pacto autobiográfico

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS

    PROGRAMA DE ESTUDOS LINGUSTICOS, LITERRIOS

    E TRADUTOLGICOS EM FRANCS

    ANA AMELIA BARROS COELHO PACE

    Lendo e escrevendo sobre

    o pacto autobiogrfico de Philippe Lejeuneverso corrigida

    So Paulo

    2012

    1

  • ANA AMELIA BARROS COELHO PACE

    Lendo e escrevendo sobre

    o pacto autobiogrfico de Philippe Lejeuneverso corrigida

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Estudos Lingusticos, Literrios e

    Tradutolgicos em Francs do Departamento

    de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia,

    Letras e Cincias Humanas da Universidade de

    So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre

    em Lngua e Literatura Francesa

    Orientadora: Prof Dr Claudia Consuelo

    Amigo Pino

    So Paulo

    2012

    2

  • Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

    convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

    3

  • Nome: COELHO PACE, Ana Amelia Barros

    Ttulo: Lendo e escrevendo sobre o pacto autobiogrfico de Philippe Lejeune

    Dissertao apresentada ao Departamento de

    Letras Modernas da Universidade de So Paulo

    para obteno do ttulo de Mestre em Lngua e

    Literatura Francesa

    Aprovado em:

    Banca Examinadora:

    Prof Dr Jovita Maria Gernheim Noronha

    Instituio: Faculdade de Letras, Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da

    Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

    Julgamento: ____________________________________________________________

    Assinatura: _____________________________________________________________

    Prof. Dr. Marcos Antonio de Moraes

    Instituio: Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo (IEB-USP)

    Julgamento: ____________________________________________________________

    Assinatura: _____________________________________________________________

    Prof Dr Claudia Consuelo Amigo Pino (Orientadora)

    Instituio: Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So

    Paulo (FFLCH-USP)

    Julgamento: ____________________________________________________________

    Assinatura: _____________________________________________________________

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  • a Otlia,

    a Sonia e Rodolfo,

    a Gabriela e Renato,

    a Marco

    todo meu carinho

    e gratido

    5

  • AGRADECIMENTOS

    Em primeiro lugar, agradeo aos meus pais, Sonia e Rodolfo, a minha av dona Otlia,

    a Gabriela e Renato, irm e irmo parte imensa de todo este trabalho; pela presena, pelo

    respeito e pela compreenso.

    A Claudia Amigo Pino, pela orientao a esta pesquisa, por sua dedicao e

    envolvimento, pela constante fora e disposio em fazer junto.

    Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) pela

    concesso da bolsa, cujo indispensvel apoio financeiro permitiu a realizao desta pesquisa.

    A toda a equipe do Departamento de Letras Modernas (DLM), em particular ao

    trabalho de Edite Mendes Pi.

    s valiosas contribuies de Diva Damato, Jovita Noronha e Marcos Antonio de

    Moraes, pelas leituras interessadas do relatrio de qualificao, pelo contato e pelos dilogos.

    Ainda no percurso do mestrado, cabe agradecer a Cristiane Gottschalk, professora da

    FEUSP, pela breve, inesperada mas preciosa introduo filosofia de Wittgenstein, que

    contribuiu, como um discreto fio, tanto a pesquisa como a vida. Por razes semelhantes,

    minha gratido a Irne Fenoglio, pesquisadora do ITEM, cujos seminrios sobre a lingustica

    da enunciao em Benveniste deixaram igualmente traos neste trabalho.

    A todos os integrantes do grupo Criao e Crtica, pelo aprendizado de todos os

    momentos, pelos projetos levados em conjunto, pelas discusses acaloradas, pelas leituras

    compartilhadas. Especialmente a Samira Murad, Mnica Gama, Mario Tommaso, Manlio

    Speranzini e Carolina Messias, fica o reconhecimento pelo empenho e o rigor das observaes

    feitas desde as primeiras etapas deste trabalho.

    Ao prprio Philippe Lejeune, pela simpatia, discrio e disponibilidade em

    acompanhar minha pesquisa, em ajudar decisivamente quando necessrio.

    Aos caros amigos: a Ccero, porque aprendemos (sempre) a dividir tantos pontos,

    tantos relais dos nossos trajetos; a Srgio, pelas palavras certas no momento certo, pela

    hospitalidade, pelas viagens; a Maria Silvia, pelas nossas valiosas conversas e tantas histrias

    de vida; a Mara, pelas inmeras pequenas coisas de uma amizade; s belssimas: Lcia,

    Eliane, Dolores, Sevim e Renata, simplesmente por acreditarem! Patrcia Iglesias, obrigada

    pela ajuda no abstract. Monique Dorcy, por seu amor s bibliotecas, merci d'exister.

    A Marco, por fazer valer a pena cada passo.

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  • I still don't know what I was waiting for

    And my time was running wild

    A million dead-end streets

    Every time I thought I'd got it made

    It seemed the taste was not so sweet

    So I turned myself to face me

    But I've never caught a glimpse

    Of how the others must see the faker

    I'm much too fast to take that test

    []

    Strange fascination fascinating me

    Changes are taking the pace I'm going through

    []

    Pretty soon you're gonna get a little older

    Time may change me

    But I can't trace time

    David Bowie, Changes, 1971

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  • RESUMO

    COELHO PACE, Ana Amelia Barros. Lendo e escrevendo sobre o pacto autobiogrfico de

    Philippe Lejeune.

    Philippe Lejeune, ao examinar a produo autobiogrfica em lngua francesa,

    identificou um trao constante nas obras de sua leitura, ao qual ele deu o nome de pacto

    autobiogrfico. Em uma de suas formulaes, o pacto autobiogrfico seria a manifestao do

    engajamento pessoal do autobigrafo, por meio de uma construo textual (prefcio, nota

    introdutria, prembulo) ou paratextual (ttulo e subttulo, informaes de contracapa e

    orelhas do livro), que permite ao leitor admitir o texto como expresso da personalidade

    daquele que escreve, em seu valor de verdade. A construo terica se mostra insuficiente: de

    um texto a outro, Lejeune rev e rediscute o pacto, aplicando nuances, levantando as

    ambiguidades em que o gnero est envolvido. Nessas tentativas de se aproximar mais do

    gnero, ele se expressa de maneira autobiogrfica. Com isso, seu texto torna-se ele mesmo um

    objeto de estudo. Busco, em minha pesquisa, evidenciar o carter relacional do pacto

    autobiogrfico, na conjugao de atos de escrita e leitura. Parto de uma leitura de seus estudos

    sobre o gnero autobiogrfico, colocando-os em dilogo com sua prpria trajetria de

    pesquisador. Indo alm, interessa-nos observar as leituras que Lejeune empreende em torno

    das Confisses de Rousseau, em paralelo aos primeiros textos tericos. Em seguida,

    considerar os pactos lanados nos estudos em torno de dirios, realizados num momento

    posterior s teorizaes do pacto autobiogrfico. Importa colocar em evidncia as maneiras

    pelas quais o pacto se manifesta no prprio texto crtico de Lejeune. Nesse sentido, busco

    articular a dimenso autobiogrfica e a dimenso crtica de seus textos.

    Palavras-chave: autobiografia; crtica literria; literatura francesa; Philippe Lejeune;

    Jean-Jacques Rousseau; dirios.

    8

  • ABSTRACT

    COELHO PACE, Ana Amelia Barros. Reading and writing on Philippe Lejeune's

    autobiographical pact.

    Philippe Lejeune, examining the autobiographical production in French, identified a

    constant feature in the readings he did, to which he named autobiographical pact. In one of

    his formulations, the autobiographical pact would be the manifestation of the personal

    engagement of the autobiographer through a textual construction (prologue, introductory note,

    preamble) or para-textual (title and subtitle, information on the inside cover and book flaps),

    allowing the reader to admit the text as an expression of the personality of the writer, in its

    true value. The theoretical construction has proved insufficient: from one text to another

    Lejeune reviews and re-discusses the pact, applying nuances, raising the ambiguities in which

    the genre is involved. In those attempts to get closer to the genre, he expresses himself in an

    autobiographical manner. With that, his text becomes an object of study in itself. With my

    research, I intend to make evident the relational character of the autobiographical pact, in the

    conjugation of acts of reading and writing. I start with my readings of his studies about the

    autobiographical genre, putting them in dialogue with his own trajectory as a researcher.

    Besides that, we are also interested in observing the readings Lejeune undertake around the

    Confessions by Rousseau, in parallel to the first theoretical texts. After that, consider the pacts

    cast in the studies of the diaries, made after the theorizations of the autobiographical pact. It is

    important to make evident the ways in which the pact is expressed in Lejeune's critical text

    itself. In that sense, I expect to articulate both the autobiographical and the critical dimensions

    in his texts.

    Key-words: autobiography, literary criticism, French literature, Philippe Lejeune,

    Jean-Jacques Rousseau, diaries.

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  • RSUM

    COELHO PACE, Ana Amelia Barros. Lire et crire sur le pacte autobiographique de Philippe

    Lejeune.

    Philippe Lejeune identifie un trait commun dans les uvres autobiographiques en

    langue franaise, auquel il nomme le pacte autobiographique. Dans une de ses formulations,

    ce pacte serait la manifestation de l'engagement personnel de l'autobiographe, travers une

    construction textuelle (prface, avant-propos, prambule) ou paratextuelle (titre et sous-titre,

    informations sur la quatrime de couverture, etc.), qui permet au lecteur d'admettre un texte

    comme expression de la personnalit de celui qui crit, dans sa valeur de vrit. La

    construction thorique se montre insuffisante: d'un texte l'autre, Lejeune revoit et rediscute

    le pacte, dans l'enjeu de ses ambigits. Par consquent, son texte devient un objet d'tude.

    Dans cette recherche, j'ai le but de mettre en lumire la dimension relationnelle du pacte

    autobiographique, dans la conjonction des actes d'criture et de lecture. Je pars d'une lecture

    de ses tudes autour du genre autobiographique, pour les mettre en dialogue avec la trajectoire

    du chercheur elle-mme. Puis, j'observe les lectures que Lejeune fait des Confessions de

    Rousseau, en parallle aux tudes thoriques. Ensuite, je considre les pactes lancs dans les

    tudes autour des journaux personnels, dans un moment ultrieur la thorie du pacte

    autobiographique. Il est question de mettre en vidence les manires par lesquelles le pacte se

    manifeste dans le texte critique de Lejeune lui-mme. Dans ce sens, le but est de mettre en

    rapport la dimension autobiographique et la dimension critique de ses textes.

    Mots-cls: autobiographie; critique littraire; littrature franaise; Philippe Lejeune;

    Jean-Jacques Rousseau; journaux personnels.

