Pablo F. de A. Porfírio · se desejava apresentar como revolucionário. Ademais, a imagem de um...
Transcript of Pablo F. de A. Porfírio · se desejava apresentar como revolucionário. Ademais, a imagem de um...
1
México e Brasil nos relatos de um exilado político (1969-1979)
Pablo F. de A. Porfírio∗∗∗∗
Em 1969, Francisco Julião publicou seus primeiros artigos na revista mexicana
Siempre!. A partir de 1972, passou a escrever textos semanais. Até 1979, foram cerca de
250, que circularam nas edições da Siempre!, em uma coluna que por vezes trazia o
título de América Latina, hoy. Nas quintas-feiras, a revista era posta nas ruas e
consumida por um público cativo de intelectuais, artistas, estudantes e pessoas
interessadas em ler, principalmente, as opiniões do time de colunistas sobre a política no
México e na Latinoamérica.
José Pagés Llergo, amigo de Francisco Julião e do presidente do Chile, Salvador
Allende, era o diretor da revista. Ele tinha uma relação de amizade também com Luis
Echeverría, presidente do México entre 1970 e 1976, a quem chamara de “Querido
Luis” em uma carta1. Existia um bom convívio entre o presidente e a publicação, na
qual circulavam alguns textos favoráveis ao governo.
Essa condição de proximidade não anulava totalmente uma atitude crítica e de
independência por parte da direção. Quando Julio Scherer foi golpeado pela repressão
governamental e expulso com sua equipe da redação do jornal Excélsior, Pagés Llergo o
ajudou, disponibilizando as páginas de sua revista e sua maquinaria. Nas oficinas de
Siempre! nasceu a primeira publicação de Proceso2, novo empreendimento de Scherer.
José Pagés Llergo adotava uma posição de cautela. Apesar da liberdade que os
articulistas tinham para suas publicações, havia limites bem estabelecidos pelo diretor,
que costumava fazer o seguinte alerta: “Recordem que há três tabus: o Presidente da
República, o exército mexicano e a virgem de Guadalupe. Anotem isso e vamos seguir
tranquilos”3.
Francisco Julião chegou ao México no último dia do ano de 1965, como exilado
político da ditadura brasileira iniciada no ano anterior. Passou a ser mais conhecido no
México pela publicação dos seus artigos durante quase toda a década de 1970. Rodrigo
Moya, fotógrafo que trabalhou, entre outras, para a Siempre!, nos anos 1960, cobriu - ∗ Bolsista de Pós-doutorado Júnior do CNPQ/UFPE. 1Carta reproduzida em MUNGUÍA, Jacinto Rodríguez. La outra guerra secreta: los archivos prohibidos de la prensa y el poder. Debolsillo: México, 2010. p. 230 2Proceso é atualmente a principal revista semanal de oposição aos governos do Partido Acción Nacional –
PAN e do Partido Revolucionário Institucional – PRI. 3MUNGUÍA, Jacinto Rodríguez. La outra guerra secreta: los archivos prohibidos de la prensa y el poder. Op. Cit. p. 232
2
em conjunto com um dos seus jornalistas, como Luis Suárez - a invasão das tropas dos
Estados Unidos a cidade de Santo Domingo em 19654, recorda que o exilado brasileiro
era uma leitura obrigatória para as esquerdas do México naqueles anos5. Moya não
conheceu pessoalmente a Julião, mas Luis Suárez esteve no Brasil, em 1962, e visitou a
Associação de Imprensa de Pernambuco, em Recife, onde estabeleceu contato com o
então deputado socialista e advogado dos camponeses6, de quem se tornou amigo nos
anos do exílio. O fotógrafo, que esteve junto com o jornalista Mario Menéndez entre
guerrilheiros na Venezuela e na Guatemala, em 1966, registrando parte do seu cotidiano
e de suas ações7, ainda lembra de Francisco Julião como um respeitado líder de
esquerda da América Latina8.
