Outraspalavras.net-A Concessão Dos Serviços Públicos e a Mais-Valia Social

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outraspalavras.net http://outraspalavras.net/brasil/a-concessao-dos-servicos-publicos-e-a-mais-valia-social/ Célio Turino A concessão dos serviços públicos e a mais-valia social Impasse ferroviário é símbolo dos equívocos do novo plano. Governo trata com leviandade obras imensas, como Trem-bala e Transoceânica, enquanto mantém inacabadas a Transnordestina, a Ferroeste, a Ferrovia Norte-Sul, e o Anel Ferroviário de São Paulo Por que o novo pacote de infraestrutura do governo Dilma retrocede, em favores a grandes grupos privados, aos tempos de FHC. Quais as alternativas Por Célio Turino Recentemente o governo federal anunciou mais um processo de concessão de serviços públicos à iniciativa privada para rodovias, aeroportos, portos e ferrovias. Cabe à cidadania avaliar as implicações deste novo Plano de Investimentos em Logística, bem como do anterior, lançado há três anos: sua eficácia, competência na execução, motivações e consequências. Antes precisamos compreender claramente a diferença entre Concessão de serviços públicos à iniciativa privada e Privatização de serviços públicos, se é que ela existe. Em linhas gerais: na privatização o patrimônio é passado definitivamente para a iniciativa privada (as instalações de uma siderúrgica ou fábrica de aviões, por exemplo); na concessão, há autorização para exploração do serviço e repasse das instalações necessárias por período de tempo (vinte, trinta anos ou mais), que depois voltam a compor o patrimônio público, incluindo investimentos realizados no decorrer da concessão. No caso de serviços públicos, a diferença de nomenclatura, se privatização ou concessão, é meramente semântica, ou política, pois, na legislação brasileira, não há possibilidade de transferência definitiva de serviços públicos, de modo que o repasse, leve o nome de privatização ou concessão, será sempre temporário. Foi assim nos contratos de energia elétrica e iluminação ao final do século XIX, com a Light (uma concessão de 80

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A Concessão Dos Serviços Públicos e a Mais-Valia Social

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    ClioTurino

    A concesso dos servios pblicos e a mais-valia social

    Impasse ferrovirio smbolo dos equvocos do novo plano. Governo trata com leviandade obras imensas,como Trem-bala e Transocenica, enquanto mantm inacabadas a Transnordestina, a Ferroeste, a Ferrovia

    Norte-Sul, e o Anel Ferrovirio de So Paulo

    Por que o novo pacote de infraestrutura do governo Dilma retrocede, em favores a grandes grupos privados, aostempos de FHC. Quais as alternativas

    Por Clio Turino

    Recentemente o governo federal anunciou mais um processo de concesso de servios pblicos iniciativa privadapara rodovias, aeroportos, portos e ferrovias. Cabe cidadania avaliar as implicaes deste novo Plano deInvestimentos em Logstica, bem como do anterior, lanado h trs anos: sua eficcia, competncia na execuo,motivaes e consequncias.

    Antes precisamos compreender claramente a diferena entre Concesso de servios pblicos iniciativa privada ePrivatizao de servios pblicos, se que ela existe. Em linhas gerais: na privatizao o patrimnio passadodefinitivamente para a iniciativa privada (as instalaes de uma siderrgica ou fbrica de avies, por exemplo); naconcesso, h autorizao para explorao do servio e repasse das instalaes necessrias por perodo de tempo(vinte, trinta anos ou mais), que depois voltam a compor o patrimnio pblico, incluindo investimentos realizados nodecorrer da concesso. No caso de servios pblicos, a diferena de nomenclatura, se privatizao ou concesso, meramente semntica, ou poltica, pois, na legislao brasileira, no h possibilidade de transferncia definitiva deservios pblicos, de modo que o repasse, leve o nome de privatizao ou concesso, ser sempre temporrio.

