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  • Sabemos que nos encontros entre culturas as diferenas de hbitos e cos-tumes no s mostram-se mais evidentes, mas tambm pem em andamen-to, numa trajetria no-linear, um processo de interao entre elas. Como h-bitos alimentares nada mais so do que uma expresso da cultura, nosencontros de cozinhas tnicas os sabores e odores, ao mexer com as sensibili-dades, provocam em um primeiro momento um estranhamento, porm logopassam a conquistar os paladares.

    Mas sabores e odores, alm de constiturem manifestao de formas cul-turais, consubstanciam estmulos sensoriais que agem como fatores de evo-cao da memria, estimulando a imaginao e desencadeando sentimentosprofundos que se materializam em importantes elos entre o passado e o pre-sente. A capacidade de perceb-los e valoriz-los depende de padres cultu-rais, podendo assim se converter em sinalizadores da manuteno, constru-

    Padres alimentares em mudana: a cozinha italiana no interior paulista

    Flvia Arlanch Martins de OliveiraUNESP/Marlia

    RESUMO

    Este artigo analisa como, com a chega-

    da do imigrante italiano ao interior de

    So Paulo quando da grande imigrao

    que se deu a partir de meados da dca-

    da de 1880, teve incio uma troca de h-

    bitos alimentares, tanto em meio a esses

    imigrantes como na sociedade hospe-

    deira. Para tanto, restringimos nosso es-

    tudo cidade de Ja, uma vez que esse

    municpio, no perodo em questo, re-

    cebeu um representativo fluxo de imi-

    grantes italianos.

    Palavras-chave: Alimentao; Imigrante

    italiano; Interior de So Paulo.

    ABSTRACT

    This article analyses how, with the arrival

    of the Italian Immigrant in the interior

    of So Paulo State, by the time of the

    great immigration that took place from

    the mid 1880 decade on, it started an

    exchange of eating habits, of these immi-

    grants as well as of the host society.

    Therefore, we limited our study within

    Ja city, since this municipal district, at

    that time, had received a representative

    flow of Italian immigrants.

    Keywords: Alimentation; Italian immi-

    grant; So Paulo countryside.

    Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 26, n 51, p. 47-62 - 2006

  • o e reconstruo de identidades. dentro dessa perspectiva que pretende-mos desenvolver uma abordagem a respeito da insero da cozinha italiana,tomando como exemplo principal as cidades de Ja, Descalvado, So Carlosdo Pinhal e Brotas, todas localizadas na rea central do estado de So Paulo.Como a maior parte das informaes refere-se cidade de Ja, e ali a presen-a de sulistas procedentes principalmente da Calbria e da Campnia e denortistas do Vneto foi preponderante se comparada com a das outras re-gies, privilegiaremos as cozinhas desses imigrantes.

    O impacto da chegada em massa dos imigrantes a essa regio, a partir demeados da dcada de 1880, comeou a desencadear um intenso processo de in-terao entre as cozinhas brasileira e italiana, resultando na criao de um no-vo padro alimentar. Contudo, quando se pretende tratar a questo da ali-mentao de um determinado grupo tnico, muitos cuidados devem sertomados, especialmente quando se tem em mente aquilo a que freqentemen-te se d o nome de tradio e costume alimentar, ou cozinha tradicional. Nes-se sentido, vale a advertncia do historiador Peppino Ottoleva que estudouos costumes alimentares da Itlia desde o final do sculo XVIII at as ltimasdcadas do sculo XIX. Esse autor chama a ateno para o fato de haver umatendncia em atribuir caractersticas de tradio e antigidade imemorvela todos os costumes alimentares que acompanham a nossa experincia desde ainfncia.1

    Na cozinha italiana, muitos pratos que no final do sculo XIX e incio doXX comearam a serem divulgados como pertencentes a uma tradicional gas-tronomia peninsular, na verdade nada mais eram que criaes recentes. apartir das ltimas dcadas do sculo XIX, especialmente na poca da chama-da grande imigrao desencadeada a partir de 1885, que tem incio um pro-cesso de modificao dos costumes alimentares na Itlia. Pratos em cuja com-posio entrava uma diversidade se novos ingredientes comearam a aparecer,mas eram ento saboreados estritamente pela elite peninsular. A massa da po-pulao, composta na sua maioria por camponeses que sobreviviam com par-cos recursos, dispunha de um padro alimentar muito pobre.