Quando lia os artigos semanais do brasileiro, Rodrigo Moya encontrava várias
análises sobre os processos considerados revolucionários na América Latina, alguns dos
quais registrados pelo fotógrafo9. Na quinta-feira, 20 de junho de 1973, a Siempre!
publicava a seguinte análise do exilado político:
[…] Enquanto a sombra de Che caminha pelos Andes como a de Bolívar, Fidel retorna ao continente, mais seguro de si mesmo, para aprender com Chile e com Peru, segundo ele mesmo confessa, com a humildade de um verdadeiro líder, que uma revolução nacionalista, popular e democrática, tanto pode sair da boca de um fuzil, como na Sierra Maestra ou das entranhas de uma urna, quando se trata do Chile […]10.
Francisco Julião, em alguns dos seus discursos antes de 1964, no Brasil,
afirmava não acreditar nas urnas como um meio para a redenção do povo e a revolução,
apesar de ter sido eleito em todos os pleitos nos quais foi candidato entre 1954 e 1962.
Na década de 1970, ampliou o seu leque conceitual sobre a revolução. Agora, ela
poderia ser realizada por meio das urnas, além do já conhecido uso das armas. O que
4CASTILLO TRONCOSO, Alberto del. Rodrigo Moya: una mirada documental. Ediciones El Milagro: México, 2011. p. 121-125. Além da Siempre!, também foram publicadas algumas das fotografias de Rodrigo Moya em reportagens da Revista Sucesos. 5 Conversa com Rodrigo Moya em Cuernavaca, México, 02 jun. 2012. 6 A informação sobre a visita está em CASTELLANOS, Diana G. Hidalgo. Um olhar na vida de exílio de
Francisco Julião. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. p. 65. 7CASTILLO TRONCOSO, Alberto del. Rodrigo Moya: una mirada documental. Op. Cit. p. 125-153. As reportagens sobre essas guerrilhas circularam nas páginas da Revista Sucesos. 8 Conversa com Rodrigo Moya em Cuernavaca, México, 02 jun. 2012. 9 Em 1964, Rodrigo Moya passou um mês em Cuba fotografando diversos aspectos da Revolução. 10 Revista Siempre! 20 de junho de 1973. p. 31. Hemeroteca Nacional, UNAM, D.F., México.
3
importava é que se apresentasse como um movimento nacionalista, popular e
democrático, como se dizia ocorrer no México.
Deve-se atentar para a seleção produzida pelo articulista nesse pequeno trecho.
Referia-se a três países latino-americanos, sendo dois da América do Sul e um desses –
Chile – considerado fiel parceiro político do governo de Luís Echeverría. Cita Fidel
Castro, “um verdadeiro líder”, com quem o presidente mexicano havia produzido uma
visível reaproximação11, além dos nomes de lideranças políticas classificadas como
mártires revolucionários, “Che e Bolívar”.
Os temas presentes nesse texto, como em outros durante a década de 1970,
dialogavam com as ideias desenvolvidas e defendidas pelo governo de Luís Echeverría
tanto para a política interna, quanto para a externa. Os escritos de Francisco Julião na
Siempre! estariam dentro da ordem de discursos e práticas implantada no México, que
se desejava apresentar como revolucionário. Ademais, a imagem de um líder de
esquerda da América Latina, como lembrava Rodrigo Moya, poderia contribuir na
produção desse efeito.
Por esse caminho o exilado transitou e obteve reconhecimento político e
intelectual. Viajou ao Chile, Portugal e Argélia. Neste último foi recebido como o
representante do Comité de Solidaridad Latinoamericano12, integrado, entre outros, por
Pablo González Casanova, Mário Guzmán - o mesmo que havia escrito o artigo sobre
“Até quarta, Isabela” no jornal El Día - e Gabriel Garcia Márquez, com quem viajou a
Cuba, em janeiro de 1979, convidados por Fidel Castro, para participarem das
comemorações do XX aniversário da revolução. Esta foi a única visita de Julião a Ilha
em todo o período do exílio13.
Em 1978, junto com o ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, foi
convidado pela direção do PRI para participar das comemorações do cinquentenário do
partido, na cidade de Querétaro14. O trânsito de Francisco Julião por setores da elite
intelectual e política do México ajudava-o a compreender as regras daquela sociedade e,
ao mesmo tempo, possibilitava-o produzir uma inserção para si.