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    | Das citaes e tradues

    Este trabalho pretende levantar um assunto cujo interesse ultrapassa o domnio

    francfono; por essa razo, as citaes encontram-se todas traduzidas para o portugus,

    mantendo, em nota de rodap, o texto original. Quando possvel, apresento tanto o trecho em

    sua traduo publicada para o portugus, como sua verso original, oferecendo ao leitor tanto

    o apoio da nossa lngua como a possibilidade de comparar a traduo.

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    | Sumrio

    | Apresentao ..................................................................................................... 15

    1 | Trajetrias duplas ............................................................................................. 19

    1.1 Quem Lejeune? .......................................................................................... 20

    1.1.1 Eu um outro. Eu tambm ............................................................. 21

    1.1.2 Eu somos mais de um ..................................................................... 24

    1.2 Quem sou eu? ............................................................................................... 26

    1.2.1 Olhando para trs .......................................................................... 26

    1.2.1.1 Introduo leitura de textos ......................................... 28

    1.2.2 Olhando para frente ....................................................................... 30

    1.2.2.1 Cher cran... ............................................................... 31

    1.2.2.2 Uma crtica da leitura e da escrita ................................. 35

    1.2.3 Olhando ao redor ........................................................................... 37

    1.2.4 O que voc estuda? ........................................................................ 41

    12

  • 2 | Lendo o pacto .................................................................................................... 44

    2.1 Como estudar a autobiografia? .................................................................... 45

    2.1.1 O que significa autobiografia? ....................................................... 45

    2.1.2 Autobiografia como gnero ........................................................... 48

    2.1.3 Estudar um gnero, segundo Todorov ......................................... 50

    2.2 Pactos autobiogrficos ................................................................................. 54

    2.2.1 O pacto no percurso de Lejeune .................................................... 54

    2.2.2 O pacto em L'autobiographie en France ....................................... 55

    2.2.2.1 Pacto como ato de nascimento do discurso .................... 59

    2.2.2.2 Um paralelo com a lingustica da

    enunciao de Benveniste ................................... 60

    2.2.2.3 Lugares-comuns de uma retrica da sinceridade ........... 61

    2.2.2.4 L'autobiographie en France, antes e depois ................... 64

    2.2.3 O pacto em Le pacte autobiographique ........................................ 68

    2.2.3.1 O pacto em L'autobiographie et l'histoire littraire ... 70

    2.2.4 O pacto em Le pacte autobiographique (bis) ................................ 73

    2.2.4.1 Em busca de Autopacte ................................................... 73

    2.2.4.2 Em busca de si mesmo .................................................... 74

    2.3 De um pacto a outro ..................................................................................... 79

    3 | Lejeune lendo Rousseau ................................................................................... 81

    3.1 Lendo as Confisses ..................................................................................... 82

    3.1.1 Trs leituras de Rousseau .............................................................. 82

    3.1.2 Jean-Jacques Rousseau ................................................................. 84

    3.1.3 As Confisses ................................................................................. 86

    3.1.3.1 As palmadas, o pente quebrado, a fita roubada ............. 87

    3.1.4 O pacto de Rousseau ..................................................................... 89

    3.1.5 Relativizando a leitura das Confisses ......................................... 91

    3.2 Conscincia e espelho .................................................................................. 93

    3.2.1. Nova crtica, crtica temtica, ou escola de Genebra? ................ 94

    3.2.2 Poulet e a conscincia crtica ........................................................ 96

    3.2.3 Movimentos da sensibilidade crtica de Mme de Stal ............. 97

    13

  • 3.2.4 A conscincia crtica como uma nova forma de ler e escrever ..... 100

    3.2.5 A seduo do jogo de espelhos ...................................................... 101

    3.2.6 Olhares sobre um mesmo objeto, pontos de encontro ................... 103

    3.3 Escrevendo sobre as Confisses ................................................................... 110

    3.3.1. Ler um novo objeto: a autobiografia ............................................ 110

    3.3.2. Posicionando essa leitura no tempo ............................................. 111

    3.3.3 Um modo (duplo) de ler as Confisses ......................................... 112

    3.3.3.1 O duplo eu da autobiografia ........................................... 113

    3.3.3.2 O duplo leitor da autobiografia ...................................... 115

    3.3.4 Um modo de escrever sobre as Confisses .................................... 121

    3.4 Retornando aos primeiros passos ................................................................. 125

    4 | Lendo outros pactos ......................................................................................... 128

    4.1 Queridos dirios ........................................................................................... 129

    4.1.1 Cher cahier..., cartas sobre dirios ............................................ 130

    4.1.1.1 Dos escritores ao leitor ................................................... 120

    4.1.1.2 O dirio, do ntimo ao pessoal ........................................ 131

    4.1.1.3 O chamado ao leitor ....................................................... 133

    4.1.1.4 Os trs sem ................................................................. 134

    4.1.1.5 Um dirio oblquo ................................................................. 135

    4.1.2 Le moi des demoiselles, um dirio sobre dirios .......................... 137

    4.1.2.1 A justaposio de extremos ............................................. 137

    4.1.2.2 A tenso entre os suportes ............................................... 138

    4.1.2.3 Eu falo delas, elas falam de mim .................................... 140

    4.2 APA e Autopacte: a associao e o site ........................................................ 142

    4.2.1 APA: nem editores, nem crticos, nem formadores .................... 142

    4.2.2 Autopacte, um canteiro aberto na Internet .................................... 147

    | Aberturas ........................................................................................................... 152

    O dossi se torna a verdadeira obra ................................................................ 165

    | Referncias ........................................................................................................ 168

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    | Apresentao

    Mas no poderia se produzir o mesmo que ocorre nos quadros de Escher que Douglas R. Hofstadter cita para ilustrar o paradoxo de Gdel? Numa galeria de quadros, um homem contempla a paisagem de uma cidade e essa paisagem se abre a ponto de incluir a galeria que a contm e o homem que a est observando.

    Visibilidade. CALVINO, 2007, p. 114.

    Com o ttulo Lendo e escrevendo sobre o pacto autobiogrfico de Philippe Lejeune,

    proponho maneiras de ler a obra desse crtico, pela tica do pacto. Trata-se de uma operao

    que se desdobra: o pacto uma criao de Lejeune e est vinculado sua prpria pessoa. Seu

    percurso pessoal se relaciona estreitamente com o prprio mecanismo do pacto assim,

    estudar o pacto demanda acompanhar seus movimentos de leitura e escrita.

    De maneira semelhante aos desenhos de Escher e especulao de Calvino, aquele

    que escreve reflete sobre sua escrita. Num jogo de espelhos, frente a esses textos, o leitor

    observa obliquamente seus prprios reflexos.

    15

  • O pacto, como conceito, foi elaborado ao estudar as autobiografias de lngua francesa;

    mas aqui ele se torna um instrumento de leitura desses estudos. Tento me apropriar das

    colocaes de Lejeune e aplic-la em seus prprios textos: ver de que maneiras pactos se

    manifestam em seus escritos como o crtico se coloca, o que ele espera de seu leitor.

    Como apresentar Lejeune? No primeiro captulo, retomo uma apresentao corrente:

    professor universitrio e crtico, ele teria partido de um estudo da autobiografia no domnio

    literrio, sob a forma de textos mais distanciados, em que um objeto analisado, caminhando

    em direo a uma abertura de perspectivas. A autobiografia passa a ser considerada como

    parte de variadas manifestaes do eu.

    Acompanhando essa mudana de abordagem, o pacto muda juntamente com o tipo de

    texto. Lejeune abandona o ns; usando o eu, o texto reala seu carter autorreferente. O

    estudo do pacto se converte em um relato do estudo. Nesse texto mais pessoal, a viso do

    percurso do estudioso se modifica suas motivaes autobiogrficas se revelam. Desenhando

    a dupla trajetria de Lejeune, o meu prprio percurso, que me levou a esta pesquisa, ganha

    seus contornos.

    Como ler o pacto? No segundo captulo, dedico-me a retraar as mudanas pelas quais

    passa o tratamento do conceito. Ele toma forma dentro de uma perspectiva que problematiza

    os empregos da palavra autobiografia e seu estatuto de gnero literrio. A instabilidade se

    refletir nos textos tericos sobre o pacto.

    Dessa forma, por mais que Lejeune busque revisar o mecanismo do pacto, isso no

    implica que ele ganhe preciso e estabilidade com o passar do tempo. De um texto a outro, o

    eixo da escrita se desloca: o pacto pea distintiva de um gnero, instrumento de anlise e

    pretexto para o estudioso escrever indiretamente sua autobiografia. Ler autobiografias e

    analis-las foi a maneira, oblqua, de encontrar um caminho para escrever a sua.

    Como ler uma autobiografia? No terceiro captulo, observo as relaes que Lejeune,

    leitor dos textos autobiogrficos de Rousseau, em particular das Confisses, constri em sua

    leitura. Minha leitura se d numa rede de associaes com outros textos crticos, notadamente

    os de Jean Starobinski, Michel Raymond e Georges Poulet, trs nomes representativos da

    crtica temtica.

    16

  • Com isso, busco dar fundamento leitura do pacto dentro dos textos em que Lejeune

    analisa as Confisses. Diferentemente do que pode fazer supor uma leitura dos textos

    tericos em torno do pacto autobiogrfico, em que ele seria uma declarao aberta de

    fidelidade irrestrita aos fatos narrados e de identificao entre autor e narrador, o pacto que

    observamos na leitura de Rousseau construdo numa justaposio constante de desejo de

    identificao e movimento de ruptura. A partir da leitura dessa autobiografia exemplar, o

    conceito de pacto autobiogrfico dos textos tericos ganha outros contornos. A oscilao

    entre contrrios seria o movimento em que a autobiografia se constitui, na escrita e na

    leitura.

    Como Lejeune continua a lanar-nos pactos? Tendo comeado a estudar a

    autobiografia como manifestao literria, ao longo do tempo, o estudioso observa que a

    expresso de si se d por meios diversos ele passa ento de um estudo detido no literrio

    para explorar campos conexos da autorrepresentao. A partir da, a escrita diarstica

    predomina como tema de suas pesquisas; tal mudana de tema leva tambm a abordagens

    diversas das anteriores, como as que do origem a livros como Cher cahier e Le moi des

    demoiselles. Esses dois estudos sobre dirios experimentam novas maneiras de tratamento do

    tema: a coleta de relatos sobre dirios e a composio de um dirio de pesquisa.

