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Dançando comAmpulhetas

Singularidade

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Dançando com Ampulhetas

Singularidade

1º Edição

2016

I.G.C

Todos os direitos reservados. O texto desta obra não pode ser reproduzido no todo ou em parte, porqualquer meio, sem prévia e formal autorização do proprietário dos direitos autorais.

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Índice1. Capítulo I – Brandobravo .........................…... Pág. 072. Capítulo II – Todos morremos jovens ............ Pág. 193. Capítulo III – A estrada menos viajada .......... Pág. 304. Capítulo IV – O Escolhido .................….......... Pág. 405. Capítulo V – Rolar dos dados ......................... Pág. 506. Capítulo VI – Aqui e de volta Outra vez ....... Pág. 597. Capítulo VII – Origem ...................................... Pág. 67

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Prólogo

Então me perguntaram sobre o Destino.

Quando enganamos Destino, realmente enganamos Destino?

Então me perguntaram sobre a origem do Amor.

No começo eram dois. Dois que eram um só. Como um inteiro e não um pedaço, eleseram. Completos e felizes. Felizes por serem completos. Não buscavam, tinham. Háde haver um porém, é claro. Por forças muito mais fortes do que eles mesmos, foramseparados. Sobrou o que restou. Duas metades que buscavam ser um todonovamente. Uma busca incansável. Insaciável. Eterna. Como ecos que ressoam dojardim do éden essa história é repetida infinitamente. Dois que se atraem apesar dospesares. Dois que se odeiam por se amarem. Dois que buscam o que sabem serimpossível. Dois que procuram no outro o que lhes falta. Na verdade, não amam.Amor é algo que não existe mais. Sombras e espelhos. São eles, os dois de hoje, deontem e de amanhã, apenas um reflexo do que se passou entre aqueles dois docomeço da história. Mas, a infernal procura continua a assombrar corações. Comoespíritos malignos aqueles dois continuam, dia após dia, ano após ano, vida apósvida, perseguindo um ao outro.

Então me perguntaram sobre Sorte, Destino e seus Irmãos.

Por que antes de todos eles, nasceu Destino. Destino é o mais velho dos irmãos. Masisso é o que ele diz a Tempo. Por que na verdade Tempo e Destino são gêmeos. Foi noprimeiro passo de Tempo que destino inventou a história “Nasci primeiro” disse ele,e Tempo acreditou. Depois de Tempo vieram muitos. Mas, hoje falarei apenas deoutros três. Junto dos primogênitos vieram Vida e Morte. Duas irmãs muitodiferentes. Uma é feia. Feia e dura. Feia, dura e ranzinza. Já a outra é o completooposto de sua irmã. Linda e amigável. Linda, amigável e sempre sorridente. Vida

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sempre foi a mais feia das irmãs, é verdade. Cabe a ela esse papel. Se Vida fossegente, seria uma professora dura e cruel, daquelas que jamais se satisfaz. Já Morte é amais querida das irmãs. Ela é muito paciente e nunca, nunca, falha. Morte nunca seatrasa e também nunca chega antes da hora marcada. Ela é adorada por Destino eque o adora. Sua relação com Destino causa inveja aos outros irmãos, mas nenhumdos dois parece se importar. Se Morte fosse gente, ela seria uma adorável enfermeira,que apenas por estar ali te reconfortaria, apenas por saber que todas as dores seriamsanadas e tudo voltaria a ser como antes. Eis que há então Sorte. Moleca sapeca. Amais nova dos irmãos é ela. Mas, isso também não é verdade. Por que Sorte é umpedaço de Destino que ele não consegue controlar. Ela surgiu junto com Vida, masnão se sabe por que. Fato é que Sorte perturba Destino, tirando sarro de seus planos eleis. Ela sempre parece brincar com o que não lhe era devido.

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“Agora que sinto amor Tenho interesse no que cheira. Nunca antes me interessou que umaflor tivesse cheiro. Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova. Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia. São coisas que se sabem por fora. Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça. Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira. Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver”. - Pessoa quando era Caeiro também era Pastor Amoroso.

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Capítulo IBrandobravo

É costume se dizer que o céu do Sul é diferente dos demais. Talvez seja apenasum ditado, talvez nada de mágico ou fantástico realmente exista quediferencie o céu do Sul dos outros. “As estrelas brilham para todos e isso éJusto” diriam os Antigos. É esse o ditado que vem sido repetido entre asgerações. Estava lá, toda vez que um menino Sulista questionava as injustiçasda vida. Os homens consolavam e se consolavam ao mesmo tempo quando opronunciavam. Era como se uma voz mais calma, talvez de uma senhora,pairasse na consciência das pessoas. “E isso é Justo”. Ditado ou não,sensivelmente naquela noite, o céu se mostrava diferente de qualquer outrocéu de toda Arreta. Incontáveis estrelas brilhavam e se confundiam em um céude uma noite quase dia de tão brilhante. As estrelas pareciam grãos de vidroenfeitando um imenso véu de seda azul-escuro. Nem mesmo uma únicagotícula d’água atrapalhava o baile no céu. Aquela noite parecia ordenar:conversem, contem histórias.

Ao extremo sul da Cidade Porteira, longe dos Mercadores, de suas lojas e detoda a agitação, há um vilarejo incomum. Ao centro da Floresta Secular algunsmembros da família dos Selvagens resolveram edificar um vilarejo. Cabanas demadeira, suspensas em árvores milenares, grossas e com raízes profundas,davam a forma da única vila de Selvagens. Brandobravo era o nome de todosque ali moravam e era assim o nome do vilarejo. Brandobravo abrigava um tipodiferente de Selvagens, aqueles que ali moravam não eram nômades como osdemais. Eles moravam quase que nas copas das árvores em suas cabanasarredondadas e improvisadas. Cada cabana media menos de dez metrosquadrados. Eram todas feitas do mesmo jeito. Cipó endurecido, madeira finae alguns poucos pregos seguravam as paredes; o teto era coberto por umamistura de musgos com barro batido que era rígida, funcionavam comotelhas; algumas janelas eram feitas para ventilar as cabanas, já que na parte dodia o sol que estava ali tão próximo era cruel. As janelas eram estruturadascom dois pedaços de madeira que se apoiavam em um formato de cruz, nãohavia vidros nem esquadrias, nem mesmo portas. O mais curioso deBrandobravo, e talvez o que desse vida a vila, era o fato de que as cabanas eramtodas interligadas. Escadas feitas com cordas e pedaços de madeira eramdeitadas na horizontal e formavam pontes bambas que cumpriam sua função.

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Todo o vilarejo de Brandobravo ficava a cerca de trinta metros do chão. Lá emcima, onde as copas das árvores sumiam com a neblina do amanhecer efloresciam ao sol do meio dia, eles viviam. O vilarejo de Brandobravo possuíacerca de cinquenta cabanas, todas interligadas e próximas umas das outras.Era respeitado apenas o espaço de algumas árvores entre uma cabana e outra.O funcionamento da vila era simples, os homens eram responsáveis pelamanutenção do fogo e da segurança. As mulheres cuidavam das crianças edas vestimentas. E, assim como em qualquer bando de Selvagens, todoscaçavam e todos eram responsáveis pela alimentação do grupo. Lá no centrode Brandobravo, era estruturada a Cabana Maior, local ondeos Brandobravo costumavam se reunir por motivos diversos, porém, o motivomais recorrente era aquele que mais adoravam: beber água de beterraba econversar. Até mesmo as crianças se amontoavam no chão de madeirada Cabana Maior, para escutar sobre o que os mais velhos falavam. Fora numadessas noites estreladas e regadas a água de beterraba que a conversa tomouforma.

– Mas, então não existem mais Criadores? – Perguntou uma das crianças queestava enrolada em pelo de carneiro e ouvia a conversa dos adultos. Naverdade, era só um monólogo até aquele ponto. Toda a Cabana Maior fezsilêncio ao perceber a ousadia daquele pequeno. Era um garoto gordinho,tinha a cara cheia de sardas e cabelos pretos. Não cabia a ele o direito de falarem reuniões, mas sua pergunta era curiosa.

- Existem aqueles que carregam o nome da família. – ExplicouFrey Brandobravo. Frey era o mais antigo Selvagem a habitar Brandobravo. Eledevia ter seus cinquenta e frações de anos. “Selvagens vivem curtamente eplenamente” como era sabido. É verdade que não era comumnenhum Selvagem ultrapassar os setenta anos de idade. A família dosSelvagens leva fama por serem pessoas muito ágeis e esbeltas, adoram seaventurar em caçadas que podem levar até mesmo semanas. Era comum ehonroso morrer na caça. Afinal, como eles acreditavam, somos todos presas epredadores de nosso próprio destino.

– Mas, Criadores realmente não existem mais. – ContinuavaFrey Brandobravo. – Quero dizer, Criadores de verdade. – Ele fez uma pausapara acariciar sua barba grossa e negra. Frey Brandobravo era alto e magro.Tinha um rosto fino, porém cheio de marcas e cicatrizes. Ele tinha uma barbacumprida que era presa por um nó, deixando-a fina nas extremidades. Elevestia o que todos Brandobravo vestiam, couro de carneiro e pelagem de loboque eram costuradas em calças e casacos, todas cinzas.

- Criadores de verdade? – Perguntou a criança gordinha que continuava curiosa.

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Os mais velhos que ali bebiam, abriram um sorriso. A Cabana Maior tinhavárias cadeiras e mesas de madeira. Era um salão enorme demais para estarem cima de árvores, não possuía paredes, mas sim um pequeno cercado demadeira. Todos puxavam uma cadeira quando era aquela hora do dia eformavam um círculo para conversar. Os adultos compreendiam o que Freyqueria dizer e por isso sorriam.

- Vocês sabem por que os Criadores carregam o título de Primeira Família? -Frey Brandobravo dessa vez se dirigia para todas as crianças que estavam aliamontoadas, escutando com cuidado suas palavras. Eram cerca de quinzepequenos, que ouviam com atenção. Alguns deles balançaram afirmando,outros ficaram quietos, ele continuou a falar.

- A história conta que os Criadores foram os primeiros homens a surgirem.Foram eles que primeiro habitaram Arreta. Alguns dizem que no começo detudo, antes mesmo da Primeira Família, apenas Deuses habitavam Arreta,porém esses Deuses não nasceram aqui. Assim, em certo momento elesdecidiram voltar para casa e não queriam deixar Arreta sozinha. Para tanto,eles sopraram os primeiros grãos do tempo, dando nascimento a PrimeiraFamília. Depois que os Criadores surgiram, os Deuses perceberam que somenteeles não seriam suficientes. Eles precisavam de alguém para trazer para omundo as suas ideias, alguém que soubesse construir tudo aquilo que elespensavam. Foi assim que os Deuses sopraram outros tantos grãos do tempo ederam origem aos Forjadores. Mas, algo deu extremamente errado. Ou talvezapenas a história seja contada errada. Fato é que quando os primeirosForjadores surgiram, surgiram também os primeiros Sacerdotes. E foi assim queas Três Famílias apareceram. Os Forjadores forjaram as Ampulhetas, os Sacerdotestomaram posse do Tempo e os Criadores seguiram criando Arreta como ela éhoje. - Não só as crianças escutavam cautelosamente aquela lenda. A CabanaMaior devia estar lotada, com cerca de quarenta pessoas, entre adultos ecrianças. Até mesmo os adultos que estavam mais afastados, sentados emmesas e bancos de madeira e tomando vários copos de água de beterraba, selevantaram, aproximando-se de Frey Brandobravo e do círculo que lherodeava. Aquela lenda acariciava a imaginação de quem a escutava e elesadoravam aquela sensação.

- Mas o que isso tem a ver com os Criadores de verdade? - Perguntou opequenino que não conseguia cessar as dúvidas. Frey logo retomou o fôlego econtinuou a explicação.

- Os primeiros Criadores, esses que compunham a Primeira Família, eramdotados de um dom especial. Dizem as histórias que eles foram os primeiros a

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conseguir usar o Dom da Palavra. - Frey Brandobravo explicava e caminhavapelo pequeno círculo que se formara ao seu redor. Lá estavam as crianças,sentadas a frente do círculo. Os adultos ficavam em pé, abandonando ascadeiras vazias e frias eles prestavam atenção.

- Poder da Palavra? – Perguntou o garotinho gordo.

– Não estúpido, Dom da Palavra! – Dessa vez fora uma garota que resolveuparticipar da conversa. Estava ali sentada ao lado do garoto e lhe acertava acabeça com um tapa enquanto o corrigia. Era uma menina magra e pequena,tinha cabelos igualmente pretos e parecia ser parente daquele que falara atéali.

- Isso, minha querida. É o poder de um Verdadeiro Criador. - Frey explicava eabria os braços, como se falasse de algo muito superior a ele e a todos que aliestavam.

– Um Criador de verdade pode usar esse dom para realizar coisas concebidascomo impossíveis. Coisas surgem e coisas desaparecem, pessoas nascem epessoas morrem, universos se contorcem, com apenas palavras soltas aovento. Fora assim no início. Todos eles criaram Arreta como ela é hoje apenasdizendo o que deveria ser e o que não deveria ser. - Frey Brandobravo enxia aCabana Maior de encanto. – É claro que eles tiveram ajuda dos Sacerdotes e dosForjadores, mas eles eram os únicos com o Dom da Palavra, o poder de imaginaro novo. Fora assim no começo, é o que contam as histórias. – Concluía Frey,enquanto encarava o chão em um tom de mistério.

- E quanto aos Mercadores e os Selvagens? Então foram eles que nos criaram? -Perguntou o gordinho, que começara toda aquela conversa.

Frey Brandobravo parecia querer parar de falar. Andou três passos para aesquerda e mais três para a direita. Não estivesse cercado, talvez teria fugidopara outro local, mas foi forçado a continuar a história.

- Não exatamente. - Disse ele, fugindo do tópico. O silêncio não perduroumuito.

- Mas por que o senhor disse que os Criadores de Verdade não existem mais? -Perguntou a garota, sem hesitar.

- Por que eles não existem mais. Quero dizer, desde que soubemos da mortedos Coração-de-Leão, há três anos, que essa realidade se apresentou. - Freyfalara, com uma voz triste, quase que sem força nos pulmões. Ele entrou em

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um transe momentâneo, que fora interrompido pelo gordinho que se negava aficar quieto.

- O rei e a rainha? - Ela perguntara, enquanto descruzava as pernas queestavam dormentes. As outras crianças olhavam para ela e quase todos osadultos que prestavam atenção a conversa, ficaram cabisbaixa. - Exatamente. - Frey fez uma pausa e continuou. – Mirian Coração-de-Leão, aPiedosa, foi a última Criadora de verdade. - Ele concluiu, tristemente. - Elapossuía o Dom da Palavra. Mas, ela se foi. Assim como o rei também se foi. -Ele concluiu.

O garoto que também participava da conversa resolveu perguntar.

- O rei não tinha esse dom? - Ele indagou, curiosamente.

- Não, apenas ela. - Frey explicava.

O garoto ficou quieto. Os adultos reviravam os copos de água de beterraba eencararam o horizonte. Todos pareciam pensativos. O silêncio breve foranovamente interrompido pelo garoto questionador.

- E os filhos da rainha, nenhum herdou o Dom da Palavra? - Ele perguntara elogo disparou outro questionamento. - A rainha se foi, mas o príncipe e aprincesa ainda estão vivos, não é verdade? - Ele perguntara rapidamente, semsequer respirar entre as falas. Antes que Frey Brandobravo pudesse responder qualquer coisa, ou atémesmo antes que pudesse refletir sobre o que o garoto intrometidoperguntava, algo inesperado ocorrera. Um vigia apressado adentrara a CabanaMaior, berrando.

- Senhor! Senhor! Há alguém na floresta! - Ele exclamara em alto e bom tom.

Ele se dirigia a Frey Brandobravo. Por ser o Selvagem mais velho de todo ovilarejo, ele era tratado como senhor e possuía certo respeito. Pode-se dizerque Frey Brandobravo era um tipo de patriarca para todos que viviam ali.Muitas vezes era procurado para dar conselhos e opiniões sobre fatoscorriqueiros do vilarejo.

- Alguém? De quem você está falando, quantas pessoas? - Frey indagou,enquanto fez sinal para as crianças que o cercavam abrissem espaço para que

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pudesse passar. Todos na sala faziam silêncio a fim de ouvir a notícia que oguarda trazia. A curiosidade era algo inata a qualquer Selvagem.

- Os guardas avistaram uma só pessoa senhor. Digo, praticamente. - O homemfalara, enquanto procurava tomar fôlego, parecia ter acabado de subir osdegraus que davam acesso à Cabana Maior. Deveria estar em uma das tendasde vigilância, que ficavam alguns níveis mais baixos que as cabanas, assimmais próximas ao solo.

- Praticamente? - Frey Brandobravo questionou, nervosamente.

- Trata-se de um velho e um bebê. Isso foi tudo que me avisaram, não fui euque avistei os dois, senhor. - O homem, agora com uma aparência melhor,passava o recado. - Os guardas da Primeira Tenda estão esperando o senhor. -Ele falara, se referindo ao primeiro posto de observação da vila. Era dali queos poucos passageiros que se aventuravam pela Floresta Secular eramavistados e observados a distância. Frey Brandobravo ponderou antes de dar sequência a aquela conversa. Sabiaque é da natureza dos Selvagens possuir uma curiosidade exacerbada. Ele fezum gesto a fim de que o guarda que trouxera o recado se afastasse mais umpouco do centro da Cabana Maior. Logo, ele se aproximou do guarda quetrouxera a informação. Puxando-o pelo ombro, partiu para fora da cabana.

– Vamos até lá. – Frey afirmou em baixo tom.

Ele caminhou, seguindo o guarda, até a pequena ponte de cordas maispróxima da Cabana Maior.

Na Canana Maior os adultos ficaram de murmurinho tentando adivinhar doque se tratava, mas permaneceram no mesmo lugar, sabendo que seseguissem Frey seriam reprimidos. O mesmo não ocorreu com algumas dascrianças. Logo que perceberam que Frey iria se encontrar com o estranho,trataram de segui-lo, se aventurando entre os galhos das árvores e algunscipós que cresciam livres.

Frey Brandobravo caminhou cerca de mil metros, passando por várias pontesbambas e varandas de madeira que ligavam as diversas cabanas da vila. Amaneira como os Selvagens de Brandobravo se movimentavam nas alturas eraúnica e fantástica. Rapidamente eles se equilibravam entre as cordas e escadasdeitadas que formavam as pontes que ligavam todo o vilarejo. O barulho quea pressa de Frey e o guarda faziam ao caminhar provocava que várias cabeçascuriosas aparecessem nas pequenas janelas das cabanas, bisbilhotando o que

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se passava. Frey e o guarda desceram cerca de trinta metros, até alcançar aPrimeira Tenda de vigilância. Lá, eles se encontraram com outros três guardas,que estavam juntos e olhando para baixo.

– Lá está ele senhor! – O guarda mais velho dentre os três reportara. – Ele estáparado naquela mesma posição já fazem uns vinte minutos. – Ele concluíra.

A Primeira Tenda não tinha nada de especial ou de confortável. Era um localquadrado e pequeno onde cabiam cerca de cinco homens e seus utensílios. Naparede da frente havia uma pequena fenda que permitia olhar para o chão dafloresta. Perto da porta de entrada ficava um banco de três lugares, nasparedes quatro apoios para tochas eram pregados, em conjunto com umaprateleira onde algumas flechas e arcos ficavam a postos.

– Ele fez algum sinal para vocês? – Frey perguntara, enquanto observava pelafenda da tenda a figura quase invisível na escuridão da floresta.

– Não senhor. – Afirmou o mesmo guarda. – Ele caminhou até esse ponto eficou ali parado. Também não aparenta estar acompanhado de outraspessoas. – Completou.

Frey Brandobravo ponderou alguns instantes. Distanciando-se minimamentedos outros quatro que ali estavam. Caminhou sete passos em um movimentocircular e parou.

– Vamos lá embaixo. – Disse, para a surpresa dos demais.

Em situações como aquela, a atitude a ser tomada era quase sempre igual:flechas primeiro, diplomacia depois. Se o forasteiro não fosse louco, correriadesenfreado, sem procurar problemas. Era como eles tratavam as pessoas quepassavam por Brandobravo. Os Selvagens não eram muito amigáveis e nãosentiam a necessidade de conviver com qualquer outro grupo, a não ser elesmesmos. Se aproximar era se expor, se expor nunca era uma boa ideia.

– Senhor? - Indagou o guarda mais velho, duvidando da decisão de Frey.

– Não consigo enxergar nessa escuridão. – Ele se justificou, enquanto saía datenda. O que se passou, ocorreu repentinamente, em frações de segundos. Osguardas que reportavam a Frey trataram de desamarrar várias cordas presasaos troncos grossos das árvores. As cordas liberaram uma escada, feita domesmo material que as pontes, que tocou o chão da floresta. Piscares de olhos

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à frente, dois guardas escorregaram por cordas de cipó, presas ao outro ladoda tenda, e cercavam o indivíduo que carregava a criança no colo. Em questãode segundos, os dois já estavam no chão da floresta, portando tochas e facasnada amigáveis. Frey Brandobravo desceu calmamente a escada bamba eficou de frente para o caminhante.

– Procuro o Patrono. – Disse o indivíduo, que ainda estava coberto pelassombras da noite.

Tivesse dito qualquer outra coisa, a reação de Frey seria outra. Mas, aquele eraum nome pelo qual ele não era chamado há muito tempo.

- Velho, é você? – Frey quase tropeçara ao caminhar passos apressados emdireção ao desconhecido. As folhas que se amontoavam mortas ao chãopareciam querer afundar os pés de Frey, que já não eram tão rápidos.

Antes mesmo que o indivíduo, agora o Velho, pudesse responder,Frey Brandobravo já estava o apertando com os braços com toda sua força.Era um abraço fraternal, forte e saudoso.

– Olá meu bom amigo. – Disse o Velho, cheio de lágrimas nos olhos, queestavam ocultas na escuridão.

A escuridão, e o mistério dos rostos por trás dela, não durou muito, os doisguardas que cercavam o Velho, aproximaram-se dele com as tochas que cadaum portava, trazendo luz a conversa.

– Mal posso acreditar! Deve fazer séculos! – Exclamou Frey, enquantomantinha o Velho preso em seu abraço.

– E fazem. – Respondeu. – Séculos e mais séculos. Mas, você deve estar seimaginando o que me levou a vir tão longe. Preciso de sua ajuda. – Ele pareciasério, o que fez Frey Brandobravo se afastar dois passos, dando fim ao abraçocheio de saudade.

O Velho só tinha de Velho o nome. Era um homem-feito, isso com certeza. Jádeveria ter passado da mocidade há vários anos. Mas, não era velho como onome dizia. Tinha alguns fios de cabelos brancos que marcavam seu courocabeludo, é verdade. Do mais, tinha um rosto fino, porém marcado porcicatrizes causadas pelo tempo. Algumas rugas na altura das sobrancelhas eoutras marcas que deveriam ter sua história. O que mais se destacava aoolhar para o Velho era aquele algo que não era seu: ele carregava uma criançaenrolada em um lençol branco. A criança parecia ter menos de um ano de

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idade, possuía pele alva como a neve, seus olhos roubavam a coloração dasmais claras esmeraldas e seus cabelos, ainda que poucos, lembravam o sol doamanhecer.

