itália ("humilde solidão verde e sonora");variantes de Pérsio, de Sêneca, de Juvenal, das Escrituras, de Joachim de

3"Que a minha cinza fique livre de um amor que me esqueceu." (N. da T.)

4Tremeram fundamente umbrais e portas Ali onde a majestade negra e obscura As frias dessangradas sombras mortasOprime em lei desesperada e dura;Co"as três gargantas ao latido prontas, Ao ver a nova luz divina e pura,O Cérbero calou-se, e de repente, Fundos suspiros deu a negra gente.

O solo sob os pés gemeu inteiro, Desertos montes como cãs cendrados,

Que não merecem ver do céu luzeiros, E em nossa palidez cegam os prados. Acrescentavam desconsolo e medoOs roucos cães, que em reinos vãos e baldos Perturbam o silêncio e os ouvidos,Confundindo lamentos e latidos.

(Musa, IX )

5À dura lide um animal nascido E símbolo zeloso dos mortais, De Jove foi disfarce, e foi vestido,Que um tempo empederniu as mãos reais, E por trás dele os cônsules gemeram, E luz rumina em campos celestiais.

(Musa, II )

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Bellay; brevidades latinas; troças;6 escárnios de curioso artifício;7 lúgubres pompas da aniquilação e do caos.

 Farta já a Toga do veneno tírio,

Ou todo em ouro rígido e palente,Cobre-te em tesouros d’Oriente, Mas não descansa, oh Liças!, teu martírio.

 Padeces um magnífico delírio,Quando a felicidade delinqüenteO horror obscuro em esplendor te mente,Víbora em rosicler, áspide em lírio.

Crês que em Palácio a Jove porfiar podes, Pois a seu modo Estrelas mente o ouro, Ali onde vives, sem saber que morres.

 E tu, senhor de tudo e tantos louros, Para quem sabe examinar-te, és podre E pura vilania, o nojo, o lodo.

Os melhores poemas de Quevedo existem para além da moção que osgerou e das comuns idéias que os animam. Não são obscuros; evitam o erro de perturbar, ou distrair, com enigmas, ao contrário de outros de Mallarmé, deYeats e de George. São (para dizê-lo de algum modo) objetos verbais, puros eindependentes como uma espada ou um anel de prata. Este, por exemplo:"Farta já a Toga do veneno tírio".

6   A Méndez chegou berrando De azeites bem suarenta, Derramando pelos ombrosO balanço de suas lêndeas.

( Musa, V)

7   Este Dom Fábio cantava

 Para gradis e sacadas De Aminta, que de esquecê-lo Disseram que não se lembra.

(Musa, VI )

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Trezentos anos completou a morte corporal de Quevedo, mas ele continuasendo o primeiro artífice das letras hispânicas. Como Joyce, como Goethe,como Shakespeare, como Dante, como nenhum outro escritor, Francisco deQuevedo é menos um homem que uma vasta e complexa literatura.

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MAGIAS PARCIAIS DO QUIXOTE

É verossímil que estas observações tenham sido enunciadas alguma vez, equem sabe muitas vezes; a discussão de sua novidade interessa-me menos quea de sua possível verdade.

Cotejado com outros livros clássicos (a  Ilíada, a  Eneida, a  Farsália, aComédia dantesca, as tragédias e comédias de Shakespeare), o Quixote érealista; esse realismo, entretanto, difere essencialmente daquele que foiexercido no século XIX. Joseph Conrad pôde escrever que excluía de sua obrao sobrenatural, porque admiti-lo parecia negar que o cotidiano fosse

maravilhoso: ignoro se Miguel de Cervantes compartilhou dessa intuição, massei que a forma do Quixote levou-o a contrapor um mundo real e prosaico a ummundo imaginário. Conrad e Henry James romancearam a realidade por julgá-la poética; para Cervantes o real e o poético são antinomias. As vastas e vagasgeografias do Amadís ele opõe os poeirentos caminhos e as sórdidas estalagensde Castela; imaginemos um romancista de nosso tempo que, com seu senso paródico, destacasse os postos de gasolina. Cervantes criou para nós a poesiada Espanha do século XVII, mas nem aquele século nem aquela Espanha eram

 para ele poéticos; homens como Unamuno, ou Azorín, ou Antonio Machado,enternecidos pela evocação de La Mancha, seriam para ele incompreensíveis.O plano de sua obra vedava o maravilhoso; este, porém, devia nela figurar, aomenos de maneira indireta, como os crimes e o mistério em uma paródia deromance policial. Cervantes não podia recorrer a talismãs nem a sortilégios,mas insinuou o sobrenatural de modo sutil e, por isso mesmo, mais eficaz.Intimamente, Cervantes amava o sobrenatural. Paul Groussac, em 1942,observou: "Com certa tintura mal fixada de latim e italiano, a colheita literária

de Cervantes provinha sobretudo dos romances pastoris e de cavalaria,embaladoras fábulas do cativeiro". O Quixote é menos um antídoto dessasficções que uma secreta despedida nostálgica.

 Na realidade, cada romance é um plano ideal; Cervantes compraz-se emconfundir o objetivo e o subjetivo, o mundo do leitor e o mundo do livro. Noscapítulos em que se discute se a bacia do barbeiro é um elmo e a albarda um jaez, o problema é tratado de modo explícito; em outras passagens, como jáanotei, é apenas insinuado. No sexto capítulo da primeira parte, o padre e o

 barbeiro revistam a biblioteca de  Dom Quixote; assombrosamente, um doslivros examinados é a Galatéia, de Cervantes, e eis que, por coincidência, o barbeiro é amigo do autor e não o admira muito, dizendo que este é maisversado em desgraças que em versos e que o livro tem algo de boa invenção,

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 propõe algo, mas não conclui nada. O barbeiro, sonho de Cervantes, ou formade um sonho de Cervantes, julga Cervantes... Também surpreende saber, noinício do nono capítulo, que o romance inteiro foi traduzido do árabe e queCervantes adquiriu o manuscrito em um mercado de Toledo, tendoencomendado a tradução a um mourisco, que viveu mais de um mês e meio em

sua casa, enquanto concluía a tarefa. Pensamos em Carlyle, que fingiu que oSartor Resartus era a versão parcial de uma obra publicada na Alemanha pelodoutor Diógenes Teufelsdroeckh; pensamos no rabino castelhano Moisés deLeón, que escreveu o Zohar ou Libro del Esplendor e o publicou como obra deum rabino palestino do século III.

Esse jogo de estranhas ambigüidades culmina na segunda parte: os protagonistas leram a primeira, os protagonistas do Quixote são, também,leitores do Quixote. Aqui é inevitável lembrar o caso de Shakespeare, que

inclui no cenário de Hamlet outro cenário, onde se representa uma tragédia queé mais ou menos a de  Hamlet ; a correspondência imperfeita entre a obra principal e a secundária diminui a eficácia dessa inclusão. Um artifício análogoao de Cervantes, e ainda mais assombroso, figura no  Ramayana, poema deValmiki que narra as proezas de Rama e sua guerra contra os demônios. Noúltimo livro, os filhos de Rama, que não sabem quem é seu pai, procuramabrigo em uma selva, onde um asceta os ensina a ler. Esse mestre é,estranhamente, Valmiki; o livro em que eles estudam, o  Ramayana. Rama

ordena um sacrifício de cavalos; a essa festa comparece Valmiki com seusalunos. Estes, acompanhados pelo alaúde, cantam o Ramayana. Rama ouve sua própria história, reconhece seus filhos e em seguida recompensa o poeta... Algosemelhante operou o acaso nas Mil e Uma Noites. Essa compilação de históriasfantásticas duplica e reduplica até a vertigem a ramificação de um conto centralem contos adventícios, mas não procura graduar suas realidades, e o efeito (quedevia ser profundo) é superficial, como um tapete persa. E bem conhecida ahistória liminar da série: o desolado juramento do rei, que a cada noite desposa

uma virgem que manda decapitar ao alvorecer, e a resolução de Scherazade,que o entretém com fábulas, até que sobre os dois giraram  Mil e Uma Noites eela lhe mostra seu filho. A necessidade de completar mil e uma seções obrigouos copistas da obra a todo tipo de interpolações. Nenhuma tão perturbadoraquanto a da noite DCII, mágica entre as noites. Nessa noite, o rei ouve a própria história da boca da rainha. Ouve o início da história, que abrange todasas outras e também – de monstruoso modo – a si mesma. Intui o leitor claramente a vasta possibilidade dessa interpolação? Seu curioso perigo? Ofato de a rainha persistir e o imóvel rei escutar para sempre a truncada históriadas Mil e Uma Noites, agora infinita e circular... As invenções da filosofia nãosão menos fantásticas que as da arte: Josiah Royce, no primeiro volume da obraThe World and the Individual  (1899), formulou a seguinte: "Imaginemos que

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uma porção do solo da Inglaterra foi perfeitamente nivelada e que nela umcartógrafo traça um mapa da Inglaterra. A obra é perfeita; não há detalhe dosolo da Inglaterra, por menor que seja, que não esteja registrado no mapa; tudoaí tem seu correspondente. Desta sorte, tal mapa deve conter um mapa domapa, que deve conter um mapa do mapa do mapa, e assim até o infinito".

Por que nos inquieta que o mapa esteja incluído no mapa e as Mil e Uma Noites no livro das Mil e Uma Noites? Por que nos inquieta que  Dom Quixoteseja leitor do Quixote, e  Hamlet , espectador de Hamlet ? Creio ter encontrado acausa: tais inversões sugerem que, se os personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios. Em 1833, Carlyle observou que a história universal é um infinito livrosagrado que todos os homens escrevem, e lêem, e procuram entender, e no qualtambém são escritos.

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 NATHANIEL HAWTHORNE1

Começarei a história das letras americanas com a história de umametáfora; ou melhor, com alguns exemplos dessa metáfora. Não sei quem ainventou; talvez seja um erro supor que as metáforas possam ser inventadas. Asverdadeiras, as que formulam íntimas conexões entre duas imagens, sempreexistiram; as que ainda podemos inventar são as falsas, as que não vale a penainventar. Esta a que me refiro é a que liga os sonhos a uma apresentaçãoteatral. No século XVII, Quevedo formulou-a no início do Sueño de la Muerte;Luis de Góngora, no soneto "Varia imaginación", onde lemos:

O sonho, autor de representações,em seu teatro sobre o vento armado, sombras usa vestir de vulto belo.

 No século XVIII, Addison a enunciará com mais precisão. "A alma,quando sonha – escreve Addison –, é teatro, atores e público." Muito antes, o persa Omar Khayyam escrevera que a história do mundo é uma representação

que Deus, o numeroso Deus dos panteístas, planeja, representa e contempla, afim de distrair sua eternidade; muito depois, o suíço Jung, em encantadores e,sem dúvida, exatos volumes, equipara as invenções literárias às invençõesoníricas, a literatura aos sonhos.

Se a literatura é um sonho, um sonho dirigido e deliberado, masfundamentalmente um sonho, é bom que esta nossa história das letrasamericanas tenha os versos de Góngora por epígrafe e seja inaugurada com aanálise de Hawthorne, o sonhador. Pouco anteriores no tempo, há outros

escritores americanos – Fenimore Cooper, uma espécie de Eduardo Gutiérrezinfinitamente inferior a Eduardo Gutiérrez; Washington Irving, urdidor deagradáveis espanholadas –, mas podemos ignorá-los sem risco algum.

Hawthorne nasceu em 1804, no porto de Salem. Salem padecia, já então,de dois traços anômalos na América: era uma cidade, apesar de pobre, muitovelha; era uma cidade em decadência. Nessa velha e decadente cidade dehonesto nome bíblico, Hawthorne viveu até 1836; amou-a com o triste amor que inspiram, nas pessoas que não nos amam, os fracassos, as doenças, as

manias; em essência, não é falso dizer que nunca se afastou dela. Cinqüentaanos depois, em Londres ou em Roma, continuava em sua aldeia puritana de

1 Texto de uma conferência proferida no Colegio Libre de Estudios Superiores em março de 1949.

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Salem; por exemplo, quando desaprovou que os escultores, em pleno séculoXIX, esculpissem estátuas nuas...

Seu pai, o capitão Nathaniel Hawthorne, morreu em 1808, nas ÍndiasOrientais, no Suriname, de febre amarela; um de seus antepassados, JohnHawthorne, foi juiz nos processos de feitiçaria de 1692, em que dezenove

mulheres, entre elas uma escrava, Tituba, foram condenadas à forca. Nessescuriosos processos (agora o fanatismo assume outras formas), JusticeHawthorne procedeu com severidade e, sem dúvida, com sinceridade. "Tãoconspícuo foi – escreveu Nathaniel, o nosso Nathaniel – no martírio das bruxasque é lícito pensar que o sangue dessas desventuradas tenha deixado nele umamancha. Uma mancha tão profunda que deve perdurar em seus velhos ossos,no cemitério de Charter Street, se ainda não forem pó." Depois desse arroubo pictórico, Hawthorne acrescenta: "Não sei se meus maiores se arrependeram e

suplicaram a misericórdia divina; agora, eu o faço em nome deles e peço quequalquer maldição que se tenha abatido sobre minha raça seja-nos, desde o diade hoje, perdoada". Quando o capitão Hawthorne morreu, sua viúva, a mãe de Nathaniel, recluiu-se em seu quarto, no segundo andar da casa. No mesmoandar estavam os quartos das irmãs, Louisa e Elizabeth; no último, o de Nathaniel. Essas pessoas não comiam juntas e quase não se falavam; a refeiçãode cada um era deixada em uma bandeja, no corredor. Nathaniel passava osdias escrevendo contos fantásticos; na hora do crepúsculo vespertino, saía para

caminhar. Esse furtivo regime de vida durou doze anos. Em 1837, escreveu aLongfellow: "Vivi recluído, sem o menor propósito de fazê-lo, sem a menor suspeita de que isso me ocorreria. Converti-me em prisioneiro, tranquei-me emum calabouço, e agora já não encontro a chave, e, mesmo que a porta estivesseaberta, quase teria medo de sair". Hawthorne era alto, bonito, magro, moreno.Tinha o andar balançado dos homens do mar. Naquele tempo não existia (parafelicidade das crianças, sem dúvida) literatura infantil; Hawthorne leu aos seisanos o  Pilgrim’s Progress; o primeiro livro que ele comprou com o próprio

dinheiro foi The Faerie Queen: duas alegorias. Também, embora seus biógrafos não o digam, a Bíblia; talvez a mesma que o primeiro Hawthorne,William Hawthorne de Wilton, trouxera da Inglaterra junto com uma espada,em 1630. Acabei de pronunciar a palavra alegorias; essa palavra é importantee, em se tratando da obra de Hawthorne, talvez imprudente ou indiscreta. Sabe-se que Edgar Allan Poe acusou Hawthorne de alegorizar e que aquele opinavaserem tal atividade e gênero indefensáveis. Duas tarefas nos deparam: a primeira, indagar se o gênero alegórico é, de fato, ilícito; a segunda, indagar se Nathaniel Hawthorne incorreu nesse gênero. Que eu saiba, a melhor refutaçãodas alegorias é a de Croce; a melhor vindicação, a de Chesterton. Croce acusa aalegoria de ser um enfadonho pleonasmo, um jogo de vãs repetições, que primeiro nos mostra (digamos) Dante guiado por Virgílio e Beatriz para depois

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explicar, ou dar a entender, que Dante é a alma, Virgílio a filosofia, ou a razão,ou a luz natural, e Beatriz a teologia ou a graça. Segundo Croce, segundo oargumento de Croce (o exemplo não é dele), Dante primeiro teria pensado: "Arazão e a fé operam a salvação das almas" ou "A filosofia e a teologia nosconduzem ao céu" e depois, onde pensou razão ou filosofia, pôs Virglio e, onde

 pensou teologia ou  fé, pôs  Beatriz, o que seria uma espécie de mascarada. Aalegoria, segundo essa interpretação desdenhosa, viria a ser uma adivinhação,mais extensa, mais lenta e muito mais incômoda que as outras. Seria um gênero bárbaro ou infantil, uma distração da estética. Croce formulou essa refutaçãoem 1907; em 1904, Chesterton já a refutara sem que aquele o soubesse. Tãoincomunicada e tão vasta é a literatura! A página pertinente de Chestertonaparece em uma monografia sobre o pintor Watts, ilustre na Inglaterra em finsdo século XIX e acusado, como Hawthorne, de alegorismo. Chesterton admite

que Watts produziu alegorias, mas nega que esse gênero seja condenável.Argumenta que a realidade é,de uma interminável riqueza e que a linguagemdos homens não esgota esse vertiginoso caudal. Escreve: "O homem sabe quehá na alma matizes mais desconcertantes, mais inumeráveis e mais anônimosque as cores de um bosque outonal... Crê, no entanto, que esses matizes, emtodas as suas fusões e conversões, podem ser representados com precisão por meio de um mecanismo arbitrário de grunhidos e chiados. Crê que mesmo dedentro de um corretor da Bolsa realmente saem ruídos que significam todos os

mistérios da memória e todas as agonias do desejo...". Daí infere Chesterton a possibilidade de haver diversas linguagens que de algum modo correspondam àinapreensível realidade; entre muitas outras, a das alegorias e das fábulas.

Dito de outro modo: Beatriz não é um emblema da fé, um trabalhoso earbitrário sinônimo da palavra fé; a verdade é que no mundo há uma coisa – um sentimento peculiar, um processo íntimo, uma série de estados análogos – que é possível indicar por meio de dois símbolos: um, assaz pobre, o som "fé";outro, Beatriz, a gloriosa Beatriz que desceu do céu e deixou suas pegadas no

Inferno para salvar Dante. Não sei se a tese de Chesterton é válida; sei que,quanto menos uma alegoria for redutível a um esquema, a um frio jogo deabstrações, melhor ela será. Há o escritor que pensa por meio de imagens(Shakespeare, ou Donne, ou Victor Hugo, digamos) e o escritor que pensa por meio de abstrações (Benda ou Bertrand Russell); a priori, uns valem tantoquanto outros, mas quando um abstrato, um raciocinador, quer ser tambémimaginativo, ou fazer-se passar por tal, ocorre o denunciado por Croce.Percebemos que um processo lógico foi enfeitado ou disfarçado pelo autor,"para desonra do entendimento do leitor", como disse Wordsworth. É, paracitar um exemplo notório desse mal, o caso de José Ortega y Gasset, cujo bom pensamento é obstruído por laboriosas e adventícias metáforas; é, muitas vezes,o de Hawthorne. No mais, os dois escritores são antagônicos. Ortega pode

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raciocinar, bem ou mal, mas não imaginar; Hawthorne era homem de contínuae curiosa imaginação; mas refratário, digamos assim, ao pensamento. Não digoque ele fosse pouco inteligente; digo que pensava por meio de imagens, deintuições, como costumam pensar as mulheres, não por meio de mecanismodialético. Foi prejudicado por um erro estético: o desejo puritano de fazer de

cada imaginação uma fábula levava Hawthorne a acrescentar-lhes moralidadese, às vezes, a falseá-las e a deformá-las. Conservaram-se os cadernos onde eleconcisamente tomava nota de seus argumentos. Em um deles, de 1836, estáescrito: "Uma serpente é admitida no estômago de um homem e alimentada por ele, dos quinze aos trinta e cinco anos, atormentando-o terrivelmente". Isso já basta, mas Hawthorne se vê na obrigação de completar: "Poderia ser umemblema da inveja ou de outra paixão maligna". Outro exemplo, este de 1838:"Que ocorram fatos estranhos, misteriosos e atrozes que destruam a felicidade

de uma pessoa. Que essa pessoa os impute a inimigos secretos e que, por fim,descubra que ela é a única culpada e a causa. Moral: a felicidade está em nósmesmos". Mais um, do mesmo ano: "Um homem, durante a vigília, pensa bemde outro e confia nele plenamente, mas inquietam-no sonhos em que esseamigo age como inimigo mortal. Revela-se, por fim, que o caráter sonhado erao verdadeiro. Os sonhos tinham razão. A explicação seria a percepçãoinstintiva da verdade". São melhores aquelas fantasias puras que não procuram justificativa nem moralidade e que parecem não ter outro fundo além de um

obscuro terror. Esta, de 1838: "Imaginar no meio da multidão um homem cujodestino e cuja vida estão sob o poder de outro, como se os dois estivessem emum deserto". Esta, que é uma variante da anterior e que Hawthorne anotoucinco anos depois: "Um homem de forte vontade ordena a outro, moralmentesubmisso a ele, que execute uma ação. O que ordena morre, e o outro continuaexecutando aquela ação até o fim de seus dias". (Não sei de que maneiraHawthorne teria desenvolvido esse argumento; não sei se ele teria decidido queo ato executado fosse trivial, ou levemente horrível, ou fantástico, ou talvez

humilhante.) Ou este, cujo tema também é a escravidão, a sujeição ao outro:"Um homem rico deixa em testamento sua mansão a um casal pobre. Osherdeiros mudam-se para aí; encontram um criado sombrio que o testamento proíbe demitir. Este os atormenta; descobre-se, por fim, que se trata do homemque legou a casa". Citarei mais dois esboços, bastante curiosos, cujo tema (nãoignorado por Pirandello nem por André Gide) é a coincidência ou a confusãodo plano estético e do plano comum, da realidade e da arte. Eis aqui o primeiro: "Duas pessoas encontram-se na rua, à espera de um acontecimento eda aparição dos principais atores. O acontecimento já está ocorrendo, e são elasmesmas os atores". O outro é mais complexo: "Que um homem escreva umconto e constate que este se desenrola contra suas intenções; que os personagens não se comportem como ele queria; que ocorram fatos não

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 previstos por ele e que se aproxime uma catástrofe que ele tentará, em vão,evitar. Esse conto poderia prefigurar seu próprio destino, e um dos personagensser ele mesmo". Tais jogos, tais momentâneas confluências do mundoimaginário e do mundo real – do mundo que no decorrer da leitura fingimos ser real – são, ou parecem-nos, modernos. Sua origem, sua antiga origem, talvez

esteja naquela passagem da Ilíada em que Helena de Tróia tece seu tapete, e oque ela tece são batalhas e desventuras da própria guerra de Tróia. Esse aspectodeve ter impressionado Virgílio, pois na  Eneida consta que Enéias, guerreiroda guerra de Tróia, chegou ao porto de Cartago e viu cenas dessa guerraesculpidas no mármore de um templo e, entre tantas imagens de guerreiros,também sua própria imagem. Hawthorne gostava desses contatos entre oimaginário e o real, como reflexos e duplicações da arte; também se nota, nosesboços que citei, que ele propendia à noção panteísta de que um homem é os

outros, de que um homem é todos os homens.Percebe-se nos esboços algo mais grave que as duplicações e o panteísmo, mais grave vindo de um homem que aspira a ser romancista, querodizer. Percebe-se que o estímulo de Hawthorne, que o ponto de partida deHawthorne eram, em geral, situações. Situações, não personagens. Hawthorne primeiro imaginava, quem sabe involuntariamente, uma situação para só depois procurar personagens que a encarnassem. Não sou romancista, mas suspeitoque nenhum romancista procede dessa forma: "Creio que Schomberg é real",

escreveu Joseph Conrad sobre um dos personagens mais memoráveis de seuromance Victory, e o mesmo poderia honestamente afirmar qualquer romancista sobre qualquer personagem. As aventuras do Quixote não estãomuito bem idealizadas, os lentos e antitéticos diálogos – "arrazoados", achoque o autor os chama assim – pecam por inverossímeis, mas não resta dúvidade que Cervantes conhecia bem  Dom Quixote e podia acreditar nele. Nossacrença na crença do romancista salva todas as negligências e falhas. Poucoimportam fatos inacreditáveis ou grosseiros se nos consta que o autor os

idealizou, não para surpreender nossa boa-fé, e sim para definir seus personagens. Pouco importam os pueris escândalos e os confusos crimes dasuposta Corte da Dinamarca se acreditamos no príncipe Hamlet . Hawthorne, aocontrário, primeiro concebia uma situação, ou uma série de situações, e depoiselaborava as pessoas que seu plano requeria. Esse método pode produzir, ou permitir, contos admiráveis, porque neles, dada sua brevidade, a trama é maisvisível que os atores, mas nunca romances admiráveis, onde a forma geral(quando existe) só é visível ao final e onde um único personagem malinventado pode contaminar de irrealidade aqueles que o acompanham. Dasrazões acima poder-se-ia deduzir, de antemão, que os contos de Hawthornevalem mais que os romances de Hawthorne. Eu entendo que é assim. Os vinte equatro capítulos que compõem  A Letra Escarlate contêm muitas passagens

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memoráveis, redigidas em boa e sensível prosa, mas nenhum deles comoveu-me tanto quanto a singular história de Wakefield, incluída nos Twíce-Told Tales. Hawthorne lera no jornal, ou fingiu, com fins literários, ter lido no jornal, o caso de um senhor inglês que abandonou a mulher sem motivo algum,instalou-se a um passo de sua casa e aí, sem ninguém suspeitar, passou vinte

anos escondido. Durante esse longo período, passou todos os dias diante de suacasa ou olhou-a da esquina, e muitas vezes avistou sua mulher. Quando já odavam por morto, quando fazia muito tempo que sua mulher se resignara a ser viúva, o homem, um dia, abriu a porta de casa e entrou. Simplesmente, comose tivesse se ausentado por algumas horas. (Foi, até o dia de sua morte, ummarido exemplar.) Hawthorne leu com inquietude o curioso caso e procurouentendê-lo, imaginá-lo. Refletiu sobre o tema; o conto "Wakefield" é a históriaconjetura) desse desterrado. As interpretações do enigma podem ser infinitas;

vejamos a de Hawthorne.Este imagina Wakefield como um homem pacato, timidamente vaidoso,egoísta, propenso a mistérios pueris, a guardar segredos insignificantes; umhomem acanhado, de grande proeza imaginativa e mental, mas capaz delongas, ociosas, incompletas e vagas meditações; um marido constante,defendido pela preguiça. Wakefield, no entardecer de um dia de outubro,despede-se da mulher. Diz a ela – não podemos esquecer que estamos no iníciodo século XIX – que vai tomar a diligência e que voltará, no mais tardar,

dentro de alguns dias. A mulher, que o sabe aficionado a inofensivos mistérios,não lhe pergunta as razões da viagem. Wakefield está de botas, de cartola, desobretudo; leva guarda-chuva e malas. Wakefield – acho isto admirável – aindanão sabe o que lhe acontecerá fatalmente. Sai, com a resolução mais ou menosfirme de inquietar ou assombrar a mulher, ausentando-se de casa por toda umasemana. Sai, fecha a porta da rua, em seguida a entreabre e, por um instante,sorri. Anos mais tarde, a mulher recordará esse sorriso último. Imaginará omarido no caixão com o sorriso gelado no rosto, ou então no paraíso, na glória,

sorrindo com astúcia e serenidade. Todos acreditarão que está morto, e elarecordará esse sorriso e pensará que talvez não seja viúva. Wakefield, depoisde dar algumas voltas, chega ao esconderijo que tinha preparado. Acomoda-se junto à lareira e sorri; está a um passo de sua casa e tinha chegado ao fim daviagem. Duvida, congratula-se, custa a acreditar que já está aí, teme que otenham observado e que o denunciem. Quase arrependido, deita-se; na grandecama vazia, estende os braços e repete em voz alta: "Não dormirei sozinhooutra noite". No dia seguinte, acorda mais cedo que de costume e, perplexo, pergunta-se o que fazer. Sabe que tem um propósito, mas custa-lhe defini-lo.Descobre, por fim, que seu propósito é investigar a impressão que uma semanade viuvez causará à exemplar senhora Wakefield. A curiosidade o impele paraa rua. Murmura: "Espiarei minha casa a distância". Caminha, distrai-se; de

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repente percebe que o hábito, traiçoeiro, levou-o à própria porta e que está a ponto de entrar. Então recua, aterrorizado. Será que alguém o viu? Será quealguém o persegue? Chegando à esquina, volta-se para olhar sua casa; esta parece-lhe diferente, porque ele já é outro, porque, embora não o saiba, umaúnica noite causou nele uma transformação. Em sua alma operou-se a mudança

moral que o condenará a vinte anos de exílio. Nesse ponto começa, de fato, alonga aventura. Wakefield compra uma peruca ruiva. Muda seus hábitos; passado algum tempo, já estabelecera uma nova rotina. Aflige-o a suspeita deque sua ausência não causara suficiente comoção à senhora Wakefield. Decidenão voltar antes de pregar-lhe um bom susto. Um dia o boticário entra na casa;outro dia, o médico. Wakefield preocupa-se, mas teme que sua bruscareaparição possa agravar o mal. Possuído, deixa o tempo correr; antes pensava:"Voltarei dentro de tantos dias", agora, "dentro de tantas semanas". E assim

 passam-se dez anos. Já há muito deixou de saber que sua conduta é estranha.Com todo o morno afeto de que seu coração é capaz, Wakefield continuaamando sua mulher, e ela o vai esquecendo. Numa manhã de domingo, os doisse cruzam na rua, em meio à multidão de Londres. Wakefield emagreceu;caminha obliquamente, como que se ocultando, como que fugindo; sua fronte baixa parece sulcada de rugas; seu rosto, antes comum, agora é extraordinário,graças ao extraordinário intento que executou. Seus olhos miúdos espreitam ouse perdem. A mulher engordou; leva na mão um missal e ela inteira parece um

emblema de plácida e resignada viuvez. Acostumou-se à tristeza, e talvez não atrocasse pela felicidade. Cara a cara, os dois olham-se nos olhos. A multidão ossepara e os perde. Wakefield foge para seu esconderijo, tranca a porta comduas voltas de chave e joga-se na cama, onde um soluço o estremece. Por uminstante, enxerga a miserável singularidade de sua vida. "Wakefield!Wakefield! Você está louco!", diz a si mesmo. Talvez esteja. No centro deLondres, desligou-se do mundo. Sem ter morrido, renunciou a seu lugar e aseus privilégios entre os homens vivos. Mentalmente, ele continua vivendo ao

lado da mulher em seu lar. Não sabe, ou quase nunca sabe, que é outro. Repete"logo voltarei", sem se dar conta de que há vinte anos vem repetindo a mesmacoisa. Na memória, os vinte anos de solidão parecem-lhe um interlúdio, ummero parêntese. Uma tarde, uma tarde igual a outras tardes, a milhares detardes anteriores, Wakefield fita a própria casa. Pela janela vê que no primeiroandar a lareira está acesa; contra o adornado forro, as chamas lançamgrotescamente a sombra da senhora Wakefield. Começa a chover; Wakefieldsente uma rajada de frio. Parece-lhe ridículo molhar-se quando sua casa, seular, está bem ali. Sobe pesadamente a escada e abre a porta. Em seu rosto brinca, espectral, o matreiro sorriso que conhecemos. Wakefield voltou, enfim.Hawthorne não nos conta seu destino ulterior, mas deixa adivinhar que ele jáestava, de certo modo, morto. Transcrevo as palavras finais: "Na desordem

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aparente de nosso misterioso mundo, cada homem vive ajustado a um sistemacom tão refinado rigor – e os sistemas entre si, e todos a tudo – que o indivíduoque se desvia, por um momento que seja, corre o terrível risco de perder seulugar para sempre. Corre o risco de ser, como Wakefield, o Pária do Universo".

 Nessa breve e ominosa parábola – que data de 1835 – já estamos no

mundo de Herman Melville, no mundo de Kafka. Um mundo de castigosenigmáticos e de culpas indecifráveis. Dirão que isso nada tem de singular, pois o orbe de Kafka é o judaísmo, e o de Hawthorne, as iras e os castigos doVelho Testamento. A observação é justa, mas seu alcance não excede a ética, eentre a horrenda história de Wakefield e muitas histórias de Kafka não háapenas uma ética comum, mas uma retórica. Há, por exemplo, a profundatrivialidade do protagonista, que contrasta com a magnitude de sua perdição eque o entrega, ainda mais desvalido, às Fúrias. Há o fundo nebuloso, contra o

qual se perfila o pesadelo. Em outras narrações, Hawthorne invoca um passadoromântico; nesta limita-se a uma Londres burguesa, cujas multidões lheservem, aliás, para ocultar o herói.

