Padres e Soldados No Folclore Cearense

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ALBERTO S. GALEHO

PADRES E SOLDADOSNOFOLCLORE CEARENSE

Fortaleza - Ceará1992

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Obras de Alberto S. Galeno

Sob o Signo do Macaco

ContosTerritório dos Coronéis

HistóriaA Praça e o Povo

HistóriaPadres e Soldados no Folclore Cearense

(Não houve patrocinadores.Todos publicados às expensas do autor)

CATALOGAÇÃO NA FONTE: Bibliotecária Ana Cristina AzevedoUrsulino

G153p Galeno, Alberto S.Padres e soldados no folclore cearense.

- Fortaleza: Multigraf Editora, 1992.54p.

1. Folclore - Ceará I. Título

C.D.U.398(813.1)

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No tempo em que os padres rezavar=em latim, de costas para o povo.

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No tempo em que os padres rezavar=em latim, de costas para o povo.

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Padres e Soldados ...

Aqui, o que vamos encontrar são histórias contadas pelo povo,muitas vezes de maneira fantasiosa, mas, que nem por isso perdem oseu fundo de verdade. Os personagens por nós enfocados todos elestiveram - ou ainda têm - vida real. O doutor Floro, o delegado Mece-nas de Alencar, o soldado Favela, os bispos dom Manuel, dom Lustosae o bispo Conde de Sobral, os delegados de polícia e os vigários dasparóquias interioranas, todos eles existiram de fato, ocupando o seulugar no tempo e no espaço. Maneira diferente de contar os aconteci-mentos? Fantasias? Ora, de fantasias anda cheia a história do Brasil.Pelo menos a história que é ensinada aos meninos nas escolas. Que-rem exemplos? Dom Pedra fez a independência do Brasil, a princesaIsabel libertou os escravos ... Folclore, puro folclore! As histórias sãosempre assim. Cheias de fantasias.

5A.S.G.

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o PADRE VERDEIXA E SUAS DIABRURAS

o padre Verdeixa - Alexandre Cerberon· Verdeixa - foi um sa-cerdote endiabrado que viveu no Ceará na era de 1800. Alto, gordo ede andar cambaleante, puseram-lhe no Aracati o apelido de CanoaDoida Não se conhecem casos do padre. Vsrdeixa com as mulheres.Mesmo porque a sua cachaça era outra Era a pt:lítica! Verdeixa viviamais para a política do que para a religião. Essa sua paixão lhe trouxemuitas inimizades, das quais ele soube se defender com extrema ha-bilidade. O padre diziam ser adivinhão. Certa vez os inimigos planeja-ram matá-lo. Armaram-lhe uma emboscada mandando que um vaquei-ro fosse buscá-Io. Seria a confissão de um moribundo, disse o porta-dor. Meia légua antes de chegar ao local onde o aguardavam os as-sassinos, Verdeixa teve um pressentimento. E, ato contínuo propôs aoacompanhante: vamos trocar de vestirnentas? Eu vou trajado de va-queiro e você de padre. Aceita a proposta pouco depois tombava vara-do de balas o vaqueiro que se fingira de-sacerdote. Enquanto Verdei-xa. são e salvo voltava para casa. De outra feita foi com o chefe dePolícia da Província que o mandara prender. Antes de entrar em For-taleza Verdeixa propôs aos soldados da escolta que o amarrassem decordas. Queria entrar na cidade tal e qual Jesus Cristo havia entrado

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em Jerusalém. Uma vez atendido, o fato provocou grande estupefaçãoentre o povo. Como era que se fazia tamanha judiação com um sacer-dote? Os jornais abriram campanha contra o chefe de Polícia. E o pre-sidente da Província não encontrou outro jeito senão demití-Io. Isso,exatamente, o que pretendera com a sua artimanha o endiabradoVerdeixa.

UMA DE 40 POR DUAS DE 20

Dom Joaquim .José'Vieira, o segundo bispo do Ceará, não podiaconcordar com o modus vivendi do Clero que ele havia encontrado. Depadres que se conduziam de maneira nada recomendável, amanceba-dos, vivendo abertamente na companhia das mulheres e dos filhos.Onde, pois, o mandamento da castidade que eles haviam prometidoguardar? Quanto a mancebia ... Não era condenada pela Igreja? O quedizer, então, nas falas de fim de semana aos paroquianos? A não serque preferisem adotar a moral dos fariseus: façam o que eu digo masnão façam o que eu faço! Os vigários escutavam cabisbaixos os ser-mões do bispo. E, quando falavam era para se defenderem alegandoque a carne era fraca. Carne fraca? Pois sim! O fato é que dessas fra-quezas haviam nascido muitos cabeças chatas ilustres. Contudo, domJoaquim não se achava disposto a permitir a continuidade desse esta-do de coisas. Atacou o mal pela raiz começando por uma pesquisa navida privada dos vigários. De quem se achavam eles cercados? E nãofoi difícil constatar que a fonte do mal se achava nas prestadoras deserviços domésticos. Sim, nas cozinheiras, copeiras, arrumadeiras, la-vadeiras, todas mulheres jovens, na faixa etária dos vinte aos vinte epoucos anos, muito fogosas e ricas em atrações naturais. Quem Ihesresistiria à tentação? Foi quando dom Joaquim decidiu como soluçãomudar a faixa etária das serviçais dos vigários. Nenhuma delas deveriacontar com menos de quarenta anos, uma boa idade, certamente, ida-de na qual o fogo começava a baixar nas mulheres. Estava decidido epronto! Nenhuma caseira de padre com menos de quarenta anos! Paramaiores considerações foram convocados os párocos para uma con-versa com o bispo no Palácio Episcopal, quando seriam examinadosum a um os casos de mancebia. Os padres se achegavam cautelosos.Penetravam corredor a dentro indo ter com dom Joaquim. em sua ca-8

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A MULHER DO BISPO

marinha. Momentos de suspense. Depois saiam cabisbaixos, as cabe-ças pendentes sob o peso de suas culpas. Já o mesmo não aconteciacom o cura de Sobral. O vigário chegara pisando duro, altaneiro, e de-pois de cumprimentar sorridente a dom Joaquim José Vieira: - Comoé que é, não dá para Vossa Excelência Reverendíssima trocar-me umade 40 por duas de 20?

Nomeado bispo de Fortaleza o baiano dom Manuel da Silva Go-mes morria de saudades pela terra de Todos os Santos. E ficava aviajar com muita freqüência à cidade do Salvador, deixando abando-nada a sua diocese. As viagens eram penosas, uma vez que realiza-das nos desconfortáveis "ítas" do Loide Brasileiro. Só muito amor - di-ziam as más línguas - poderia explicar o desassossêgo do bispo deFortaleza. Dom Manuel - afirmavam outros - é dos tais que pregam ofaçam o que eu digo mas não façam o que eu faço. Pois, exigindo cas-tidade dos vigários era, no entanto, o primeiro a não guardá-Ia. En-quanto o jornalista João Brígido reclamava nas colunas do Unitário: -Por que tanto mistério? Por que esse bispo não traz logo a mulher pa-ra cá? Traga-a dom Manuel! Traga-a que nós queremos conhecê-Ia.Contudo, não se sabe de quem houvesse conhecido a mulher de domManuel da Silva Gomes. Se é que a dona de fato existiu era muitobem guardada.

OS APELIDOS DE ARACATI:O BOLO ENFEITADO E O ENVELOPE AÉREO

Em Aracati tornaram-se comuns, muito comuns, os apelidos. To-dos os possuíam, inclusive padres e soldados. A começar pelo juiz deDireito, a mais alta autoridade da Comarca. Ora, o doutor Enock No-gueira era macrocéfalo. Daí o apelido que lhe botaram: Cabeça de

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Com arca. Na gíria forense Cabeça de Comarca significava a cidadesede da circunscrição judiciária. Os apelidos tinham de ser assim.Amoldáveis. Do contrário não pegavam. Havia na cidade uma mulherque se tornara famosa neste mister. Era a Castorina, proprietária deuma casa de pastos, depois nomeada funcionária pública. Castorina es-pecializara-se na aplicação dos apelidos. Os padres batizavam as cria-turas. Castorina crismava-as com os nomes por ela inventados. Seusapelidos, tomando por base os cacoetes ou os defeitos físicos das pes-soas, valiam como verdadeiras caricaturas. Fizera escola, tornando-setemível graças a esse poder diabólico que lhe era inerente: o de apeli-dar - Ninguém vai ao Aracati sem trazer um apelido - era o que di-ziam. Ora, durante a 2ª Guerra estivera na cidade a fazer conferênciassob o tema da Segurança Nacional uma alta patente do Exército Bra-sileiro. O conferencista era de cor escura, muito culto e muito fluente.Logo lhe puseram a alcunha de Noite Ilustrada, nome de uma revistade circulação nacional. Mas, se não temiam o poder dos militares, osapelidantes também não temiam o dos clérigos, por mais altas quefossem as suas designações. Dom Manuel da Silva Gomes, arcebispodo Ceará, estivera em Aracati desobrigando-se de suas tarefas epis-copais. Nosso antiste era rotundo, corado e cheio de condecorações.Bolo Enfeitado, foi o apelido que lhe coube. Já o substituto de domManuel no Palácio São Joaquim, Dom Antônio de Almeida Lustosa, eraexatamente o contrário: alto, pálido e magro. Não tardou que o apeli-dassem de Envelope Aéreo. Gente sem medo e de muito espírito essados apelidos. Não temer nem padres e nem soldados? Não tenhamosdúvida: é preciso ser peituda, muito peituda mesmo.

SACRILÉGIO EM PACATUBA

Pacatuba, noutros tempos terra da banana seca, tem sido palcode muita encenação grotesca. Ali, nem mesmo as práticas religiosasficavam a salvo dos espíritos zombeteiros, havendo para tudo umapiada, uma galhofa, uma paródia. Esse costume vinha de longe, ain-da do tempo em que os beradeiros saudavam-se não com um bomdia, uma boa tarde ou uma boa noite, mas invocando o nome de JesusCristo. Era um dizendo bendito seja Nosso Senhor Jesus Cristo, ao

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que o outro respondia: louvado seja! Até que os gaiatos insurgiram-secontra essa forma de saudação medievalesca com a seguinte paródia,cantada ao som das ladainhas:

• Bendito era meninoLouvado era rapaz!Bendito corria adianteLouvado corria atrás!1

Contudo, não ficaria só no Bendito e Louvado. Porque, passadosmuitos anos, quando a Virgem de Fátima estivera de passagem no lu-gar, tomaram-lhe a procissão para um auto no qual figuravam duasapostadoras do jogo do bicho. Era, na época, costume dos cambistascolocar em frente das bodegas um quadro negro com a numeração dobicho sorteado na véspera Esse, o motivo tomado para a encenaçãogrosseira e extemporânea. Ao descobrir o quadro pendurado na bode-ga a apostadora do jogo do bicho e devota da Santa pede cantando àparceira que lhe ia na frente:

Você que é mais altaMais alta que eu;Repare na pedra o bicho que deu!

Ao que a outra, depois de olhar, responde:

Ave, ave, avestruz!Ave, ave, avestruz!

Tudo respondido na música do benditoaGanta.

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AS TERRAS DE SÃO RAIMUNDO

São Raimundo Nonato, padroeiro de Várzea Alegre, era um santorico, dono de muitas terras de plantar e criar. Tudo por obra e graçados latifundiários da região, que pretendendo atral-lo para a sua cate-goria fizeram-no proprietário de terras. Os sítios e as fazendas perten-ciam ao padroeiro, cabendo ao vigário administrá-Ias. O sistema deexploração adotado foi o dos arrendamentos. Desta forma São Rai-mundo Nonato a exemplo de todo o latifundiário passou a receber,através de seu preposto, a meia e a terça dos arrendatários. A fama doSanto como proprietário de terras e dono de riquezas espalhara-se,terminando por chegar aos ouvidos do bispo do Crato. E dom Ouintinoque andava carente de recursos para os seus empreendimentos nãovacilou em valer-se dos bens do padroeiro de Várzea Alecre. Colocou-os em leilão. O ato do bispo despertou o protesto dos devotos do San-to. Dom Ouintino não podia fazer aquilo, uma vez que os bens de SãoRaimundo pertenciam a paróquia de Várzea Alegre e não a diocese doCrato. Ao que teria respondido o bispo: - Os bens de São Raimundopertencem a Deus. O vigário de Várzea Alegre é o procurador do San-to. Eu sou o procurador de Deus.

