Outraspalavras.net-Tiros Em Junho de 2013 a Ordem Partiu de Quem

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outraspalavras.net http://outraspalavras.net/brasil/a-ordem-partiu-de-quem/ Tadeu Breda Tiros em Junho de 2013: “a ordem partiu de quem?” Dois anos depois de perder um olho, alvejado pela PM, fotógrafo Sérgio Silva propõe reflexão sobre violência policial contra as manifestações sociais e as periferias Por Tadeu Breda Sobre o Tema: Sérgio e sua lembrancinha Sete meses depois de ter olho estraçalhado pela PM paulista, fotógrafo conta seu novo quotidiano e sonha com país sem bala de borracha Por Tadeu Breda Sérgio deixou-se levar pela emoção quando invadiu a cena, “Seu filho da puta!”, gritando. Tinha seu pesado instrumento de trabalho pendurado no pescoço. “Não está vendo que isso aqui é uma câmera?!”, berrou, enquanto o policial de mentira, atônito, se encolhia na cadeira. Há exatamente dois anos, naquela mesma esquina, o policial de verdade não viu que Sérgio trazia nas mãos uma máquina que produz nada além de imagens digitais. Não quis ver: dentre os vários tiros de bala de borracha que disparou, um bastou para destruir o olho esquerdo do fotógrafo. Em cheio. Até agora não houve indenização, responsabilização e muito menos punição ao culpado.Ainda não se sabe quem puxou o gatilho nem quem deu a ordem para reprimir com tamanha violência os manifestantes que ganharam as ruas do centro de São Paulo no início da noite de 13 de junho de 2013. Na falta de justiça, resta a memória. Para relembrar tão infame efeméride, o grupo de teatro Companhia do Ernesto improvisou a encenação da peça A ordem partiu de quem? no cruzamento da Rua da Consolação com a Rua Maria Antonia. Cerca de cem pessoas trocaram os embalos individuais de sábado à noite para, juntos, descomemorar o episódio. “Bala de borracha cega, mas não cala”, costumava dizer Sérgio nos primeiros meses de sua parcial cegueira. Desta vez, não se ouviu o slogan quando tomou o microfone: estava implícito. “Estão se completando dois anos desse ataque infeliz de um governo que cada vez tem colocado o povo mais pra baixo. Mas a gente vai se levantar”, prometeu. O ataque a que Sérgio se refere marcou o quarto dia de protestos convocados pelo Movimento Passe Livre (MPL)

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Tiros Em Junho de 2013: a Ordem Partiu de Quem?

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    Tadeu Breda

    Tiros em Junho de 2013: a ordem partiu de quem?

    Dois anos depois de perder um olho, alvejado pela PM, fotgrafo Srgio Silva prope reflexo sobre violncia policialcontra as manifestaes sociais e as periferias

    Por Tadeu Breda

    Sobre o Tema:Srgio e sua lembrancinhaSete meses depois de ter olho estraalhado pela PM paulista, fotgrafo conta seu novo quotidiano e sonha com passem bala de borrachaPor Tadeu Breda

    Srgio deixou-se levar pela emoo quando invadiu a cena, Seu filho da puta!, gritando. Tinha seu pesadoinstrumento de trabalho pendurado no pescoo. No est vendo que isso aqui uma cmera?!, berrou, enquanto opolicial de mentira, atnito, se encolhia na cadeira. H exatamente dois anos, naquela mesma esquina, o policial deverdade no viu que Srgio trazia nas mos uma mquina que produz nada alm de imagens digitais. No quis ver:dentre os vrios tiros de bala de borracha que disparou, um bastou para destruir o olho esquerdo do fotgrafo. Emcheio.

    At agora no houve indenizao, responsabilizao e muito menos punio ao culpado.Ainda no se sabe quempuxou o gatilho nem quem deu a ordem para reprimir com tamanha violncia os manifestantes que ganharam asruas do centro de So Paulo no incio da noite de 13 de junho de 2013. Na falta de justia, resta a memria. Pararelembrar to infame efemride, o grupo de teatro Companhia do Ernesto improvisou a encenao da pea A ordempartiu de quem? no cruzamento da Rua da Consolao com a Rua Maria Antonia.