Aqui, sem nenhum demérito de Hawthorne, eu gostaria de intercalar umaobservação. A circunstância, a estranha circunstância, de sentir em um conto deHawthorne, redigido no início do século XIX, o sabor mesmo dos contos deKafka, que trabalhou no início do século XX, não deve fazer-nos esquecer queo sabor de Kafka foi criado, foi determinado por Kafka. "Wakefield" prefigura

Franz Kafka, mas este modifica, e afina, a leitura de "Wakefield". A dívida émútua; um grande escritor cria seus precursores. Cria-os e de certo modo os justifica. Assim, o que seria de Marlowe sem Shakespeare?

O tradutor e crítico Malcom Cowley vê em "Wakefield" uma alegoria dacuriosa reclusão de Nathaniel Hawthorne. Schopenhauer escreveu,famosamente, que não há ato, nem pensamento, nem doença que não sejamvoluntários; se há verdade nessa opinião, seria possível conjeturar que Nathaniel Hawthorne retirou-se por muitos anos da sociedade dos homens para

que não faltasse ao universo, cujo fim é talvez a variedade, a singular históriade Wakefield. Se Kafka tivesse escrito essa história, Wakefield jamaisconseguiria voltar para casa; Hawthorne permite-lhe voltar, mas sua volta não émenos lamentável nem menos atroz que sua longa ausência.

Uma parábola de Hawthorne que esteve a ponto de ser magistral mas nãoé, prejudicada que foi pela preocupação com a ética, é a que se intitula  Earth’s Holocaust : o Holocausto da Terra. Nessa ficção alegórica, Hawthorne prevêum momento em que os homens, fartos de acumulações inúteis, resolvemdestruir o passado. Para tanto, congregam-se ao entardecer em um dos vastosterritórios do oeste da América. A essa planície ocidental chegam homens detodos os confins do mundo. No centro acendem uma altíssima fogueira quealimentam com todas as genealogias, com todos os diplomas, com todas as

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medalhas, com todas as ordens, com todos os títulos de nobreza, com todos os brasões, com todas as coroas, com todos os cetros, com todas as tiaras, comtodas as púrpuras, com todos os dosséis, com todos os tronos, com todos osálcoois, com todas as sacas de café, com todas as caixas de chá, com todos oscharutos, com todas as cartas de amor, com toda a artilharia, com todas as

espadas, com todas as bandeiras, com todos os tambores marciais, com todosos instrumentos de tortura, com todas as guilhotinas, com todas as forcas, comtodos os metais preciosos, com todo o dinheiro, com todos os títulos de propriedade, com todas as constituições e códigos, com todos os livros, comtodas as mitras, com todas as dalmáticas, com todas as sagradas escrituras que povoam e fadigam a Terra. Hawthorne assiste com assombro e certo escândaloà combustão; um homem com ar pensativo diz-lhe que ele não deve alegrar-senem se entristecer, pois a vasta pirâmide de fogo não consumiu senão aquilo

que nas coisas é consumível. Outro espectador – o demônio – observa que osempresários do holocausto se esqueceram de atirar o essencial, o coraçãohumano, no qual se encontra a raiz de todo pecado, e que somente destruíramalgumas formas. Hawthorne conclui assim: "O coração, o coração, essa é a breve esfera ilimitada onde radica a culpa daquilo que o crime e a miséria domundo são apenas símbolo. Purifiquemos essa esfera interior, e as muitasformas do mal que entenebrecem este mundo visível fugirão como fantasmas, pois, se não sobrepujarmos a inteligência e não tentarmos, com esse

instrumento imperfeito, discernir e corrigir o que nos aflige, toda nossa obraserá um sonho. Um sonho tão insubstancial que pouco importará que afogueira, aqui tão fielmente descrita, seja o que chamamos fato real e um fogoque chamusca as mãos em vez de um fogo imaginado e uma parábola".Hawthorne, aqui, deixou-se levar pela doutrina cristã, e especificamentecalvinista, da depravação ingênita dos homens e não parece ter percebido quesua parábola de uma ilusória destruição de todas as coisas encerra um sentidofilosófico e não apenas moral. De fato, se o mundo é o sonho de Alguém, se há

Alguém que agora está sonhando-nos e que sonha a história do universo, comoé doutrina da escola idealista, a aniquilação das religiões e das artes, o incêndiogeral das bibliotecas não é muito mais importante que a destruição dos móveisde um sonho. A mente que uma vez os sonhou voltará a sonhá-los; enquanto amente continuar sonhando, nada se terá perdido. A convicção dessa verdade,que parece fantástica, fez com que Schopenhauer, em seu livro  Parerga und  Paralipomena, comparasse a história a um caleidoscópio, no qual as figurasmudam, mas não os fragmentos de vidro, a uma eterna e confusa tragicomédiaem que mudam os papéis e as máscaras, mas não os atores. Essa mesmaintuição de que o universo é uma projeção de nossa alma e de que a históriauniversal está em cada homem fez Emerson escrever o poema intitulado" History".

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Quanto à fantasia de abolir o passado, não sei se cabe lembrar que ela foiensaiada na China, com adversa fortuna, três séculos antes de Jesus Cristo.Escreve Herbert Allen Giles: "O ministro Li Su propôs que a históriacomeçasse com o novo monarca, que tomou para si o título de PrimeiroImperador. Para extirpar as vãs pretensões da antigüidade, ordenou-se que

todos os livros fossem confiscados e queimados, salvo os que ensinassemagricultura, medicina ou astrologia. Aqueles que ocultaram seus livros forammarcados a ferro candente e obrigados a trabalhar na construção da GrandeMuralha. Muitas obras valiosas pereceram; é à abnegação e coragem deobscuros e anônimos homens de letras que a posteridade deve a conservação docânone de Confúcio. Tantos literatos, conta-se, foram executados por desacatar as ordens imperiais que no inverno cresceram melões no lugar onde haviamsido enterrados". Na Inglaterra, em meados do século XVII, esse mesmo

 propósito ressurgiu entre os puritanos, entre os antepassados de Hawthorne."Em um dos parlamentos populares convocados por Cromwell – conta SamuelJohnson – apresentou-se, muito seriamente, a proposta de que se queimassemos arquivos da Torre de Londres, que se apagasse toda a memória das coisas pretéritas e que todo o regime da vida recomeçasse." Ou seja, o propósito deabolir o passado já ocorreu no passado e – paradoxalmente – é uma das provasde que o passado não pode ser abolido. O passado é indestrutível; cedo outarde, todas as coisas voltam, e uma das coisas que voltam é o projeto de abolir 

o passado.Como Stevenson, também filho de puritanos, Hawthorne nunca deixou desentir que a tarefa do escritor era frívola ou, o que é pior, culpada. No prefáciode A Letra Escarlate, imagina os espectros de seus antepassados observando-oenquanto escreve o romance. A passagem é curiosa. "O que ele estará fazendo? – pergunta um antigo espectro aos outros. – Está escrevendo um livro dehistórias! Que oficio será esse, que modo de glorificar a Deus ou de ser útil aoshomens, em seu devido tempo e geração? O mesmo valeria a esse desnaturado

ser violinista." A passagem é curiosa, porque encerra uma espécie deconfidência e corresponde a escrúpulos íntimos. Corresponde, também, aoantigo pleito entre a ética e a estética ou, se se preferir, entre a teologia e aestética. Um de seus primeiros testemunhos consta da Sagrada Escritura e proíbe aos homens adorar ídolos. Outro é o de Platão, que no décimo livro da República raciocina deste modo: "Deus cria o Arquétipo (a idéia original) damesa; o marceneiro, um simulacro". Outro é o de Maomé, que declarou quetoda representação de uma coisa viva comparecerá perante o Senhor, no dia doJuízo Final. Os anjos ordenarão ao artífice que a anime; este fracassará e seráatirado no Inferno, por certo tempo. Alguns doutores muçulmanos postulamque a proscrição vale apenas para as imagens capazes de projetar sombra (asesculturas)... De Plotino, conta-se que quase sentia vergonha de habitar um

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corpo e que não permitiu aos escultores a perpetuação de seus traços. Certavez, um amigo suplicou-lhe que se deixasse retratar; Plotino disse: "já muitome pesa ter de arrastar este simulacro em que a natureza me encarcerou. Hei detolerar, ainda, que seja perpetuada a imagem desta imagem?".

 Nathaniel Hawthorne desatou essa dificuldade (que não é ilusória) do

modo que sabemos; compôs moralidades e fábulas; fez e procurou fazer da arteuma função da consciência. Assim, para nos limitarmos a um único exemplo, oromance The House of the Seven Gables (A casa dos sete telhados) pretendemostrar que o mal cometido por uma geração perdura e se prolonga nassubseqüentes, como uma espécie de castigo herdado. Andrew Lang comparouesse romance com os de Émile Zola, ou com a teoria dos romances de ÉmileZola; salvo um momentâneo assombro, não sei que utilidade pode resultar daaproximação desses nomes heterogêneos. O fato de Hawthorne perseguir, ou

tolerar, propósitos de índole moral não invalida, não pode invalidar, sua obra. No decorrer de uma vida consagrada menos a viver que a ler, pude muitasvezes verificar que os propósitos e teorias literárias não passam de estímulos eque a obra final costuma ignorá-los e até contradizê-los. Se há algo no autor,nenhum propósito, por mais fútil ou errôneo que seja, poderá afetar de modoirreparável sua obra. Um autor pode padecer de preconceitos absurdos, mas suaobra, se for genuína, se responder a uma visão genuína, não poderá ser absurda.Por volta de 1916, os romancistas da Inglaterra e da França acreditavam (ou

acreditavam acreditar) que todos os alemães eram demônios; em seusromances, porém, costumavam apresentá-los como seres humanos. EmHawthorne, sempre a visão germinal era verdadeira; o falso, o eventualmentefalso, são as moralidades que ele acrescentava no último parágrafo ou os personagens que idealizava, que armava, para representá-las. Os personagensde  A Letra Escarlate – sobretudo Hester Prynne, a heroína – são maisindependentes, mais autônomos, que os de outras ficções de Hawthorne;assemelham-se mais aos habitantes da maioria dos romances e não são meras

 projeções do autor ligeiramente disfarçadas. Essa objetividade, essa relativa e parcial objetividade, é talvez a razão que levou dois escritores tão agudos (e tãodíspares) como Henry James e Ludwig Lewisohn a considerar  A Letra Escarlate a obra-prima de Hawthorne, seu testemunho imprescindível. Ousodiscordar dessas autoridades. Quem desejar objetividade, quem tiver fome esede de objetividade, que a procure em Joseph Conrad ou em Tolstói; quemquiser o peculiar sabor de Nathaniel Hawthorne o encontrará menos em seuslaboriosos romances que em alguma página secundária ou nos leves e patéticoscontos. Não sei muito bem como justificar minha discrepância; nos trêsromances americanos e no  Fauno de Mármore vejo apenas uma série desituações urdidas com destreza profissional para comover o leitor, não umaespontânea e viva atividade da imaginação. Esta (repito) construiu o argumento

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geral e as digressões, não o entrelaçamento dos episódios nem a psicologia – dealgum modo temos de chamá-la – dos atores.

Johnson observa que nenhum escritor gosta de dever algo a seuscontemporâneos; Hawthorne ignorou-os até onde lhe foi possível. Talvez tenhafeito bem; talvez nossos contemporâneos se pareçam – sempre – demais a nós

mesmos, e quem esteja em busca de novidades as encontrará com maisfacilidade nos antigos. Hawthorne, segundo seus biógrafos, não leu DeQuincey, não leu Keats, não leu Victor Hugo – que tampouco leram uns aosoutros. Groussac não suportava a possibilidade de um americano ser original;em Hawthorne denunciou "a notável influência de Hoffmann"; ditame que parece basear-se em uma equânime ignorância de ambos os autores. Aimaginação de Hawthorne é romântica; seu estilo, apesar de alguns excessos,corresponde ao século XVIII, ao pálido fim do admirável século XVIII.

Li vários fragmentos do diário que Hawthorne escreveu para distrair sualonga solidão; referi, ainda que brevemente, dois contos; agora lerei uma página do  Marble Faun  para que vocês ouçam Hawthorne. O tema é aquele poço ou abismo que, segundo os historiadores latinos, abriu-se no centro doFórum e em cujas cegas profundezas atirou-se um romano, armado e a cavalo, para aplacar os deuses. Reza o texto de Hawthorne:

"Admitamos – disse Kenyon – que este seja o lugar exato onde se abriu acaverna, aquela em que o herói se atirou com seu bom cavalo. Imaginemos o

enorme e escuro buraco, impenetravelmente fundo, com vagos monstros erostos atrozes olhando cá para cima e enchendo de horror os cidadãos que emsua borda se debruçavam. Sem dúvida, estava cheio de visões proféticas(cominações de todos os infortúnios de Roma), de sombras de gauleses, devândalos e dos soldados francos. Pena ter sido tapado tão depressa! Eu dariaqualquer coisa por uma olhada.

"Penso – disse Miriam – que não há pessoa que não lance um olhar nessafenda, em momentos de sombra e abatimento, ou seja, de intuição.

"Essa fenda – disse seu amigo – era apenas uma boca do abismo deescuridão que está abaixo de nós, em toda a parte. A substância mais firme dafelicidade dos homens é uma lâmina interposta entre esse abismo e nós e quesustenta nosso mundo ilusório. Não é necessário um terremoto para rompê-la; basta apoiar o pé. Devemos pisar com muito cuidado. Inevitavelmente, no finalafundamos. Foi um tolo alarde de heroísmo o de Cúrcio, quando tomou adianteira e se atirou nas profundezas, pois Roma inteira, como vemos agora,caiu aí. O Palácio dos Césares caiu, com um estrondo de pedras desabando.Todos os templos caíram, e depois atiraram milhares de estátuas. Todos osexércitos e os triunfos caíram, marchando, nessa caverna, e soava a músicamarcial enquanto se precipitavam..."

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Até aqui, Hawthorne. Do ponto de vista da razão (da mera razão que nãodeve intrometer-se nas artes), a fervorosa passagem que acabo de traduzir éindefensável. A fenda aberta no meio do fórum é demasiadas coisas. Ao longode um único parágrafo é a fenda de que falam os historiadores latinos etambém a boca do Inferno "com vagos monstros e rostos atrozes", e também é

o horror essencial da vida humana, e também o Tempo, que devora estátuas eexércitos, e também a Eternidade, que encerra os tempos. É um símbolomúltiplo, um símbolo capaz de muitos valores, talvez incompatíveis. Para arazão, para o entendimento lógico, tal variedade de valores pode constituir umescândalo, mas não para os sonhos, que têm sua álgebra singular e secreta, eem cujo ambíguo território uma coisa pode ser muitas. Esse mundo de sonhos éo de Hawthorne. Uma vez, ele propôs-se escrever um sonho, "que fosse comoum sonho verdadeiro e que tivesse a incoerência, as estranhezas e a falta de

 propósito dos sonhos", e maravilhou-se de que ninguém, até então, tivesseexecutado algo semelhante. No mesmo diário em que registrou esse estranho projeto – que toda a nossa literatura "moderna" tenta em vão executar e quetalvez só Lewis Carroll tenha realizado –, Hawthorne anotou milhares deimpressões banais de pequenos aspectos concretos (o movimento de umagalinha, a sombra de um galho na parede) que ocupam seis volumes, cujainexplicável abundância faz a consternação de todos os biógrafos. "Parecemcartas gratas e inúteis – escreve com perplexidade Henry James – dirigidas a si

mesmo por um homem temeroso de que fossem abertas no correio e que por isso tivesse resolvido não dizer nada de comprometedor." Tenho para mim que Nathaniel Hawthorne registrou essas banalidades por anos a fio para provar a simesmo que ele era real, para de algum modo livrar-se da impressão deirrealidade, de fantasmidade, que tanto o freqüentava.

Em um dos dias de 1840 escreveu: "Aqui estou em meu quarto habitual,onde me parece sempre estar. Aqui terminei muitos contos, muitos que depoisqueimei, muitos que, sem dúvida, mereciam esse ardente destino. Este é um

aposento assombrado, porque milhares e milhares de visões povoaram seuâmbito, e algumas agora são visíveis ao mundo. Por momentos, eu acreditavaestar na sepultura, gelado, imóvel e intumescido; por momentos, acreditava ser feliz... Agora começo a entender por que permaneci preso durante tantos anosneste quarto solitário e por que não podia romper suas grades invisíveis. Setivesse escapado antes, agora seria duro e áspero e teria o coração coberto do pó terrenal... Na verdade, não passamos de sombras...". Nas linhas que acabode transcrever, Hawthorne menciona "milhares e milhares de visões". A cifratalvez não seja uma hipérbole; os doze volumes das obras completas deHawthorne incluem cento e tantos contos, e estes são apenas uma pequena parte dos muitíssimos que ele esboçou em seu diário. (Entre os completos háum – "Mr. Higginbotham’s catastrophe" [A morte repetida] – que prefigura o

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gênero policial que Poe inventaria.) Miss Margaret Fuller, que conviveu comele na comunidade utópica de Brook Farm, escreveu depois: "Daquele oceanorecebemos somente algumas gotas", e Emerson, também amigo dele,acreditava que Hawthorne nunca mostrara todo seu valor. Hawthorne casou-seem 1842, ou seja, aos trinta e oito anos; sua vida, até essa data, foi quase

 puramente imaginativa, mental. Trabalhou na alfândega de Boston, foi cônsuldos Estados Unidos em Liverpool, viveu em Florença, em Roma e em Londres,mas sua realidade foi, sempre, o tênue mundo crepuscular, ou lunar, dasimaginações fantásticas.

 No início desta aula mencionei a doutrina do psicólogo Jung que equiparaas invenções literárias às invenções oníricas, a literatura aos sonhos. Essadoutrina não parece aplicável às literaturas que utilizam a língua espanhola,clientes do dicionário e da retórica, não da fantasia. Em contrapartida, é

adequada às letras da América do Norte. Estas (com as da Inglaterra ou daAlemanha) são mais capazes de inventar que de transcrever, de criar que deobservar. Desse traço procede a curiosa veneração que os norte-americanostributam às obras realistas e que os leva a postular, por exemplo, queMaupassant é mais importante que Hugo. A razão disso é que para um escritor norte-americano é possível ser Hugo, mas não, sem violência, ser Maupassant.Comparada à dos Estados Unidos, que já deu vários homens de gênio e queinfluiu na da Inglaterra e na da França, nossa literatura argentina corre o risco

de parecer um tanto provinciana; entretanto, no século XIX, ela produziualgumas páginas de realismo – algumas admiráveis crueldades de Echeverría,de Ascasubi, de Hernández, do ignorado Eduardo Gutiérrez – que, até agora, osnorte-americanos não superaram (talvez nem tenham igualado). Faulkner,alegarão, não é menos brutal que nossos gauchescos. Sei bem que ele o é, masde um modo alucinatório. De um modo infernal, não terrestre. Do modo dossonhos, do modo inaugurado por Hawthorne.

Este morreu em dezoito de maio de 1864, nas montanhas de New

Hampshire. Sua morte foi tranqüila e foi misteriosa, pois aconteceu durante osono. Nada nos impede de imaginar que ele morreu sonhando, e até podemosinventar a história que ele sonhava – a última de uma série infinita – e de quemaneira foi coroada ou apagada pela morte. Quem sabe, um dia, eu ainda aescreva e tente resgatar, com um conto aceitável, esta deficiente e por demaisdigressiva lição.

Van Wyck Brooks, em The Flowering of New England , D. H. Lawrence,em Studies in Classic American Literature, e Ludwig Lewisohn, em The Storyof American Literature, analisam e julgam a obra de Hawthorne. Existemmuitas biografias. Eu trabalhei com a que Henry James escreveu em 1879 paraa série English Men of Letters, de Morley.

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Morto Hawthorne, os demais escritores herdaram sua tarefa de sonhar. Na próxima aula estudaremos, se a indulgência de vocês tolerar, a glória e ostormentos de Poe, em quem o sonho exaltou-se em pesadelo.

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VALÉRY COMO SÍMBOLO

Aproximar o nome de Whitman ao de Paul Valéry é, à primeira vista,uma operação arbitrária e (o que é pior) inepta. Valéry é símbolo de infinitasdestrezas, mas também de infinitos escrúpulos; Whitman, de uma quaseincoerente mas titânica vocação para a felicidade; Valéry personificailustremente os labirintos do espírito; Whitman, as interjeições do corpo.Valéry é símbolo da Europa e de seu delicado crepúsculo; Whitman, da manhãna América. O orbe inteiro da literatura parece não admitir duas aplicaçõesmais antagônicas da palavra poeta. Um fato, entretanto, une-os: a obra dos dois

é menos preciosa como poesia que como signo de um poeta exemplar, criado por essa obra. Assim, o poeta inglês Lascelles Abercrombie pôde exaltar Whitman por ter criado, "da riqueza de sua nobre experiência, essa figuravívida e pessoal que é uma das poucas coisas realmente grandes da poesia denosso tempo: a figura dele mesmo". A sentença é vaga e superlativa, mas tem asingular virtude de não identificar Whitman, homem de letras e devoto deTennyson, com Whitman, herói semidivino de  Leaves of Grass. A distinção éválida; Whitman redigiu suas rapsódias em função de um eu imaginário, feito

em parte dele mesmo, em parte de cada um de seus leitores. Daí asdiscrepâncias que têm exasperado a crítica; daí seu costume de datar os poemasem territórios que ele nunca conheceu; daí que, em tal página de sua obra, eletenha nascido nos estados do Sul e, em outra (também na realidade), em LongIsland.

Um dos propósitos das composições de Whitman é definir um homem possível – Walt Whitman – de ilimitada e negligente felicidade; não menoshiperbólico, não menos ilusório, é o homem definido pelas composições de

Valéry. Este não magnifica, como aquele, as capacidades humanas dafilantropia, do fervor e da ventura; magnifica as virtudes mentais. Valéry criouEdmond Teste; esse personagem seria um dos mitos de nosso século se todos,intimamente, não o julgássemos um mero  Doppelgänger de Valéry. Para nós,Valéry é Edmond Teste. Ou seja, Valéry é uma derivação do Chevalier Dupinde Edgar Allan Poe e do inconcebível Deus dos teólogos. O que,verossimilmente, não é verdade.

Yeats, Rilke e Eliot escreveram versos mais memoráveis que os de

Valéry; Joyce e Stefan George efetuaram modificações mais profundas em seuinstrumento (talvez o francês seja menos modificável que o inglês e o alemão);mas por trás da obra desses eminentes artífices não há uma personalidadecomparável à de Valéry. A circunstância de que essa personalidade seja, de

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certo modo, uma projeção da obra não minimiza o fato. Propor lucidez àhumanidade em uma era baixamente romântica, na melancólica era do nazismoe do materialismo dialético, dos áugures da seita de Freud e dos comerciantesdo  surréalisme, é a benemérita missão que desempenhou (que continuadesempenhando) Valéry.

Paul Valéry deixa-nos, ao morrer, o símbolo de um homem infinitamentesensível a todo fato e para quem todo fato é um estímulo capaz de suscitar umainfinita série de pensamentos. De um homem que transcende os traçosdiferenciais do eu e de quem podemos dizer, como William Hazlitt, deShakespeare: " He is nothing in himself ". De um homem cujos admiráveistextos não esgotam, nem sequer definem, suas omnímodas possibilidades. Deum homem que, em um século que adora os caóticos ídolos do sangue, da terrae da paixão, preferiu sempre os lúcidos prazeres do pensamento e as secretas

aventuras da ordem.

 Buenos Aires, 1945.

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O ENIGMA DE EDWARD FITZGERALD

Um homem, Umar Ibn Ibrahim, nasce na Pérsia, no século XI da eracristã (esse século foi para ele o quinto da Hégira), e aprende o  Alcorão e astradições com Hassan Ibn al-Sabbah, futuro fundador da seita dos Hashishin,ou Assassinos, e com Nizam al-Mulk, que será vizir de Alp Arslan, oconquistador do Cáucaso. Os três amigos, meio brincando, meio a sério, juramque, se um dia a fortuna houver por bem favorecer um deles, o agraciado nãose esquecerá dos outros dois. Anos mais tarde, Nizam chega à dignidade devizir: Umar pede-lhe apenas um recanto à sombra de sua ventura, para rezar 

 pela prosperidade do amigo e meditar nas matemáticas. (Hassan pede e obtémum cargo elevado e, por fim, manda apunhalar o vizir.) Umar recebe do tesourode Nishapur uma pensão anual de dez mil dinares e pode consagrar-se aoestudo. Descrê da astrologia judiciária, mas cultiva a astronomia, colabora nareforma do calendário promovida pelo sultão e compõe um famoso tratado deálgebra, que oferece soluções numéricas para as equações de primeiro esegundo graus e geométricas, mediante a intersecção de cônicas, para as deterceiro. Os arcanos do número e dos astros não esgotam sua atenção; lê, na

solidão de sua biblioteca, os textos de Plotino, que no vocabulário do Islã é oPlatão Egípcio ou o Mestre Grego, e as cinqüenta e tantas epístolas da heréticae mística Enciclopédia dos Irmãos da Pureza, na qual se argumenta que ouniverso é uma emanação da Unidade, e retornará à Unidade... Dizem-no prosélito de Alfarabi, que entendeu que as formas universais não existem foradas coisas, e de Avicena, que ensinou que o mundo é eterno. Certa crônica dizque ele acredita, ou faz de conta que acredita, nas transmigrações da alma decorpo humano a corpo bestial e que uma vez falou com um asno como

Pitágoras falara com um cão. É ateu, mas sabe interpretar de modo ortodoxo asmais difíceis passagens do Alcorão, porque todo homem culto é um teólogo, e para sê-lo não é indispensável ter fé. Nos intervalos da astronomia, da álgebra eda apologética, Umar Ibn Ibrahim al-Khayyami lavra composições de quatroversos, dos quais o primeiro, o segundo e o último rimam entre si; o manuscritomais copioso atribui-lhe quinhentas dessas quadras, número exíguo que serádesfavorável a sua glória, pois na Pérsia (como na Espanha de Lope e deCalderón) o poeta deve ser fecundo. No ano 517 da Hégira, Umar está lendo

um tratado cujo título é O Uno e os Múltiplos; um mal-estar ou uma premonição o interrompe. Levanta-se, assinala a página que seus olhos nãovoltarão a ver e reconcilia-se com Deus, com aquele Deus que talvez exista ecujo favor ele implorou nas árduas páginas de sua álgebra. Morre nesse mesmo

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dia, à hora do pôr-do-sol. Por esses anos, em uma ilha ocidental e boreal que oscartógrafos do Islã desconhecem, um rei saxão que derrotou um rei da Noruegaé derrotado por um duque normando.

Sete séculos se passam, com suas luzes, agonias e mutações, e naInglaterra nasce um homem, FitzGerald, menos intelectual que Umar, porém

talvez mais sensível e mais triste. FitzGerald sabe que seu verdadeiro destino éa literatura e a ensaia com indolência e tenacidade. Lê e relê o Quixote, quequase lhe parece o melhor de todos os livros (mas não quer ser injusto comShakespeare e com seu dear old Virgil ), e seu amor estende-se ao dicionárioem que procura as palavras. Entende que, se os astros forem propícios, todohomem cuja alma encerre um mínimo de música pode versificar dez ou dozevezes no curso natural de sua vida, mas resolve não abusar desse módico privilégio. É amigo de pessoas ilustres (Tennyson, Carlyle, Dickens,

Thackeray), às quais não se sente inferior, a despeito de sua modéstia ecortesia. Publicou um diálogo decorosamente escrito,  Euphranor , e medíocresversões de Calderón e dos grandes trágicos gregos. Do estudo do espanhol passou ao estudo do persa e começou uma tradução de  Mantiq al-Tayr , aepopéia mística dos pássaros que procuram seu rei, o Simurg, e finalmentearribam a seu palácio, que fica além dos sete mares, e descobrem que eles são oSimurg e que o Simurg é todos e cada um deles. Por volta de 1854, alguém lheempresta uma coleção manuscrita das composições de Umar, feita sem outra

lei afora a ordem alfabética das rimas; FitzGerald verte uma para o latim eentrevê a possibilidade de tecer com elas um livro contínuo e orgânico em cujo princípio estejam as imagens da manhã, da rosa e do rouxinol e, no fim, as danoite e da sepultura. A esse propósito improvável e até inverossímil FitzGeraldconsagra sua vida de homem indolente, solitário e maníaco. Em 1859 publica a primeira versão do  Rubaiyat , seguida de outras, ricas em variações eescrúpulos. Acontece um milagre: da fortuita conjunção de um astrônomo persa que condescendeu à poesia e de um inglês excêntrico que percorre, talvez

sem entendê-los por completo, livros orientais e hispânicos, surge umextraordinário poeta, que não se parece com nenhum dos dois. Swinburneescreve que FitzGerald "deu a Omar Khayyam um lugar perpétuo entre osmaiores poetas da Inglaterra", e Chesterton, sensível ao que há de romântico ede clássico nesse livro sem par, observa que ao mesmo tempo há nele "umamelodia que escapa e uma inscrição que dura". Alguns críticos entendem que oOmar  de FitzGerald é, de fato, um poema inglês com referências persas;FitzGerald interpolou, afinou e inventou, mas seus  Rubaiyat  parecem exigir que os leiamos como persas e antigos.

O caso convida a conjeturas de índole metafísica. Umar professou(sabemos) a doutrina platônica e pitagórica do trânsito da alma por muitoscorpos; passados os séculos, a dele talvez tenha reencarnado na Inglaterra para

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cumprir, em um longínquo idioma germânico entremeado de latim, o destinoliterário que em Nishapur as matemáticas reprimiram. Isaac Luria, o Leão,ensinou que a alma de um morto pode entrar em uma alma desventurada paraapoiá-la ou instruí-la; talvez a alma de Umar tenha-se hospedado, por volta de1857, na de FitzGerald. No  Rubaiyat  lê-se que a história universal é um

espetáculo que Deus concebe, representa e contempla; essa especulação (cujonome técnico é panteísmo) permitiria pensar que o inglês pôde recriar o persa porque ambos eram, essencialmente, Deus ou faces momentâneas de Deus.Mais verossímil e não menos maravilhosa que tais conjeturas de índolesobrenatural é a suposição do acaso benéfico. As nuvens por momentosconfiguram formas de montanhas ou leões; analogamente, a tristeza de EdwardFitzGerald e um manuscrito de letras purpúreas sobre papel amarelo, esquecidoem uma estante da Bodeliana de Oxford, configuraram, para nossa felicidade, o

 poema.Toda colaboração é misteriosa. Esta, entre o inglês e o persa, mais do quenenhuma, porque os dois eram muito diferentes e é provável que em vida nãotivessem entabulado amizade, e a morte, as vicissitudes e o tempo fizeram comque um soubesse do outro e fossem um único poeta.

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SOBRE OSCAR WILDE

Mencionar o nome de Oscar Wilde é mencionar um dandy que tambémfoi poeta, é evocar a imagem de um cavalheiro dedicado ao pobre propósito decausar assombro com gravatas e metáforas. Também é evocar a noção da artecomo um jogo seleto ou secreto – à maneira da tapeçaria de Hugh Vereker e deStefan George – e do poeta como laborioso monstrorum artifex (Plínio,XXVIII, 2). E evocar o exangue crepúsculo do século XIX e essa opressiva pompa de hibernáculo ou de baile de máscaras. Nenhuma dessas evocações éfalsa, mas todas correspondem, afirmo, a verdades parciais e contradizem fatos

notórios, ou descuidam deles.Consideremos, por exemplo, a noção de que Wilde foi uma espécie desimbolista. Ela se apóia em um cúmulo de circunstâncias: em torno de 1881,Wilde dirigiu os estetas e, dez anos mais tarde, os decadentes; Rebeca West perfidamente o acusa ( Henry James, III) de impor "o selo da classe média" àúltima dessas seitas; o vocabulário do poema "The sphinx" é estudiosamentemagnífico; Wilde foi amigo de Schwob e de Mallarmé. É refutada por um fatocapital: em verso ou em prosa, a sintaxe de Wilde é sempre simplíssima.