    Foi assim nos contratos de energia eltrica e iluminao ao final do sculo XIX, com a Light (uma concesso de 80

  • anos) ou operao de bondes urbanos, como tambm assim nos contratos atuais, com as rodovias paulistas ouusinas hidreltricas, estejam sob controle de empresa estatal ou no. Ou seja, esta discusso no passa de umaquerela partidria, em mais um exemplo de novalngua e duplipensar, conceitos muito bem exemplificados nolivro 1984, de George Orwell e bastante presentes no ambiente poltico atual; se for executada por governo tucano privatizao; se o governo for petista concesso. O fato inescapvel que, durante o perodo daconcesso/privatizao, o patrimnio pblico e servios decorrentes estaro sob a lgica do controle privado e daacumulao do capital, levem que nome for.

    Mas mesmo no modelo de concesso/privatizao, h diferenas de fundo. Com o novo plano do governo federal, asconcesses so por outorga onerosa, retornando ao modelo do governo FHC e voltando atrs no modelo em quevencia o leilo de concesso aquele que oferecesse menor custo pelo servio, seja na forma de pedgio, preo outarifas. Agora, alm dos investimentos futuros e despesas com manuteno, caber ao concessionrio o pagamentode um valor pelo direito de explorao do servio e pelas instalaes recebidas (um aeroporto, uma estrada jconstruda). Com este modelo, haver o encarecimento no valor de pedgio, servios de aeroportos, portos eferrovias, gerando inflao futura, de tipo estrutural.

    Ou seja: se, de um lado as concesses vo melhorar a eficincia na infraestrutura, de outro vo elevar o custo delogstica; como este custo incide sobre o preo final de praticamente todos produtos e servios, este novo modelo deconcesso ir neutralizar a reduo de custo que seria decorrente deste plano de investimentos. Pior, a destinaodo dinheiro arrecadado com a outorga ir para o pagamento de juros e no para novos investimentos eminfraestrutura de transportes, perpetuando gargalos de eficincia neste setor. Como exemplo, a privatizao doaeroporto do Galeo, quando o governo arrecadou R$ 15 bilhes em 2014, um valor substancial, que poderia tersido aplicado em aeroportos de menor interesse por parte de investidores privados, mas que, em sua quasetotalidade, virou p no altar dos juros altos.

    Outra questo bastante sria diz respeito bitributao. Todo este patrimnio instalado, que ser outorgado iniciativa privada, foi construdo a partir de impostos arrecadados por toda a sociedade, por anos a fio, atravessandogeraes de brasileiros. Ou seja, j est pago (ou seguimos pagando atravs de juros sobre emprstimos a perderde vista). Com a outorga voltaremos a pagar pelo que j pagamos, uma vez que no clculo dos pedgios e servioseste valor tambm estar includo. Isto ilegal! Mas acontece porque a bitributao vem disfarada de pagamentode servios privados e no na forma de impostos. E, lembrando, no prtica de um s governo ou partido, mas detodos os que esto no poder e sempre em benefcio dos bancos e credores da dvida pblica. Se no houvesse ainteno sub-reptcia em utilizar o Plano de Logstica para melhorar o supervit primrio, a forma das concessesseria outra, unindo, em um mesmo lote, servios mais lucrativos junto a outros com menor potencial de retorno e ocusto da tarifa futura seria menor; por exemplo: colocar no mesmo lote de leilo os aeroportos de Fortaleza, Juazeirodo Norte e Teresina, algo assim. Ou seja, o governo, ao invs de atrair recursos para a debilitada infraestrutura doBrasil, est retirando recursos que deveriam ser aplicados exclusivamente em logstica.

    Admitindo-se que, no atual momento, a nica alternativa possvel para melhorar a infraestrutura brasileira fosse esteprocesso de concesso ou parceria com a iniciativa privada, seja para investimentos, gerenciamento de obras emanuteno futura ainda assim, um governo comprometido com a cidadania deveria agir de outra maneira.