11 A revista Siempre! publicava algumas fotografias onde apareciam Fidel Castro e Luis Echeverría em ações informais, como passeios de barco e pesca. Desejava-se publicitar o laço de amizade entre os dois. 12 Francisco Julião representou o Comitê de Solidariedade na Conferência Internacional sobre o Imperialismo Cultural. Revista Siempre!, 16 de novembro de 1977. p. 46. Biblioteca Rubén Bonifaz, UNAM, D.F., México. 13 O relato dessa viagem a Cuba está no artigo Passaporte a Cuba: un breve viaje a la esperanza. Revista Siempre! 31 de janeiro de 1979. p. 42-43. Biblioteca Rubén Bonifaz, UNAM, D.F., México. 14 Divisão de Segurança e Informação – Ministério da Justiça / DSI-MJ. Caixa 3413. Doc. n° 100562 de 08 maio 1979. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
4
Em julho de 1973, uma representação dessa elite encontrava-se na casa de José
Pagés Llergo. Estava ocorrendo um café da manhã, com enchiladas e tamales,15
comemorativo dos 20 anos de fundação da Revista Siempre! e se fizeram presentes
jornalistas, o Arcebispo de Cuernavaca e o presidente Luis Echeverría.
Fig. 07 –Desayuno (café da manhã) em comemoração aos 20 anos de fundação da Revista Siempre!. 18 jul. 1973.
15 Comidas tradicionais mexicanas.
5
Fig. 08 –Desayuno em comemoração aos 20 anos de fundação da Revista Siempre!. 18 jul. 1973.
Das fotografias e seus usos podem ser destacadas duas intencionalidades. Uma
referia-se a representação de um Presidente democrático, que oferecia a possibilidade de
6
um diálogo direto e franco com a imprensa. Assim pontuava a reportagem de Carlo
Cacciolo, participante do encontro, cujo título era: “Presença da grandeza em um
encontro: Echeverría – Siempre!. O mais alto nível de simplicidade, franqueza e
respeito”. O jornalista destacava a impressionante fala natural, limpa e sem enganações
do Presidente16.
Ainda no decorrer do texto, Cacciolo contava que havia sido questionado por
José Pagés Llergo sobre o que escreveria para a matéria, respondendo-lhe: “ao observar
de perto a Luis Echeverría um tem desejos de proclamar sem pudor que, apesar da
amplitude dramática, e talvez sem remédio, dos problemas que lhe e nos acossam é uma
charmosa aventura viver no país por ele governado”17. Havia uma aclamação ao líder.
A outra intencionalidade, presente nas legendas das imagens, seria a de produzir
a ideia de união, como peça chave para enfrentar os problemas do país e conduzi-lo
adiante. Nesse sentido, haveria três personagens de destaque, que ocupariam o centro
das fotografias e da narrativa que lhe conferem sentido: Luis Echeverría, presidente,
José Pagés Llergo, jornalista, e Don Sérgio Méndez Arceo, Arcebispo de Cuernavaca. O
Estado, a Igreja Católica e a imprensa estavam harmoniosamente no mesmo quadro
fotográfico e político.
No mesmo dia em que circulou a matéria com as fotos do desayuno
comemorativo foi publicado um artigo de Francisco Julião, cujo título era: “México e
Brasil, as linhas divergentes: o enorme abismo que separa a liberdade da escravidão”. O
texto apresentava uma integração com alguns dos elementos editoriais elencados no já
referido artigo de Carlo Caciollo.
Dizia em um dos trechos:
Essa abertura para fora [do México] perderia seu sentido, sua efetividade, seu realismo, se não encontrasse seu equivalente dentro das fronteiras geográficas, políticas, ideológicas do país. Aqueles que negam, de pés juntos, a existência de uma abertura interna, cometem, a nosso ver, um erro que somente o sectarismo pode explicar. […] Pois bem, no momento em que México se abre em busca de novos horizontes e se incorpora aos governos que na América Latina já sustentam, abertamente, o firme propósito de resistir às agressões imperialistas, Brasil se instrumentaliza para marchar em sentido oposto. Na sua viagem de retorno, a ditadura militar abastece os tanques com as sobras da desnacionalização acelerada e com esses mesmos tanques esmaga as liberdades. […] Enquanto México
16 Revista Siempre!, 18 de julho de 1973. p. 10. Biblioteca Rubén Bonifaz, UNAM, D.F., México. 17 Revista Siempre!, 18 de julho de 1973. p. 85. Op. Cit.