Dentre os muitos escritores britânicos, nenhum é tão acessível aos estrangeiros.Leitores incapazes de decifrar um parágrafo de Kipling ou uma estrofe deWilliam Morris lêem Lady Windermere’s  Fan em uma mesma tarde. A métricade Wilde é espontânea, ou tenta parecer espontânea; sua obra não encerra umúnico verso experimental, como este duro e sábio alexandrino de LionelJohnson: " Alone with Christ, desolate else, left by mankind ".

A insignificância técnica de Wilde pode ser um argumento em prol de suagrandeza intrínseca. Se a obra de Wilde correspondesse à natureza de sua fama,

conteria meros artifícios como os de  Les Palais Nomades ou Los Crepúsculosdel Jardín. A obra de Wilde é povoada desses artifícios – basta lembrar odécimo primeiro capítulo de  Dorian Gray, ou The Harlot’s House, ouSymphony in Yellow –, mas sua índole adjetiva é notória. Wilde pode prescindir desses  purple patches (retalhos de púrpura), expressão a ele atribuída por Ricketts e Hesketh Pearson, mas que já aparece no exórdio da  Epístola aos Pisões. Essa atribuição confirma o hábito de vincular ao nome de Wilde anoção de passagens decorativas.

Lendo e relendo Wilde ao longo dos anos, percebo algo que seus panegiristas parecem não ter sequer suspeitado: o fato constatável e elementar de que Wilde, quase sempre, tem razão. The Soul of Man under Socialism nãoé apenas eloqüente; é também justo. As notas miscelâneas que ele prodigalizou

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na  Pall Mall Gazette e no Speaker  são fartas de perspícuas observações queexcedem as melhores possibilidades de Leslie Stephen ou Saintsbury. Wildefoi acusado de exercer uma sorte de arte combinatória, ao estilo de RamónLlull; isso talvez seja aplicável a alguma de suas boutades ("um desses rostos britânicos que, vistos uma vez, sempre se esquecem"), mas não a sentenças

como a de que a música nos revela um passado desconhecido e talvez real (TheCritic as Artist ), ou aquela de que todos os homens matam aquilo que amam(The Ballad of Reading Gaol ), ou aquela outra de que se arrepender de um atoé alterar o passado ( De Profundis), ou aquela,1 não indigna de Léon Bloy ou deSwedenborg, de que não há homem que não seja, a cada instante, aquilo quefoi e que será (ibidem). Não transcrevo essas linhas para a veneração do leitor;alego-as como indício de uma mentalidade muito diversa daquela que, emgeral, se atribui a Wilde. Este, se não me engano, foi muito mais que um

Moréas irlandês; foi um homem do século XVIII, que chegou a condescender com os jogos do simbolismo. Como Gibbon, como Johnson, como Voltaire, foium homem engenhoso que, ainda por cima, tinha razão. Foi, "em suma, paradizer de uma vez as palavras fatais, um clássico".2 Deu ao século o que oséculo exigia –  comédies larmoyantes para muitos e arabescos verbais para poucos – e executou coisas tão díspares com uma sorte de negligentefelicidade. Foi prejudicado pela perfeição; sua obra é tão harmoniosa que pode parecer inevitável e até banal. Custa-nos imaginar o universo sem os epigramas

de Wilde; essa dificuldade não os faz menos plausíveis.Uma observação à margem. O nome de Oscar Wilde é associado àscidades da planície; sua glória, ao julgamento e à prisão. Contudo (HeskethPearson sentiu-o muito bem), o sabor fundamental de sua obra é a felicidade.Ao contrário de Chesterton, tido como modelo de saúde física e moral, mascuja valorosa obra sempre está a ponto de se converter em pesadelo. Nelaespreitam o diabólico e o horror; pode, na página mais inócua, assumir asformas do espanto. Chesterton é um homem que quer recuperar a infância;

Wilde, um homem que conserva, em que pese aos hábitos do mal e aoinfortúnio, uma invulnerável inocência.Como Chesterton, como Lang, como Boswell, Wilde é daqueles

afortunados que podem prescindir da aprovação da crítica e até, às vezes, daaprovação do leitor, pois o prazer que seu trato nos proporciona é irresistível econstante.

1 Cf. a curiosa tese de Leibniz, que tanto escandalizou Arnauld: "A noção de cada indivíduo encerra a priori todos os fatos que a este hão de ocorrer". Segundo esse fatalismo dialético, o fato de Alexandre, o

Grande, morrer na Babilônia é uma qualidade desse rei, como a soberba.

2 A sentença é de Reyes, que a aplica ao homem mexicano ( Reloj de Sol , p. 158).

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SOBRE CHESTERTON

  Because He does not take awayThe terror from the tree...

CHESTERTON: A Second Childhood .

Edgar Allan Poe escreveu contos de puro horror fantástico ou de purabizarrerie; Edgar Allan Poe foi o inventor do conto policial. Isso não é menoscerto que o fato de ele não ter combinado os dois gêneros. Não impôs aocavalheiro Augusto Dupin a tarefa de precisar o antigo crime do Homem dasMultidões ou de explicar a aparição que fulminou o mascarado príncipe

Próspero na câmara negra e escarlate. Chesterton, ao contrário, prodigalizoucom paixão e felicidade esses tours de force. Cada um dos textos da Saga do padre Brown apresenta um mistério, propõe explicações de tipo demoníaco oumágico para, no fim, substituí-las por outras que são deste mundo. A mestrianão esgota a virtude dessas breves ficções; nelas creio notar uma cifra dahistória de Chesterton, um símbolo ou espelho de Chesterton. A repetição deseu esquema ao longo dos anos e dos livros (The Man Who Knew Too Much,The Poet and the Lunatics, The Paradoxes of Mr. Pond ) parece confirmar que

se trata de uma forma essencial, não de artifício retórico. Estes apontamentossão uma tentativa de interpretar essa forma.

Antes, convém reconsiderar alguns fatos de excessiva notoriedade.Chesterton foi católico, Chesterton acreditou na Idade Média dos pré-rafaelistas ("Of London, small and white, and clean”), Chesterton pensou,como Whitman, que o mero fato de ser é tão prodigioso que nenhumadesventura deve eximir-nos de uma espécie de cômica gratidão. Tais crenças podem ser justas, mas o interesse que despertam é limitado; supor que elas

esgotam Chesterton é esquecer que um credo é o último termo de uma série de processos mentais e emocionais e que o homem é toda a série. Neste país, oscatólicos exaltam Chesterton, os livre-pensadores o negam. Como todo escritor 

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que professa um credo, Chesterton é julgado por causa disso, é reprovado ouaclamado por isso. Seu caso é semelhante ao de Kipling, que as pessoas sempre julgam em função do Império Britânico.

Poe e Baudelaire, assim como o Urizen atormentado de Blake, propuseram-se criar um mundo de espanto; é natural que sua obra seja fértil em

formas do terror. Creio que Chesterton não teria tolerado a imputação de ser um urdidor de pesadelos, um monstrorum artifex (Plínio, XXVIII, 2), mas eleindefectivelmente incorre em freqüentes imagens atrozes. Pergunta se porventura um homem tem três olhos, ou um pássaro três asas; fala, contra os panteístas, de um morto que descobre no Paraíso que os espíritos dos corosangelicais têm sempre seu próprio rosto;1 fala de uma prisão de espelhos; falade um labirinto sem centro; fala de um homem devorado por autômatos demetal; fala de uma árvore que devora os pássaros e que, em vez de folhas, dá

 penas; imagina (The Man Who Was Thursday, VI) que nos confins orientais domundo talvez exista uma árvore que já é mais, e menos, que uma árvore, e, nosocidentais, algo, uma torre, cuja arquitetura, por si só, é malvada. Define o próximo pelo distante, e até pelo atroz; se fala dos próprios olhos, nomeia-oscom palavras de Ezequiel (1, 22), "um terrível cristal"; se da noite, aperfeiçoaum antigo horror (Apocalipse 4, 6) para chamá-la "um monstro feito de olhos". Não menos ilustrativa é a narração How I Found the Superman. Chesterton falacom os pais do Super-Homem; perguntados sobre a beleza do filho, que não sai

de um quarto escuro, estes lembram-lhe que o Super-Homem cria seu própriocânone e por ele deve ser medido ("Nesse plano, ele é mais belo que Apolo.Visto de nosso plano inferior, claro que..."); depois admitem que não é nadafácil estreitar sua mão ("O senhor sabe; a estrutura é muito outra"); depois sãoincapazes de precisar se ele tem cabelo ou penas. Morre vítima de uma correntede ar, e alguns homens retiram um ataúde que não tem forma humana.Chesterton relata essa fantasia teratológica em tom de zombaria.

Tais exemplos, que seria fácil multiplicar, provam que Chesterton se

defendeu de ser Edgar Allan Poe ou Franz Kafka, mas que algo no barro de seueu propendia ao pesadelo, algo secreto, cego e central. Não por acaso elededicou suas primeiras obras à defesa de dois grandes artífices góticos:Browning e Dickens; não por acaso repetiu que o melhor livro saído daAlemanha era o dos contos de Grimm. Denegriu Ibsen e defendeu (talvezindefensavelmente) Rostand, mas os Trolls e o Fundidor de Peer Gynt eram damesma matéria de seus sonhos, "the stuff his dreams were made of ". Esse

1 Amplificando um pensamento de Attar ("Em toda a parte só vemos Teu rosto"), Djalal al-Din Rumi

compôs alguns versos, depois traduzidos por Rückert (Werke, IV, 222), em que se diz que nos céus, nomar e nos sonhos há Um Só e em que se louva esse único por ter reduzido à unidade os quatro briososanimais que puxam a carruagem dos mundos: a terra, o fogo, o ar e a água.

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desacordo, essa precária sujeição de uma vontade demoníaca definem anatureza de Chesterton. Emblemas dessa guerra são, para mim, as aventuras do padre Brown, cada uma das quais pretende explicar, mediante a pura razão, umfato inexplicável.2 Por isso afirmei, no parágrafo inicial desta nota, que asficções de Chesterton eram cifras de sua história, símbolos e espelhos de

Chesterton. Isso é tudo, com a ressalva de que a "razão" à qual Chestertonsubordinou suas imaginações não era exatamente a razão, mas a fé católica, ouseja, um conjunto de imaginações hebréias subordinadas a Platão e aAristóteles.

Recordo duas parábolas opostas. A primeira consta no primeiro volumedas obras de Kafka. E a história do homem que pede para ter acesso à lei. Oguardião da primeira porta responde que dentro há muitas outras3 e que não hásala que não esteja custodiada por um guardião, cada qual mais forte que o

anterior. O homem senta-se para esperar. Passam-se os dias e os anos, até queele morre. Em sua agonia, pergunta: "Será possível que nos anos desta minhaespera ninguém além de mim tenha querido entrar?". O guardião responde:"Ninguém quis entrar porque só a ti se destinava esta porta. Agora vou fechá-la". (Kafka comenta essa parábola, complicando-a ainda mais, no nono capítulode O Processo.) A outra parábola consta no Pilgrim’s Progress, de Bunyan. As pessoas olham com cobiça um castelo defendido por muitos guerreiros; junto à porta há um guardião com um livro para registrar o nome de quem for digno de

entrar. Um homem intrépido achega-se ao guardião e diz: "Anote meu nome,senhor". Depois tira sua espada e arremete contra os guerreiros e recebe edevolve feridas sangrentas, até abrir passagem em meio ao fragor e entrar nocastelo.

Chesterton dedicou a vida a escrever a segunda parábola, mas algo nelesempre tendeu a escrever a primeira.

2 Não a explicação do inexplicável, e sim do confuso é a tarefa que, em geral, os autores de romances policiais se impõem.

3 A noção de portas atrás de portas, que se interpõem entre o pecador e a glória, aparece no  Zohar . Ver Glatzer: In Time and Eternity, 3O; também Martin Buber: Tales of the Hasidim, 92.

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O PRIMEIRO WELLS

Harris conta que Oscar Wilde, perguntado acerca de Wells, respondeu:

 – E um Júlio Verne científico.O parecer é de 1899; percebe-se que Wilde pensou menos em definir Wells, ou em aniquilá-lo, que em mudar de assunto; H. G. Wells e Júlio Vernesão, agora, nomes incompatíveis. Todos o sentimos assim, mas o exame dasintrincadas razões nas quais nosso sentimento se baseia pode não ser inútil.

A mais notória dessas razões é de ordem técnica. Wells (antes deresignar-se a especulador sociológico) foi um admirável narrador, um herdeirodas brevidades de Swift e de Edgar Allan Poe; Verne, um trabalhador 

esforçado e risonho. Verne escreveu para adolescentes; Wells, para todas asidades do homem. Há outra diferença, já apontada em algum momento pelo próprio Wells: as ficções de Verne transitam em coisas prováveis (um naviosubmarino, um navio mais extenso que os de 1872, a descoberta do Pólo Sul, afotografia falante, a travessia da África em balão, as crateras de um vulcãoextinto que levam ao centro da terra); as de Wells, em meras possibilidades(um homem invisível, uma flor que devora um homem, um ovo de cristal quereflete os acontecimentos de Marte), quando não em coisas impossíveis: um

homem que volta do porvir com uma flor futura; um homem que volta de outravida com o coração à direita, porque foi inteiramente invertido, como em umespelho. Em algum lugar li que Verne, escandalizado com as licenças que The First Men in the Moon se permite, disse com indignação: " Il invente!".

As razões que acabo de citar parecem-me válidas, mas não explicam por que Wells é infinitamente superior ao autor de Héctor Servadac, assim como aRosney, a Lytton, a Robert Paltock, a Cyrano ou a qualquer outro precursor deseus métodos.1 A maior felicidade de seus argumentos não basta para elucidar a

1 Wells, em The Outline of History (1931), exalta a obra de outros dois precursores: Francis Bacon eLuciano de Samósata.

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questão. Em livros não muito breves, o argumento não pode ser mais que um pretexto, ou um ponto de partida. É importante para a execução da obra, não para o prazer da leitura. Isso pode ser observado em todos os gêneros; osmelhores romances policiais não são os de melhor argumento. (Se osargumentos fossem tudo, não existiria o Quixote e Shaw valeria menos que O

´Neill.) Em minha opinião, a precedência dos primeiros romances de Wells – The Island of Dr. Moreau, por exemplo, ou The Invisible Man – deve-se a umarazão mais profunda. O que eles narram não é apenas engenhoso; é tambémsimbólico de processos que de algum modo são inerentes a todos os destinoshumanos. O acossado homem invisível que é obrigado a dormir como seestivesse de olhos abertos, porque suas pálpebras não vedam a luz, espelhanossa solidão e nosso terror; o conciliábulo de monstros sentados que em suanoite fanhoseiam um credo servil é o Vaticano e é Lhassa. A obra que perdura

é sempre capaz de uma infinita e plástica ambigüidade; é tudo para todos,como o Apóstolo; é um espelho que delata os traços do leitor e é também ummapa do mundo. Além do mais, tudo deve ocorrer de modo evanescente emodesto, quase a despeito do autor; este deve parecer ignorante de todosimbolismo. Com essa lúcida inocência Wells procedeu em seus primeirosexercícios fantásticos, que são, em meu entender, o mais admirável de sua obraadmirável.

Aqueles que dizem que a arte não deve propagar doutrinas costumam

referir-se às doutrinas contrárias às suas. Evidentemente, esse não é o meucaso; agradeço e professo quase todas as doutrinas de Wells, mas deploro queele as tenha intercalado em suas narrações. Bom herdeiro dos nominalistas britânicos, Wells reprova nosso costume de falar da tenacidade da "Inglaterra"ou das maquinações da "Prússia"; os argumentos contra essa mitologia prejudicial parecem-me incontestáveis, mas não a circunstância de inseri-los norelato do sonho do senhor Parham. Enquanto um autor se limita a narrar acontecimentos ou a traçar os tênues desvios de uma consciência, podemos

considerá-lo onisciente, podemos confundi-lo com o universo ou com Deus;assim que ele se rebaixa a arrazoar, sabemos que é falível. A realidade atua por meio de fatos, não de arrazoados; toleramos que Deus afirme (Êxodo 3, 14)"Eu Sou Aquele que Sou", mas não que declare e analise, como Hegel ouAnselmo, o argumentum ontologicum. Deus não deve teologizar; o escritor nãodeve invalidar com razões humanas a momentânea fé que a arte exige de nós.Há outro motivo: o autor que mostra aversão por um personagem parece nãoentendê-lo por completo, parece confessar que este não é inevitável para ele.Duvidamos de sua inteligência, como duvidaríamos da inteligência de um Deusque mantivesse céus e infernos. Deus, escreveu Spinoza ( Ética, 5, 17), nãoodeia ninguém nem ama ninguém.

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Como Quevedo, como Voltaire, como Goethe, como mais algum outro,Wells é menos um literato que uma literatura. Escreveu livros loquazes nosquais de certo modo ressurge a gigantesca felicidade de Charles Dickens, prodigou parábolas sociológicas, construiu enciclopédias, ampliou as possibilidades do romance, reescreveu para nosso tempo o Livro de Jó, "essa

grande imitação hebréia do diálogo platônico", redigiu sem soberba nemhumildade uma autobiografia gratíssima, combateu o comunismo, o nazismo eo cristianismo, polemizou (cortês e mortalmente) com Belloc, historiou o passado, historiou o futuro, registrou vidas reais e imaginárias. Da vasta ediversa biblioteca que ele nos deixou, nada me agrada mais que seu relato dealguns milagres atrozes: The Time Machine, The Island of Dr. Moreau, The Plattner Story, The First Men in the Moon. São os primeiros livros que eu li;talvez sejam os últimos... Penso que haverão de incorporar-se, como a fórmula

de Teseu ou a de Ahasverus, à memória geral da espécie e que em seu seio semultiplicarão, para além dos limites da glória de quem os escreveu, para alémda morte do idioma em que foram escritos.

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O BIATHANATOS 

Devo a De Quincey (com quem minha dívida é tão vasta que especificar uma parte parece negar ou calar as outras) minha primeira informação sobre o Biathanatos. Esse tratado foi composto no início do século XVII pelo grande poeta John Donne,1 que deixou o manuscrito a Sir Robert Carr, sem nenhuma proibição exceto a de dá-lo "à estampa ou ao fogo". Donne morreu em 1631;

em 1642 eclodiu a guerra civil; em 1644, o filho primogênito do poeta deu ovelho manuscrito à estampa, "para defendê-lo do fogo". O Biathanatos tem por volta de duzentas páginas, que De Quincey (Writings, VIII, 336) resume assim:o suicídio é uma das formas do homicídio; os canonistas distinguem ohomicídio voluntário do homicídio justificável; segundo a boa lógica, essadistinção também deveria ser aplicável ao suicídio. Assim como nem todohomicida é um assassino, nem todo suicida é culpado de pecado mortal. Defato, essa é a tese aparente do  Biathanatos, que é declarada no subtítulo (The

Self-homicide is not so naturally Sin that it may never be otherwise) e ilustrada,ou sobrecarregada, por um douto catálogo de exemplos fabulosos ouautênticos, de Homero,2 "que mil coisas escreveu que ninguém além deleentendeu e de quem dizem que se enforcou por não ter entendido a adivinhados pescadores", até o pelicano, símbolo do amor paternal, e as abelhas, que,segundo consta no  Hexameron de Ambrósio, "matam-se quando infringem asleis de seu rei". Três páginas ocupa o catálogo, e nelas pude notar esta vaidade:a inclusão de exemplos obscuros ("Festo, favorito de Domiciano, que se matou

 para ocultar os estragos de uma doença de pele"), a omissão de outros de

1 De que ele realmente foi um grande poeta são prova estes versos:

 Licence my roving hands and let them go Before, behind, between, above, below.O my America! my new-found-land...

( Elegies, XIX)

2 Cf. o epigrama sepulcral de Alceu de Messena ( Antologia Grega, VII, 1).

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virtude persuasiva – Sêneca, Temístocles, Catão –, que poderiam parecer fáceisdemais.

Epicteto ("Lembra-te do essencial: a porta está aberta") e Schopenhauer ("Seria o monólogo de Hamlet a reflexão de um criminoso?") vindicaram osuicídio em abundantes páginas; a prévia certeza de que esses defensores têm

razão faz com que os leiamos com negligência. Foi o que me aconteceu com o Biathanatos até que percebi, ou julguei perceber, um argumento implícito ouesotérico sob o argumento notório.

 Nunca saberemos se Donne escreveu o Biathanatos com o deliberado fimde insinuar esse oculto argumento ou se uma antevisão desse argumento,mesmo que momentânea ou crepuscular, chamou-o à tarefa. Isto me parecemais verossímil; a hipótese de um livro que para dizer A diz B, à maneira deum criptograma, é artificial, mas não a de um trabalho animado por uma

intuição imperfeita. Hugh Fausset sugeriu que Donne pensava coroar suavindicação do suicídio com o próprio suicídio; que Donne tenha aventado essaidéia é possível ou provável; que ela seja suficiente para explicar o Biathanatosé, naturalmente, ridículo.

Donne, na terceira parte do  Biathanatos, examina as mortes voluntáriasrelatadas nas Escrituras; a nenhuma dedica tantas páginas como à de Sansão.Começa por estabelecer que esse "homem exemplar" é emblema de Cristo eque parece ter servido aos gregos como arquétipo de Hércules. Francisco de

Vitoria e o jesuíta Gregorio de Valencia negaram-se a incluí-lo entre ossuicidas; Donne, para refutá-los, transcreve as últimas palavras que ele teriadito antes de cumprir sua vingança: "Morra eu com os filisteus" (Juízes 16, 30).Também recusa a conjetura de Santo Agostinho, que afirma que Sansão, aoderrubar os pilares do templo, não foi culpado pelas mortes alheias nem pela própria, e sim que obedeceu a uma inspiração do Espírito Santo, "como aespada que dirige seus gumes pela disposição de quem a empunha" ( A Cidadede Deus, I, 20). Donne, depois de provar que essa conjetura é gratuita, encerra

o capítulo com uma sentença de Benito Pereiro, que diz que Sansão, não menosem sua morte que em outros atos, foi símbolo de Cristo.Invertendo a tese agostiniana, os quietistas acreditaram que Sansão, "por 

violência do demônio, matou-se juntamente com os filisteus" ( Heterodoxos Españoles, V, 1, 8); Milton (Samson Agonistes, in fine) defendeu-o daacusação de suicídio; Donne, suspeito, viu nesse problema casuístico apenasuma sorte de metáfora ou simulacro. Não lhe interessava o caso de Sansão – e por que haveria de interessar-lhe? – ou só lhe interessava, digamos, como"emblema de Cristo". Não há no Antigo Testamento herói que não tenha sidoalçado a essa dignidade; para São Paulo, Adão é imagem daquele que viria; para Santo Agostinho, Abel representa a morte do Salvador, e seu irmão Seth, aressurreição; para Quevedo, "prodigioso esboço foi Jó de Cristo". Donne

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incorreu nessa analogia trivial para que seu leitor entendesse: "O anterior, ditode Sansão, bem pode ser falso; não o é, dito de Cristo".

O capítulo que fala diretamente de Cristo não é efusivo. Limita-se aevocar duas passagens da Escritura: a frase "dou minha vida pelas ovelhas"(João 10, 15) e a curiosa locução "entregou o espírito", que os quatro

evangelistas utilizam para dizer "morreu". Dessas passagens, confirmadas peloversículo "Ninguém tira a vida de mim. Sou eu mesmo que a dou" (João 10,18), infere que o suplício da cruz não matou Jesus Cristo e que, na verdade,este se matou com uma prodigiosa e voluntária emissão de sua alma. Donneescreveu essa conjetura em 1608; em 1631 incluiu-a em um sermão que proferiu, quase agonizante, na capela do palácio de Whitehall.

O declarado fim do  Biathanatos é atenuar o suicídio; o fundamental,indicar que Cristo se suicidou.3 O fato de Donne, para explicitar essa tese, ter-

se limitado a um versículo de São João e à repetição do verbo "expirar" é algoinverossímil e até inacreditável; sem dúvida, preferiu não insistir sobre umtema blasfemo. Para o cristão, a vida e a morte de Cristo são o acontecimentocentral da história do mundo; os séculos anteriores o prepararam, os seguinteso refletem. Antes de Adão ser moldado do pó da terra, antes de o firmamentoseparar as águas das águas, o Pai já sabia que o Filho haveria de morrer na cruze, para teatro dessa morte futura, criou a terra e os céus. Cristo morreu de mortevoluntária, sugere Donne, e isso quer dizer que os elementos, e o orbe, e as

gerações de homens, e Egito, e Roma, e Babilônia, e Judá foram tirados donada para destruí-lo. Talvez o ferro tenha sido criado para os cravos, e osespinhos, para a coroa do escárnio, e o sangue e a água, para a ferida. Essaidéia barroca insinua-se por trás do  Biathanatos. A de um deus que constrói ouniverso para construir seu patíbulo.

Ao reler esta nota, penso naquele trágico Philipp Batz, que na história dafilosofia é chamado Philipp Mainländer. Ele foi, como eu, leitor apaixonado deSchopenhauer. Sob sua influência (e talvez sob a dos gnósticos) imaginou que

somos fragmentos de um Deus que, no princípio dos tempos, destruiu a simesmo, ávido de não ser. A história universal é a obscura agonia dessesfragmentos. Mainländer nasceu em 1841; em 1876, publicou seu livro, Filosofia da Redenção. Nesse mesmo ano, ele se matou.

3 Cf. De Quincey: Writings, VIII, 398; Kant: Religion innerhalb der Grenzen der Vernunft , II, 2.

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PASCAL

Meus amigos dizem que os pensamentos de Pascal os fazem pensar.Certamente, não há nada no universo que não sirva de estímulo ao pensamento;quanto a mim, nunca vi nesses memoráveis fragmentos uma contribuição para

os problemas, ilusórios ou verdadeiros, que abordam. Vi-os, antes, como predicados do sujeito Pascal, como traços ou epítetos de Pascal. Assim como adefinição quintessence of dust  não nos ajuda a entender os homens, e sim o príncipe Hamlet, a definição roseau pensant  não nos ajuda a entender oshomens, mas apenas um homem, Pascal.

Valéry, creio, acusa Pascal de uma dramatização voluntária; o fato é queseu livro não projeta a imagem de uma doutrina ou de um procedimentodialético, e sim de um poeta perdido no tempo e no espaço. No tempo, porque,

se futuro e passado são infinitos, não haverá realmente um quando; no espaço, porque, se todo ser eqüidista do infinito e do infinitesimal, tampouco haveráum onde. Pascal menciona com desdém "a opinião de Copérnico", mas, paranós, sua obra reflete a vertigem de um teólogo, desterrado do orbe doAlmagesto e extraviado no universo copernicano de Kepler e de Bruno. Omundo de Pascal é o de Lucrécio (e também o de Spencer), mas a infinidadeque embriagou o romano intimida o francês. E bem verdade que este buscaDeus e aquele propõe-se libertar-nos do temor aos deuses.

Pascal, dizem, encontrou Deus, mas sua expressão dessa graça é menoseloqüente que sua expressão da solidão. Nesta, ele foi incomparável; bastalembrar o famoso fragmento 207 da edição de Brunschvicg ("Combien deroyaumes nous ignorem!") e aquele outro, subseqüente, que fala da "infinitaimensidão de espaços que ignoro e que me ignoram". No primeiro, a vasta palavra "royaumes" e o desdenhoso verbo final impressionam fisicamente;cheguei a pensar que essa exclamação fosse de origem bíblica. Percorri,lembro-me, as Escrituras; não encontrei a passagem que procurava, e que

talvez não exista, mas sim seu exato reverso, as palavras trêmulas de umhomem que se sabe nu até as entranhas sob a vigilância de Deus. Diz oApóstolo (I Coríntios 13, 12): "No presente vemos por espelho e

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obscuramente; então veremos face a face. No presente conheço só em parte;então conhecerei como agora sou conhecido".

 Não menos exemplar é o caso do fragmento 72. No segundo parágrafo,Pascal afirma que a natureza (o espaço) é "uma esfera infinita cujo centro estáem toda a parte e a circunferência em nenhuma". Pascal pode ter encontrado

essa esfera em Rabelais (111, 13), que a atribui a Hermes Trismegisto, ou nosimbólico Roman de Ia Rose, que a dá como de Platão. Isso pouco importa; osignificativo é que a metáfora que Pascal usa para definir o espaço foiempregada por seus predecessores (e por Sir Thomas Browne em  Religio Medici) para definir a divindade.1 Não a grandeza do Criador, e sim a grandezada Criação perturba Pascal.

Este, declarando em palavras incorruptíveis a desordem e a miséria (onmourra seul ), é um dos homens mais patéticos da história da Europa; aplicando

o cálculo de probabilidades às artes apologéticas, um dos mais vãos e frívolos. Não é um místico; inclui-se entre os cristãos denunciados por Swedenborg, quesupõem que o céu é um prêmio e o h-demo um castigo e que, habituados àmeditação melancólica, não sabem falar com os anjos.2 Importa-se menos comDeus que com a refutação daqueles que o negam.

Essa edição3 propõe-se reproduzir, mediante um complexo sistema desinais tipográficos, o aspecto "inacabado, híspido e confuso" do manuscrito; éevidente que tal fim foi alcançado. As notas, em compensação, são pobres. Por 

exemplo, na página 71 do primeiro volume, publica-se um fragmento quedesenvolve em sete linhas a conhecida prova cosmológica de Santo Tomás e deLeibniz; o editor não a reconhece e observa: "Aqui Pascal talvez tenhaemprestado voz a um incrédulo".

Ao pé de alguns textos, o editor cita passagens congêneres de Montaigneou da Sagrada Escritura; esse trabalho poderia ser ampliado. Para ilustração do Pari, caberia citar os textos de Arnobio, de Sirmond e de Algazel indicados por Asín Palacios ( Huellas del Islam, Madri, 1941); para ilustração do fragmento

1 Que eu me lembre, a história não registra deuses cônicos, cúbicos ou piramidais, embora registre ídolos.A forma da esfera, ao contrário, é perfeita e convém à divindade (Cícero:  De Natura Deorum,11, 17).Esférico foi Deus para Xenófanes e para o poeta Parmênides. Na opinião de alguns historiadores,Empédocles (fragmento 28) e Melisso conceberam-no como esfera infinita. Orígenes entendeu que osmortos ressuscitarão em forma de esfera; Fechner (Vergleichende Anatomie der Engel ) atribuiu essaforma, que é a do órgão visual, aos anjos.

Antes de Pascal, o insigne panteísta Giordano Bruno ( Da Causa, V) aplicou a sentença deTrismegisto ao universo material.

2

  De Coelo et Inferno, 535. Para Swedenborg, como para Boehme (Sex Puncta Theosophica, 9, 34), o céue o inferno são estados que o homem busca com liberdade, não um estabelecimento penal e umestabelecimento piedoso. Cf. também Bernard Shaw: Man and Superman, III.

3 A de Zacharie Tourneur (Paris, 1942).

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contra a pintura, aquela passagem do décimo livro de A República, onde se dizque Deus cria o arquétipo da mesa, o marceneiro, um simulacro do arquétipo, eo pintor, o simulacro de um simulacro; para ilustração do fragmento 72 ("  Jelui veux peindre l´immensité... dans 1´enceinte de ce raccourci d´atome...”),sua prefiguração no conceito de microcosmo, sua reaparição em Leibniz

( Monadologia, 67) e em Hugo ( La Chauve-Souris):

 Le moindre grain de sable est un globe qui rouleTraînant comme la terre une lugubre fouleQui s´abhorre et s´acharne...