- Sim, mas é claro! - Exclamou Frey, enquanto empurrava o amigo pelo ombro,a fim de afastá-lo dos ouvidos curiosos dos guardas-tochas. - Você sempreachará ajuda aqui. Mas, não devemos nos apressar. Antes de qualquer outracoisa, você deve tomar um banho, comer bastante e descansar uma noiteinteira. Tenho certeza de que isso é o mais sensato a se fazer. – Os doisestavam parados em frente a escada por onde Frey descera, a escada estavaapoiada no tronco de um Pinheiro Secular que mais parecia uma parede de tãolargo.

- Eu gostaria muito. - Disse o Velho. - Mas, ficarei em débito. Estou cansado efaminto, é verdade. Mas, não será desta vez que poderemos colocar asconversas em dia, meu bom amigo. - O Velho parecia triste, seus olhosestavam cheios de lágrimas, mas ele as continha de cair.

- Te pedirei algo, algo que não pediria a mais ninguém em toda Arreta. - OVelho estava sério. Parou em frente de Frey e ambos se olhavam com certatensão. A sombra da noite novamente cobria, parcialmente, os rostos dos queconversavam.

- Por você, qualquer coisa. Você sabe disso. - Disse Frey Brandobravo,atentamente.

- Viajei meio mundo até aqui para lhe entregar um fardo. - O Velho pareciaquerer parar de falar, buscava fôlego para poder continuar explicando.

- Quem é essa criança? - Perguntou Frey, secamente.

- Mas é claro que você facilitaria as coisas. - Disse o Velho, com um meiosorriso no rosto. - Essa criança é o meu favor e o seu fardo. Sei que o que peçoé muito, mas também sei que você é a única pessoa a qual posso confiartamanha responsabilidade. Deixarei essa criança com você, você deve criá-la como se fosse uma de vocês, criá-lo como um caçador. Não posso entrar emdetalhes, apenas saiba que essa criança tem um bom coração e que muita coisaainda depende dela. – Completou.

- Jamais negaria um pedido seu. - Respondeu Frey, ainda tentandocompreender a situação. - Mas, você deve me dizer algo além dessas palavrasvazias. Quem são os pais dessa criança? De onde ela veio? - Perguntou Frey,encabulado com a situação.

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O Velho estendeu ambos os braços, entregando a criança a Frey Brandobravo.Ele correspondeu e carregou a criança, abraçando-a carinhosamente contra opeito. Algo estranho então ocorrera. A criança, que até o momento dormia emsilêncio, decidiu acordar. Mas, ela não despertara como qualquer criança faria.Estranhamente abrira ambos os olhos esverdeados e os fixou no rosto de Frey.Ficou ali quieta, apenas observando o rosto do homem que a segurava. Nãofez barulho algum. Frey Brandobravo ficou estático, apenas olhando opequeno rosto que parecia reluzir mediante a escuridão da floresta. Naqueleexato momento algo se passara no corpo de Frey que o fizera estremecer dosdedos dos pés até as pontas dos cabelos da cabeça. Sentiu um sentimentoestranho e nunca sentido. Compreensão parecia ser o mais óbvio.

- Vou criá-la como se fosse meu filho. - Disse Frey, enquanto lágrimassalgadas corriam pelas suas bochechas.

- Isso é mais do que posso te pedir. - Respondeu o Velho. - Quanto as suasquestões, prometo que em um futuro breve trarei respostas para elas. Saibaque fico eternamente em sua dívida. - O Velho falara e encostara a mãodireita no ombro esquerdo de Frey, que segurava o pequenino.

- Você partirá de imediato? - Perguntou Frey, sabendo a resposta.

- Devo ir. Não posso demorar ainda que seja apenas mais um momento. - OVelho levou a mão ao rosto da criança, tirando um pedaço do lençol que ocobria. Lentamente se aproximou da criança e beijou-lhe a testa sutilmente.

- Seja forte como seu pai e esperto como sua mãe. - Ele disse.

Frey Brandobravo não entendeu ao que ele se referia, mas não tinha sidoconvidado para aquela conversa. Ficou parado enquanto percebeu que oamigo se distanciava lentamente dele. O Velho deu alguns passos para trás eficou encarando os dois, finalmente deixou algumas lágrimas livres parapercorrerem seu caminho. Estava triste, porém satisfeito.

- Eu sinto muito por fazer isso com você, serei eternamente grato. - Disse oVelho, enquanto se distanciava ainda mais de Frey e da criança.

- Espero que você venha nos visitar em breve, tudo estará bem, eu lheprometo. - Respondeu Frey, mostrando-se digno do fardo que lhe foi dado.

- Eu virei, obrigado. - O Velho pronunciou essas últimas palavras e virou-sedando as costas a Frey e a criança. Caminhou cerca de dez passos, voltando o

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caminho que havia acabado de percorrer. Enxugou o rosto com a manga dacamisa e tossiu duas vezes para firmar a respiração. Estava pronto paracontinuar a jornada que parecia ser tão importante.

- Do que devo chamá-lo? - Perguntou Frey, elevando o tom de voz eimpedindo que o amigo fosse, enfim, embora.

Os que ali estavam são testemunhas. Dos Selvagens que habitavam a floresta eque povoavam Brandobravo, entre os Mercadores da Cidade Porteira, dosForjadores que velejavam o Salgado, até mesmo os Criadores e Sacerdotesdo Norte, todos foram testemunhas do que se passara. O céu de sua coloraçãoescura até sua coloração azulada, todo se apagou e imediatamente se acendeu,reluzindo por um ínfimo instante. Um som fino e agudo fez o próprio artremer e se agitar. Tudo era luz e um clarão que parecia ter originado ummilhão de raios, tomou o céu de toda a Arreta por um minuto inteiro. Naquelemomento, a reação de todos que estavam em Brandobravo foi única, o silêncioreinou por poucos momentos enquanto todos olhavam para o céu,afoitamente, esperando o que parecia ser o fim das eras. Mas, no minuto quese passara nada ocorrera. O clarão que iluminou o céu detoda Arreta desaparecera, sem levar nada consigo. O que se ouviu a seguir foio som das pessoas que se perguntavam a mesma questão. "O que foi aquilo?"eles gritavam um para o outro, na esperança de que alguém soubesse aexplicação.

- Já está acontecendo. - Disse o Velho. - Sua mãe me fez jurar que lhe falariaisso. - O Velho voltou os passos dados, aproximando-se novamente de Frey. -Você deve chamá-lo de Lance. Lance, como sua mãe o nomeou em seunascimento. Isso não é tudo, você deve dizer a ele sempre que ele tiverdúvidas: nada foi mais difícil para ela do que deixá-lo partir.

- São as Ampulhetas, não é mesmo? - Frey parecia perguntar uma questãosobre a qual ele já tinha as respostas. Ele apontava para o céu e observava orosto do amigo se abrir em um sorriso extremamente alegre. - Lance,Lance Brandobravo. Assim farei meu amigo, assim farei. - Completou.

Desta vez o Velho não ponderou ao caminhar o caminho que o levaria parafora da Floresta. Em apenas alguns minutos, já tinha sumido da vista de Frey edos guardas que estavam eufóricos com o clarão visto há pouco. Frey ficou aliainda um minuto, como se esperasse algo mais acontecer. Mas, logo decidiuque era melhor subir as escadas que outrora descera, voltandoà Brandobravo e acalmando os corações aflitos de seus familiares. Sabia eleque a verdade de nada ajudaria naquela situação. Então respirouprofundamente, a fim de elaborar alguma história que não ampliasse ainda

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mais o ocorrido. Terminou de subir os degraus da escada de cordas, seesforçando para carregar a criança com apenas um braço. Logo estava de voltaa tenda de vigilância por onde descera. Podia ouvir os gritos e murmurinhosque vinham das cabanas dos moradores. Eles estavam com medo, é verdade.Frey Brandobravo então sorriu um sorriso sincero, enquanto olhava para orosto de Lance, que voltava a dormir o sono dos bons. Se poucos sabiam disso,Frey com certeza era um deles: o medo, embora seja intenso, é fugaz;enquanto o tempo é perpétuo e a tudo cura.

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Capítulo IITodos morremos jovens

Foi com um largo sorriso e uma feição sincera que Einri Coração-de-Leão respondeuàquela voz. Virou-se rapidamente para o caminho já percorrido, apenas paraconfirmar o que já era sabido. Lá estava ela levantando a mão esquerda e acenando,veementemente, tentando ser notada. Ela estava pronta para segui-lo e fazia questãode mostrar isso.

– Espere! – Berrou Ilsa Troca Leve enquanto percorreu os últimos metros da estradade pedras brancas que a separava dele. – Eu também irei! – Completou.

Einri ficou ali estático, sem conseguir esconder o sorriso que estava estampado norosto, inegavelmente alegre. Pensou nunca mais poder ver aquele rosto novamente,nunca mais ouvir aquela voz, mas ali estava ela, apesar dos pesares. A figura de Ilsacarregando uma mochila de couro pronta para seguir viagem fez o coração de Einriacelerar. Porém, o entusiasmo não perdurou, rapidamente as ideias sobre o que tinhaque ser feito voltaram a pairar sobre a mente de Coração-de-Leão e ele sentiu queaquilo parecia um erro.

– O que você está fazendo? – Perguntou ele. Ela não respondeu de imediato.Estavam os dois de frente um para o outro, ambos com suas mochilas, que erambastante parecidas, nas costas. Ilsa Troca Leve sorria e estava ofegante. Einri estavatenso e estava pronto para começar a caminhada, havia acabado de ajeitar as coisas ea hora parecia ótima para retomar a caminhada.

– Eu decidi vir. – Ilsa explicara. – Não achei que deveria ficar. Então, aqui estou. –Disse ela.

Para ela era simples, tão simples quanto acabara de explicar. Era apenas umsentimento e ela o estava seguindo.

– Você não pensou nisso direito. – Einri, voltando à realidade da situação, sentiu-setemeroso e quis repreender Ilsa. Aquela não parecia ser uma boa ideia. – Como suatia deixou que você fizesse isso? - Ele estava preocupado e os seus gestosdemostravam isso.

– Ela foi a primeira a dizer que eu deveria vir. – Ilsa falou e surpreendeu.

Era de se imaginar que Tia Frizda era aquele tipo de pessoa. Foi ela afinal que tinhaensinado muitas coisas à Ilsa e Ilsa tinha muito de sua tia em si. Aquele espírito de

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aventura parecia ser algo que fora transmitido de tia para sobrinha. Em seus tempos,Tia Frizda deve ter matado os seus dragões e cavalgado em direção ao amanhecer.

– Volte! Você não compreende, estamos em perigo desde o momento que te conheci.Daqui para frente esse perigo deve apenas aumentar, você não pode continuararriscando sua vida desse jeito. Eu não posso ter mais essa preocupação! – Einriestava bravo e deixava transparecer em suas palavras esse sentimento. De fato, setratava de uma bravura oriunda de um sentimento de proteção. Pensou ele que seagisse bruscamente, afastaria Ilsa e a protegeria dos perigos ainda nebulosos que ocaminho a ser percorrido guardava.

– Você não pode se responsabilizar por minha vida. – Disse Ilsa, calmamente, o quetirou Einri daquele estado de ira de imediato. – Eu não te dei essa autorização. Queroprosseguir viagem com você, quero saber o que acontecerá. Mas, isso é uma decisãoque eu tomei sozinha. – Ela explicava, enquanto encarava Einri. O olhar que os doiscompartilhavam era intenso e nenhum dos dois ousava desviar os olhos emqualquer outra direção.

– Você não compreende o que é esperar tanto por um momento e vê-lo acontecer ese esvair ao mesmo tempo. Sua Alteza sempre soube o que é estar onde as coisasrealmente acontecem, onde elas realmente importam. Mas, essa é a primeira vez naminha vida que sinto que estou fazendo o que eu devo fazer; ninguém pode tirarisso de mim, a não ser eu mesma. – Ilsa Troca Leve expressou o que pensava demaneira suave. Ela estava tranquila e focada no que dizia, parecia ter a certeza sobrea certeza.

Aquilo era algo muito raro de se presenciar. Einri Coração-de-Leão ficouconstrangido com o que Ilsa falara. Era a mais pura verdade. Talvez por seu jeitoprotetor, ele não havia pensado no que ela desejava em primeiro lugar. Sentiuvergonha por tentar negar aquele algo que ela tanto queria.

– Todos morremos jovens. – Disse Einri, enquanto estendia a mão direita em direçãoa Ilsa.

Era uma proposta de companheirismo sincera e profunda. Aquele gesto pareciamover o mundo em conjunto com ele, pelo menos o mundo de Ilsa. Seu braço estavafirme e seu rosto não demonstrava qualquer feição, ele tinha apenas uma intenção aoestender a sua mão direita daquela forma à Ilsa e ela compreendeu aquilo damaneira que deveria ser entendido. Ilsa sentiu-se aceita e logo respondeu.

– Todos morremos jovens. – Disse Ilsa, enquanto estendia a mão direita em direção aEinri.

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Apertou-a firmemente e, assim como ele o fez, sorriu. Talvez por compreenderem,ainda que por um instante, o sentimento um do outro, aquele fora um momentoímpar na vida dos dois. Ilsa sabia profundamente ao que Einri estava se referindo.Ilsa não sabia, porém, que ele também sempre ansiou por um momento específico nasua vida, aquele algo desconhecido, porém certo. Nunca fora de se importar com ascoisas que aconteciam no Castelo. As decisões e políticas que envolviam toda a CidadeMundo nada tinham haver com Einri e com sua personalidade. Ele sempre quis sairdali e daquelas responsabilidades que eram importantes, só não para ele.

– Vergo, o vesgo então? – Ilsa indagava, enquanto começava a caminhar, lado a ladocom Einri Coração-de-Leão.

– Sim, acho que é por aí que devemos começar. – Ele respondeu. – Pelo que sua tiaaconselhou, devemos prosseguir pela estrada, até chegarmos lá. – Ele falara, eapontava para frente, mostrando o caminho a ser percorrido.

Já se passavam do meio dia e o sol estava morno. O tempo era ótimo para caminhar efoi isso que eles fizeram, deixaram a sombra da árvore que marcava o início da Via13 para trás, com passos rápidos e certeiros. Ilsa e Einri estavam, novamente,caminhando em direção ao desconhecido. A Via 13 era totalmente diferente dastrilhas que eles haviam percorrido até o momento. Todo o caminho da CidadePorteira até a Fábrica de Feno havia sido feito por trilhas e não por estradas. Ondeestavam agora era bem diferente do já conhecido. A Via 13 era larga, podiam passarpor ali duas carroças carregadas ao mesmo tempo, o chão era todo coberto porpedras redondas e confortáveis de se pisar. Talvez fosse o cenário da Via 13, queseguia quase sempre reta por dentre várias colinas esverdeadas, beirando casastodas feitas de pedra, que liberavam uma fumaça branca pelas chaminés, que levouEinri e Ilsa a caminharem tão depressa e tão tranquilamente. Horas se passaram e osdois deixaram a Fábrica de Feno para trás. O sol já estava indo embora, quando EinriCoração-de-Leão decidiu que era hora de interromper a caminhada.

- Está ficando escuro. – Disse ele. – Vamos achar um bom local para montarmosacampamento. – Completou.

– Aqui parece tão bom quanto qualquer outro lugar. – Ilsa retrucou.

- Não. Não acho prudente ficarmos tão perto da estrada, não se sabe quem irá passarpor esse caminho noite a dentro. – Einri sentiu a aflição de ainda estar sendoperseguido. Não podia se descuidar, ainda que já estivesse tão distante daquelenavio e daquele homem.

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De onde estavam, não se podiam ver nenhuma das casinhas pelas quais passaram nocaminho percorrido. As colinas também ficaram para trás, nas laterais da estradahaviam vários pinheiros que se espaçavam quase que de maneira organizada.

– Vamos adentrar um pouco, só o suficiente para sairmos da estrada. – Disse Einri.

Ele apontava para dentro da floresta do lado direito da estrada. Só se podia enxergaralguns metros à frente, dentre os pinheiros, porém logo os dois acharam uma imensapedra que espaçava cerca de cinco pinheiros, formando um quadrado que pareciauma sala. Era o local perfeito para esticar as pernas e montar uma pequena fogueirae assim eles procederam.

– Vou procurar galhos mais grossos. Você pode ir montando uma cobertura? -Indagou Einri. Logo ele caminhou alguns passos para dentro dos pinheiros,deixando Ilsa sozinha na pequena clareira. Ela fez como o sugerido. Rapidamentecarregou três galhos finos, mas grandes, e os apoiou contra a pedra. Algumas folhasfizeram o truque. O cobertor que Tia Frizda cedera cobriria o chão e aquela seriauma noite ao menos decente. O sol já havia sumido da vista, porém seus raios aindaemitiam alguma claridade.

– Acho que isso é o suficiente para algumas horas de fogo. - Disse Einri. - Nossa,ficou muito bom. - Ele provocou um sorriso nela. Rapidamente Einri ajeitou osgalhos mais finos sobre os mais grossos e acendeu a fogueira batendo com umapedra sobre uma pequena faca de cozinha que tirara da mochila. Não fora só issoque ele trazia na mochila. Antes que Ilsa pudesse perceber, um pequeno caldeirão jáestava repleto de verduras e hortaliças, dando cheiro e gosto ao fogo.

– É tão imenso. - Ilsa Troca Leve falava com os olhos voltados para o céu. - Asestrelas parecem pequenos pedaços de vidro espedaçados. Todas espalhadas em umlençol negro e infinito. Se você olhar rapidamente, diria que elas estão perdidas edesordenadas, mas é só parar alguns instantes que você nota. - Ilsa refletira em vozalta.

– Há um ritmo no caos. Elas estão dançando. - Einri disse e surpreendeu. Ele estavadeitado ao lado dela. Dividiam o mesmo espaço. Einri continuava a encarar o céuestrelado, Ilsa também, porém, ela observava aqueles pontos de luz refletidos nosolhos dele.

– Está pronto. - Disse Coração-de-Leão. - Não garanto o sabor, mas deve ser osuficiente para dormimos bem hoje à noite. - Ele sorria e convidava Ilsa a juntar-se aele próximo a fogueira.

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– Está uma delícia, de verdade. - Ela respondia educadamente. Não queria magoar orapaz com a verdade. Ilsa como qualquer Mercadora, entendia muito bem dasmanhas gastronômicas e sabia que aquela sopa estava carente de muitas delas.

A noite veio e com ela o frio. Após algumas horas a fogueira esmaeceu e o que restoufoi apenas a escuridão da noite. As estrelas continuaram a dançar sobre as cabeças deEinri Coração-de-Leão e de Ilsa Troca Leve. Logo a lua apareceu e iluminou toda amata de pinheiros. As copas dos pinheiros brilhavam em um verde-escuro,refletindo o prateado lunar. O vento fazia os pinheiros conversarem entre si e no céunem mesmo uma nuvem resolveu aparecer. A parte mais escura e mais fria da noitepassara rapidamente, em um sono pesado. Logo o sol resolveu reinar novamente,afastando a noite para onde quer que ela pertença. Assim ele o fez, majestoso do jeitoque o é, acordou todas as coisas e, em conjunto com elas, Einri e Ilsa. Fora osprimeiros raios de luz que fizeram Ilsa despertar. Talvez essa não seja a palavra,visto que o sono não parecia querer deixar seus olhos. Lá para os terceiros ouquartos raios de sol Ilsa parecia não conseguir mais vencer o despertar. De fato, foraum barulho estranho que chamou a atenção de seus sentidos e a fizera acordar emum pulo.

– O que é isso? - Ilsa perguntou, quase gritando.

– Droga! Eles nos acharam! - Einri parecia apavorado. Saltou sobre a fogueiraapagada e tratou de enfiar o resto das coisas, que haviam ficado espalhadas, dentroda mochila. Ilsa sentiu a mesma aflição que Einri demonstrava e começou a fazer omesmo.

– Vamos! Por aqui, depressa! - Einri, pegando a mão esquerda de Ilsa, a puxava pelocaminho que fizeram, tentando chegar à estrada de onde talvez não devessem tersaído.

O alívio foi sentido ao perceberem do que realmente se tratava a situação. Algojamais imaginado havia aparecido da noite para o dia, literalmente no meio docaminho. A estrada que no dia anterior era pacata e bucólica, estava servindo de sítiopara uma caravana circense. Eles estavam ali, montando acampamento por toda aparte, alguns ainda com os rostos pintados, outros carregavam roupas e mais roupascoloridas e havia ainda aqueles que traziam jaulas com animais selvagens.

– Um circo. - Disse Ilsa e sorriu. - Um circo então. - Ela gargalhava. Einri tambémnão se conteve e começou a sorrir.

Ilsa não se conteve e correu em direção as barracas que ainda nem sequer estavamprontas. Einri, antes de ter a oportunidade de ponderar, contentou-se em segui-la.

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A estrada que antes era larga e vazia, agora estava estreita e apenas um corredorestava disponível para quem quisesse a trilhar. Ilsa Troca Leva, portando a alegria deuma menina no rosto, puxava Einri Coração-de-Leão por esse pequeno corredor,enquanto os artistas circenses os encaravam. Não demorou muito até que umresolveu explicar a situação.

– O que vocês estão fazendo? Ainda não tem nada pronto. – Disse um pequenoAnão barbado. Ele estava com uma feição séria, poucas amizades.

Antes que a alegria de Ilsa fosse embora, uma outra voz intervira.

– Deixe as crianças passarem. – Disse uma voz rouca e fraca. – Eles só querem umpouco de diversão, eu posso dar isso a eles. – Completou.

A voz pertencia a uma senhora que estava segurando a porta de tecido de uma tendaque já estava pronta. A senhora malmente deixava seu rosto a vista. Estava cobertapor uma manta toda preta que cobria até mesmo o seu rosto com um capuz. Apenasalguns fios de cabelos brancos ficavam para fora, sua boca e seu nariz. Ela sorriaconvidativamente. Já a lona da tenda era toda roxa e trazia várias estrelas azuisdesenhadas. Na sua entrada, e onde a senhora estava, tinha uma placa alegóricaonde apareciam as letras:

.SONI.

.TSED

Elas estavam grafadas em uma madeira escura, desta forma. A curiosidade superouqualquer outro sentido. Ilsa, ainda com aquele espírito alegre, não se conteve eprosseguiu em direção a senhora que convidava os dois a adentrarem em sua tendamisteriosa. Einri ponderou por um momento e apertou a mão de Ilsa com força. Elaolhou para ele tentando entender o porquê da aflição. Mas, ele nada disse. Ilsa estavaverdadeiramente alegre naquele momento e seu sorriso fez o coração de Einri seacalmar, afinal era só uma atração circense.