    Cerca de cem pessoas trocaram os embalos individuais de sbado noite para, juntos, descomemorar o episdio.Bala de borracha cega, mas no cala, costumava dizer Srgio nos primeiros meses de sua parcial cegueira. Destavez, no se ouviu o slogan quando tomou o microfone: estava implcito. Esto se completando dois anos desseataque infeliz de um governo que cada vez tem colocado o povo mais pra baixo. Mas a gente vai se levantar,prometeu.

    O ataque a que Srgio se refere marcou o quarto dia de protestos convocados pelo Movimento Passe Livre (MPL)

  • em 2013, exigindo a revogao do reajuste na tarifa de transporte pblico em So Paulo: graas a uma aocoordenada da prefeitura e do governo do estado, o bilhete havia subido de R$ 3 para R$ 3,20. O descontentamentodepois se espalharia pelo pas, numa rebelio popular que produziu manifestaes em mais de 120 cidades. Foramas Jornadas de Junho.

    Muita gente acredita que as cenas de violncia vistas no dia 13, em So Paulo, quando Srgio perdeu o olho,determinaram a massificao e nacionalizao dos protestos. Outros, no. Eu no: para mim, o repentino apoio dosgrandes meios de comunicao, convocando as pessoas s ruas enquanto desvirtuava as razes do movimento, foio que mais contribuiu para aquela avalanche de gente. Seja como for, a represso foi intensa.

    Pelo menos 150 cidados, entre manifestantes, jornalistas e transeuntes, sofreram algum tipo de violnciaperpetrada pela Polcia Militar de Geraldo Alckmin (PSDB) naquela noite. As imagens das agresses ganharam asredes em fotos e vdeos: lambadas de cassetete no rosto e nas costas, surras covardes, assdio sexual, ameaasde estupro, estilhaos de bombas, sufocamento por gs e, claro, tiros de borracha. Dois retratos chocaramsobremaneira: a da reprter da TV Folha, Giuliana Vallone, sentada na sarjeta com o olho invisvel atrs de umapelota enegrecida de sangue pisado; e a de Srgio, numa cadeira de rodas, com as plpebras cerradas e o fatdicodiagnstico.

    Foi uma noite de dores indizveis, me relatou, quando conversamos pela primeira vez, ainda em 2013, poucosmeses depois. Quase todos os que voltaram esquina, no ltimo sbado, tm relatos pessoais da brutalidadepolicial. Poucos, porm, testemunharam o momento em que o fotgrafo foi atingido: um instante depois de fazeruma foto, assim que baixou a cmera. Ainda menos gente presenciou o martrio de Srgio. Quem viu e socorreu foi Severino Honorato, professor de uma escola pblica na zona sul da capital, que estava na manifestao juntocom companheiros do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de So Paulo (Apeoesp).

    Ele gritava muito, Meu olho! Meu olho!, lembrou Severino, numa entrevista que fizemos h quase dois anos. Meuolho t furado! Me ajuda! Atendendo aos pedidos desesperados, Severino abraou seu novo amigo e o levou paralonge da truculncia policial. Caminharam at o final da Rua Caio Prado, desceram um escado e subiram a avenidaque d nome ao Hospital Nove de Julho. O trnsito estava parado, invivel pegar um txi. O jeito era ir a p. Amaratona se estendeu por interminveis 40 minutos.

    Apoiado em Severino, o fotgrafo teve que parar vrias vezes para vomitar. O gs havia ressecado sua garganta. Agarrafinha dgua que haviam comprado num posto de gasolina, logo no incio da via crucis, no fora preo para asreaes qumicas da fumaa. Srgio tinha dificuldades para respirar. Talvez por isso guarde poucas lembranas da

  • caminhada: conversas monossilbicas com Severino, cansao, desespero, agonia. A vontade que eu tinha era deme jogar no cho para ver se toda aquela dor diminua.

    Hoje no di mais. No fisicamente. Mas a memria ainda lateja. Quando se fala em 13 de junho, a primeira coisaque me vem cabea a dor que senti quando tomei o tiro, me disse Srgio, dois dias antes da encenao dapea. Outras lembranas, continua, vo aparecendo mais lentamente. H pouco tempo me lembrei que, quandotentei abrir o olho, logo depois de ser atingido, enxerguei o cho. Foi a ltima imagem registrada pela pupila que jno existe: o lampejo distorcido de uma viso que, arrebentada pelo tiro, teimava seguir enxergando. Foi muitorpido: o cho e, depois, a escurido total.