Demócrito pensou que no infinito há mundos iguais, onde homens iguaiscumprem, sem nenhuma variação, destinos iguais; Pascal (que também pode

ter sido influenciado pelas antigas palavras de Anaxágoras de que tudo está emcada coisa) pôs esses mundos idênticos um dentro do outro, de tal sorte quenão há átomo no espaço que não encerre universo nem universo que não sejatambém um átomo. É lógico pensar (embora ele não o tenha dito) que nessesmundos Pascal se viu multiplicado sem fim.

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O IDIOMA ANALÍTICO DE JOHN WILKINS

Acabo de verificar que na décima quarta edição da  Encyclopaedia

 Britannica foi suprimido o verbete sobre John Wilkins. Essa omissão é justa, se pensarmos na trivialidade do verbete (vinte linhas de meras circunstâncias biográficas: Wilkins nasceu em 1614, Wilkins morreu em 1672, Wilkins foicapelão de Carlos Luís, príncipe palatino; Wilkins foi nomeado reitor de umdos colégios de Oxford, Wilkins foi o primeiro secretário da Real Sociedade deLondres, etc.); mas condenável, se considerarmos a obra especulativa deWilkins. Este foi fecundo em felizes curiosidades: interessou-se pela teologia, pela criptografia, pela música, pela confecção de colméias transparentes, pela

trajetória de um planeta invisível, pela possibilidade de uma viagem à lua, pela possibilidade e pelos princípios de uma linguagem mundial. A este último problema dedicou o livro  An Essay Towards a Real Character and a Philosophical Language (600 páginas in-quarto, 1668). Não há exemplaresdesse livro em nossa Biblioteca Nacional; consultei, para redigir esta nota, The Life and Times of John Wilkins (1910), de P A. Wright Henderson; oWörterbuch der Philosophie (1924), de Fritz Mauthner;  Delphos (1935) de E.Sylvia Pankhurst; Dangerous Thoughts (1939), de Lancelot Hogben.

Todos nós,, em algum momento, já padecemos um desses debatesinapeláveis em que uma dama, esbanjando interjeições e anacolutos, jura que a palavra "lua" é mais (ou menos) expressiva que a palavra "moon”. Afora aevidente observação de que o monossílabo "moon" talvez seja mais apto pararepresentar um objeto muito simples que a palavra dissílaba "lua", nada se podeacrescentar a tais debates; excetuando as palavras compostas e as derivações,todos os idiomas do mundo (sem excluir o volapük de Johann Martin Schleyer e a romântica interlingua de Peano) são igualmente inexpressivos. Não há

edição da Gramática de Ia Real Academia de la Lengua Española que não pondere "o invejável tesouro de vocábulos pitorescos, felizes e expressivos dariquíssima língua espanhola", mas trata-se de pura vanglória, sem nenhumacorroboração. Por outro lado, essa mesma Real Academia elabora, a cada

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tantos anos, um dicionário que define os vocábulos do espanhol... No idiomauniversal idealizado por Wilkins em meados do século XVII, cada palavradefine-se a si mesma. Descartes, em uma epístola com data de novembro de1629, já anotara que, mediante o sistema decimal de numeração, é possívelaprender em um único dia a nomear todas as quantidades até o infinito e a

escrevê-las em um idioma novo, que é o dos algarismos,1

ele também propôs aformação de um idioma análogo, geral, que organizasse e abrangesse todos os pensamentos humanos. John Wilkins, por volta de 1664, acometeu o intento.

Dividiu o universo em quarenta categorias ou gêneros, subdivisíveis emdiferenças, por sua vez subdivisíveis em espécies. Atribuiu a cada gênero ummonossílabo de duas letras; a cada diferença, uma consoante; a cada espécie,uma vogal. Por exemplo: de, quer dizer elemento; deb, o primeiro doselementos, o fogo; deba, uma porção do elemento fogo, uma chama. No idioma

análogo de Letellier (1850), a quer dizer animal; ab, mamífero; abo, carnívoro;aboj, felino; aboje, gato; abi, herbívoro; abiv, eqüino; etc. No de BonifacioSotos Ochando (1845), imaba quer dizer edifício; imaca, serralho; imafe,hospital; imafo, lazareto; imarri, casa; imaru, chácara; imedo, poste; imede, pilar; imego, piso; imela, teto; imogo, janela; bire, encadernador; birer ,encadernar. (Devo este último censo a um livro impresso em Buenos Aires em1886: o Curso de Lengua Universal , do doutor Pedro Mata.)

As palavras do idioma analítico de John Wilkins não são toscos símbolos

arbitrários; cada uma das letras que as integram é significativa, como o foramas da Sagrada Escritura para os cabalistas. Mauthner observa que as crianças poderiam aprender esse idioma sem saber que é artificioso; depois, no colégio,elas descobririam que é também uma chave universal e uma enciclopédiasecreta.

Definido o procedimento de Wilkins, falta examinar um problema deimpossível ou difícil protelação: o valor da tabela quadragesimal que é a basedo idioma. Consideremos a oitava categoria, a das pedras. Wilkins divide-as

em comuns (pederneira, cascalho, piçarra), módicas (mármore, âmbar, coral), preciosas (pérola, opala), transparentes (ametista, safira) e insolúveis (hulha,greda e arsênico). Quase tão alarmante quanto a oitava é a nona categoria. Estarevela-nos que os metais podem ser imperfeitos (cinabre, azougue) artificiais(bronze, latão), recrementícios (limalhas, ferrugem) e naturais (ouro, estanho,cobre). A beleza figura na décima sexta categoria; refere-se a um peixevivíparo, oblongo. Essas ambigüidades, redundâncias e deficiências lembramaquelas que o doutor Franz Kuhn atribui a certa enciclopédia chinesa intitulada

1 Teoricamente, o número de sistemas numéricos é ilimitado. O mais complexo (para uso das divindadese dos anjos) registraria um número infinito de símbolos, um para cada número inteiro, o mais simplesrequer apenas dois. Zero escreve-se 0, um 1, dois 10, três 11, quatro 100, cinco 101, seis 110, sete 111,oito 1000... É invenção de Leibniz, que se inspirou (parece) nos enigmáticos hexagramas do I Ching .

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 Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos. Em suas remotas páginasconsta que os animais se dividem em (a) pertencentes ao Imperador, (b)embalsamados, (c) amestrados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) cãessoltos, (h) incluídos nesta classificação, (i) que se agitam como loucos, (j)inumeráveis (k) desenhados com um finíssimo pincel de pêlo de camelo, (l)

etcétera, (m) que acabam de quebrar o vaso, (n) que de longe parecem moscas.O Instituto Bibliográfico de Bruxelas também exerce o caos: parcelou ouniverso em 1.000 subdivisões, correspondendo a 262 ao Papa; a 282 à IgrejaCatólica Romana; a 263 ao Dia do Senhor; a 268 às escolas dominicais; a 298ao mormonismo; e a 294 ao bramanismo, budismo, xintoísmo e taoísmo. Nãorecusa as subdivisões heterogêneas, Verbi gratia, a 179: "Crueldade com osanimais. Proteção dos animais. O duelo e o suicídio do ponto de vista da moral.Vícios e defeitos vários. Virtudes e qualidades idades várias”.

Registrei as arbitrariedades do desconhecido (ou apócrifo) enciclopedistachinês e do Instituto Bibliográfico de Bruxelas; notoriamente, não háclassificação do universo que não seja arbitrária e conjetural. A razão é muitosimples: não sabemos o que é o universo. "O mundo – escreve David Hume – talvez seja o rudimentar esboço de algum deus infantil que o abandonou pelametade, envergonhado de sua execução deficiente; ou a obra de um deussubalterno, alvo de zombaria dos deuses superiores; ou a confusa produção deuma divindade decrépita e aposentada, que já morreu" ( Dialogues Concerning 

 Natural Religion, V, 1779). Pode-se ir além; pode-se suspeitar que não háuniverso no sentido orgânico, unificador, que tenha essa ambiciosa palavra. Sehouver, falta conjeturar seu propósito; falta conjeturar as palavras, asdefinições, as etimologias, as sinonímias do secreto dicionário de Deus.

A impossibilidade de penetrar o esquema divino do universo não pode,contudo, dissuadir-nos de planejar esquemas humanos, mesmo sabendo queeles são provisórios. O idioma analítico de Wilkins não é o menos admiráveldesses esquemas. Os gêneros e espécies que o compõem são contraditórios e

imprecisos; o artifício de as letras das palavras indicarem subdivisões edivisões é, sem dúvida, engenhoso. A palavra salmão não nos diz nada; zana, ovocábulo correspondente, define (para o homem versado nas quarentacategorias e nos gêneros dessas categorias) um peixe escamoso, fluvial, decarne avermelhada. (Teoricamente, não é inconcebível um idioma em que onome de cada ser indicasse os pormenores de seu destino, passado e vindouro.)

Esperanças e utopias à parte, talvez o que de mais lúcido se escreveusobre a linguagem sejam estas palavras de Chesterton: "O homem sabe que hána alma matizes mais desconcertantes, mais inumeráveis e mais anônimos queas cores de um bosque outonal... Crê, no entanto, que esses matizes, em todasas suas fusões e conversões, podem ser representados com precisão por meiode um mecanismo arbitrário de grunhidos e chiados. Crê que mesmo de dentro

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de um corretor da Bolsa realmente saem ruídos que significam todos osmistérios da memória e todas as agonias do desejo" (G. F. Watts, p. 88, 1904).

KAFKA E SEUS PRECURSORES

Certa vez premeditei um exame dos precursores de Kafka. De início, eu o julgara tão singular como a fênix das loas retóricas; depois de algum convívio, pensei reconhecer sua voz, ou seus hábitos, nos textos de diversas literaturas e

de diversas épocas. Registrarei aqui alguns deles, em ordem cronológica.O primeiro é o paradoxo de Zenão contra o movimento. Um móvel que seencontra no ponto A (declara Aristóteles) não poderá chegar ao B, porque antesdeverá percorrer a metade do percurso entre os dois, e antes, a metade dametade, e antes, a metade da metade da metade, e assim até o infinito; a formadesse ilustre problema é, exatamente, a de O Castelo, e o móvel, e a flecha, eAquiles são os primeiros personagens kafkianos da literatura. No segundo textoque o acaso dos livros me deparou, a afinidade não está na forma, e sim no

tom. Trata-se de um apólogo de Han Yu, prosador do século IX, e consta naadmirável  Anthologie Raisonée de la Littérature Chinoise (1948) deMargouliè. Este é o parágrafo que assinalei, misterioso e tranqüilo:"Universalmente admite-se que o unicórnio é um ser sobrenatural e de bomagouro; assim o declaram as odes, os anais, as biografias de varões ilustres eoutros textos de indiscutível autoridade. Até os párvulos e as mulheres do povosabem que o unicórnio constitui um presságio favorável. Mas esse animal nãofigura entre os animais domésticos, nem sempre é fácil encontrá-lo, não se presta a uma classificação. Não é como o cavalo ou o touro, o lobo ou o cervo.Em tais condições, poderíamos estar diante do unicórnio e não saberíamos com

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segurança que se trata dele. Sabemos que tal animal com crina é cavalo e quetal animal com chifres é touro. Não sabemos como é o unicórnio".1

O terceiro texto procede de uma fonte mais previsível: os escritos deKierkegaard. A afinidade mental de ambos os escritores é coisa por ninguémignorada; o que não se destacou ainda, que eu saiba, é o fato de Kierkegaard,

assim como Kafka, ter sido pródigo em parábolas religiosas de temacontemporâneo e burguês. Lowrie, em seu  Kierkegaard  (Oxford UniversityPress, 1938), transcreve duas. Uma é a história de um falsificador que examina,vigiado incessantemente, as cédulas do Banco da Inglaterra; Deus, do mesmomodo, desconfiaria de Kierkegaard e lhe teria encomendado uma missão, justamente por sabê-lo afeito ao mal. O sujeito da outra são as expedições aoPólo Norte. Os párocos dinamarqueses teriam declarado de seus púlpitos que participar de tais expedições convinha à saúde eterna da alma. Teriam

admitido, entretanto, que chegar ao Pólo era difícil, talvez impossível, e quenem todos poderiam empreender a aventura. Por fim, teriam anunciado que,olhando-se bem, qualquer viagem – da Dinamarca a Londres, digamos, novapor de carreira – ou um passeio dominical em carro de praça são verdadeirasexpedições ao Pólo Norte. Quanto à quarta prefiguração, encontrei-a no poema"Fears and scruples", de Browning, publicado em 1876. Um homem tem, ouacredita ter, um amigo famoso. Ele nunca o viu, e o fato é que, até o momento,o tal amigo não pôde ajudá-lo, mas dele contam-se gestos muito nobres e

circulam cartas autênticas. Há quem ponha em dúvida os gestos, e osgrafólogos afirmam a apocrifia das cartas. O homem, no último verso, pergunta: "E se esse amigo for Deus?".

Minhas notas registram, também, dois contos. Um deles pertence às Histoires Désobligeantes, de Léon Bloy, e relata o caso de algumas pessoasque juntam globos terrestres, atlas, guias ferroviários e baús e que morrem semnunca ter conseguido sair de seu povoado natal. O outro intitula-se"Carcassonne" e é obra de Lord Dunsany. Um invencível exército de guerreiros

 parte de um castelo infinito, subjuga reinos, vê monstros e fadiga os desertos eas montanhas, mas eles nunca chegam a Carcassonne, embora por vezes adivisem. (Este conto é, como se percebe facilmente, o reverso exato doanterior; no primeiro, nunca se sai de uma cidade; no último, não se chega.)

Se não me engano, os heterogêneos textos que enumerei parecem-se aKafka; se não me engano, nem todos se parecem entre si. Este último fato é omais significativo. Em cada um desses textos, em maior ou menor grau,encontra-se a idiossincrasia de Kafka, mas, se ele não tivesse escrito, não a

1 O desconhecimento do animal sagrado e sua morte oprobriosa ou casual nas mãos do vulgo são temastradicionais da literatura chinesa. Ver o último capítulo de  Psychologie und Alchemie (Zurique, 1944), deJung, que traz duas curiosas ilustrações.

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 perceberíamos; vale dizer, não existiria. O poema "Fears and scruples", deRobert Browning, profetiza a obra de Kafka, mas nossa leitura de Kafka afina edesvia sensivelmente nossa leitura do poema. Browning não o lia como agoranós o lemos. No vocabulário crítico, a palavra  precursor é indispensável, masse deveria tentar purificá-la de toda conotação de polêmica ou de rivalidade. O

fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossaconcepção do passado, como há de modificar o futuro.2 Nessa correlação, nãoimporta a identidade ou a pluralidade dos homens. O primeiro Kafka de Betrachtung é menos precursor do Kafka dos mitos sombrios e das instituiçõesatrozes que Browning ou Lord Dunsany.

 Buenos Aires, 1951.

2 Ver T S. Eliot: Points of View (1941), p. 25_26.

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DO CULTO AOS LIVROS

 No oitavo livro da Odisséia lê-se que os deuses tecem infortúnios paraque às futuras gerações não falte o que cantar; a declaração de Mallarmé: "Omundo existe para chegar a um livro" parece repetir, uns trinta séculos maistarde, o mesmo conceito de uma justificativa estética para os males. As duasteleologias, contudo, não são inteiramente coincidentes; a do gregocorresponde à época da palavra oral, e a do francês, a uma época da palavraescrita. Uma fala em cantar, a outra em livros. Um livro, qualquer livro, é paranós um objeto sagrado: já Cervantes, que talvez não escutasse tudo o que as

 pessoas diziam, lia até "os papéis rasgados das ruas". O fogo, em uma dascomédias de Bernard Shaw, ameaça a biblioteca de Alexandria; alguémexclama que aí arderá a memória da humanidade, e César lhe diz: "Deixa quearda. É uma memória de infâmias". O César histórico, em minha opinião,aprovaria ou condenaria o ditame que o autor lhe atribui, mas não o julgaria,como nós, uma piada sacrílega. A razão é clara: para os antigos, a palavraescrita não passava de um sucedâneo da palavra oral.

É voz corrente que Pitágoras não escreveu; Gomperz (Griechische

 Denker , 1, 3) defende que ele assim procedeu por ter mais fé na virtude dainstrução falada. Mais força que a mera abstenção de Pitágoras tem otestemunho inequívoco de Platão. Este, no Timeu, afirmou: "É árdua tarefadescobrir o fazedor e pai deste universo, e, uma vez descoberto, é impossíveldivulgá-lo a todos os homens", e, no Fedro, narrou uma fábula egípcia contra aescrita (cujo hábito faz as pessoas descuidarem do exercício da memória edependerem de símbolos) e disse que os livros são como as figuras pintadas,"que parecem vivas, mas não respondem uma palavra às perguntas que lhes sãofeitas". Para atenuar ou eliminar esse inconveniente, ele imaginou o diálogofilosófico. O mestre escolhe o discípulo, mas o livro não escolhe seus leitores,que podem ser malvados ou néscios; esse receio platônico perdura nas palavrasde Clemente de Alexandria, homem de cultura pagã: "O mais prudente é não

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escrever, e sim aprender e ensinar de viva voz, pois o escrito fica" (Stromateis),e nestas outras, do mesmo tratado: "Escrever todas as coisas em um livro édeixar uma espada nas mãos de uma criança"; que derivam também dasevangélicas: "Não deis o santo aos cães nem jogueis vossas pérolas aos porcos, para que não as pisoteiem e depois se voltem para vos destroçar". Essa

sentença é de Jesus, o maior dos mestres orais, que uma única vez escreveu palavras na terra e nenhum homem as leu (João 8, 6).Clemente de Alexandria escreveu seu receio pela escrita em fins do

século II; em fins do século IV iniciou-se o processo mental que, com a passagem de muitas gerações, culminaria no predomínio da palavra escritasobre a falada, da pena sobre a voz. Um admirável acaso quis que um escritor registrasse o instante (pouco exagero ao chamá-lo instante) em que teve inícioo vasto processo. Conta Santo Agostinho, no livro seis das Confissões:

"Quando Ambrósio lia, corria os olhos pelas páginas penetrando sua alma nosentido, sem proferir uma palavra nem mover a língua. Muitas vezes – postoque ninguém era proibido de entrar, nem vigia o costume de anunciar-lhe quemse achegava –, pudemos vê-lo ler caladamente e nunca de outro modo, e depoisde algum tempo retirávamo-nos, conjeturando que naquele breve intervalo quelhe era concedido para restaurar o espírito, livre do tumulto das questõesalheias, não queria que o ocupassem com outra coisa, talvez receoso de que umouvinte, atento às dificuldades do texto, pedisse explicação de uma passagem

obscura ou quisesse com ele discuti-la, com o que não poderia ler tantosvolumes como desejava. Eu entendo que ele lia desse modo para preservar avoz, que sumia com facilidade. Em todo o caso que fosse o propósito de talhomem, certamente era bom". Santo Agostinho foi discípulo de SantoAmbrósio, bispo de Milão, por volta do ano 384; treze anos mais tarde, na Numídia, ele redigiria suas Confissões e ainda o inquietaria aquele singular espetáculo: um homem em um aposento, com um livro, lendo sem articular as palavras.1

Aquele homem passava diretamente do signo escrito à intuição, omitindoo signo sonoro; a estranha arte que ele iniciava, a arte de ler em voz baixa,resultaria em conseqüências maravilhosas. Resultaria, passados muitos anos,no conceito do livro como fim, não como instrumento de um fim. (Esseconceito místico, transposto à literatura profana, redundaria nos singularesdestinos de Flaubert e de Mallarmé, de Henry James e de James Joyce.) Ànoção de um Deus que fala com os homens para lhes ordenar ou proibir algosuperpõe-se a do Livro Absoluto, a de uma Escritura Sagrada. Para os

1 Os comentadores advertem que, naquele tempo, era costume ler em voz alta, para penetrar melhor osentido, pois não havia sinais de pontuação nem sequer divisão de palavras, e ler em grupo, a fim desuperar ou paliar os inconvenientes da escassez de códices. O diálogo de Luciano de Samósata, Contraum Ignorante Comprador de Livros, encerra um testemunho desse costume no século II.

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muçulmanos, o " Alcorão" (também chamado O Livro,  Al Kitab) não é meraobra de Deus, como a alma dos homens ou o universo; é um dos atributos deDeus, como Sua eternidade ou Sua ira. No capítulo XIII, lemos que o textooriginal,  A Mãe do Livro, está depositado no Céu. Muhammad al-Gazali, oAlgazel dos escolásticos, declarou: "O  Alcorão é copiado em um livro,

 pronunciado com a língua, guardado no coração e, no entanto, continua perdurando no centro de Deus e não o altera sua passagem pelas folhas escritase pelos entendimentos humanos". George Sale observa que esse incriado Alcorão não é outra coisa senão sua idéia ou arquétipo platônico; é verossímilque Algazel tenha recorrido aos arquétipos, transmitidos ao Islã pelaEnciclopédia dos Irmãos da Pureza e por Avicena, para justificar a noção daMãe do Livro.

Ainda mais extravagantes que os muçulmanos foram os judeus. No

 primeiro capítulo de sua Bíblia encontra-se a famosa sentença: "E Deus disse:seja a luz; e a luz foi"; os cabalistas depreenderam que a virtude dessa ordemdo Senhor adveio das letras das palavras. O tratado Sefer Yetsirah (Livro daFormação), escrito na Síria ou na Palestina por volta do século VI, revela queJeová dos Exércitos, Deus de Israel e Deus Todo-Poderoso, criou o universomediante os números cardinais de um a dez e as vinte e duas letras do alfabeto.Que os números sejam instrumentos ou elementos da Criação é dogma dePitágoras e de Jâmblico; que as letras o sejam é claro indício do novo culto à

escrita. O segundo parágrafo do segundo capítulo reza: "Vinte e duas letrasfundamentais: Deus desenhou-as, gravou-as, combinou-as, pesou-as, permutou-as e com elas produziu tudo o que é e tudo o que será". Em seguida,revela-se qual letra tem poder sobre o ar, e qual a água, e qual sobre o fogo, equal sobre a sabedoria, e qual sobre a paz, e qual sobre a graça, e qual sobre osonho, e qual sobre a cólera, e como (por exemplo) a letra kaf , que tem poder sobre a vida, serviu parra formar o sol no mundo, a quarta-feira no ano e aorelha esquerda no corpo.

Mais longe foram os cristãos. A idéia de que a divindade escrevera umlivro levou-os a imaginar que escrevera dois e que o outro era o universo. Noinício do século XVII, Francis Bacon declarou, em seu  Advancement of  Learning , que Deus nos oferecia dois livros para que não incorrêssemos noerro: o primeiro, o volume das Escrituras, que revela Sua vontade; o segundo, ovolume das criaturas, que revela Seu poderio, sendo este a chave daquele.Bacon propunha-se muito mais que construir uma metáfora; opinava que omundo era redutível a formas essenciais (temperaturas, densidades, pesos,cores), que conformavam, em número limitado, um abeceddarium naturae ousérie de letras com que se escreve o texto universal.2 Sir Thomas Browne, por 2 Nas obras de Galileu é freqüente o conceito do universo como livro. A segunda seção da antologia deFavaro (Galileo Galilei: Pensieri, Motti e Sentenze, Florença, 1949) intitula-se  I1 Libro delia Natura.

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volta de 1642, confirmou: "Dois são os livros em que costumo aprender teologia: a Sagrada Escritura e aquele universal e público manuscrito que é patente a todos os olhos. Quem nunca O viu no primeiro, descobriu-O nosegundo" (religio Medici, I, 16 ). No mesmo parágrafo, lê-se: "Todas as coisassão artificiais, porque a Natureza é a Arte de Deus". Duzentos anos se

 passaram e o escocês Carlyle, em diversos pontos de sua obra e particularmente no ensaio sobre Cagliostro, superou a conjetura de Bacon;estampou que a história universal é uma Escritura Sagrada que deciframos eescrevemos incertamente e na qual também somos escritos. Depois, Léon Bloyescreveu: "Não há na terra um ser humano capaz de declarar quem é. Ninguémsabe o que veio fazer neste mundo, a que correspondem seus atos, seussentimentos, suas idéias, nem qual é seu nome verdadeiro, seu imorredouro Nome no registro da Luz... A história é um imenso texto litúrgico no qual os

iotas e os pontos não valem menos que os versículos ou capítulos inteiros, masa importância de uns e de outros é indeterminável e está profundamente oculta"( L´Âme de Napoléon, 1912). O mundo, segundo Mallarmé, existe para umlivro; segundo Bloy, somos versículos, ou palavras, ou letras de um livromágico, e esse livro incessante é a única coisa que há no mundo: melhor dizendo, é o mundo.

 Buenos Aires, 1951.

Transcrevo o seguinte parágrafo: "A filosofia está escrita naquele enormíssimo livro continuamenteaberto diante de nossos olhos (quero dizer, o universo), mas ininteligível se antes não estudarmos a línguanem conhecermos os caracteres em que está escrito. A língua desse livro é matemática, e os caracteres sãotriângulos, círculos e outras figuras geométricas".

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O ROUXINOL DE KEATS

Aqueles que freqüentaram a poesia lírica da Inglaterra não esquecerão a

“Ode a um rouxinol”, que John Keats, tísico, pobre e talvez desafortunado noamor, compôs em um jardim em Hampstead, à idade de vinte e três anos, emuma das noites do mês de abril de 1819. Keats, no jardim suburbano, ouviu oeterno rouxinol de Ovídio e de Shakespeare, e sentiu sua própria mortalidade, econtrastou-a com a tênue voz imorredoura do invisível pássaro. Keatsescrevera que o poeta deve dar poesias naturalmente, como a árvore dá folhas;duas ou três horas bastaram-lhe para compor essas páginas de inesgotável einsaciável beleza, que ele poliria muito pouco; sua virtude, que eu saiba, não

foi discutida por ninguém, mas sim sua interpretação. O nó do problema estána penúltima estrofe. O homem circunstancial e mortal dirige-se ao pássaro,“que não abatem as famintas gerações” e cuja voz, agora, é aquela que, emcampos de Israel, em uma antiga tarde, ouviu Rute, a moabita.

Em sua monografia sobre Keats, publicada em 1887, Sidney Colvin(correspondente e amigo de Stevenson) percebeu ou inventou uma dificuldadena estrofe em questão. Transcrevo sua curiosa declaração: “Com um erro delógica, que, a meu ver, é também uma falha poética, Keats opõe-se à

fugacidade da vida humana, em que entende a vida do indivíduo, a permanência da vida do pássaro, em que entende a vida da espécie”. Em 1895,Bridges repetiu a denúncia; F.R. leavis aprovou-a em 1936 e acrescentou oescólio: “Naturalmente, a falácia incluída nesse conceito prova a intensidadedo sentimento que a acolheu…”. Keats, na primeira estrofe de seu poema,chamou o rouxinol de dríade; outro crítico, Garrod, com toda a seriedade,alegou esse epíteto para sentenciar que, na sétima, a ave é imortal porque éuma dríade, uma divindade dos bosques. Amy Lowell escreveu com mais

acerto: “O leitor que tenha uma centelha de sentido imaginativo ou poéticologo intuirá que Keats não se refere ao rouxinol que cantava nesse momento, esim à espécie”.

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Cinco pareceres de cinco críticos atuais e passados recolhi; entendo que,de todos, o menos vão é o da norte-americana Amy Lowell, mas nego aoposição que nele se postula entre o efêmero rouxinol dessa noite e o rouxinolgenérico. A chave, a exata chave da estrofe, está, suspeito, em um parágrafometafísico de Schopenhauer, que nunca a leu.

A “Ode a um rouxinol” data de 1819; em 1844 apareceu o segundovolume de O Mundo como Vontade e Representação. No capítulo 41, lê-se oseguinte: “Perguntemo-nos com sinceridade se a andorinha deste verão é outraque não a do primeiro e se realmente o milagre de tirar algo do nada ocorreumilhões de vezes entre as duas para ser fraudado outras tantas pela aniquilaçãoabsoluta. Quem me ouvir assegurar que este gato aqui brincando é o mesmoque saltitava e traquinava neste lugar há trezentos anos pensará de mim o quequiser, mas loucura mais estranha é imaginar que é fundamentalmente outro”.

Ou seja, o indivíduo é de certo modo a espécie, e o rouxinol de Keats é tambémo rouxinol de Rute.Keats, que, sem exagerada injustiça, pôde escrever: “Nada sei, nada li”,

adivinhou o espírito grego nas páginas de algum dicionário escolar; sutilíssima prova dessa adivinhação ou recriação é ele ter intuído no obscuro rouxinol deuma noite o rouxinol platônico. Keats, talvez incapaz de definir a palavraarquétipo, antecipou-se em um quarto de século a uma tese de Schopenhauer.

Esclarecida assim a primeira dificuldade, falta esclarecer uma segunda,

de índole muito diversa. Como é possível que Garrod, Leavis e os outros

1

nãotenham chegado a essa interpretação evidente? Leavis é professor de um doscolégios de Cambridge — a cidade que, no século XVII, congregou e deunome aos Cambridge Platonists —; Bridges escreveu um poema platônicointitulado “The fourth dimension”; a mera enumeração desses fatos pareceagravar o enigma. Se não me engano, sua razão deriva de algo essencial namente britânica.

Coleridge observa que todos os homens nascem aristotélicos ou

 platônicos. Os últimos sentem que as classes, as ordens e os gêneros sãorealidades; os primeiros, que são generalizações; para estes, a linguagem não passa de um aproximativo jogo de símbolos; para aqueles, é o mapa douniverso. O platônico sabe que o universo é de certo modo um cosmos, umaordem; essa ordem, para. o aristotélico, pode ser um erro ou uma ficção denosso conhecimento parcial. Através das latitudes e das épocas, os doisantagonistas imortais trocam de dialeto e de nome: um é Parmênides, Platão,

1 A essa lista dever-se-ia acrescentar o genial poeta William Butler Yeats, que, na primeira estrofe de“Sailing to Byzantium”, fala em “morrentes gerações” de pássaros, em unia alusão deliberada ouinvoluntária à “Ode”. Ver T. R. Henn: The Lonely Tower , 1950, p. 211.

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Spinoza, Kant, Francis Bradley; o outro, Heráclito, Aristóteles, Locke, Hume,William James. Nas árduas escolas da Idade Média, todos invocam Aristóteles,mestre da humana razão (Dante, Convivio, IV, 2), mas os nominalistas sãoAristóteles; os realistas, Platão. O nominalismo inglês do século XIV ressurgeno escrupuloso idealismo inglês do século XVIII; a economia da fórmula de

Occam, “entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem”2

permite ou prefigura o não menos taxativo “esse est percipi”3 Os homens, disse Coleridge,nascem aristotélicos ou platônicos; da mente inglesa cabe afirmar que nasceuaristotélica. O real, para essa mente, não são os conceitos abstratos, e sim osindivíduos; não o rouxinol genérico, e sim os rouxinóis concretos. E natural, étalvez inevitável, que na Inglaterra a “Ode a um rouxinol” não seja bemcompreendida.

Que ninguém leia reprovação ou desdém nas palavras acima. O inglês

recusa o genérico porque sente que o individual é irredutível, inassimilável eímpar. Um escrúpulo ético, não uma incapacidade especulativa, impede-o detransitar por abstrações, como os alemães. Não entende a “Ode a um rouxinol”;essa valiosa incompreensão permite-lhe ser Locke, ser Berkeley e ser Hume, eescrever, há cerca de setenta anos, as não escutadas e proféticas advertênciasdo Indivíduo contra o Estado.

O rouxinol, em todas as línguas do orbe, desfruta de nomes melodiosos(nightingale, nachtigall, usignolo), como se os homens instintivamente

tivessem querido que esses não desmerecessem o canto que os maravilhou. Detão exaltado pelos poetas, ele agora é um tanto irreal; menos afim com acalhandra que com o anjo. Dos enigmas saxões do Livro de Exeter (“eu, antigocantor da tarde, trago aos nobres alegria nas vilas”) à trágica  Atalanta, deSwinburne, o infinito rouxinol tem cantado na literatura britânica; foi celebrado por Chaucer e Shakespeare, por Milton e Matthew Arnold, mas é a John Keatsque fatalmente ligamos sua imagem como a Blake a do tigre.