Adentrando a tenda “mágica” algo inesperado ocorrera. A senhora que estavasegurando a porta de tecido, aparecera magicamente em sentada do outro lado datenda, em sentido oposto a porta. Ela estava detrás de uma mesa de madeira clara. Amesa era imensa e só carregava um único objeto. Um livro de capa vermelha, velho eempoeirado, com várias marcações nas laterais, permanecia fechado sobre a mesa. Asenhora, sentada em uma poltrona da mesma cor que a mesa, apoiava as duas mãossobre o livro fechado.

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– Venham, sentem-se. – Ela, novamente, convidava. – Não precisam se preocupar, ocirco não está aberto ainda. Dessa vez será de graça. - Ela parecia gentil.

Ilsa não ponderou e sentou-se em uma das duas cadeiras que estavam do outro ladoda mesa. Ela sorria e parecia uma criança de tão curiosa. Einri ficou de pé, estavadescrente. Trazia no rosto a expressão da dúvida e da desconfiança.

– Por aquela porta só entram dois. Dois sentam nessas duas cadeiras. Eu leio duasmãos. – A senhora disse. Ela havia colocado o capuz para trás e revelou seu rosto.Era um rosto muito bonito, porém sofrido. Trazia várias marcas e cicatrizes dotempo. Ela tinha olhos azuis-escuros, profundos e quase sem brilho. Seu cabelo eratodo liso e branco, bastante fino. – Você também não quer saber o seu futuro? – Elaencarava Einri.

Ele se sentiu constrangido. Diante do sorriso infantil de Ilsa, sentiu-se obrigado acooperar com a brincadeira. Sentou-se na cadeira e esticou o braço direito. Ilsa fez omesmo e ambas as mãos estavam postas sobre a mesa. A senhora então prosseguiucom o seu espetáculo. Disse algumas palavras indistinguíveis, murmurando. Entãotratou de colocar o capuz sobre a cabeça novamente. Seu rosto novamente sumira.Em um movimento brusco, ela agarrou a mão de Ilsa com a sua mão esquerda e amão de Einri com a sua mão direita. Um vento frio e seco adentrou a tenda naqueleinstante. Com ele veio uma voz que falava uma língua estranha. Não eram palavrasnem frases que ela dizia, parecia mais uma melodia antiga e triste. Mas, logo aquelasensação passou e o vento, suave como veio, foi embora. A senhora soltou as mãosde Ilsa e de Einri e colocou as próprias mãos novamente sobre o livro fechado.Parecia estar pronta para falar.

– Interessante. – Disse. – Muito interessante. Faço isso a bastante tempo, devo dizer.– Ela falava com o rosto virado para o livro, parecia ler aquele livro fechado. – Forampoucas as vezes que isso aconteceu. Raríssimas. Vejam só, há um motivo de teremduas cadeiras aqui. Sempre atendo duas pessoas, e isso se dá por que sempre queduas pessoas entram nesse lugar elas tem algo em comum. Algo que talvez nem elaspercebam, mas não é à toa que elas se encontram aqui, nesse mesmo espaço e nessemesmo tempo. Normalmente eu revelo as pessoas o porquê de elas terem seencontrado aqui nesse momento e elas adoram isso. Porém. – Ela fez uma pausa eestendeu o dedo indicador da mão esquerda. Parecia traçar uma linha, como se lessecom cuidado uma parte do livro. – Algumas vezes isso acontece. Tem algo de muitointeressante no futuro de vocês dois. Vejo que vocês estão tentando a muito tempo,chegaram muito próximo, muito mesmo. Mas algo sempre interveio. Talvez sejaagora, talvez daqui a uma hora ou daqui a um dia. Um ano talvez. Mil anos, quem

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sabe. – A senhora tirou as mãos de cima do livro fechado e parou de falar por uminstante.

Ilsa estava mais desapontada do que confusa. Suas expectativas de encontrar umacartomante circense haviam sido frustradas, aquilo não tinha nada a ver com o quesua Tia Frizda contava.

– Vocês, meus queridos, vão se perder. – A senhora disse, novamente com o capuzdesvestido, olhando para os dois. – Mas, não se desesperem, não há nada nessemundo, ou no próximo, que pode impedir que vocês achem o caminho de volta umpara o outro. – Completou.

Einri deixou transparecer um sorriso escondido. Estava achando toda a situaçãocômica. Todas aquelas palavras genéricas e sem sentido faziam todo o sentido com ocontexto. Tudo era uma brincadeira e não passava de uma armação comum no meiocircense. Ilsa ainda estava curiosa e quis perguntar algumas coisas. Mas, a senhoraindicava que o espetáculo havia terminado. Ela havia, de alguma forma, virado a suapoltrona em sentido oposto aos dois. Então, como o instruído, eles prosseguirampara a saída.

– Não estão esquecendo de nada? – Disse a senhora de onde estava.

Em cima da mesa, na mesma posição que estava o livro vermelho, havia uma caixacom um cifrão dourado na frente.

– Tudo tem seu preço. – Ela disse.

Einri, não escondia sua satisfação. Sorria ao ter suas expectativas confirmadas. Tudonão passara realmente de um pequeno golpe, divertido, porém um golpe. Ele tirarado bolso algumas Rúpias e depositara na caixinha sobre a mesa.

- “De graça”. – Disse Einri para Ilsa, ao sair da tenda. – Que enganação. –Completou.

– Até que não foi tão ruim. – Ilsa sorria, contentando-se. – Vamos, ainda temalgumas coisas para ver. – Ela não deixava a decepção do espetáculo anterior abalarseu entusiasmo. Era um circo, afinal.

Aparentemente, as atrações não estavam prontas para qualquer apresentação. Váriosanões trabalhavam montando as tendas de diferentes modelos. Mas, um anão emespecial parecia nervoso com a presença dos dois ali. Aquele mesmo que outrora osinterrogara, voltara aos importunar.

– Voltem mais tarde, não tem nada pronto ainda. – Ele segurava um pequenomartelo na mão, estava suado e parecia extremamente ocupado.

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– Acho que não podemos esperar. – Disse Ilsa para ele.

O anão mudou a feição rapidamente. Parecia entender que havia acabado de perderum cliente.

– Nesse caso, já que não poderão ver as atrações, ao menos deixe-me apresentar aminha barraca de trocas e vendas. – O anão guardou o martelo no cinto da calça epuxou uma pequena bolsa de couro carregada de moedas.

“Outro golpe” Pensou Einri, mas não disse nada. Não queria estragar a alegria deIlsa. Os dois seguiram o anão alguns passos, passando por outras tendas emconstrução, até chegarem a uma pequena barraca de madeira que já estavadevidamente erguida.

– Tenho de tudo um pouco, suprimentos, mapas, joias, roupas e armas. – O anãoexplicava, se colocando do lado de dentro da barraca. Em questão de segundos elehavia passado de um construtor mal-encarado a um vendedor nato, sorridente efeliz com seus clientes.

Einri viu uma oportunidade naquela situação. O caminho até a Vila das Tripas aindaera longo e ele se sentiria muito mais seguro se estivesse portando qualquer tipo dearma. Rapidamente ele vasculhou os artefatos que estavam pendurados na parte dafrente da barraca do anão, à procura de algo que valesse a pena.

– Você também faz parte do espetáculo? – Ilsa perguntava ao anão, enquanto Einriprocurava o que ele queria.

– Todos fazemos. Esse é um circo de família. – O anão explicava e olhava Einrimexer em seus produtos. – Todos temos um papel. Sou eu e mais sete irmãos quetomamos conta do circo hoje em dia. Ele existe a cinco gerações e é orgulho da nossafamília. – Ele explicava. – Viajamos toda a Arreta fazendo o que sabemos fazer e temsido assim por um longo tempo.

Em meio a bagunça exposta na pequena venda do anão, algo chamara a atenção deEinri. Era uma pequena espada de bronze, aparentemente bem frágil e regular.Porém, havia algo escrito em sua base, algo que Einri reconhecera. Era uma escrituranobre. Com certeza era uma arma feita por um Forjador. Aquilo não podia ser imitadoou reproduzido por qualquer pessoa. Talvez aquela espada estivesse perdida porbastante tempo naquela venda.

– Quanto por essa espada? – Ele apontava para a espada fina de bronze eperguntava ao anão que contava sua história entusiasmado.

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– Cento e cinco Rúpias. – Disse ele, sem ponderar. Einri escondeu a satisfação. Erauma mixaria, algo daquele porte valia no mínimo cem vezes mais do que o anãopedira. De fato, ele não deveria saber do que se tratava aquela espada.

– Isso é um roubo! – Exclamou Ilsa e o anão pareceu ofendido. Einri enxergou-seaflito, aquela bagatela parecia ter ido pelos ares.

– Cento e cinco moedas por uma espadinha fina daquelas? Onde já se viu! – Ilsacontinuará a reclamar. O anão fazia feições de poucos amigos, estava ofendido. Einriencarava Ilsa desesperado. Desejava que ela pudesse ler seus pensamentos naquelemomento.

- Vamos fazer o seguinte. – Disse ela, colocando o dedo indicador a algunscentímetros do rosto do anão. Ela estava brava e parecia ter certeza do que fazia. “Elenão vai vender nada” pensou Einri. – Está vendo aquela pequena besta? – Elaperguntou e não esperou resposta. – Vamos levá-la com mais vinte flechas azuis. Aisim estaríamos pagando um preço justo. – Completou.

Malmente tinha acabado de falar, Ilsa já tinha colocado a besta nas costas, eamarrado a pequena aljava na cintura.

– Quinze flechas. – Disse o anão, negociando a transação.

Einri parecia não acreditar. Ela era de fato uma Mercadora. Não disse mais nada,contentou-se em retirar as Rúpias de sua mochila e entregar ao anão que sorria feitouma criança. Prendeu a espada na cintura e continuou calado.

– Para onde vocês estão seguindo viagem? – Perguntou o anão, enquanto contava asnotas.

– Vila das Tripas. – Disse Ilsa.

– Sim, sim. – O anão continuava a encarar as notas. – Vocês estão no caminho certo.Acho que mais um dia e meio de caminhada e vocês chegam lá. Tenham uma boaviagem. – Ele sorria e se despedia.

A imagem do circo em construção ficou para trás em conjunto com seuspersonagens. Einri e Ilsa continuaram sua caminhada estrada acima, rumo à Vila dasTripas. Einri se sentiu mais seguro, portando aquela arma que ressonava uma energiadiferente. Ilsa carregava o seu arco preso as costas, facilmente. Passos e mais passos àfrente e o sol começara a atingir o seu ponto mais alto no céu. Nuvens brancas emacias faziam sombras aqui e ali, o que ajudava os viajantes a continuarem acaminhar. A estrada continuava ampla e bem pavimentada. A vegetação pareciarespeitar os limites da estrada e as árvores faziam sombra para quem a caminhava. Ochão era quase todo coberto por uma graminha macia e por barro batido. O silêncio

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da estrada era absoluto e o que se ouvia era apenas os sons da natureza e dos passose Einri e Ilsa.

– Hora do almoço. – Einri declarara que era hora de fazer uma pausa.

Foi o que eles fizeram, afastando-se apenas alguns passos da estrada, sentaram-sedebaixo de uma árvore que tinha uma copa larga e convidativa. Galhos e galhos. Afogueira estava pronta e o almoço era por conta de Tia Frizda.

– O que você espera encontrar lá? – Ilsa se referia ao bilhete que iniciara toda aquelajornada. – Vergo, o vesgo. Quem será ele? – Ela compartilhava sua ansiedade.

Einri, que alimentava a pequena fogueira, ponderou antes de responder. Apertou obolso esquerdo da calça com a palma da mão, conferindo que o bilhete ainda estavalá.

– Respostas. – Ele disse, seriamente. – Espero que ele, seja lá quem for, possa terrespostas. – Einri falara, com uma feição de preocupação.

– Sim, é verdade. – Ilsa concordara. – Mesmo que ele não as tenha, acho que elasvirão, mais ou mais tarde. – Completou.

Einri ficou encarando o horizonte por alguns segundos. Estava pensativo. Mas, logomudou sua expressão e mostrou um sorriso sincero.

– Vamos comer. – Disse ele. – Depois tenho que te ensinar como usar essa coisa. –Ele apontava para besta que estava escorada próxima a mochila de Ilsa.

– O que faz você pensar que eu já não sei? – Ilsa provocava.

Einri ficou vermelho de vergonha. Talvez tivesse a ofendido de alguma maneira.Quis se desculpar, mas não teve tempo.

– Brincadeira. – Ela disse. – Realmente, dessa coisa só sei o preço. – Ela sorria edescontraia a conversa.

Sal, ervas verdes, ervas finas, verduras, batatinhas e uma massa em formato decoração davam beleza a sopa. O cheiro era convidativo e fazia qualquer boca salivar.O sol já estava morno e a sopa já não mais existia. A estrada continuava lá, ansiosapor mais passos. Os dois esperaram a comida virar força e arrumaram tudo quetinham bagunçado. Mochilas nas costas, estavam novamente prontos para continuar.O destino, dessa vez, era esperado. O que ele haveria de trazer, motivo decuriosidade. Com a certeza da necessidade do caminhar, Einri Coração-de-Leão eIlsa Troca Leve, prosseguiram pela Via 13, perseguindo seus sentimentos.

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Capítulo IIIA estrada menos viajada

Homens vão à guerra por que seus vizinhos vão à guerra. Homens vão à guerra,pois seus amigos vão à guerra. Homens vão à guerra por que seus pais e seus irmãosvão à guerra. Não há razão sublime nem nenhum sentimento puro no ato deguerrear. Homens. Desespero. Homens desesperados são unidos por um únicopensamento: sobreviver. Não há lado bom nem glorioso em uma guerra. Assimcomo não há lado perdedor ou vencedor. Guerra é o ato de se perder. Perdem-sesobretudo vidas. O vento trazia notícias amargas naquele fim de tarde de outono. Damesma forma que se espalhou para o oeste, o fez ao leste, carregando em seus uivosnotícias indesejadas. Assim, os dois grandes exércitos ficaram sabendo do seudestino. Cem mil homens enfrentariam outros cem mais no primeiro minuto de solda manhã seguinte. Os motivos? Não importa. Quem detinha a razão? Isso tambémnão importa. O sol nasce para todos e para aqueles que ali estavam esse fato pareciaser uma terrível anedota da própria Morte, que sorria em seu trono amaldiçoado.Mas, por estarem acompanhados e não sós, eles urraram. Por estarem ao lado deseus vizinhos, amigos, pais e irmãos, urraram como um animal urra em perigo.Bravura? Medo. Medo que qualquer ser sentiria ao ver o próprio reflexo se perdernos olhos fundos da Morte. Não há nada errado em sentir medo, é apenasnatural. Isso não mudaria nada. Homens com medo também matam.

O sol esquentou as pontas das montanhas do Sul com seus primeiros raios dourados.As nuvens que estavam ali toda a noite foram se afastando umas das outras até quenão existiam mais. O sol veio e com ele os horrores da guerra pareciam certos. Doisexércitos de cem mil homens cada um se encaravam acerca de mil metros dedistância. Duzentos mil homens haviam caminhado boa parte da noite para seencontrarem em um planalto vasto e alto. Parecia ser o cenário perfeito para umaguerra: não havia para onde fugir. O exército Nortista intitulava-se Leões Gélidos elutavam sobre a proteção do estandarte da Família Real. Embora isso fosse verdade,nenhum Criador fazia parte daquele exército. O seu general, e mais importantemembro, era um Sacerdote que compartilhava um dos títulos de Mago em todaa Arreta. Do outro lado do planalto, e nada mais do que justo, estava ooutro Sacerdote que portava o mesmo título. Esse comandava um exército de cemmil Selvagens. Os Nômades, como eles eram reconhecidos, apostavam em seucomandante como um ás em qualquer batalha. Não era para menos. Osdois Magos que ali se enfrentariam eram verdadeiras lendas vivas. Ambos haviam

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alcançado poderes que pareciam não mais pertencer àquele mundo. Homens quepareciam deuses. Conhecidos como o Grande Mago do Sul e o Grande Mago doNorte aqueles dois tinham fama por todo o planeta. Eram como duas forças opostasque mantinham o equilíbrio do poder entre a parte Sul e a parte Norte do planeta.Mas, a paz que aqueles dois titãs haviam mantido havia chegado ao seu fim. Era omomento que todos temiam e esperavam. Destino havia cruzado suas linhas, chegouo momento em que eles teriam que se enfrentar. O momento havia chegado e cercade duzentos mil olhos serviam de testemunha. O primeiro batalhão delanceiros dos Leões Gélidos portava estandartes da Família Real e montavam cavalos.Estavam organizados em fila, cerca de dois mil homens lado a lado, a espera que aordem fosse dada. Do outro lado do planalto estava o exército Nômade. Eles seorganizavam de forma parecida, porém, não haviam estandartes e cavalos. Osguerreiros nômades eram excelentes atiradores e não gostavam de cavalos. Lutavamcom os próprios pés, carregando seus arcos e machados. Sangue no olhar doshomens. Sangue que parecia estar prestes a ser derramado. A ansiedade reinava eos corações dos homens - que ali se encaravam - palpitavam no ritmo do medo. Mas,antes que os tambores tocassem em ritmo acelerado, anunciando o combate, antesque os primeiros passos fossem dados em direção a morte, antes mesmo que oprimeira lança perfurasse o primeiro escudo, algo estranho ocorrera. Os homens queali estavam ficaram estagnados, paralisados. Justificável, pois o que aconteceu foialgo impensável. De fato, os homens que ali lutariam julgavam estar preparadospara o que estava por vir. Imaginavam e contavam histórias sobre o poder queaqueles dois usariam naquele dia. Ansiavam pelo que podia acontecer quando osdois, finalmente, se enfrentassem. Mas, Destino sorriu naquele dia e apenas ele.O Grande Mago do Norte nada fez e nada podia fazer. A única coisa que se passou porsua mente, e de todos os seus homens junto com ele, foi a necessidade de fugir.Aconteceu com algumas palavras murmuradas, inaudíveis. Com certa facilidade eimprobabilidade, o impossível aconteceu em frente a todos aqueles homens.O Grande Mago do Sul havia conjurado uma das Três Silabas. Umdos feitiços esquecidos e proibidos. Aquele homem havia conjurado umencantamento de outra época, algo que não deveria mais existir. O que os homensviram foi o que hoje contam: A Marca do Dragão. Aconteceu em instantes, em umafração de segundos. Cerca de sessenta mil homens sumiram em pleno ar.Desapareceram como se desintegrassem em um único segundo. Com um vento forte,que trouxe uma névoa avermelhada, vieram a pó e em um piscar de olhos, como senunca sequer estivessem ali. O sofrimento deles não despareceu como seuscorpos, gritos e berros de dor permaneceram no ar. Apavorantes. Aterrorizantes. Aagonia na voz dos homens parecia infindável. A Marca do Dragão. Isso foi o fimda Guerra dos Dois Magos para os Nortistas. O que eles não sabem, fato que é mantidocomo segredo até os dias atuais entre os Selvagens, é o que presenciaram os outroscem mil homens que ali permaneceram. Estavam apavorados assim como os quefugiam, mas ficaram parados, em dúvida sobre o que havia ocorrido. A névoavermelha que o vento havia trazido foi se desfazendo, na medida em que os gritos

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foram se calando, um por um. O exército Sulista permanecia ileso. Completo comohavia subido a montanha e parado como havia se posicionado. Minutos se passarame a névoa vermelha sumiu por completo. Os homens voltaram seu olhar parao Grande Mago à procura de uma explicação. O mesmo estava pálido e quieto. Suaaparência não era a mesma. Parecia ter perdido o fôlego e sua pele estava seca equebradiça. Algo havia ocorrido com seu corpo, como se a velhice lhe tivessechegado em um instante. Os Nômades, ainda sem compreender que haviam ganhadoa batalha, olhavam para o horizonte, observando os Nortistas que fugiamdesesperados, montanha abaixo. Os homens estavam quietos, extremamentequietos. Dois homens que estavam mais próximos ao general trataram de ajudá-lo,carregando-lhe como um herói em direção ao caminho pelo qual vieram. Pareciamusar patentes de comandantes, embora aquelas patentes não os livrassem dosentimento de incompreensão que assolava o exército inteiro. Antes que eles semisturassem a multidão de guerreiros sulistas e sumissem em meio ao planalto, ogeneral fez um gesto com a mão, indicando algo a um dos homens. Ele prosseguiuem direção ao que o general havia indicado, retirando de sua frente alguns homensque olhavam curiosos. Correu rapidamente em direção ao exército inimigo. Pareciater perdido o juízo. Correu como quem corre pela própria vida, em direção ao localonde tudo havia ocorrido. Os homens ficaram estáticos, após tudo aquilo, pareciaque um de seus comandantes havia perdido o nervo. Ao longe, perceberam que elehavia se abaixado e pego algo no chão. A surpresa foi completa, quando ocomandante retornou com uma criança nas mãos.

O sol sorriu o seu primeiro sorriso e as nuvens começaram a se dissipar no alto damontanha. Ali tudo estava molhado, o frio da noite ainda não tinha ido embora. Asárvores se balançavam levemente, secando suas folhas e galhos em conjunto. Osbichos deixavam sua toca em ordem. Primeiro os menores, roedores e aves, logo osrépteis rastejavam pelas pedras buscando o calor do sol, por fim, os grandescaçadores se espreguiçavam - levantando seus pelos - alegres com o raiar do dia. Osdois que ali estavam continuaram do mesmo jeito. Enrolados em uma manta de lã decarneiro, enfrentaram o frio debaixo de um telhado improvisado com galhos e folhassecas. Malmente podia-se chamar aquilo de tenda; era apenas um teto que protegiaboa parte dos seus corpos do sereno. Brum, pequeno como sempre o foi, cobria atémesmo o próprio rosto com o cobertor de pelo de carneiro. Estava amassado entre ochão duro, as dobras que ele mesmo fez com o cobertor, e suas roupas quediminuíam o desconforto. Involuntariamente juntou as costas ao seu companheirode jornada em uma tentativa de se aquecer a noite. Muito maior que ele e não tãocoberto, estava lá Lance Brandobravo descansando pacificamente. O sono dos justosestava para ser interrompido. Fora um barulho estalado que chamou a atenção deLance, fazendo-o saltar em alerta. Em um reflexo, ele já estava desperto e com seuarco a mãos. Corda esticada, braços em linha, fez o disparo. A flecha viajou cerca de

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vinte metros mato adentro, acertando o alvo perfeitamente. Tratava-se de uma lebreadulta e carnuda. Deveria pesar cerca de dois quilos, apesar que a maioria do seupeso pertencia a sua grossa pelagem.

- Vamos lá? O café da manhã já está garantido. – Lance acordava Brum.

Por alguns instantes, poucos ínfimos instantes, Brum sentiu-se em casa. Parecia ouvira voz de seu avô. Sentiu o cheiro do seu quarto e tudo era muito familiar. Mas, forapor apenas alguns instantes. Logo estava consciente de sua situação. Havia deixadoErma, é verdade.