    Ento vieram os curativos, incontveis; as cirurgias, duas; e a prtese, definitiva, que hoje disfara bastante bem adeficincia visual. Tal como prometeram os mdicos, a bolinha sinttica que Srgio tem no lugar do olho deixou-seaderir pelos nervos pticos que se ligavam ao antigo rgo e se mexe quase que naturalmente, acompanhando omovimento da vista direita.

    Em nosso ltimo caf, Srgio conseguiu, sem maiores cerimnias, despejar o acar diretamente na xcara de caf:no derramou os cristaizinhos brancos pela mesa, como da primeira vez. Chegou a bater com a mo no gravadorque registrava sua voz, como na outra ocasio, mas de raspo, sem derrub-lo. Atravessar a rua, hoje, menosdifcil do que outrora, porm ainda no chega a ser moleza. No mais propriamente um medo, mas uma atenoredobrada, que me acompanha em tudo o que vou fazer, explica. No fao mais nada no impulso.

    O passar dos dias levou Srgio a retomar as fotografias de manifestaes, ao contrrio do que imaginava acontecerto cedo. Em 12 de abril, integrou a fora-tarefa jornalstica que cobriu uma srie de ocupaes realizada pelaFrente de Luta por Moradia (FLM) em prdios abandonados do centro de So Paulo. Houve ao policial onde euestava e a polcia jogou uma bomba, diz, falando do receio que desde ento sente ao ficar perto da Polcia Militar.Principalmente quando estou com uma cmera na mo.

    Assim como muitos profissionais de comunicao, e com mais motivos, Srgio ficou com a impresso de que aimprensa uma ameaa para as tropas repressivas. A tenso estava presente, reconhece. Devagar, aos poucos,estou voltando a me colocar em situaes que pra mim so muito difceis. Mas quero faz-las, mesmo enxergandocom um olho s.

    O tempo pode ser um bom amigo da recuperao fsica, mas nem tanto da volta por cima. Srgio se esfora parano deixar a peteca cair. Nas ltimas semanas, e por vrias vezes, pensou ficar na sua e deixar a data passar embranco. Fao, no fao, fao, no fao, questionou-se. Decidi fazer. Pelo menos reno pessoas que gostam demim. como se 13 de junho fosse seu segundo aniversrio, n?, perguntei. , respondeu Srgio, que completa 34anos em outubro. Mais ou menos isso.

    Quando se passaram seis meses do dia em que perdeu a viso, o fotgrafo afixou lambe-lambe com uma foto de simesmo na banca de jornais que fica bem na esquina onde levou o tiro. Quando o ferimento fez um ano, Srgioinaugurou a exposio Piratas Urbanos, com retratos de amigos, familiares, colegas de profisso e personalidadesescondendo a vista esquerda com um tapa-olho bucaneiro. Depois de ficarem em exposio em Pinheiros, na zonaoeste de So Paulo, as imagens foram exibidas no Vale Anhangaba, no centro. Agora, escolheu uma pea deteatro.

    A arte muito sincera, avalia, ao explicar sua preferncia por marcar a data do olho perdido com manifestaesartsticas. A arte encurta o dilogo com as pessoas. Tudo fica mais compreensvel e faz mais sentido, exatamentepor causa dessa honestidade. Talvez pouca gente tivesse se emocionado com o relato de Srgio sobre o dia emque perdeu o olho, a dor da mutilao e o sofrimento da recuperao. Eu nunca chorei ao ouvi-lo mas v-lodesabafar, em cena, contra um policial fictcio, foi arrebatador.

    A questo no minha histria pessoal, mas uma discusso sobre o que levou com que eu fosse atingido por umabala de borracha, afirma e explica por que organiza eventos para rememorar o dia 13 de junho. Me sinto na

  • obrigao e com vontade de me manifestar, de falar e de fazer com que as pessoas conheam o episdio.