2 “Os entes não devem ser multiplicados além do necessário.” (N. da T.)

3 “Ser é ser percebido.” (N. da T.)

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O ESPELHO DOS ENIGMAS

A idéia de que a Sagrada Escritura tem (além de seu valor literal) um

valor simbólico não é irracional e é antiga: está em Filão de Alexandria, noscabalistas, em Swedenborg. Como os fatos referidos pela Escritura sãoverdadeiros (Deus é a Verdade, a Verdade não pode mentir, etcétera), devemosadmitir que os homens, ao executá-los, representaram cegamente um dramasecreto, determinado e premeditado por Deus. Daí a pensar que a história douniverso. – e nela nossas vidas e o mais tênue detalhe de nossas vidas – temvalor inconjeturável, simbólico, não vai uma distância infinita. Muitos devemtê-la percorrido; ninguém tão assombrosamente como Léon Bloy. (Nos

fragmentos psicológicos de  Novalis e naquele volume da autobiografia deMachen intitulado The London Adventure há uma hipótese afim: a de que omundo externo – as formas, as temperaturas, a lua – é uma linguagem queesquecemos, ou que mal soletramos... Também De Quincey1 a declara: "Até ossons irracionais do globo devem ser outras tantas álgebras e linguagens que dealgum modo têm suas chaves correspondentes, sua severa gramática e suasintaxe, e assim as mínimas coisas do universo podem ser espelhos secretos dasmaiores".)

Um versículo de São Paulo (I Coríntios 13, 12) inspirou Léon Bloy:"Videmus nunc per speculum in aenigmate: tunc autem facie ad facie.  Nunccognosco ex parte: tunc autem cognoscam sicut et cognitus sum". Torres Amatmiseravelmente traduz: "No presente não vemos  Deus senão como em umespelho e sob imagens obscuras: mas então o veremos face a face. Agora eunão o conheço senão imperfeitamente: mas então o conhecerei com uma visãoclara, da maneira que eu sou conhecido". Quarenta e duas palavras fazendo otrabalho de vinte e duas; impossível ser mais palavroso e mais frouxo. Cipriano

de Valera é mais fiel: "Agora vemos por espelho, na escuridão; mas entãoveremos face a face. Agora conheço em parte; mas então conhecerei como sou

1 Writings, 1896, volume 1, p. 129

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conhecido". Torres Amat entende que o versículo se refere a nossa visão dadivindade; Cipriano de Valera (e Léon Bloy), a nossa visão geral.

Que eu saiba, Bloy não imprimiu a sua conjetura uma forma definitiva.Ao longo de sua obra fragmentária (povoada, como todos sabem, de lamentos eafrontas) há versões ou facetas diversas. Eis aqui algumas, que resgatei das

 páginas clamorosas de Le Mendiant Ingrat , de Le Vieux de la Montagne e de L´Invendable. Não penso tê-las esgotado: espero que algum especialista emLéon Bloy (eu não sou) venha a completá-las e retificá-las.

A primeira é de junho de 1894. Traduzo-a assim: "A sentença de SãoPaulo: Videmus nuns per speculum in aenigmate seria uma clarabóia paramergulhar no Abismo verdadeiro, que é a alma do homem. A aterrorizanteimensidão dos abismos do firmamento é uma ilusão, um reflexo exterior denossos abismos, percebidos ‘em um espelho’. Devemos inverter nossos olhos e

exercer uma astronomia sublime no infinito de nossos corações, pelo qual Deusquis morrer... Se vemos a Via Láctea, é porque ela verdadeiramente existe emnossa alma".

A segunda é de novembro do mesmo ano. "Recordo uma de minhasidéias mais antigas. O Czar é o chefe e pai espiritual de cento e cinqüentamilhões de homens. Atroz responsabilidade que não passa de aparência. Talvezele apenas seja responsável, perante Deus, por uns poucos seres humanos. Seos pobres de seu império vivem oprimidos sob seu reinado, se desse reinado

resultam imensas catástrofes, quem pode garantir que não é o criadoencarregado de lustrar-lhe as botas o verdadeiro e único culpado? Nasdisposições misteriosas da Profundidade, quem é verdadeiramente Czar, quemé rei, quem pode vangloriar-se de ser um simples criado?"

A terceira é de uma carta escrita em dezembro. "Tudo é símbolo, até a dor mais lancinante. Somos dormentes que gritam durante o sono. Não sabemos setal coisa que nos aflige não é o secreto princípio de nossa alegria ulterior.Vemos agora, afirma São Paulo, per speculum in aenigmate, literalmente: ‘em

enigma por um espelho’, e não veremos de outro modo até o advento d´Aqueleque está todo em chamas e que deve ensinar-nos todas as coisas. "A quarta é de maio de 1904. " Per speculum in aenigmate, diz São Paulo.

Vemos todas as coisas ao contrário. Quando pensamos dar, recebemos, etc.Então (ouço de uma querida alma angustiada) nós estamos no céu e Deus sofrena terra."

A quinta é de maio de 1908. "Aterrorizante idéia de Joana acerca do texto Per speculum. Os prazeres deste mundo seriam os tormentos do inferno, vistosao contrário, em um espelho."

A sexta é de 1912. Em cada uma das páginas de  L´Ame de Napoléon,livro cujo propósito é decifrar o símbolo  Napoleão, considerado precursor deoutro herói – também ele homem e símbolo – oculto no futuro. Basta-me citar 

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duas passagens. Uma: "Cada homem está na terra para simbolizar algo queignora e para realizar uma partícula, ou uma montanha, dos materiais invisíveisque servirão para edificar A Cidade de Deus". Outra: "Não há na terra ser humano capaz de declarar com certeza quem ele é. Ninguém sabe o que veiofazer neste mundo, a que correspondem seus atos, seus sentimentos, suas

idéias, nem qual é seu nome verdadeiro, seu imorredouro Nome no registro daLuz... A história é um imenso texto litúrgico no qual os iotas e os pontos nãovalem menos que os versículos ou capítulos inteiros, mas a importância de unse de outros é indeterminável e está profundamente oculta".

Os parágrafos acima talvez pareçam ao leitor meras gratuidades de Bloy.Que eu saiba, ninguém tratou de examiná-los. Ouso julgá-los verossímeis, etalvez inevitáveis, dentro da doutrina cristã. Bloy (repito) só fez aplicar a toda aCriação o método que os cabalistas judeus tinham aplicado à Escritura. Estes

 pensaram que uma obra ditada pelo Espírito Santo era um texto absoluto: valedizer, um texto em que a colaboração do acaso é calculável em zero. Essa premissa portentosa de um livro impenetrável à contingência, de uni livro que éum mecanismo de propósitos infinitos, levou-os a permurtar as palavrasescriturais, a somar o valor numérico das letras, a fazer conta de sua forma, aobservar as minúsculas e maiúsculas, a procurar acrósticos e anagramas e aoutros rigores exegéticos dos quais não é difícil zombar. Sua apologia é quenada pode ser contingente na obra de uma inteligência infinita.2 Léon Bloy

 postula esse caráter hieroglífico – esse caráter de escrita divina, de criptografiados anjos – em todos os instantes e em todos os seres do mundo. Osupersticioso crê penetrar essa escrita orgânica: treze comensais articulam osímbolo da morte; uma opala amarela, o da desgraça...

Parece improvável que o mundo tenha sentido; mais improvável, ainda,que tenha duplo ou triplo sentido, observará o incrédulo. Eu entendo que éassim; mas entendo que o mundo hieroglífico postulado por Bloy é o maisconveniente à Dignidade do Deus intelectual dos teólogos.

"Nenhum homem sabe quem é", afirmou Léon Bloy. Ninguém como ele para ilustrar essa ignorância íntima. Julgava-se um católico rigoroso e foi umcontinuador dos cabalistas, irmão secreto de Swedenborg e de Blake:heresiarcas.

2

 O que é uma inteligência infinita?, poderá indagar o leitor. Não há teólogo que não a defina; eu prefiroum exemplo. Os passos dados por um homem, desde o dia de seu nascimento até o de sua morte,desenham no tempo uma inconcebível figura. A Inteligência Divina intui essa figura imediatamente,como a dos homens um triângulo. Essa figura (talvez) tem uma função determinada na economia douniverso.

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DOIS LIVROS

O último livro de Wells –  Guide to the New World. A Handbook of Constructive World Revolution – corre o risco de parecer, à primeira vista, umasimples enciclopédia de injúrias. Suas bem legíveis páginas denunciam o Führer , "que chia como um coelho esganado"; Goering, "aniquilados decidades que, no dia seguinte, varrem os estilhaços de vidro e retomam astarefas da véspera"; Eden, "o inconsolável viúvo quintessencial da Liga das

 Nações"; Josef Stálin, que em um dialeto irreal continua vindicando a ditadurado proletariado, "embora ninguém saiba o que é o proletariado nem como eonde ele dita"; o "absurdo Ironside"; os generais do exército francês,"derrotados pela consciência da inépcia, por tanques fabricados naTchecoslováquia, por vozes e rumores radiofônicos e por alguns mensageirosde bicicleta"; a "evidente vontade de derrota" (will for defeat ) da aristocracia britânica; o "rancoroso cortiço" Irlanda do Sul; o Ministério das RelaçõesExteriores inglês, "que parece não poupar o menor esforço para que a

Alemanha ganhe uma guerra que já perdeu"; Sir Samuel Hoare, "mental emoralmente néscio"; os norte-americanos e ingleses "que traíram a causaliberal na Espanha"; os que opinam que esta guerra "é uma guerra deideologias" e não uma fórmula criminosa "da desordem presente"; os ingênuosque supõem que basta exorcizar ou destruir os demônios Goering e Hitler paraque o mundo seja paradisíaco.

Reuni algumas invectivas de Wells: não são literariamente memoráveis;algumas parecem-me injustas, mas demonstram a imparcialidade de seus ódios

e de sua indignação. Também demonstram a liberdade de que os escritoresdesfrutam na Inglaterra, nas horas centrais da batalha. Mais importante queesses resmungos epigramáticos (dos quais apenas citei alguns poucos e queseria facílimo triplicar ou quadruplicar) é a doutrina desse manual

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revolucionário. Tal doutrina é resumível nesta disjuntiva precisa: ou aInglaterra identifica sua causa com a de uma revolução geral (com a de ummundo federado), ou a vitória é inacessível e inútil. O capítulo XII (p. 48-54)fixa os fundamentos do mundo novo. Os três capítulos finais discutem alguns problemas menores.

Wells, inacreditavelmente, não é nazista. Inacreditavelmente, porquequase todos os meus contemporâneos o são, por mais que o neguem ou oignorem. Desde 1925, não há publicista que não opine que o fato inevitável etrivial de ter nascido em um determinado país e de pertencer a tal raça (ou a tal boa mescla de raças) não seja um privilégio singular e um talismã suficiente.Vindicadores da democracia, que se julgam muito diferentes de Goebbels,instam seus leitores, no mesmo dialeto do inimigo, a escutar o palpitar de umcoração que recolhe os íntimos mandados do sangue e da terra. Lembro-me de

certas discussões indecifráveis, durante a Guerra Civil Espanhola. Unsdeclaravam-se republicanos; outros, nacionalistas; outros, marxistas; todos,com um léxico de Gauleiter , falavam em Raça e Povo. Até os homens da foicee do martelo revelavam-se racistas... Também recordo com certo estupor umaassembléia convocada em repúdio ao anti-semitismo. Há várias razões para queeu não seja um anti-semita; a principal é esta: a diferença entre judeus e não- judeus parece-me, em geral, insignificante; às vezes, ilusória ou imperceptível. Ninguém, naquele dia, quis compartilhar minha opinião; todos juraram que um

 judeu-alemão difere enormemente de um alemão. Em vão lembrei-lhes que nãooutra coisa diz Adolf Hitler; em vão insinuei que uma assembléia contra oracismo não deveria tolerar a doutrina de uma Raça Eleita; em vão citei a sábiadeclaração de Mark Twain: "Eu não pergunto de que raça é um homem; bastaque seja um ser humano; ninguém pode ser nada pior" (The Man that Corrupted Hadleyburg , p. 204).

 Nesse livro, como em outros –  The Fate of Homo Sapiens, 1939; TheCommon Sense of War and Peace, 1940 –, Wells exorta-nos a recordar nossa

humanidade essencial e a refrear nossos miseráveis traços diferenciais, por mais patéticos ou pitorescos que sejam. Na verdade, tal repressão não édescabida: limita-se a exigir dos Estados, para sua melhor convivência, o queuma cortesia elementar exige dos indivíduos. "Ninguém em seu perfeito juízo – declara Wells – pensa que os homens da Grã-Bretanha são um povo eleito, umamais nobre espécie de nazistas, disputando a hegemonia do mundo com osalemães. São, sim, a frente de batalha da humanidade. Se não forem essafrente, não são nada. Esse dever é um privilégio."

 Let the People Think  é o título de uma seleção de ensaios de BertrandRussell. Wells, na obra cujo comentário esbocei, insta-nos a repensar a históriado mundo sem preferências de caráter geográfico, econômico ou étnico;Russell também emite conselhos de universalidade. No terceiro artigo – "Free

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thought and official propaganda”, ele propõe que a escola primária ensine aarte de ler com incredulidade os jornais. Entendo que essa disciplina socráticanão seria inútil. Das pessoas que conheço, pouquíssimas sequer a soletram.Deixam-se lograr por artifícios tipográficos ou sintáticos; pensam que um fatoaconteceu só porque está impresso em grandes letras pretas; confundem a

verdade com o corpo doze; negam-se a entender que a afirmação: "Todas astentativas do agressor para avançar além de B fracassaram de maneirasangrenta" é mero eufemismo para admitir a perda de B. Pior ainda: exercemuma sorte de magia, pensam que formular um temor é colaborar com oinimigo... Russell propõe que o Estado tente imunizar os homens contra essassuperstições e esses sofismas. Por exemplo, sugere que os alunos estudem asúltimas derrotas de Napoleão nos boletins do  Moniteur , ostensivamentetriunfais. Planeja tarefas como esta: depois de estudar a história da guerra com

a França em textos ingleses, reescrever essa história do ponto de vista francês. Nossos "nacionalistas" já exercem esse método paradoxal: ensinam a históriaargentina de um ponto de vista espanhol, quando não quíchua ou querandí .

Dos outros artigos, não é menos certeiro o que se intitula "Genealogia dofascismo". O autor começa observando que os fatos políticos provêm deespeculações muito anteriores e que em geral medeia muito tempo entre adivulgação de uma doutrina e sua aplicação. É assim: a "atualidade candente",que nos exaspera ou exalta e que com certa freqüência nos aniquila, não passa

de uma reverberação imperfeita de velhas discussões. Hitler, horrendo em públicos exércitos e em secretos espiões, é um pleonasmo de Carlyle (1795-1881) e até de J. G. Fichte (1762-1814); Lênin, uma transcrição de Karl Marx.Daí o verdadeiro intelectual fugir dos debates contemporâneos: a realidade ésempre anacrônica.

Russell imputa a teoria do fascismo a Fichte e a Carlyle. O primeiro, naquarta e na quinta de suas famosas  Reden an die Deutsche Nation, baseia asuperioridade dos alemães na ininterrupta posse de um idioma puro. Essa razão

é quase inesgotavelmente falaz; podemos conjeturar que não há no mundo umidioma puro (mesmo que as palavras o sejam, não o são as representações; por mais que os puristas digam "esporte", pensam " sport "); podemos lembrar que oalemão é menos "puro" que o basco ou que o hotentote; podemos indagar por que é preferível um idioma sem mistura... Mais complexa e eloqüente é acontribuição de Carlyle. Este, em 1843, escreveu que a democracia é odesespero de não encontrar heróis que nos dirijam. Em 1870 aclamou a vitóriada "paciente, nobre, profunda, sólida e piedosa Alemanha" sobre a "fanfarrona,vangloriosa, gesticulante, pugnaz, intranqüila, hipersensível França"( Miscellanies, tomo VII, p. 251). Louvou a Idade Média, condenou as rajadasde vento parlamentar, vindicou a memória do deus Thor, de Guilherme, oBastardo, de Knox, de Cromwell, de Frederico II, do taciturno doutor Francia e

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de Napoleão, almejou um mundo que não fosse "o caos provido de umaseleitorais", condenou a abolição da escravatura, propôs a transformação dasestátuas – "horrendos solecismos de bronze" – em úteis banheiras de bronze, preconizou a pena de morte, alegrou-se por haver um quartel em cada povoado,incensou, e inventou, a Raça Teutônica. Quem quiser mais imprecações ou

apoteoses pode consultar  Past and Present (1843) e os Latterday Pamphlets, de1850.Bertrand Russell conclui: "De certo modo, é lícito afirmar que o ambiente

do início do século XVIII era racional e o de nosso tempo, anti-racional". Eusuprimiria o tímido advérbio que encabeça a frase.

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ANOTAÇÃO AO 23 DE AGOSTO DE 1944

Essa jornada populosa deparou-me três heterogêneos assombros: o grau físico de minha felicidade quando soube da libertação de Paris; a descoberta deque uma emoção coletiva pode não ser indigna; o enigmático e notório

entusiasmo de muitos partidários de Hitler. Sei que investigar esse entusiasmoé correr o risco de parecer-me aos vãos hidrógrafos que indagavam por que basta um único rubi para deter o curso de um rio; muitos me acusarão de pesquisar um fato quimérico. Mas ele ocorreu, e milhares de pessoas emBuenos Aires podem testemunhá-lo.

Logo de início entendi que seria inútil interrogar os protagonistas. Essesversáteis, à força de exercer a incoerência, perderam por completo a noção deque ela deve ter alguma justificativa: veneram a raça germânica, mas

abominam a América "saxã"; condenam os artigos de Versailles, masaplaudiram os prodígios do  Blitzkrieg ; são anti-semitas, mas professam umareligião de origem hebréia; abençoam a guerra submarina, mas reprovam comvigor as piratarias britânicas; denunciam o imperialismo, mas vindicam e promulgam a tese do espaço vital; idolatram San Martín, mas opinam que aindependência da América foi um erro; aplicam aos atos da Inglaterra o cânonede Jesus, mas aos da Alemanha o de Zaratustra.

Ponderei, também, que qualquer incerteza seria preferível a um diálogo

com esses consangüíneos do caos, para os quais a infinita repetição dainteressante fórmula "sou argentino exime da honra e da piedade. De mais amais, Freud não concluiu e Walt Whitman não pressentiu que os homensdispõem de pouca informação acerca dos móveis profundos de sua conduta?Quem sabe, pensei comigo, a magia dos símbolos  Paris e libertação seja tão poderosa que os partidários de Hitler se esqueceram de que significa umaderrota de suas armas. Cansado, optei por supor que certo espírito noveleiro, eo temor, e a simples adesão à realidade eram explicações verossímeis do

 problema. Noites mais tarde, um livro e uma lembrança me iluminaram. O livro foi Man and Superman, de Shaw; a passagem a que me refiro é aquela do sonhometafísico de John Tanner, onde se afirma que o horror do Inferno é sua

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irrealidade; essa doutrina pode comparar-se à de outro irlandês, João EscotoErígena, que negou a existência substantiva do pecado e do mal e declarou quetodas as criaturas, inclusive o Diabo, retornariam a Deus. A lembrança foidaquele dia que é o perfeito e detestado reverso do 23 de agosto: o 14 de junhode 1940. Nesse dia, um germanófilo, cujo nome não quero lembrar, entrou em

minha casa; postado à porta, anunciou a grande notícia: os exércitos nazistastinham ocupado Paris. Senti um misto de tristeza, de nojo, de mal-estar. Algoque não entendi me conteve: a insolência do júbilo não explicava nem aestentorosa voz nem a brusca proclamação. Acrescentou que muito em breveesses exércitos entrariam em Londres. Toda oposição era inútil, nada poderiadeter sua vitória. Então compreendi que ele também estava apavorado.

Ignoro se os fatos que relatei pedem elucidação. Creio poder interpretá-los assim: para europeus e americanos, há uma ordem – uma única ordem – 

 possível, a que outrora teve o nome de Roma e que agora e a cultura doOcidente. Ser nazista (brincar de barbárie enérgica, brincar de ser um viking ,um tártaro, um conquistador do século XVI, um gaúcho, um pele-vermelha) é,no limite, uma impossibilidade mental e moral. O nazismo padece deirrealidade, como os infernos de Erígena. É inabitável; os homens só podemmorrer por ele, mentir por ele, matar e ensangüentar por ele. Ninguém, nasolidão central do próprio eu, pode desejar que ele triunfe. Arrisco a seguinteconjetura:  Hitler quer ser derrotado. Hitler, de modo cego, colabora com os

inevitáveis exércitos que o aniquilarão, assim como os abutres de metal e odragão (que não deviam ignorar sua condição de monstros) colaboraram,misteriosamente, com Hércules.

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SOBRE O VATHEK DE WILLIAM BECKFORD

Wilde atribui o seguinte gracejo a Carlyle: uma biografia deMichelangelo que omitisse toda menção às obras de Michelangelo. Tãocomplexa é a realidade, tão fragmentária e tão simplificada a história que um

observador onisciente poderia escrever um número indefinido, e quase infinito,de biografias de um homem destacando fatos independentes, e só depois de ler muitas delas perceberíamos que seu protagonista é o mesmo. Simplifiquemosdesmesuradamente uma vida: imaginemos que treze mil fatos a integram. Umadas hipotéticas biografias registraria a série 11, 22, 33...; outra, a série 9, 13,17, 21...; outra, a série 3, 12, 21, 30, 39... Não é inconcebível uma história dossonhos de um homem; outra, dos órgãos de seu corpo; outra, das falácias por ele perpetradas; outra, de todos os momentos em que ele imaginou as

 pirâmides; outra, de seu comércio com a noite e com as auroras. Tudo isso pode parecer uma completa quimera; infelizmente, não é. Ninguém se resigna aescrever a biografia literária de um escritor, a biografia militar de um soldado;todos preferem a biografia genealógica, a biografia econômica, a biografia psiquiátrica, a biografia cirúrgica, a biografia tipográfica. Setecentas páginasin-oitavo compreende certa vida de Poe; o autor, fascinado por suas mudançasde domicílio, mal consegue reservar um parêntese para o Maelström e para acosmogonia de Eureka. Outro exemplo, esta curiosa revelação feita no prefácio

a uma biografia de Bolívar: "Neste livro fala-se tão escassamente de batalhasquanto no que o mesmo autor escreveu sobre Napoleão". O gracejo de Carlyle predizia nossa literatura contemporânea: agora, em 1943, o paradoxo seria uma biografia de Michelangelo permitir alguma menção às obras de Michelangelo.

O exame de uma recente biografia de William Beckford (1760-1844)obriga-me a tais observações. William Beckford, de Fonthill, encarnou um tipo bastante comum de milionário, grande senhor, viajante, bibliófilo, construtor de palácios e libertino; Chapman, seu biógrafo, destrincha (ou tenta

destrinchar) sua vida labiríntica, mas prescinde de uma análise de Vathek ,romance a cujas dez últimas páginas William Beckford deve sua glória.Confrontei várias críticas a Vathek . O prefácio que Mallarmé escreveu

 para sua reimpressão de 1876 é pródigo em observações felizes (por exemplo:

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faz notar que o romance se inicia no terraço de uma torre de onde se lê ofirmamento, para concluir em um subterrâneo encantado), mas está escrito emum dialeto etimológico do francês, de ingrata ou impossível leitura. Belloc ( AConversation with an Angel , 1928) tece opiniões sobre Beckford semcondescender a argumentos; equipara sua prosa à de Voltaire e julga-o um dos

homens mais vis de sua época, "one of the vilest men of his time". Talvez o julgamento mais lúcido seja o de Saintsbury, no décimo primeiro volume daCambridge History of English Literature.

Essencialmente, a fábula de Vathek  não é complexa. Vathek (HarumBenalmotasim Vatiq Bilah, nono califa abássida) ergue uma torre babilônica para decifrar os planetas. Estes auguram-lhe uma sucessão de prodígios, cujoinstrumento será um homem sem par, que virá de uma terra desconhecida. Ummercador chega à capital do império: seu rosto é tão terrível que os guardas que

o conduzem à presença do califa avançam de olhos fechados. O mercador vende uma cimitarra ao califa; logo desaparece. Gravados na folha hámisteriosos caracteres cambiantes que burlam a curiosidade de Vathek. Umhomem (que logo desaparece também) consegue decifra-los; um diasignificam: "Sou a menor maravilha de uma região onde tudo é maravilhoso edigno do maior príncipe da terra"; outro: "Ai de quem temerariamente aspira asaber o que deveria ignorar". O califa entrega-se às artes mágicas; a voz domercador, na escuridão, propõe-lhe abjurar a fé muçulmana e adorar os poderes

das trevas. Se o fizer, a ele será franqueado o Alcáçar do Fogo Subterrâneo.Sob suas abóbadas poderá contemplar os tesouros que os astros lhe prometeram, os talismãs que subjugam o mundo, os diademas dos sultões pré-adamitas e de Solimão Bendaud. O ávido califa cede; o mercador exigequarenta sacrifícios humanos. Seguem-se muitos anos sangrentos; Vathek,negra de abominações sua alma, chega a uma montanha deserta. A terra seabre; com terror e esperança, Vathek desce às profundezas do mundo. Umasilenciosa e pálida multidão de pessoas que não se olham erra pelas soberbas

galerias de um palácio infinito. Não mentiu o mercador: o Alcáçar do FogoSubterrâneo é rico em esplendores e em talismãs, mas também é o Inferno. (Nacongênere história do doutor Fausto, e nas muitas lendas medievais que a prefiguraram, o Inferno é o castigo do pecador que pactua com os deuses doMal; nesta é o castigo e a tentação.)

Saintsbury e Andrew Lang declaram ou sugerem que a invenção doAlcáçar do Fogo Subterrâneo é a maior glória de Beckford. Eu afirmo que setrata do primeiro Inferno realmente atroz da literatura.1 Arrisco o seguinte paradoxo: o mais ilustre dos avernos literários, o dolente regno da Comédia,

1 Da literatura, eu disse, não da mística: o eletivo Inferno de Swedenborg –  De Coelo et Inferno, 545,554 – é de data anterior.

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não é um lugar atroz; é um lugar onde ocorrem fatos atrozes. A distinção éválida.

Stevenson ( A Chapter on Dreams) conta que em seus sonhos infantis era perseguido por um matiz abominável da cor parda; Chesterton (The Man WhoWas Thursday, IV) imagina que nos confins ocidentais do mundo existe talvez

uma árvore que já é mais, e menos, que uma árvore, e que, nos confinsorientais, algo, uma torre, cuja arquitetura, por si só, é malvada. Poe, no Manuscrito Encontrado em uma Garrafa, fala de um mar austral onde ovolume do navio cresce como o corpo vivo do marinheiro; Melville dedicamuitas páginas de  Moby Dick a elucidar o horror da brancura insuportável da baleia... Excedi-me em alguns exemplos; talvez tivesse bastado observar que oInferno dantesco magnifica a idéia de uma prisão; o de Backford, os túneis deum pesadelo.  A Divina Comédia é o livro mais justificável e mais firme de

todas as literaturas: Vathek  é uma mera curiosidade, the perfume and  suppliance of a minute; creio, contudo, que Vathek  antecipa, mesmo que demodo rudimentar, os satânicos esplendores de Thomas de Quincey e de Poe, deCharles Baudelaire e de Huysmans. Há um intraduzível epíteto inglês, o epítetouncanny, para denotar o horror sobrenatural; esse epíteto (unheimlich, emalemão) é aplicável a certas páginas de Vathek ; que eu me lembre, a nenhumlivro anterior.

Chapman cita algumas obras que influenciaram Beckford: a  Bibliothèque

Orientale, de Barthélemy d´Herbelot; os Quatre Facardins, de Hamilton;  La Princesse de Babylone, de Voltaire; as sempre menosprezadas e admiráveis Mille et Une Nuits, de Galland. Eu complementaria essa lista com as Carceri d ´Invenzione, de Piranesi; águas-fortes elogiadas por Beckford, que representam poderosos palácios que são também labirintos inextrincáveis. Beckford, no primeiro capítulo de Vathek , enumera cinco palácios dedicados aos cincosentidos; Marino, em Adone, já descrevera cinco jardins análogos.

Só de três dias e duas noites do inverno de 1782 precisou William

Beckford para redigir a trágica história de seu califa. Escreveu-a no idiomafrancês; Henley traduziu-a para o inglês em 1785. O original é infiel àtradução; Saintsbury observa que o francês do século XVIII é menos apto queo inglês para transmitir os "indefinidos horrores" (a expressão é de Beckford)da singularíssima história.

A versão inglesa de Henley consta do volume 856 da  Everyman´s Library; a editora Perrin, de Paris, publicou o texto original, revisado e prefaciado por Mallarmé. Causa estranheza que a esmerada bibliografia deChapman ignore essa revisão e esse prefácio.

 Buenos Aires, 1943.

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SOBRE THE PURPLE LAND

Esse romance primigênio de Hudson é redutível a uma fórmula tão antigaque quase pode compreender a Odisséia; tão elementar que o nome de fórmulasutilmente a difama e desvirtua. O herói põe-se a caminhar, e vêm a seuencontro as aventuras. A esse gênero nômade e venturoso pertencem O Asno

de Ouro e os fragmentos do Satiricon;  Pickwick e o  Dom Quixote; o  Kim deLahore e o Segundo Sombra de Areco. Chamar essas ficções de romances picarescos parece-me injustificado; em primeiro lugar, pela conotaçãomesquinha da palavra; em segundo, por suas limitações locais e temporais(século XVI espanhol, século XVII). Além disso, o gênero é complexo. Adesordem, a incoerência e a variedade não são impraticáveis, mas éindispensável uma ordem secreta que as governe e que se descubragradualmente. Lembrei alguns exemplos famosos; talvez nenhum esteja isento

de defeitos evidentes. Cervantes mobiliza dois tipos: um fidalgo "seco decarnes", alto, ascético, louco e altissonante; um vilão carnudo, baixo, comilão,sensato e espirituoso; essa disparidade tão simétrica e persistente acaba por subtrair-lhes realidade, reduzindo-os a figuras de circo. (No sétimo capítulo de E1 Payador , nosso Lugones já insinuou essa recriminação.) Kipling inventaum Amiguinho do Mundo Inteiro, o libérrimo Kim, para, alguns capítulosadiante, urgido por não sei que patriótica perversão, dar-lhe o horrível ofício deespião. (Em sua autobiografia literária, escrita cerca de trinta e cinco anos mais

tarde, Kipling mostra-se impenitente e até inconsciente.) Aponto essas falhassem animadversão; faço-o para julgar The Purple Land com igual sinceridade.Do gênero de romances que aqui considero, os mais rudimentares buscam

a mera sucessão de aventuras, a mera variedade; as sete viagens de Simbad, o

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Marujo, talvez forneçam o exemplo mais puro. Nelas o herói é um merosujeito, tão impessoal e passivo quanto o leitor. Em outros (pouco maiscomplexos), os fatos cumprem a função de mostrar o caráter do herói, quandonão suas absurdidades e manias; é o caso da primeira parte do  Dom Quixote.Em outros (que correspondem a uma etapa ulterior), o movimento é duplo,

recíproco: o herói modifica as circunstâncias, as circunstâncias modificam ocaráter do herói. É o caso da segunda parte do Quixote, do Huckleberry Finn,de Mark Twain, de The Purple Land . Essa ficção, na realidade, tem doisargumentos. O primeiro, visível: as aventuras do rapaz inglês Richard Lamb naBanda Oriental do Uruguai. O segundo, íntimo, invisível: o venturosoacrioulamento de Lamb, sua gradual conversão a uma moralidade bravia quelembra um pouco Rousseau e prevê um pouco Nietzsche. Suas Wanderjahresão também Lehrjahre. Hudson sentiu na própria carne os rigores de uma vida

semibárbara, pastoril; Rousseau e Nietzsche, só por meio dos sedentáriosvolumes da Histoire Générale des Voyages e das epopéias homéricas. Isso nãoquer dizer que The Purple Land seja inatacável. Padece de um erro evidente,que é lógico imputar às contingências da improvisação: a vã e cansativacomplexidade de certas aventuras. Penso nas do final: são bastantecomplicadas para cansar a atenção, mas não para despertá-la. Nessesenfadonhos capítulos, Hudson parece não entender que o livro é sucessivo(quase tão puramente sucessivo quanto o Satiricon ou El Buscón) e o entorpece

com artifícios inúteis. Trata-se de um erro assaz difundido: Dickens, em todosos seus romances, incorre em prolixidades análogas.Talvez nenhuma obra da literatura gauchesca supere The Purple Land .