ASEXCOMUNHÓESDEDOMJOS~

O carnaval de 1927 em Sobral prenunciava-se como um dos maisanimados da Princesa do Norte. Não eram poucos os bailes progra-mados para o triduo momino. a se -ealízarem entre chuvas de confe-tes, serpentinas e cloretil. As moças do soçaite sobralense preparavam-se alvoroçadamente para os dias de pagodeira. Seria uma oportunida-de única não só para divertirem-se como para arranjarem namorados,coisas difíceis para o meio e para a época. Contudo, para contrariá-Iassurgira uma proibição. Não dos pais, das mães ou das avozinhas. f'.J.as,do Senhor bispo diocesano. O carnaval era uma festa pagã, proclama-va dom José Tupinambá da Frota. E, como tal, as moças de formaçãocristã deviam evitá-Ia. Ora, que arranjasse outra proibição dom José,vá lá Mas, querer que as donzelas casadouras ficassem os três dias

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PADRE PEDRO E SUAS COMPARAÇÕE~

de pagodeira recolhidas em casa a rezar, não, essa não. As moças nãolevaram em conta a proibição do bispo, dançando e pulando a valerdurante os três dias do reinado de Momo. E na quarta-feira, quandotomavam cinzas na igreja matriz, tiveram a desagradável surpresa. Es-tavam todas excomungadas pelo bispo Conde de Sobral. Mas, não eratudo; o mais grave era que excomungadas achavam-se não só as brín-cantes como os seus descendentes, uma vez que a penalidade esten-dia-se até a sexta geração. Atordoadas diante de tão grande castigo asapenadas buscaram a hoteleira Dondom Pontes, do Hotel dos Viajan-tes, com o fim de se aconselharem. Dondon Pontes era mulher escla-recida, para quem ainda não apareceu um biógrafo. Vivendo numaépoca de obscurantismo, quando as mulheres não tinham sequer direi-to ao voto, ela já levantava uma bandeira de combate ao coronelismo.Dondon recebeu entre risos a notícia das condenações. Dom José, naverdade, havia sido muito rigoroso. Excomungá-Ias até a sexta gera-ção... Mas, não se preocupassem não. E, agora numa indàgação sar-cástica: - Me digam uma coisa: como é que vocês vão chegar à sextageração se vocês não encontram com quem casar?

Padre Pedro era uma criatura sem maldade. Uma pomba semfel, como diziam seus paroquianos de Santana do Cariri. Na sua inge-nuidade o vigário serrano usava por vezes de palavras e de imagensde duplo sentido, sem que se apercebesse do deslize cometido. Devo-to da Virgem Maria, padre Pedro estorçava-se por despertar emre os

t fiéis uma maior devoção pela mãe de Jesus. E nessa intenção é queele usava de imagens as mais audaciosas. Ora, certa vez o vigário ma-tuto chegara ao extremo de comparar a Virgem Maria com uma gali-nha de pintos! A comparação usada constituiu verdadeiro escândalo.Era demais. Uma heresia! - gritavam as beatas. Comparar Nossa Se-nhora com uma galinha? A grita que se fez foi tão grande que chegouaos ouvidos de dom Quintino, bispo do Crato. E a autoridade maior daIgreja do Cariri logo chamou o capelão de Santana do Cariri para quese explicasse sobre a grave heresia cometida. Padre Pedro recordoucenas campestres que não lhe saíam da memória. A luta da galinhacom o gavião em defesa da pintalhada. A mãe galinha acobertando os

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filhotes, defendendo-o bravamente das investidas do agressor. Poisera o que sucedia com relação a salvação das almas. A Virgem, tal equal a galinha de pintos, defendendo os filhos das garras do agressor,no caso o demônio. Dom Quintino aceitou em parte as excusas de pa-dre Pedro, recomendando-o, no entanto, a não mais ilustrar suas ex-planções sobre a Virgem Maria introduzindo galinha, pintos e gaviões.

o MILAGRE

Quintino Cunha. o incomparável humorista cearense, atravessavafases das mais difíceis em sua atribulada vida de advogado. Haviam-lhe desaparecido os constituintes. E agora quando aparecia algum eraem situação tão vexatória quanto à sua, sem dinheiro e, o que era pior,querendo que ele advogasse de favor. Como se advogado não comes-se e não bebesse, necessitando, portanto, de dinheiro para viver. Foinesse transe diffcil que um amigo indicou como salvação o padre Cíce-ro. Procurasse o padrinho! Ele era compreensivo. Suas mãos estavamsempre abertas para os necessitados. Que o dissesse o Gomes deMatos. Ora, quantas e quantas vezes o padrinho não havia sanado ascrises financeiras do Gomes? Quintino foi na conversa do amigo. To-mou o trem botando-se para Juazeiro em busca de salvação. Contouao padre a situação penosa em que se achava. Contudo, o padrinhopareceu não acreditar no discurso do suplicante. Fez ponderações.Que não era rico como diziam. Recebia, era verdade, muitos donativosdos afilhados. Mas, o que recebia de um logo entregava ao outro quevinha atrás. Enquanto conversavam - o padre e o advogado - não pa-ravam os romeiros de chegar. Vinham de longe, dos brejos de Per-nambuco e de Alagoas, dos sertões da Paraíba e do Rio Grande doNorte. Aproximavam-se respeitosos. Recurvavam-se para tomar a bên-ção ao padrinho, entregando-Ihe, a seguir, os ricos donativos que ha-viam trazido. Eram cédulas de 500 mil réis e de conto de réis. PadreCícero recebia as notas guarando-as no bolso direito da batina. Quinti-no a tudo assistia cheio de cobiça. - Ah! - dizia de si para si - duasou três daquelas pelêgas seriam suficientes para retirá-lo das aperturasem que se achava. Os romeiros ricos desapareceram cedendo lugaraos romeiros pobres, sujos e andrajosos. Estes nada haviam trazidopara dar ao padrinho. Pelo contrário, tudo queriam receber. Queriam a

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bênção, que era o mais importante. Queriam conselhos. Queriam mei-zinhas para as doenças do corpo. Queriam auxílios em dinheiro. PadreCícero a todos atendia. Aos malfazejos aconselhava: quem roubou nãoroube mais! Aquele que matou não torne a matar! Aos doentes acon-selhava chá de vassourinha com batata de teiú. Se não fizesse bemmal era que não fazia. Por último era a vez das esmolas. O padrinh~metia a mão no bolso esquerdo da batina e retirava, não as polpudascédulas de 500 e de conto de réis, mas, insignificantes notinhas de ummil réis. - Milagre! Milagre! - grita o Quintino. Padre Cícero assustou-se. Mas, que rnilaqre meu amigo? E, o Quintino: que milagre? As no-tas de quinhentos e de conto de réis que o Senhor colocou no bolso di-reito da batina estão sainda já trocadas do bolso esquerdo! Pode havermilagre maior? >

o GÁS DO CORAÇÃO DE JESUS

Em Juazeiro costumavam os devotos do Coração de Jesusacender luzes ao redor da .maqern do santo, isso, segundo diziam, pa-ra que ele não dormisse no escuro. Uns, acendiam velas; outros, can-déias a óleo; os mais pobres, lamparinas a querozene. Sob o pretextode não deixar o seu Coração de Jesus dormir no escuro andava umavelha espertalhona a tirar esmolas, alegando ser para o gás do santo.Até que chegando a um roda na qual papeavam várias personalidadesda cidade do padre Cícero, entre as quais o vigário, monsenhor JoséAlves de Lima, a esmolér repetiu o peditório: uma esmola para o gásdo meu Coração de Jesus! Mas, os papeadores aléin de não atende-rem com as esmolas passaram a troçar da pedinte. Gás do Coraçãode Jesus ••• Pois sim! Arranje outra. Por último foi a vez do vigário daparóquia, monsenhor José Alves de Lima Sabem o que ele recomen-dou? Minha velha, só você acostumanQo o ,seu Coração de Jesus adormir de dia.

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o PECADO DA VAIDADE

Padre Palhano era um garanhão de marca maior. Não podia vermulher bonita que ficava no maior assulero deste mundo, igual a ca-valo inteiro quando vê égua no cio. E dlzer-se que semelhante criaturatornara-se sacerdote, tudo por obra e graça do pai de criação, o bispoconde de Sobral? Usar batina constituía um sacriffcio para o padrePalhano. E sacrifício ainda maior era ter de ficar preso no confissioná-rio, com o calor e a picada das muriçocas sobralenses, a escutar ospecados dos beradeiros do rio Acaraú. Aquilo era o inferno, se é queexistia o inferno. Certa vez encontrava-se padre Palhano em desobri-ga, a confessar os paroquianos. Quanto pecado besta, Senhor Deus.'Relatos de fornicagens, de chifres, que de tão velhos já deviam tercaído aos pedaços. É quando uma voz melosa se faz ouvir por trás datela do confissionário: - Padre, eu sou muito vaidosa. Passo o dia todoa me olhar no espelho! Pronto! O confessor se vê transtornado de re-pente. Pelo dito devia ser a pecadora uma dona charrnosa, cheia demuitos atrativos. Para passar o dia todo a se mirar no espelho ... Ela de-via merecer uma cantada Mas, antes arriscou uma olhadela para o la-do de fora. E, o que viu? Uma cara cheia de rugas e desdentada ... -Vai mulher, vai com Deus - foi a resposta do confessor. Tu estás per-doada deste e dos demais pecados.

O RAPÉ DO COLETOR

Sérgio Bezerra, coletor estadual em Lavras da Mangabeira, era .-um rapaz velho bem comportado. Não bebia, não jogava, não rapari-gava, nem sequer fumar ele fumava. De vícios só mesmo o do rapé. t

Um santo, sem dúvida, o nosso coletor. Porque, se tomar rapé ~constitui vício, não deve constituir pecado grave, de tão inocente queé. Lemos - não sabemos se nos escritos do Mozart Soriano Aderaldoou se no professor Valdevino - que São Vicente de Paula tomava ra-pé' Ora, se São Vicente que era santo da Igreja tomava rapé, que malhavia em fazer o mesmo o Sérgio Bezerra? Assim, entretanto, ele nãocompreendia. E tanto não compreendia que não passava sem ir aoconfissionário todo o fim de ano.16

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CAPIM PARA OS TRÊS

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Mas, confessar-se para quê, Sérgio Bezerra? Para dizer ao padreque tomava rapé? Aconteceu aquele ano, para o seu desapontamento,terem desaparecido os sacerdotes visitantes. E, ter de confessar-secom o vigário da paróquia seria para ele por demais constrangedor.Ora, o vigário devia reconhecer os paroquianos pela voz e pelos peca-dos. Ademais, padre Mundoca, o vigário, era seu parente próximo.Mais um motivo para rejeitá-Io como confessor. Na certa ele o reco-nheceria facilmente. Contudo, como não aparecia quem o substituísse,o jeito seria confessar-se com o parente. O ato aconteceu em certanoite de dezembro, noite de grande movimentação na igreja de SãoVicente Férrer. Cansado, padre Mundoca cochilava no confissionário.Sérgio modificou a voz para não ser reconhecido. Terminada a deso-briga ia escapulindo de mansinho quando o confessor o chama fami-liarmente: vem cá, Sérgio! Me dá uma pitada do teu rapé.

Monserihor Luis Rocha quando vigário em Quixadá gostava decaçoar com os paroquianos. Seus gracejos, no entanto, deixavam mui-tas vezes de primar pela cortesia. Aconteceu-lhe certa vez encontrar-sena calçada da casa paroquial no momento em que passa um rapazolaa tanger uma burra - Ei! indaga o monsenhor - para onde vão vocêsdois? Ao que responde de imediato o tangedor do animal: - Buscarcapim para nós três! Houve risos entre alguns dos passantes da ruaOutros, no entanto, recriminavam ao rapaz da burra. Atrevimento, faltade educação! O fedelho devia ter sido respeitoso. Afinal um sacerdotenão era um qualquer. O fato é que a partir de então, monsenhor LuisRocha pássou a ter cautela sempre que fazia as suas caçoadas.

PADRE FÉLIX E SEU JUMENTO

Ano de 1929. Estávamos na cidade do Crato, a mais bela, fidalgae acolhedora cidade do Ceará O Crato de ruas estreitas, coloniais,ainda com os nomes de antigamente. Rua da Pedra Lavrada, das La-

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ranjeiras ••• Da paisagem urbana faziam parte a casa da heroína Bárba-ra de Alencar - criminosamente destruída durante o Estado Novo - eo padre Félix e seu jumento. Os meninos divertiam-se a mais não po-

. der, ora admirando a estrutura do solar da heroína, ora assistindo pa-dre Félix a desfilar em seu jumento marchador, um jegue preto, de bar-riga branca. Os pivetes juntavam-se aos magotes na ponte do rio Bata-teira com o fim de assistirem ao espetáculo. Até que padre Félix dei-xava o Seminário esquipando em seu jegue, imponente sobre a pontede madeira, debaixo dos aplausos da meninada. - Eita padre pai dê-gua! - era a voz que se ouvia. Ele sorria satisfeito, orgulhoso, plena-mente realizado. Depois desfilava pela Rua da Pedra Lavrada, seguiapelas ruas centrais onde, por sua vez, exibiam-se em seus alazõesmarchadores os coronéis dos engenhos de rapadura do Cariri. Depois,veio o advento do automóvel. Padre Félix - um mulato alto, forte, mui-to prosa - trocou o jegue por um Ford. Agora quem o esperava paravê-to passar já não eram os pivetes da ponte do Batateira. Era o mu-lherio desvairado. Padre Félix terminou trocando a batina por um rabode saia.

OS FILHOS DO PADRE QUINDERÉ

Depois do padre Cerberon Verdeixa talvez tenha sido o padreOuinderé o sacerdote de maior presença no anedotário cearense.