7
dialoga, Brasil monologa. Assim, entre México e Brasil as linhas divergentes são bem nítidas18.
As diferenças entre o Brasil ditatorial e o México democrático estavam
demarcadas no texto e Francisco Julião teria autoridade para falar sobre isso. Foi
obrigado a sair do seu país, após passar mais de um ano preso, por questões políticas,
pelo governo militar. Recebido pelo México, apresentava-se com liberdade de escrever
e publicar as suas ideias. Esse era um enunciado possível e necessário. As advertências
da Secretaria de Gobernación e as perseguições da Dirección Federal de Seguridad não
deveriam ser lembradas.
O artigo informava aquilo que deveria ser identificado nas fotografias do café da
manhã comemorativo: “México dialoga”, era uma democracia. Existia “abertura” para
isso. Quando se produziu este enunciado, estava-se afirmando que Luis Echeverría
dialogava. Essa personificação era reforçada nas imagens publicadas na parte superior
das duas páginas ocupadas pelo texto, onde aparece de um lado a foto do presidente do
México e do outro, o seu oposto, Emílio Garrastazu Médici, ditador do Brasil.
Não se pode afirmar sobre o nível de proximidade entre Francisco Julião e Luis
Echeverría. Na entrevista publicada pelo jornal O Pasquim, em 1979, há um breve
comentário sobre a ligação entre o exilado e os filhos do presidente. Mais uma vez não
se pode precisar qual a intensidade desse contato, nem se ele já existia em 1973, nas
comemorações do XX aniversário de Siempre!19.
De volta ao artigo, pode-se ainda identificar que Julião criticava o governo
ditatorial do Brasil por promover uma desnacionalização e esmagar as liberdades. Se na
lógica proposta para o texto os dois países em questão seguiam caminhos opostos, a
denúncia sobre o Brasil reforçava a produção da legitimidade democrática para o
México, que seria nacionalista e livre.
Essa edição festiva da Revista dá forma então a um discurso visual20, constituído
pelas fotografias e pela estratégia narrativa, as quais informavam ao leitor a ideia de
liberdade, do respeito às instituições, da democracia e dos seus praticantes.
Dentre as três personalidades consideradas centrais, falta apresentar Sérgio
Méndez Arceo, arcebispo de Cuernavaca, que, assim como Pagés Llerg, era um amigo
18 Revista Siempre!, 18 de julho de 1973. p. 31. Op. Cit. 19 Jornal O Pasquim. 19 de Janeiro, 1979. p. 15. Fundação Biblioteca Nacional. 20 CASTILLO TRONCOSO, Alberto del. Ensayo sobre el movimiento estudiantil de 1968: la fotografía y la construcción de un imaginario. México: Instituto Mora: IISUE, 2012. p. 17.
8
em comum entre Francisco Julião e Salvador Allende. Desde o final dos anos 1950, o
religioso já tinha iniciado mudanças litúrgicas em sua diocese, que proporcionavam
uma aproximação maior da Igreja Católica com os movimentos seculares, como: Acción
Católica Mexicana (ACM) e o Secretariado Social Mexicano (SSM). Nos anos
posteriores percebeu-se um aprofundamento dessa prática, principalmente, com a
realização do Concílio Vaticano II, que direcionou setores da Igreja Católica a debater e
se fazer mais atuante em questões sociais e políticas. Ao final de 1965, “a Igreja
mexicana não era nem a tradicionalista ultraconservadora nem a reformista radical,
ainda que alguns bispos se inclinassem por estas tendências. […] A Igreja mexicana
estava, em geral, mais aberta ao mundo secular”21.