    Recentemente, Lejeune atua em duas frentes: a Associao pela Autobiografia (APA) e

    um projeto de livro sobre as origens dos dirios na Frana, periodicamente atualizado em seu

    site. Essas faces, sobrepostas, dariam linhas dominantes para desenhar um retrato seu, tal

    como pode ser visto no momento presente. Tanto em uma como na outra, pode-se perceber

    uma mesma inteno em arquivar e conservar escritos pessoais, que se encontram margem

    da produo editorial. Tanto frente aos annimos que esto escrevendo hoje como aqueles que

    o faziam dois ou trs sculos atrs, pretende-se tambm fugir s generalizaes, s anlises

    categricas pontos sobre os quais se apoiavam as crticas feitas aos seus primeiros trabalhos

    tericos sobre o gnero autobiogrfico, notadamente o conceito de pacto autobiogrfico, tido

    como insuficiente, constantemente reformulado. Em grupo ou de maneira isolada, ele

    prossegue levantando pactos de leitura e escrita.

    ***

    17

  • Mais uma vez, interessa relembramos dos desenhos de Escher, que lanam um puzzle,

    ou uma cilada, aos olhos de quem os observa. A imagem do puzzle pode ilustrar um estudo em

    literatura. Tendo em vista um enigma a ser solucionado, o pesquisador busca a constituio de

    uma paisagem. Mas justamente na variedade das solues possveis e mesmo de

    oposies, contradies e paradoxos que reside a riqueza e o desafio desse tipo de trabalho.

    Entre as diversas leituras de Lejeune, ao mesmo tempo distantes e prximas, no tempo

    como no espao, as experincias de leitura e escrita se sobrepem, se sucedem, se adicionam

    e se substituem. Como se fossem diticos como eu e tu que fundamentam todo e qualquer

    discurso e toda relao humana com o mundo leitor e leitura so peas de um jogo cujos

    papis e posies nunca so fixos.

    Valendo-me da ideia da mobilidade do leitor e da leitura, fao leituras das leituras de

    Lejeune. Coloco-me como leitora que aceita o seu pacto crtico: o texto que leio uma

    experincia de leitura (e em certa medida, uma experincia de vida), que transborda numa

    escrita. Nessa passagem para a escrita, a leitura se mostra heterclita e ao mesmo tempo

    incompleta: pede a participao de um leitor, que se encontra sempre no horizonte.

    O puzzle no termina, mesmo porque no h modelo qualquer de uma paisagem final a

    ser descoberta ele s tem significado no contnuo movimento de seus traos.

    ***

    Eis porque antes de mais nada peo ao leitor pacincia em me acompanhar por esse

    passeio cheio de desvios, contornos e retornos imprevistos, em que o caminho tomado pode

    diferir do mapa que se tem em mos. No trajeto, tanto o caminho que muda como o

    caminhar e o caminhante.

    18

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    1 | Trajetrias duplas

    O trabalho do escritor deve levar em conta tempos diferentes: o tempo de Mercrio e o tempo de Vulcano, uma mensagem de imediatismo obtida fora de pacientes e minuciosos ajustamentos; uma intuio instantnea que apenas formulada adquire o carter definitivo daquilo que no poderia ser de outra forma; mas igualmente o tempo que flui sem outro intento que o de deixar as ideias e sentimentos se sedimentarem, amadurecerem, libertarem-se de toda impacincia e de toda contingncia efmera.

    Rapidez. CALVINO, 2007, p. 66.

    Neste primeiro captulo, dois percursos se relacionam: o tema da pesquisa e a figura

    do pesquisador. Num primeiro momento, leio conjuntamente a trajetria de Lejeune e seus

    primeiros estudos em torno da autobiografia, de L'Autobiographie en France a Moi aussi. De

    uma publicao a outra, a perspectiva crtica sofre mudanas, ao mesmo tempo em que a

    figura do pesquisador passa do ns ao eu, da anlise objetiva a um relato pessoal. Insiro, num

    segundo momento, a minha prpria experincia. Levanto pontos de minha formao,

    buscando justificar a relevncia desta pesquisa tanto para o contexto acadmico que me

    rodeia, ajuntando-se s leituras literrias e crticas com as quais busco dialogar.

    19

  • 1.1 Quem Lejeune?

    Estudar o pacto autobiogrfico nos leva inevitavelmente a acompanhar a trajetria

    pessoal de Lejeune. De maneira semelhante ao que acontece com o conceito de pacto

    autobiogrfico, em constante reformulao, o pesquisador interessado pelo gnero

    autobiogrfico pode se deparar com diversas apresentaes suas, ao longo de suas leituras.

    Em alguns casos, ela sinttica e ao mesmo tempo solene: um dos mais importantes tericos

    da autobiografia1. Em outros, a formalidade se mantm, mas contrasta com a exposio de

    um percurso particular, que teria sofrido uma guinada:

    Philippe Lejeune tornou-se o especialista incontestvel da autobiografia e de todas as formas da escritura ntima. Nascido em 1938 numa famlia de universitrios, formado pela cole Normale Suprieure da rua d'Ulm, docteur d'tat2, membro do Instituto universitrio da Frana3, reconhecido e solicitado nos quatro cantos do mundo, ele poderia ter se contentado em gerenciar a celebridade fazendo da escritura ntima um domnio de pesquisa como outros. Preferiu deixar-se levar pela vertigem do discurso pessoal, tornando-se um militante atravs da Associao pela autobiografia e o patrimnio autobiogrfico (APA). Os desconhecidos que escrevem hoje o interessam provavelmente tanto quanto os testemunhos do passado, mas o tocam mais4.

    1 La position de Philippe Lejeune, par rapport l'autobiographie, dont il est l'un des plus importants thoriciens [] (VILAIN, 2009, p. 105).

    2 O ttulo de docteur d'tat, a que o texto se refere, faz parte de uma antiga classificao do sistema educacional francs, que vigorou at a dcada de 1980. Tratava-se de um grau superior ao de doutor (ou docteur de troisime cycle), concedido ao professor pesquisador que demonstrasse estar desenvolvendo uma pesquisa ao longo de vrios anos, original e de alto nvel. Pela sua particularidade, preferi manter o ttulo em sua forma original.

    3 Criado em 1991 pelo ministrio da Educao, o Instituto universitrio da Frana tem por misso valorizar o desenvolvimento da pesquisa de alto nvel nas universidades e reforar a interdisciplinaridade (L'Institut universitaire de France a pour mission de favoriser le dveloppement de la recherche de haut niveau dans les universits et de renforcer l'interdisciplinarit). Seus membros so eleitos por um jri, por um perodo de cinco anos, durante o qual recebem benefcios que estimulem o trabalho e a pesquisa em suas universidades. Cf. a pgina de apresentao da instituio: .

    4 Traduo minha, como todas as outras daqui em diante, quando no houver referncia. Philippe Lejeune est devenu le spcialiste incontest de l'autobiographie et de toutes les formes de l'criture intime. N en 1938 dans une famille d'universitaires, normalien de la rue d'Ulm, docteur d'tat, membre de l'Institut universitaire de France, reconnu et sollicit aux quatre coins du monde, il aurait pu se contenter de grer sa clbrit en faisant de l'criture intime un domaine de recherche comme un autre. Il a prfr se laisser happer par le vertige de la parole personnelle, en devenir un militant travers l'Association pour l'autobiographie (APA) et le patrimoine autobiographique. Les inconnus qui crivent aujourd'hui l'intressent sans doute autant mais le touchent plus que les grands tmoignages du pass (DELON, 2007, p. 6).

    20

  • Assim, estamos tratando ao mesmo tempo de um universitrio, que estuda a

    autobiografia, mas tambm sua formao e carreira no meio acadmico se complementam por

    um trabalho militante, associativo. Como nos faz entender, a manifestao autobiogrfica no

    apenas um domnio de especialidade, mas tornou-se, com o tempo, uma preocupao

    pessoal.

    Para que terrenos essa guinada teria levado Lejeune?

    Desde a publicao de L'autobiographie en France [A autobiografia na Frana]

    (1971), Lejeune trabalha em torno da expresso autobiogrfica em suas mais variadas formas.

    Alm de atuar como professor na Universidade Paris-Nord, em Villetaneuse (de 1970 a 2004),

    escreveu ensaios tericos e anlises tratando da autobiografia, com o objetivo de inclu-la no

    conjunto das manifestaes literrias e artsticas. Para tanto, centrou-se num conceito: o

    pacto autobiogrfico, elemento textual que permitiria ao leitor fazer a distino entre uma

    narrativa ficcional e um relato de vida.

    O ensaio O pacto autobiogrfico5, publicado no volume de mesmo nome em 19756,

    solidifica algumas questes deixadas em aberto em L'autobiographie en France. A definio

    de pacto, segundo Lejeune, no mais um critrio para a constituio de um corpus de

    autobiografias ela se torna um conceito e um objeto de anlise7 notadamente dos

    mecanismos de leitura e escrita envolvidos no texto autobiogrfico e a identidade, produzida

    pela coincidncia do nome prprio do autor, o narrador e o personagem do texto. J em Le

    pacte autobiographique (bis) [O pacto autobiogrfico (bis)], publicado no volume Moi

    aussi [Eu tambm] (1986), o estudioso retoma os mesmos problemas dos textos precedentes,

    recorrigindo-os, nuanando posies antes categricas demais.

    1.1.1 Eu um outro. Eu tambm

    Ao longo de seu trabalho, os limites do estudo da expresso autobiogrfica se

    deslocam: tanto a definio de autobiografia que ele propunha inicialmente, como as questes

    tericas que fundamentam a noo de pacto, receberam contestaes e foram reformuladas

    diversas vezes. Alm disso, as anlises passaram a ter como objeto no somente obras

    5 LEJEUNE, 2008, p. 13-47.

    6 LEJEUNE, 1975, p. 13-46.

    7 Dans Le Pacte autobiographique, la dfinition a chang de statut. Elle n'est plus un instrument de travail pour construire un corpus, elle est devenue un objet analyser (LEJEUNE, 2005a, p. 22).

    21

  • literrias, mas as diversas manifestaes da experincia pessoal: dirios, autorretratos, relatos

    radiofnicos, documentrios, entrevistas televisivas, blogs... De um livro a outro, os estudos

    se dirigem aos limites do literrio; Je est un autre [Eu um outro] (1980) e Moi aussi trazem a

    preocupao com a variedade de manifestaes do eu nos diferentes meios de comunicao, o

    arquivamento desse material, o trabalho coletivo envolvido na produo autobiogrfica, bem

    como textos em que ele relata a sua prpria experincia de professor universitrio, seu prprio

    trabalho em torno de textos autobiogrficos.