Dele conta-se uma infinidade de repentes e de prosas engraça-das, muitas delas criadas pela imaginação do povo. Contudo, o que éfato é que o sacerdote possuía uma verve das mais ricas. Ele nãoguardava cerimônias, caçoando descontraidamente com as senhoras eas senhoritas. No "Café Globo", onde tinha cadeira cativa, sentava-seentre amigos e literatos dando soltura ao seu espírito alegre e brinca-lhão. Conta-se que certa vez acercou-se da roda que se formara no ca-fé um gaiato com uma indagação atrevida: - Padre Ouinderé, é verda-de que o Senhor tem muitos filhos? A indagação inconveniente provo-cou indignação entre os circunstantes. Padre Ouinderé não se pertur-bou, dando a resposta merecida: - Filhos espirituais eu tenho muitos.Ouanto aos filhos carnais eu os desconheço. Mas, em todo caso, per-gunte à sua mãe. Ela poderá lhe responder. - Houve risos sem conta,o que forçou o insolente a retirar-se apressadamente. Ia com certeza18

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repetir a indagação para a sua genitora. Padre Ouinderé morreu cego eoitentão, promovido que fora a monsenhor, porém sempre chamado depadre pelo povo.

PADRE QUINDERÉ E AS MANGAS

Contam os filhos da Candinha que o padre Ouinderé gostava decomer mangas, preferindo entre estas as mangas rosa. Para o nossovigário não havia guloseima comparável aos frutos doces, cheirosos eavermelhados dessa espécie vegetal. Acontece que certa manhã aotransitar pela Aldeota, padre Ouinderé descobre no quintal de umamansão, uma mangueira carregada dos frutos de sua preferência. Elenão se contém. Puxa o galho da árvore por cima da amurada e passaa recolher os frutos, um a um, guardando-os nos bolsos da batina. Oburguês dono da mansão a tudo assiste do alto do sótão. Dias depoisencontrando-se com o padre Ouinderé ele lhe indaga: Padre, diga-meuma coisa, é pecado roubar? Depende, meu filho! - responde o inda-gado. Desde que não sejam mangas rosa.

PADRE QUINDERÉ: CÉU E INFERNO

•O coronel Pedro Dantas, grande proprietário de terras nos arredo-

res de Fortaleza, depois de velho deu para se preocupar com a vidaetema. A idéia do inferno atemorizava-o terrivelmente. E, foi pensandoem expurgar os pecados que o latifundiário passou a fazer conces-sões. Doou ao arcebispo vários de seus terrenos no Mata Galinha,bairro que posteriormente tomaria o nome do milionário Dias Macêdo.Depois, passou a assistir missas diariamente e a confessar-se umavez por semana, cabendo-Ihe como confessor o padre Ouinderé, umpadre mundano, dono de bom apetite e muita gaiatice. Pedro Dantasnão o poupava com suas indaqações sem pé e nem cabeça. Oueriasaber dos mistérios do além. Da convivência entre os santos, no céu.Do penar das almas no purgatório. Ouanto ao inferno, nem falar. Eram

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PADRE QUINDERÉ E OS PALPITES

assuntos que nem de leve interessava ao ouvidor de pecados, desin-teressado em mudar-se desta vida para nenhuma outra. Desejando li-vrar-se dos aperreios do latifundiário, padre Ouinderé disse-Ihe certavez que de boas intenções o inferno estava cheio. E'rnais: que no in-ferno o piso era calçado com o couro dos donos de terras e o teto co-berto com as batinas dos padres. A partir desse dia, Pedro Dantas nãomais foi visto na Igreja. Nem a rezar e muito menos a confessar-se.

PADRE QUINDERÉ E AS MULHERES SEM SUNGA

Em suas andançt.s padre Ouinderé transitava na calçada de cer-ta mulher de costumes dissolutos quando avista uma moçola, filha dadita cuja, sentada de maneira provocativa. De pernas para o ar e semsunga, a cunhã, constituía uma tentação aos passantes da rua. PadreOuinderé se detém, retira do bolso uma prata de dois mil réis entre-gando-a a desavergonhada. - É para você comprar uma sunga! - E dánas pernas. Ao saber do ocorrido a mãe da jovem fica enfurecida. Pa-dre atrevido! Ele manda na Igreja dele e não em minha calçada! Pois,amanhã quem vai ficar de pernas para o ar, sem sunga, sou eu! Ouerover o que é que ele vem me dizer. E, se disse melhor fez a endiabradamulher. Ficou sentada, de saia levantada, com o chinin à mostra,quando chega padre Ouinderé oferecendo-Ihe uma moedinha de 500réis. - É para você comprar uma gilete e fazer a barba.

Num encontro de moças do soçaite, o passatempo preferido foi odas adivinhações. - O que é o que é... E surgiam os palpites. É isso, éaquilo. Padre Ouinderé toma assento ao redor da mesa passando aparticipar da brincadeira. Quando chega a sua vez de perguntar ele in-daga sem a menor cerimônia o que era que havia entre as suas per-nas... Houve um susto entre as participantes do passatempo, donzelas20

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o DIABO ERA O SANTO

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muito mais recatadas do que as de hoje. Elas se entreolharam descon-fiadas, sem que se atrevessem a responder. Também era demais. De-pois do silêncio que se fez, padre Ouinderé resolve responder. Poisnão é o que vocês estão pensando não! Vejam o que é! É a perna damesa. Seguiu-se uma sensação de alívio. Ainda bem que era a pernada mesa, comentou-se baixinho. Passado o susto inicial vem novaindagação temerária: onde é que as mulheres têm os cabelos maiscrespos? Nova sensação de desagrado. Algumas das adivinhas já sepreparavam par ir embora quando ele dá a resposta: é na África! Feitaa revelação, padre Ouinderé se despede das moças. Ia à Igreja darcumprimento a sua missão sacerdotal. Antes, porém, diz alto e embom som que o lugar onde as mulheres tinham os cabelos mais cres-pos não era na África. Era mesmo onde elas estavam pensando quefosse.

o coronel Praxedes como todo o fazendeiro próspero dos sertõesdo Jaguaribe queria ter a sua capela para as celebrações de fim deano, os casamentos e os batizados dos filhos dos moradores. Todosos latifundiários em igualdade de condições com a sua possuíam assuas capelanias. Então, por que ele também não as possuía? Uma ca-pela valia como sinal não só de religiosidade como de poder. Praxedesespalhou pelas ribeiras do Jaguaribe esta sua pretensão. E, sem maistardança mandou construir o prédio do templo, cujo madeirame fora re-tirado das carnaubeiras, isso para que as bênçãos dos céus caíssemsobre as ditas palmácias fazendo com que a cêra conservasse bompreço. Construído o edifício surgiu, no entanto, sério impasse. Todacapela devia ter a invocação de um santo. Era condição "sine qua non"para que o bispo concedesse permissão para o funcionamento. Então,Praxedes, a mulher e as filhas esforçavam-se por encontrar um óragopara o templo em surgimento. Oueriam que este fosse um santo dabem-querença dos sertanejos. São José, por exemplo, o santo das chu-vas, padroeiro do Ceará? Mas, já havia capelas com a invocação deSão José e o bispo não permitia que houvesse dualidade nas invoca-ções. Ou São Pedro, o chaveiro do céu? Ou São João? Ou Santo An-tônio, o santo dos namorados? Mas, eram todos óragos de capelas

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pelas circunvizinhanças. Quanto aos santos em disponibilidade eran.ilustres desconhecidos dos matutos, italianos na maior parte, santosde nomes estrambóticos. Além de desconhecidos não mereciam sim-patia pelos nomes que carregavam. Nenhum que satisfizesse ao fa-zendeiro e a seus familiares. O impasse continuava enquanto os matu-tos não paravam de indagar a Praxedes pela inauguração da capela.Ele não se cansava de responder em meio ao natural desapontamen-to: a capela está pronta, o diabo é o santo que não aparece.

só O GALO PODERIA COMER

Monsenhor José Alves de Lima, vigário em Juazeiro, preferia emvez de galinhas de granja as galinhas da terra. descabidamente apeli-dadas de pé duro, capoeiras e até de caipiras pela gente sofisticada. AI,

como gostava o nosso cura de almoçar aos domingos um pescoçopelado, uma bola de ouro ou uma galinha caiana preparada ao molhopardo ou cozida, com pirão ... Ele se descontrolava pecando pela gula.

Sabedora do bom gosto do vigário, uma sua paroquiana levou-lheuma certa vez uma bola de ouro para que ele a comprasse. Era ummimo de galinha, grande, gorda e de muito bom peso. Monsenhor JoséAlves ficou encantado diante da galinha. Conferiu o peso indagandopelo preço. - Dez mil réis - respondeu a dona da penosa. É muito! -Disse o vigário. Ele estava acostumado a comprar galinhas mediantepreços bem menores. A vendedora alegou a alta do custo do milho, acarestia de vida que estava de meter medo. Fez comparações de pre-ços. Havia vendido outras galinhas de peso bem menor por aquelepreço. Afora aquela só lhe restava o galo, que não podia deixar por ,j.

menos. Diante da intransigência da mulher só restou ao cura de Jua-zeiro dizer-lhe: - É, minha senhora, muito gorda, muito bonita a sua .•galinha. Pena é que eu não possa comê-Ia ... E, num desalento: - Essa 1quem vai comer é o galo.

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PADRE FLORÊNCIO E A IFOCS

Padre Florêncio era uma criatura alegre, comunicativa, gostandode prosar com as pessoas mesmo quando não as conhecia. Certa feitaele se achava à beira da estrada, a espera de um transporte, fossequal fosse, que o trouxesse até Fortaleza. É quando surge uma camio-neta da IFOCS - Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas -. Opadre pede uma carona ao motorista e este, embora supersticioso,embora acreditando no azar dos padres, não viu como negá-Ia. Acei-tou-o. Acontece que desde o primeiro instante o sacerdote se pôs acaçoar com quantos lhe faziam companhia. O chofer já se achava desaco cheio com tanta gaiatice quando para o seu azar a camioneta dáo prego. Os passageiros desceram enquanto ele corrigia o defeito doveículo. Padre Florêncio aproxima-se do guiador passando a importu-ná-lo com suas caçoadas. Por último indaga qual o significado daquelasigla: IFOCS. É chegada a vez do motorista vingar-se das chateações.Mas, o Senhor não sabe? E passa a responder pausadamente: Infe-lizmente Fui Obrigado Conduzir Sacerdote.

NÃO QUIS CONVERSA COM DEUS

Dom Vicente de Matos, bispo de Crato, sempre que vinha a For-taleza se fazia acompanhar de monsenhor Rubens Lóssio, seu asses-sor imediato. Viajavam os dois, costumeiramente, num rnonornotor,avião este de pouca independência de vôo. Por mais de uma vez a ae-ronave do bispo fizera feio, sem que dom Vicente desistisse de utili-zá-Ia Pois numa dessas vezes, quando realizavam a travessia Fortale-za-Crato surgira uma pane no motor. O piloto esforçava-se por evitarum desastre de maiores conseqüências preparando-se para um pousoforçado. Dom Vicente ao perceber o perigo começou a suar frio. Eleamava demais a vida terrena, preferindo-a antes à vida celeste, paramuitos uma incógnita. Já monsenhor Rubens, dotado de muita fleug-ma, mostrava-se indiferente ao que pudesse acontecer de pior. E, tan-to era assim que pusera-se a caçoar com o companheiro de viagem: -É, dom Vicente, desta vez parece que nós vamos conversar com Deus!- É, responde trêmulo o bispo: - desgraçadamente é uma verdade.

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Algumas freirinhas muito jovens sairam em campanha evangeli-zadora pelas ruas da Aldeota. Depois de muito andar foram bater nu-ma moradia que pelo jeito logo despertou as suspeitas do grupo. Erauma república de veados. Os moradores, como de costume, logo apa-receram muito risonhos e muito solícitos. As freirinhas por sua vez,anunciaram as finalidades da visita. Eram irmãs de Cristo em missão decatequese. Irmãs de Cristo? - indagou espantado um dos veados.Mas, como vocês estão bem conservadas ... Só mesmo sendo milagre.

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Entretanto aconteceu, para a sorte do bispo e do seu assessor, conse-guir o piloto, realizar com êxito uma aterrissagem forçada, deixando-ossãos e salvos.

Dom Vicente respirou aliviado. Mais uma vez ele escapara de irconversar com Deus.

PADRE MEDEIROS: CABRAS E BODES

Padre Medeiros, vigário no Icó, tinha uma maneira curiosa de tra-tar seus paroquianos. Ele não os chamava de ovelhas, como o faziamoutros sacerdotes, mas, de cabras e de bodes. Na igreja, aos domin-gos, havia com freqüência a invasão dos locais destinados aos fiéis deacordo com os sexos. Os homens não acatando a discriminação dopadre, passavam-se para o lado destinado às mulheres, isso para con-versarem. As mulheres, por sua vez, faziam o mesmo. Era quando ovigário ordenava alto e em bom som: vamos separar as cabras dosbodes! E enquanto não se dava a separação ele não dava inlcio a mis-sa.