    Sobre a mesa de um campons setentrional a carne aparecia no mais que

    uma vez por ms, e entre aqueles que viviam nas regies meridionais, sua ocor-

    rncia no se dava mais do que uma vez ao ano. Por seu menor custo e por sa-

    ciar mais, camponeses do norte se alimentavam exclusivamente de milho, en-

    quanto os do sul restringiam sua alimentao praticamente no po negro de

    cevada, cozido duas ou trs vezes por ano.2

    Flvia Arlanch Martins de Oliveira

    Revista Brasileira de Histria, vol. 26, n 5148

  • Portanto, quando os imigrantes comearam a deixar a Itlia em meadosda dcada de 1870, praticamente no tinham conhecimento do que logo de-pois passou a ser denominado cozinha regional italiana. Segundo PeppinoOttoleva, foi justamente a emigrao que provocou efeitos revolucionriosnos hbitos alimentares italianos, na medida em que colocou em crise a rigi-dez da demarcao entre regimes culinrios das diversas classes sociais.3 Porexemplo, sabe-se que o tomate, ingrediente bsico de muitos pratos italianos,comeou a ser divulgado na pennsula somente no final do sculo XVIII, e aprtica de preparar o macarro associado ao molho de tomate surgiu por vol-ta de 1830. Essa grande modificao no padro alimentar na Itlia teve incioem Npoles, quando essa cidade passou por um vertiginoso crescimento e aproduo de verduras e legumes nos seus arredores mostrou-se insuficientepara atender nova demanda. A farinha de trigo, por ser um produto no-perecvel em curto prazo, podendo assim ser estocada, passou a ser o ingre-diente principal da cozinha napolitana. Isso na verdade constituiu-se numarevoluo alimentar, que aos poucos foi se expandindo por toda a Itlia, pri-meiro nos arredores de Npoles, depois de forma muito lenta nas regies me-ridionais, s conquistando o restante da pennsula mais tardiamente. Assim,as diversas cozinhas regionais italianas hoje conhecidas s comearam a seconfigurar enquanto tais no curso do sculo XIX, com a gerao que prece-deu aquela que veio a ter uma experincia emigratria. Entre elas podemoscitar o macarro e a pizza (Npoles), o risoto (Milo), a polenta e a minestra(Vneto).

    Para poder encaminhar nosso estudo, preciso ter em mente no s aforma como esses modelos alimentares de imigrantes procedentes de diferen-tes regies italianas4 foram sendo introduzidos na rea central do estado deSo Paulo, mas ainda levar em considerao os ajustes obrigatoriamente fei-tos em face da restrita oferta de gneros alimentcios costumeiramente utili-zados e do contato com outros desconhecidos, porm mais acessveis.

    Pouco se conhece a respeito do padro alimentar dos imigrantes italia-nos estabelecidos em So Paulo no perodo inicial da imigrao, sobretudodaqueles que foram se fixar nas fazendas de caf, pois a historiografia que tra-ta esse assunto muito escassa. Lucio Avagliano, historiador italiano que fezum balano das variedades alimentares consumidas pelos imigrantes nas co-lnias de caf no estado de So Paulo entre o final do sculo XIX e o incio doXX, apontou os tipos de alimentos por eles utilizados, todavia sem levar emconta o processo de adaptao e as modificaes do padro alimentar nesseperodo. O autor afirma que os colonos italianos consumiam principalmente

    Padres alimentares em mudana: a cozinha italiana no interior paulista

    49Junho de 2006

  • derivados de milho. As famlias provenientes da Itlia setentrional e centralutilizavam o milho na forma de fub para fazer polenta, e os da Itlia meri-dional, para misturar fub farinha de trigo e confeccionar broas. Tambmtinham disponveis o feijo, o arroz, a batata e muitas verduras frescas. Usa-vam em pequena quantidade a carne de porco e o toucinho, e menos ainda acarne bovina. Ovos e frango igualmente faziam parte da alimentao dos co-lonos das fazendas de caf.5 Zuleika Alvim, tambm investigando o cotidianodos imigrantes no campo, informa que se nas dietas dos italianos do Nortepredominava a polenta, no Sul contava-se basicamente com o po de farinhasde cevada ou centeio acompanhado de verduras e cebolas cruas.6

    Ao chegar ao interior paulista, a grande maioria dos imigrantes italianosdeparou com uma oferta restrita dos alimentos costumeiramente encontra-dos nas suas terras de origem, como a farinha de trigo, a cevada e o centeio.Mesmo assim foi possvel, para os imigrantes que foram trabalhar sob o regi-me do colonato, manter alguns dos hbitos alimentares trazidos da Itlia. Umavez que podiam cultivar especialmente o milho e o feijo entre as leiras de ca-f e criar soltos, nos espaos da colnia, sobretudo porcos e galinhas, conse-guiram manter alguns hbitos trazidos da Itlia, como o consumo no s depolenta, mas tambm de lingia e outros embutidos. O fub, base da dietacamponesa principalmente no norte e centro da Itlia, mesmo para aque-les que permaneceram nas cidades , era encontrado com maior facilidade,por ser muito utilizado em algumas regies do Brasil para fazer o angu. O ex-pressivo consumo de fub, por parte dos imigrantes, para fazer a polenta nopassou despercebido pela sociedade hospedeira, que logo comeou a ver essealimento como um indicativo de identidade dos italianos, mas configurandouma identificao negativa. Italiano polenteiro era uma expresso costu-meiramente utilizada por representantes da sociedade receptora para estig-matizar esse imigrante.

    Entretanto, no mbito dos costumes alimentares dos italianos, um delesenunciava de forma muito positiva sua identidade: o vinho. Seu consumo pe-la sociedade peninsular vinha de um tempo muito distante, com uma hist-ria