    Em repetidos movimentos de reviso dos prprios escritos, o seu texto crtico tornou-

    se objeto de sua prpria anlise visto que eles mesmos manifestavam uma dimenso

    autobiogrfica, uma constante tomada de conscincia dos passos tomados: ao longo dos

    anos, o prprio equilbrio de meu trabalho mudava, com a conscincia (a posteriori) que eu

    tomava dessas mudanas8. Temos, ento, uma mudana de foco, que se acompanha da

    conscincia dessa mudana.

    O que a princpio parecia ser um estudo formal sobre os mecanismos narrativos e as

    convenes da autobiografia passa a ser visto como parte de um percurso biogrfico. O tema

    central no so mais os aspectos do discurso autobiogrfico, mas as suas repetidas tentativas

    em compreender esse discurso ainda que esses aspectos continuem a ser explorados, mas

    sob um ponto de vista assumidamente pessoal e subjetivo.

    A conscincia da mudana se constitui como uma maneira particular de conduzir a

    leitura e a escrita. Por um lado, o pesquisador se guia a partir da leitura dos textos j

    escritos no somente os estudos publicados anteriormente, mas por vezes sua prpria

    escrita pessoal, dirios de adolescncia, dirios de pesquisa, rascunhos para apresentaes:

    Uma vez que estudo a autobiografia dos outros, por que no me apoiar em documentos

    que guardei de minha prpria evoluo? Pois conservei tudo. No, de fato, um dirio, mas

    minhas notas de leitura, minhas preparaes de aulas, com a data9 (LEJEUNE, 2008, p.

    77). Lidos de maneira distanciada, esses traos de sua formao contribuem para o seu

    prosseguimento.

    8 Au fil des annes, l'quilibre mme de mon travail changeait, avec la conscience ( retardement) que je prenais de ces changements (LEJEUNE, 2005a, p. 241).

    9 Moi qui tudie la gense des autobiographies des autres, pourquoi ne pas m'appuyer sur les documents que j'ai gards de ma propre volution? Car j'ai tout conserv. Pas vraiment un journal, mais mes notes de lecture, mes prparations de cours, toujours dates (LEJEUNE, 2005a, p. 20).

    22

  • Em paralelo, na esfera da escrita, a mudana se d pela incluso de sua prpria figura

    (que se multiplica em vrias: pesquisador, professor, leitor, praticante de dirios, crtico) no

    texto, abandonando o ns e adotando o eu. Fala-se da autobiografia, mas sob uma perspectiva

    pessoal.

    Deve-se ter em mente que esse eu, todavia, no se constitui como um bloco uniforme e

    slido, em torno do qual gira o discurso mas uma instncia em formao, que se modula de

    uma publicao a outra. Em Je est un autre, Lejeune demonstra entender o eu autobiogrfico

    como uma conjuno de discursos. Partindo da escolha do ttulo, que remete a Rimbaud e sua

    busca potica, passando pelo seu contedo: uma coletnea de estudos sobre as maneiras de

    contar uma vida sob gneros e suportes como as entrevistas, a biografia, a gravao de relatos,

    documentrios para o cinema. Seu objetivo desfazer a coerncia e a unidade aparentes dos

    'eu' autobiogrficos mais diversos. Desdobr-lo, decifr-lo, desarticul-lo. [] mostrar os

    bastidores da primeira pessoa qualquer que seja o teatro em que oferece seu espetculo10,

    em estudos que se colocam como variaes de um mesmo tema.

    Ainda assim, o eu crtico se faz presente e participa do texto, mas com um papel ainda

    secundrio: por meio de uma constante referncia escritura, coloco-me antes como

    observador, e testemunha, de uma era de transio11. Esse eu rene, explora e coloca em

    dilogo outros eus.

    Em Moi aussi, o eu ocupa outra posio. O volume apresentado como um livro de

    fragmentos, e [] nele, a teoria da autobiografia ser muitas vezes apresentada

    autobiograficamente. ao mesmo tempo work in progress e patchwork12. O texto se mostra

    ao seu leitor ao mesmo tempo autobiogrfico e fragmentrio, em processo, sem concluso e

    abre mo de uma slida linha condutora.

    Lejeune incorpora em seu texto formas do discurso pessoal de muitas autobiografias,

    em que o eu se apresenta como eixo do discurso, tomando at mesmo letras maisculas,

    como no seguinte trecho: EU contarei experincias, investigaes, por vezes colocarei em

    cena encontros; falarei um pouco de mim. Assim, esses fragmentos tero formas variadas,

    10 dfaire la cohrence et l'unit apparentes des 'je' autobiographiques les plus divers. De dplier, dchiffrer, dsarticuler. [] montrer les coulisses de la premire personne quel que soit le thtre sur lequel elle se donne en spectacle (LEJEUNE, 1980, p. 7).

    11 Par une constante rfrence l'criture, je me place plutt comme l'observateur, et le tmoin, d'une re de transition (LEJEUNE, 1980, p. 8).

    12 c'est un livre de fragments, et [] la thorie de l'autobiographie y sera souvent prsente autobiographiquement. Il tient la fois du work in progress et du patchwork (LEJEUNE, 1986, p. 9).

    23

  • tons diferentes. Quando for o caso, o discurso terico exprimir-se- por meio do pastiche, da

    entrevista ou da crnica13. O estudo ento se d por um trabalho conjunto, de anlise do

    texto autobiogrfico e de (re)produo de outros textos autobiogrficos. A escrita que resulta

    desse trabalho conjunto acompanha e coloca em dilogo os variados meios de expresso

    autobiogrfica.

    quando essa dupla dimenso do texto se fortalece, no perodo em que se destaca a

    publicao de Moi aussi, que se desenha esse momento de transio, ou deriva, como ele

    mesmo define, de suas atividades e interesses. Retornar aos textos j escritos, fazendo novas

    leituras sobre eles, manifesta uma posio crtica; segundo ele:

    era um gesto militante: acusavam-me de deriva, de sacrilgio, de no mais distinguir entre a literatura e o resto. Era necessrio que eu me explicasse, talvez primeiramente a mim mesmo. Que eu juntasse o exemplo ao preceito. E que, com isso, eu levasse cada um sua experincia14.

    Logo, tratava-se, ao mesmo tempo, de um procedimento de defesa de seu prprio

    trabalho, de resposta s crticas recebidas no somente de uma exposio de argumentos,

    mas da prpria descoberta, a partir desse ponto de vista particular, de suas motivaes no

    trabalho em torno da autobiografia. Percebendo o estudo como parte de sua experincia

    pessoal, ela encontraria prolongamentos nos seus leitores. Estamos frente a um movimento

    em grande parte semelhante ao esforo de introspeco e desejo de reciprocidade que

    funcionam num pacto autobiogrfico, de resposta e antecipao das leituras crticas, de

    problematizao constante.

    1.1.2 Eu somos mais de um

    Passando a escrever textos mais autorreflexivos, a prpria figura de Lejeune adquire

    outros contornos. Suas experincias pessoais se revelam, adicionando significados s leituras

    crticas. Esse desenho se constri tomando formas contrastantes, ressaltando a dupla via entre

    13 JE raconterai des expriences, des enqutes, je mettrai en scne parfois des rencontres; je parlerai un peu de moi. Aussi ces fragments auront-ils des formes varies, des tons diffrents. l'occasion, le discours thorique s'exprimera au moyen du pastiche, de l'interview ou de la chronique (LEJEUNE, 1986, p. 10).

    14 C'tait un geste militant: on m'accusait de drive, de sacrilge, de ne plus distinguer entre la littrature et le reste. Il fallait que je m'explique, d'abord peut-tre moi-mme. Que je joigne l'exemple au prcepte. Et que, du coup, je renvoie les autres leur exprience (LEJEUNE, 2005a, p. 240).

    24

  • o trabalho crtico e a escrita autobiogrfica: Quem sou? primeira vista, um professor

    universitrio especialista em autobiografia, autor de livros tericos e crticos. Mas a

    formulao inversa seria mais certa: sou um autobigrafo especialista em universidade15

    (LEJEUNE, 2008, p. 207). Duas imagens se fusionam: a escrita autobiogrfica e a crtica a

    seu respeito.

    Assim, o leitor se confronta com apresentaes diversas de Lejeune. O leitor, que antes

    acompanhava a trajetria de um pesquisador que parte de um estudo sobre a autobiografia

    para a escrita autobiogrfica, presencia uma reviravolta de outra natureza. O percurso do

    estudioso pode ser lido de mais de uma forma: possvel acompanhar na trajetria esboada

    at o momento, em paralelo, uma perspectiva inversa a escrita pessoal autobiogrfica,

    dentro de sua experincia, como motivao terica.

    Se nos coubesse reescrever sua trajetria, provavelmente seria feita nos seguintes

    termos: Lejeune mantinha um dirio desde os 15 anos, e v suas ambies literrias

    fracassadas ao ler Em busca do tempo perdido tudo o que ele queria escrever j havia sido

    escrito por Proust. V para si, um pouco a contragosto, a equipe subalterna da atividade

    literria16, a docncia. Ele tinha 30 anos em 1968, quando comea a estudar autobiografia.

    Mas no cabe aqui substituir uma verso por outra, nem mesmo eleger a mais prxima

    a uma suposta realidade. O interesse ler as diferentes camadas de sua construo crtica,

    admitindo-as simultaneamente, lendo-as em relao. Da mesma forma, o objetivo no fixar

    um tema preciso a esta pesquisa autobiografia, pacto autobiogrfico ou Philippe Lejeune?

    mas ler esses possveis temas de maneira conjunta.

    15 Qui suis-je? En apparence, un universitaire spcialis dans l'autobiographie, auteur de livres thoriques et critiques. Mais la formulation inverse serait plus juste: je suis un autobiographe spcialis dans l'universit (LEJEUNE, 2005a, p. 186).

    16 Jtais condamn entrer dans le personnel de service de la littrature, tre prof (LEJEUNE, 2005b).

    25

  • 1.2 Quem sou eu?

    Ao conduzir a pesquisa, admito que a autobiografia pode manifestar-se como um

    discurso crtico, a respeito de leituras e problematizando a prpria escrita. Essa crtica se

    relaciona com leituras j feitas, em um texto que pretende integrar-se a essas leituras, abrindo-

    se tambm a novas leituras. Tramando vnculos entre as leituras do passado e as do futuro, os

    textos de Lejeune ao mesmo tempo discutem e promovem esse tipo de crtica autobiogrfica.