Seria deplorável que alguma distração topográfica e três ou quatro erros ouerratas (Camelones por  Canelones,  Aria por   Arias, Gumesinda por Gumersinda) nos escamoteassem essa verdade... The Purple Land  éfundamentalmente crioula. A circunstância de o narrador ser um inglês justificacertos esclarecimentos e certas ênfases necessárias para seu leitor e que seriam

anômalas em um gaúcho, acostumado a essas coisas. No número 31 da revistaSur , Ezequiel Martínez Estrada afirma: "Nossas coisas nunca tiveram poeta, pintor nem intérprete semelhante a Hudson, nem nunca o terão. Hernández éuma parcela desse cosmorama da vida argentina que Hudson cantou, descreveue comentou... As páginas finais de The Purple Land , por exemplo, encerram amáxima filosofia e a suprema justificação da América perante a civilizaçãoocidental e os valores da cultura acadêmica". Como se vê, Martinez Estradanão hesitou em preferir a obra total de Hudson ao mais insigne dos livroscanônicos de nossa literatura gauchesca. Sem dúvida, o âmbito que The Purple Land abrange é incomparavelmente maior. O  Martín Fierro (em que pese ao projeto de canonização de Lugones) é menos a epopéia de nossas origens – em1872! – que a autobiografia de um faquista, falseada por bravatas e

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lamentações que quase profetizam o tango. Em Ascasubi há traços maisvívidos, mais felicidade, mais coragem, mas tudo isso aparece fragmentário esecreto em três volumes incidentais, de quatrocentas páginas cada um.  DonSegundo Sombra, a despeito da veracidade dos diálogos, é estragado pelo afãde magnificar as tarefas mais inocentes. Ninguém ignora que seu narrador é um

gaúcho, o que toma duplamente injustificável esse gigantismo teatral que elevaum arreio de novilhos a um episódio de guerra. Güiraldes emposta a voz paranarrar os trabalhos cotidianos do campo, Hudson (como Ascasubi, comoHernández, como Eduardo Gutiérrez) narra com a maior naturalidade fatostalvez atrozes.

Alguém há de observar que em The Purple Land o gaúcho não aparecesenão de modo lateral, secundário. Melhor para a veracidade do retrato, caberiareplicar. O gaúcho é homem taciturno, o gaúcho desconhece, ou despreza, as

complexas delícias da memória e da introspecção; mostrá-lo autobiográfico eefusivo já é deformá-lo.Outro acerto de Hudson é o geográfico. Embora nascido na província de

Buenos Aires, no círculo mágico dos pampas, ele escolhe a terra cárdea onde amontonera fatigou suas primeiras e últimas lanças: o Estado Oriental doUruguai. Na literatura argentina, os gaúchos são exclusivos da província deBuenos Aires; a paradoxal razão dessa primazia é a existência de uma grandecidade, Buenos Aires, mãe de insignes literatos "gauchescos". Se, em vez de

interrogar a literatura, nos ativermos à história, comprovaremos que essaglorificada gaucharia pouca influência exerceu nos destinos de sua província,nenhuma nos do país. O organismo típico da guerra gaúcha, a montonera, sóaparece em Buenos Aires de modo esporádico. Manda a cidade, mandam oscaudilhos da cidade. Quando muito, algum indivíduo – Hormiga Negra nosdocumentos judiciais, Martín Fierro nas letras – consegue certa notoriedade policial com uma rebelião matreira.

Hudson, como já disse, escolhe para as andanças de seu herói as coxilhas

da outra banda do rio. Essa escolha propícia permite-lhe enriquecer o destinode Richard Lamb com o acaso e a variedade da guerra – acaso que favorece ascircunstâncias do amor errante. Macaulay, no artigo sobre Bunyan, maravilha-se de que, com o tempo, as imaginações de um homem tornem-se lembranças pessoais de muitos outros. As de Hudson perduram na memória: os tiros britânicos retumbando na noite de Paysandú; o gaúcho ensimesmado pitandocom fruição o tabaco negro, antes da batalha; a moça que se entrega a umforasteiro, na secreta margem de um rio.

Melhorando até a perfeição uma frase divulgada por Boswell, Hudsonconta que iniciou muitas vezes o estudo da metafísica, mas sempre foiinterrompido pela felicidade. A frase (uma das mais memoráveis que o tratodas letras me deparou) é típica do homem e do livro. Apesar do brusco sangue

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derramado e das separações, The Purple Land é dos pouquíssimos livros felizesque há na terra. (Outro, também americano, também de sabor quase paradisíaco, é o  Huckleberry Finn, de Mark Twain.) Não penso no debatecaótico entre pessimistas e otimistas; não penso na felicidade doutrinária que,inexoravelmente, o patético Whitman impôs a si mesmo; penso na têmpera

venturosa de Richard Lamb, em sua hospitalidade para receber todas asvicissitudes do ser, amigas ou aziagas.Uma observação última. Perceber ou não os matizes crioulos pode

 parecer trivial, mas o fato é que, dentre todos os estrangeiros (sem excluir,claro, os espanhóis), o inglês é o único a percebê-los. Miller, Robertson,Burton, Cunningham, Graham, Hudson.

 Buenos Aires, 1941.

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DE ALGUÉM A NINGUÉM

 No princípio, Deus é os Deuses (Elohim), plural que alguns chamam demajestade e outros de plenitude e que muitos crêem ser um eco de anteriores politeísmos ou uma premonição da doutrina, declarada em Nicéia, de que Deus

é Uno e Triplo. Elohim rege os verbos no singular; o primeiro versículo da Leidiz literalmente: "No princípio fez os Deuses o céu e a terra". Apesar daimprecisão que o plural sugere, Elohim é concreto; chama-se Jeová Deus elemos que passeava pelo jardim na brisa do dia ou, como dizem as versõesinglesas, in the cool of the day. É definido por traços humanos; em um lugar daEscritura, lê-se "Arrependeu-se Jeová de ter feito homem na terra e isto pesou-lhe no coração" e em outro, "Porque eu Jeová teu Deus sou um Deus ciumento"e em outro, "Falei no calor de minha ira". O sujeito de tais locuções é

indiscutivelmente Alguém, um Alguém corporal que os séculos irãoagigantando e esbatendo. Seus títulos variam: Fortaleza de Jacó, Pedra deIsrael, Sou Aquele que Sou, Deus dos Exércitos, Rei dos Reis. Este último, quesem dúvida inspirou, por oposição, o Servo dos Servos de Deus, de GregórioMagno, no texto original é um superlativo de rei: "Propriedade é da línguahebréia – diz Frei Luis de León – dobrar assim iguais palavras, quando se quer encarecer alguma coisa, seja para bem ou para mal. Dizer então Cântico doscânticos é o mesmo que em vernáculo dizer Cântico entre os cânticos, homem

entre os homens, isto é, assinalado e eminente entre todos e mais excelente queoutros muitos". Nos primeiros séculos de nossa era, os teólogos habilitam o prefixo omni-, antes reservado aos adjetivos da natureza ou de Júpiter; propagam-se as palavras onipotente, onipresente, onisciente, que fazem deDeus um respeitável caos de superlativos inimagináveis. Essa nomenclatura,como as outras, parece limitar a divindade: em fins do século V, o incógnitoautor do Corpus Dionysiacum declara que a Deus não convém nenhum predicado afirmativo. Nada se deve afirmar d´Ele, tudo se pode negar.

Schopenhauer anota secamente: "Essa teologia é a única verdadeira, mas nãotem conteúdo". Escritos em grego, os tratados e as cartas que formam o Corpus Dionysiacum encontram no século IX um leitor que os verte ao latim: JohannesEríugena, ou Scotus, isto é, João, o Irlandês, cujo nome na história ficou Escoto

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Erígena, ou seja, Irlandês Irlandês. Este formula uma doutrina de índole panteísta: as coisas particulares são teofanias (revelações ou aparições dodivino) e por trás de tudo está Deus, que é a única realidade, "mas que não sabeo que é, porque não é um quê, e é incompreensível a si mesmo e a todainteligência". Não é sapiente, é mais que sapiente; não é bom, é mais que bom;

inescrutavelmente excede e recusa todos os atributos. Para defini-1o, João, oIrlandês, recorre à palavra Nihilum, que é o nada; Deus é o nada primordial dacreatio ex Nihilo, o abismo em que foram gerados os arquétipos e depois osseres concretos. E Nada e Nada; aqueles que o conceberam assim procederamcom o sentimento de que isso é mais do que ser um Quem ou um Quê.Analogamente, Samkara ensina que os homens, no sono profundo, são ouniverso, são Deus.

O processo que acabo de ilustrar está longe de ser aleatório. A

magnificação até o nada ocorre ou tende a ocorrer em todos os cultos; podemosobservá-la inequivocamente no caso de Shakespeare. Seu contemporâneo BenJonson ama-o sem chegar à idolatria, on this side Idolatry; Dryden declara-o oHomero dos poetas dramáticos da Inglaterra, mas admite que muitas vezes éinsípido e empolado; o discursivo século XVIII procura engrandecer suasvirtudes e censurar suas falhas: Maurice Morgan, em 1774, afirma que o reiLear e Falstaff nada mais são que modificações da mente de seu inventor; noinício do século XIX, esse ditame é recriado por Coleridge, para quem

Shakespeare já não é um homem, e sim uma variante literária do infinito Deusde Spinoza. "A pessoa Shakespeare – escreve – foi uma natura naturata, umefeito, mas o universal, que se encontra potencialmente no particular, foi a elerevelado não como abstraído da observação de uma pluralidade de casos, mascomo a substância capaz de infinitas modificações, das quais sua existência pessoal era apenas uma." Hazlitt corrobora ou confirma: "Shakespeare era emtudo semelhante a todos os homens, exceto em sua semelhança com todos oshomens. Intimamente não era nada, mas era tudo o que são os demais, ou o que

 podem ser". Hugo, depois, equipara-o ao oceano, que é uma sementeira deformas possíveis.1

Ser uma coisa é inexoravelmente não ser todas as outras; a confusaintuição dessa verdade induziu os homens a imaginar que não ser é mais queser algo e que, de certo modo, é ser tudo. Essa falácia está nas palavras daquelerei legendário do Industão, que abdica do poder e sai pedindo esmola pelasruas: "Doravante não tenho reino ou meu reino é ilimitado, doravante meu1  No budismo, a figura se repete. Os primeiros textos narram que Buda, ao pé da figueira, intui a infinita

concatenação de todos os efeitos e causas do universo, as passadas e futuras encarnações de cada ser; osúltimos, escritos séculos mais tarde, afirmam que nada é real e que todo conhecimento é fictício, e que sehouvesse tantos Ganges como grãos de areia há no Ganges, e mais uma vez tantos Ganges como grãos deareia nos novos Ganges, o número de grãos de areia seria menor que o número de coisas que Budaignora.

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corpo não me pertence ou pertence-me a terra inteira". Schopenhauer escreveuque a história é um infindável e perplexo sonho das gerações humanas; nosonho há formas que se repetem, talvez não haja nada além de formas; umadelas é o processo que esta página denuncia.

 Buenos Aires, 1950.

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FORMAS DE UMA LENDA

Às pessoas repugna ver um velho, um doente ou um morto, emboraestejam sujeitas à morte, às doenças e à velhice; Buda declarou que essareflexão o induziu a abandonar sua própria casa e seus pais e a vestir a roupa

amarela dos ascetas. O testemunho consta de um dos livros do cânone; outroregistra a parábola dos cinco mensageiros secretos enviados pelos deuses; sãoeles: uma criança, um velho encurvado, um aleijado, um criminoso sob suplicioe um morto, e avisam que nosso destino é nascer, caducar, adoecer, sofrer justocastigo e morrer. O Juiz das Sombras (nas mitologias do Industão, Yamacumpre essa função, por ser o primeiro homem a morrer) pergunta ao pecador se não viu os mensageiros; este admite que sim, mas não decifrou seu aviso; osesbirros trancam-no em uma casa cheia de fogo. Pode ser que essa ameaçadora

 parábola não seja invenção de Buda; basta-nos saber que ele a transmitiu( Majjhima Nikaya, 130) e que provavelmente nunca a vinculou a sua própriavida.

A realidade pode ser complexa demais para a transmissão oral; a lenda arecria de uma maneira que só acidentalmente é falsa e que lhe permite correr omundo de boca em boca. Tanto na parábola como na declaração, há um homemvelho, um homem doente e um homem morto; o tempo fez dos dois textos umsó e, confundindo-os, forjou outra história.

Siddhartha, o Bodhisattva, o pré-Buda, é filho de um grande rei,Suddhodana, da estirpe do sol. Na noite de sua concepção, a mãe de Siddharthasonha que em seu lado direito entra um elefante, da cor da neve e com seis presas.1 Os adivinhos interpretam que seu filho reinará sobre o mundo ou farágirar a roda da doutrina2 e ensinará aos homens como livrar-se da vida e da

1 Esse sonho é, para nós, pura fealdade. Não o é para os hindus; o elefante, animal doméstico, é símbolode mansidão; a multiplicação das presas não pode incomodar os espectadores de uma arte que, parasugerir que Deus é o todo, compõe figuras de múltiplos braços e rostos; o número seis é habitual (seis

vias de transmigração; seis Budas anteriores a Buda; seis pontos cardeais, contando o zênite e o nadir;seis divindades que o Yajurveda chama "as seis portas de Brama").

2 Essa metáfora pode ter sugerido aos tibetanos a invenção das máquinas de rezar, rodas ou cilindros quegiram em torno de um eixo, cheias de tiras de papel enroladas nas quais se repetem palavras mágicas.

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morte. O rei prefere que Siddhartha conquiste a grandeza temporal e não aeterna, e trata de recluí-lo em um palácio, de onde é retirado tudo o que poderevelar que ele é corruptível. Assim transcorrem vinte e nove anos de ilusóriafelicidade, dedicados ao deleite dos sentidos, mas Siddhartha, uma manhã, saiem sua carruagem e vê com estupor um homem encurvado, "cujos cabelos não

são como os dos outros, cujo corpo não é como o dos outros", que caminhaapoiado em uma bengala e cuja carne treme. Pergunta que homem é esse; ococheiro explica que é um velho e que todos os homens da terra serão comoele. Siddhartha, inquieto, ordena voltar imediatamente, mas em outra saída vêum homem sendo devorado pela febre, coberto de lepra e de chagas; o cocheiroexplica que é um doente e que ninguém está livre desse perigo. Em outra saídavê um homem sendo conduzido em um féretro, o homem imóvel é um morto,explicam-lhe, e morrer é a lei de todo aquele que nasce. Em outra saída, a

última, vê um monge das ordens mendicantes que não deseja nem morrer nemviver. A paz está em seu rosto; Siddhartha acaba de encontrar o caminho.Hardy ( Der Buddhismus nach älteren Pali-Werken) elogiou o colorido

dessa lenda; um indólogo contemporâneo, A. Foucher, cujo tom sarcástico nemsempre é inteligente ou urbano, escreve que, admitida a ignorância prévia doBodhisattva, a história não carece de gradação dramática nem de valor filosófico. No início do século V de nossa era, o monge Fa-Hsien peregrinouaos reinos do Industão em busca de livros sagrados e viu as ruínas da cidade de

Kapilavastu e quatro imagens que Açoka erigiu, ao norte, ao sul, a leste e aoeste das muralhas, para comemorar esses encontros. No início do século VII,um monge cristão escreveu o romance intitulado  Barlaão e Josafá; Josafá(Josafat Bodhisattva) é filho de um rei da índia; os astrólogos predizem que elereinará sobre um reino maior, que é o da Glória; o rei confina-o em um palácio,mas Josafá descobre o infortúnio da condição humana na figura de um cego, deum leproso e de um moribundo e, por fim, é convertido à fé pelo ermitãoBarlaão. Essa versão cristã da lenda foi traduzida para muitos idiomas,

inclusive o holandês e o latim; a pedido do Haakon Haakonarson, foi compostana Islândia, em meados do século XIII, uma  Barlaams Saga. O cardeal César Barônio incluiu Josafá em sua revisão (1585-1590) do Martirológio Romano;em 1615, Diogo do Couto denunciou, em sua continuação das  Décadas, asanalogias da falsa fábula indiana com a verdadeira e piedosa história de SãoJosafá. Tudo isso e muito mais o leitor poderá encontrar no primeiro volume deOrígenes de la Novela, de Menéndez y Pelayo.

A lenda que, em terras ocidentais, determinou que Buda fosse canonizado por Roma tinha, porém, um defeito: os encontros que ela postula são eficazesmas inverossímeis. Quatro saídas de Siddhartha e quatro figuras didáticas nãocondizem com os hábitos do acaso. Menos atentos ao estético que à conversaAlgumas são manuais, outras são como grandes moinhos movidos pela água ou pelo vento.

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das pessoas, os doutores quiseram justificar essa anomalia; para Koeppen ( Die Religion des Buddha, 1, 82), na última forma da lenda, o leproso, o morto e omonge são simulacros produzidos pelas divindades para instruir Siddhartha.Assim, no terceiro livro da epopéia sânscrita  Buddhacarita, diz-se que osdeuses criaram um morto e que nenhum homem o viu enquanto o levavam,

exceto o cocheiro e o príncipe. Em uma biografia lendária do século XVI, asquatro aparições são quatro metamorfoses de um deus (Wieger: Vies Chinoisesdu Bouddha, 37-41).

Mais longe foi o  Lalitavistara. Dessa compilação em verso e prosa,escrita em sânscrito impuro, costuma-se falar com certa ironia; em suas páginas, a história do Redentor é inflada até a opressão e até a vertigem. OBuda, rodeado por doze mil monges e trinta e dois mil Bodhisattvas, revela otexto da obra aos deuses; instalado no quarto céu, ele fixou o período, o

continente, o reino e a casta em que renasceria para morrer pela última vez;oitenta mil tambores acompanham as palavras de seu discurso e o corpo de suamãe tem a força de dez mil elefantes. Buda, no estranho poema, dirige cadaetapa de seu destino; faz as divindades projetarem as quatro figuras simbólicase, quando interroga o cocheiro, já sabe quem são e o que representam. Foucher vê nisso um mero servilismo dos autores, que não podem tolerar que Buda nãosaiba o que sabe um criado; o enigma merece em meu entender, outra solução.Buda cria as imagens e em seguida indaga a um terceiro o sentido que

encerram. Teologicamente, talvez coubesse responder: o livro é da escola doMahayana, que ensina que o Buda temporal é emanação ou reflexo de um Budaeterno; o do céu ordena as coisas, o da terra as padece ou executa. (Nossoséculo, com outra mitologia ou vocabulário, fala em inconsciente.) Ahumanidade do Filho, segunda pessoa de Deus pôde gritar da cruz: "Meu Deus,meu Deus, por que me abandonaste?", a de Buda, analogamente, ode espantar-se com formas criadas por sua própria divindade... Para desatar o problema nãosão indispensáveis, porém, tais sutilezas dogmáticas; basta lembrar que todas

as religiões do Industão, e em particular o budismo, ensinam que o mundo éilusório. "Minuciosa relação do jogo" (de um Buda) é o que quer dizer,segundo Winternitz, Lalitavistara; um jogo ou um sonho é para o Mahayana, avida de Buda sobre a terra, que é outro sonha. Siddhartha escolhe sua nação eseus pais, Siddhartha produz quatro formas que o encherão de estupor,Siddhartha ordena que outra forma declare o sentido das primeiras; tudo isso érazoável se o entendermos como um sonho de Siddhartha. Melhor ainda se oentendermos como um sonho em que aparece Siddhartha (assim comoaparecem o leproso e o monge) e que não é sonhado por ninguém, pois, aosolhos do budismo do Norte,3 o mundo, e os prosélitos, e o Nirvana, e a roda das3 Rhys Davids suprime essa locução introduzida por Burnouf, mas seu emprego nessa frase é menosincômodo que o de grande Travessia ou Grande Veículo, que teriam feito o leitor se deter.

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transmigrações, e Buda são igualmente irreais. Ninguém se extingue no Nirvana, lemos em um famoso tratado, porque a extinção de inumeráveis seresno Nirvana é como a desaparição de uma fantasmagoria que um feiticeiro criaem uma encruzilhada por meio de artes mágicas, e em outro lugar está escritoque tudo é mera vacuidade, mero nome, incluído o livro que o declara e o

homem que o lê. Paradoxalmente, os excessos numéricos do poema subtraem,não acrescentam realidade; doze mil monges e trinta e dois mil Bodhisattvassão menos concretos que um monge e que um Bodhisattva. As vastas formas eos vastos algarismos (o capítulo X11 inclui uma série de vinte e três palavrasque indicam a unidade seguida de um número crescente de zeros, de 9 a 49, 51e 53) são imensas e monstruosas bolhas, ênfases do Nada. O irreal, assim, foierodindo a história; primeiro tornou fantásticas as figuras, depois o príncipe e,com o príncipe, todas as gerações e o universo.

Em fins do século XIX, Oscar Wilde propôs uma variante; o príncipefeliz morre na reclusão do palácio, sem ter descoberto a dor, mas sua efígie póstuma a divisa do alto do pedestal.

A cronologia do Industão é incerta; minha erudição, muito mais;Koeppen e Hermann Beckh talvez sejam tão falíveis quanto o compilador quearrisca esta nota; não me surpreenderia que minha história da lenda fosselegendária, feita de verdade substancial e de erros fortuitos.

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DAS ALEGORIAS AOS ROMANCES

Para todos nós, a alegoria é um erro estético. (Meu primeiro propósito foiescrever "não é outra coisa senão um erro da estética", mas logo me dei contade que minha sentença comportava uma alegoria.) Que eu saiba, o gênero

alegórico foi analisado por Schopenhauer (Welt als Wille und Vorstellung , I,50), por De Quincey (Writings, XI, 198), por Francesco De Sanctis (Storiadella Letteratura Italiana, VII), por Croce ( Estetica, 39) e por Chesterton (G. F. Watts, 83); neste ensaio, limitar-me-ei aos dois últimos. Croce nega a artealegórica, Chesterton a vindica; opino que aquele está com a razão, masgostaria de saber como uma forma que nos parece injustificável pôde desfrutar de tantos favores.

As palavras de Croce são cristalinas; basta-me repeti-las em vernáculo:

"Se o símbolo for concebido como inseparável da intuição artística, serásinônimo da intuição mesma, que sempre tem caráter ideal. Se o símbolo for concebido como separável, podendo-se por um lado expressar o símbolo e por outro a coisa simbolizada, recair-se-á em um erro intelectualista; o supostosímbolo é a exposição de um conceito abstrato, é uma alegoria, é ciência, ouarte arremedando a ciência. Mas também devemos ser justos com o alegórico eadvertir que em alguns casos é inócuo. Da  Jerusalém Libertada pode-se extrair qualquer moralidade; do  Adone, de Marino, o poeta da lascívia, a reflexão de

que o prazer desmedido leva à dor; diante de uma estátua, o escultor pode pôr um cartaz dizendo que se trata da Clemência ou da Bondade. Tais alegorias,acrescentadas a uma obra concluída, não a prejudicam. São expressões queextrinsecamente se adicionam a outras expressões. À  Jerusalém adiciona-seuma página em prosa que expressa outro pensamento do poeta; ao  Adone, umverso ou uma estrofe que expressa o que o poeta quer dar a entender; à estátua,a palavra clemência ou a palavra bondade". Na página 222 do livro  La Poesia(Bári, 1946), o tom é mais hostil: "A alegoria não é um modo direto de

manifestação espiritual, e sim uma sorte de escrita ou de criptografia".Croce não admite diferença entre conteúdo e forma. Esta é aquele eaquele é esta. A alegoria parece-lhe monstruosa porque aspira a cifrar em umaforma dois conteúdos: o imediato ou literal (Dante, guiado por Virgílio, chega

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a Beatriz) e o figurado (o homem enfim alcança a fé, guiado pela razão). Julgaque essa maneira de escrever comporta laboriosos enigmas.

Chesterton, para vindicar o alegórico, começa por negar que a linguagemesgote a expressão da realidade. "O homem sabe que há na alma matizes maisdesconcertantes, mais inumeráveis e mais anônimos que as cores de um bosque

outonal... Crê, no entanto, que esses matizes, em todas as suas fusões econversões, podem ser representados com precisão por meio de um mecanismoarbitrário de grunhidos e chiados. Crê que mesmo de dentro de um corretor daBolsa realmente saem ruídos que significam todos os mistérios da memória etodas as agonias do desejo." Declarada a insuficiência da linguagem, há lugar  para outras; a alegoria pode ser uma delas, como a arquitetura ou a música. Éfeita de palavras, mas não é uma linguagem da linguagem, um signo de outrossignos da virtude valorosa e das iluminações secretas que essa palavra indica.

Um signo mais preciso que o monossílabo, mais rico e mais feliz. Não sei muito bem qual dos eminentes contraditores tem razão; sei que aarte alegórica pareceu em algum momento encantadora (o labiríntico  Romande la Rose, que perdura em duzentos manuscritos, consta de vinte e quatro milversos) e agora é intolerável. Sentimos que, além de intolerável, é tola efrívola. Nem Dante, que figurou a história de sua paixão em Vita Nuova, nem oromano Boécio, escrevendo na torre de Pavia, à sombra da espada de seucarrasco, o De Consolatione, teriam entendido esse sentimento. Como explicar 

essa discórdia sem recorrer a uma petição de princípio sobre a volubilidade dosgostos?Coleridge observa que todos os homens nascem aristotélicos ou

 platônicos. Os últimos intuem que as idéias são realidades; os primeiros, quesão generalizações; para estes, a linguagem não passa de um sistema desímbolos arbitrários; para aqueles, é o mapa do universo. O platônico sabe queo universo é de certo modo um cosmos, uma ordem; essa ordem, para oaristotélico, pode ser um erro ou uma ficção de nosso conhecimento parcial.

Através das latitudes e das épocas, os dois antagonistas imortais mudam dedialeto e de nome: um é Parmênides, Platão, Spinoza, Kant, FrancisBradley; o outro, Heráclito, Aristóteles, Locke, Hume, William James. Nasárduas escolas da Idade Média, todos invocam Aristóteles, mestre da humanarazão (Dante, Convívio, IV, 2); mas, se os nominalistas são Aristóteles, osrealistas são Platão. Segundo a opinião de George Henry Lewes, o único debatemedieval com algum valor filosófico é o que confrontou nominalismo erealismo; o juízo é temerário, mas destaca a importância dessa controvérsiatenaz que uma sentença de Porfírio, vertida e comentada por Boécio, provocounos inícios do século IX, que Anselmo e Roscelino mantiveram em fins doséculo XI e que William de Occam reanimou no século XIV.

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Como era de esperar, tantos anos multiplicaram até o infinito as posiçõesintermediárias e as distinções; entretanto, é possível afirmar que para orealismo o primordial eram os universais (Platão diria as idéias, as formas; nós,os conceitos abstratos), e para o nominalismo, os indivíduos. A história dafilosofia não é um vão museu de distrações e jogos verbais; verossimilmente,

as duas teses correspondem a duas maneiras de intuir a realidade. Maurice deWulf escreve: "O ultra-realismo recolheu as primeiras adesões. O cronistaHeriman (século XI) denomina antiqui doctores aqueles que ensinam adialética in re; Abelardo refere-se a ela como uma "antiga doutrina", e até o fimdo século XII seus adversários são chamados pelo nome de moderni". Umatese agora inconcebível pareceu evidente no século IX e de certo modo perdurou até o século XIV O nominalismo, outrora novidade de uns poucos,hoje abarca todas as pessoas; sua vitória é tão vasta e fundamental que seu

nome é inútil. Ninguém se declara nominalista porque não há quem seja outracoisa. Mas procuremos entender que, para os homens da Idade Média, osubstantivo não eram os homens, e sim a humanidade, não os indivíduos, e sima espécie, não as espécies, e sim o gênero, não os gêneros, e sim Deus. De taisconceitos (cuja manifestação mais clara talvez seja o quádruplo sistema deErígena) adveio, em meu entender, a literatura alegórica. Esta é fábula deabstrações, assim como o romance o é de indivíduos. As abstrações são personificadas; por isso, em toda alegoria há algo de romanesco. Os indivíduos

que os romancistas propõem aspiram a ser genéricos (Dupin é a razão, DomSegundo Sombra é o Gaúcho); os romances contêm um elemento alegórico.A passagem da alegoria ao romance, de espécies a indivíduos, do

realismo ao nominalismo, demandou alguns séculos, mas ouso apontar umadata ideal. Aquele dia de 1382 em que Geoffrey Chaucer, que talvez não se julgasse nominalista, tentou traduzir para o inglês o verso de Boccaccio " E con gli occulti ferri i Tradimenti"  ("E com ferros ocultos as Traições") e oreproduziu deste modo: "The smyler with the knyf under the cloke" ("Aquele

que sorri, com o punhal sob a capa"). O original está no sétimo livro daTeseida; a versão, em Knightes Tale.

 Buenos Aires, 1949.

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 NOTA SOBRE (PARA) BERNARD SHAW

Em fins do século XIII, Raimundo Lúlio (Ramón Llull) prontificou-se aelucidar todos os arcanos mediante um mecanismo de discos concêntricos,desiguais e giratórios, subdivididos em setores com palavras latinas; JohnStuart Mill, no início do século XIX, temeu que um dia se esgotasse o númerode combinações musicais e que no futuro não houvesse lugar para indefinidosWebers e Mozarts; Kurd Lasswitz, em fins do XIX, aventou a perturbadorafantasia de uma biblioteca universal, que registrasse todas as variações dos

vinte e tantos símbolos ortográficos, ou seja, tudo que é possível exprimir, emtodas as línguas. A máquina de Lúlio, o temor de Mill e a caótica biblioteca deLasswitz podem ser objeto de escárnio, mas exageram uma propensão que écomum: fazer da metafísica, e das artes, uma sorte de jogo combinatório.Aqueles que praticam esse jogo esquecem que um livro é mais que umaestrutura verbal, ou que uma série de estruturas verbais; é o diálogo que travacom seu leitor, e a entonação que impõe a sua voz, e as mutáveis e duradourasimagens que ele deixa na memória. Esse diálogo é infinito; as palavras amica

 silentia lunae significam agora a lua íntima, silenciosa e resplandecente,enquanto na  Eneida significaram o interlúnio, a escuridão que permitiu aosgregos entrar na cidadela de Tróia...1 A literatura não é esgotável, pela

1 Assim foi interpretada por Milton e Dante, a julgar por certas passagens que parecem imitativas. NaComédia ( Inferno, I, 60; V, 28), temos: "d´ogni luce muto" e "dove il sol tace" para significar lugaresescuros; no Samson Agonistes (86-89):

The Sun to me is dark 

 And silent as the Moon,When she deserts the night  Hid in her vacant interlunar cave.

Cf. E. M. Tillyard: The Miltonic Setting , 101.

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suficiente e simples razão de que um único livro não o é. O livro não é um enteincomunicado: é uma relação, é um eixo de inumeráveis relações. Umaliteratura difere da outra, ulterior ou anterior, menos pelo texto que pelo modoque é lida: se me fosse dado ler qualquer página atual – esta, por exemplo – como será lida no ano 2000, eu saberia como será a literatura do ano 2000. A

concepção da literatura como jogo formal leva, no melhor dos casos, ao bomtrabalho do período e da estrofe, a um decoro artesão (Johnson, Renan,Flaubert) e, no pior, às incomodidades de uma obra feita de surpresas ditadas pela vaidade e pelo acaso (Gracián, Herrera y Reissig).