– Pegue alguns galhos mais fortes, vou tratar o bicho. – Lance carregava a lebre noombro. Aquela imagem perturbou Brum e logo ele tratou de se levantar, afastando amanta e dando alguns tapas no próprio rosto. Ele procurou galhos próximos a ondehavia dormido e ali achou alguns bons, secos e grossos, fariam um belo fogaréu.Lance retirou rapidamente a flecha do bicho, que já não mais fazia barulho, ecomeçou a tirar sua pele com certa facilidade. Parecia saber o que fazia.

– Isso dá? – Perguntou Brum, apontando para uma pilha de lenha que haviarecolhido.

– É mais do que o suficiente. Me diga, você gosta de lebre? – Lance sorria. Ele estavasegurando a cabeça do bicho e apontava-a em direção à Brum. Ele se divertiu com acara de nojo que o garoto fez.

O fogo estava alto e a lebre espetada em um galho de pinheiro afiado por uma faca,assava ao ar livre. Brum e Lance sentaram-se juntos, observando enquanto a comidaficava pronta. Pareciam famintos, mas Brum não prestava muita atenção a lebre,estava com o olhar vago, o seu pensamento estava em outro local.

– Por que você me ajudou? – Indagou Brum. – E não me diga que é apenas por que“é sempre bom ajudar alguém de Erma”. – Ele fez questão de imitar o companheiro.

– Acho que já dá para comer. – Afirmava Lance, enquanto cortava com uma faca umpedaço da lebre. – Você é bem perceptivo. – Disse ele, enquanto oferecia a Brum opedaço que havia cortado.

Brum aceitou e começou a comer a carne com as mãos mesmo. Inacreditavelmente,estava muito bom e seu estômago sentiu-se feliz.

– Não deixa de ser verdade que é sempre bom ajudar alguém de Erma. – DisseLance. – Mas, eu não lhe encontrei por acaso. Para ser sincero, percorri um longocaminho até chegar em Erma. Longo até demais. – Completou.

Lance parecia triste. Parou de mastigar a coxa da lebre que havia retirado do fogo efixou o olhar nas árvores. Lembrava de algo, algo importante.

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– Nunca te vi em Erma. – Observou Brum. – E eu conheço todo mundo lá.

Lance despertou do seu devaneio e sorriu com o que o garoto havia dito.

- “Corte a baboseira”. – Lance sorria. – Certo. Eu estive em Erma, mas não por tantotempo quanto eu gostaria. Na verdade, estive em Erma por pouquíssimos minutos.Como te disse, viajei um longo caminho para chegar até Erma, mas chegar até Ermanão era o meu objetivo. Eu queria encontrar seu avô.

Brum tomou um susto. Prestava atenção como nunca aquela conversa.

– Me entenda. Seu avô e o meu pai são velhos amigos. Não me pergunte como elesabia, mas o meu velho me disse que o seu avô precisava de ajuda. Eu mesmoduvidei dessa aventura quando ele me explicou o que parecia estar acontecendo.Mas... – Lance fez uma pausa para dar uma mordida no pedaço de lebre.

– Continue! – Exclamara Brum.

Lance tomou pequeno susto com o tom do garoto, o que o fez engasgar com opedaço de comida descendo sua garganta. Tosses mais tarde, continuou.

– Tenha calma, estou contando. – Ele sorriu e logo ficou sério novamente. – Assimque cheguei em Erma fui surpreendido por uma situação nada comum. Umamultidão estava parada em frente a uma casa onde dois homens da Matilha nãodeixavam ninguém se aproximar. Achei curioso e fiquei à espreita, observando o quese passava. Levei um susto quando percebi uma movimentação de dentro da casa. Aporta se abriu e de lá saíram mais três homens da Elite Real puxando um velho. Osdois homens da Matilha que estavam do lado de fora trataram de expulsar amultidão que olhava tudo, curiosa.

– O Velho! – Brum se levantou em desespero. – O que aconteceu com meu avô?Céus! – Ele berrava.

– Tenha calma. – Disse Lance, pacientemente. – A princípio achei que ele estava emapuros também. Achei que toda a minha viagem tinha sido em vão. Justamentequando ele – e os guardas que o acompanhavam – passaram por mim, percebi dequem se tratava. Era o amigo do meu pai, aquele que eu deveria encontrar. É claroque ele estar sendo preso atrapalharia tudo. Mas, para a minha surpresa, o velhopareceu me reconhecer. Antes que os trogloditas o levassem para longe de mim,enquanto passava do meu lado, o velho sorriu para mim, um sorriso que você selembraria.

– O que isso quer dizer? Céus! – Brum continuava agoniado.

- Quando ele já tinha sido levado da minha frente, ele gritou o que me levou atévocê. “O vento da montanha sempre carrega nosso chapéu em direção à Aiwa! ”. Ele

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exclamou como um louco, gritando em direção aos céus. Ao menos foi aquilo quepareceu, mas eu soube que ele estava falando comigo. Logo os cães o levaram e nãopude responder. Fiquei com a impressão de que ele sabia o que estava fazendo,ainda que não parecesse assim. Me apressei e desci a montanha a caminho de Aiwa.Enfim, foi assim que te encontrei.

Brum tinha se acalmado. Não estava mais caminhando em círculos. Fitava a figurade Lance, que permanecia sentado e mastigando sua coxa de lebre, com um olharmais calmo, porém ainda confuso.

– Sim. – Disse Brandobravo. – Eu sabia quem você era. Melhor, sabia que seu avôtinha um neto, como disse, meu pai é um grande amigo do seu avô, por isso já tinhaouvido falar dele e também de você. Só não imaginei que você fosse tão novo, masquando vi seu chapéu correndo dentre as árvores, a mensagem do velho caiu comouma luva.

– Você disse que ele parecia saber o que estava fazendo. – Brum se consolava. –Começo a entender o porquê de ele ter me enxotado de Erma com tanta certeza. –Disse Brum, agora sentado. – Acho que ele sabia que eu não viajaria sozinho. Issoseria impossível para alguém como eu. Você mesmo viu. – Completou.

Lance Brandobravo poderia ter prosseguido com aquela conversa, mas não era doseu feitio falar demais. Ele sentiu que já havia gastado muitas de suas palavras emuma única manhã. Invés de continuar falando, levantou-se e dirigiu-se em direção àBrum. Roeu o resto da perna da lebre e jogou os ossos na fogueira, que malmenteestava acesa.

– Vamos. – Ele disse, enquanto amassava o chapéu de palha de Brum contra a suacabeça.

Brum percebeu que suas dúvidas, ainda remanescentes, não seriam sanadas naquelemomento. Resolveu obedecer ao que parecia mais um convite do que uma ordem,juntou suas tralhas rapidamente em sua mochila perfurada e em minutos estavapronto para caminhar. Lance se postou a frente dele e parecia um gigante.

– Seu arco é maior do que eu. – Disse Brum, bem baixinho.

Lance não respondeu, caminhou, mas sorriu escondido. Com o primeiro passo,Brum lembrou de seu avô e se perguntou profundamente se ele realmente estariabem. Com o segundo, ele se recordou da face dura e antiga do seu avô e soube queele estava bem. “Velho maldito” pensou e sorriu. Sua mente agora estava em Aiwa eem sua tia Frida, havia anos que não saia de Erma, malmente se recordava de comosua tia parecia. Sabia que ela era velha e enrugada, assim como o velho, mas não selembrava muito mais além disso. Passos e passos e ele já não pensava em nada.

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Os dois caminharam montanha abaixo e o dia caminhou tão depressa quanto eles.Logo o sol já estava quente como brasa e não havia sombras em seus pés. Brumsentiu fome e quis parar. Mas, antes que expressasse sua vontade, Lance apontoupara a sombra de uma árvore frondosa e retirou várias sementes de sua mochila. Osdois comeram rapidamente e beberam quase toda a água que carregavam.Descansaram por poucos minutos e, aproveitando uma nuvem que trazia sombra àtrilha, continuaram a caminhada. Água e comida não parecia ser um problema paraquem descia ou subia as Montanhas Áureas. Riachos eram encontrados beirando astrilhas e várias árvores cheirosas e cheias de frutos acompanhavam os viajantes. Ospassos dos dois eram apressados, mas silenciosos. Caminharam com um só fôlegomontanha abaixo. Descer parecia ser bem mais fácil do que caminhar em linha reta eo caminho facilitava tudo. O dia passou e os dois não trocaram sequer uma palavra.O sol parecia cansado e o dia se retirava para outro lugar, junto com ele. O frio danoite se aproximava com cada vento gélido que soprava montanha abaixo.

– Deveríamos parar. – Disse Brum. – Mal posso sentir minhas pernas. – E ele estavarealmente cansado. Havia caminhado o dia inteiro, apesar de não ter sentido aprincípio.

- Mais alguns passos e montamos acampamento. – Lance disse, sem olhar para trás.

“Mais alguns passos, fácil quando cada passo seus são três meus” Pensou Brum. Acaminhada continuou e a noite veio. Antes que ficasse impossível de se enxergarqualquer coisa, Brandobravo decidiu que ali seria um lugar tão bom quantoqualquer outro para se fazer uma fogueira e descansar até o amanhecer.

– O mesmo de antes, você: folhas. Eu: galhos. – Novamente ele amassava o chapéude Brum contra sua cabeça. Brum caminhou alguns passos, entrando a floresta quecercava a trilha e começou a recolher tantas folhas quanto cabiam em sua manta.Minutos depois, parecia um espantalho gordo, vazando folhas pelas aberturas dosbraços e pescoço.

A fogueira estava viva e as folhas já haviam sido queimadas por completo. Ostroncos grossos iam se transformando, lentamente, em brasas e as brasas aqueciamos dois que já estavam deitados. Fizeram uma cama improvisada, como da outranoite, e o frio da noite trouxe consigo o sono e o cansaço. Lance Brandobravo foi oprimeiro a se entregar ao tecedor. Mal havia encostado as costas no chão e fechou osolhos para aquela realidade. Sonhava profundamente. Brum resistia, encarava o céuestrelado sem um único pensamento em mente. Seus olhos escuros estavam pintadoscom as luzes que havia pegado emprestado das estrelas. Não se passou muito e osdois eram escravos do tecedor. Viviam no seu reino e suas mentes não maispertenciam a eles próprios. Brum sonhava com coisas estranhas, nunca vistas por

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nenhum dos quatro cantos de Arreta. Monstros feito de metal que soltavam luzes porseus olhos. Castelos tão grandes que tocavam as nuvens, construídos em fileira, tãojuntos que mais pareciam uma floresta de castelos. Brandobravo sonhava que erauma tartaruga e que estava com pressa, porém tartaruga como era, não podia sermais rápido do que seus próprios passos. Era uma agonia estar em um corpo quenão podia correr como ele normalmente faz. Sonhos a parte, não foi o sol quedespertaria aqueles dois. Um estalo de galho quebrado fez com que Lancedespertasse e ficasse de pé.

– Garoto? – Ele perguntava a Brum, que estava de costas para ele, mirando afloresta. – O que houve? – Lance questionava, suavemente.

Brum parecia não ouvir. Do mesmo jeito que estava parado, resolveu se mover,caminhando em direção à mata.

– Acorde! – Lance levantou a voz. Mas, de nada adiantou seu grito. Brumpermaneceu de costas e continuou sua caminhada em direção a floresta.

A medida que ele foi adentrando o mato, mais rápido seus passos ficaram. A fina luzlunar que iluminava a trilha, parecia ter sumido completamente dentro das árvores.O escuro era absoluto, porém não parecia ser empecilho para Brum, que corria comoum gato por dentre os galhos, cipós e folhas.

- Brum! Acorde! – Lance gritou, se esforçando para acompanhá-lo, floresta adentro.

Sua voz parecia inútil naquele momento. Brum continuou a caminhar como se surdofosse.

– Desperte! – Disse Lance, agora segurando Brum pelo ombro e virando-o em suadireção.

O susto foi tremendo quando Lance percebeu o que estava acontecendo. O rosto dogaroto que ele virara em sua direção de garoto nada tinha. Sua feição havia setransformado por completo. Aquele era o rosto de uma outra pessoa totalmentediferente. Brandobravo então recuou. Soltou o ombro de Brum, ou seja, lá o que eraaquilo, e deixou que ele prosseguisse. Brum então prosseguiu, dando apenas maisalguns passos em direção a uma árvore que se destacava. A árvore tinha troncogrosso e seus galhos eram mais velhos do que os galhos das outras árvores vizinhas.Ela era mais forte e detinha seu espaço entre as demais. Foi nesse pequeno campoaberto que Brum finalmente parou.

– Socorro! – Ele berrou. – Céus! Socorro! – Gritava Brum, desesperado.

Lance, que observava tudo, ainda temeroso, reconheceu o medo na voz do garoto edespertou do seu estado de choque.

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– Brum? – Perguntou, suavemente.

Brum se virou rapidamente e deu de cara com a figura de Lance.

– O que aconteceu? – Perguntou Brum.

Antes que Lance pudesse responder aquilo que ele não tinha resposta, uma outravoz resolveu participar daquela conversa.

– Que bom que você me ouviu. – A voz, fina e melosa, vinha de uma pequenagarota, que tinha a pele alva como neve, cabelos cacheados e dourados, olhosmarrons e fortes. Ela vestia um vestido todo branco e bastante delicado. Estavadescalça e falava enquanto se encostava na árvore.

– Para cá garoto! – Exclamou Lance e Brum o ouviu. No susto que levou, deu cincopassos rápidos, mais pareciam pulos, em direção a Lance.

A garota riu e o seu sorriso era lindo e honesto.

– Calma, eu não vou machucar vocês. – Ela disse, cobrindo o sorriso com as duasmãos.

– Espírito, nós só queremos prosseguir viagem. – Lance falava com calma, enquantopuxava Brum para trás, empurrando-o com seu braço.

– Sim, eu sei. – A garota conversava. – Já disse que não vou machucar vocês. – Elanão mais sorria, estava séria e continuava encostada na árvore. – Eu queria conhecervocê. – Ela apontava para Brum, que a encarava com toda a cautela.

– Espírito, siga seu caminho que seguiremos o nosso. – Lance barganhava, temeroso.

Brum sentiu um calafrio terrível em sua espinha. Aquela conversa trazia medo aoseu corpo. A garota se referia apontava para ele.

– Garoto, fique quieto; é falta de educação falar quando os adultos estãoconversando. – Ela olhava seriamente para Lance. Seu olhar era penetrante, algomuito confuso e incomum. Seu corpo era de uma menininha, mas seus olhospareciam tão velhos quanto o próprio tempo. Brandobravo não entendeu o que sepassava, mas sentiu que deveria calar-se.

– Você não precisa falar nada. – Ela voltou a sorrir. – Está tudo bem. Eu quero só quevocê me faça um pequeno favor. – A menina falava com Brum. – Está vendo aquelemachado? – Ela apontou para um machado velho e enferrujado. Estava fincado emuma das raízes expostas da grande árvore. Brum afirmou movendo a cabeça paracima e para baixo. – Tire ele de lá, está me dando nos nervos.

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Lance retirou seu braço da frente de Brum. Estava disposto a jogar aquele jogo com obaralho dado. Brum andou mais cinco passos e ficou de frente para o machadovelho. Seu cabo estava quase todo podre e muitos cogumelos já haviam crescido ali.Sem muito esforço, ele arrancou o machado da raiz e jogou no chão. Quando acabousua tarefa, tomou de volta os cinco passos que havia dado, retornando ao lado deLance.

– Ufa! Muitíssimo obrigada! – Disse a garota, que parecia feliz e satisfeita. – Agora tefarei um favor, é assim que as coisas funcionam.

Os dois estavam quietos e apenas ouviam.

– Vocês estavam indo pelo caminho errado. – Ela disse. – Digo, não que o caminhofosse errado, ele não era. Era o caminho certo. Mas, se vocês continuassem naquelecaminho ele seria o caminho errado. – Ela sorriu. – Mas, agora que avisei, vocês vãoachar o caminho certo. – Completou.

Brum olhou para Lance e Lance olhou para Brum. Não sabiam o que responder. Seuscorações estavam acelerados e o medo parecia nublar toda aquela experiência.

– Bom, foi um prazer. – A garota se aproximou dos dois, que permaneceramestáticos. – Quando você acordar, mande lembranças de mim para Eles. – Ela falavabem próxima de Brum, encarando-o nos olhos.

– Obrigado pela ajuda. – Brum disse, parecia ser o certo a se dizer.

Com um sorriso e uma gargalhada, a garota se afastou dos dois. Encostou-senovamente na árvore.

– Não há de que, eu sempre ajudo aqueles que merecem uma ajuda aqui e outra ali.Sempre. – Ela disse e se inclinou. Era um gesto de cortesia.

Como havia aparecido, a garota desapareceu. Deu uma volta no grande tronco daárvore e sumiu das vistas de Brum e de Lance.

A conversa havia terminado e os dois corações que palpitavam, foram se acalmandona medida em que os dois sentiram o tempo voltar a passar. Olharam para a frente ea floresta não parecia tão assustadora. O céu já estava mais claro e o sol anunciava oseu retorno.

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Capítulo IVO Escolhido

Caminhar é necessário. Existem certas coisas que no universo se justificam por si só. Fatosque não precisam de explicação e que se completam pelo simples existir. Caminhar é umadelas. Um pé vai a frente e o outro vem atrás. Um pé vai a frente, buscando o desconhecido.Ele é o desbravador, o destemido, aquele que ousa e que age com vontade, esse é o pé quevai afrente. O desconhecido então transforma-se naquilo que sabemos e confiamos. O pé dafrente então convida o seu amigo mais íntimo, o pé que estava atrás. Ele convida-o para oque vem a seguir. Convida-o, pois o chama com carinho e com segurança. Se o pé da frentepudesse falar ele diria: “Venha, é seguro, eu estou aqui”. Então o pé de trás aceita o convite,sorridente. O pé de trás traz o equilíbrio e a força para o pé da frente. Juntam-se e juntos osdois são fortes. Compreenda que o pé da frente jamais iria a frente se não fosse a força do péde trás e que ao chegar à frente, o pé de trás torna-se, então, pé da frente. Caminhar énecessário.

Os dois que caminhavam, o faziam com firmeza. As Montanhas Áureas já não mais pareciamum obstáculo, tratava-se – agora – de uma trilha gentil; o pior já havia ficado para trás.Lance Brandobravo continuava a frente do seu pequeno companheiro de viagem, guiando-omontanha abaixo. A noite anterior tinha sido das mais esquisitas, mas nenhum dos doistinha omitido opinião sobre o assunto. Partiu de Lance a iniciativa de manter-se calado.Juntou suas coisas e privou-se a dizer uma única palavra: “Vamos” disse ele, Brumobedeceu. Aproveitando a luz que o sol trouxera, desceram o que faltava descer do caminhoabaixo. Brum já havia caminhando aquela trilha algumas poucas vezes, apesar de parecernão se lembrar daquilo. Havia andado com seu avô duas ou três vezes aquele caminho emdireção a casa de Tia Frizda. Brum e Lance agora davam os últimos passos e deixavam Ermae as Montanhas para trás. De onde estavam podiam enxergar o Rio das Bruxas que era forte ecaudaloso. O Rio levava a Aiwa e a cidade era o rio. A trilha da Montanha havia terminado eos dois estavam em uma pequena planície esverdeada de onde se podia ouvir o correr daságuas.

– É estranho. – Observou Brum. – Deveríamos ter demorado mais do que isso paradescermos a Montanha. Eu lembro que viajei esse mesmo caminho com o Velho e tive quedormir duas noites seguidas no mato. – Concluiu.

Lance Brandobravo parecia satisfeito com a caminhada e a falsa pergunta de Brum pareciavir a calhar. Levou a mão direita ao rosto e encarou o sol por um segundo. O sol estava apino e parecia ser uma boa hora para tirar o primeiro descanso do dia.

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- Acho que pegamos um atalho, mesmo sem querer. – Lance explicava enquantodesamarrava a sua trouxa-mochila das costas. – Talvez tenha a ver com o que aquele espíritodisse na noite passada. Coisa mais estranha. – Disse ele.

Brum sentiu que aquela seria a oportunidade para finalmente saciar sua curiosidade. Todoaquele silêncio de nada havia aquietado sua mente, lá só havia dúvidas e questionamentosprontos.

– Você acha que aquela garota nos ajudou? – Perguntou, e se desfez do peso da sua mochila,jogando-a ao chão.

- Talvez, ou talvez fosse o Velho que caminhasse devagar. – Lance sorriu. – Vamos almoçar.O que você tem nessa sua mochilona? – Ele perguntou, mas não esperou resposta. Já estavaabrindo a mochila de Brum e investigando com as próprias mãos.

– O que ela era? – Brum insistiu no assunto. Parecia não se importar com a intromissão.

Lance já estava com um pedaço de pão em mãos e sua boca, que ouvia a súplica do seuestômago, salivava.

– Em Brandobravo ouvi histórias sobre seres como aquele. – Ele falava enquanto comia, eoferecia, o pão seco. – Desde pequenos a todos em Brandobravo são contadas histórias sobreos espíritos que protegem as florestas. Seres mágicos que tomam conta de todas as árvores,plantas e seres que ali vivem. – Ele disse.

– Brandobravo? – Perguntou Brum.

– Sim, é de onde eu venho. – Falara Lance. – Trago no meu nome o meu lar, assim comomuitos de lá o fazem. – Seus olhos brilhavam com orgulho.

- Então ela estava querendo nos ajudar. – Disse Brum. – O espírito, quero dizer. – Concluiuele, sem muitas delongas.

– Como disse, talvez. – Lance retrucou. – Esses espíritos são protetores e pouco razoáveis.Nem sempre eles estão dispostos a ajudar quem está em pleno mato, pelo contrário, paraalguns eles são considerados perigosos, muito perigosos. – Ele parecia sério, mas logo suafeição mudou para algo mais alegre. – Coma, ainda temos um bom percurso pela frente. –Lance oferecia o pão com a mão direita e a água, guardada em uma bolsa de couro, com amão esquerda para Brum.

Os dois comeram e descansaram poucos minutos, debaixo de uma pequena sombra que umarbusto qualquer cedia. Antes que pudessem prosseguir, Lance Brandobravo quebrou osilêncio do pequeno descanso.

– O que faremos quando chegarmos a Aiwa? – Perguntou.

Brum estranhou a pergunta, estava seguindo seu companheiro tão fielmente que haviaesquecido que Lance era um desconhecido, afinal ele o tinha encontrado há poucas horas.Talvez fosse o fato de que ele tinha salvado sua vida, talvez não fosse somente esse fato, mas

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Brum sentia uma afeição estranha por Lance, uma confiança estranha havia ali, algo difícilde se explicar.

- O Velho disse para procurar a minha tia. Ela deve saber o que está acontecendo, pelomenos assim espero. – Brum parecia ansioso. – Mas, tem um problema, eu não sei onde elamora. Quero dizer, sei que é em Aiwa, mas não lembro onde fica sua casa. Bom, eu sei o seunome, acho que podemos achá-la, não será problema. – Ele se justificava.

– Ótimo. Achei que o Velho fosse me dar explicações sobre o que meu pai chamou de“missão das mais urgentes”, mas não tive tempo de sequer lhe dizer uma palavra. Talvezsua tia esclareça as coisas.

Lance Brandobravo devorou o que tinha sobrado daquele pedaço de pão e já se mostravadisposto a continuar com a caminhada.