    Uma pergunta advm desse conjuno de pontos de vista: se toda autobiografia

    movida por um pacto, em torno do qual se engajam aqueles que escrevem e aqueles que a

    leem, que pactos so dirigidos ao leitor num texto crtico sobre a autobiografia, como o de

    Lejeune? A resposta no passar de outro texto que se move em trajetrias de dupla mo,

    seguindo os passos j traados, buscando um leitor que aceite e renove o seu pacto. Tomando

    as suas palavras,

    [sou], como cada um de ns, um viajante nessas terras ainda mal exploradas que so as prticas autobiogrficas. Um viajante que olha o mapa e que diz para si mesmo que as fronteiras que ele v traadas talvez no estejam to corretas. De toda forma, preciso atravess-las para ver o que h do outro lado17.

    Do outro lado dos textos, muita coisa se encontra. Encontro-me, eu, frente aos seus

    textos, em que se revisa e questiona experincias passadas de leitura e de escrita, que

    permanecem no presente. Assim, no posso deixar de me incluir nessa leitura eu que

    tambm tenho experincias de leitura, em meio as quais figuram textos literrios e crticos que

    colocam em jogo a vivncia pessoal. Traando meu percurso pessoal, podem tornar-se mais

    evidentes as motivaes que conduzem esta pesquisa: como cheguei autobiografia e aos

    seus textos, como eles se tornaram tema que elegi para desenvolver no mestrado.

    1.2.1 Olhando para trs

    Queria escrever e achei que a hora tinha chegado. Peguei algumas fichas do meu pai,

    uma caneta esferogrfica azul na gaveta da cozinha. E comecei. Fui desenhando as letras que

    eu via ao meu redor: a marca da televiso, os rtulos das latas, caixas e garrafas, um aviso na 17 [je suis], comme chacun d'entre nous, un voyageur dans ces terres encore mal explores que sont les

    pratiques autobiographiques. Un voyageur qui regarde la carte et qui se dit que les frontires qu'il y voit traces ne sont peut-tre pas tout fait les bonnes. En tout cas, il faut les franchir pour voir ce qu'il y a dans l'autre ct (LEJEUNE, 2005, p. 229).

    26

  • rua, todas as placas que eu conseguia ver, na esquina de casa, perto do ponto de nibus. Ali

    em frente tinha uma grfica, mais adiante uma padaria, depois uma imobiliria Pedaos

    daqueles nomes eram passados para as fichas que carregava comigo.

    Enchi umas duas fichas de palavras, que esto guardadas at hoje. Enfileiradas, as

    palavras no formam frases, so antes listas de um vocabulrio visual de nomes, marcas,

    visveis o suficiente para terem me chamado a ateno para o mundo da leitura e da escrita,

    que estava por ser descoberto. Aquelas palavras, ainda incompreensveis, indicavam que

    existia algo que eu deveria aprender, dominar, repetir.

    Nesse jogo, a menina que fui estaria j escrevendo? De certo modo, sim: copiava os

    traos das letras, palavra a palavra, como num exerccio de desenho de observao. Entre um

    letreiro e outro, identificava as recorrncias, superava dificuldades com pacincia, apurava o

    senso de reconhecimento das letras e do que poderiam significar.

    Essa lembrana dos primeiros momentos do aprendizado da escrita pode se relacionar

    com esta pesquisa: como ento, percorro textos, examino seus traos e a partir deles escrevo.

    De qualquer modo, possvel vincular outras experincias de leitura e escrita, mais

    particulares, que podem esclarecer e posicionar o estudo em torno do pacto autobiogrfico.

    Para se traar um percurso, duas mos se oferecem ao caminhante: por uma, recolhe-

    se episdios que confluem no momento presente, levantam-se indcios que contribuem e

    reforam a voz que agora fala. Pela outra mo, o presente em que se recolhem esses indcios

    no passa do resultado de uma sucesso de fatos sem encadeamento. Nem uma nem outra

    direo so suficientes. Em vez de escolher somente uma delas ao contar uma histria, as duas

    contribuem: o acaso e a causalidade.

    De onde viria a ideia de estudar autobiografia e crtica literria?

    Por mais que esse esforo em responder pergunta parea infrutfero visto que

    rastrear um ponto de origem s nos leva a etapas que se sobrepem sem termo primeiro por

    outro lado, uma tentativa em demonstrar que no h uma essncia autobiogrfica ou um

    dom pela crtica, inerentes a determinadas pessoas, escondidos em tempos remotos, em

    recnditos de uma experincia individual. O interesse que motiva a pesquisa na universidade

    se alimentou do contato concreto com textos, na motivao escrita a partir desses textos, no

    dilogo constante com outras pessoas e com a circulao de leituras em afinidade enfim,

    dentro de um espao para que esta pesquisa acontecesse.

    27

  • 1.2.1.1 Introduo leitura de textos

    Uma mulher recupera um momento de sua adolescncia: colona francesa na sia, em

    meio situao precria em que se encontra com a famlia, ela descobria o amor com um

    jovem chins. Um garoto, em Paris no comeo do sculo 20, comea a ler precocemente e cria

    para si sonhos e esperanas, em que se misturam os feitos dos heris das aventuras dos livros

    e a figura de escritor que vislumbrava para si mesmo. O relato da descoberta de uma ilha

    perdida na Terra do Fogo, cujos habitantes dedicam-se ao esporte, feito inicialmente sob o

    tom da utopia, mas aos poucos torna-se uma reveladora imagem do passado.

    A primeira disciplina de literatura que cursei na habilitao em francs, Introduo

    leitura de textos em francs 1 ministrada pela Claudia, tratava de autobiografias. Fizemos a

    leitura de trs romances autobiogrficos: O amante, de Marguerite Duras (1914-1986), As

    palavras, de Jean-Paul Sartre (1905-1980), e W ou a memria da infncia, de Georges Perec

    (1936-1982), acompanhados, a cada aula, de textos crticos.

    Para introduzir a discusso em torno do texto O pacto autobiogrfico, de Lejeune, o

    crtico foi apresentado como algum que reformulava a todo instante seus estudos, por conta

    das mudanas de seu objeto: o gnero autobiogrfico passava por experimentaes formais;

    dos cadernos em papel, passou-se escrita no computador e publicao na Internet.

    Lejeune tambm era o crtico responsvel pelo trabalho com os manuscritos

    (abordagem a que damos o nome de crtica gentica18) de um longo projeto autobiogrfico

    de Perec, publicado em livro sob o ttulo La mmoire et l'oblique [A memria e o oblquo]

    (1991). Em sua execuo, percebemos que o que tinha sido previsto pelo projeto ganha outros

    contornos; a redao de algumas obras abandonada, e, em lugar dos livros de seu plano,

    alguns outros surgem. O escritor olha para seus escritos do passado, para seus projetos

    abandonados e com isso escreve uma obra mltipla. Pudemos observar, durante as leituras e

    18 A crtica gentica uma abordagem surgida em meio aos estudos literrios, na Frana, dentro do contexto da crise do estruturalismo, no final da dcada de 1960. Ela toma como material de observao os manuscritos preparatrios e outros documentos que no foram publicados pelo autor, mas que se configuram como etapas de um processo de criao. Sua relao com a corrente estruturalista ao mesmo tempo de ruptura e de continuidade, assim como tambm apresenta proximidades e diferenas em relao filologia. Nas palavras de Pino e Zular: [...] a crtica gentica, surgida no mago da crise do estruturalismo ver os manuscritos de maneira muito diferente da filologia. Enquanto esta os v como referncia para a leitura de um texto original, para a crtica gentica so portadores de um movimento, que pode ser considerado o processo de criao literria. Para compreender esse movimento, no basta descobrir e apresentar as variantes para o leitor em uma edio crtica, mas encontrar outra estruturao mvel, agora aplicvel criao. A nova disciplina ento trabalhar com um objeto que escapa s estruturas (os manuscritos como portadores de um movimento), a partir de um olhar estruturalista (j que prope elaborar uma estrutura desse movimento) (PINO; ZULAR, 2007, p. 17-18).

    28

  • as aulas, que W ou a memria da infncia sobrepe camadas do tempo origem familiar e

    Histria com H maisculo, infncia e orfandade, adolescncia e idade adulta, escrita ficcional

    e reflexo sobre essa escrita na busca de uma busca.

    Mesmo que a leitura de Perec tenha me impactado, com suas imagens fortes, as

    relaes entre escrita e vida que abre ao leitor, no foi essa a obra que elegi para fazer meu

    trabalho final. Centrei-me na narrativa de O amante, buscando imagens e impresses em

    torno da formao da escritora, e em imagens da morte que se desdobravam na

    caracterizao da famlia da narradora, no relato da iniciao sexual, no papel da fotografia

    como lembrana da passagem do tempo. Perguntando-me, no ttulo, o que Marguerite

    Duras?, buscava questionar quais os limites de sua identidade. Finalizo respondendo com

    outra pergunta o significado de sua vida seria ento o sentido de toda a sua obra? como

    se estivesse relacionando meu texto ao conceito de espao autobiogrfico19, de Lejeune, que

    s vim a conhecer anos depois, durante as primeiras leituras para a redao do projeto de

    mestrado.

    Percebendo mais a fundo, nenhum dos trs textos literrios abordados em aula podem

    ser consideradas autobiografias stricto sensu. O amante tem um estatuto fundamentalmente

    ambguo. a obra de maturidade de Duras, escritora, roteirista e cineasta de projeo que, j

    afastada dos tempos de juventude, revisita temas e paisagens tanto de sua experincia pessoal

    como das narrativas de sua autoria. A voz da narradora oscila entre a primeira e a terceira

    pessoa. No h pacto que ancore a leitura, seja no territrio do ficcional, como do

    autobiogrfico. W ou a memria da infncia, como j evocado, justape projetos de escrita de

    momentos diferentes da vida de Perec: uma narrativa de aventuras, redigida na adolescncia;

    a tentativa do adulto em recuperar restos de memria da infncia. Sartre em As palavras nos

    apresenta suas experincias e impresses de leitura e escrita na infncia mas o que poderia

    ser o relato autobiogrfico de construo dessa grande figura do pensamento francs, a

    formao exemplar de uma criana, o que acontece frente aos olhos do leitor antes a

    demolio das iluses que cercam a criao de uma identidade, e que ultrapassa qualquer

    pequena vontade pessoal.

    Em suma, esses textos, cujos autores so representativos do cnone da literatura

    francesa, eleitos para a leitura e anlise em sala de aula, fogem a tentativas de sistematizao

    19 Parte da teorizao do pacto autobiogrfico, o espao autobiogrfico seria construdo na relao entre textos ficcionais e autobiogrficos de um mesmo autor. Esse conjunto de escritos refletiriam, em graus diversos de inveno e busca pela verdade, a imagem mesmo que mltipla, fragmentria e lacunar que um escritor oferece de si mesmo aos seus leitores (cf. LEJEUNE, 2008, p. 41-44).