AS IRMÃS DE CRISTO

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AS EXCOMUNHÕES

Ora, isso de ter poderes para condenar alguém ao inferno é hojemuito discutido. Como discutida é a existência de céu, inferno e purga-tório. Mais ainda: a existência do próprio Deus. Depois da invenção dorádio, da televisão, dos satélites e, principalmente, das viagens espa-ciais, as gentes tornaram-se mais sabidas do que nunca. Aumentaramas especulações. Até as crianças ..• Os meninos de hoje ao largarem arede, pela manhã, já não tomam a bênção aos pais, como faziam anti-gamente. Limitam-se a dizer, simplesmente, um ôi pai, ôi mãe! E, di-zer-se que a saudação sacramental já foi levada muito a sério. Noutrostempos o pai ou a mãe negar a bênção a este ou àquele filho consti-tuía um castigo tremendo. Estava excomungado! E ninguém queriasaber dos excomungados. Todos evitavam-nos. Entretanto, foram osmaiorais da Igreja Católica aqueles que mais usaram dessa forma depunição. Dom José em Sobral e dom Manuel em Fortaleza não poupa-ram suas ovelhas da terrível punição. Nos menores casos de desobe-diência estavam. eles a excomungá-Ias. O estivador José Antônio daSilva revelou-nos um ato de excomunhão coletiva por ele testemunha-do, quando menino, no Palácio São Joaquim. O fato teria ocorrido noano de 1926. Antes, no Mucuripe, por ocasião da tradicional procissãode São Pedro, houvera um desentendimento entre o capelão, o padreFurtado e um jangadeiro. O padre teria aplicado uns puxões de cabelona mulher do pescador por ter a mesma se antecipado às demais reti-rando uma vela da sacristia. O marido da agredida protestou: o queé isso seu padre, o Senhor maltratando minha mulher? Eu que sou omarido não maltrato ela. Agora o Senhor é quem vem maltratar? PadreFurtado não gostou da reprimenda. Mandou fechar a capela e suspen-der a procissão. No dia seguinte era o bispo dom Manuel quem orde-nava como castigo, aos moradores do Mucuripe, o fechamento definiti-vo do templo. Houve protestos. Os moradores não se conformavamcom o castigo. Dona Arda Balaio, professora escolar e senhora de mui-to conceito no bairro, preparou um abaixo-assinado solicitando fossereconsiderada a medida. O documento vinha assinado por ela, o mari-do e mais vinte e tantas pessoas, todas muito acatadas no Mucuripe.Foram os solicitantes ao São Joaquim fazer a entrega do documento eesperar pela resposta. De joelhos, humildemente, permaneceram temposem tempo, até que o dignatário se decidiu atendê-Ios. Dom Manuelencarou-os com rudeza passando a fazer a leitura do abaixo-assinado.

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- Então, querem que eu reconsidere o meu ato? Mas, quando já se viuuma autoridade da Igreja voltar atrás? Ato contínuo passou a chamarum a um os figurantes do abaixo-assinado. Vozes nervosas respon-diam amedrontadas ao chamamento. O bispo fazia um sinal com adextra pronunciando palavras inintelegíveis em latim. Estavam todosexcomungados. Mas, o que representavam as excomunhões? Respon-de-nos o padresito Nélio Façanha de Sé: - Uma vez excomungado fi-cava o católico privado de todos os sacramentos da Igreja. Era umproscrito. Um condenado aos infernos. Com a modernidade da Igrejadesapareceram as excomunhões. Isso, para desagrado do poeta JoséAlcides Pinto que teima em se dizer amaldiçoado. Quem te amaldiço-ou José Alcides? Dom Aloísio? Juramos que não! Nosso antiste seriaincapaz de tamanha maldade.

PADRE ALBERTO, POETA - MAIOR DA PACATUBA

Já falamos dos padres de antigamente e de seus métodos deevangelização. Seus recalques. O que deles conta o nosso anedotário.

Acontece que vida de padre não era só a dos sermões, das rezase das condenações infernais. Porque os padres, como todas as criatu-ras, tinham também momentos de devaneios. Enveredavam pelas artes.Faziam literatura, faziam oratória. Querem exemplos? Seria cansativuenumerá-Ios! Contudo, apraz-nos lembrar um padre Antônio Tomaz, omaior sonetista cearense de todos os tempos. Ou o padre senador Jo-sé Martiniano de Alencar, ou, ainda, o padre Valdevino Nogueira, gran-des oradores sacros. Mais recentemente, é a vez de dom Helder Câ-mara, do padre Antônio Vieira (o do jumento), sem esquecer o padreAlberto de Oliveira. - Alberto de Oliveira? - indagará o leitor desavi-sado. Sim, Alberto de Oliveira. Não estamos falando do colega de Bi-lac, mas do poeta maior da Pacatuba. Não fora a sua modéstia e nãofaltaria quem o conhecesse, aqui e alhures. Padre Alberto é notávelcomo poeta. Ele é desses que entendem a poesia como objeto de de-leite e nunca de adivinhação. Diferente de um pálido poeta da Arata-nha que passa nove meses emprenhado com uma metáfora e, depoisdo parto ... O que é, o que é? Não! Isso não acontece com o nosso AI-berto de Oliveira. Seus versos são límpidos como as águas que des-cendo da serra formam a caudal do Cocó. Suas musas, estas são en-26

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contradiças nas ruas de Pacatuba ou nos arrebaldes do Alto do Bode edo Piripao.

Estamos nos deleitando com as suas "Ressonâncias". Como nãosomos egoístas convidamos os leitores a compartilharem conosco daleitura de Leila, uma das belas e humanas poesias contidas neste li-vro. Ei-Ia:

(A estória inédita de um amor secreto)

Já faz tempo,Muito tempo mesmo,Que nós nos encontramos a primeira vez.

Houve uma estória sigilosaEntre nós dois.

Passei.Ela acompanhou meus passosCom o olhar.

Aproximamo-nos.Sentei-me ao ladoCaiu-me sobre o colo.Houve troca de carícias demoradas ...

Muito mansamente desci a mão,Por sobre as saliênciasDo seu corpo magro.

Acariciei com ternuraO seu cabelo fofo.

Depois, sem destino,Saimos cabeça abaixo,Noite adentroPelo mundo afora ...

Andou comigo,Bem pertinho,Muito tempo, ao léu.

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A partir daquele dia,Minha casa teve hóspede.

Quando alterava à noite,Acordava o quarteirão inteiro.

Cada manhã despertava-meAo bafejo mornoDos seus cheiros ...

E quem foi esta mulher tão fácil?Mulher, coisa nenhuma!Leila foi uma cachorrinha pobreQue encontrei na rua.

São Francisco de Assis? Não! Padre Alberto de Oliveira.

o SABIÁ DA PACATUBA

Quem é o autor do Sabiá da Pacatuba, uma poesia onomatopai-ca surgida no correr dos anos 50? Padre Alberto de Oliveira? Ou o Zéda Mata, um plantador de bananeiras que estivera na Aratanha? Nãose sabe ao certo. Existem controvérsias. Porque em Literatura é assim.Certos autores, iguais aos pais de filhos bastardos, negam-se em as-sumir a paternidade dos mesmos. Recorrem aos pseudônimos. Refu-giam-se no anonimato. Estão no caso obras famosas como As CartasChilenas e A Arte de Furtar. Na época todos atribuíram a autoria da AArte de Furtar ao padre Antônio Vieira, o jesuíta protetor dos nossosíndios. Fosse hoje e diriam ser de um certo PC Farias, filho de criaçãodo presidente Collor.

Que fique, pois, aos críticos literários da terra desvendar o rnisté-rio.

Quanto a nós o que interessa é o Sabiá da Pacatuba, sem es-quecer o figurante Caio Cid, um personagem maior do que os Cavalei-28

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Tuba - cutuba!Tuba - cutuba!Cantava na bananeiraO sabiá da Pacatuba.

ros da Távola Redonda ou do Santo Graal. Literato chegado ao povo.Caio Cid - pseudônimo de Carlos Cavalcante - nunca quis saber deacademia. Foi grande corno.poeta e grande como prosador. impondo-se como cronista dos Diários Associados. Amava as caçadas na serra.Daí. certamente. a atribuição que lhe fizeram na execução do passari-nho. Mas. deixemos de lado as considerações e passemos ao Sabiáda Pacatuba:

Nesta terra brasileiraDá de tudo, tudo dá!Palmeiras e bananeiraOnde canta o sabiá!

Caio Cid - o caçador!Ia subindo a AratanhaEis que de medo se assanhaAnte o estranho cantor:É tuba - cutuba!É tuba - cutuba!Cantava na bananeiraO sabiá da Pacatuba!

Tuba - cutuba!Tuba - cutuba!Cantava na bananeiraO sabiá da Pacatuba.

A espingarda ele entubaDe chumbo ...A dois por trêsSôa um tiro...Era uma vezO sabiá da Pacatuba

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Terminada a leitura do texto indagamos: por que as professorasdo lugar não passam como recitativo para os alunos o Sabiá da Paca-tuba em vez do Cajueiro Pequenino, de Juvenal? Seria mais condizen-

, te. Mesmo porque Pacatuba não é terra de cajueiros. É, sim, de bana-neiras. De bananeiras onde canta o sabiá.

PADRE ALBERTO E OS ARTIFíCIOS DE LINGUAGEM

Contam os amigos do padre Alberto que ele ao iniciar-se litera-riamente usou de metáforas em seus escritos. Influência, talvez, dosescribas de academia, useiros e vezeiros com tais artiffcios de lingua-gem. Havia, no entanto, uma diferença entre as metáforas usadas pelonosso levita e as metáforas usadas pelos escribas de academia. É quepadre Alberto em contato com a massa de fiéis aprendera, tomandopara si as figuras de imaginação criadas pela gente simples, pela"massa ignara". E o povo, nesse tocante, possui mais criatividade,mais senso do Belo, do que os escribas acadêmicos, aninhados entrealfarrabios, a reescreverem o que outros já haviam escrito. Com o pa-dre Alberto nada de construções absurdas, iguais àquelas do poetadas "mãos sórdidas e santas". O leitor indagará: mas, de quem sãoessas mãos? As de Euridfce, a dona daquele dràmalhão chato a maisnão poder? Ou as mãos de alguma adolescente dada aos vícios solitá-rios? Não sabemos. Só o autor poderá responder. Por sua vez outropoeta da mesma escola referindo-se ao Sol chamava-o de "olho domar'. Arre égua! Mas, deixemos tais poetas com suas criações absur-das e voltemos ao nosso padre Alberto, que é o que nos interessa.Ora, o poeta maior da Pacatuba referindo-se ao nascer do Sol escre-veu prosaicamente: Contava o velho Pitombeira para os netos: "Eu,quando rapaz, peguei muitas vezes o Sol com a mão". Referindo-se aum lugarejo sem futuro do alto da Aratanha, sentenciava: - Aquiloacolá só pode ser o cú do mundo;" E a um caçador amigo que lhe in-dagava pelos veados da Aratanha: - Veados? Agora só na linha daserra! Viram? Quanta precisão, quanta beleza na maneira de dizer.Aprendam, pois, com o padre Alberto "os monstros sagrados da litera-tura cearense".30

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PADRE MELO E A LAVADEIRA

Padre Geraldo Meio podia gabar-se do rebanho que lhe fora dadopastorear. Pois, entre suas ovelhas somente figurava gente de bem.Eram senhoras e senhoritas do "soçaite", todas muito perfumosas emuito elegantes. Nada de mulheres fedorentas a suor, mal saídas dasfábricas e dos, serviços domésticos. Estas que ficassem para o padreHélio Campos, vigário do Pirambu, e não para ele, pastor na igreja doPatrocínio.

Terminados os afazeres paroquiais padre Geraldo recolhia-se àsua mansão em Jacarecanga, lado a lado com o quartel dos Bombei-ros. Aquilo acolá representava um degredo para ele. Ora, um padremoço, forte e sadio como o padre Meio recolhido num casarão de me-ter medo. Sozinho! Ainda bem que havia pessoas compreensivas. Es-tas o buscavam vez por outra, isso para que ele não morressede tédio. Certa vez uma dessas pessoas piedosas entrou no casarãodo padre Meio ao mesmo tempo em que entrava de serviço o senti-nela do Corpo de Bombeiros. O soldado do fogo ficou encantado como perfil da visitante do padre. Puxa, que mulheraço bonito e elgante,murmurou de si para si. As horas se passaram, o sentinela saiu deserviço sem que a dona saísse da casa do padre. A notícia correu peloquartel. Padre Meio com visita em casa! Ao amanhecer, quando o nos-so pastor dava soltura a sua ovelha, em vez de um sentinela encontra-va-se uma multidão deles postos a espreitá-Ios, ardendo de curiosida-de. Padre Geraldo surpreendeu-se. - Mas, o que é isso gente! Vocêsnunca viram uma lavadeira saindo de uma residência pela manhã?Houve risos e galhofas da parte dos soldados. O que eles nunca ti-nham visto era lavadeira tão charmosa, tão elegante quanto aquela,saindo pelo amanhecer da casa de um sacerdote.

o PAI NOSSO DOS BANQUEIROS

Numa roda de papeadores da Praça do Ferreira discutia-se aevolução por que passava a Igreja Católica. O Vaticano perdia o rançomedieval. Os padres já não rezavam em latim, de costas para o povo.