O Arcebispo de Cuernavaca, já na década de 1970, continuava apoiando grupos
seculares, inclusive os compostos por pessoas formadas na Igreja Católica, mas que
depois a deixaram, como Ivan Illich, diretor do Centro Intercultural de Documentación -
CIDOC, onde Julião ministrava cursos e que se situava em Cuernavaca. Atuava “no
limite da permissividade do Vaticano”. Mesmo sem realizar uma crítica aberta à Igreja
de Roma, por meio de algumas de suas ações era possível identificar que o Arcebispo
estava em desacordo com várias normatizações oriundas das hierarquias superiores22.
Sérgio Méndez Arceo comandava, na Catedral de Cuernavaca, uma celebração
dominical iniciada às 11 horas da manhã. Nas suas homilias, o arcebispo
frequentemente abordava questões políticas e sociais do México e também da América
Latina. Tratou, entre outros, da censura ao filme Canoa, que relatava a prática criminosa
do anticomunismo, da vitória e depois da queda de Salvador Allende e do triunfo do
sandinismo. Revistas como Siempre! e Proceso, por vezes, reproduziam em suas
páginas parte dessas homilias, bem como realizavam e publicavam entrevistas com o
religioso. Luis Suarez, integrante da equipe de Pagés Llergo, foi um dos jornalistas que
o entrevistou várias vezes23.
Francisco Julião construiu uma relação de amizade com Sérgio Méndez Arceo.
Os dois se encontravam, conversavam e trocavam ideias seja no CIDOC, seja depois
das celebrações de domingo, das quais o asilado político sempre procurava estar
21BLANCARTE, Roberto J. Religiosidad, creencias e Iglesia em la época de la transición democrática. In: BIZBERG, Ilán & MEYER, Lorenzo (Org.). Uma história contemporânea de México. Actores. Tomo 2. El Colégio de México. Ed. Oceno. 2005. p. 236. 22BLANCARTE, Roberto J. Religiosidad, creencias e Iglesia em la época de la transición democrática. Op. Cit. p 239. 23VIDELA, Gabriela. Sergio Méndez Arcel, um Señor Obispo. Juan Pablo Editor: México, 2010. p. 107-112.
9
presente. Em meados da década de 1970, ele era visto em companhia de sua nova
esposa, a mexicana Marta Rosas24. É plausível que o contato profissional com a Revista
Siempre!, que resultou em anos de publicação, tenha sido proporcionado por Méndez
Arceo, que dispunha de acesso direto a seu diretor e a diversos dos seus jornalistas,
incluindo um dos principais, Luis Suárez, que, como me referi antes, havia conhecido o
exilado brasileiro ainda quando ele era o famoso dirigente das Ligas Camponesas do
Nordeste do Brasil, entre 1955 e 1964.
Ainda quero retomar as fotografias para uma última análise acerca da presença
do exilado. Ela indica que Francisco Julião havia atendido às exigências do grupo
político ali representado e possuía as qualificações necessárias para integrá-lo. Foi
aceito naquela ordem de práticas e discursos, na qual se operava com signos e
representações de esquerda e se produzia uma legitimidade para o sistema político, que
reprimia manifestações estudantis e camponesas e, ao mesmo tempo, apresentava-se
democrático e apoiava governos proclamados revolucionários, como Chile e Cuba.
O articulista da coluna América Latina, hoy dominava os enunciados que
deveriam circular dentro do jogo político e social mexicano. Usava da sua qualificação
de líder de esquerda e a memória do ex-dirigente de um movimento camponês no
Brasil. Sua condição de exilado político era utilizada para promover uma diferenciação
entre Brasil e México, situá-los em oposição, útil na tarefa de construção de uma
legitimidade revolucionária e democrática para os governos do PRI na década de 1970.
Entre os últimos meses de 1969 e o final do ano de 1970, a embaixada do Brasil
no México exerceu novas interpelações a Secretaria de Relaciones Exteriores. O
objetivo era conseguir uma censura aos textos de Francisco Julião, que começavam a
circular em um novo espaço, a revista Siempre!. Houve reuniões e trocas de ofícios
sobre essa questão.
As petições referiam-se aos dois primeiros artigos divulgados no periódico.