– Lá está o rio, daqui é só o seguir conforme a corredeira, em algumas horas estaremos emAiwa. – Lance explicou.

Sem mais tardar, os dois estavam de pé e suas tralhas estavam nas costas. A trilha haviamodificado completamente e com ela o cenário. Eles caminhavam à margem do rio e tudoque se via era uma vegetação rastreira e bastante verde. O rio corria dividindo duascordilheiras e deixava claro que era muito mais fácil caminhar junto a ele. Brum e Lanceassim faziam, andavam depressa, pois era tudo plano e bonito o que animava os fôlegos.Caminharam apressadamente mais algumas horas, parando apenas para encher a bolsa decouro com a água do próprio rio. Logo, se viram diante de Aiwa.

– Veja! Lá está! – Exclamou Brum.

A cidade de Aiwa era um milagre e essa é a palavra que a melhor descrevia. Tratava-se deuma cidade grande, com mais de trezentas residências, todas feitas de madeira. Aiwa erauma cidade flutuante. Estava localizada em uma bacia imensa, que mais parecia um lago. Acidade foi tomando forma quando diversos Forjadores ampliaram seus portos de certa formaque se fez necessário que os portos não mais tocassem a margem do rio. Aconteceu que aspessoas foram construindo suas casas, copiando o modelo flutuante e a cidade se formou.Aiwa, de onde Brum e Lance estavam, se apresentava como parte da paisagem, unindo abeleza natural com uma maravilha arquitetônica.

Os dois não se acanharam e terminaram de caminhar a trilha do rio. Foram poucos passosque tiraram eles da solidão do caminho andado, finalmente chegando ao objetivo. A cidadecomeçava em uma ponte, que tinha como marca um portal alto e imponente no seu começo.A ponte feita de madeira escura. Aparentava ser bastante antiga. Sua edificação estava cheiade crustáceos e vários peixes usavam a sombra da ponte como casa. A ponte em si era larga eviva. Muitas pessoas circulavam por ela, carregando mercadorias ou simplesmentechegando e saindo de Aiwa. Não parecia ter fim, pois era essa a ponte que dava começo acidade de Aiwa e dela tudo fluía. A ponte funcionava como uma grossa artéria para as maisdiversas pontes pequenas que ligavam toda Aiwa como se fossem veias.

– Ermita! – Exclamou uma voz desconhecida. – Você é o sobrinho, não é? – Disse ele.

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Ele era um senhor parrudo e cabeludo. Vestia um macacão bastante batido e trazia nas mãosuma sacola com uma vara de pescar e diversos tipos de martelos.

– Hã? – Brum parecia ter engasgado. Não sabia o que estava acontecendo, não tinhalembrança alguma daquele senhor. Havia apenas chegado em Aiwa naquele momento ealguém já o reconhecera.

– É sim, você é sobrinho da Dona Frizda. Você não mudou nada! – O senhor malmenteterminou de falar e partiu para um abraço caloroso.

Toda a situação parecia ser constrangedora para Brum, mas para o senhor era tudo muitonatural. Lance percebeu o constrangimento de Brum, por um momento até ficoupreocupado, mas não sentiu nenhuma gota de maldade naquela pessoa.

– Desculpe, mas eu não lembro do senhor. – Disse Brum, findando aquele abraço.

– Não tem problema. – Disse ele com um sorriso no rosto. – Acho que você era mais novonaquela época. – Completou.

Brum olhou para Lance e o mesmo acenou com a cabeça, parecia estar de acordo com o quese passava.

– Vocês já foram visitar ela? - Perguntou o senhor.

– Acabamos de chegar. – Disse Lance. O senhor parou alguns instantes e ficou admirandode onde vinha aquela voz. Parecia intimidado.

– Você eu não conheço. – Afirmou. – Mas, se está com ele má pessoa não é. – Completou epartiu para outro abraço.

Se com Brum o abraço foi desconcertante, com Lance Brandobravo a vergonha reinava. Eleficou lá, estático, enquanto o senhor que mal conhecia lhe apertava a cintura.

– Enfim, eu levo vocês lá então. Não tem problema. – Ele falou e começou a caminhar. Osdois? Seguiram. Parecia a oportunidade perfeita. Haviam achado um guia.

Três então adentravam Aiwa e a cidade acolhia aqueles que a visitavam. Tudo era feito demadeira e tudo parecia flutuar, porém as casas continuavam imóveis, como se no chãoestivessem. Alguns poucos alicerces seguravam uma casa ali e outra loja aqui. Mas, eramimensas bolsas de ar que mantêm o equilíbrio da coisa toda. Nada era visto da superfície,mas do fundo do rio ficava tudo bem claro quando se olhava a cidade de baixo. Nasuperfície tudo parecia uma festa. Aiwa tinha fama por seus bares e eram eles que davam acara da Cidade Flutuante. Por onde quer que se andasse na cidade, acabaria se achando umbar. A cidade tinha cheiro e som de bar. Talvez por isso fosse considerada um ponto dedescanso obrigatório pelos viajantes que passavam por ali. Em Aiwa, até mesmo ashospedarias tinham seu próprio bar e tudo era motivo para bebida e cantoria. Passadasalgumas ruas e outros vários bares e casinhas de madeira, Brum percebeu que aquelecaminho já não lhe parecia tão estranho. Sua memória ficava cada vez mais viva a medidaque se aproximava da casa da sua tia.

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– Senhora! Senhora! – Exclamava o senhor e batia fortemente as palmas das mãos umacontra a outra.

Os três estavam em frente à casa de Tia Frizda. A casa não tinha nada de diferente dasdemais de Aiwa. Era feita toda de madeira e possuía um só andar. Uma pequena pontemóvel separava a porta principal da casa da pequena rua, que na verdade só era uma pontemaior e mais firme.

– Senhora! Trouxe visitas! – Exclamou ele, novamente batendo palmas.

Brum logo reconheceu a figura que aparecera quando a porta se abriu. Era uma velhinhacom aparência bastante amigável. Seus cabelos finos, curtos e brancos, juntavam-se a unsóculos de vidro grosso e a uma estatura quase minúscula. Tia Frizda era tão meiga quantoaparentava.

– Brum! Mal posso acreditar. – Ela disse e levou as mãos a boca em surpresa. Deu passosapressados, deixando a sua casa para trás e atravessando a pequena ponte flutuante.

– Tia Frizda! É muito bom ver a senhora. – Brum disse e chorou.

Parecia que Erma não havia ficado para trás. Parecia que o Velho estava com ele. Parecia quenada pudesse dar errado e que o mundo fosse perfeito. Brum sentiu-se em casa e o seucoração amoleceu. Lance Brandobravo ficou comovido com a sinceridade nos olhos dogaroto. Lembrou brevemente de casa e compartilhou a emoção.

– Ora, o que está fazendo parado aí? Venha cá. – Ela disse, e gesticulou para que ele fosseem sua direção.

Um abraço e muitas lágrimas. Tia Frizda sentiu o que Brum sentia. Parecia sentir o quãodifícil para ele aquela viagem estava sendo, mesmo que não soubesse.

– Vamos entrar. – Disse ela, findando o abraço e enxugando o rosto do garoto. – Vocêstambém, disse ela, chamando o guia e Lance.

– Senhora, se for tudo bem, prefiro deixar a prosa para outra hora. – O senhor disse,explicando-se. Ele levantou a sacola, mostrando que tinha algo a fazer.

– Tudo bem. Obrigada por trazer eles até aqui. Até mais. – Tia Frizda se despedia do senhor,fechando a porta pela qual Brum e Lance haviam passado.

A casa de Tia Frizda era bastante pequena, porém aconchegante. A porta principal dava emuma sala onde havia uma mesa redonda com quatro cadeiras. Todas as cadeiras eramforradas com um pano azul e vermelho, remendado em algumas partes. Ao canto da salatinha uma pequena lareira de ferro. Um móvel comprido separava a sala da cozinha, que eraigualmente pequena, mas muito arrumada.

– O Velho? – Ela foi direta.

Brum enxugou as lágrimas já derramadas e parecia sério. Lance puxou uma cadeira esentou-se.

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– Preciso explicar por que estou chorando. – Brum disse. – Em parte estou aqui por que oVelho não está. Quero dizer, ele me mandou para cá, mas ele não pôde vir. Ele está emperigo, foi tudo um verdadeiro susto. Mal compreendo por que tive que parti, mas cá estou.– Disse ele. Parecia procurar explicações. Talvez sua tia não fosse a pessoa que lhe trariarespostas, talvez sim.

– Perigo, você disse? – Ela parecia preocupada. – Sim, mas é claro. É de se imaginar. – TiaFrizda caminhava rapidamente de um lado para o outro da pequena sala e seus sapatosressoavam no piso de madeira. – Antes de mais nada. Você, quem é? – Ela falava com Lance.

– Está tudo bem. Ele é um amigo. – Disse Brum.

Aquelas palavras soaram estranho ao ouvido de Lance, não era comum conhecer alguém tãoaberto quanto aos seus sentimentos. Apesar de mal o conhecer, Brum parecia confiar nele.

– Sou Lance, da aldeia dos Brandobravo, criado por Frey Brandobravo. – Ele se levantou eafirmou com firmeza.

A tia de Brum levou um susto. Arregalou os olhos e levou a mão direita a boca. Aquelaapresentação havia lhe surpreendido.

– Frey Brandobravo? – Ela indagou, boquiaberta. Mas, não esperou resposta. – Mas é claro!– Exclamou e sorriu.

– Você conhece o meu pai? – Indagou Lance, agora surpreso pela reação daquela senhora.Como seria possível que alguém naquele lado do planeta tivesse ouvido falar em seu pai?

- Seu pai? – Tia Frizda sentou-se em uma das cadeiras da mesa de madeira. Brum e Lancepermaneceram de pé, estavam agitados pela conversa. – Sim, sim. Conheço-o, mas é claro.Frey, meu bom amigo Frey, faz anos! – Ela disse, e seus olhos se encheram de lágrimas. Umanostalgia terrível preencheu o coração velho e gasto de Tia Frizda naquele momento.

– Mas, falem! Como pode vocês estarem aqui juntos? O que aconteceu? – Tia Frizda apertouos olhos e abriu um sorriso, afastando aquele sentimento triste.

– Frey me fez partir de Brandobravo há meses. Me disse muito pouco. – Explicava Lance. –Ele disse que tinha chegado o momento certo para que eu fizesse minha viagem, que estavadestinado a deixar Brandobravo e conhecer Arreta. Me deu apenas um nome e um endereço.Foi com isso que iniciei minha jornada. Acho que foi coisa alheia que me fez encontrar comesse garoto. – Lance aproximou-se de Brum e afanou seu grande chapéu de palha.

– Um nome de endereço? – Perguntou Brum.

– Isso, como lhe disse no caminho. – Lance confirmou a história.

– E qual seria esse nome e endereço? – Tia Frizda só queria confirmar o que já tinha certezaem sua cabeça.

– Tori Caldera, aquele que vive em Erma. – Explicou Lance Brandobravo.

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O sorriso mostrou-se aberto e rápido. Tia Frizda havia sanado qualquer dúvida que aindalhe pairasse a mente. Estava muito feliz por aquilo estar acontecendo. Brum confirmava todaa história que Lance contava. Tori Caldera era um nome que ela malmente falava, mas elasabia que aquele era o nome do Velho e se o que Lance havia lhe contado era verídico, suasintenções eram de fato encontrar o Velho em Erma. A pequena sala de Tia Frizda pareciapequena diante da importância daquela conversa. Foi com saber matriarcal que Tia Frizdamoveu aquela conversa para perto do fogo.

– Venham meus queridos, vamos tomar um pouco de chá para nos reforçarmos. Ainda hámuito o que dizer.

Tia Frizda mexeu alguns paus que já estavam meios acessos e um fogaréu logo apareceu.Enquanto cozinhava, Tia Frizda ouviu tudo sobre a viagem daqueles dois e como eleshaviam parado ali. Em um piscar de olhos já havia uma panela cheinha de milho cozido eoutra berrando chá. Lance e Brum sentiram-se mais contentes, haviam caminhado bastantenaquele dia inusitado e apenas naquele momento, lembraram de sentir fome. A conversa,agora mais acolhida, continuou:

– A senhora pareceu conhecer meu pai há muito tempo. – Disse Lance, enquanto bebia seuchá de camomila com leite de vaca. – Me pergunto se a senhora também conhece o porquêdo meu estar aqui. – Ele falou, serenamente.

A indagação fez com que Tia Frizda mudasse de expressão. Ela que admirava seusobrinho/neto com olhos calmos, fixou o olhar no semblante de Lance e pareceu séria.

– Malditos sejam aqueles dois. Sempre foi assim. – Ela se levantou abruptamente de suacadeira. – Fazem o que bem entendem e deixam toda a parte difícil para mim. Bem, masacredito que vocês não têm nada a ver com isso. – Ela falou mais calmamente.

– Hã? – Brum estava confuso.

– Meu querido, me refiro ao Velho e a Frey Brandobravo. Nós três nos conhecemos hámuitas décadas. – Ela explicava, falando diretamente para Brum. Ele parou de roer o milhoque comia e passou a prestar bastante atenção. – Se tivesse o tempo, lhes contaria diversasdas nossas aventuras. Mas, isso não vem ao caso. Fato é que preciso esclarecer algumascoisas para vocês. – Agora ela falava para os dois. - Não é por acaso que vocês dois estãoaqui hoje. Não é por acaso que vocês se conheceram. Diga-me Brum, alguém já lhe contousobre quando as Ampulhetas racharam? – Ela perguntou, esmaecendo a voz o máximo queconseguia.

Lance Brandobravo sentiu-se desconfortável. Parecia que uma sombra havia entrado nacozinha e que um vento frio soprou de lugar algum. Ele já tinha ouvido aquela história esabia que não era algo que se pudesse falar abertamente. Brum respondeu sua tia, apenasnegando com o balanço da cabeça.

- Mas você já ouviu sobre as Ampulhetas, disso tenho certeza. – Tia Frizda voltou ao seu tomnormal apenas por um instante e logo continuou a falar baixo. – Há muitos anos umpequeno grupo tentou fazer o impensável. As circunstâncias da época eram tão caóticas que

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eles julgaram que a única solução possível seria atacar as Ampulhetas. Não se sabe o queaconteceu, ou como, mas o fato é que há algumas décadas atrás uma grande luz clareou océu de toda Arreta. Ocorreu tudo muito de repente, como se uma explosão tornasse a noiteem dia em segundos. Os murmurinhos desse dia são ouvidos até hoje. Muitos dizem que foium experimento dos Donos do Tempo. Aliás, essa foi a versão oficial das coisas. Mas, algunspoucos, sabem o que realmente aconteceu. Quero dizer, alguns poucos imaginam, acreditamque a única coisa que justificaria aquele fenômeno tão poderoso teria a ver com elas. – TiaFrizda fez uma pequena pausa, parecia perdida em suas lembranças.

– Não entendo. – Disse Lance. – Como toda essa história pode ter alguma relação comminha viagem? – Ele estava de fato confuso, não entendia o significado daquilo tudo.

– O que irei falar a vocês, irei falar apenas por que são vocês. Ninguém mais tem o direitode saber essa verdade. A ninguém mais pertence esse saber. – Tia Frizda correu para o fogãoe apagou o fogo, separando os paus e esmagando o restante das brasas. Deu cinco passospara o outro lado da cozinha e fechou a cortina da única janela. – Diga-me Brum, você sabepor que esse rapaz chama alguém tão antigo quanto o seu avô de pai? – Ela indagou e nãoteve tempo de responder.

– Todos chamamos Frey de pai. Em Brandobravo é comum crianças como eu. Crianças quenão conheceram seus pais de verdade e que foram adotados como um Selvagem. Frey é opai de todos que lá vivem e todos somos filhos dele. – Lance parecia orgulhoso. Fez questãode interromper a fala de Tia Frizda.

– Acho que isso faz sentido. – Brum disse. – Também não conheço meus pais, mas sempretive o Velho. Acho que de certo modo ele também é o meu pai. – Ele falou e pareceu triste.Brum lembrou do Velho e pensou onde ele estaria agora. Mas não teve tempo de levantar aquestão na conversa.

– Sim, isso é verdade. – Disse Tia Frizda. – Todos em Brandobravo possuem o mesmo nomee são parte de uma única família. Muitas pessoas sabem disso. Mas... – Ela falava olhandodiretamente nos olhos de Lance, estava de pé, ao lado dele que estava sentado. Apoiavagentilmente seu fino braço sobre o ombro dele. – Eu conheci seus pais. – Ela revelou e osolhos de Lance Brandobravo se arregalaram. Talvez aquilo fosse algo que ele sempre quissaber, mas nunca havia percebido.

– Meus pais? – Ele indagou, cabisbaixo e com olhar distante.

– Sim querido. E é aqui que devo dar os nós nas pontas. Eu conheci seus pais um poucoantes do dia que a noite virou dia. – Tia Frizda se sentou e continuou a conversa. – Seus paisforam dois dos loucos que se aventuraram naquela época. A eles ficou o pior dos fardos:Dançar com as Ampulhetas.

Brum ouvia tudo com bastante atenção. Seu coração estava disparado, embora ele nãosoubesse a razão. Aquela história parecia algo muito além de uma simples história, ele sentiacomo se estivesse em perigo pelo simples fato de estar ouvindo aquelas palavras seremditas.

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- Não compreendo, achei que isso fosse apenas um mito. Dançar com as Ampulhetas, issosignifica destruí-las, não é mesmo? – Lance perguntava. – Mas, sempre achei que asampulhetas eram apenas parte de um conto antigo que era contado para nos fazer dormir.Como alguém pode de fato ter tentado destruí-las? Elas são reais? – As coisas que Tia Frizdahavia falado não faziam sentido algum. Aos ouvidos de Lance, parecia uma brincadeira semgraça. Como alguém falaria sobre algo tão importante e logo em seguida falaria sobre coisasabsurdas?

– O que digo é que esses contos têm suas verdades. As crianças de toda Arreta aprendemsobre a Origem das Coisas com essas histórias. É algo singular que faz com que algumasdessas crianças possam viver suficientemente para aprender a razão por trás dos contos defadas. – Ela disse.

– Confesso que ainda não compreendi. – Brum disse, sentindo sua cabeça esquentar.

– Aqueles miseráveis pegaram o Velho! Acho que é por aí que vocês devem começar, sim,mas é claro! – Disse Tia Frizda. De repente ela estava eufórica e parecia não querer concluir aconversa começada com o mesmo tom outrora usado.

Tia Frizda parecia confusa e suas falas não queriam seguir uma ordem lógica. Talvezrelembrar coisas tão antigas tivesse mexido com suas emoções e com sua capacidade deorganizar as ideias.

– Devemos ir atrás do Velho? – Brum, ignorando a mudança repentina na feição de TiaFrizda, parecia feliz com aquela missão. Já tinha isso em mente desde que Lance havia lhecontado o que aconteceu.

– Exatamente! Eu sei quem pode ter informações sobre seu paradeiro. Mas, não vamoscolocar os bois a frente da carroça. Acho que por hoje chega queridos, vamos nos aquietar econtinuar essa conversa na hora devida. – Os olhos de Tia Frizda brilhavam, ela tinha umplano. Mas, Tia Frizda também parecia cansada e confusa. Levava a mão a testa, como sesofresse de febre.

– Espere! – Lance levantou o tom de voz, o que era muito incomum. – Os meus pais, asenhora disse que os conheceu. Nunca imaginei essa situação, mas tenho que seguir o meucoração, e ele está me dizendo que preciso saber quem eles eram. – Brandobravo falou,emocionado.

Tia Frizda tomou um pequeno susto. Parecia que havia se perdido em seus planos e naordem das coisas. Viu o desespero nos olhos do rapaz e se sentiu culpada por ter guardadoaquele segredo por tanto tempo naquela conversa.

– Meu querido, eu peço desculpas. Lance é o seu nome e Lance era o nome do seu bisavô. –Ela sorriu. – Talvez Frey nunca tenha lhe dito isso, mas ele não escolheu seu nome, sua mãeo fez. – Ela estava de pé a frente dele. Segurava seus ombros gentilmente. Tia Frizda seaproximou o máximo que pôde de Lance e levantou sua mão direita em direção ao rosto dorapaz.

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– Você tem os olhos dele. – Ela chorava lágrimas de lembranças boas. – E os cabelos dela.

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Capítulo VRolar dos dados

Tic-tac, diz o relógio. Tic-tac, o contador de tempos. Tic-tac soa a sua melodia. Otempo é imparável e inesgotável. É uma cachoeira que não depende do rio. É umpássaro que voa sem o vento. O tempo é imparável. Criamos então maneiras paratentar quantificá-lo. Invenções diversas para contar o que não pode ser contado,medir o que não pode ser medido. O tempo passa. Mas, isso é apenas um jeito deolhar as coisas. O tempo passa para quem observa o relógio, isso é uma verdade.Mas e para o próprio relógio, o tempo passa? Quase uma semana inteira havia sepassado desde que aqueles dois haviam chegado em Aiwa e tido aquela conversa queacabou de maneira tão inesperada. As questões levantadas por Tia Frizda pareciamnão ter resposta naquele momento. Foi algo muito estranho a forma com que elahavia encerrado aquela conversa e se trancado em seu pequeno quarto. Depoisdaquela breve e confusa conversa em seu primeiro dia na Cidade Flutuante elespoderiam ter seguido viagem de imediato, essas eram as suas vontades. Porém, foium pedido da própria Tia Frizda que fez com que eles adiassem a sua partida.´´Voltar para Erma e procurar o Ancião na Casa de Misturas, pois ele mais queninguém saberia o destino que o velho tomou. ´´ explicou Tia Frizda na outramanhã. Ela não quis retomar a conversa da outra noite, parecia cansada demais e suaaparência não era nada boa. A missão dada na manhã seguinte aparentava ser umamissão simples. Eles já conheciam o caminho, e Erma era sempre um ótimo lugarpara se estar. As vontades geravam um consenso: eles partiriam o quanto antes. Mas,foi de repente que Tia Frizda anunciou, com bastante tensão na voz, que eles nãopoderiam sair de Aiwa naquele exato momento. Ocorre que eles não foram os únicosa visitar Aiwa naquele dia. Com eles uma pequena guarnição da Matilha chegou acidade e, apenas por isso, a cidade já não era mais a mesma. A notícia que a elite daGuarda Real circulava a entrada da cidade se espalhou como fogo em grama seca.Esperar a guarnição da Matilha deixar a cidade parecia ser a decisão mais sensata.Tia Frizda parecia muito impaciente e resolveu agir. ´´Não vão embora até que euvolte. ´´ Disse ela antes de sair da casa à procura de informações. Eles obedeceram,ficaram dentro da pequena casa de Tia Frizda durante quatro dias e três noites. Atéque a impaciência venceu a calma.

– Devemos partir. – Disse Lance Brandobravo.