    Primeiro. Buscar eficincia na gesto de portos, aeroportos, rodovias e ferrovias, bem como de terminais modais aoseu redor. Isso pressupe uma gesto diferente da que tem sido feita at o momento. O mais bvio colocar todosos modais sob um nico ministrio, no faz sentido retalhar a gesto de transportes no Brasil apenas paracontemplar mais partidos e aliados polticos. Isso apequenar a poltica pblica ao nvel de rodap, com sriosdanos ao pas. Como se no bastasse este toma l d c da poltica, o governo ainda cria a EPL (Empresa dePlanejamento e Logstica), que deveria gerenciar a logstica brasileira, notadamente ferroviria. Um desastre. Alm

  • de no ter gerenciado nada, ainda houve o modelo de concesses ferrovirias que inviabilizou ainda mais aretomada ferroviria no Brasil. Um projeto esdrxulo, que dividia a operao entre empresa gestora das linhas eoutras diferentes para gesto dos trens, alm de obrigar o governo a comprar 100% da demanda potencial daestrada, mesmo sem que houvesse mercadoria suficiente para transportar. H dois anos escrevi uma crnica sobreeste modelo que no parava em p e que, de fato, no deu resultado algum. Com isso, mais atrasos na necessriarecomposio do sistema ferrovirio. A EPL uma empresa que j teve trs presidentes em trs anos, contaatualmente com mais de 160 funcionrios (folha de pagamentos mensal prxima de R$ 4 milhes), trabalhando emsede alugada ao custo R$ 500 mil/ms. Um contrasenso, ainda mais quando sabemos que sequer houveparticipao da empresa no planejamento do novo Plano de Logstica lanado pelo governo.

    Segundo. Avaliao e acompanhamento do primeiro plano de logstica. H vrios gargalos e equvocos (para dizer omnimo). A comear pelo trem-bala de R$ 36 bilhes, que at hoje ningum sabe, ningum viu. E no contentes,agora apresentam a proposta da ferrovia Biocenica (ligando o Brasil ao Pacfico, atravs da cordilheira dos Andes),que mal passa de uma inteno, em que o trajeto um simples riscar de caneta no mapa, sem qualquer estudoprvio (sugesto: coloquem a EPL para trabalhar no projeto). Mas j tem custo: R$ 40 bilhes! No seria maisprudente e honesto fazer antes uma boa avaliao do primeiro Plano, procurando compreender os erros e corrigi-los, para s depois lanar um novo Plano? Bem como concluir obras inacabadas, como a Transnordestina, aFerroeste, ligando Tocantins e oeste da Bahia ao porto de Ilhus; ou a Ferrovia Norte-Sul, que j completa trsdcadas e segue inacabada; ou o Anel Ferrovirio de So Paulo, que, ao custo de R$ 1 bilho poderia destravar alogstica no Sudeste, uma vez que atualmente os trens de carga precisam compartilhar os mesmos trilhos dotransporte metropolitano de passageiros, devendo trafegar somente nas madrugadas e a baixssima velocidade?

    Tambm no faz sentido o governo continuar administrando pequenos aeroportos, como o aeroclube dos Amarais,em Campinas, ou no balnerio de Ubatuba, nem gerir a concesso dos mesmos; melhor seria repassar-losdiretamente para estados e municpios, cabendo a estes decidir entre gesto direta ou concesso. Mesmo amanuteno de estradas federais: o governo federal deveria se responsabilizar por construo de estradas oureforma completa das mesmas; mas capinar mato, manuteno e tapa buracos gerenciados a partir de Braslia? Ocaminho mais eficiente seria repassar a manuteno para os estados, incluindo um valor estimado por quilometro deestrada (quando no houver concesso ou pedgio) e estes decidiriam o melhor caminho, se manuteno direta ouconcesso privada. Afinal, descentralizar tambm resulta em eficincia. Mas exige desapego, colocando sempre ointeresse pblico em primeiro lugar.

    Terceiro. Em tempos de recesso e vacas magras, qualquer investimento sempre bem vindo; mas,convenhamos, o valor anunciado pelo governo de R$ 198 bilhes tem muito mais de marquetagem (e j meio semcredibilidade) que realizao efetiva. A comear pelos R$ 40 bilhes em uma ferrovia que sequer conta com estudosiniciais. Do valor total anunciado, se tudo der certo, o valor efetivamente a ser investido durante o governo Dilmaser de R$ 69 bilhes, por coincidncia o mesmo valor cortado no oramento da Unio em 2015. Distribudo em trsanos, este valor equivale a R$ 23 bilhes (se o governo for competente e tudo correr bem), ou pouco menos que0,4% do PIB. Ou seja, muito pouco para significar uma virada na curva descendente da economia brasileira.