    29

  • definida, retrabalham as noes de identidade e colocam em discusso os mbitos ficcional e

    referencial. No reafirmam quaisquer verdades que constituiriam as figuras de seus autores,

    mas as colocam em jogo.

    1.2.2 Olhando para frente

    De toda forma, ao observar em retrospecto, construindo um fio ou melhor, tramando

    um emaranhado de fios que me conduza pesquisa que agora desenvolvo, percebo que me

    acompanhava um desejo de encontrar espaos em que a escrita fosse criativa e

    autorreflexiva, em que ela se desdobrasse e, apontando o dedo para si prpria, mostrasse

    suas falhas. No se trata, todavia, de uma percepo clara, ou que, do passado se voltasse

    certeiro ao futuro, autoconsciente de seus efeitos. Muito do que se mostra hoje na cadeia de

    eventos que me trazem minha pesquisa poderia ter passado despercebido, visto como

    acontecimento fortuito, acaso. O que, por um lado, parece uma deriva, desvio de percurso,

    pode, por outro lado, desenhar um caminho fortemente movido por preocupaes pessoais.

    Tanto previsvel quanto imprevisvel, seria a minha pesquisa, como comenta Lejeune em

    relao sua prpria:

    Uma pesquisa metade imprevisvel. Temos diferentes panelas no fogo. Pistas, tentativas. O horror refazer o que ns mesmos j fizemos. Ou de fazer o que outros dez fazem. Fugir da repetio, fugir da competio. Encontrar para si um pequeno lugar novo, onde ningum jamais foi. Fazer sua pequena cozinha bem tranquilo sozinho. Depois, abrimos a porta, deixamos os outros entrarem, e vamos embora. Claro que no vamos para qualquer lugar. preciso ter desejo. preciso ter parcialidade. Ser engajado, logo injusto. Ter qualquer coisa para provar, ou para defender. A honestidade do pesquisador no a neutralidade, a transparncia.Mostrar suas hipteses e trabalhar contra os seus preconceitos...Mas uma pesquisa tambm metade previsvel20.

    O trecho acima faz referncia aos momentos iniciais de uma pesquisa, em que se

    lanam projees e objetivos para o futuro, com base em experincias e saberes adquiridos no 20 Une recherche, cest moiti imprvisible. On a diffrentes casseroles sur le feu. Des pistes, des amorces.

    Lhorreur, cest de refaire ce quon a soi-mme dj fait. Ou de faire ce que dix autres font. Fuir la rptition, fuir la comptition. Se trouver un petit endroit nouveau, o personne nest jamais all. Faire sa petite cuisine bien tranquille tout seul. Aprs, on ouvrira la porte, on laissera les autres entrer, et on partira.Bien sr on ne va pas nimporte o. Il faut du dsir. Il faut de la partialit. tre engag, donc injuste. Avoir quelque chose prouver, ou dfendre. Lhonntet du chercheur, ce nest pas la neutralit, cest la transparence. Montrer ses hypothses et travailler contre ses prjugs...Mais une recherche, cest aussi moiti prvisible (LEJEUNE, 2000b).

    30

  • passado, na adoo de um mtodo. Indo um pouco alm, podemos considerar que a relao

    entre previsibilidade e imprevisibilidade se renova a cada passo da pesquisa.

    Durante dois anos interrompi a formao em Letras, perodo em que estudei

    biblioteconomia e aprofundei meus conhecimentos na lngua e na cultura francesas. Ao

    retornar para o curso, em 2006, meu entusiasmo era grande e, mesmo tendo ainda outros dois

    anos para concluir o bacharelado, j procurava um tema para pesquisar na ps-graduao.

    Resolvi, em paralelo s disciplinas, buscar temas, autores ou textos que me

    agradassem, mas que, alm disso, suscitassem discusses pertinentes dentro da universidade.

    Dentre o que me atraa, havia um interesse difuso, que no se voltava a um autor ou um dado

    conjunto de obras. Procurava a Claudia, com certa frequncia, e a cada vez que

    conversvamos sobre ideias de pesquisa eu levantava algo diferente. Foi quando, com muita

    simplicidade, ela me perguntou se talvez minha preocupao no fosse terica. No pude

    responder apropriadamente no mesmo instante, mas guardei a questo e continuei a procurar.

    Foi com essa questo em mente, entre as estantes da biblioteca onde trabalhava, os

    olhos passeando pelo acaso da organizao numrica e alfabtica do conhecimento que

    reunimos, que reencontrei Lejeune. O livro era Cher cran [Querida tela] (2000)

    que, por conta do tema, no se encontrava na estante de literatura ou crtica literria.

    1.2.2.1 Cher cran

    A sensao de deslocamento que o livro levanta j comea em seu ttulo: Querida

    tela21 seria uma tentativa, com um certo efeito cmico, de atualizao da frmula ritual que

    iniciaria, seguida da data, cada entrada de um dirio Cher cahier, ou Querido

    dirio...22. Ao leitor familiarizado com as obras de Lejeune, Cher cran tambm soa

    como uma continuao do estudo Cher cahier [Querido dirio] (1989), uma de suas

    primeiras investigaes em torno da escrita de dirios, a partir de testemunhos feitos por

    correspondncias.

    21 Sob o ttulo 'Querida tela...': dirio e computador, foi traduzido para o portugus o captulo inicial de Cher cran... (LEJEUNE, 2008, p. 316-339).

    22 A frmula em portugus, com a palavra dirio, em vez de caderno, como em francs cahier, apaga a fora do suporte na caracterizao da prtica de escrita de dirios, que Lejeune coloca em jogo no seu trabalho. Como sabemos, um dirio pode ser escrito em outros suportes que no o caderno: folhas soltas, fichas, agendas, etc.

    31

  • Estaramos vivendo um momento de deslocamento e instabilidade: da escrita pessoal

    em suporte papel, como o caderno, estaramos passando para uma fase em que a atividade de

    registro do cotidiano toma forma numa tela de computador, como indica o subttulo: dirio

    pessoal, computador, Internet23. Ficam fora do subttulo duas ferramentas que sero muito

    comentadas durante a leitura do livro: as mquinas de escrever, que precederam os programas

    editores de texto para computador. Tanto como instrumento de trabalho do que como meio de

    introspeco, interessa a Lejeune observar a presena dessas mquinas no cotidiano:

    Meu apartamento um verdadeiro cemitrio de mquinas de escrever. Aqui esto minhas duas Olivetti Lettera 32, comecei com elas nos anos de 1970. Eram como bicicletas chinesas, mecnicas, simples, portteis. Uso profissional: poder datilografar livros ou artigos sem me arruinar. Aconteceu-me de copiar alguns textos ntimos. [] Meus computadores com suas impressoras ocupam um cmodo inteiro: o ntimo e o trabalho compartilham do mesmo espao. Vejo aparecer na tela meus pensamentos secretos e conversas fiadas vindas do outro lado do mundo pela Internet. Felizmente existem eclusas. Nenhum vrus nem voyeurs nos recantos do meu corao... (LEJEUNE, 2008, p. 316-317)24.

    Por mais que o tom do incio do livro seja autobiogrfico, no se trata somente do

    relato das experincias de escrita de Lejeune, mas de diversas outras experincias pessoais, a

    partir das quais se pode observar os comportamentos de escrita cotidiana movido pela

    hiptese que nossa prpria experincia nos deixa cegos e as prticas dos outros, a princpio,

    enojados (LEJEUNE, 2008, p. 317). Publicado em 2000, o livro condensa duas pesquisas

    feitas nos dois anos anteriores: a leitura de depoimentos enviados a ele por carta e por e-mail,

    seguido da pesquisa e leitura de dirios pessoais na Internet.

    A primeira resultado de uma chamada lanada em revistas, em rdios e pela Internet,

    buscando pessoas que estejam escrevendo seus dirios no computador, mtodo j utilizado em

    Cher cahier25. Em resposta, recebe depoimentos de pessoas que, num dos primeiros

    momentos de popularizao dos computadores pessoais, comeavam a transferir seus escritos

    23 journal personnel, ordinateur, Internet.

    24 Mon appartement est un cimetire de machines crire. Voici mes deux Olivetti Lettera 32, j'ai dbut avec elles dans les annes 70. C'taient des bicyclettes la chinoise, mcaniques, simples, portables. Usage professionnel: taper moi-mme livres ou articles sans me ruiner. Il a d m'arriver de recopier quelques textes intimes. [] Mes ordinateurs avec leurs imprimantes occupent une pice entire: intime et boulot partagent le mme espace. Sur l'cran je vois apparatre mes penses secrtes, et des bavardages venus de l'autre bout du monde par Internet. Heureusement il y a des cluses. Ni virus ni voyeurs dans les replis de mon cur... (LEJEUNE, 2000a, p. 15-16).

    25 Cf. o captulo 4 desta dissertao.

    32

  • de cadernos e mquinas de escrever para o computador. Abria-se uma oportunidade de

    experimentao das novas tcnicas para editar (uma certa liberdade de formatao, escolha de

    tipografia e cores de letras, alm da incluso de recursos grficos), reescrever (ferramentas

    como copiar-colar, a facilidade de correo no-linear e imediata), arquivar (em verses

    impressas em papel, em disquetes e CDs) e difundir (enviando por correio eletrnico,

    publicando em blogs na Internet) textos pessoais. Com isso, esses novos hbitos podem

    tambm ser investigados pelos pesquisadores.

    Num efeito de desdobramento e reiterao, a segunda parte recebe um outro ttulo:

    Cher Web: le journal personnel en ligne sur Internet [Querida web: o dirio pessoal

    online na Internet]. O estudioso adota, como j havia feito em outra pesquisa, o formato do

    dirio26. Durante um ms, ele se lana a pesquisar o fenmeno da escrita pessoal na Internet,

    visitando pginas pessoais, sites de busca e catlogos (webrings27), correspondendo-se com os

    autores dos textos de seu corpus, no somente franceses mas tambm belgas e quebequenses.

    A seu dirio se segue uma coletnea de trechos dos dirios mais representativos, bem como

    um repertrio dos endereos de dirios disponveis na Internet naquele momento.

    Tanto a reproduo de trechos dos dirios como a listagem de endereos no deixa de

    suscitar certo estranhamento; lemos algo que foi escrito para uma pgina em html, em folhas

    de papel e tinta. Ao ler esses dirios sem suas cores de origem, supomos que deveria haver

    alguma imagem de fundo na pgina que no se vira como um livro, mas que se desenrola de

    cima a baixo.