Se a literatura não fosse mais que uma álgebra verbal, qualquer um poderia produzir qualquer livro, à força de provar variantes. A lapidar fórmula"Tudo flui" resume em duas palavras a filosofia de Heráclito: Raimundo Lúliodiria que, dada a primeira, basta experimentar os verbos intransitivos para

descobrir a segunda e, por obra do metódico acaso, obter essa filosofia, além demuitíssimas outras. Caberia responder que a fórmula obtida por eliminaçãocareceria de valor e até de sentido; para que tivesse alguma virtude, deveríamosconcebê-la em função de Heráclito, em função de uma experiência deHeráclito, mesmo que "Heráclito" fosse apenas o presumível sujeito dessaexperiência. Afirmei que um livro é um diálogo, uma forma de relação; nodiálogo, um interlocutor não é a soma ou a média daquilo que diz: pode nãofalar e transparecer que é inteligente, pode emitir observações inteligentes e

transparecer estupidez. Com a literatura ocorre o mesmo; D´Artagnan executainúmeras façanhas enquanto Dom Quixote é surrado e escarnecido, mas sente-se mais o valor de Dom Quixote. Isso nos leva a um problema estético até hojenão formulado: pode um autor criar personagens superiores a ele? Euresponderia que não, e minha negativa incluiria tanto o plano intelectual comoo moral. Penso que de nós não saem criaturas mais lúcidas nem mais nobresque nossos melhores momentos. Nesse parecer fundamento minha convicçãosobre a preeminência de Shaw. As questões sindicais e municipais de suas

 primeiras obras perderão o interesse, se é que já não o perderam; os gracejosdos  Pleasant Plays correm o risco de um dia tornarem-se não menosincômodos que os de Shakespeare (o humorismo é, suspeito, um gênero oral,um súbito favor da conversa, não uma coisa escrita); a fonte de suas eloqüentestiradas e das idéias expostas em seus prefácios pode ser encontrada emSchopenhauer e em Samuel Butler;2 mas Lavínia, Blanco Posnet, Kreegan,Shotover, Richard Dudgeon e, sobretudo, Júlio César superam qualquer  personagem imaginado pela arte de nosso tempo. Pensar em Monsieur Teste ao

2 Também em Swedenborg. Em Man and Superman lê-se que o Inferno não é um estabelecimento penal,e sim um estado que os pecadores mortos escolhem por motivos de íntima afinidade, como os bem-aventurados o Céu; o tratado  De Coelo et Inferno, de Swedenborg, publicado em 1758, apresenta amesma doutrina.

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lado deles ou no histriônico Zaratustra de Nietzsche é intuir com assombro eaté com escândalo a primazia de Shaw. Em 1911, Albert Soergel pôdeescrever, repetindo um lugar-comum da época: "Bernard Shaw é umaniquilados do conceito heróico, um matador de heróis" ( Dichtung und Dichter der Zeit , 214); não concebia que o heróico pudesse prescindir do romântico e

encarnar no capitão Bluntschli de Arms and the Man, não em Sérgio Saranoff...A biografia de Bernard Shaw escrita por Frank Harris contém umaadmirável carta daquele, da qual transcrevo estas palavras: "Eu compreendotudo e todos e sou nada e sou ninguém". Desse nada (tão comparável ao deDeus antes de criar o mundo, tão comparável à divindade primordial que outroirlandês, João Escoto Erígena, chamou  Nihil ), Bernard Shaw eduziu quaseinumeráveis personagens, ou dramatis personae: o mais efêmero será, suspeito,aquele G. B. S. que o representou perante os outros e que derramou tantas

agudezas fáceis nas colunas dos jornais.Os temas fundamentais de Shaw são a filosofia e a ética: é natural einevitável que ele não seja valorizado neste país, ou que o seja unicamente emfunção de alguns epigramas. O argentino sente que o universo não passa deuma manifestação do acaso, do fortuito concurso dos átomos de Demócrito; afilosofia não lhe interessa. A ética também não: para ele, o social reduz-se a umconflito de indivíduos, ou de classes, ou de nações, em que tudo é lícito, salvoser escarnecido ou vencido. O caráter do homem e suas variações são o tema

essencial do romance de nosso tempo; a lírica é a complacente magnificação deventuras ou desventuras amorosas; as filosofias de Heidegger e Jaspers fazemde cada um de nós o interessante interlocutor de um diálogo secreto e contínuocom o nada ou com a divindade; tais disciplinas, que formalmente podem ser admiráveis, fomentam essa ilusão do eu que o Vedanta reprova como errocapital. Costumam afetar desespero e angústia, mas no fundo contentam avaidade; são, nesse sentido, imorais. A obra de Shaw, ao contrário, deixa umsabor de libertação. O sabor das doutrinas do Pórtico e o sabor das sagas.

 Buenos Aires, 1951.

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HISTÓRIA DOS ECOS DE UM NOME

Isolados no tempo e no espaço, um deus, um sonho e um homem que estálouco, e que não o ignora, repetem uma obscura declaração; narrar e pesar essas palavras, e seus dois ecos, é a finalidade destas páginas.

A lição original é famosa. Consta no terceiro capítulo do segundo livro deMoisés, chamado Êxodo. Lemos aí que o pastor de ovelhas, Moisés, autor e protagonista do livro, perguntou a Deus Seu Nome e Ele respondeu: "Eu SouAquele que Sou". Antes de examinar essas misteriosas palavras, talvez não seja

ocioso lembrar que para o pensamento mágico, ou primitivo, os nomes não sãosímbolos arbitrários, e sim parte vital daquilo que definem.1 Assim, osaborígines da Austrália recebem nomes secretos que jamais devem ser ouvidos pelos indivíduos da tribo vizinha. Entre os antigos egípcios prevaleceu umcostume análogo; cada pessoa recebia dois nomes: um nome pequeno, que era por todos conhecido, e o nome verdadeiro, ou grande nome, que era mantidooculto. Segundo a literatura funerária, são muitos os perigos que corre a almadepois da morte do corpo; esquecer o nome (perder a identidade pessoal) é

talvez o maior. Também importa conhecer os verdadeiros nomes dos deuses,dos demônios e das portas do outro mundo.2 Jacques Vandier escreve: "Bastasaber o nome de uma divindade ou de uma criatura divinizada para tê-la em seu poder" ( La Religion Égyptienne,1949). De Quincey, por seu lado, lembra-nosque era secreto o verdadeiro nome de Roma; nos últimos dias da República,Quinto Valério Sorano cometeu o sacrilégio de revelá-lo, e foi executado...

1 Um dos diálogos platônicos, o Crátilo, discute e parece negar um vínculo necessário entre as palavras e

as coisas.2 Os gnósticos herdaram ou redescobriram essa singular opinião. Formou-se assim um vasto vocabuláriode nomes próprios, que Basilides (segundo Ireneu) reduziu à cacofônica ou cíclica palavra Kaulakau,espécie de chave universal de todos os céus.

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O selvagem oculta seu nome para que este não seja submetido aoperações mágicas, que poderiam matar, enlouquecer ou escravizar seu possuidor. Nos conceitos de calúnia e injúria perdura essa superstição, ou suasombra; não toleramos que certas palavras sejam vinculadas ao som de nossonome. Mauthner já analisou e condenou esse hábito mental.

Moisés perguntou ao Senhor qual era Seu nome: não se tratava, comovimos, de uma curiosidade de ordem filológica, e sim de indagar quem eraDeus, ou, mais precisamente, o que Ele era. (No século IX, Erígena escreveriaque Deus não sabe quem é nem o que é, porque não é um quê nem um quem.)

Que interpretações suscitou a tremenda resposta que Moisés escutou?Segundo a teologia cristã, "Eu Sou Aquele que Sou" declara que só Deus existerealmente ou, como ensinou o Maggid de Mesritch, que a palavra eu só podeser pronunciada por Deus. A doutrina de Spinoza, que faz da extensão e do

 pensamento meros atributos de uma substância eterna, que é Deus, bem podeser uma magnificação desta idéia: "Deus existe, sim; nós é que não existimos",escreveu um mexicano, analogamente.

Segundo essa primeira interpretação, "Eu Sou Aquele que Sou" é umaafirmação ontológica. Outros entenderam que a resposta elude a pergunta.Deus não diz quem é, porque isso excederia a compreensão de seu interlocutor humano. Martin Buber indica que " Ehych asher ehych" também pode ser traduzido por "Eu sou aquele que serei" ou por "Eu estarei onde estarei".

Moisés, à maneira dos feiticeiros egípcios, teria perguntado a Deus como Elese chamava a fim de tê-lo em seu poder; de fato, Deus teria respondido: "Hojeconverso contigo, mas amanhã posso revestir qualquer forma, e também asformas da opressão, da injustiça e da adversidade". Lemos isso no Gog und  Magog .3

Multiplicado pelas línguas humanas –  Ich bin der ich bin, Ego sum qui sum, I am that I am –, o sentencioso nome de Deus, o nome que, a despeito deconstar de muitas palavras, é mais impenetrável e mais firme que os que

constam de uma única, cresceu e reverberou pelos séculos, até que em 1602William Shakespeare escreveu uma comédia. Nessa comédia entrevemos,muito lateralmente, um soldado fanfarrão e covarde, um miles gloriosos, que, por meio de um estratagema, consegue ser promovido a capitão. O ardil édescoberto, o homem é degradado publicamente, e então Shakespeare intervéme põe em sua boca palavras que refletem, como em um espelho caído, aquelasoutras que a divindade pronunciou na montanha: "Não serei mais capitão, mashei de comer, e beber, e dormir como um capitão; isto que sou me fará viver".

3 Buber (Was ist der Mensch?, 1938) escreve que viver é penetrar em um estranho aposento do espírito,cujo chão é o tabuleiro onde jogamos um jogo inevitável e desconhecido contra um adversário cambiantee por vezes pavoroso.

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Assim fala Parolles e bruscamente deixa de ser um personagem convencionalda farsa cômica para ser um homem e todos os homens.

A última versão veio à luz em mil setecentos e quarenta e tantos, em umdos anos que durou a longa agonia de Swift, que para ele talvez tenham sidoum único instante insuportável, uma forma da eternidade do inferno. De

inteligência glacial e de ódio glacial vivera Swift, mas sempre fascinado pelaidiotia (assim como ocorreria com Flaubert), talvez por saber que a loucura oesperava nos confins. Na terceira parte de Gulliver , ele imaginou comminucioso desprezo uma estirpe de homens decrépitos e imortais, entregues adébeis apetites que não podem satisfazer, incapazes de conversar com seussemelhantes, porque o decorrer do tempo modificou a linguagem, e de ler, porque sua memória é insuficiente para passar de uma linha a outra. Pode-sesuspeitar que Swift imaginou esse horror porque o temia, ou quem sabe para

esconjurá-lo magicamente. Em 1717 dissera a Young, o dos  Night Thoughts:"Sou como esta árvore; começarei a morrer pela copa". Mais que na seqüênciade seus dias, Swift perdura para nós em algumas poucas frases terríveis. Essecaráter sentencioso e sombrio às vezes estende-se ao que se diz sobre ele, comose aqueles que o julgam não quisessem ficar para trás. "Pensar nele é como pensar na ruína de um grande império", escreveu Thackeray. Mas nada é tão patético quanto sua aplicação das misteriosas palavras de Deus.

A surdez, a vertigem, o medo da loucura e, por fim, a idiotia agravaram-

se e foram aprofundando a melancolia de Swift. Começou a perder a memória. Negava-se a usar óculos, não podia ler e era incapaz de escrever. Todos os diasimplorava a Deus que lhe enviasse a morte. Até que uma tarde, velho, louco e já moribundo, ouviram-no repetir, não sabemos se com resignação, comdesespero, ou como quem se afirma e se ancora em sua íntima essênciainvulnerável: "Sou aquilo que sou, sou aquilo que sou".

"Serei uma desventura, mas sou", terá sentido Swift, e também "Sou uma parte do universo, tão inevitável e necessária quanto as outras", e também "Sou

o que Deus quer que eu seja, sou o que de mim fizeram as leis universais", equem sabe "Ser é ser tudo".Aqui termina a história da sentença; quero apenas acrescentar, a modo de

epílogo, as palavras que, já perto de morrer, Schopenhauer disse a EduardGrisebach: "Se por vezes julguei-me infeliz, isso deve-se a uma confusão, a umerro. Tomei-me por outro, Verbi gratia, por um suplente que não conseguechegar a titular, ou pelo acusado em um processo de difamação, ou peloapaixonado que essa jovem desdenha, ou pelo doente que não pode sair decasa, ou por outras pessoas que padecem de análogas misérias. Não fui essas pessoas; elas foram, se tanto, o tecido das roupas que vesti e descartei. Quemsou realmente? Sou o autor de O Mundo como Vontade e Representação, souaquele que deu uma resposta ao enigma do Ser, que ocupará os pensadores dos

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séculos vindouros. Esse sou eu, e quem poderia discuti-lo nos anos de vida queainda me restam?". Justamente por ter escrito O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer sabia muito bem que ser um pensador é tãoilusório quanto ser um doente ou um desdenhado e que ele era outra coisa, profundamente. Outra coisa: a vontade, a obscura raiz de Parolles, a coisa que

era Swift.

O PUDOR DA HISTÓRIA

 No dia 20 de setembro de 1792, Johann Wolfgang von Goethe (queacompanhara o duque de Weimar em um passeio militar a Paris) viu o primeiroexército da Europa ser inexplicavelmente repelido em Valmy por algumas

milícias francesas e disse a seus desconcertados amigos: "Neste lugar e no diade hoje, inaugura-se uma época na história do mundo, e podemos dizer queassistimos a sua origem". Depois desse dia, houve muitíssimas jornadashistóricas, e uma das tarefas dos governos (especialmente na Itália, naAlemanha e na Rússia) foi forjá-las ou simulá-las, com profusão de prévia propaganda e persistente publicidade. Tais jornadas, nas quais se percebe ainfluência de Cecil B. de Mille, têm menos relação com a história que com o jornalismo: eu tenho suspeitado que a história, a verdadeira história, é mais

 pudorosa e que suas datas essenciais podem ser, até, durante muito tempo,secretas. Um prosador chinês observou que o unicórnio, em razão mesmo desua anomalia, passaria inadvertido. Os olhos vêem o que estão habituados aver. Tácito não reparou na Crucificação, embora seu livro a registre.

Cheguei a essa reflexão graças a uma frase casual que entrevi ao folhear uma história da literatura grega e que despertou meu interesse, por ser ligeiramente enigmática. Eis aqui a frase: " He brought in a second actor " (eletrouxe um segundo ator). Detive-me, constatei que o sujeito dessa misteriosa

ação era Esquilo e que este, segundo o que se lê no quarto capítulo da  Poéticade Aristóteles, "elevou de um a dois o número de atores". Sabe-se que o dramanasceu da religião de Dionísio; originalmente, um único ator, o hipócrita,alçado pelos coturnos, trajando preto ou púrpura e com o rosto aumentado por 

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uma máscara, dividia a cena com os doze indivíduos do coro. O drama era umadas cerimônias do culto e, como todo ritual, correu em algum momento o riscode tornar-se invariável. Isso poderia ter acontecido, mas um dia, quinhentosanos antes da era cristã, os atenienses viram com maravilha e talvez comescândalo (Victor Hugo levantou a segunda hipótese) a não anunciada aparição

de um segundo ator. Naquele dia de uma primavera remota, naquele teatro dacor do mel, o que eles terão pensado, o que sentiram exatamente? Talvez nemestupor nem escândalo; talvez apenas um princípio de assombro. NasTusculanas consta que Esquilo ingressou na ordem pitagórica, mas nuncasaberemos se pressentiu, sequer de modo imperfeito, quão significativa era essa passagem do um ao dois, da unidade à pluralidade, e assim até o infinito. Como segundo ator entraram em cena o diálogo e as indefinidas possibilidades dareação de uns personagens sobre outros. Um espectador profético teria visto

que ele vinha acompanhado por multidões de aparências futuras: Hamlet, eFausto, e Sigismundo, e Macbeth, e Peer Gynt, e outros que nossos olhos aindanão podem discernir.

Outra jornada histórica descobri em minhas leituras. Aconteceu naIslândia, no século XIII de nossa era; digamos, em 1225. Para a instrução dasfuturas gerações, o historiador e polígrafo Snorri Sturluson, em sua chácara deBorgarfjord, escrevia a última empreitada do famoso rei Harald Sigurdarson,chamado o Implacável (Hardrada), que antes militara em Bizâncio, na Itália e

na África. Tostig, irmão do rei saxão da Inglaterra, Harold Filho de Godwin,cobiçava o poder e contava com o apoio de Harald Sigurdarson. Com umexército norueguês, desembarcaram na costa oriental e tomaram o castelo deJorvik (York). Ao sul de Jorvik, fez-lhes frente o exército saxão. Expostos osfatos anteriores, prossegue o texto de Snorri: "Vinte cavaleiros achegaram-se àsfileiras do invasor; os homens, e também os cavalos, estavam revestidos deferro. Um dos cavaleiros gritou:

"– Está aqui o conde Tostig?

"– Não nego estar aqui – disse o conde."– Se verdadeiramente és Tostig – disse o cavaleiro –, venho dizer-te queteu irmão oferece a ti seu perdão e um terço do reino.

"– Se eu aceitar – disse Tostig –, que dará ele ao rei Harald Sigurdarson?"– Ele não foi esquecido – respondeu o cavaleiro. – Receberá sete palmos

de terra inglesa e, já que é tão alto, mais um."– Então – disse Tostig – dize a teu rei que lutaremos até a morte."Os cavaleiros se retiraram. Harald Sigurdarson perguntou, pensativo:"– Quem era esse cavaleiro que tão bem falou?"– Harold Filho de Godwin".

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Outros capítulos relatam que, antes de declinar o sol desse dia, o exércitonorueguês foi derrotado. Harald Sigurdarson pereceu na batalha, e também oconde ( Heimskringla, X, 92).

Há um sabor que nosso tempo (talvez farto das toscas imitações perpetradas pelos profissionais do patriotismo) não costuma perceber sem certo

receio: o elementar sabor do heróico. Asseguram-me que o  Poema del Cid encerra esse sabor; eu o senti, inconfundível, em versos da  Eneida ("Filho,aprende de mim valor e verdadeira firmeza; de outros, o êxito"), na baladaanglo-saxã de Maldon ("Meu povo pagará o tributo com lanças e velhasespadas"), na Canção de Rolando, em Victor Hugo, em Whitman e emFaulkner ("a alfazema, mais forte que o cheiro dos cavalos e da coragem"), no Epitáfio para um Exército de Mercenários, de Housman, e nos "sete palmos deterra inglesa" da Heimskringla. Por trás da aparente simplicidade do historiador 

há um delicado jogo psicológico. Harold finge não reconhecer o irmão, paraque este, por sua vez, perceba que não deve reconhecê-lo; Tostig não o trai,mas tampouco trairá seu aliado; Harold, disposto a perdoar o irmão, mas não atolerar a intromissão do rei da Noruega, procede de modo muitocompreensível. Nada direi sobre a destreza verbal de sua resposta: dar um terçodo reino, dar sete palmos de terra.1

Há somente uma coisa mais admirável que a admirável resposta do reisaxão: a circunstância de que seja um irlandês, um homem do sangue dos

vencidos, quem a tenha perpetuado. É como se um cartaginês tivesse legado amemória da façanha de Régulo. Com razão escreveu Saxo Grammaticus emsua Gesta Danorum: "Os homens de Tule (Islândia) deleitam-se em aprender eregistrar a história de todos os povos e não consideram menos glorioso publicar as excelências alheias que as próprias".

 Não o dia em que o saxão proferiu suas palavras, mas aquele em que uminimigo as perpetuou marca uma data histórica. Uma data profética de algo queainda está no futuro: o olvido de sangues e nações, a solidariedade do gênero

humano. A oferta deve sua virtude ao conceito de pátria; Snorri, ao relatá-la,supera e transcende tal conceito.Outro tributo a um inimigo lembro nos últimos capítulos de Seven Pillars

of Wisdom, de Lawrence; este exalta a coragem de um destacamento alemão eescreve as seguintes palavras: "Então, pela primeira vez nesta campanha, sentiorgulho dos homens que mataram meus irmãos". Para em seguida acrescentar:"They were glorious".

1 Carlyle ( Early Kings of Norway, XI) desbarata, com uma infeliz adição, essa economia. Aos sete  palmosde terra acrescenta for a grave ("para sepultura").

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 Buenos Aires, 1952.

 NOVA REFUTAÇÃO DO TEMPO

Vor mir war keine Zeit, nach mir wird keine seyn. Mit mir gebiert sie sich, mit mir geht sie auch ein.1

DANIEL VON CZEPKO: Sexcenta MonodistichaSapientum, III, 1655.

 NOTA PRELIMINAR 

Se publicada em meados do século XVIII, esta refutação (ou seu nome) perduraria nas bibliografias de Hume e talvez tivesse merecido uma linha de

 Huxley ou de Kemp Smith. Publicada em 1947 – depois de Bergson –, é aanacrônica reductio ad absurdum de um sistema pretérito ou, o que é pior, o precário artifício de um argentino extraviado na metafísica. Ambas asconjeturas são verossímeis e talvez verdadeiras; para corrigi-las, não posso prometer, em troca de minha dialética rudimentar, uma conclusão inaudita. Atese que propalarei é tão antiga quanto a flecha de Zenão ou a carruagem dorei grego, no Milinda Pañha;2 a novidade, se é que há alguma, consiste em

1

 "Antes de mim não existia o tempo, depois de mim não existirá. / Comigo ele veio ao mundo, tambémcomigo perecerá." (N. da T.)

2  Não há exposição do budismo que deixe de mencionar o Milinda Pañha, obra apologética do século II,que relata um debate cujos interlocutores são o rei da Bactriana, Menandro, e o monge Nagasena. Este

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aplicar a esse fim o clássico instrumento de Berkeley. Este e seu continuador, David Hume, são pródigos em parágrafos que contradizem ou excluem minhatese; creio ter deduzido, não obstante, a conseqüência inevitável de suadoutrina.

O primeiro artigo ("A" ) é de 1944 e apareceu no número 115 da revista

Sur ; o segundo, de 1946, é uma revisão do primeiro. Deliberadamente, não fundi os dois em um só, por entender que a leitura de dois textos análogos pode facilitar a compreensão de uma matéria indócil.

Uma palavra sobre o título. Não me escapa que este é um exemplo domonstro que os lógicos denominaram contradictio in adjecto , pois dizer que énova (ou antiga) uma refutação do tempo é atribuir-lhe um predicado deíndole temporal, que instaura a noção que o sujeito pretende destruir. Aindaassim, prefiro mantê-lo, para que seu ligeiríssimo escárnio prove que não

exagero a importância desses jogos verbais. De mais a mais, tão saturada eanimada de tempo está nossa linguagem que é bem provável que não hajanestas páginas uma sentença que de certo modo não o exija ou invoque.

 Dedico estes exercícios a meu antepassado Juan Crisóstomo Lafinur (1797-1824), que legou às letras argentinas algum decassílabo memorável eque tentou reformar o ensino da filosofia, purificando-o de sombras teológicase expondo na cátedra os princípios de Locke e de Condillac. Morreu nodesterro; couberam-lhe, como a todos os homens, maus tempos para viver.

 J. L. B.

 Buenos Aires, 23 de dezembro de 1946.

argumenta que, assim como a carruagem do rei não é as rodas, nem a caixa, nem o eixo, nem a lança, nemo jugo, tampouco o homem é a matéria, a forma, as impressões, as idéias, os instintos ou a consciência. Não é a combinação dessas partes nem existe fora delas... Ao término de uma controvérsia de muitos dias,Menandro (Milinda) converte-se à fé de Buda.

O Milinda Pañha foi vertido para o inglês por Rhys Davids (Oxford, 1890-1894).

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A

I

 No decorrer de uma vida consagrada às letras e (vez por outra) à

 perplexidade metafísica, pude divisar ou pressentir uma refutação do tempo, daqual eu mesmo descreio, mas que costuma visitar-me à noite e no exaustocrepúsculo, com ilusória força de axioma. Essa refutação está, de certo modo,em todos os meus livros: prefigura-se nos poemas "Inscrição em qualquer sepulcro" e "O truco", de meu  Fervor de Buenos Aires (1923); é declarada emcerta página de Evaristo Carriego (1930) e no conto "Sentir-se em morte", quetranscrevo mais adiante. Nenhum dos textos que enumerei me satisfaz, nemsequer o penúltimo da série, menos demonstrativo e racional que divinatório e

 patético. Tentarei fundamentar todos eles com este escrito.Dois argumentos me encaminharam a esta refutação: o idealismo deBerkeley e o princípio dos indiscerníveis, de Leibniz.

Berkeley ( Principies of Human Knowledge, 3) observou: "Todos hão deadmitir que nem nossos pensamentos, nem nossas paixões, nem as idéiasformadas por nossa imaginação existem sem a mente. Não menos claro é paramim que as diversas sensações ou idéias impressas nos sentidos, de qualquer modo que se combinem (isto é, qualquer que seja o objeto que elas formem), só podem existir em uma mente que as perceba... Afirmo que esta mesa existe; ouseja, eu a vejo e a toco. Se, estando fora de meu escritório, eu fizer a mesmaafirmação, só quererei dizer que a perceberia se aqui estivesse, ou que algumoutro espírito a percebe... Falar da existência absoluta de coisas inanimadas,

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sem relação com o fato de serem ou não percebidas, é para mim insensato. Seuesse est percipi; é impossível elas existirem fora das mentes que as percebem". No parágrafo 23 acrescentou, prevenindo objeções: "Mas, direis, nada maisfácil que imaginar árvores em um prado ou livros em uma biblioteca, semninguém por perto para percebê-los. De fato, nada mais fácil. Mas eu pergunto:

que fizestes senão formar na mente algumas idéias a que chamais livros ouárvores e, ao mesmo tempo, omitir a idéia de alguém que as percebe? Ao fazê-lo, por acaso não pensáveis essas coisas? Não nego que a mente seja capaz deimaginar idéias; nego que os objetos possam existir fora da mente". Em outro parágrafo, o sexto, ele já declarara: "Há verdades tão claras que para vê-las basta-nos abrir os olhos. Uma delas é a importante verdade: Todo o coro docéu e os aditamentos da terra – todos os corpos que compõem a poderosafábrica do universo – não existem fora de uma mente; não têm outro ser salvo

serem percebidos; não existem quando não os pensamos, ou só existem namente de um Espírito Eterno".Essa é, nas palavras de seu inventor, a doutrina idealista. Entendê-la é

fácil; difícil é pensar dentro de seus limites. O próprio Schopenhauer, ao expô-la, comete negligências reprováveis. Nas primeiras linhas do primeiro livro deseu Welt als Wille und Vorstellung  – ano de 1819 – formula a seguintedeclaração, que o faz merecedor da perene perplexidade de todos os homens:"O mundo é minha representação. O homem que confessa esta verdade sabe

claramente que não conhece um sol nem uma terra, mas tão-somente uns olhosque vêem um sol e umas mãos que sentem o contato de uma terra". Ou seja, para o idealista Schopenhauer, os olhos e as mãos do homem são menosilusórios ou aparenciais que a terra e o sol. Em 1844, ele publica um volumecomplementar. Logo no primeiro capítulo redescobre ou agrava o antigo erro:define o universo como um fenômeno cerebral e distingue "o mundo nacabeça" do "mundo fora da cabeça". Mas, em 1713, Berkeley já fizeraPhilonous dizer: "O cérebro de que falas, sendo uma coisa sensível, só pode

existir na mente. Gostaria de saber se julgas razoável a conjetura de que umaidéia ou coisa na mente ocasione todas as outras. Se responderes que sim,como explicarias a origem dessa idéia primária chamada cérebro?". Aodualismo ou cerebrismo de Schopenhauer também é justo contrapor o monismode Spiller. Este (The Mind of Man, capítulo VIII, 1902) argúi que a retina e asuperfície cutânea invocadas para explicar o visual e o tátil são, por sua vez,dois sistemas táteis e visuais e que o recinto que enxergamos (o "objetivo") nãoé maior que o imaginado (o "cerebral") e não o contém, por se tratar de doissistemas visuais independentes. Berkeley ( Principies of Human Knowledge, 10e 116) também negou as qualidades primárias – a solidez e a extensão dascoisas – e o espaço absoluto.

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Berkeley afirmou a existência contínua dos objetos, pois, quando nenhumindivíduo os percebe, eles são percebidos por Deus; Hume, com mais lógica,nega tal existência (Treatise of Human Nature, 1, 4, 2); Berkeley afirmou aidentidade pessoal, "porque eu não sou meramente minhas idéias, e sim outracoisa: um princípio ativo e pensante" ( Dialogues, 3); Hume, o cético, também a

refuta e faz de cada homem "uma coleção ou feixe de percepções, que sesucedem umas às outras com inconcebível rapidez" (obra citada, I, 4, 6).Ambos afirmam o tempo: para Berkeley, é "a sucessão de idéias que fluiuniformemente e da qual todos os seres participam" ( Principies of Human Knowledge, 98); para Hume, "uma sucessão de momentos indivisíveis" (obracitada, I, 2, 2).

Acumulei acima citações dos apologistas do idealismo, prodigalizei suas passagens canônicas, fui iterativo e explícito, censurei Schopenhauer (não sem

ingratidão), para que meu leitor fosse penetrando nesse instável mundo mental.Um mundo de impressões evanescentes; um mundo sem matéria nem espírito,nem objetivo nem subjetivo; um mundo sem a arquitetura ideal do espaço; ummundo feito de tempo, do absoluto tempo uniforme dos Principia; um labirintoincansável, um caos, um sonho. A essa quase perfeita desagregação chegouDavid Hume.

Uma vez aceito o argumento idealista, entendo que é possível – talvezinevitável – ir além. Para Hume, não é lícito falar da forma da lua ou de sua

cor; a forma e a cor são a lua; tampouco se pode falar das percepções da mente, já que a mente não passa de uma série de percepções. O "penso, logo existo"cartesiano fica invalidado; dizer "penso" é postular o eu, é uma petição de princípio; Lichtenberg, no século XVIII, propôs que em lugar de "penso"disséssemos impessoalmente "pensa", como quem diz "troveja" ou"relampeja". Repito: não há por trás dos rostos um eu secreto, a governar osatos e a captar as impressões; somos apenas a série desses atos imaginários edessas impressões errantes. A série? Negados o espírito e a matéria, que são

continuidades, negado também o espaço, não sei que direito nós temos a essacontinuidade que é o tempo. Imaginemos um presente qualquer. Em uma dasnoites do Mississipi, Huckleberry Finn acorda; a jangada, perdida na escuridão parcial, segue rio abaixo; faz, talvez, um pouco de frio. Huckleberry Finnreconhece o manso rumor incansável da água; abre os olhos com negligência;vê um vago número de estrelas, vê uma linha indistinta que são as árvores; emseguida, mergulha no sono imemorial como em uma água escura.1 A metafísicaidealista declara que acrescentar a essas percepções uma substância material (oobjeto) e uma substância espiritual (o sujeito) é temerário e inútil; eu afirmoque não menos ilógico é pensar que são termos de uma série cujo princípio é1 Para facilidade do leitor, escolhi um instante entre dois sonhos, um instante literário, não histórico. Sealguém suspeitar de uma falácia, poderá intercalar outro exemplo; de sua própria vida, se quiser.

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tão inconcebível quanto seu fim. Acrescentar ao rio e à margem percebidos por Huck a noção de outro rio substantivo de outra margem, acrescentar outra percepção a essa rede imediata de percepções é, para o idealismo,injustificável; para mim, não é menos injustificável acrescentar uma precisãocronológica: o fato, por exemplo, de o evento ter ocorrido na noite de 7 de

 junho de 1849, entre quatro e dez e quatro e onze. Em outras palavras: nego,com argumentos do idealismo, a vasta série temporal que o idealismo admite.Hume negou a existência de um espaço absoluto, em que cada coisa tem seulugar; eu, a de um único tempo, em que todos os fatos se encadeiam. Negar acoexistência não é menos árduo que negar a sucessão.