Intitulados “Brasil vive a hora mais sombria de sua História e As lições de um
24 Essas informações estão presentes em alguns pequenos trechos das falas de Jean Robert, que entrevistei em Cuernavaca, agosto de 2010, e de Antólio Julião, filho de Francisco Julião, entrevistado em Recife, no dia 23 de maio de 2011. Nas duas vezes que estive no México, em agosto de 2010 e depois entre fevereiro e junho de 2012, quando realizei um doutorado sanduíche, tentei contato com a última esposa de Francisco Julião, Marta Rosas, que teria ficado com um acervo do marido composto por correspondências, fotos, escritos e outros. Nesse material devem estar mais informações sobre as ações de Julião, principalmente em Cuernavaca. Por meio de alguns padres que conhecem a Marta busquei marcar um encontro com ela. Não foi possível. Ela afirmava que não aceitaria conversar, sequer por telefone. Logo não tive acesso a documentos, caso existam, que ofereceriam elementos sobre essa amizade entre Francisco Julião e Sérgio Méndez Arceo.
10
seqüestro: Brasil como ponto chave”, os textos produziam duras críticas ao governo
brasileiro. O primeiro, de 9 de julho de 1969, ocupava quatro páginas inteiras e
construía uma história da ditadura militar iniciada em 1964, ressaltando a existência de
um processo de desnacionalização do país, promovido por uma política de entreguismo
aos Estados Unidos. Ademais, caracterizava o Exército como um partido armado que
havia tomado de assalto o poder e, por sua vez, as massas sacrificadas sentiam a
necessidade de buscar o caminho revolucionário para acabar com a ditadura25.
Dias depois dessa publicação, o então embaixador do Brasil, Frank Moscoso, se
reuniu com o Diretor da Primeira Subsecretaria da Secretaria de Relaciones Exteriores,
Alfonso de Rosenzweig Díaz, e lhe expressou todo o desagrado sentido ao ler aquele
artigo. Considerou ser uma clara incitação à violência, com o objetivo de derrotar pela
força o governo do Brasil. Mesmo reconhecendo a existência da liberdade de expressão
para os asilados políticos, alertou que caso Francisco Julião continuasse escrevendo
artigos dessa índole, atingir-se-ia a situação de propaganda sistemática26.
Frank Moscoso retornou ao Brasil dias depois dessa reunião. Em seu lugar foi
nomeado João Baptista Pinheiro. Entre a saída de um e a chegada do outro, o
embaixador Alfonso Rosenzweig Díaz recebeu, em 20 de agosto de 1969, o
Encarregado de Negócios da embaixada do Brasil, Gilberto Martins. Dessa vez, a
reunião tratou das declarações de Francisco Julião ao jornal Novedades, nas quais dizia
estar “conspirando eternamente” contra a ditadura militar brasileira. Mais uma vez foi
reafirmada a liberdade de expressão garantida aos asilados políticos e as afirmações de
Julião foram classificadas pelo embaixador mexicano como “simples fanfarronadas”27.
Talvez Alfonso Rosenzweig não simpatizasse com o asilado político ou arrumou uma
expressão de efeito para desmobilizar mais uma petição do Brasil em pouco mais de um
mês.
Quando João Baptista Pinheiro foi entregar, em agosto de 1969, suas cartas de
apresentação ao chanceler Antonio Carrillo Flôres, estava ciente desses problemas.
Deveria tentar uma maior aproximação diplomática e um maior controle sobre os
exilados. Em grande parte, o trabalho do novo embaixador foi bem sucedido. Afinal, ele
25
Revista Siempre! 09 de Julho de 1969. p. 32-33. Hemeroteca Nacional, UNAM, D.F., México. 26 Memoradum de conversación de 09 de julho de 1969. Pasta Asilo Político en la Embajada de México em Brasil - III 5714-11. Arquivo Histórico Genaro Estrada – Secretaria de Relaciones Exteriores - SRE. México, D.F. 27 Memoradum de conversación de 20 de agosto de 1969. Pasta Asilo Político en la Embajada de México em Brasil - III 5714-11. Op. Cit.