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Agora eles pregavam na língua dos próprios fiéis, de frente e não decostas para estes. Isso, se quisessem ser escutados. Outro falava nasviagens do santo padre. O sumo pontífice já não vivia preso no Vatica-no, mas viajando, vendo o que ocorria entre os povos. João Paulo 11havia feito mais viagens do que o juiz Osmundo Pontes ou o caboStênio, de Sobral. Tudo em defesa dos fracos, dos oprimidos. Um ter-ceiro papeador considerava a mudança de temáticas. Ultimamente ospadres já não se ocupavam tanto com o reino dos céus, mas, preferen-temente, com o reino da Terra. Que as riquezas deviam ser distribuí- tdas convenientemente com as criaturas de Deus. É quando Braz Pa-paléo que a tudo escutava, interveio para protestar. Que nada! Esta-vam enganados os que assim pensavam. Distribuição conveniente dasriquezas ... Pois sim! Se havia alguma conveniência recomendada peloPapa esta era para os ricos e nunca para os pobres. Senão, vissem oque recomendava o novo Padre Nosso, traduzido para Pai Nosso. -Perdoai as nossas ofensas ... Por que ofensas e não dividas, como di-zia o anterior? Tudo de acordo com as conveniências dos banqueirosinternacionais. Ofensas? Eles não têm por que se ofender. Podemoscharná-los à vontade de ladrões, bandidos, monstros. Riem-se até denós! O que eles não perdoam são os dólares que nos emprestaram.

TÊJE PRESO!TÊJE SOLTO.

JUAREZ, O LEÃO DO NORTE - A BATALHA CONTRA A SAUVA- UM DEBATE QUE NÃO HOUVE-

Sempre que se fala em soldado no Ceará a lembrança que logonos acorre é a do general Juarez T ávora, Isso porque Juarez, melhordo que nenhum outro, soube personificar o autoritarismo próprio dosmilitares.

Era alto, forte, impetuoso e de carranca sempre fechada, um tipo,como se vê, capaz de impressionar às pessoas medrosas. E, como senão bastasse, costumava soltar gritos e dar murros nas mesas. Estes,32

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certamente, alguns dos atributos para a alcunha que lhe puseram deLeão do Norte. Contudo, o decisivo mesmo para o cognome deve-se asua participação nos acontecimentos de 1930, uma revolução que sefez mais pelo telégrafo do que pelas armas. E Juarez comandou a ditarevolução da Bahia ao Amazonas. Vitorioso o movimento, Getúlio con-templou-o com um ministério. Sim, o Ministério da Agricultura. Ora,melhor para dirigir a agricultura ficaria um agrônomo, nunca um gene-ral. Mas, o Ditador assim quis e assim aconteceu. Sucede, no entanto,que um inimigo pequeno, mas voraz, estava a devastar nossa agricul-tura. Havia até um "slogan", segundo o qual ou o Brasil acabava com asaúva ou a saúva acabava com o Brasil. Para evitar o desastre ecoló-gico só mesmo um general, principalmente, quando este general tinhanome e fama de leão. Estava iniciada a batalha contra as formigasquando Juarez surpreende a todos com uma declaração estarrecedora.Não! Não eram as saúvas o inimigo maior do Brasil. Porque pior doque as saúvas era o funcionalismo público. A surpresa foi geral. Entãoos barnabés, hein general?! Mas, quem diria!

Passaram-se os tempos. As saúvas dasapareceram sob o efeitodos formicidas tóxicos. Mudou-se a conceituação quanto aos inimigosdo Brasil. Para os novos ideólogos os responsáveis pela nossa ruínanão se achavam nos formigueiros nem tampouco entre o funcionalis-mo público. Era, este sim, o capitalismo internacional. Melhor dizendo:os trustes monopolizadores das riquezas naturais dos países subde-senvolvidos. Mais vorazes do que as saúvas os trustes estrangeirosdevoravam, principalmente, as riquezas minerais, o ferro, o petróleo, omanganês, indispensáveis às suas indústrias. Tornara-se forçoso com-batê-Ios. E foi com esse fim que o surgiu o Centro de Estudos e Defe-sa do Petróleo, destinado a defender o nosso petróleo, no caso o mi-nério mais visado pelo inimigo nacional. Juarez mais uma vez surpre-ende a Nação, colocando-se ao lado do inimigo todo-poderoso. Que nãotínhamos capital, não tínhamos técnicos, a saída seria a entrega donosso petróleo à Standard Oil Company. Agora transformado em pre-goeiro do entreguismo o antigo Leão não se cansava em deitar falaçãodefendendo causa tão inglória. Fomos escutá-to na Faculdade de Di-reito, em Fortaleza. De início, tanta condescendência, paternalismoaté! O conferencista apresentava-se não como um oficial do EstadoMaior das Forças Armadas, mas, dizendo-se um estudante mais velhoque viera trocar idéias com os estudantes mais moços. Começara apregação entreguista quando surge um aparte. Se o general não con-siderava um perigo para a soberania brasileira nós entregarmos o nos-so petróleo a um truste como a Standard Oil, a qual sozinha possuía

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mais navios de que todos os países da América Latina juntos? Ummurro medonho estrondou sobre a mesa. O Leão ficara colérico. Osmoços do auditório, amendrontados. - Eu, na qualidade de oficial doEstado Maior das Forças Armadas nego-me a responder a indagação!- foi a resposta que se ouviu. Seguiu-se um silêncio logo interrompidopor um moço pálido, de sorriso sarcástico, que não se deixara intimidarante os arreganhos do Leão enfurecido. Era o deputado RaimundoIvan de Oliveira. Pediu um aparte para dizer que o conferencista nãose apresentara na qualidade de representante do EMFA mas se dizen-do um estudante mais velho desejoso de trocar idéias com os estudan-tes mais moços. O Leão começara a quedar-se enquanto o apartanteprosseguia em suas considerações. Ficava com o jovem que o antece-dera. A Standard Oil na realidade constituía um perigo para a sobera-nia do Brasil! O auditório tomara-se de coragem. Agora a zoada, o es-tardalhaço que se ouvia era o das palmas e dos aplausos ao apartean-te. Juarez tentara retomar a palavra, sem resultado. A assistência pas-sara a vaiá-lo ruidosamente. Terminava assim o debate que não houvedo estudante mais velho com os estudantes mais novos.

MANEIRAS DE DIZER

Houve um mal entendido na tropa. O oficial indaqa dos recrutasformados no pátio do quartel: vocês trouxeram as bagagens? E nin-guém respondeu. Ele torna a fazer a indagação, mas, os recrutas con-tinuam calados. O oficial começa a irritar-se. - Vocês estão moucos?Não me ouviram falar? É quando entra em cena o corneteiro: - Dê li-cença seu tenente. Acontece que eles não entenderam o dizer de vos-sa mercê. E virando paro a tropa: - Negrada, vocês truveram os te-rens? - Truvemo! Truvernol Truvemo! responderam a uma só voz osrecrutas.

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FORA DE FORMA, VOLVER!

Com a deposição de Franco Rabelo, Fortaleza se viu tomadapelos bandos de jagunços vindos do interior para apear o presidentedo poder. Uma cabroeira aselvajada esta do doutor Floro, sem nenhu-ma profissão certa a não ser a de matar gente. Na Capital os jagun-ços espalharam-se pelas areias ou arrabaldes - que era como sechamavam os nossos atuais bairros - cometendo toda a sorte de mal-feitorias. Forçoso era detê-Ios. Mas, como fazer se a Pollcia fora dis-solvida e o Exército - cumprindo ordens do governo central - se con-servava omisso? Foi quando veio a reestruturação da Polícia Militar,com o engajamento de muitos dos antigos comandados de Floro Bar-tolorneo. Todavia, os recrutas alistados não tinham a menor idéia doque fosse a organização militar. Um antigo oficial procurava exercitá-losensinando o que todo o soldado devia saber. entrar em forma, co-brir! Até ar, tudo bem! Mas, quando chegou a vez do ordinário marche,ninguém se mexeu. O oficial repetiu a voz de comando duas, três ve-zes sem resultado. Até Que um dos recrutas respondeu alto e em bomsom: - Tu é besta fio duma égua! Meu padim que é meu padim nãochama nós de ordinário, tú é quem vem chamar? E, o oficial não en-controu outro jeito senão ordenar um fora de forma, volver!

A DOENÇA DO MEDO

Aconteceu ao tempo da Coluna Prestes. Para dar combate aosrevoltosos organizou o doutor Floro os chamados batalhões patrióticos,compostos com a cabroeira dos fazendeiros do Cariri. Era de ver-se oscabras dos coronéis fardados como se fossem meganhas, vestindofarda caque, calçando arriúnas e de cabeças encasquetadas. Ao invésdos rifles empunhavam fuzis. Uma vez adestrados militarmente foramtodos encaminhados para o "front" de Campos Sales, onde teriam deenfrentar os revoltosos em sua marcha para o Piauí. Sucede, no entan-to, que os comandados de Luis Carlos Prestes estavam custando asurgir. E durante a longa espera nos acampamentos fazia-se uma ver-dadeira guerra de nervos. Não faltavam notfcias fantasiosas sobre osrevoltosos. Que eles avançavam mais rápido do que um furacão. O co-

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mandante, este usava uns óculos que avistavam com cinco léguas dedistância. E surgiam as indagações. Perguntavam por Lampião. Eledeveria estar ali em Campos Sales com os seus cangaceiros e, no en-tanto, não havia aparecido. Quando chegava para Lampião recuar eraporque a coisa era mesmo séria. Esses comentários foram repercutin-do de maneira negativa no ânimo dos "patriotas" de Floro Bartolomeu.E o resultado foi o aparecimento de uma caganeira epidêmica. Os ca-bras largavam as armas e corriam para os matos já se desmanchandoem merda.

A ocorrência preocupava o médico do acampamento, um jovemesculápio paulista. O doutorzinho esforçava-se por descobrir a causada epidemia.

Uma intoxicação alimentar? Não! Na cozinha do rancho a bóiaservida era das mais sadias, constando invariavelmente de carne deboi abatido no mesmo dia, feijão, farinha e rapadura, alimentos estesmuito apreciados pelos començars, Então, seria coisa mais grave! Ascondições de higiene não eram ali das mais recomendáveis. O cólera?Sim, possivelmente uma incidência do cólera! O mais grave era que osatacados do mal não o ajudavam nas pesquisas. Ficavam calados,muito encabulados, e quando falavam era através de respostas mo-nossilábicas, que em nada ajudavam. Foi quando o barbeiro Faustoque a tudo assistia, achou de intervir.

- Dê licença doutor. Mas, o Senhor quer mesmo saber qual é adoença do pessoal? O médico acenou satisfeito. Afinal, o que ele nãohavia aprendido na Academia aquele barbeiro, um homem de poucasletras, se dizia sabedor. - Doutor, disse Fausto - a doença do pessoalnão é nada do que o Senhor está pensando. É doença besta. Doençade todo o vivente que tem cú... Como é que é? indagou espantado. Eo Fausto muito convicto: - é medo, doutor, é medo! Agora o Senhorvai me dar licença, porque eu também vou ao mato.

DOUTOR FLORO, O JUSTICEIRO

Doutor Floro foi justiceiro, mas um justiceiro diferente dos tradi-cionais, de Jesuíno Brilhante e de Antônio Silvino. Estes, sim, soube-ram fazer justiça de fato, dando aos pobres o direito que não era reco-nhecido pelos juizes togados. Jesuíno Brilhante tornara-se famoso pordefender os interesses dos flagelados da seca dos três 8. Vinham os

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alimentos para os necessitados, no entanto quem deles tiravam provei-to eram os representantes do rei. Os gêneros eram desviados e vendi-dos nas feiras interioranas. Era quando entrava em cena o bandoleirofamoso, apreendendo as mercadorias roubadas e distribuindo-as comos sertanejos famintos. Antônio Silvino, por sua vez, se tornaria famo-so como o defensor das donzelas. Ai dos malfazejos que se arriscas-sem a bulir com as meninas! O cangaceiro chamava-os para uma con-versa. E quando não chegavam a um entendimento ele indagava comoé que era, se queriam casar-se com as ofendidas ou com a lâmina doseu punhal. Desnecessário dizer que o ofensor preferia ficar com aofendida. Dado os seus cometimentos tanto Jesuíno Brilhante comoAntônio Silvino conquistaram a bem-querença dos sertanejos, que ostrasformaram em verdadeiros mitos. Já o doutor Floro era diferente. Asua justiça se achava voltada contra os pobres, contra as camadasmarginalizadas da população. Ora, Juazeiro vivia cheia de marginais,de descuidistas e ladrôes de pequenos furtos, gente que viera dos ca-fundós de Pernambuco, de Alagoas e do Rio Grande do Norte pagarpromessas ao padre Cícero e depois se esquecera de voltar. Na faltade emprego caíam na marginal idade. Por que não fazer como fariamuitos anos depois o beato Zé Lourenço? Levá-los para uma das mui-tas propriedades do padre Cícero e botá-los a trabalhar? Mas, não!Doutor Floro preferiu uma solução rápida e violenta. Preferiu conde-ná-los à morte! Aquele que fosse pegado com a mão no alheio, fossehomem, mulher ou menino seria morto por fuzilamento. Para as exe-cuções escolhera a rodagem, uma estrada carroçável situada entreJuazeiro e Crato. Quanta crueldade! Quantas injustiças não seriamcometidas! Na pressa das investigações quantos inocentes não seriamcondenados? O sucedido com as mulheres da perua, figura entre oserros cometidos pelo justiceiro. A dona da ave fez a queixa:

- Doutor Floro, roubaram a minha perua!- E você sabe quem fez o furto? - indaga o justiceiro.- Ora, doutor, só pode ter sido a alagoana. A perua não saía da

casa onde ela mora...A acusada foi chamada a explicar-se. Não foi convincente. E

nunca mais foi vista. Dias depois a queixosa volta a presença de Floro:- Doutor Floro, cadê a alagoana?- O que é que você quer saber, mulher?- É que a minha perua apareceu. Ela estava no mato!E o justiceiro chamando os guardas: - Levem esta também! Dias

depois os corpos das duas mulheres eram encontrados na rodagemJuazeiro-Crato.