    Como o intervalo de tempo de pesquisa se mostra curto, Lejeune acompanha ainda

    um ano depois os mesmos blogs, as reflexes dos autores em suas experincias de escrita e

    mesmo a repercusso de Cher cran, que estava sendo lanado. J fora do formato livro,

    essa ltima parte do dirio publicada em seu site, Autopacte (LEJEUNE, 2002)28. Esse

    apndice se encerra com a promessa de que o estudioso voltaria ainda um ano depois aos

    mesmos endereos na Internet, para registrar mudanas, supresses, progressos o que parece

    no ter sido cumprido.

    26 Trata-se de Le moi des demoiselles, pesquisa em torno de dirios de meninas e adolescentes do sculo 19 (LEJEUNE, 1993a), que o estudioso opta por apresentar no formato de seu prprio dirio, relatando a busca desses dirios em acervos particulares e bibliotecas, acompanhado de trechos mais significativos dos dirios encontrados. Trataremos mais detidamente desse estudo no captulo 4 desta dissertao.

    27 Webring um sistema circular de interligao de pginas na Internet, que possuem um tema ou envolvem interesses comuns. Cada pgina faz referncia s outras, por meio de uma mesma barra de navegao. Esse recurso, todavia, possui pouca expressividade em nossos dias.

    28 Na coletnea de textos para o portugus, temos a traduo dessa etapa da pesquisa: 'Querida tela...': um ano depois: os blogs (LEJEUNE, 2008, p. 340-368).

    33

  • E a pesquisa poderia continuar indefinidamente, visto o carter ainda recente dos

    meios de escrita na Internet e as atualizaes peridicas nas tecnologias da informtica e das

    telecomunicaes. Por isso, a investigao exposta em Cher cran fundamentalmente

    sem fim, incompleta pontilhada com lacunas que o leitor (o estudante como o prprio autor,

    j afastado de sua escrita), deve recolocar no presente, sempre renovado.

    Movido por dvidas e incertezas, o pesquisador se expe a certos equvocos por

    estudar algo que se encontra to prximo no tempo e ns podemos identificar equvocos

    mais claramente porque mantemos alguma distncia em relao aos fatos. A ttulo de

    exemplo, podemos nos deparar com a declarao de que um dirio registrado em disquete

    ser mais facilmente conservado e por mais tempo do que se estivesse em cadernos. Um dia,

    poder passar de um suporte a outro, atravs das futuras geraes de computadores. Assim,

    quase indestrutvel (LEJEUNE, 2008, p. 319)29. Hoje os disquetes, j suprfluos, no

    conseguiram solidificar em meio magntico os nossos textos de maneira mais perene que a

    tinta; desapareceram do nosso cotidiano. Eles se encontram muito mais distantes de ns do

    que os livros em papel.

    Como j vimos, frente a uma pesquisa, pesam o previsvel como o imprevisvel:

    depositamos confiana e criamos projees que s a passagem do tempo poder confirmar.

    Dentre os livros de sua produo, relendo hoje Cher cran, ele nos soa um livro datado,

    desarticulado, sem lugar, um caso-limite de investigao experimental. No entanto, isso no

    impede de consider-lo como um trao a ser levado em conta, a etapa de um percurso, que

    no deve ser eliminada do caminho porque parte dele, porque foi necessria para chegar

    onde estamos.

    Voltando quele momento, em que procurava um tema de pesquisa, esse livro me

    tocou especialmente porque tratava de experincias pelas quais eu passava. J fazia alguns

    anos, com um computador em casa, tinha comeado a testar as suas possibilidades: as

    possibilidades de formatao dos editores de texto, mais variadas e maleveis do que as da

    mquina de escrever; as ferramentas que a Internet oferecia, a criao de pginas pessoais

    gratuitas, com um mnimo de conhecimento em linguagem html e particularmente por tratar

    de um recurso de escrita e leitura que naquele momento estava dando seus primeiros passos.

    Eram tambm meus primeiros passos num territrio vasto e ainda desconhecido, que

    Cher cran ajudou a apontar.

    29 [...] il est conserv plus facilement et plus longtemps que s'il tait sur des cahiers d'colier. l'avenir il va pouvoir sauter d'un support un autre travers les gnrations futures d'ordinateurs. Ainsi, il est quasiment indestructible (LEJEUNE, 2000a, p. 19).

    34

  • 1.2.2.2 Uma crtica da leitura e da escrita

    A relao que as pessoas travam com seus meios de escrita, tal como se discute em

    Cher cran (papel e tinta, mquina de escrever, computador, impresso, publicao,

    difuso na Internet), no me pareceu logo de cara um tema possvel para pesquisar dentro da

    ps-graduao em Letras. De toda forma, sabia que ao menos esse tipo de escrita

    autorreflexiva era algo que eu mesma buscava. Autorreflexiva? Reflexiva, talvez,

    primeiramente: olhando para outra escrita, gostaria de encontrar comigo mesma.

    Numa perspectiva mais ampla do que a pessoal, reencontrar Lejeune por acaso numa

    estante me fez lembrar a importncia da disciplina de introduo, da escrita autobiogrfica e

    da necessidade de aprofundar as relaes pessoais e coletivas em que nos envolvemos quando

    lemos e escrevemos. Estaria a uma via em que se manifesta a conscincia da palavra que

    Barthes levanta em Crtica e verdade, leitura que eu fazia naquela poca:

    Ora eis que, por um movimento complementar, o crtico se torna, por sua vez, escritor. claro que querer ser escritor no uma pretenso de estatuto, mas uma inteno de ser. Que nos importa se mais glorioso ser romancista, ensasta ou cronista? O escritor no pode se definir em termos de papel ou valor, mas somente por uma certa conscincia da palavra. escritor aquele para quem a linguagem faz problema, que prova a sua profundeza, no instrumentalidade ou beleza. Os livros crticos nasceram ento, oferecendo-se leitura seguindo as mesmas vias que a obra propriamente literria, mesmo que seus autores sejam, por estatuto, somente crticos, e no escritores30.

    Foi com Cher cran em mos que fui conversar com Claudia, decidida por algo:

    no estudar um escritor, mas um crtico literrio. A partir do exame de sua escrita, de suas

    obras e ideias, perceber na crtica questes comuns criao literria manifestar tanto na

    leitura como na escrita desejos que se retroalimentam. Era o desejo de ler para escrever, de

    escrever por ter lido, como Barthes coloca mais frente, no mesmo Crtica e verdade:

    30 Or voici que, par un mouvement complmentaire, le critique devient son tour crivain. Bien entendu, se vouloir crivain n'est pas une prtention de statut, mais une intention d'tre. Que nous importe s'il est plus glorieux d'tre romancier, essayiste ou chroniqueur ? L'crivain ne peut se dfinir en termes de rle ou de valeur, mais seulement par une certaine conscience de parole. Est crivain celui pour qui le langage fait problme, qui en prouve la profondeur, non l'instrumentalit ou la beaut. Des livres critiques sont donc ns, s'offrant la lecture selon les mmes voies que l'uvre proprement littraire, bien que leurs auteurs ne soient, par statut, que des critiques, et non des crivains (BARTHES, 1966, p. 46).

    35

  • Assim gira a palavra em torno do livro: ler, escrever: de um desejo a outro vai toda a literatura. Quantos escritores no escreveram somente por terem lido? Quantos crticos leram somente para escrever? Eles aproximaram as duas bordas do livro, as duas faces do signo, para que saia dali somente um discurso. A crtica no passa de um momento dessa histria na qual ns entramos e que nos conduz unidade verdade da escritura31.

    Relembrando as aulas sobre Lejeune e as reformulaes do pacto autobiogrfico,

    assim como os ajustes de sua escrita, para tratar das novas formas de manifestao

    autobiogrfica, identifiquei-o conscincia da palavra de que fala Barthes. Ele me pareceu

    um desses escritores que so crticos, de crticos que so escritores, como para mim so

    Stendhal, Zola, Genette, Queneau, Calvino, Starobinski ou Cortzar, e como tantos outros, ao

    colocarem sempre em questo a palavra e para quem o prprio discurso, aquilo que ele

    mesmo escreve, est tomado por problemas a serem resolvidos adiante, e continuamente.

    Assim como o texto crtico se oferece leitura, ele pode ser objeto de apreciao e provocar a

    escrita de outros textos crticos. E esse crtico poderia tambm pedir ao seu leitor, ainda

    evocando Barthes, que a sua escrita seja lida como a voz de um personagem de romance32

    ou melhor, por vrias33.

    31 Ainsi tourne la parole autour du livre: lire, crire: d'un dsir l'autre va toute la littrature. Combien d'crivains n'ont crit que pour avoir lu ? Combien de critiques n'ont lu que pour crire ? Ils ont rapproch les deux bords du livre, les deux faces du signe, pour que n'en sorte qu'une parole. La critique n'est qu'un moment de cette histoire dans laquelle nous entrons et qui nous conduit l'unit la vrit de l'criture (BARTHES, 1966, p. 79).

    32 A frase completa : Tudo isto deve ser considerado como dito por uma personagem de romance; no original em francs:Tout ceci doit tre considr comme dit par un personnage de roman) (BARTHES, 2003b, p. 11). Em tom de recomendao ou mesmo de advertncia ao leitor , eis a frase, escrita mo, que abre Roland Barthes por Roland Barthes, obra em que o crtico se volta para seus prprios escritos, e os comenta, em fragmentos, oscilando entre uma voz em primeira pessoa e em terceira pessoa, que segue e ao mesmo tempo rompe com a ordem alfabtica dos ttulos dados aos fragmentos.

    33 Tudo isto deve ser considerado por uma personagem de romance ou melhor, de vrias (BARTHES, 2003b, p. 136). Ao longo da leitura de Roland Barthes por Roland Barthes, o leitor se depara com a retomada da frase do incio do livro. No entanto, dessa vez, a ela se acrescenta um adendo, com a abertura do travesso. Barthes fala do eu, mas tomando distncia: estamos diante do livro de minhas resistncias a minhas prprias ideias(BARTHES, 2003b, p. 136). Esse movimento pretende alcanar a lucidez. Logo, em complemento quela curta advertncia, que se encontra nas primeiras pginas do livro, podemos considerar o seguinte trecho: Este livro no um livro de confisses; no porque ele seja insincero, mas porque temos hoje um saber diferente do de ontem; esse saber pode ser assim resumido: o que escrevo de mim nunca a ltima palavra: quanto mais sou sincero, mais sou interpretvel, sob o olhar de instncias diferentes das dos antigos autores, que acreditavam submeter-se a uma nica lei: a autenticidade. [] este aqui no nada mais do que um texto a mais, o ltimo da srie, no o ltimo do sentido: texto sobre texto, nada jamais esclarecido (BARTHES, 2003b, p. 137).