 Nego, em um elevado número de casos, a sucessividade; nego, em umelevado número de casos, também a simultaneidade. Engana-se o amante que pensa "enquanto eu estava feliz da vida, pensando na fidelidade de meu amor,

ela me enganava": se cada estado que vivemos é absoluto, essa felicidade nãofoi contemporânea dessa traição; a descoberta da traição é mais um estado,incapaz de modificar os "anteriores", embora não sua lembrança. A desventurade hoje não é mais real que a ventura pretérita. Busco um exemplo maisconcreto. No início de agosto de 1824, o capitão Isidoro Suárez, à frente de umesquadrão de hussardos do Peru, decidiu a vitória de Junín; no início de agostode 1824, De Quincey publicou uma diatribe contra Wilhelm Meisters Lehrjahre; tais fatos não foram contemporâneos (agora o são), porque os dois

homens morreram, aquele na cidade de Montevidéu, este em Edimburgo, semnada saber um do outro... Cada instante é autônomo. Nem a vingança, nem o perdão, nem as prisões, nem sequer o esquecimento podem modificar oinvulnerável passado. Não menos vãos parecem-me a esperança e o medo, quesempre se referem a fatos futuros; ou seja, a fatos que não ocorrerão conosco,que somos o minucioso presente. Dizem-me que o presente, o specious present dos psicólogos, dura entre alguns segundos e uma ínfima fração de segundo;isso dura a história do universo. Ou melhor, não existe tal história, como não

existe a vida de um homem, nem sequer uma de suas noites; existe cadamomento que vivemos, não seu imaginário conjunto. O universo, a soma detodos os fatos, é uma coleção não menos ideal que a de todos os cavalossonhada por Shakespeare – um, muitos, nenhum? – entre 1592 e 1594.Acrescento: se o tempo é um processo mental, como podem compartilhá-lomilhares de homens, ou mesmo dois homens distintos?

O argumento dos parágrafos acima, interrompido e como que entorpecidode exemplos, pode parecer intrincado. Tentarei um método mais direto.Tomemos uma vida ao longo da qual amiúdam as repetições: a minha, Verbi gratia. Não passo diante de La Recoleta sem lembrar que aí estão sepultadosmeu pai, meus avós e bisavós, assim como eu estarei; em seguida, lembro já ter lembrado o mesmo, inúmeras vezes; não posso caminhar pelos subúrbios na

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solidão da noite sem pensar que esta nos agrada porque suprime os detalhesociosos, como a lembrança; não posso lamentar a perda de um amor ou de umaamizade sem meditar que só se perde aquilo que não se teve realmente; cadavez que atravesso uma das esquinas do sul da cidade, penso em você, Helena;cada vez que a brisa traz um cheiro de eucaliptos, penso em Adrogué, em

minha infância; cada vez que recordo o fragmento 91 de Heráclito, "Nuncaentrarás duas vezes no mesmo rio", admiro sua destreza dialética, pois afacilidade com que aceitamos o primeiro sentido ("O rio é outro") impõe-nosclandestinamente o outro ("Eu sou outro"), concedendo-nos a ilusão de tê-loinventado; cada vez que ouço um germanófilo vituperar o Yiddish, penso que oYiddish é, antes de mais nada, um dialeto alemão, pouco maculado pelo idiomado Espírito Santo. Essas tautologias (e outras que calo) são minha vida inteira. Naturalmente, elas se repetem sem precisão; há diferenças de ênfase, de

temperatura, de luz, de estado fisiológico geral. Suspeito, porém, que o númerode variações circunstanciais não é infinito: podemos postular, na mente de umindivíduo (ou de dois indivíduos que se ignoram, mas nos quais se dá o mesmo processo), dois momentos iguais. Postulada essa igualdade, cabe perguntar:esses idênticos momentos não são o mesmo? Não basta um único termorepetido para desbaratar e confundir a série do tempo? Os fervorosos que seentregam a uma linha de Shakespeare não são, literalmente, Shakespeare?

Ignoro, ainda, a ética do sistema que acabo de esboçar. Não sei se existe.

O quinto parágrafo do quarto capítulo do tratado Sanhedrin da Mishnah declaraque, para a justiça de Deus, aquele que mata um único homem destrói omundo; se não há pluralidade, quem aniquilasse todos os homens não seriamais culpado que o primitivo e solitário Caim, o que é ortodoxo, nem maisuniversal na destruição, o que pode ser mágico. Eu entendo que é assim. Asruidosas catástrofes gerais – incêndios, guerras, epidemias – são uma só dor,ilusoriamente multiplicada em muitos espelhos. Assim o entende BernardShaw (Guide to Socialism, 86): "O que você pode padecer é o máximo que se

 pode padecer na terra. Se você morrer de inanição, sofrerá toda a inaniçãohavida e por haver. Se dez mil pessoas morrerem com você, a participaçãodelas em sua sorte não o fará ter dez mil vezes mais fome nem multiplicará por dez mil o tempo de sua agonia. Não se deixe angustiar pela horrenda soma de padecimentos humanos; tal soma não existe. Nem a pobreza nem a dor sãoacumuláveis". (Cf. também The Problem of Pain, VII, de C. S. Lewis.)

Lucrécio ( De Rerum Natura, I, 830) atribui a Anaxágoras a doutrina deque o ouro consta de partículas de ouro; o fogo, de fagulhas; o osso, deossinhos imperceptíveis. Josiah Royce, talvez influenciado por SantoAgostinho, entende que o tempo é feito de tempo e que "todo presente em quealgo ocorre é também uma sucessão" (The World and the Individual , II, 139).Tal proposição é compatível com a deste trabalho.

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II

Toda linguagem é de índole sucessiva; não é apta para pensar o eterno, o

intemporal. Aqueles que tenham acompanhado com desagrado a argumentaçãoanterior talvez prefiram esta página de 1928. Já a mencionei antes; trata-se dorelato intitulado "Sentir-se em morte":

"Quero registrar aqui uma experiência que tive algumas noites atrás:futilidade por demais evanescente e extática para ser chamada de aventura; por demais irracionável e sentimental para pensamento. Trata-se de uma cena e desua palavra: palavra já antedita por mim, mas não vivida com inteira dedicaçãoaté esse momento. Passo a historiá-la, com os acidentes de tempo e de lugar 

que a revelaram."Assim a rememoro. Na tarde que precedeu essa noite, estive emBarracas: localidade não visitada por meu hábito e cuja distância das quedepois percorri já deu um sabor estranho a esse dia. Sua noite não tinha destinoalgum; como era serena, saí para caminhar e recordar, depois do jantar. Nãoquis impor um rumo a essa caminhada; dispus-me à máxima latitude de probabilidades para não cansar a expectativa com a obrigatória antevisão deuma só delas. Realizei, na escassa medida do possível, isso que chamam

caminhar a esmo; sem outra consciente predeterminação senão evitar asavenidas ou ruas largas, aceitei os mais obscuros convites do acaso. Contudo,uma sorte de gravitação familiar empurrou-me a outros bairros, cujo nomequero sempre lembrar e que ditam reverência a meu peito. Não quero com issosignificar o bairro meu, o preciso âmbito da infância, mas suas aindamisteriosas imediações: confins que possuí inteiro em palavras e pouco emrealidade, vizinhos e mitológicos a um só tempo. O reverso do conhecido, suascostas, são para mim essas ruas penúltimas, quase tão efetivamente ignoradas

como o soterrado alicerce de nossa casa ou nosso invisível esqueleto. A marchalevou-me a uma esquina. Aspirei noite, em sereníssima folga de pensar. Avisão, nada complicada em si, parecia simplificada por meu cansaço. Tomava-airreal sua própria tipicidade. A rua era de casas baixas, e, embora seu primeirosignificado fosse de pobreza, o segundo certamente era de felicidade. Era domais pobre e do mais bonito que pode haver. Nenhuma casa se aventurava àrua; a figueira escurecia a esquina; os portõezinhos – mais altos que asalongadas linhas das paredes – pareciam trabalhados com a mesma substânciainfinita da noite. A calçada era uma escarpa sobre a rua, a rua era de barroelementar, barro da América ainda não conquistado. Ao fundo, o beco, já pampiano, desbarrancava-se em direção ao Maldonado. Sobre a terra turva e

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caótica, uma taipa rosada parecia não albergar luz de lua, mas efundir luzíntima. Difícil encontrar melhor maneira de nomear a ternura que esse rosado.

"Fiquei olhando essa simplicidade. Pensei, certamente em voz alta: istoaqui é o mesmo de trinta anos atrás... Imaginei a data: época recente em outros países, mas já remota neste mutável lugar do mundo. Talvez cantasse um

 pássaro, e senti por ele um carinho pequeno, do tamanho de um pássaro; mas omais certo é que nesse já vertiginoso silêncio não tenha havido outro ruídosenão o também intemporal dos grilos. O fácil pensamento  Estou em mil oitocentos e tantos deixou de ser algumas poucas aproximativas palavras paraentranhar-se em realidade. Senti-me morto, senti-me um percebedor abstratodo mundo; indefinido temor imbuído de ciência, que é a melhor claridade dametafísica. Não acreditei; não, ter remontado às presumíveis águas do Tempo;antes, suspeitei-me possuidor do sentido reticente ou ausente da inconcebível

 palavra eternidade. Só depois consegui definir essa imaginação."É assim que a escrevo, agora: essa pura representação de fatoshomogêneos – noite em serenidade, murinho límpido, cheiro provinciano demadressilva, barro fundamental – não é apenas idêntica à que existiu nessaesquina faz tantos anos; é, sem semelhanças nem repetições, a mesma. Otempo, se podemos intuir essa identidade, é uma delusão: a indiferença ouinseparabilidade de um momento de seu aparente ontem e outro de seuaparente hoje basta para desintegrá-lo.

"É evidente que o número de tais momentos humanos não é infinito. Oselementares – os de sofrimento físico e prazer físico, os de aproximação dosono, os da audição de uma mesma música, os de muita intensidade ou muitodesalento – são mais impessoais ainda. Arrisco esta conclusão: a vida é pobredemais para não ser também imortal. Mas nem nossa pobreza é certa, posto queo tempo, facilmente refutável no plano sensitivo, não o é no intelectual, de cujaessência o conceito de sucessão parece inseparável. Fique, então, no episódioemocional a vislumbrada idéia, e na confessa irresolução desta página o

momento verdadeiro de êxtase e a possível insinuação de eternidade de queessa noite não me foi avara".

B

Das muitas doutrinas que a história da filosofia registra, talvez a maisantiga e difundida seja o idealismo. A observação é de Carlyle ( Novalis, 1829);aos filósofos por ele mencionados caberia acrescentar, sem esperança deintegrar o infinito censo, os platônicos, para quem a única coisa real são os protótipos (Norris, Judas, Abravanel, Gemisto, Plotino), os teólogos, paraquem tudo que não seja a divindade é contingente (Malebranche, Johannes

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Eckhart), os monistas, que fazem do universo um ocioso adjetivo do Absoluto(Bradley, Hegel, Parmênides)... O idealismo é tão antigo quanto a inquietudemetafísica: seu apologista mais agudo, George Berkeley, floresceu no séculoXVIII; contrariamente ao que Schopenhauer declara (Welt als Wille und horstellung , II, 1), seu mérito não consistiu na intuição dessa doutrina, e sim

nos argumentos que idealizou para justificá-la. Berkeley usou-os contra anoção de matéria; Hume aplicou-os à consciência; meu propósito é aplicá-losao tempo. Antes recapitularei brevemente as diversas etapas dessa dialética.

Berkeley negou a matéria. Isso não significa, entenda-se bem, que tenhanegado as cores, os cheiros, os sabores, os sons e os contatos; o que ele negoufoi que, além dessas percepções, que compõem o mundo externo, houvessedores que ninguém sente, cores que ninguém vê, formas que ninguém toca.Julgou que acrescentar uma matéria às percepções é acrescentar ao mundo um

inconcebível mundo supérfluo. Acreditou no mundo de aparências que ossentidos urdem, mas entendeu que o mundo material (o de Toland, digamos) éuma duplicação ilusória. Observou ( Principles of Human Knowledge, 3):"Todos hão de admitir que nem nossos pensamentos, nem nossas paixões, nemas idéias formadas por nossa imaginação existem sem a mente. Não menosclaro é para mim que as diversas sensações ou idéias impressas nos sentidos, dequalquer modo que se combinem (isto é, qualquer que seja o objeto que elasformem), só podem existir em uma mente que as perceba... Afirmo que esta

mesa existe; ou seja, eu a vejo e a toco. Se, estando fora de meu escritório, eufizer a mesma afirmação, só quererei dizer que a perceberia se aqui estivesse,ou que algum outro espírito a percebe... Falar da existência absoluta de coisasinanimadas, sem relação com o fato de serem ou não percebidas, é para miminsensato. Seu esse est percipi; é impossível elas existirem fora das mentes queas percebem". No parágrafo 23 acrescentou, prevenindo objeções: "Mas, direis,nada mais fácil que imaginar árvores em um parque ou livros em uma biblioteca, sem ninguém por perto para percebê-los. De fato, nada mais fácil.

Mas eu pergunto: que fizestes senão formar na mente algumas idéias a quechamais livros ou árvores e, ao mesmo tempo, omitir a idéia de alguém que as percebe? Ao fazê-lo, por acaso não pensáveis essas coisas? Não nego que amente seja capaz de imaginar idéias; nego que os objetos possam existir fora damente". No parágrafo 6, ele já declarara: "Há verdades tão claras que para vê-las basta-nos abrir os olhos. Esta é a importante verdade: Todo o coro do céu eos aditamentos da terra – todos os corpos que compõem a enorme fábrica douniverso – não existem fora de uma mente; não têm outro ser salvo serem percebidos; não existem quando não os pensamos, ou só existem na mente deum Espírito Eterno". (O deus de Berkeley é um ubíquo espectador cujo fim édar coerência ao mundo.)

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A doutrina que acabo de expor foi perversamente interpretada. HerbertSpencer acredita refutá-la ( Principles of Psychology, VIII, 6), argumentandoque, se não há nada fora da consciência, esta deve ser infinita no tempo e noespaço. O primeiro é verdade se entendermos que todo tempo é tempo percebido por alguém, errôneo se inferirmos que esse tempo deve,

necessariamente, abarcar um número infinito de séculos; o segundo é ilícito, jáque, repetidas vezes, Berkeley ( Principles of Human Knowledge, 116; Siris,226) negou o espaço absoluto. Mais indecifrável ainda é o erro em que incorreSchopenhauer (Welt als Wille und Vorstellung , II, 1), ao ensinar que para osidealistas o mundo é um fenômeno cerebral, quando Berkeley já escrevera( Dialogues Between Hylas and Philonus, II): "O cérebro, como coisa sensível,só pode existir na mente. Gostaria de saber se julgas razoável a conjetura deque uma idéia ou coisa na mente ocasione todas as outras. Se responderes que

sim, como explicarias a origem dessa idéia primária chamada cérebro?". Océrebro, efetivamente, não é menos parte do mundo externo que a constelaçãode Centauro.

Berkeley negou que houvesse um objeto por trás das impressões dossentidos; David Hume, que houvesse um sujeito por trás da percepção dasmudanças. Aquele negara a matéria, este negou o espírito; aquele não quiseraque acrescentássemos a noção metafísica de matéria à sucessão de impressões,este não quis que acrescentássemos a noção metafísica de um eu à sucessão de

estados mentais. Tão lógica é essa ampliação dos argumentos de Berkeley queeste já previra, como ressalta Alexander Campbell Fraser, e até procurou negá-la mediante o ergo sum cartesiano: "Se teus princípios forem válidos, tu mesmonão serás mais que um sistema de idéias flutuantes, não sustentadas por nenhuma substância, pois é tão absurdo falar em substância espiritual como emsubstância material", raciocina Hylas, antecipando-se a David Hume, noterceiro e último dos Dialogues. Corrobora Hume (Treatise of Human Nature,I, 4, 6): "Somos uma coleção ou um conjunto de percepções que se sucedem

umas às outras com inconcebível rapidez... A mente é uma espécie de teatro,onde as percepções aparecem ou desaparecem, voltam e se combinam deinfinitas maneiras. A metáfora não deve enganar-nos. As percepçõesconstituem a mente, e não podemos vislumbrar em que lugar ocorrem as cenasnem de que materiais é feito o teatro".

Uma vez aceito o argumento idealista, entendo que é possível – talvezinevitável – ir além. Para Berkeley, o tempo é "a sucessão de idéias que fluiuniformemente e da qual todos os seres participam" ( Principies of Human Knowledge, 98); para Hume, "uma sucessão de momentos indivisíveis"(Treatise of Human Nature, I, 2, 3). Entretanto, negados a matéria e o espírito,que são continuidades, negado também o espaço, não sei com que direito podemos reter essa continuidade que é o tempo. Fora de cada percepção (atual

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ou conjeturai), não existe a matéria; fora de cada estado mental, não existe oespírito; tampouco o tempo há de existir fora de cada instante presente.Tomemos um momento de máxima simplicidade: Verbi gratia, o do sonho deChuang Tzu (Herbert Allen Giles: Chuang Tzu, 1889). Este, há cerca de vinte equatro séculos, sonhou que era uma borboleta e, ao acordar, não sabia se era

um homem que sonhara ser uma borboleta ou uma borboleta que agorasonhava ser um homem. Não consideremos o despertar, consideremos omomento do sonho; ou um de seus momentos. "Sonhei que era uma borboletaque andava pelo ar e que nada sabia de Chuang Tzu", diz o antigo texto. Nuncasaberemos se Chuang Tzu viu um jardim sobre o qual ele parecia voar ou ummóvel triângulo amarelo, que sem dúvida era ele, mas consta-nos que aimagem foi subjetiva, ainda que fornecida pela memória. A doutrina do paralelismo psicofísico julgará que essa imagem deve corresponder a alguma

alteração no sistema nervoso do sonhador; segundo Berkeley, naquelemomento não existia o corpo de Chuang Tzu, nem o negro quarto em que elesonhava, a não ser como percepção na mente divina. Hume simplifica maisainda o ocorrido. Segundo ele, naquele momento o espírito de Chuang Tzu nãoexistia; só existiam as cores do sonho e a certeza de ser uma borboleta. Existiacomo termo momentâneo da "coleção ou conjunto de percepções" que foi, unsquatro séculos antes de Cristo, a mente de Chuang Tzu; existiam como termo nde uma infinita série temporal, entre n - I e n + I. Para o idealismo, não há outra

realidade afora a dos processos mentais; acrescentar à borboleta que se percebeuma borboleta objetiva parece-lhe uma vã duplicação; acrescentar um eu aos processos parece-lhe não menos exorbitante. Entende que houve um sonhar,um perceber, mas não um sonhador, nem sequer um sonho; entende que falar de objetos e de sujeitos é incorrer em uma impura mitologia. Pois bem, se cadaestado psíquico é suficiente, se vinculá-lo a uma circunstância ou a um eu éuma ilícita e ociosa adição, com que direito depois haveremos de impor-lhe umlugar no tempo? Chuang Tzu sonhou que era uma borboleta e durante esse

sonho ele não era Chuang Tzu, era uma borboleta. Como, abolidos o espaço e oeu, vincularemos esses instantes com os do despertar e com o período feudal dahistória chinesa? Isso não quer dizer que nunca saberemos, ao menos de modoaproximado, a data daquele sonho; quer dizer que a fixação cronológica de umevento, de qual quer evento do orbe, é alheia a este, e exterior. Na China, osonho de Chuang Tzu é proverbial; imaginemos que, dentre seus quaseinfinitos leitores, um deles sonha que é uma borboleta e depois que é ChuangTzu. Imaginemos que, por um acaso não impossível, esse sonho repete pontualmente aquele que o mestre sonhou. Postulada essa igualdade, cabe perguntar: esses instantes coincidentes não são o mesmo? Não basta um únicotermo repetido para desbaratar e confundir a história do mundo, para denunciar que tal história não existe?

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 Negar o tempo é duas negações: negar a sucessão dos termos de umasérie, negar o sincronismo dos termos de duas séries. De fato, se cada termo éabsoluto, suas relações se reduzem à consciência de que as relações existem.Um estado precede o outro quando se sabe anterior; um estado de G serácontemporâneo a um estado de H quando souber de sua contemporaneidade.

Contrariamente ao declarado por Schopenhauer 2

em sua tabela de verdadesfundamentais (Welt als Wille und Vorstellung , II, 4), cada fração de tempo não preenche simultaneamente o espaço inteiro, o tempo não é ubíquo. (Claro que,a esta altura da argumentação, o espaço já não existe.)

Meinong, em sua teoria da apreensão, admite a dos objetos imaginários: aquarta dimensão, digamos, ou a estátua sensível de Condillac, ou o animalhipotético de Lotze, ou a raiz quadrada de -I. Se as razões que apontei foremválidas, a este orbe nebuloso também pertencerão a matéria, o eu, o mundo

externo, a história universal, nossas vidas.De resto, a frase negação do tempo é ambígua. Pode significar aeternidade de Platão ou de Boécio e também os dilemas de Sexto Empírico.Este ( Adversus Mathematicos, XI, 197) nega o passado, que já foi, e o futuro,que ainda não é, e contesta que o presente seja divisível ou indivisível. Não éindivisível, porque nesse caso ele não teria princípio que o vinculasse ao passado nem fim que o vinculasse ao futuro, nem sequer meio, pois não hámeio naquilo que carece de princípio e de fim; tampouco é divisível, porque

nesse caso constaria de uma parte que foi e de outra que não é.  Ergo, nãoexiste, mas, como tampouco existem o passado e o porvir, o tempo não existe.F. H. Bradley redescobre e melhora essa perplexidade. Observa ( Appearanceand Reality, IV) que, se o agora for divisível em outros agoras, não será menoscomplicado que o tempo, e, se for indivisível, o tempo será mera relação entrecoisas intemporais. Tais raciocínios, como se vê, negam as partes para depoisnegar o todo; eu rejeito o todo para exaltar cada uma das partes. Pela dialéticade Berkeley e de Hume, cheguei à sentença de Schopenhauer: "A forma da

aparição da vontade é só o presente, não o passado nem o porvir; estes existemapenas para o conceito e pelo encadeamento da consciência, submetida ao princípio da razão. Ninguém viveu no passado, ninguém viverá no futuro: o presente é a forma de toda a vida, é uma possessão que nenhum mal podearrebatar... O tempo é como um círculo a girar indefinidamente: o arco quedesce é o passado, o que sobe é o porvir; no topo, há um ponto indivisível quetoca a tangente e é o agora. Imóvel como a tangente, esse inextenso pontomarca o contato do objeto, cuja forma é o tempo, com o sujeito, que carece deforma, porque não pertence ao conhecível e é prévia condição doconhecimento" (Welt als Wille und Vorstellung , I, 54). Um tratado budista do2  Antes, por Newton, que afirmou: "Cada partícula de espaço é eterna, cada indivisível momento deduração está em toda a parte" ( Principia, III, 42).

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século V, o Visuddhimagga (Caminho da Pureza), ilustra a mesma doutrinacom a mesma figura: "A rigor, a vida de um ser dura o que dura uma idéia.Como uma roda de carruagem, ao rodar, toca a terra em um único ponto, dura avida o que dura uma única idéia" (Radhakrishman:  Indian Philosophy, I, 373).Outros textos budistas dizem que o mundo se aniquila e ressurge seis bilhões e

quinhentos milhões de vezes por dia e que todo homem é uma ilusão,vertiginosamente construída por uma série de homens momentâneos esolitários. "O homem de um momento pretérito – adverte-nos o Caminho da Pureza  – viveu, mas não vive nem viverá; o homem de um momento futuroviverá, mas não viveu nem vive; o homem do momento presente vive, mas nãoviveu nem viverá" (obra citada, I, 407), sentença que podemos comparar comesta de Plutarco ( De E apud Delphos, 18): "O homem de ontem morreu no dehoje, o de hoje morre no de amanhã".

 And yet, and yet ... Negar a sucessão temporal, negar o eu, negar ouniverso astronômico são desesperos aparentes e consolos secretos. Nossodestino (ao contrário do inferno de Swedenborg e do inferno da mitologiatibetana) não é terrível por ser irreal; é terrível porque é irreversível e férreo. Otempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrebata, maseu sou o rio; é um tigre que me despedaça, mas eu sou o tigre; é um fogo queme consome, mas eu sou o fogo. O mundo, infelizmente, é real; eu,infelizmente, sou Borges.

 Freund, es ist auch genug. Im Fall du mehr willst lesen,So geh und werde selbst die Schrift und selbst das Wesen.3

(Angelus Silesius: Cherubinischer Wandersmann, VI, 263, 1675)

3 "Basta, amigo. Se queres ler mais, vai e faze de ti mesmo a escrita e de ti mesmo o ser." (N. da T.)

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SOBRE OS CLÁSSICOS

Escassas disciplinas devem ter mais interesse que a etimologia; isto sedeve às imprevisíveis transformações do sentido primitivo das palavras, aolongo do tempo. Dadas tais transformações, que podem beirar o paradoxal, de

nada ou de muito pouco serve a origem das palavras para a elucidação de umconceito. Saber que, em latim, cálculo significa pedrinha e que os pitagóricosusavam dessas pedrinhas antes da invenção dos números não nos permitedominar os arcanos da álgebra; saber que hipócrita era ator, e  persona,máscara, não é um instrumento válido para o estudo da ética. De modosemelhante, para fixar o que hoje entendemos por clássico, é inútil saber queesse adjetivo advém do latim classis, frota, que depois tomaria o sentido deordem. (Lembremos, de passagem, a formação análoga de ship-shape.)

O que é, agora, um livro clássico? Tenho ao alcance da mão as definiçõesde Eliot, de Arnold e de Sainte-Beuve, sem dúvida razoáveis e luminosas, emuito me agradaria concordar com esses ilustres autores, mas não osconsultarei. Acabo de completar sessenta e tantos anos; em minha idade, ascoincidências ou novidades importam menos que aquilo que julgamosverdadeiro. Limitar-me-ei, então, a expor o que pensei sobre esse ponto.

Meu primeiro estímulo foi uma História da Literatura Chinesa (1901), deHerbert Allen Giles. Em seu segundo capítulo, li que um dos cinco textos

canônicos editados por Confúcio é o  Livro das Mutações, ou I Ching , feito de64 hexagramas que esgotam as possíveis combinações de seis linhas truncadasou inteiras. Um dos esquemas, por exemplo, consta de duas linhas inteiras, umatruncada e três inteiras, dispostas verticalmente. Um imperador pré-histórico os

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descobriu na carapaça de uma das tartarugas sagradas. Leibniz acreditou ver nos hexagramas um sistema binário de numeração; outros, uma filosofiaenigmática; outros, como Wilhelm, um instrumento para a adivinhação dofuturo, já que as 64 figuras correspondem às 64 fases de qualquer empreendimento ou processo; outros, um vocabulário de certa tribo; outros, um

calendário. Lembro-me de que Xul Solar costumava reconstruir esse texto com palitos ou fósforos. Para os estrangeiros, o Livro das Mutações corre o risco de parecer uma simples chinoiserie; mas ele foi devotamente lido e relido por gerações milenares de homens cultíssimos, que continuarão a lê-lo. Confúciodeclarou a seus discípulos que, se o destino lhe concedesse mais cem anos devida, ele consagraria a metade ao estudo do livro e seus comentários, ou asas.

Deliberadamente escolhi um exemplo extremo, uma leitura que demandaum ato de fé. Chego, agora, a minha tese. Clássico é aquele livro que uma

nação, ou um grupo de nações, ou o longo tempo decidiram ler como se emsuas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e passívelde interpretações sem fim. Previsivelmente, essas decisões variam. Paraalemães e austríacos, o Fausto é uma obra genial; para outros, uma das maisfamosas formas do tédio, como o segundo Paraíso de Milton ou a obra deRabelais. Livros como o de Jó,  A Divina Comédia,  Macbeth (e, para mim,algumas das sagas do Norte) prometem uma longa imortalidade, mas nadasabemos do futuro, salvo que diferirá do presente. Uma preferência pode muito

 bem ser uma superstição. Não tenho vocação de iconoclasta. Por volta de 1930, sob a influência deMacedonio Fernández, eu acreditava que a beleza era privilégio de uns poucosautores; agora sei que é comum e que está a nossa espreita nas casuais páginasdo medíocre ou em uri diálogo de rua. Assim, embora meu desconhecimentodas letras malaias ou húngaras seja completo, tenho certeza de que, se o tempome propiciasse a ocasião de seu estudo, encontraria nelas todos os alimentosque o espírito requer. Além das barreiras lingüísticas, interferem as políticas ou

geográficas. Burns é um clássico na Escócia; ao sul do Tweed, interessa menosque Dunbar ou que Stevenson. A glória de um poeta depende, em suma, daexcitação ou da apatia das gerações de homens anônimos que a põem à prova,na solidão de suas bibliotecas.

As emoções que a literatura suscita são, talvez, eternas, mas os meiosdevem variar constantemente, mesmo que de modo levíssimo, para não perder sua virtude. Gastam-se à medida que o leitor os reconhece. Daí o perigo deafirmar que existem obras clássicas, e que para sempre o serão.

Cada qual descrê de sua arte e de seus artifícios. Eu, que me resignei a pôr em dúvida a indefinida perduração de Voltaire ou de Shakespeare, acredito

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(nesta tarde de um dos últimos dias de 1965)1 na de Schopenhauer e na deBerkeley.

Clássico não é um livro (repito) que necessariamente possui estes ouaqueles méritos; é um livro que as gerações de homens, urgidas por razõesdiversas, lêem com prévio fervor e com uma misteriosa lealdade.

EPÍLOGO

 Duas tendências descobri, ao revisar as provas, nos miscelâneostrabalhos deste volume.

Uma, para avaliar as idéias religiosas ou filosóficas por seu valor estético e até pelo que encerram de singular e de maravilhoso. Isso talvez sejaindício de um ceticismo essencial. Outra, para pressupor (e verificar) que onúmero de fábulas ou metáforas de que é capaz a imaginação dos homens élimitado, mas que essas contadas invenções podem ser tudo para todos, comoo Apóstolo.

Quero também aproveitar esta página para retificar um erro. Em umensaio, atribuí a Bacon a idéia de que Deus compôs dois livros: o mundo e aSagrada Escritura. Bacon limitou-se a repetir um lugar-comum escolástico;no Breviloquium de São Boaventura – obra do século XIII – lê-se: " Creaturamundi est quasi quidam líber in quo legitur Trintas".1 Ver Étienne Gilson: LaPhilosophie au Moyen Âge , p. 442, 464.

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 Esta versão do ensaio foi publicada na revista Sur , de janeiro-abril de 1966, e incorporada às ObrasCompletas de 1974. (N. do Coord.)1 "O mundo criado é como um livro em que se lê a Trindade." (N. da T.)

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J. L. B.

 Buenos Aires, 25 de junho de 1952.

OUTRAS INQUISIÇÕES (1952)

A muralha e os livrosA esfera de PascalA flor de Coleridge

O sonho de ColeridgeO tempo e J. W. DunneA Criação e P H. GosseOs alarmes do doutor Américo Castro Nosso pobre individualismoQuevedoMagias parciais do Quixote

 Nathaniel HawthorneValéry como símboloO enigma de Edward FitzGeraldSobre Oscar WildeSobre ChestertonO primeiro WellsO Biathanatos

PascalO idioma analítico de John WilkinsKafka e seus precursores

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Do culto aos livrosO rouxinol de KeatsO espelho dos enigmasDois livrosAnotação ao 23 de agosto de 1944Sobre o Vathek de William BeckfordSobre The Purple Land De alguém a ninguémFormas de uma lendaDas alegorias aos romances Nota sobre (para) Bernard ShawHistória dos ecos de um nome

O pudor da história Nova refutação do tempoSobre os clássicosEpílogo