Lance e Brum estavam muito inquietos na pequena sala da casa de Tia Frizda. Osentimento era o mesmo: já haviam ficado tempo demais ali. Passar outro dia

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espiando a janela com cautela não parecia ser mais saudável, estavam a ponto deperder a cabeça. A falta de informação, em conjunto com o cenário que não pareciamudar nada, criou uma agonia muito grande naqueles que apenas esperavam. Otempo de obedecer já havia passado, era hora de agir e apostar no que o destinohavia preparado para os dois. Brum nem se deu ao luxo de rebater a proposta doamigo, se Lance não tivesse proposto nada, seria ele que estaria fazendo a mesma.Consenso firmado, era hora de partir em direção à Erma. Os dois usaram os mesmosequipamentos de viagem que trouxeram no caminho de vinda. Mudaram apenas oque estava dentro das mochilas: vários suprimentos encontrados na cozinha de TiaFrizda foram confiscados, não tinha problema, era por uma boa causa. A viagem nãodemoraria mais de duas noites, isso é fato. Eles poderiam se esgueirar pela mesmatrilha que usaram para descer as montanhas. Dessa vez estavam mais preparados ejá conheciam o caminho, não iriam se perder de novo. Fizeram a trouxa com quasetodos os queijos que haviam no armário de Tia Frizda, alguns pães, legumes e peixescheios de sal. Parecia o suficiente para realizar o caminho de volta a Erma. As malasjá estavam prontas e postas ao lado da porta de entrada da casa. Seus coraçõesestavam mais leves, agir – naquele ponto- parecia ser muito mais fácil do queesperar. O plano foi explicado rapidamente por Brandobravo: partir na parte maisfria da noite, quando as ruas estavam um pouco mais calmas e as pessoas maistontas. Os guardas da Matilha não fugiriam dessa lógica, apesar de serem quemeram, estavam em Aiwa onde a tentação vencia qualquer regra. A espera agora erapequena, o sol já se enfraquecia no horizonte e faltavam apenas algumas horas paraa hora de partir.

– Queria ter passado mais tempo com ela. – Disse Brum. – Sinto tudo tão confuso;nada me parece com as antigas visitas que fazíamos a Tia Frizda. Antes era tudo tãocalmo, parecia que os dias aqui tinham o dobro do tempo e o Velho sempre estavaaqui, nessa mesma sala, contando piadas sem graça. – Brum estava sentado,abraçando os próprios joelhos contra o peito. – Não percebi o quanto era bom. Mepergunto o que aconteceu com ele, espero que esteja bem.

Lance descascava uma cebola com uma faca fina. Estava de pé, encarando a pequenajanela de vidro, mas ouvia atentamente.

– É verdade, muita coisa ainda resta ser esclarecida. Se pudesse teria conversadomais com sua Tia. Ela me pareceu saber de várias coisas que Frey nunca me contou eque sempre tive interesse. – Lance mordeu a cebola, agora descascada, e pareceudespreocupado. – Acho que teremos resposta em Erma. Não é por acaso que Frey memandou para onde estou, disso tenho certeza.

Brum percebeu o ar de serenidade que exalava daquela pessoa. Lance era mesmomuito calmo e sua voz tinha aquele tom grave que lembrava tranquilidade.

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Pensamentos sombrios se desfizeram de sua mente, Brum já não estava tão ansioso.O sol morreu e a lua tímida surgiu no céu. A noite era bastante nublada e quase luznenhuma advinha do céu. O tom cinzento de nuvens carregadas de chuvas imperavae junto com ele um vento frio soprava logo acima do rio e em toda Aiwa. Peixes secaçavam e remexiam a água com vontade. Algumas horas se passaram e a lua jáestava se cansando. Seu brilho já não era mais o mesmo e daqui a poucas rodadas dorelógio, ela cederia lugar ao sol renascido.

– É hora de ir. – Disse Lance enquanto amarrava sua sacola com suprimentos nascostas. Brum já estava pronto e se privou a tomar um grande fôlego e acenar com acabeça. Lance deu uma última ajeitada nas cordas de seu arco e o prendeu as costas,em conjunto com a sacola. Com o pé direito, partiu da casa de Tia Frizda. Brum veiologo atrás, batendo a pequena porta de madeira e deslizando um pequeno pedaço depapel dobrado por debaixo dela.

– Fique perto, ande depressa e faça o mínimo de barulho possível. – Lance instruiu,seriamente. – Com a sorte do nosso lado, não nos esbarraremos com ninguém eestaremos de volta a trilha em alguns minutos.

O ranger das tábuas de madeira parecia ser o único som que eles não conseguiamdesfaçar. Lance Brandobravo e Brum caminhavam como gatos e suas sombras eramsuas únicas companheiras. Lance seguiu a frente, sempre tomando o cuidado deolhar todas as viradas antes de fazê-las. Passaram ainda por algumas pessoas, masessas ou estavam dormindo ou malmente enxergavam o que viam. Passar pela frentede um ou dois bares parecia ser inevitável, mas eles o fizeram com destreza. Amúsica alta e as pessoas que dançavam desengonçadamente parecia ser umesconderijo tão perfeito quanto o mais secreto de todos. Brum seguiu seucompanheiro sem expressar uma palavra sequer, estava bastante atento aos sinaisque Lance fazia. Parava quando havia de parar e caminhava quando havia decaminhar. Foi em uma penúltima curva que as coisas pareceram se complicar. Afrente estava a ponte que servia de entrada e saída de Aiwa. Mas ela não estavadesacompanhada. Três guardas bloqueavam o caminho, estavam encostados noportal que já se encontrava em terra firme. De onde estava, Lance poderia enxergaras suas formas perfeitamente, mas eles não o enxergavam, muito menos a Brum.

– E agora? – Sussurrou Brum, assustado. Aquela era a saída, mas parecia serimprovável que eles fossem conseguir passar por ali.

Lance estava quieto. Parecia bastante pensativo. Verdade é que ele não esperava quetivessem homens da Matilha de plantão na saída da cidade. Já havia se passado diasdesde a chegada dos mesmos. Estando eles em Aiwa já deviam ter desistido, ou, pelomenos, esquecido um pouco do ofício e divido a vigília com um dos bares da cidade.

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Aquela era a única saída de Aiwa e Lance sabia disso. Com certeza tentar deixar acidade a nado atrairia atenção demais. Tentou bolar ainda alguma solução que nãoenvolvesse derramar o sangue daqueles guardas. Mas, nada mais lhe veio à mente.

– Vamos voltar. – Disse ele, decepcionado.

Brum não relutou. Também havia tentado pensar em um jeito de passar por aquelaponte, mas esse parecia ser um problema sem solução. Aceitou o que seucompanheiro havia dito e começou a segui-lo, cabisbaixo. Porém, fora em ummomento de poucos pensamentos que Brum resolveu não o seguir, mas correr nadireção oposta.

– Pare! O que está fazendo? – Gritou, sussurrando, Lance.

Brum pareceu não querer escutar. Ele tinha uma ideia na cabeça e corria em direçãoa ela. Com alguns passos ele deixou as sombras e estava a poucos metros dosguardas. Eles já podiam vê-lo. Então, Brum desacelerou. Caminhou mais algunsmetros para confirmar sua teoria.

– Pode vir! - Ele berrou, e seu berro pareceu mais alto do que mil trovões. Talvezfosse pelo silêncio daquela noite, talvez por sua alegria em estar correto.

Os homens da Matilha de homens só tinham o aspecto. Tratava-se de roupas earmaduras vazias, seguras por um pedaço de pau e encostadas nas paredes de rochado portal. Lance Brandobravo ficou espantado com a situação. Aquele garoto sópodia ter um parafuso a menos na engrenagem dentro de sua cabeça.

– Você percebeu? - Perguntou Lance.

- Não. – Brum sorria. – Na verdade, lembrei que muitas vezes fazíamos isso emErma. O Velho é especialista em colocar espantalhos para proteger as suasplantações. – Ele contava, enquanto caminhava seus últimos passos em Aiwa. Jápassavam os guardas-espantalhos e Brum seguia a frente, guiando e contando suahistória. – Isso fez com que os pentelhos parassem de invadir nosso terreno. Daí sóimaginei que eles podiam ter feito a mesma coisa, afinal quem aguenta ficar essetempo todo aqui parado? – Ele apontava para o portal, que não tinha uma únicafonte de luz a noite, nem sequer qualquer pessoa com a qual conversar. Se olhassempara trás, o portal da cidade parecia ser o último lugar a se ficar em Aiwa. Era a partirdali que toda a diversão parecia começar. Qualquer pessoa que chegasse até ali, decerto estaria tentado a seguir mais alguns metros e vivenciar toda aquela alegria eenergia dos bares e ruas de Aiwa. Lance Brandobravo tentou ficar com raiva deBrum, afinal ele tinha se arriscado de forma muito comprometedora. Mas, sentiu aalegria na voz do garoto e não quis lhe privar daquele momento. Pensou ainda emFrey, pois aquela era uma atitude que ele louvaria de coração aberto. Adorava agir

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por intuição e ver o que o destino tinha guardado. Por inúmeras vezes tentouencorajar Lance a agir da mesma forma. Mas, para Lance isso nunca soou bem, eleera sim muito precavido e atento, saltar na escuridão jamais lhe pareceu sensato, seao juntar um galho e um pouco de cera ele podia fazer uma tocha.

Os dois caminharam mais alguns passos e fizeram uma curva, deixando o portal e aentrada para Aiwa para trás. A parte escura e quieta da noite já havia ido embora. Jáera possível ouvir alguns passarinhos que dormiram mal acordando e berrando demau humor. Aos poucos, na medida em que Brum e Lance se afastavam de Aiwa,adentrando, cada vez mais, a trilha que outrora caminharam, a luz do sol borrava océu. Lance Brandobravo, mais uma vez, tomou a frente da jornada. Caminhava compassos largos, que deixavam Brum ofegante. O caminho que eles tinham feito decerto era bem mais fácil de se descer do que subir. As pernas de uma noite semdormir pesavam mais do que o comum e a jornada, embora tranquila, desgastavaaqueles que voltavam à Erma. Quando o sol surgiu completo, dissipando todas asnuvens de chuva, trouxe consigo um lindo dia. O vento soprava morno, o céu abertoe azul, as árvores ainda molhadas com o orvalho e todos os animais e insetospareciam sorridentes. Talvez não todos, é verdade.

– Estou morrendo! – Exclamou Brum.

Lance, que estava alguns passos à frente, parou e olhou para trás. A cena, se nãofosse triste, seria cômica. O garoto estava estirado no chão íngreme, com as pernasencostadas em uma pedra grande e as costas jogadas ao mato que crescia ao lado datrilha. Seu imenso chapéu de palha lhe cobria o rosto e, de fato, parecia que estavapara morrer.

- Vamos parar um pouco. – Disse Lance, sem disfarçar o sorriso. – Creio que nãolembrei de você. Desculpe por acelerar tanto o passo. – Ele falou, enquanto retirouuma pequena bolsa de couro – cheia de água – que estava presa a cintura e ofereceua Brum.

Brum aceitou, mas não bebeu a água. Primeiro tratou de respirar. Alguns minutos sepassaram e os dois ali mesmo ficaram. Meio entravados no caminho que subia, entrepedras e pequenas raízes. O rio que passava por Aiwa, já estava distante na trilha. Sepodia enxergar apenas os respingos de água que corriam com força lá embaixo. Atrilha já era mais montanha do que rio e o clima já começava a mudar. Suavemente, ovento soprava mais gélido e as árvores eram mais curtas e espaçadas. Lance e Brumnão se demoraram muito. Comeram um pouco, pães e queijos, beberam ainda maisum bocado de água e trataram de seguir viagem. Brum parecia ter se acostumadocom o ritmo da subida, talvez tenha sido seu companheiro que havia reduzido apassada, mas ele caminhava mais tranquilo, quase sem perceber o cansaço das

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pernas. A noite chegou e o frio veio com ela. Os dois que caminhavam não seintimidaram, continuaram firme e deixaram Aiwa de vez para trás. De onde estavam,já não podiam mais enxergar a cidade, era tudo floresta e apenas um caminho subiae descia a montanha. Foi ali mesmo que eles decidiram montar um pequenoacampamento para passar a noite. Lance ordenou que Brum pegasse quanta lenhaele quisesse, o que o deixou muito alegre. Não gostava do frio e adorava fogueiras.Algo sobre a forma que o fogo consumia a lenha o encantava. Seu calor e sua luz,dançando de um lado para o outro, em completa desordem; era algo fascinante.Lance montou a fogueira e tratou de acendê-la. Não teria perigo algum naquelemato fechado. A luz da fogueira não chamaria atenção de olhos não desejados, e oseu calor era mais do que necessário para uma boa noite de sono. O fogo se fez alto eforte e os dois caminhantes ficaram sentados ao seu redor. Horas se passaram e o diaameaçava nascer. Da fogueira restavam apenas cinzas e fumaça. Com várias pisadas,Brum tratou de matar o fogo por completo. Já estava revigorado, havia tomado umcafé da manhã improvisado, mas completo. Uma fatia gorda de pão com peixe seco ebastante queijo. Fora o prato escolhido pelos dois. Em poucos minutos, suasbagagens já estavam presas as costas e os dois voltaram a caminhar. No ritmo emque estavam, parecia que chegariam em Erma antes que o sol fosse emboranovamente. A caminhada retornou e eles prosseguiram pela trilha que subia AsMontanhas Áureas. A trilha não parecia a mesma que outrora eles desceram. Mas, oclima da era muito parecido. Para Brum, aquela caminhada parecia mais confortávelnaquele ponto. Ele começava a se sentir em casa. Em parte, estava triste, não sabia oque poderia ter acontecido. Por outro lado, estava esperançoso, talvez o Velhoestivesse lá, a sua espera e as coisas não fossem tão terríveis quanto imaginava. O diajá começava a esfriar, mas os dois que caminhavam não perdiam o ritmo. Valentesem seus passos, logo se aproximaram do imenso planalto que abrigava os Ermitas. Oportal por onde a trilha começava e terminava estava lá, do mesmo jeito que Brumsempre o conhecera. Eles não haviam pego o mesmo caminho de quando desceram,apesar de que Lance não o fez por querer. O caminho percorrido agora tinha sido oprincipal, talvez por isso a subida fora menos penosa e o tempo gasto tenha sidomenor.

– Chegamos. – Disse Lance.

Brum, do jeito que estava, se deitou no chão e sentiu as pernas tremerem. Haviacaminhado bastante, sem sequer parar para respirar. Mas, o seu objetivo estavacumprido: havia retornado a Erma.

– Não vejo mal em prosseguirmos pela via principal. – Lance examinava a pequenatrilha que seguia reta, toda enfeitada com pequenas pedras redondas. – Parece queninguém passou por aqui esses últimos dias. Talvez aqueles homens que levaram o

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seu avô fossem os mesmos que estavam em Aiwa. Não sei. Mas, não consigo acharnenhuma pegada nesse terreno.

– Isso é estranho. – Disse Brum, preocupado. – Mesmo que isso nos ajude nessemomento, essa é a principal entrada do vilarejo, e por aqui costumam passar muitaspessoas durante o dia, subindo e descendo as Montanhas. – Brum parecia temeroso.Sua expressão era de medo. – Vamos logo. – Ele disse e começou a caminhar emdireção a vila.

Passos apressados, quase sem cautela algum deram espaço para um cenário bizarro.Erma antes um vilarejo cheio de cores e de vida estava vazio. Muito pior, o verdecaracterístico havia sumido. Em seu lugar o cinza acusava o que havia acontecido ali.A vila havia sido queimada e seus habitantes haviam desaparecido. A cena erabizarra, todas as pequenas casas da rua principal estavam destruídas e cheiro defogo ainda estava no ar. Apenas a Grande Casa das Misturas parecia ter sobrevivido aoque tinha ocorrido. Ela estava lá onde sempre esteve, no final do vilarejo, suaestrutura já não era a mesma, mas ela estava em pé. Não tão bela quanto antes, masestava de pé. Brum prosseguiu a frente, desesperado. Correu em direção a pequenarua que levaria a sua casa.

– Espere! – Berrou Lance, quando percebeu que Brum corria para os destroços doque costumava ser a sua casa.

Brum não lhe deu ouvidos, correu em direção a garagem/loja e malmente conseguiureconhecer o lugar. Estava tudo destruído. A própria estrutura do casebre não maisexistia. Tudo era o próprio chão e os escombros daquilo que já fora um lar, destruíamaté mesmo o mais ínfimo dos ânimos. Brum parou a sua corrida abruptamente edeixou seus joelhos tocarem o chão. Estava perplexo. Sua cabeça não queria aindacompreender o que enxergava.

– Está tudo destruído. – Ele disse, inconsolado.

A luz do sol fora completamente embora e a destruição de Erma começava a seesconder nas sombras da noite. A cena ficara ainda mais triste e medonha. De nadaaquele lugar lembrava o alegre e vívido vilarejo de Erma, lar dos Sacerdotes dasMontanhas Áureas. Era um lugar frio e carregado de tristeza. Mas, por mais escuroque tudo parecesse, algo chamava a atenção daqueles que ali estavam inconsolados.

– Veja! – Exclamou Lance, enquanto tentava reavivar o espírito quebrado de Brum. –Há uma luz ali. – Ele apontava para a Casa das Misturas.

No seu segundo andar, através de uma vidraça colorida, uma luz refletia em meioàquela escuridão. Parecia ser uma lamparina fraca, mas iluminava todo um cômodo.

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– Vamos logo. – Com a voz trêmula e ainda sem coragem nos olhos, disse Brum.

– Não me parece sensato. – Lance bravejou. – Pode ser quem quer que tenha feitoessa barbárie. – Lance estava temeroso. Talvez não fosse a melhor opção seguiraquela luz. Talvez fosse o inimigo apenas esperando para terminar o que já haviacomeçado. Mas, Lance se lembrou das palavras de Tia Frizda. Parecia que o destinoqueria lhe dizer algo. Se a missão era ir a Casa das Misturas, parecia que nada haviamudado. Aquela luz o chamava e ele resolveu atender o seu chamado.

Brum não disse nada. Olhou friamente para Lance e seus olhos estavam secos. Brumnão disse nada. Lance se postou a frente do garoto que agora parecia calmo. Nãoqueria mais correr e o desespero já não mais dominava seu corpo. Os doiscaminharam a pequena ruela de barro que os levariam de volta a parte central davila. Tudo em seu caminho era destruição. Caminharam pela pequena rua e fizerama curva que levaria a Casa das Misturas. A luz na janela do segundo andar estavaainda mais forte daquela distância.

– Daqui para a frente mais cautela. – Disse Lance, ao se perceber adentrando oprédio.

A porta da Casa das Misturas estava encostada, mas nada impedia a entrada de quemali quisesse entrar. Lance retirou o seu longo arco das costas e o armou com umaflecha. Com seu pé direito, tratou de empurrar a maciça porta de madeira. A porta seabriu e Brum o seguiu lentamente, quase invisível em sua sombra. Dentro da Casadas Misturas estava o mesmo caos que tomou conta de todo o vilarejo. Todas asparedes estavam pretas, tomadas pelo fogo que havia queimado tudo que ali havia.Até mesmo as plantas e árvores que moravam no lugar estavam mortas. Ficou claroque a Casa das Misturas só havia resistido ao fogo por puro capricho do destino. Maisà frente, estava a escada retorcida pela qual Brum jamais havia passado. Se tivesseseguido a frente estaria na mesma sala onde já havia passado tantos anos de suavida, mas tudo era diferente agora e sua mente mal podia raciocinar taisrecordações. Os dois não vacilaram, trataram de começar a subir a escada que levariaa luz que procuravam. Subiram feito gatos e nem mesmo o ouvido mais aguçadopoderia tê-los ouvido. Para surpresa de Brum, o primeiro andar da Casa das Misturasera muito parecido com a parte que ele já conhecia. Existia um imenso corredor cheiode portas. Algumas ainda estavam lá, outras mostravam o interior de salas cheias decadeiras queimadas. Lance prosseguiu com seu arco, caminhando com cautela poraquele corredor escuro. Felizmente a lua iluminava seus passos e quebrava acompleta escuridão. O chão era feito de uma mistura estranha de madeira e pedras eboa parte dele estava aberto, mostrando o térreo da Casa. Os dois já estavamalcançando o final do corredor, onde havia uma outra escada retorcida, quandopararam por completo. O som de passos em suas cabeças fez com que Lance

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curvasse seu arco, puxando com toda a força a sua corda. Ele mirava para o teto, masnão havia nada lá. Apenas o ranger do teto que confirmava: havia alguém ali.

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Capítulo VIAqui e de Volta Outra Vez

O susto daqueles que subiam as escadas só não foi maior do que o susto daquela quelá em cima aguardava. O aspecto franzino, a baixa estatura e a voz trêmula nãodeixaram dúvidas.

– Pelos Deuses! – Exclamou Tia Frizda.

Lance Brandobravo e Brum haviam terminado a sua jornada. Deixaram Aiwa paratrás com muitas expectativas. Queriam respostas e caminharam com isso em mente.Porém, tudo foi despedaçado ao chegarem em Erma. Brum, de tão desanimado,quase não expressava sentimento algum. Já Lance estava nervoso e seus sentidosestavam aguçados. Quase disparou a flecha que já tinha destino certo. Se seussentidos tivessem lhe falhado por um momento, Tia Frizda estaria agora em apuros.Mas, ao perceber do que se tratava, não libertou a flecha do seu arco. Ao invés disso,relaxou os músculos devagar, sentindo o perigo se esvaziar.

– São vocês! Ainda bem! – Tia Frizda, que segurava um pequeno jarro com uma velapresa a ele, colocou o mesmo em uma mesa e correu para cima dos caminhantes. –Mas o que vocês estão fazendo aqui? – Ela não deixou eles responderem. – Maisimportante, vocês estão bem?

Tia Frizda parecia de fato preocupada. Sua feição era de bastante apreensão, elaapertava os ombros de Brum e lhe examinava o rosto. Brum não estava sorridente,apesar de que parecia menos triste ao avistar sua tia. Lance aproveitou o momentopara fazer um leve reconhecimento do lugar, a fim de compreender a situação.Tratava-se de uma sala modesta, mas que servia apenas de entrada para o andar. Nassuas paredes laterais havia algumas estantes cheias de livros, no centro uma mesaredonda e várias cadeiras. No final da sala tinha uma passagem onde caberia umaporta, mas que não estava lá. O mais interessante é que nada estava queimadonaquele andar. Tudo parecia em perfeito estado.

– Estamos bem. – Disse Brum.

– Como vocês saíram de Aiwa? – Perguntou Tia Frizda, já mais calma.

– Saímos. – Brum parecia não ter a menor vontade de contar aquela história, que sefosse em outro momento seria uma história das boas.

– Imagino que não deva ter sido tarefa fácil. – Disse Tia Frizda. – Não conseguiretornar a Aiwa a tempo, me perdoem. – Ela falava e Brum prestava atenção. –

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Cheguei aqui e encontrei tudo como vocês também encontraram. Foi um choqueimenso; posso imaginar o que esteja passando em sua mente agora. – Ela falava esorria para Brum. – Mas, tenha calma. Eles estão todos bem.

Brum sentiu seu coração se encher de luz. Pensamentos sombrios pareciam terachado seu ceifador, a esperança reaparecia com cada palavra que saía da boca deTia Frizda.