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o FRANCÊS DO ESPINHEIRO

o capitão Espinheiro, comandante do Esquadrão de Cavalaria aípela década de 1920, era pouco chegado ao trato das línguas. E senão conhecia a língua pátria, que dizer das línguas estrangeiras?

Certa noite Espinheiro comandava a temível ronda da Cavalariapelas "areias" de Fortaleza quando escuta - alto e em bom som - asaudação de um "melado" feita em inglês: bud night! - Olhem rapa-zes, ouviram? Vão buscar aquele sujeito que é para ele deixar de serbesta. Não ficar falando francês sem necessidade.

CHICO DE BRITO E A LEI DOS AÇOITES

Quem, no Ceará, nunca ouviu falar em Chico de Brito? Ou na leido Chico de Brito? Pois Chico de Brito foi delegado de polícia em Cra-to, na primeira década do século findante. Sua preocupação maior eraa de zelar pela ordem pública, dando combate aos bêbados e aos ar-ruaceiros.

Para estes inimigos sociais o violento delegado- adotou uma leique o tornaria famoso. Era a lei do chicote, do relho e da palmatória.Esta, a lei que lhe tomou o nome.

Chico de Brito acreditava resolver o problema da ordem públicana base da pancada, da violência, portanto; o marginal uma vez presoera de imediato tratado na base dos castigos corporais. Acontece queesta sua norma de ação produzira efeito em seus engenhos de rapadu-ra - sim; ele era proprietário rural - não os produziria na cidade paraonde fora transportada, Fracassara, deixando ao seu introdutor a tristefama de autoridade arbitrária e cruel.

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PITS BÚRACO

o DELEGADO MECENAS E O SUMiÇO DOS PRESOS

Mecenas de Alencar era o espantalho dos pequenos delinquen-tes em Fortaleza. Arrobadores de bodegas e ladrões de galinhas cor-riam dele às léguas. Porque sabiam que se Ihes caíssem às mãosterminariam desaparecendo afogados no fundo do mar. Mecenas, ía-mos nos esquecendo de dizer, era delegado da Polícia Marítima. Con-tava, pois, com embarcações e com gente adestrada para o sinistrodesempenho. Contam que ele dava oportunidade de recuperação àssuas futuras vítimas. Na primeira detenção aconselhava ao preso quenão fizesse mais aquilo. Que procurasse emprego. Por último manda-va-o embora. Na segunda detenção os mesmos conselhos. Já na ter-ceira não havia salvação. O detido era enviado ao mar numa viagemsem volta. Amarravam-lhe uma pedra ao pescoço empurrando-o naprofundeza das águas. Com a revolução de 1930, Mecenas fugiuacompanhando o presidente Matos Peixoto. Embora a mudança degoverno não apareceu ninguém para averiguar a sua culpabilidade nodesaparecimento dos marginais. Quem iria se ocupar com a sorte deladrões de galinhas? Na época ainda não existiam as sociedades dedefesa dos direitos humanos. E os padres, diferentemente do que hojeocorre, viviam preocupados com a salvação das almas e não dos indi-víduos.

• E por falar em buracos ... O seminarista Cruz, pretendera trocar abatina pela farda de cadete da Polícia Militar do Ceará. Achava-seaberto o alistamento para a formação dos novos oficiais. Era a civili-dade que chegava aos quartéis. Para o futuro não mais o oficialatosemi-analfabeto, arbitrário e truculento, promovido graças ao protecio-nismo dos chefes políticos do Interior. Não! Os futuros oficiais teriamque ser letrados, que possuir curso igual aos doutores. Criara-se atéuma academia na Polícia. Era a Academia General Facó. No seu ves-tibular figuravam quase as mesmas disciplinas das outras academias.Ora, o nosso Cruz ... Ele conhecia muito bem o Latim, o Grego e oPortuguês, matérias estas que havia aprendido no Seminário do Crato.

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No entanto, não conhecia patavina de Inglês. E o Inglês era uma dasdisciplinas exigidas no vestibular da General Facó. Que fazer? O jeitoera apelar para o velho recurso do pistolão. O seminarista possuía umamigo influente, o deputado Plácido Aderaldo Castelo, amigo seu e desua família. Falou ao deputado e este prontamente o atendeu, dan-do-lhe uma carta de recomendação que valia como o melhor dos ates-tados. Moço estudioso, inteligente e culto só era o Cruz, conhecedoremérito das línguas neo-Iatinas. Não conhecia, era verdade, o idiomade Shakespeare. Mas, isso não lhe fizera falta no Seminário e nem iriafazer na Polícia. O importante era conhecer o idioma pátrio. E este oseminarista conhecia muito bem. No dia das provas o Cruz suava amais não poder. Sorteado o ponto ele passou a ler o texto em portu-guês e não em inglês. Terminada a leitura o professor Waldemar Bar-ros, presidente da banca examinadora, convidou-o a fazer a tradução.Mas, o candidato não havia jeito de abrir a boca. - Vamos rapaz - or-denou o examinador. Fale, diga qualquer coisa! E o Cruz, a voz trê-mula e apagada: pits búraco! Os examinadores entreolharam-se. Pitsbúraco? Deve ser algum neologismo, arriscou o professor Pedro Alba-no. Waldemar Barros estava curioso por saber o significado da expres-são. Era a primeira vez que ele a escutava. - Mas, pits búraco? O quevem a ser isso, meu amigo? E o Cruz, agora mais calmo e confiante: éburaco, professor, é buraco! Risos gerais na banca examinadora. -Pois é o que nós vamos lhe dar - gracejou o professor Waldemar Bar-ros. Um buraco! E lascou um zero no seminarista que pretendera seroficial da "briosa". .

OS BURACOS DO RAIMUNDINHO

Vícios de linguagem quem não os possui? Há pessoas que for-çadas pelo cansaço mental ficam a repetir as mesmas palavras numa 1seqüência que torna a conversação por demais enfadonha. Outras quese apegam aos ditados ou provérbios. É o que o povo prefere chamarde maneiras de dizer. O capitão Espinheiro, antigo comandante do Es-quadrão de Cavalaria, sempre que se sentia contrariado em suas pre-tensões fechava a carranca e exclamava, alto e em bom som: - Aimeu pé! Era uma maneira de recordar o tempo das rondas pelas "a-reias" de Fortaleza. Como é sabido, costumavam os meganhas pisar40

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OS MORTOS NÃO VOTAVAM

nos pés dos paisanos que encontrassem pela frente. Enquanto es-tes limitavam-se, humildemente, a reclamar com aquela expressão.Espinheiro fizera sua a súplica da gente sofredora dos subúrbios daCapital. E ficava a repetí-Ia sempre que se julgava ofendido. Por suavez o tenente Raimundinho, delegado de polícia em Lavras da Manga-beira, era o homem dos buracos. Foi não foi ele estava a dizer que acoisa era dura, que era buraco.

O capitão Antônio Pereira, delegado regional da zona sul do Es-tado, é que não gostava dessa maneira de dizer do subordinado. - Ôhomem pra ter buraco só é este Raimundinho, costumava ele recla-mar. Pois, se a autoridade maior censurava o subordinado pelo fato dajogatina campear livremente em Lavras da Mangabeira, o delegado,depois de desculpar-se pela omissão terminava dizendo que era bura-co. Mas, não ficavam nisso só as recriminações. Pereira cobrava deRaimundinho o fato de se acharem os muros pichados com palavrasde ordem dos comunistas. Onde estava a autoridade policial que nãovia aquilo? Raimundinho desculpava-se alegando os poucos praças deque dispunha. Só um cabo e dois soldados •.. A cidade era grande. Ha-via a escuridão ... Era buraco. Foi quando o capitão Antônio Pereira se-gurando-o pelos ombros alertou-o: cuidado meu camarada, muito cui-dado mesmo. Cuidado com a escuridão. Cuidado com esses buracos.Porque senão você acaba caindo dentro de um deles.

• O tenente Edson da Mota Correia, chefe Político na antiga Soure,não gostava dos mortos. Ele preferia ficar com os vivos, no caso osmatadores de gente, a ter de ficar com as suas vítimas. Protegia-os,recomendando-os aos Jurados. Como todo chefe políilco de prestígio,o tenente Edson controlava os conselhos de jurados. E estes, obedien-temente livravam das grades quantos recomendados houvesse do te-nente Edson da Mota Correia. Graças ao seu protecionismo cresciamassustadoramente os índices da criminalidade em Caucaia. A cidade -situada nos arredores de Fortaleza - despontava como uma nova Ca-xias. Sim, uma réplica da Caxias de Tenório, o homem da "Lurdinha",todos nós nos lembramos. Perguntado certa vez sobre este seu proce-

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der, o tenente Edson foi positivo: - Os mortos não votam. Quem votasão os vivos". Um manifesto político? Qualquer coisa parecida. Mas, ofato é que devido. esse tipo de eleitor foi que o tenente Edson conse-guiu eleger-se e reeleger-se numerosas vezes como deputado e comoprefeito de sua Soure.

MEIA VOLTA, VOLVER!

Ora, o sargento Pontes ... era um tipo amareloso, alto e magro,com fumaças de valentão. Comandava uma Rádio Patrulha e sempreque a situação lhe parecesse favorável mandava distribuir pancadas atorto e a direito nos paisanos que encontrasse pela frente. Um dia, po-rém, aconteceu o que ele não esperava. Veio um chamado do BarAmericano, na Praça José de Alencar, solicitando o comparecimentoda R. P. Tudo devido a certo desordeiro que estava a bagunçar o esta-belecimento. Sargento Pontes saiu à frente de seus comandados atrásde prender o desordeiro. Qual não foi a surpresa que o aguardava? Oarruaceiro não era outro senão o Belchior, valentão de Iguatu, muitoconhecido graças aos seus cometimentos. Ao avistar os soldados, Bel-chior levantou-se de um pulo e abriu a camisa pondo à mostra dois re-vólveres e uma cartucheira cheia de balas. Sargento Pontes ficou maisamarelo do que o natural. Agora, dirigindo-se ao dono do bar: mas, oque foi que houve? Salomão Benício historiou o acontecido. O freguêsquisera pagar a despesa com uma cédula de 500 cruzeiros, velha erasgada. A garçonete reclamou pedindo uma cédula em melhores con- •dições. Foi o bastante para que passasse a esbofeteá-la quebrando-lhe os beiços. A un, canto do salão a agredida esvaindo-se em sanguereclamava providências. Belchior, as mãos pousadas sobre os coldres 1dos revólveres mostrava-se disposto para o combate. Sargento Pontesmediu as conseqüências. Agora, dirigindo-se ao dono do estabeleci-mento: - Olhe, seu Salomão, se de outra vez o Senhor chamar a Rá-dio Patrulha para uma insignificância dessas, quem vai preso é o Se-nhor! Os soldados a tudo assistiam indignados. Eles queriam lutar. Noentanto, sargento Pontes logo os dissuadiu com a sua voz de coman-do: meia volta, volver!42

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o AMIGO DO INTERVENTOR

Severino Lira, paraibano de Campina Grande, era um camaradadestes que se dizem amigos de Deus e do Diabo. Constituía uma for-ma de tratamento muito sua chamar as pessoas de amigo ou de ami-zade, a exemplo do que fazem os marginais de hoje, tratando-as pormeu tio ou minha tia. Enquanto se tratasse de gente sem eira nembeira, nada a temer. Mas, o pior era que Lira para melhor passar cos-tumava se dizer amigo das autoridades. Certa vez na localidade deOuro Branco, onde costumava fazer as suas trambicagens - ele viviade vender e de trocar animais e armas de fogo - ouviu o delegado depolicia, sargento Zacarias, a se maldizer da sorte. Que se achava des-tacado, fazia quase um ano, naquele lugar, verdadeiro cú do mundo,sem saber quando de lá seria transferido. Já se achava cheio de tantoOuro Branco, que de ouro só possuía mesmo o nome. Lira ao escutaras lamúrias do meganha foi logo oferecendo os seus préstimos: - dei-xasse estar que no fim do mês iria tratar do assunto com o seu amigo,o capitão Cordeiro Neto. Ele seria na certa transferido para outro lugar.Houve risos. Os ouvintes duvidaram do prestígio do potoqueiro. - Ah,então você é amigo do Cordeiro Neto? - indaga alguém. E você nãosabia? - retomou Severino. Pois fique sabendo que eu sou amigo nãodo Chefe de Polícia como do Interventor. O doutor Pimentel, sempreque eu vou lá, não me deixa sair do palácio sem que antes me sirvamum cafezinho. Os presentes desataram a rir. Era demais. Sargento Za-carias não se conteve investindo furioso sobre o potoqueiro. - Têjepreso enrolão da peste! Então, você amigo de autoridade? Você amigodo Chefe de Polícia, amigo do Interventor? Agora você vai me provar oque disse! Dias depois Severino viajava a contra gosto para Fortaleza,onde vinha testar seu relacionamento com o Chefe de Polícia e o In-terventor Menezes Pimentel.

