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45 SALVADOR DOMINGO 16/10/2011 #185 / DOMINGO, 16 DE OUTUBRO DE 2011 REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE JUANA ELBEIN DOS SANTOS CAPITÃES DA AREIA GOYA LOPES BRICELETS « Pagode na BERLINDA Projeto que proíbe letras ofensivas às mulheres, com votação prevista para 26/10, suscita debates na cidade

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Reportagem sobre o PL Antibaixaria, da deputada Luiza Maia (PT)

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44 SALVADOR DOMINGO 16/10/2011 45SALVADOR DOMINGO 16/10/2011

#185 / DOMINGO, 16 DE OUTUBRO DE 2011REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE

JUANA ELBEIN DOS SANTOS CAPITÃES DA AREIA GOYA LOPES BRICELETS «

Pagode naBERLINDAProjeto que proíbe letras ofensivas àsmulheres, com votação prevista para26/10, suscita debates na cidade

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20 SALVADOR DOMINGO 16/10/2011 21SALVADOR DOMINGO 16/10/2011

a peleJa DADEPUTADAcoNtra oDIABO doMACHISMOTexto TATIANA MENDONÇA [email protected] FERNANDO VIVAS [email protected]

Projeto da deputada Luiza Maia, do PT, o “PL Antibaixaria”quer proibir o uso de recursos públicos para contratação deartistas que desvalorizem, incentivem a violência ouexponham as mulheres. A iniciativa tem provocado polêmica O

cantor da banda de axé se esforça, bate palmi-

nha,pedecoro, rebola.Emvão.Sóumamocinha

muito animada responde aos seus apelos. Talvez

para salvar a noite, resolve, por fim, tocar uns pa-

godes, mesmo admitindo não sabê-los direito. É

quando se dá a transformação. Repentinamen-

te, o público acorda como de um sono profundo. A empolgação

persiste com os funks libidinosos que ocupam o tempo enquanto a

apoteose não vem. Passa da uma da manhã de uma sexta-feira

qualquer quando a Saiddy Bamba enfim sobe ao palco da The Best

Beach, na Ribeira, para delírio dos fãs – melhor, das mulheres, ab-

soluta maioria.

Alex Max abre o show cantando o hit da banda, Sim, Sim, Sim,

Não, Não, Não:

Esse é o novo jeito das mulheresresponderem sim ou não.Oh, preste atenção, não é com a mão.Responda com o seu popozão

Do alto das suas sandálias de salto,

elas orgulhosamente movimentam mi-

croshorts e microvestidos como se não

houvesse amanhã. Também não se fazem

de rogadas quando a nova canção do gru-

po é apresentada:

Você machuca o meusentimento.Eu te machuco de forapra dentro,de fora pra dentro,de fora pra dentro

A coreografia, os leitores podem imagi-

nar. No arremate, Alex diz que “machuca-

dadeamornãodói”.Opúblicoaplaude.Se

cairnogostodopovo,amúsicairájuntar-se

a outras pérolas do pagode baiano, como

Patinha (“me dá, me dá patinha/ me dá,

sua cachorrinha”) e Mulher é igual a lata

(”mulher é igual a lata/ Um chuta e o outro

cata”), ambas da Black Style, pródiga em

versos de igual quilate.

Em março, numa sessão especial na As-

sembleia Legislativa em homenagem ao

Dia Internacional da Mulher, a deputada

Luiza Maia (PT) apresentou pela primeira

vez a ideia de proibir o uso de recursos pú-

blicos para a contratação de artistas que

“desvalorizem, incentivem a violência ou

exponham as mulheres a situação de cons-

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20 SALVADOR DOMINGO 16/10/2011 21SALVADOR DOMINGO 16/10/2011

a peleJa DADEPUTADAcoNtra oDIABO doMACHISMOTexto TATIANA MENDONÇA [email protected] FERNANDO VIVAS [email protected]