    Srgio tira energia de uma conversa que teve com Alex Silveira, fotgrafo que perdeu 85% da viso do olhoesquerdo em 2000 ao cobrir uma greve de professores no centro de So Paulo. Foi atingido pela mesma bala deborracha disparada pela mesma polcia. Quando nos encontramos, ele me disse: Srgio, se prepara, porque suahistria vai cair no esquecimento. Foi isso que aconteceu comigo, relata. Foi dolorido ouvi-lo, mas ele estavasendo realista. Ento pensei: Isso no pode acontecer de novo, no pode ser mais uma histria de violao aosdireitos humanos a passar impune.

    Srgio gostaria que a memria da represso de 13 de junho estivesse sempre viva na cabea das pessoas. Massabe que no tem sido assim. Logo depois de haver perdido a viso, e de a bala de borracha ter feito centenas devtimas menos graves ao redor do pas, houve algumas discusses sobre a proibio do artefato. Eu tinha muitaesperana que a prpria polcia adotaria outro tipo de postura, que haveria mais discusso sobre a desmilitarizaoda PM, lembra. At aconteceram algumas coisas, mas foi s no calor do momento.

    Aps as jornadas repressivas de 2013, o governo do estado de So Paulo baixou uma norma impedindo a polcia deempregar as chamadas balas de elastmero contra manifestantes, mas voltou atrs logo em seguida, dizendo que ocrescimento da ttica black bloc bode expiatrio da vez demandava respostas enrgicas do poder pblico. Umprojeto de lei foi apresentado ao Congresso para proibir o uso dos projteis contra manifestantes: no avanou.Outros dois textos, com os mesmos propsitos, tramitaram pela Assembleia Legislativa de So Paulo. Um anodepois, a discusso ainda estava viva, lembra. Um dos projetos foi aprovado pelos deputados estaduais, masacabou sendo vetado pelo governador. A acabou toda a discusso.

    Fora dos palcios, Srgio conseguiu reunir mais de 45 mil adeses a um abaixo-assinado pedindo a proibio dosprojteis de borracha. Chegou a reunir-se a portas fechadas com Fernando Grella, ento secretrio de SeguranaPblica de So Paulo, para entregar-lhe pessoalmente a petio. Em troca, recebeu nada alm de promessasvazias. Depois de junho vimos muitas outras cenas de abuso policial, continua. Nas manifestaes contra a Copado Mundo, houve mais uma pessoa que perdeu a viso foi atingida por um estilhao de bomba.

    A amnsia coletiva existe, conclui Srgio. Com uma importante ressalva: Uma parte das pessoas no esquece. Ofotgrafo ainda se surpreende quando encontra gente que nunca viu na vida, mas que conhece a histria daviolncia que sofreu. Outro dia um rapaz passou de carro e buzinou pra mim. Eu no entendi. Perguntei: comigo?Ele disse que sim e tapou um dos olhos, conta. So pessoas que fazem questo de me dizer que lembram o queaconteceu.

    Ressignificando datas, dores e sensaes, Srgio procura encontrar combustvel na frustrao que o acompanha.Se nada mudou quanto aos mtodos repressivos do Estado em manifestaes, isso mais um sinal do desrespeitosistemtico aos direitos humanos que vigora no pas. a realidade que vivemos, argumenta, e o peso dessarealidade me motiva a trabalhar. Mudana. O fotgrafo quer mudana. At porque, pouco a pouco, vai sentindo napele as deficincias do sistema. O processo que movi contra o governo de So Paulo est debaixo da bunda dealgum, lamenta, contando que, dois anos depois, no recebeu nenhuma manifestao do Judicirio.

    Ou melhor, recebeu sim: o juzes e desembargadores foram muito rpidos em indeferir o pedido de antecipao detutela impetrado por seus advogados em primeira e segunda instncias. Cientes de que a peleja entre fotgrafo eEstado vai se arrastar por anos, talvez mais de dez, seus representantes queriam apenas que a Fazenda Pblicapagasse os R$ 3,8 mil gastos com os primeiros socorros que recebeu no Hospital Nove de Julho. No, escreveramos magistrados, porque no est provado que a leso foi causada pela PM. Acredito que haver justia, mas aindano tenho nenhum indcio de que ir acontecer no curto ou mdio prazo.

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