Passados alguns anos Severino Lira alugava o pardieiro onde an-tes havia funcionado o Hotel Bitú, na Praça da Sé, montando ali o Ho-tel Campina Grande. Corrigira-se, perdendo o costume de tratar aspessoas por amigo ou amizade.

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o SOLDADO FAVELA

Favela constituia uma discrepância entre os soldados da corpo-raçâo. Quando a violência era uma praxe na polícia ele evitava come-tê-Ia.

Num preso não se bate, costumava dizer para os companheirosde farda. Procurava dissuadir aos bêbados e desordeiros, só em últimocaso levando-os para a cadeia. Essa maneira de proceder do soldadoFavela tornava-o benquisto na comunidade sertaneja. Todos o acata-vam sem objeções. Refletia-se na própria forma de tratamento que lhedispensavam. Pois, enquanto os outros soldados eram chamados demeganhas, o mesmo já não acontecia com Favela. Chamavam-no,amistosamente, de seu Favela ou de soldado Favela.

O fato passou a ser objeto de debate entre os ginasianos da ci-dade, os futuros doutores na ciência do Direito. Eles discutiam emseus bate-papos se o fato do indivíduo ser analfabeto poderia impe-dí-lo de conscientizar-se quanto ao cumprimento dos deveres sociais.Se afora a leitura não havia outros meios de chegar-se a conscientiza-ção das criaturas. E, como não podia deixar de ser, vinha o exemplodo soldado Favela.

Ora, o soldado Favela era analfabeto. Era negro. No entanto, es-tava por se ver outro igual na polícia. Comportamento exemplar. Ga-nhava em civilidade dos oficiais, que sabiam ler e esçrever. Onde,pois, os óbices do analfabetismo? Contudo, o fato de ser analfabeto senão prejudicava Favela impedindo-o de ter conhecimento de seus de-veres de soldado e de cidadão, prejudicava-o quanto às vantagens daprofissão. Ele estava velho na corporação e não passava de soldadoraso. O motivo alegado em seu desfavor era sempre o mesmo: seranalfabeto! Até que veio o Estado Novo, época em que a violênciapassou a ser exercitada mais do que nunca no meio da soldadesca.Por último houve dispensas. Tiraram a farda daqueles consideradoscomo inadequados para o serviço militar. Uns, por serem bêbados in-veterados; outros, por serem velhos ou defasados. Favela foi excluído- conforme alegram - por ser analfabeto.

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SARGENTO PORTO CAPTURA UM LOBISOMEM

Um lobisomem andava metendo medo aos notívagos em Lavrasda Mangabeira. Todas as sextas-feiras de meia noite em diante amarmota saía pelas ruas a grunir em desespero, terminado por desa-parecer rumo ao Rabo da Gata, a zona das raparigas. A ocorrência pa-ra muitos era considerada uma pilhéria.

Ora, um lobisomem no ano de 1934... Na certa uma brincadeirade mau gosto. Porque o tempo dos lobisomens, das mulas sem cabe-ça, das almas doadoras de botijas ficara para trás. Agora, só mesmoos tolos dariam crédito a tais aparições. Contudo, não deixava de servexatório para os transeuntes de altas horas terem de se deparar comaquela assombração, cheia de chocalhos, coberta de couros de bode ea grunir desesperadamente. Quando nada, levavam um bruto susto.Sargento Porto, Delegado de Polícia em Lavras, avisado do aconteci-mento não dormiu no ponto. Convocou os dois soldados do destaca-mento e sem perda de tempo iniciou a caça ao lobisomem. Até quenuma dessas sextas-feiras, antes mesmo dos galos abrirem o canto, omalassombrado foi descoberto embaixo dos tamarindeiros do mercado.

Têje preso lobisomem da peste! - gritou o delegado. E fique sa-bendo que nesta terra tem autoridade.

Ato contínuo caíram todos sobre o preso aplicando-Ihe um semnúmero de porretadas. O lobisomem acovardou-se. Que era de paz.Era gente boa. Que o deixassem ir embora. Suplicou ainda que guar-dassem sigilo sobre o acontecido. Caso contrário ele estaria perdido.Feita a vistoria deu-se o inesperado. Por trás do disfarce com os cou-ros de bode, a contorcer-se de dores, não estava outro senão o Barbo-sa, diretor da agência dos Correios e Telégrafos, um solteirão tido ehavido como de conduta exemplar .

A surpresa foi geral.Mas, o Senhor seu Barbosa! - recriminou o sargento. Fazendo

um papel destes? Quem diria ... Embora os pedidos de sigilo, a notíciasobre o acontecimento espalhou-se na cidade mais rápido do que ascartas e os telegramas expedidos pela repartição do Barbosa.

Meses depois ele era transferido para outra agência dos Correiose Telégrafos, deixando com o sargento Porto a fama de haver desmis-tificado um lobisomem.

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o DELEGADO QUE PRENDEU UM CAVALO

Agostinho Fernandes dos Reis, Delegado de Polfcia em Maran-guape, era autoridade que levava muito a sério as suas atribuições deoffcio. Sendo analfabeto e de cor esforçava-se por superar estes se-nóes tornando-se o mais diligente dos delegados de polícia interiora-nos. A função dava-lhe status, uma vez que depois do juiz e do prefei-to era o delegado a autoridade de maior representação na cidade. Issoera por demais lisonjeiro para uma criatura que viera do nada

Agostinho sabia tirar proveito da situação a qual fora elevado, fa-zendo valer a sua autoridade. Zelava pela ordem e pelos bons costu-mes. Bêbado e desordeiro com ele era na cadeia Dessa sua norma deação nem mesmo os irracionais escapavam.

Ora, certa vez apareceu em Maranguape um cavalo a fazer es-trepolias. O equino que era raçudo andava solto pelas praças a correre a devorar a grama dos jardins. Em vão os fiscais da Prefeitura procu-raram quem era o proprietário do animal. O cavalo era fujão. Viera cer-tamente de algum lugar distante.

Informado da ocorrência Agostinho ordenou: prenda-se o cavalo!E o equino foi preso e recolhido à cadeia pública.O fato pelo seu ineditismo foi noticiado em todos os jornais do

Brasil: o Delegado de Polfcia de Maranguape mandou prender um ca-valo!

Uma vez informado do sucedido o proprietário do equino apres-sou-se em resgatá-Io. Teve, porém, de pagar carceragem, taxa de lim-peza e diárias pela alimentação do preso.

Outro feito de Agostinho que muito deu o que falar foi a deten-ção em Maranguape de um moedeiro falso, fato acontecido no ano de1933. Antes o espertalhão havia alastrado o comércio de Fortaleza de tomoedas de dois mil réis por ele cunhadas, numa ilegal concorrênciacom a Casa da Moeda. J

Ao chegar em Maranguape o falsário foi logo descoberto pela di- ~ligente autoridade policial.

Agostinho desconfiou da presença daquele sujeito alto, magro,vestido de escuro, trazendo pendurada à mão uma bolsa de barbeiro.Um malfazejo, certamente, disse ele de si para si.

Abordou o estranho. Não era outro senão o moedeiro falso.O Chefe de Polfcia ao tomar conhecimento da ocorrência baixou

portaria elogiando o delegado de Maranguape. Ele havia conseguido o46

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que não haviam logrado conseguir os delegados da Capital: botar asmãos no moedeiro falso.

o CÚ DO PEIXE

Quando presidente da República, o general Eurico Gaspar Outravisitou o Ceará, onde foi recebido de braços abertos pelo desembarga-dor Faustino de Albuquerque, governador do Estado. Houve muita festacom soldados e estudantes a cantar e a marchar pelas ruas de Forta-leza 1\10dia seguinte ao da chegada Faustino ofereceu a Outra umalmoço no Palácio da Luz. Do cardápio constava um ensopado de pira-rucu no leite de côco, quitute muito do gosto do governador. Outra co-meu do pirarucu, gostou, logo perguntando: - mas, que peixe gostosoé este? - Pirarucu! - responde Faustino com a boca cheia. E Outrasem compreender: - Como é, tiraram o cú do peixe? - Tiraram! - re-tomou Faustino. E continuaram os dois a comer pirarucu até cair decostas.

NÃO GOSTAVA DE HOMEM

•o delegado Fiúza andava de olho em certo malandro que apare-

cera em sua zona distrital, em Fortaleza. Vestindo camisa listrada co-mo no samba-canção, o desocupado andava se insinuando junto aomulherio. E, embora não hovesse nenhuma queixa contra ele, a suapresença não escapara às vistas da autoridade policial, zelosa pelaconservação dos bons costumes.

Fiúza logo mandou buscar o forasteiro para efeito de averigua-ções. Era um direito que lhe assistia. Pois, naqueles tempos de autori-tarismo, a autoridade policial podia deter a qualquer um para averigua-ções.

Depois de três dias de molho, caso nada apurado, mandava o de-tido embora. Quando muito um pedido de desculpas. Houvera engano.

O malandro chegou na delegacia acompanhado de dois :tiras. O47

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delegaao interrompeu por instantes o papo animado que mantinhacom os amigos visitantes para dar inicio às investigações. Mas, cornoiniciar se não havia denúncia alguma contra o forasteiro? Começou porexaminá-Io da cabeça aos pés.

Sabe - disse de inicio a autoridade - sabe que eu não gosto dehomem que anda de camisa listrada? - Pois eu doutor, respondeu omalandro - eu não gosto de homem é de jeito nenhum!

Os outros malandros - os amigos do delegado - explodiram emgargalhadas. E Fiúza, que por sua vez gostava de repentes e de ane-dotas, não teve outro jeito senão rnandá-ío embora.

o CAPITÃO ANTÔNIO PEREIRANO ANEDOTÁRIO JUAZEIRENSE

Era um personagem de muitas anedotas o Delegado Especial daterra do padre Cicero. Embora a sua graça de batismo fosse AntônioPereira de Menezes, o cujo dito teimava por assinar Menez em vez deMenezes. E quando perguntado pelo motivo da opção, ele respondiaque era por ser filho único, Tivesse outros irmãos seria Menezes. Mas,como era filho único, era Menez.

Ora, Antônio Pereira de Menezes - ou de Menez - sempre sedestacou pelas suas presepadas. Pouco conhecedor do idioma pátrioderam-lhe, ainda quando tenente, uma anspençada, o soldado Papa-gaio.

Papagaio era considerado um dos inferiores mais letrados da"briosa" cabendo-Ihe afora os deveres próprios do oficio, corrigir a lin- •guagem do superior. Certa vez, na Praça do Ferreira, o tenente ordenaao anspençada: - Vá ali meu Papagaio e me traba uma caixa de fófi!Fófi, não! - corrigiu Papagaio. O nome é fosco! É fófi! - insistiu Antô-nio Pereira. É fosco! - retornou Papagaio. Achegaram-se curiosos inte-ressados na discussão. Pereira de Menez escolhe um deles corno juiz.

Como é mesmo o nome: - é fófi ou é fosco? Nem é fófi nem éfosco, responde o julgador. O nome é fósforo!

Poderia ter optado por uma outra prosódia, pois, de acordo corn aortografia da época se escrevia fósforo com ph. Mas não quis.

Pois é, Antônio Pereira de Menez, agora Capitão de Policia e48

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Delegado Especial em Juazeiro, quem se julga uma capacidade, umaespécie de Rui Barbosa tardado,

Ao sargento Porto, comandante do destacamento de Lavras daMangabeira, chama para uma admoestação. O subordinado andara

• espalhando que o comandante além de burro era doido. - Olhe sar-gento, disse Antônio Pereira - eu ainda não sou doido, mas, temoqualquer dia ficar. - Sim Senhor! - responde o subordinado. - Sargen-to, eu sou tão inteligente que às vezes eu digo comigo mesmo: hojeesta cabeça vai estourar! Não é possível que ela não estoure com tan-ta inteligência ... - Sim Senhor, repete o subordinado. - Agora, sargen-to, bata continência e desapareça da minha frente. Os gaiatos da ci-dade do padre Cícero é que não reconheciam as pretensas qualidadesde espírito do capitão Antônio Pereira de Menez. E tanto não reconhe-ciam que não o largavam em seu anedotário. Improvisavam telegra-mas os mais jocosos, atribuindo-os à autoridade policial. Isso, em ple-no Estado Novo. De uma feita a primeira mensagem teria sido remeti-da pelo Chefe de Policia, o temível capitão Cordeiro Neto: - DelegadoEspecial em Juazeiro do Norte - prenda fulano pt Guarde sigilo pt As.Cordeiro Neto: Dias depois, cumprida em parte-a ordem recebida, An-tônio Pereira teria respondido ao superior: - Capitão Cordeiro Neto -Fortaleza - Prendi fulano pt Não encontrei sigilo pt Saudações - An-tônio Pereira de Menez. Pelo visto ele tomara o tal sigilo como sendoalgum subversivo.