11
conseguiu administrar a questão dos presos políticos brasileiros, aceitos como asilados
no México, depois de libertados pelo governo militar em troca do final do sequestro do
diplomata norte-americano Charles Elbrick. Controlados pelos órgãos de vigilância e
segurança, eles ficaram impossibilitados de qualquer tipo de articulação política, como
desejava o governo do Brasil28.
Em relação a Francisco Julião, exilado desde 1965, o novo embaixador agiu em
outubro de 1969, em consequência da publicação do seu segundo artigo na revista
Siempre!. Referindo-se ao sequestro de Charles Elbrick como um “ato revolucionário”,
o articulista afirmou que os militares foram surpreendidos, especialmente porque depois
do AI-5 acreditaram ter o controle total do país. Sugere que esse episódio não deveria
ficar isolado e por isso os “patriotas” necessitavam ganhar apoio e organização para dar
continuidade à luta29.
João Baptista Pinheiro foi tratar do artigo com Alfonso Rosenzweig Díaz,
questionando-lhe acerca das medidas a serem adotadas, pois, no seu entendimento, se
tratava de propaganda subversiva encaminhada para derrotar o governo do Brasil. Após
escutar atentamente, o embaixador mexicano lamentou a situação envolvendo as duas
nações amigas e retomou o argumento da ampla liberdade de expressão existente no
México. Ao final, considerou que poderia ser o caso de os países envolvidos estarem
interpretando de maneira distinta a Convenção de Caracas.
No segundo semestre de 1969, seguiu uma troca de informações entre o governo
do Brasil e sua embaixada no México. Havia praticamente um consenso de que
Francisco Julião estaria promovendo atividades conspiratórias, fomentando a subversão
da ordem não só no Brasil, mas também na América Latina e assim realizando uma
flagrante violação do direito de asilo30.
Parecia não se entender a posição do governo do México, que, segundo a
embaixada do Brasil, havia cooperado no caso do recebimento e da vigilância aos
presos políticos, mas resistia em adotar qualquer atitude restritiva em relação a
Francisco Julião.
Mas, o próprio João Baptista Pinheiro, em telegrama “confidencial-urgente”
enviado ao Brasil, datado de 24 de outubro de 1969, no qual resumiu e analisou a última
conversa com Rosenzweig Díaz, ofereceu indícios para a resolução dessa questão. 28 Ofício Secreto nº 1.089 de 26 de dezembro de 1969. Op. Cit. 29 Revista Siempre! 22 de outubro de 1969. p. 26-27. Hemeroteca Nacional, UNAM, D.F., México. 30 Ver pasta de documentos confidenciais sobre Francisco Julião arquivados na Coordenação-Geral de Documentação Diplomática – CDO. Itamaraty. Ministério de Relações Exteriores
12
Ponderou que o México permitia “manifestações públicas de nítido cunho esquerdista
[…] como maneira de comprovar sua imparcialidade e não sufocar, inteiramente, a
pregação das correntes esquerdistas mexicanas, o que, se ocorresse, lhe causaria sérios
problemas e reduziria a sua área de ação para manter a estabilidade interna do país”31.
No decorrer dos anos 1970, os documentos com interpelações do governo do
Brasil deixaram de existir. Novas dinâmicas políticas, como a mobilização do discurso
de direitos humanos realizada por intelectuais e setores da imprensa dos Estados Unidos
contra as torturas praticadas pelo regime militar, talvez tenham contribuído para uma
mudança no foco de ação da diplomacia. No início do governo Geisel, o Brasil foi
condenado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos
Estados Americanos 32.
Entretanto, a análise de João Baptista Pinheiro apontava a existência de outro
fator. Francisco Julião havia se tornado uma peça da configuração política promotora da
estabilidade interna do México. Integrava essa maquinaria e, apesar de todas as
acusações e petições do Brasil, publicou mais de duas centenas de artigos até 1979,
vários deles críticos à ditadura militar. Pode-se dizer que a estratégia desenvolvida pela
diplomacia brasileira junto aos órgãos de segurança do México para transformar
Francisco Julião em um “inimigo comum” havia fracassado. Ele produziu e garantiu um
novo lugar de ação, pelo menos até o final dos anos 1970, operando com seu passado de
líder de esquerda e ex-dirigente das Ligas Camponesas.