    36

  • 1.2.3 Olhando ao redor

    Estudar o gnero autobiogrfico tendo como objeto central o trabalho crtico tem sua

    importncia no cenrio acadmico atual uma dupla pertinncia: o tema da pesquisa,

    autobiografia, e o vis adotado, o estudo da crtica literria.

    A respeito da crtica literria, como coloca Starobinski, ela pode ser considerada como

    uma atividade que deve sua existncia a uma atividade de linguagem precedente34 a

    construo de um discurso, comentrio, julgamento, anlise ou interpretao particular a

    respeito de outros discursos, igualmente particulares. Trata-se, assim, de uma relao crtica:

    essa escrita sobre uma outra escrita no pode ser nem absolutamente concordante, nem

    posicionar-se unicamente refratria ao seu objeto. Entre um polo e outro, mantendo-se num

    delicado equilbrio, Starobinski ressalta que a crtica se mantm movente. Em sua perspectiva,

    o que sobressai a noo de trajeto: o crtico, atento tanto ao seu objeto quanto ao seu prprio

    texto, deve promover uma variao de abordagens, buscando desdobrar diversos pontos de

    vista, para dar conta daquilo que o liga ao texto de sua leitura. A imagem do trajeto, aplicada

    leitura de uma obra, funciona tambm dentro do prprio texto crtico que se escreve. Em suas

    palavras,

    o trajeto crtico se desenrola, se possvel, entre tudo aceitar (pela ressonncia receptiva) e tudo situar (na independncia afetiva). Numa relao persistente e cambiante, desejo que se faa crtica com todas as suas faculdades, como se escritor com todo o seu ser. Minha responsabilidade de intrprete se fundar sobre minha relao livremente variada face aparente fixidez da obra35.

    No que tange a esta pesquisa, a noo de trajeto funciona como um recurso

    fundamental do empreendimento autobiogrfico, no qual se reflete sobre as prprias escolhas,

    em dupla via: o fluxo da narrao dos eventos passados e o comentrio presente do que se

    narra fusionam-se no fio de um texto, que deve apresentar-se uno.

    34 activit de langage qui doit son existence une prcdente activit langagire (STAROBINSKI, 2001, p. 50).

    35 Le trajet critique se droule, si possible, entre tout accepter (par la rsonance rceptive) et tout situer (dans l'indpendance affective). Dans une relation persistante et changeante, je souhaite que l'on critique avec toutes ses facults, comme l'on est crivain avec tout son tre. Ma responsabilit d'interprte se fondera sur ma relation librement varie face l'apparente fixit de luvre (STAROBINSKI, 2001, p. 51-52).

    37

  • Propor-se a estudar um texto crtico seria ento deslocar essa relao; no estamos

    entre o crtico e uma obra literria, mas entre discursos crticos. A crtica no funciona como

    instrumento para abordar a criao literria, mas a prpria crtica literria um meio de

    criao, se nos prestarmos a observar o lugar do sujeito na crtica literria.

    Pensar na dimenso criadora da crtica literria desencadeia, alm de uma investigao

    em torno do desejo da escrita, uma tomada de conscincia do prprio papel do estudante e do

    pesquisador em literatura, visto que nos leva a refletir sobre as nossas motivaes enquanto

    parte da produo literria (somos leitores antes de mais nada) e faz nos questionar enquanto

    agentes de mudana e no apenas observadores e comentadores.

    Abordar a contribuio da obra crtica de Lejeune nos estudos literrios uma maneira

    de considerar que fazer crtica colocar-se ativamente na produo de textos e sentidos, na

    criao em literatura. E que o sujeito na criao se transforma ao longo do tempo o fazer

    crtico e o fazer literrio forjam-se mutuamente.

    Seria ento possvel observar na escrita de Lejeune preocupaes que tambm seriam

    minhas, e das pessoas ao meu lado enquanto leitores e produtores de texto, pesquisadores,

    estudantes e professores de literatura. Percorrendo seus escritos, as marcas de seu trajeto,

    acompanhando suas dificuldades e acertos, aprender como fazer crtica de maneira

    semelhante ao acompanhar um heri de romances, como Sorel, Rastignac ou Zazie36, em sua

    formao, em seus passeios por caminhos cheios de bifurcaes, desvios e derivas.

    Logo, em resposta pergunta que a Claudia tinha feito sobre a preocupao terica,

    poderia ento esboar um sim. Tomava como tema as reformulaes do pacto

    autobiogrfico, uma das principais frentes de trabalho de Lejeune.

    Estvamos no comeo de 2007. Durante aproximadamente um ano percorri as quatro

    primeiras publicaes de Lejeune em livro de que dispunha L'autobiographie en France, Le

    pacte autobiographique, Je est un autre, Moi aussi bem como a mais recente, Signes de vie,

    Le pacte autobiographique 2, alm de seus textos publicados na Internet e seu site Autopacte.

    Em todos eles, o pacto tomava lugar central das discusses tericas, como das anlises

    era o fio mais slido sobre o qual poderia me apoiar. Seus textos so reformulados seguindo

    as mudanas de seu objeto. A manifestao autobiogrfica se multiplica nos dias de hoje, em

    diversos meios dentre os quais, os dirios em disquete de Cher cran, que hoje j no

    36 Sorel, Rastignac e Zazie so os personagens centrais de O vermelho e o negro de Stendhal, O pai Goriot de Balzac e Zazie no metr de Raymond Queneau, respectivamente.

    38

  • so mais levados em conta Tentando acompanhar essa variedade, dando conta com mais

    acuidade de seu objeto, Lejeune aproxima-se mais de si mesmo, e sua escrita assume o tom

    pessoal. Seu prprio texto promove um pacto com o leitor, em que ele mesmo se engaja e

    convida quem l que o acompanhasse em seu percurso.

    No contexto universitrio, os estudos que tomam a crtica literria como objeto so, de

    toda forma, ainda escassos; prevalecem as pesquisas de autores e obras de fico em prosa,

    romance, narrativas curtas, crnica, poesia a crtica a figurando como interlocuo do

    pesquisador, apoio ou contraponto para sua exposio; juntamente com textos tericos, um

    instrumento para a anlise.

    No que dizia respeito obra de Lejeune, tomou-me tempo encontrar pesquisas que se

    aprofundassem em suas propostas. O conceito de pacto autobiogrfico, assim como a

    definio para a autobiografia37, eram empregados de maneira a validar a classificao de um

    texto. Ou, ao contrrio, em funo do que se quisesse expor, sua as ideias eram refutadas,

    tidas como insuficientes e limitadas, caso no houvesse correspondncia conceitual entre a

    definio e a obra em estudo.

    Esses estudos no levavam em conta as reformulaes que o prprio Lejeune fez em

    relao ao conceito de pacto e definio para a autobiografia. Mesmo tomando isoladamente

    o texto a que mais se faz referncia, O pacto autobiogrfico, as nuances e contradies que

    ele apresenta no eram tidas em considerao. Tomava-se como estvel e objetivo algo

    fundamentalmente contraditrio e em constante mobilidade.

    Uma maneira de perceber o texto de Lejeune, pouco usual na escrita acadmica, que

    ele levanta ambiguidades, se no as mesmas, pelo menos semelhantes quelas dos textos

    autobiogrficos. No lugar de dar espao ambiguidade, reprova-se parcialidades, tautologias

    e contradies, prefere-se a postura normativa, ou se coloca sucesses de fatos sob uma

    mecnica da ruptura. Mesmo propondo anlises crticas, por vezes os seus textos se

    apresentam como fbulas38, ecoando a maneira como Descartes apresenta o Discurso do

    mtodo:

    37 A definio a que me refiro a que se encontra em destaque nos primeiros momentos do texto O pacto autobiogrfico, publicado em 1975: narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua prpria existncia, quando focaliza sua histria individual, em particular a histria de sua personalidade (LEJEUNE, 2008, p. 14); no original: rcit rtrospectif en prose qu'une personne relle fait de sa propre existence, lorsqu'elle met l'accent sur sa vie individuelle, en particulier sur l'histoire de sa personnalit (LEJEUNE, 1975, p. 14).

    38 Um desses estudos, que Lejeune encerra com uma fbula terica, Le livre I des 'Confessions' [O livro I das 'Confisses' (LEJEUNE, 1975, p. 154).

    39

  • meu propsito no ensinar aqui o mtodo que cada um deve seguir para bem conduzir sua razo, mas somente mostrar de que modo procurei conduzir a minha. Aqueles que se metem a dar preceitos devem achar-se mais hbeis do que aqueles a quem os do; e, se falham na menor coisa, so por isso censurveis. Mas, propondo este escrito apenas como uma histria, ou, se preferirdes, apenas como uma fbula, na qual, dentre alguns exemplos que podem ser imitados, talvez tambm se encontrem vrios outros que se ter razo em no seguir, espero que ele seja til a alguns sem ser nocivo a ningum, e que todos apreciem minha franqueza (DESCARTES, 2007, p. 9-10)39.

    Do comeo de minha pesquisa at o presente, esse cenrio vem mudando, tanto quanto

    a percepo que tenho dele. Ao lado dos livros de Lejeune, posso contar com outros trabalhos

    que se lanaram nesse vasto territrio sem muitos contornos definidos, com uma

    nomenclatura flutuante: narrativas de vida, guinada subjetiva, espao biogrfico,

    escritas do eu40... Essas tentativas em nomear um conjunto de manifestaes que afetam a

    vida prtica, os fazeres artsticos e o domnio pessoal, em vez de se exclurem, procuram um

    lugar para si, como peas num tabuleiro, ou ruas que se abrem num novo bairro da cidade:

    (E com quantas casas ou ruas, uma cidade comea a ser cidade?) Nossa linguagem pode ser considerada como uma velha cidade: uma rede de ruelas e praas, casas novas e velhas, e casas construdas em diferentes pocas; e isto tudo cercado por uma quantidade de novos subrbios com ruas retas e regulares e com casas uniformes (WITTGENSTEIN, 1975, p. 19).

    Estaramos pisando num dos subrbios da linguagem que escapam disposio

    dos planos, em que se organizam os diferentes espaos em funo do lugar disponvel, das

    necessidades e do acaso. No possvel garantir certezas que no sejam temporrias e se

    substituam umas s outras.

    Assumindo, ainda, as proximidades entre a criao literria e a crtica, podemos

    ento retomar a colocao de Grard Genette, de que a literatura talvez seja vrias coisas

    ao mesmo tempo, ligadas (por exemplo) pelo elo um tanto frouxo que Wittgenstein

    39 Ainsi mon dessein n'est pas d'enseigner ici la mthode que chacun doit suivre pour bien conduire sa raison, mais seulement de faire voi