Outra mensagem mais cabulosa ainda dizia respeito a negocia-ção de um burro. Antônio Pereira havia encontrado na cidade de Auro-ra um espécime possante, logo se interessando em adquirí-Io. Era umburro cardão, novo, forte e bonito. O dono do animal não se opunhaem vendê-Io, exigindo, porém, do adquirente, que comprasse a canga-lha de uso da cavalgadura. - Mas, eu não vou precisar da cangalha,redarguiu o interessado na compra. Eu vou querer o burro é para as

• minhas viagens. Ele vai usar é sela. Por sua vez o dono do animal fezver que não iria precisar da cangalha sem o burro. O certo é que osdois não chegaram a um entendimento.

Passou o trem da RVC conduzindo Antônio Pereira de volta aJuazeiro. No meio da viagem ele se arrependera de não ter fechadonegócio com o dono do animal. Cometera uma besteira. Deixar decomprar um burro daquele, possante e relativamente barato, por causade uma insignificância, de uma simples cangalha? Logo ao descer dotrem em Juazeiro ele teria telegrafado ao dono do animal, nestes ter-mos:

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Durante o regime autoritário desembarcou no Mucuripe certo per-sonagem tido e havido como alta patente da nossa Marinha de Guer.a,afastado do posto de comando ao que se dizia por motivos políticos.Grande apreciador das peixadas cearenses o marujo era cadeira cativanos restaurantes da beira-mar. Os garçons esmeravam-se em serví-lo,pois o recém-chegado além de cortêz sabia ser generoso nas gorjetas.Tratavam-no por Almirante.

Já familiarizados com o personagem, os garços atreviam-se a ta-zer-Ihes suqestõss quanto às especialidades culinárias do estabeleci-mento. E faziam-nas usando muitas vezes de expressões usadas pe-los glutões cearenses: - Olhe Almirante este camurupim no leite decõco; está uma delfcia! Este a gente come até cair de costas. Outro,por sua vez recomendava um ensopado de garoupa. - Este, Almirante,a gente come até ficar triste. Acontece que o nosso lobo do mar nãoera almirante! A sua patente ficava um pouco para trás. Ele era, sim,contra-almirante, e não Almirante.50

Sr. fulano de tal- Aurora-CE.Resolvi ficar burro pt Aceito cangalha ptSaudações vg Capitão Antônio Pereira de Menez

Contudo, a mais perversa dessas inv~ncionices envolvi~ certasenhorita do "soçaite" juazeirense, conhecida pelo mau hálito queexalava. Em dança com a moça, num dos salões elegantes da cidade,Antônio Pereira não parava de fungar, asfixiado com a fedentina. - Eda ponte, capitão! - disse a beldade. - Mas, de que ponte, moça? -Da ponte que o dentista botou na minha boca. E Antônio Pereira muitosério: - Então andaram cagando debaixo dessa ponte.

O capitão Antônio Pereira de Menez, personagem central de tan-tas histórias alegres, era um mulato baixo, buchudo e ~~ito pr~sa, ,in-capaz de qualquer ato de violência Não se sabe de pnsoes arbitráriase nem de surras em presos que ele houvesse ordenado. Molestava aspessoas, sim, mas, tão só com as suas pabulagens. Que o padrinhoClcero o guarde no seu reino. Ele merece.

o CONTRA-ALMIRANTE

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Como gostasse de ser exato ele fez, certa vez, a corrigenda paraum dos garçons que o serviam. Que não o chamasse de Almirante,pois ele não era Almirante. Ele era, sim, contra-Almirante. Sem com-preender a corrigenda e querendo ser agradável, o garçom por sua vezse disse também contra-Almirante. - Mas, como, você contra-Almiran-te? - indagou o lobo do mar. E o garçom sem cair em si: - é, eu sem-pre fui contra estes filhos dumas éguas!

o GENERAL, O BANCO E UM TOMBO

Que não se tome por grego o general Eurípedes, porque de gregoele só possui mesmo o nome. É um sobralense de boa cêpa, setentão,e por este motivo, afastado das fileiras do Exército. Agora na reserva,o general em vez do quartel freqüenta a nova Praça do Ferreira, fruin-do os bons ventos que sopram do mar. Mas, não é só. Porque o gene-ral troca idéias com os amigos eventuais, fala das suas vivências, ouveo que os outros têm a contar. O banco no qual ele tem assento cativoé um banco eclético, batizado de Banco da Sabedoria. Banco da Sa-bedoria? Mas, por que esse nome? Porque o banco funciona como sefosse universidade, dada a variedade de conhecimentos de seus fre-quentadores. No banco há de tudo. Professores, militares reformados,escritores, ecologistas, filosofantes, um médico, comerciantes, servido-res públicos, um ex-bancárío, um estudante e até um sacerdote sus-penso de ordens, o padresito Nélio Façanha ele Abreu. Dá gosto escu-ta-los a dissertar sobre suas especialidades. Ouvir-se, por exemplo, osecologistas Ferreira e Edgard defendendo as excelências da raiz dovelame e da casca da catuaba no tratamento dos males da velhice. Ou

• o médico Rômulo Teófilo a fazer revelações sobre a Fortaleza de on-tem. Natanael, ex-bancârio, com suas histórias fantasiosas, históriaspara boi dormir, como diriam os matutos.· Geraldo Nobre, escritor, pro-fessor e burocrata, se mantém preso à leitura dos jornais, atendendo,no entanto, às indagações que de quando em quando lhe são dirigi-das. Contudo, o ponto alto das dissertaçQes fica a cargo de dois filoso-tantes do banco: o bacharel José Ribeir.o.âe Matos e o coronel OscarAraújo. Eles alteiam-se pelos mistérios ~o~ Cosmos aventando a exis-tência de um poder central, no caso Déus. Já o professor Tamburini,que diz não acreditar no Supremo, investe, no entanto, furiosamente,contra o Criador, acusando-o pelos desacertos cometidos.

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Ora, professor, se Deus não existe, então, por que acusá-Io? Nãoparece urna incoerência? E o Fialho? São 30 anos de bons serviçosprestados gratuitamente no Juizado de Menores. Ele está para se apo-sentar, bem merecendo uma condecoração. Pelo menos uma medalhadaquelas que a Cãmara de Vereadores concedeu ao Mozart SorianoAderaldo, por que ninguém sabe. Outros, ainda, ocupam lugar no ban-co, papeando sobre os mais variados assuntos. Entre estes podemosapresentar o Edilson Brasil, que é um pé de boi na Praça; o estudante tAntônio Barros da Frota; o Firmo; o Fernando Medeiros; o Regino, tu-rista que vai aos States só para comer cachorro quente e beber coca-cola, coisas que podiam, perfeitamente, ser feitas na José de Alencar;o professor Elmo e os comerciantes Aprígio Quixadá Linhares e Bal-duíno Pequeno Pereira. Sim, íamos nos esquecendo do professor Pi-res, autor de um interessante livro de memórias enfocando os mestresdo antigo Liceu do Ceará. E o General? Bem, Eurípedes é homem demuitas vivências, incluindo as de viagem. Esteve no Canadá Avistou-se com o Papa. Todavia, de suas memórias nenhuma tão grata comoa dos tempos em que esteve no Piauí comandando a Polícia Militar.Dias de glória! Era de vê-Io nas paradas do 7 de Setembro, a espadadesembainhada, a marchar garbosamente frente à soldadesca, pelasruas ensolaradas de Teresina. As mulheres batiam-lhe palmas, joga-vam-lhe flores, enquanto a meninada cantava, gaiatamente, a Cançãodo Soldado:

Marcha soldaaoCabeça de papel!Tu marcha direitoSe não entra no quartel!

Dias inesquecíveis só foram aqueles! O general estava a recordá-Ias quando aconteceu-lhe o inesperado. Ele caminhava pela LiberatoBarroso perdido em suas locubraçôes. Havia uma pedra no meio darua, esquecida pela Cagece, e ele não viu. Tropeçou e no tombo fratu-rou o braço, exatamente aquele com o qual desembainhava a espadanos dias de gala piauienses, o braço direito. O acidente aconteceu emfrente ao Lord Hotel. Muito solícitos os funcionários do estabelecimen-to apressaram-se em socorrê-Io. No entanto, para o general era comose nada houvesse lhe acontecido. Eurípedes mantinha-se indiferente ador, estoicamente, como um grego de verdade e não de Sobral.52

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rNDICE

Padres e Soldados ••••••••••••••••••••••••••••••••• 5O padre Verdeixa e suas diabruras. • • • • • • . • • • . • • • • • • • • • • 7Uma de 40 por duas de 20 • • • • • • • • • • • • • • • • • • . • • • • • • • • • 8A mulher do bispo • • . . • • • . . • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 9Os apelidos de Aracati: O Bolo Enfeitado e o Envelope Aéreo • • 9Sacrilégio em Pacatuba • • . • • • • • • • • • • • • . • • . . • • • • • . • • • . 10As terras de São Raimundo • • • • • • • • • • • • • • • • • • • . • • • • . • • 12As excomunhóes de Dom José • • • • • • • • . • • . • • • • • • • • • • • • 12Padre Pedra e suas comparações • • • . • • . • • • . • • • • • • • • • • • 13O milagre. • • . . • • . • • . . . • . • . • • . • • • • • • . • • • • . • • • • • • • • 14O gás do Coração de Jesus . . • . • . • • • • • • • • • • • • • • • • • . • • • 15O pecado da vaidade •••••••••..••••••••••.••••••••• 16O rapé do Coletor • • . • • • • • • • • • . • • • . . • . • • . • • • . • • • • • • • 16Capim para os três •• • • . • • • . • . • • • • • • • • • • • . • . • • • • • • . • 17Padre Félix e seu jumento • • • . . . . • • • . • • • • • • • • • • • • • • • • • 17Os filhos do padre Quinderé • • • • • • • • • • • . . • • • . • • • • • • • • • 18Padre Ouinderé e as mangas . • . • • . . • • • • • . • • • • • • • . • • • • • 19Padre Ouinderé: Céu e Inferno • • • • • • . • . . • • • . • • • . • • • • . • . 19Padre Ouinderé e as mulheres sem sunga • . • . . • • • . . • • • • • • 20Padre Ouinderé e os palpites • . . • . . • • • • • • • • • • • . • • • • • • • . 20O Diabo era o santo. • • • • • . • • • . . • • • • . • • • • . • • • • • • • . • • 21Só o galo poderia comer . • • • • . • • • • • • • • • . • . • • . • • • • • • • • 22Padre Florêncio e o IFOCS • . • • . • • • • • • • • • . • • . • • • • • • • • • 23Não quis conversa com Deus . • . • • • • • • . . . • . • • . . • • • • • • • • 23Padre Medeiros: cabras e bodes • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 24As irmãs de Cristo • • • . • . . • • . • . • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 24As excomunhões • • • • • . • • . • • • • . . • • . . • . • • • • • • • • . . • • • • 25Padre Alberto, poeta-maior da Pacatuba • • • • . • . • • • • • • • • . • . 26O sabiá da Pacatuba • • . . . • • . • • . . • • . • • • • . . • • • • . • • • • • • 28Padre Alberto e os artifícios de linguagem ••••••. • . • • • • • •• 30Padre Meio e a lavadeira. • • . • • • . . • • . • • • • • • • • • . • • • •• • • 31O Pai Nosso dos banqueiros. • • • • • . . . • . • • • • • • • • • • • • • • . 31

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Juarez, o Leão do Norte - A batalha contra a saúva - Um deba-te que não houve • • • . • • • . • . . • • • • . • . • • . . . . • • • . • . . . 32

Maneiras de dizer • • • • • • • • • • • • . • • . . . • . . . . . . . . . . . . . • . 34Fora de forma, volver! •.• . . • • • . • • . . • • • • • • . . . . . . • • . . • . 35A doença do medo • • • . • • • • . . . • • . . • . . . . • . • . . • . . • . . . . 35Doutor Floro, o justiceiro •••••.•.••.••..........•..• _. 36O francês do Espinheiro •••••••••.••••••. • . . . • . . • . • • • 38Chico de Brito e a lei dos açoites . . • . • . . • . . . . . • • . . . . . . .. 38O delegado Mecenas e o sumiço dos presos . . • • • . • . . • . . • . . 39Pits Búraco • . • • . . • • • • . • . . • • . . . • • . . . . • • • . . . . . . . . . . . 39Os buracos do Raimundinho • . • • • • . . • . . . . • • . . • . . . . . . . . 40Os mortos não votavam . • . • • . . . • • • • . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41Meia volta, volver! •••..•••.•....••••.....•.....•.... 42O amigo do Interventor • • • • • • . • • . • . • . . . . . . . . . . • . . . . .. 43O soldado Favela. • . • . • • • . . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . • . • 44Sargento Porto captura um lobisomem . . . . • . . . . . . . . . . . . .. 45O delegado que prendeu um cavalo • . . . . . . . . • . . . . . • . . . . . 46O cú do peixe •.••..••••..•.•....••......... _ .... _ . 47Não gostava de homem . • • • • • . . . • . . • • • • . . . . . • . . . . . . . . 47O capitão Antônio Pereira no anedotário juazeirense . . . • . • . .. 48O contra-Almirante •..•....•..•.••...•......•...•... 50O general, o banco e um tombo • . . . • . • . • . • . . . . . • • • . . . .. 51

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