O exílio, segundo Denise Rollemberg, foi uma ruptura com a conjuntura de
intensa mobilização política vivenciada pelas gerações 1964 e 1968, quando muitos dos
seus representantes estavam no centro dos acontecimentos. O desenraizamento deste
universo que oferecia sentido à luta e a derrota de projetos políticos e pessoais, ainda de
acordo com a historiadora, subverteram a imagem que os exilados tinham de si e
promoveram crises de identidade33.
No caso de Francisco Julião, um dos mais conhecidos da geração 1964, o exílio
também promoveu deslocamentos e ressignificações. Ele deixou de ser o deputado
31 Telegrama da Embaixada do Brasil no México. Confidencial n° 501.31 de 24 de outubro de 1969. Coordenação-Geral de Documentação Diplomática – CDO. Itamaraty. Ministério de Relações Exteriores. 32 O historiador James Green aponta em seu livro para a existência de uma oposição à ditadura militar praticada por intelectuais nos Estados Unidos, os chamados Brasilianistas, pouco conhecida no Brasil devido a censura e a postura nacionalista, anti-imperialista e marxista do meio acadêmico entre os anos 1950 e 1970. GREEN, James. Apesar de vocês. Oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Para a discussão sobre a condenação na CIDH, ver páginas 302 a 306. 33
ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 132.
13
socialista e advogado dos camponeses. Não existiam mais as Ligas e ele estava
impedido de exercer sua profissão, devido à condição de exilado. A luta pela reforma
agrária na lei ou na marra não poderia ser praticada no México. Mas, o uso das
memórias que estavam relacionadas a esse cenário passado de luta tornou-se possível.
Para Julião, além das redefinições e reconstruções, comuns a maioria da sua geração, o
exílio foi a escolha de uma identidade e a produção de uma continuidade, a do líder de
esquerda das Ligas Camponesas do Brasil.
Referências Bibliográficas
BLANCARTE, Roberto J. Religiosidad, creencias e Iglesia em la época de la transición
democrática. In: BIZBERG, Ilán & MEYER, Lorenzo (Org.). Uma história
contemporânea de México. Actores. Tomo 2. El Colégio de México. Ed. Oceno. 2005.
CASTELLANOS, Diana G. Hidalgo. Um olhar na vida de exílio de Francisco Julião.
Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
CASTILLO TRONCOSO, Alberto del. Ensayo sobre el movimiento estudiantil de
1968: la fotografía y la construcción de un imaginario. México: Instituto Mora: IISUE,
2012.
________________________________. Rodrigo Moya: una mirada documental.
Ediciones El Milagro: México, 2011.
GREEN, James. Apesar de vocês. Oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos,
1964-1985. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
JULIÃO, Francisco. Cambão. CIDOC CUADERNOS. nº 13. Cuernavaca. Fevereiro,
1970. Arquivado na Biblioteca Daniel Cosio Villegas, Colégio de México – COLMEX.
MUNGUÍA, Jacinto Rodríguez. La outra guerra secreta: los archivos prohibidos de la
prensa y el poder. Debolsillo: México, 2010.
14
PALACIOS, Guillermo. Intimidades, conflictos y reconciliaciones. México y Brasil,
1822-1993. Colección Latinoamericana. Secretaria de Relaciones Exteriores: México,
2001.
QUEZADA, Sergio Aguayo. 1968: los archivos de la violencia. México: Grijalbo,
1998.
________________________. La Charola: Una historia de los servicios de inteligencia
en México. México: Editorial Grijalbo, 2001.
ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999.
VIDELA, Gabriela. Sergio Méndez Arcel, um Señor Obispo. Juan Pablo Editor:
México, 2010.
VILLAR, Samuel I. del. El voto que cuajó tarde. In BIZBERG, Ilán; MEYER, Lorenzo
(Org.) Una historia contemporánea de México. Actores – Tomo 2. México. Editorial
Océano de México, 2005.