– A vila foi toda destruída, é verdade. Mas isso não é o importante. Creio que vocêficou chocado, assim como fiquei, com a possibilidade do que poderia ter acontecidocom todos os Ermitas que daqui quase nunca saem. Minha tristeza só se desfezquando achei isso.

Tia Frizda estava segurando um pedaço de papel enrolado, ela tinha tirado o mesmoda gaveta superior de uma das estantes cheias de livros da sala.

– Vamos querido, leia. – Ela entregou o papel a Brum, que estava atento.

Brum desenrolou o papel que tinha uma mensagem escrita bem no seu centro ecomeçou a ler em voz alta:

´´Se você lê essa mensagem é sinal de que é meu amigo.

Pois bem, espalhe a notícia de que os Ermitas foram todos guiados por mim, antesque o ataque acontecesse; e a minha voz eles obedeceram. Deixaram a cidade semlevar nada que não os pertencessem de verdade. A cidade estava vazia e vazia ela sedespediu dessa realidade. Os Ermitas estão migrando, montanha abaixo,caminhando ainda sem destino, como um dia eles fizeram ao subir as Montanhas.

É triste testemunhar, mas já era de se esperar. Foram eles que incendiaram tudo.Usaram palavras obscuras e proibidas. Incitaram o fogo e o fogo consumiu tudo. Jáera de se esperar, já era de se esperar. Garth é responsável. Garth e os Corvos do Norte,foram eles, foram eles.

O mago da Casa das Misturas – O Ancião ´´

– Isso é algum tipo de brincadeira? – Brum estava perplexo e nervoso. Falava alto eestava bastante agitado.

Lance Brandobravo tinha ouvido a leitura atentamente. Se assustou quando Brumterminou a mensagem e se exaltou.

- Essa é a letra do Velho! – Brum segurava o papel com força, a ponto de quase rasgá-lo. Gritava em direção a sua Tia/vó. Apesar de não ter perguntado nada, queriarespostas.

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– Calma querido. Há muito o que conversar. – Tia Frizda segurou Brum pelosombros e falou calmamente. – Mas, aqui não é o lugar para tal conversa. Vamos,deixemos essa sala e suas surpresas para trás. – Agora ela falava com Lance esinalizava para que ele e Brum a acompanhassem.

Eles assim fizeram. Brum foi a frente, caminhando quase colado com Tia Frizda. Seuestômago estava revirando e o ar quase lhe faltava. Estava nervoso demais, em suamente um pressentimento horrível parecia lhe avisar que aquilo iria lhe sacudir ojuízo. Lance Brandobravo não estava tão nervoso, olhava tudo com muita atenção.Os três deixaram a sala para trás com poucos passos, depois da sala havia umenorme corredor e era somente isso. Lá no seu fim tinha uma porta pequena, masrobusta. Ela era feita de uma madeira só, porém havia vários tipos de símbolos eletras esculpidas em seu corpo. Não havia maçaneta, apenas um enorme buraco dechave, quase cinco vezes maior que qualquer buraco de chave comum. Fora ali queTia Frizda inseriu uma chave grossa e pesada. Parecia ser algo antigo, porémbastante conservado. Ela girou duas vezes para a esquerda e voltou três voltas para adireita. Um estalo forte fez com que a porta se separasse da parede, parecia ser algopesado e bastante forte. Mas, após ter girado a chave da forma que o fez, Tia Frizdaabrira a porta sem qualquer esforço.

– Venham queridos, entrem. – Disse ela.

A surpresa do que estava atrás da porta foi tão grande que roubou a atenção deBrum por alguns instantes. Por alguns instantes ele não mais pensava no Velho, emErma e no que havia acontecido. Após a porta havia uma sala que na verdade eramduas, tão grande quanto o corredor que eles caminharam, ela era espetacular. Acomeçar pelo teto, sem dúvida o mais belo teto já visto por qualquer dos alipresentes, que era quase que completamente feito de vidro. Mas, não era vidro comoeles conheciam, ele tinha algo de diferente, pois esse cintilava e parecia ampliar obrilho das estrelas do céu. Com exceção das margens, que eram feitas de madeira, oteto inteiro era um enorme recorte de vários pedaços, encaixados perfeitamente, devidro. A luz que aquele teto produzia era tão forte, que malmente parecia ser noitedentro daquela sala. Mas, o resto da sala não destoava tanto do seu teto. As paredeseram todas esculpidas, e várias figuras pareciam querer criar vida. Como se váriasestátuas tivessem sido criadas de um enorme bloco de madeira e o resultado foramaquelas quatro paredes de onde se destacavam as estátuas belissimamenteesculpidas. Não era só o aspecto da sala que impressionava, era o que ela continha.Lá estava várias engenhocas que tanto Brum quanto Lance nunca sequer ousaramimaginar. Várias e várias mesas onde encima havia as mais diversas coisas. Muitosvidros com líquidos estranhos, cornetas metálicas, outra engenhoca com várias

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esferas metálicas que não paravam de se mover, eram exemplos do que os olhospodiam ver.

– Impressionante, não é mesmo? - Tia Frizda sorria. Sorria por que sabia o queaquela sala representava, e sorria por lembrar o que se passou em sua mente daprimeira vez que ali entrou.

– Aqui podemos conversar. – Ela disse e suas palavras trouxeram Brum de volta arealidade. – Eu quis te mostrar aquele recado, por que sabia que era a forma maisfácil de te explicar o que tenho que te explicar. Sei que aquele Velho jamais aprovariao que estou para fazer, mas sinto em meu coração que se houvesse uma hora paratanto, esta é ela.

Tia Frizda havia se encostado em uma mesa. Brum estava de pé e ouvia com atenção,pois ela falava com ele.

– Querido, essa é de fato a letra do seu avô. – Ela apontava para o papeldesenrolado.

– Mas... – Disse Brum.

– Peço que me deixe falar. Deixe-me terminar de lhe contar tudo. Penso que sejamais fácil dessa maneira. Acredite, isso não está sendo mais fácil para mim do que épara você. Sim, o seu avô é o Ancião. Ele sempre o foi. Eu preciso lhe contar sobre asua origem e preciso que você também escute isso. – Ela falava com Lance, que ouviacada palavra. – O que aquele Velho te contou sobre seus pais? – Ela perguntava aBrum.

- Eles morreram. – Cabisbaixo, ele respondeu. – Morreram em um desses incêndio aomisturar poções. – Brum olhou para Tia Frizda, estava sereno. – Eu era tão pequenoque não lembro de nada, nem mesmo de seus rostos. – Ele parecia triste, mas não tãotriste. Talvez por já ter repetido aquela história diversas vezes, aquilo tinha setornado mais fácil.

– Sim, eu acredito que essa tenha sido a resposta mais sensata aquela época. Eu nãoo culpo por ter lhe contado isso. – Tia Frizda se aproximou de Brum, mas continuoufalando em alto tom, para que Lance ouvisse de onde estava. – Mas, essa não é averdade. Deixe-me te explicar como o seu avô, aquele velho gentil e pacato que vocêconhece, pode ser o homem por trás desse prédio e dessa sala. Ele nunca foi essehomem que você conhece. Quero dizer, não apenas esse homem que você conhece.Seu avô foi um dos Magos Seculares a travarem a Batalha da Marca do Dragão. Nãoapenas um deles, foi ele o responsável pelo que aconteceu naquele dia. Ele é oGrande Encantador Nômade, o Último Homem a Usar Uma das Sílabas. Foi ele quepreveniu o que vivemos hoje de acontecer, há mais de cinquenta anos. Ele é e sempre

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foi o Mago mais poderoso que já existiu em toda Arreta. Porém, a última vez que eleusou qualquer desses títulos foi exatamente há cinquenta anos. Depois da batalha omundo nunca mais ouviu falar dele, e pouquíssimas pessoas sabem qual o destinoque ele tomou.

Brum parecia desacreditado. Não fosse o tom seríssimo de Tia Frizda, ele jamaisacreditaria naquilo que ouvia.

- Acho que aqui devo contar o que tudo isso tem a ver com você. – Ela falava comLance. – Isso perpassa em como me envolvi em toda essa história. Como sei dissotudo? Vocês devem estar se perguntando. Mas, tudo que sei, sei por que ouvi doslábios do próprio Velho. Querido, nós eramos inseparáveis naquela época. E é aquique todas as coisas se encaixam. Eu preciso revelar muitas coisas a vocês dois. – TiaFrizda estava ansiosa, parecia querer falar tudo de uma vez, mas não sabia como.

– Como assim o Velho é o Ancião, ou seja, lá o que mais você disse? – Berrou Brum.Ele estava impaciente com o devaneio de Tia Frizda.

– Sim, sim meu bem. Me perdoe. É que mal consigo ordenar os pensamentos naminha cabeça. – Tia Frizda procurou um pedaço de papel e o dobrou, o mexiafreneticamente a fim de ventilar o próprio rosto. – Eu sei que é difícil de acreditar,mas ele é tudo isso que já falei. – Ela estava bastante agitada, e seu rostodemonstrava cansaço.

– Mas isso é impossível. Desde que me lembro nós sempre moramos em Erma. Eaqui todos sabem quem é o Velho. Ele é o meu avô, ele vive de vender poções e nóssomos praticamente invisíveis aqui. Como você pode dizer essas coisas? – Brumestava furioso. A ignorância lhe tomava o juízo e como quem não compreende, elebravejava.

– Eu sei que parece estranho. Mas, tudo que acontecia em Erma em nada fugia ocontrole do Velho. As pessoas em Erma jamais souberam quem ele é. Eu sei quevocês vivem aqui há muito tempo. Mas, o que vocês são aqui não passa de umdisfarce. Compreenda querido. O Velho envenenou as fontes de Erma. Com uma desuas poções, ele fez isso repetidamente durante os anos. Talvez uma vez por mês,talvez mais, eu não sei. Ele me contou que misturava uma certa poção as águas deErma. Era uma forma de manter toda a vila distraída. Me parece que alguma coisaligava todos os Ermitas ao querer do Velho. Talvez fosse o encantamento nas águas,mas as pessoas sempre pareciam esquecer de coisas importantes. Se fosse outrapessoa, isso seria uma das coisas mais malignas já feitas, mas essa parte do Velhovocê conhece bem: ele é sim uma pessoa muito bondosa. Se fez o que fez, tevemotivo e não posso julgá-lo.

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Tia Frizda fez uma pausa. Parecia querer que Brum respirasse e também sentia seuspulmões mais pesados. Ela não se conteve e continuou a revelar segredos.

– Quanto a você, querido, tenho muito o que te contar também. – Ela falava comLance. – Eu conheço Frey Brandobravo mas isso não é tudo. Por muito pouco eu nãote criei. Você foi encaminhado a mim, mas aquela época não permitiu que o desejode sua mãe fosse cumprido.

Antes que pudesse continuar, Tia Frizda foi interrompida.

– De que época você fala? – Perguntou Lance Brandobravo, mas ele já sabia aresposta.

– Falo da época em que as Ampulhetas racharam. Fomos nós querido. Fomos nós. –Tia Frizda já não mais conseguia controlar seus sentimentos e lágrimas marcavamseu rosto. A sua voz enfraquecia a cada sílaba pronunciada, ela parecia se lembrar dealgo muito triste. – Você é meu neto. – Disse ela.

Lance Brandobravo sentiu o chão desaparecer. Parecia ter perdido todo o peso doseu corpo. O seu estômago se contorceu e ele sentiu que iria vomitar, mas não o fez.

– Seu neto? – Ele indagou, estonteado.

É verdade que alguns dias atrás Lance Brandobravo tinha ouvido dos lábios daquelamesma senhora que ela havia conhecido seus pais. Mas, aquelas palavrasconseguiram superar o sentimento de surpresa outrora sentido. Ele havia caminhadoaté Erma com apenas um desejo: ter terminado aquela conversa que só tinhacomeçado em Aiwa. Tia Frizda era a pessoa com respostas e ali estava ela: dando-as.

– Digo, meu sobrinho-neto. – Explicou Tia Frizda. – Eu queria ter lhe contado tudode uma vez, mas Aiwa não nos deu essa oportunidade. Você é filho da minhasobrinha. Você é filho dela, a Mercadora mais corajosa que já existiu. Mas também éfilho dele, o último Criador a pisar nessa terra. Falo de Ilsa Troca Leve e de EinriCoração-de-Leão, seus pais.

Apenas um daqueles nomes parecia surpreender aos dois que ouviam. O nomeCoração-de-Leão ainda significava muito para qualquer pessoa que habitava Arreta,que seja no Sul ou Norte. Tratava-se da lendária família real.

– Eu sei que vocês não têm a mínima ideia do que aconteceu de verdade. Sei queaqueles malditos jamais contaram o que realmente aconteceu. Malditos Sacerdotes esuas ambições descabidas! – Tia Frizda estava furiosa, e sua feição mudaranovamente, agora parecia mais raivosa do que temerosa.

- Vocês não sabem, assim como toda Arreta não sabe a verdade. Há quase trinta anosnós tentamos o impossível. Eu, o velho Tori, seus pais, e mais alguns tolos. Fomos

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nós que tentamos destruir as Ampulhetas e pôr um fim em tudo. Era a única solução.Os Sacerdotes se uniram em um complô que acabou com o extermínio de todos osverdadeiros Criadores. – Tia Frizda percebeu a surpresa voltando a face de Lance ede Brum, mas não se conteve. – Sim queridos, a família real não existe mais. Elesdizem que os que estão sentados no trono são descendentes dos Coração-de-Leão,mas isso é uma mentira espalhada pelos Corvos. Eles foram todos mortos, todosassassinados. Foi há quase trinta anos que tentamos o plano mais improvável detodos. Nos unimos em uma aventura impossível: tínhamos que tentar parar aquelaforça terrível que ansiava por poder. Mas, nós falhamos. Falhamos e perdemos muitopor termos falhado. Eu sei que o mundo não conhece esses nomes como deveriamconhecer. Mas esses são nomes de verdadeiros heróis. Seus pais foram heróis Lance.Mas, a tentativa deles não foi completamente sucedida, o que vivemos hoje é oresultado de termos falhado naquela época. Eles nos compraram tempo, tempoprecioso, por que eles enfraqueceram o inimigo. Os seus pais doaram suas vidas aotentar dançar a música das Ampulhetas e foram eles que fizeram todo o mundo brilharnaquele dia. Mas, infelizmente, isso não parece ter sido o suficiente, pois hoje mevejo novamente naquela mesma situação.

– E quanto aos meus pais? – Brum não tinha esquecido como aquela conversa tinhacomeçado. Seu lado mais egoísta parecia emergir no desespero. Tudo aquilo que TiaFrizda contava parecia ter lhe tirado do sério. Já o seu companheiro de viagem nãodemonstrava qualquer agir, sua mente parecia estar paralisada nas palavras de TiaFrizda.

Tia Frizda respirou profundamente antes de continuar a falar. Algo muito estranhoacontecera. O próprio clima daquela sala mudou repentinamente. Se a conversa atéali havia trazido seriedade aquelas paredes, algo parecia querer trazer o medo. Aface de Tia Frizda se enrugou mais que o comum, seus olhos ficaram brancos como aneve. Os seus cabelos frágeis e raros, pareciam bailar poucos centímetros acima desua cabeça. Tia Frizda, ou seja, lá o que era aquilo aquele ponto, falou com três vozesdistintas e simultâneas:

– Sei que essa conversa não tem sido fácil para nenhum de vocês. Mas, ainda nãoterminou. Preciso que você seja forte. – Ela se aproximou de Brum e o segurou pelosombros com bastante força. – Eu lhe disse quem o Velho realmente é e também lhedisse o que ele fazia em Erma. Mas, não te disse o porquê disso. Você é a razão. Vocêé o motivo de tudo isso. Foi por sua causa que o Velho Tori se escondeu nasmontanhas. Foi por sua causa que ele passou todos esses anos desaparecido. É porsua causa que estamos tendo essa conversa. Você e somente você pode ainda trazeresperança a esse mundo. Os seus pais nunca morreram Brum. Mas eles tambémnunca existiram. Você é diferente de tudo que aí está e que existe. Por que você tem

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mais de cinquenta mil mães e mais de cinquenta mil pais. Eu sei que em seu coraçãovocê vai perceber que falo a verdade. Você não é um garoto, você jamais foi umgaroto. Pois você é antigo Brum. Você é tão antigo quanto o as próprias Ampulhetas.Tão velho quanto o primeiro grão caído. Você esteve dormente por décadas, por queo Velho lhe adormeceu. Mas essa é a hora, esse é o momento de você corrigir tudo.Nos salve querido. Nos salve.

Aquilo que parecia Tia Frizda terminou de falar e ela foi arremessada ao chão. Lancee Brum tiveram uma reação imediata: correram em direção a ela e lhe ajudaram alevantar. Estava tudo bem. Tia Frizda, porém, parecia estar mais velha do que nunca.Respirava rapidamente, mas com bastante esforço e fraqueza. Os dois lhe ajudaram alevantar e colocaram-na sentada em uma cadeira que estava próxima.

– Está tudo bem? – Perguntou Brum, recuperando a voz.

Tia Frizda respondeu gesticulando com a cabeça.

– Preciso de água querido. – Ela apontava para uma jarra de água de vidro queestava em uma das mesas, tampada por um copo de vidro. Sua voz já estava normal,parecia ser a mesma Tia Frizda de sempre.

Lance rapidamente pegou a jarra e serviu um copo d´água a ela.

– Me desculpem por tudo isso. Me perdoem. – Tia Frizda se direcionava aos dois,sua voz estava bastante triste, quase esmaecida. – Mas tenho que passar esse fardo avocês. Vocês são o que Destino reservou para todos nós. Sim, sim. Vocês dois devemtentar de novo.

Em suas mentes pairavam mil perguntas. Mas, por um momento eles pararam eescutaram aquela outra parte dos seus corpos, eles então puderam perceber. Comoum sentimento antigo e já conhecido, a verdade veio aos corações de LanceBrandobravo e de seu pequeno companheiro Brum. As suas caminhadas nãoterminavam ali, de fato elas estavam apenas começando.

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Capítulo VIIOrigem

Genebra – Suíça – 2014.Laboratório CERN 2, Setor H.

- Grande dia amanhã, hein chefe? – Indagou, com um sorriso no rosto, Molly.

Ela se referia à palestra que o Dr. W. Lucas estaria apresentando às oito da manhã noauditório da Universidade de Zurique. Grandes expectativas, é verdade. Mas, o Dr.W. Lucas não estava nervoso, tampouco ansioso. Longe disso. O trabalho de umavida. Anos e anos de estudo, ninguém no mundo podia palestrar sobre o assuntocomo ele. "A Origem das Coisas" mostrava o panfleto que anunciava a palestra.

– É verdade. - Respondeu ele. - Mas, nada comparado ao que está por vir. -Completou.

Molly Williams era a assistente do Dr. W. Lucas a anos. Quero dizer, aquela quetrabalhava mais próxima dele. Ele possuía vários assistentes e auxiliares. Dr. W.Lucas, ou simplesmente Lucas, como gostava de ser tratado, mas como ninguém otratava, era chefe do grupo de pesquisas "H" dos laboratórios CERN. Ele era ohomem que mais compreendia o que se tentava provar com aquele imenso projeto eseus milhões de dólares gastos. Mas, falava sobre Molly. Formada em Yale comhonras, a melhor da classe. Molly Williams era uma norte-americana oriunda deuma pequena cidade de Minnesota. Por lá, ela figurava jornais e era chamada degênio. No laboratório ela era conhecida como a única capaz de fazer o Dr. W. Lucasgargalhar. Sua aparência era simples, completamente ordinário, mas também hábeleza no que é ordinário. Molly era loira e magra. Bastante alva, ela tinha umaaparência frágil. Talvez essa fosse uma das razões que levava Dr. W. Lucas a gostartanto dela.

– Café? - Convidava ele, enquanto agarrava o jaleco branco que possuía seu nome.Dr. W. Lucas não era médico, nem ninguém que trabalhava nos laboratórios o eram,mas era um costume os cientistas trabalharem de jaleco, assim como os médicos ofazem.

– Ainda não terminei. - Respondeu Molly. Ela estava sentada em frente à tela de umcomputador, parecia colocar vários dados em uma planilha extensa.

– Terminou sim. - Insistiu o Doutor, sorrindo.

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Molly acenou com o rosto e retribuiu o sorriso. Desligou a tela do computador eempurrou a cadeira de rodinhas para trás. Esticou o braço esquerdo à procura de suabolsa e agarrou-a, deixando sua mesa de trabalho para trás.

Devo esclarecer, nenhum tipo de segundas intenções havia ali. Dr. W. Lucas tambémera formado em Yale. Porém, não foi o melhor de sua turma; tão pouco sua turmafora próxima da de Molly. Frequentaram sim a mesma universidade, porémseparados por quase vinte anos no tempo-espaço. Assim, apesar das fortesexigências e diversas broncas, Molly era como uma filha para Dr. W. Lucas.

“Coffe’ncold” dizia a placa da cafeteria mais próxima dos laboratórios CERN. Era umlocal charmoso e aconchegante. Bem pequeno, cabiam cerca de quinze pessoas –entre clientes e serventes – ao mesmo tempo. Tinha cinco pequenas cabines onde aspessoas se sentavam em sofás que eram virados uns para os outros. Uma mesa demadeira clara separava e ao mesmo tempo unia as pessoas que ali sentavam. O lugartinha uma iluminação amarela, fraca, porém calorosa. Estava quase sempre vazio,apenas algumas outras pessoas frequentavam ali. O café que eles serviam era forte esem açúcar, acompanhava um pãozinho com recheio variado e bastante molhobranco. O conforto que eles serviam era o que Dr. Lucas mais gostava e por isso eracliente assíduo dali.

– O senhor parece desconcentrado Chefe. - Afirmava Molly. -Nas nuvens. –Completava, enquanto apreciava o café que embaçava seus óculos.

Dr. W. Lucas não respondeu com palavras, apenas sorriu. Estava alegre com a figuraem sua frente, o rosto de Molly era fino e seus óculos eram grossos. Embaçados, elesfaziam de Molly uma pessoa engraçada.

– Queria saber como é estar dentro desta sua cabeça Chefe. – Refletira Molly. Dr. W.Lucas não demorou muito a responder.

– Já disse para não me chamar assim, Molly. - Ele rebateu com um olhar sério, maslogo retornou a ficar descontraído, como o ambiente sugeria.

Molly Williams tentava, mas não conseguia chamá-lo apenas de Lucas. Tinha umaadmiração profunda pelo Dr. W. Lucas. Ele não sabia disso, mas uma das razões quelevaram Molly a se mudar para a Suíça foi o projeto do Dr. W. Lucas. Isso é, ela jáestudava a área e tinha como influência vários renomados cientistas, porém fora umartigo do Dr. W. Lucas que levara Molly e perseguir a carreira nos laboratóriosCERN. “As Dobras do Tempo” era o título do artigo. Algo sobre o tempo-espaço eavanços na pesquisa sobre a tão sonhada viagem no tempo. Muita metafísica emuitas previsões pretensiosas. Mas, para ela fora como uma mensagem, queriatrabalhar naquilo, entender aquilo.