    Concluses. Privatizar com dinheiro pblico uma excrescncia que s acontece no Brasil. Se o governo no temrecursos para investimentos e necessita de capital privado, que tome medidas para que este aporte acontea defato. Ou pare de maquiar a situao. Para esta srie de concesses/privatizaes, afirma-se que no faltar dinheiro(mas falta para sade, educao) e que o BNDES emprestar at 70% do valor total (para no falar de Caixa,Banco do Brasil, que tambm sero acionados em socorro ao capital privado). Cad o dinheiro privado? Admitindo-se que este dinheiro privado no tenha interesse em investir (afinal, muito mais vantajoso aplicar em ttulospblicos, com retorno seguro de 13,75% ao ano), mas que a gesto privada seria mais eficaz; neste caso o caminhodeveria ser a realizao de PPPs (Parceria Pblico-Privada). O BNDES at poderia entrar com 70%, mas noemprestando dinheiro para que empresas privadas se apresentem como donas do capital e sim como parceirodireto, como dono do capital, via BNDES-Par (Participaes). Nesta forma o investidor privado seria remuneradopelo efetivo aporte de capital prprio; mas tambm o BNDES-Par (ou o prprio governo, de forma direta) receberiam

  • pelo seu aporte e no sobe emprstimos a juros subsidiados. E j que o objetivo anunciado atrair capital privado,no modelo de PPP, venceria o leilo aquele que aportasse mais recursos prprios, liberando o BNDES e o governodesta forma de subsdio e para investir em outras reas.

    Para o pblico leigo, por que este mero detalhe no um simples detalhe? O clculo deve ser feito sobre o valor daremunerao futura, que estar embutido nas tarifas e pedgios e que ser pago por toda a sociedade. Exemplo:uma empresa que obteve concesso capta recursos no BNDES, a juros de, no mximo 6% (o governo empresta poreste valor favorecido o mesmo dinheiro que captou pagando juros de 13,75%) e ser remunerada por um capital queoriginalmente no dela e sim do pblico. Em clculo rpido: com a composio de custo da tarifa ou pedgioprevendo retorno anual de 8% (pode ser mais) sobre o capital e o concessionrio pagando juros de 6% (pode sermenos) ao BNDES, h um embolso extra de 2%; 2% em contrato de longo prazo (30/35 anos) equivalem a quase100% sobre o capital inicial. Ou seja, no modelo anunciado, o concessionrio no desembolsa nada, ou muitopouco, assim como recupera todo o valor de pagamento do emprstimo e ainda ganha um sobrelucro equivalente aovalor total da obra, sempre na casa dos bilhes. Afora outras remuneraes embutidas no clculo das tarifas, todaspagas pela sociedade.

    Esta diferena no sobrelucro a mais-valia social. No sculo XIX Karl Marx desvendou o mecanismo pelo qual osdonos do capital se apropriavam da renda do trabalho, a este sobrelucro (no ao lucro justo ou outras formas deganho, mas a esta apropriao de sobretrabalho), ele deu o nome de mais-valia. Agora estamos diante de uma novaforma de mais-valia, com muito mais escala, para alm do ambiente de uma fbrica: a mais-valia social. Talvez oBrasil seja o pas que a pratica de forma mais descarada. Com a mais-valia social, a sobrerrenda resultante daapropriao indevida do esforo de toda a sociedade (e no somente na relao direta entre patro e empregado),em que todos so tributrios para assegurar ganhos imensos para uma minscula minoria. A mais-valia social realizada na forma de juros exorbitantes do capital financeiro e via concesses/privatizaes de servios pblicos sempre com o beneplcito do Estado e governos a servio desta nova forma de capitalismo. Esta a realidade queestamos vivendo no Brasil.

    A concesso dos servios pblicos e a mais-valia social