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– Você tem razão. - Disse Dr. W. Lucas. - Estou realmente com a cabeça em outrolugar. Sinto que estamos chegando próximos. Mais próximos do que achei serpossível. Muitas coisas estão para mudar e rapidamente. Queria ter a certeza de queas minhas previsões serão cumpridas, mas isso é impossível. - Completou ele.

Molly ficou levemente surpresa com a declaração do Dr., ele não era muito de falarsobre o que pensava. Tampouco sobre suas incertezas em relação à pesquisa.

– Achei que esse era o nosso objetivo todo esse tempo. - Falara Molly, confusa com adeclaração que ele tinha feito.

- “Esse”? - Perguntou Dr. W. Lucas.

- É, saber o que acontecerá, saber o que virá a seguir. - Molly falara e largara a xícarade café na mesa. Cruzou os braços e encarou Dr. Lucas. - Não era isso quequeríamos ao iniciarmos a parte prática? - Questionara ela, querendo reafirmar avontade do Dr. W. Lucas, que parecia esmaecida.

– Sim, é verdade. - Ele falara, enquanto encarava seriamente Molly, que permaneciacom uma feição de poucos amigos. – Mas, não é só isso. Por estarmos tão perto,sinto uma ansiedade ao pensar no passado. - Ele dissera e levantara o braço,sinalizando para a garçonete que passava perto de sua mesa.

– Outro café, por favor. – Pedira, a garçonete nem sequer anotou, apenas sorriu egesticulou com a cabeça, deixando os dois conversarem.

Molly não sabia ao que ele se referia. Talvez fosse todo os sacrifícios que eles tiveramque fazer até ali. Ela bem sabe que não fora nada fácil conseguir os recursos paralevar a pesquisa até aquele ponto. Além disso, muitos julgavam mal a pesquisa e oque ela pretendia. “Coisa de louco” Afirmavam alguns de seus colegas que não eramdiretamente ligados com a pesquisa.

– Um passo de cada vez. - Molly o confortava, como já tinha feito infinitas vezes,enquanto tocava a mão de Dr. W. Lucas posta sobre a mesa. Havia mudado desemblante e portava um pequeno sorriso no rosto.

Foi em um reflexo bruto que ele retirou sua mão debaixo da mão de Molly. Naquelemomento algo diferente aconteceu, uma percepção. Dr. Lucas notou algo que já tinhalhe fugido a consciência por diversas vezes. Se tinha por Molly um amor paterno, oamor de Molly por ele nada de paterno tinha. Aquela admiração tinha se tornado emalgo maior, mais forte. A simples realização daquele fato fez com que seu corpoestremecesse em pavor. Sentiu um repulso imediato e decidiu adiar aquela conversa,se é que um dia ela ocorreria.

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– Está tarde, devo ir. - Afirmou Dr. W. Lucas, enquanto se levantara e pedira a contapara a garçonete, cancelando o café que não havia tido tempo de ficar pronto.Rapidamente ele pegou o seu casaco, que estava dobrado na cadeira em suas costas,e partiu em direção a saída.

– Boa sorte amanhã! - Gritou Molly ao perceber a aflição do Dr. W. Lucas, que haviasaído da lanchonete sem nem mesmo esperar pelo troco.

As manhãs eram quase sempre iguais: Dr. W. Lucas tomava apenas uma xícara decafé que acompanhava um único pão de sal sem manteiga. Levava apenas algunsminutos para tomar um banho morno e colocar seu traje diário: uma camisa social euma calça jeans. Dobrava o jaleco branco e o carregava no antebraço esquerdoenquanto prosseguia para a garagem do prédio. Morava no sétimo andar de umprédio antigo e tradicional do seu bairro. Um apartamento modesto comparado aoque ele podia arcar. Alguns andares abaixo, ele destravou seu Toyota com apenas umclique no botão direito da chave. Estava pronto para começar, de verdade, o seu dia.Até aquele momento tudo parecia muito rotineiro para Dr. W. Lucas, porém logoveio à sua mente o que aquele dia significava para ele e para sua pesquisa. Era umdia decisivo, iria discursar para toda uma comunidade científica e, finalmente,iniciar a fase prática de sua pesquisa, “ligar as máquinas”, começar os testes deverdade. O discurso iria tomar forma no Instituto Federal de Tecnologia de Zurique,que ficava apenas há alguns quilômetros de distância dos laboratórios CERN, localonde ele frequentou todos os dias religiosamente durante os últimos anos. Suamente desligou-se por um instante e Dr. W. Lucas dirigiu todo o caminho sem sequerprestar atenção ao que se passava ao seu redor. Poucos minutos depois e ele já desciado seu carro, portando sua pasta com um breve resumo, preparado por Molly, doque ele iria falar em alguns momentos. O discurso e a palestra não era o que fazia asmãos do Dr. W. Lucas tremerem, ele estava ansioso para o que viria a seguir: iriafinalmente iniciar a parte prática da sua pesquisa. Concentrado nisso, ele seguiu parao principal, e maior, auditório do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique. Oauditório ficava próximo à cafeteria, por onde Dr. W. Lucas passou e foracumprimentado por vários colegas da área. Dirigido por uma assistente responsávelpela organização da palestra, ele fora guiado rapidamente pelo corredor que davaacesso ao palco e se viu por trás de uma cortina vermelha. Ele não teve muito tempopara considerações, apenas concentrou-se na voz grave que o apresentou de maneirabreve e prática.

– Dr. W. Lucas! – Exclamou a voz.

Muitos aplausos vieram depois disso. Logo a moça com cabelos morenos e umpequeno microfone preso ao rosto, a mesma que havia lhe apressado peloscorredores momentos atrás, gesticulava fortemente com as mãos: era hora de

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adentrar o palco. Ele obedeceu e se deparou com o imenso auditório daUniversidade de Zurique completamente lotado e o ovacionando.

– Obrigado. – Disse ele, enquanto ajeitava o microfone para a sua altura.

– É um grande prazer estar aqui nessa manhã tão fria. Espero que o que tenho paraapresentar possa aquecer um pouco essa sala e, quem sabe, a curiosidade de vocês. –Disse ele, provocando alguns risos aqui e ali.

Poderia explicar detalhadamente quais foram os pontos tocados por Dr. W. Lucas.Quais suas opiniões e descobertas. Todos os fatos e gráficos do que ele tinha feito atéali. Fora uma apresentação de quase uma hora e meia até aquele momento. Muitosslides e vídeos provocaram a curiosidade e a imaginação dos cientistas que aliassistiam à palestra. Mas, diante de tudo isso, apenas uma coisa importava.

– Eu já tenho a resposta para tudo isso. – Disse um jovem do meio do auditório.

Aproveitou-se de um breve silêncio entre as falas de Dr. W. Lucas e berrou suaopinião. O auditório ficou calado, apenas o barulho das cabeças e corpos secontorcendo em direção ao rapaz era notório. Antes que alguém pudessecompreender qualquer coisa, Dr. W. Lucas usou o microfone.

– Perdão? – Disse ele, enfatizando a falta de contextualidade na fala do rapaz.

O rapaz não se amedrontou, ficou de pé e encarou Dr. Lucas dali de onde estava. Eraum jovem branco e magro, não muito alto nem muito baixo. Estava vestido com umacamisa branca simples, cem por cento algodão. Tinha algumas pintas no rosto e umcabelo bastante escuro.

– Sei onde sua pesquisa vai chegar. Já tenho a resposta. – Disse ele.

Naquele ponto, todo o auditório ficou alegre e surpreso, parecia que algo de especialiria acontecer. Talvez fosse apenas uma molecagem, uma tentativa de ridicularizar oDr., talvez algo muito especial aquele jovem tinha para dizer. Assim, todos ficaramquietos enquanto encaravam o rapaz e a reação de Dr. W. Lucas, que até aquelemomento mantinha-se assustado, porém curioso.

– Deus. – Disse o rapaz diante do silêncio da plateia e do palestrante.

A gargalhada foi generalizada. Todos naquele auditório imediatamente começaram arir da declaração do rapaz. O que se esperar? Tratava-se de um bando de cientistasouvindo um qualquer falar em um assunto nada aceito, “Deus”. Então todossoltaram o riso. Sentiram-se eufóricos e envergonhados ao mesmo tempo, talvezaquele jovem tivesse algum distúrbio e eles não deveriam estar rindo, mas o faziam

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mesmo assim. Apenas duas pessoas não riam naquela situação: o próprio rapaz e oDr. W. Lucas.

– Entendo o que você quer dizer. – Para a surpresa de todos no auditório, disse Dr.W. Lucas. A sua fala sobressaiu-se sobre as risadas, fato que fez o auditório voltar aficar calado. Dessa vez o silêncio demonstrava completa perplexidade.

– Sim, é verdade. Essa é a busca de todo cientista no final das contas. – Dr. W. Lucasdesencaixou o microfone, que estava preso a mesa suspensa até aquele momento, ecomeçou a andar sobre o palco do auditório. Não olhava para a plateia, mas sim parao chão.

– Sabemos que moléculas de hidrogênio se juntam a moléculas de oxigênio e quejuntas formam a água. Sabemos que o Sol é praticamente gás hélio em combustão.Sabemos quantos elétrons, nêutrons e prótons formam cada coisa. Sabemos queforam diversas mutações que nos trouxeram até aqui. Sabemos a distância até a lua.Sabemos quão fundo é o oceano e qual a altura das estrelas. – Ele fez uma pausaproposital e encarou a plateia. – Mas, qual a questão que nunca foi totalmenterespondida? Qual é a questão que é feita pelos primeiros filósofos e que perdurassem resposta até hoje? – Ele esperou alguns instantes, sabia quem iria responder asua pergunta e não ficou decepcionado.

– Qual é a origem das coisas? Essa é a questão que não tem resposta. – Disse o jovemcom um sorriso no rosto. Depois disso se sentou satisfeito. Desapareceu na plateia.

- Exatamente! – Afirmou Dr. W. Lucas com um brilho no olhar. – Qual é a verdadeiraorigem das coisas? O que havia antes do big bang? Quando o tempo começou aescoar os primeiros grãos areias pelos vidros finos da grande ampulheta que é ouniverso? – Dr. W. Lucas parecia encantar a plateia, que ouvia cada sílaba sair de suaboca com atenção. – Falo sobre o momento inimaginável, aquele segundo antes doque podemos explicar. De onde surge aquilo que não podemos colocar em palavras?- Disse e ficou quieto por alguns instantes.

A plateia ouvia com atenção, enquanto procuravam formular alguma resposta para oque o Dr. falara.

– Deus é a origem das coisas. Pelo menos foi essa a resposta que nos foi dada até opresente momento. Deus. – Disse Dr. W. Lucas, inconformado. – Deus sempre foi aresposta para essas perguntas sem respostas, Deus. Porém, essa resposta não é maissuficiente, ela não pode ser. O ponto a que quero chegar com isso tudo é que o dia dehoje será decisivo, um ponto chave que fechará um desafio que eu fiz para mimmesmo há muito tempo. – Agora ele falava, novamente, voltado para a plateia, queouvia estonteada. – Quero desafiar o conceito de Deus, quero achá-lo e desnudá-lo.

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Se tudo ocorrer como tanto desejo, estaremos diante de um novo Deus, algo que nãoé apenas uma resposta dada quando fazíamos àquelas perguntas. O Deus da origemdas coisas aparecerá e a compreensão será seu nome. – Concluiu.

O auditório aplaudiu a fala emocionada do Dr. W. Lucas por cerca de cinco minutosininterruptos. Estavam glorificados com aquelas palavras, mais ainda com o queaquele homem haveria de realizar. Para eles era um privilégio imenso estar naqueleauditório onde um homem que estava prestes a fazer história falava como uma merapessoa. A palestra continuou por cerca de mais meia hora. Outros fatos e detalhes dapesquisa foram expostos e logo tudo que devia ter sido dito o foi. Novamenteaplaudido, Dr. W. Lucas se despediu do Instituto de Zurique entusiasmado.Cumprimentou vários colegas no caminho até seu carro. O sol já alcançava seu pontomais alto no céu quando Dr. W. Lucas finalmente conseguiu sentar-se na solidão doseu Toyota. Girou a chave da ignição e se sentiu feliz ao lembrar do entusiasmo queos seus colegas sentiram com a apresentação da sua pesquisa. Ser reconhecido eraalgo muito bom e não fazia mal algum pensar em quão vitorioso ele fora por chegaraté ali. Foi o vibrar do seu celular que lhe trouxe de volta a realidade.

– Chefe, como foi a palestra? – Disse Molly, impedindo Dr. W. Lucas de prosseguirviagem.

– Excelente. – Disse ele, enquanto desligava o carro que tinha acabado de ligar.

– Como esperado. – Molly sorria do outro lado da linha. – Hoje é o grande dia. – Eladisse, rindo pelo telefone.

– É verdade. O pior ainda está por vir. – Disse Dr. W. Lucas enquanto soltava umriso nervoso.

– O pior? Nada disso. Vai dar tudo certo. – Molly tentava confortá-lo. – Deveríamosalmoçar juntos. – Disse ela. – Você ainda está no Instituto? – Ela falou, parecendoadivinhar.

– Estou. – Respondeu Dr. W. Lucas.

– Venha para minha casa, fica a menos de quinze minutos daí. – Disse ela e desligou,talvez para que sua ideia não fosse rejeitada.

Dr. W. Lucas já tinha passado algumas vezes pela casa de Molly, mas nunca foi alémda porta de entrada. Era uma casa estreita, porém com dois andares. Ficavaespremida entre outras duas casas com a mesma faixada de tijolinhos de barro.Foram precisos quinze minutos até a porta da frente da casa de Molly. A questãoagora era se seria adequado ou não entrar. Dr. W. Lucas apertou o dedo anelar egirou um anel fantasma. Sentiu vontade de ir embora e quase o fez. Porém, pensou

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que aquilo seria uma desfeita com Molly. Resolveu entrar, afinal era só um almoçoentre colegas, talvez ele estivesse enxergando problema onde não havia.

– Chefe! Que bom que o senhor veio. – Exclamou Molly com um amplo sorriso norosto. Ela estava segurando uma tigela com salada com uma das mãos e segurava aporta aberta com a outra.

– Você não me deu alternativa. – Dr. W. Lucas também sorriu. Molly corou, sabia oque tinha feito e tinha suas razões para tal. Os dois ficaram sem jeito, eram colegasde trabalho há muito tempo, porém nunca tinham visitado um a casa do outro.

Dr. W. Lucas não pôde deixar de observar o perfil da casa de Molly, que se pareciamuito com ela no trabalho. A porta de entrada dava para uma sala pequena ondehavia apenas um sofá de dois lugares bege e um tapete igualmente bege, ambosvirados para uma lareira. Do lado oposto da lareira uma escada de ferro, feita emespiral que levava para o outro andar. Ao lado da escada havia apenas uma mesinhapreta com uma única cadeira igualmente preta que ficavam atrás do sofá bege. Amesa estava cheia de livros amontoados. Não havia televisão ou qualquer outra coisaeletrônica. Era uma sala solitária e fria. No final da sala havia um balcão queseparava a cozinha da sala, era lá que Molly estava terminando de preparar oalmoço.

– Algo cheira muito bem. - Dr. W. Lucas disse, enquanto deixava seu casacoencostado em um dos braços do sofá.

– Que bom! - Replicou Molly. - Espero que o sabor esteja de acordo com o cheiro. -Ela sorria, enquanto conversava com ele da cozinha para a sala.

O cheiro vinha do fogão e parecia ser de algum tipo de carne com verduras. Dr. W.Lucas ficou surpreendido com a habilidade que Molly parecia ter na áreagastronômica. Talvez tenha ficado surpreso apenas pelo fato de que algum cientistapudesse cozinhar tão bem. Sabia ele que ele mesmo malmente tinha noção de ondeficavam as panelas de sua própria casa.

– Chefe, por favor, vamos sentar. - Ela disse ao notar que Dr. W. Lucas ainda estavade pé, encarando algumas fotos que estavam penduradas nas paredes. Não eramfotos de Molly, eram apenas paisagens que traziam uma certa calma a quem asolhassem.

Dr. W. Lucas obedeceu, deu alguns passos em direção à Molly e chegou a cozinha,onde havia uma mesa de dois lugares posta elegantemente. Molly rapidamenteretirou o assado de dentro do forno e colocou a salada ao lado dele na mesa. Tudocheirava e aparecia delicioso. Dr. W. Lucas sentiu a boca salivar e as narinasdilatarem com todo aquele sabor que pairava no ar.

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– Como foi a palestra? - Perguntou Molly, enquanto puxava a própria cadeira esentava-se em frente ao Dr. W. Lucas.

– Tudo ocorreu conforme o planejado. - Ele disse. - Mas, teve algo que mesurpreendeu de certa forma. - Completou e ficou quieto por um instante.

Molly sabia que Dr. W. Lucas era muito metódico, até mesmo no seu jeito de falar. Jáesperava uma resposta como aquela. Outros diriam que a palestra fora brilhante,assim como os colegas da Universidade normalmente classificavam as palestras doDr. W. Lucas. Mas, ele sempre foi totalmente objetivo em relação aos seus resultados.Nunca demostrou estar satisfeito demais com aquilo que produzia, talvez por queestivesse esperando o momento que mais teria significado, um auge a ser alcançado.

– Um garoto fez algumas perguntas corajosas. - Dr. W. Lucas falava, enquanto Mollyenchia um prato de porcelana fina com várias fatias de carne e temperava com asalada. - Não foram lá bem perguntas, na verdade foram apenas constataçõesatrevidas, mas altamente inteligentes. Quero dizer, foi algo interessante. - Elecompletou.

– Algo interessante então. – Molly afirmava com um sorriso no rosto.

– É verdade. Basicamente, ele me acusou de procurar Deus. – Dr. W. Lucas provocourisos em Molly, mas ele estava sério. Molly, ao perceber a seriedade no rosto dele,mudou de feição com uma tosse forçada.

– Acho que esse é um jeito de colocar as coisas. – Ela disse.

Os dois ficaram ali por alguns minutos em silêncio. Molly parecia tentarcompreender por que Dr. W. Lucas tinha levado aquela frase tão a sério. Ele quesempre fora de debochar de assuntos religiosos, carregava uma feição reflexiva aopensar no que acabara de dizer. Molly sentiu-se desconfortável com o silêncio namesa. Pensou em dizer algo besta, mas olhou para a frente e viu Dr. W. Lucassegurando seu garfo e encarando o horizonte, ele parecia muito triste.

– Está tudo bem? – Disse ela e colocou a mão esquerda sobre a mão direita dele.

O que se passou, surpreendeu. O almoço estava terminado por alguma razão.

– Não faça isso! – Berrou Dr. W. Lucas enquanto empurrou a cadeira para trás,levantando-se abruptamente.

– Desculpe! – Disse Molly, ainda sentada.

– Eu não posso! Você não compreende. – Dr. W. Lucas estava em pânico, gritava depé, enquanto andava rapidamente em círculos.

– Não entendo, o que eu fiz? – Perguntava Molly, desconsolada.

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– Molly, eu gosto de você. – Dr. W. Lucas percebeu-se agitado demais e conseguiudiminuir sua aflição, ainda que por um instante. – Eu realmente gosto de você, masnão do jeito que você gosta de mim. Eu sinto muito. – Disse ele, ainda encarando ochão.

Molly sentiu-se extremamente embaraçada. Não tinha tido aquela intenção ao tocara mão dele naquele momento. Ao menos, não conscientemente. Mas, ela sabia queno fundo aquela acusação era baseada em certa verdade. Nutria sentimentos nãocorrespondidos por ele a bastante tempo. Corou quando se viu finalmenteenfrentando aquele problema oculto.

– Eu sinto muito. Sei que normalmente é algo que as pessoas dizem, mas você nãotem culpa nenhuma nisso. – Dr. W. Lucas parecia terminar uma relação que nuncasequer havia começado.

– Está tudo bem. No fundo eu sempre soube. – Disse Molly enquanto se levantava ese aproximava do Dr. W. Lucas que estava do outro lado da mesa. – Eu sempre soubeque essa minha fantasia, não passava disto. – Ela falara, triste, porém sensata.

Dr. W. Lucas estendeu as mãos em direção à Molly. Os dois estavam de mãos dadas,mas de corpos separados e o seguinte se passou:

– Irei te contar algo que jamais disse para ninguém em todo o laboratório CERN. –Ele estava com lágrimas nos olhos e a voz fraquejava. Molly privou-se a ouvir.

– Acho que tem a ver com o que aquele rapaz me perguntou hoje. Todos temosnossos objetivos secretos na vida, um motivo para cada ação, ao menos é nisso queacredito. Sei que você tem seus motivos para trabalhar onde trabalha. – Ele falara,deixando as lágrimas escorrerem do rosto.

Molly não aguentou e também começou a chorar enquanto simplesmente ouvia oque Dr. W. Lucas tinha a dizer tão emocionadamente.

– Foi em um verão em noventa e oito. Iriamos acampar como sempre fazíamosnaquela época do ano. Era o nosso modo de começarmos o verão com tranquilidade.A vida era eu e ela. Eu e ela contra o resto do mundo. Naquela manhã tudo estavaconforme o planejado, até mesmo o clima colaborava. Parecia ser o dia perfeito. – Dr.W. Lucas soltou as mãos de Molly e levou a mão esquerda ao rosto, limpando aslágrimas que escorriam pelo rosto. – Naquele dia eu nunca deveria ter saído de casa.Eu nunca deveria ter entrado no meu carro, não naquele dia, jamais naquele dia. –Ele parou, tentando recuperar o fôlego entre os soluços de choro e aflição. Molly nãosabia como reagir, a não ser escutar o que ele tinha para dizer, mas parecia jácompreender a situação.

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- Finalmente, o que quero dizer é que ela se foi e eu continuo aqui e isso é tudo. –Disse Dr. W. Lucas, agora sem lágrimas nos olhos, mas com uma feiçãocompletamente triste. – Molly, querida, você já desejou, ainda que por um brevemomento, ter a chance de corrigir um erro que você sabe não ter conserto? – Elevoltara a segurar as mãos de Molly, que estava estonteada com a tristeza daquelehomem. – Você já desejou, do fundo do seu coração, modificar aquele algo que vocêsabe não ter como modificar? Você já desejou apagar aquele pequeno segundo, quevocê sabe que mudaria tudo, e reescrevê-lo? E se existisse um modo, algumasolução, para que aquele algo que aconteceu não tivesse que se perpetuar daquelejeito, se existisse uma maneira de mudar aquela única coisa que você deseja comtodo o seu ser mudar? – Ele perguntara, mas ele sabia que Molly não tinha asrespostas para aquelas perguntas.

Dr. W. Lucas havia falado com sinceridade, algo que ele não fazia há muito tempo.Molly ficou quieta e sem resposta. Ela compreendia fundamentalmente o que elequeria dizer. O sentimento de vácuo preencheu aquela sala naquela tarde. As mãosque se seguravam compartilhavam o que não podia ser dito e a dor parecia se esvair,suavemente, com o silêncio que a sala de Molly acomodava.