Projeto da deputada Luiza Maia, do PT, o “PL Antibaixaria”quer proibir o uso de recursos públicos para contratação deartistas que desvalorizem, incentivem a violência ouexponham as mulheres. A iniciativa tem provocado polêmica O

cantor da banda de axé se esforça, bate palmi-

nha,pedecoro, rebola.Emvão.Sóumamocinha

muito animada responde aos seus apelos. Talvez

para salvar a noite, resolve, por fim, tocar uns pa-

godes, mesmo admitindo não sabê-los direito. É

quando se dá a transformação. Repentinamen-

te, o público acorda como de um sono profundo. A empolgação

persiste com os funks libidinosos que ocupam o tempo enquanto a

apoteose não vem. Passa da uma da manhã de uma sexta-feira

qualquer quando a Saiddy Bamba enfim sobe ao palco da The Best

Beach, na Ribeira, para delírio dos fãs – melhor, das mulheres, ab-

soluta maioria.

Alex Max abre o show cantando o hit da banda, Sim, Sim, Sim,

Não, Não, Não:

Esse é o novo jeito das mulheresresponderem sim ou não.Oh, preste atenção, não é com a mão.Responda com o seu popozão

Do alto das suas sandálias de salto,

elas orgulhosamente movimentam mi-

croshorts e microvestidos como se não

houvesse amanhã. Também não se fazem

de rogadas quando a nova canção do gru-

po é apresentada:

Você machuca o meusentimento.Eu te machuco de forapra dentro,de fora pra dentro,de fora pra dentro

A coreografia, os leitores podem imagi-

nar. No arremate, Alex diz que “machuca-

dadeamornãodói”.Opúblicoaplaude.Se

cairnogostodopovo,amúsicairájuntar-se

a outras pérolas do pagode baiano, como

Patinha (“me dá, me dá patinha/ me dá,

sua cachorrinha”) e Mulher é igual a lata

(”mulher é igual a lata/ Um chuta e o outro

cata”), ambas da Black Style, pródiga em

versos de igual quilate.

Em março, numa sessão especial na As-

sembleia Legislativa em homenagem ao

Dia Internacional da Mulher, a deputada

Luiza Maia (PT) apresentou pela primeira

vez a ideia de proibir o uso de recursos pú-

blicos para a contratação de artistas que

“desvalorizem, incentivem a violência ou

exponham as mulheres a situação de cons-

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trangimento”, o que acabou virando pro-

jeto de lei, batizado de PL Antibaixaria.

Luiza, 59, casada com o prefeito de Ca-

maçari, Luiz Caetano, aparece no seu ga-

binete na Assembleia carregando uma es-

trelinha dourada com o número 13 no pes-

coço e só começa a falar depois de passar

hidratantenasmãos.Proclama-se feminis-

ta desde os 13 anos e diz que o projeto faz

parte desta ideologia. “A violência não é só

a porrada, o estupro. Há também a violên-

cia simbólica, que é mais difícil de abordar.

Há uma campanha de dizer que nós somos

objetos, que somos iguais a cadelas. Isso

reforça uma situação de inferioridade em

que a sociedade historicamente nos colo-

cou. O primeiro passo é que o dinheiro pú-

blico não financie essa desqualificação”.

Pelo projeto, a Secretaria Estadual de

PolíticasparaaMulherapresentariaanual-

menteumalistacomosnomesdosartistas

atentatórios, mas, para facilitar a fiscaliza-

ção, Luiza sugere que os gestores públicos,

no momento de contratação das bandas,

estabeleçam cláusulas no contrato que

proíbam a execução das tais canções ofen-

sivas – que, a deputada lembra, abundam

também no forró, vide Bomba no Cabaré,

da Mastruz com Leite:

Jogaram uma bombano cabaré...Voou pra todo cantopedaço de mulher.Foi tanto caco de putavoando pra todo lado.Dava pra apanhar de pá,de enxada e de colher!

A votação do projeto de lei está prevista

para o dia 26 deste mês, mas o resultado é

imprevisível. Luiza diz estar sofrendo um

verdadeiro “bombardeio” na Casa. “Foi

muita chacota, muita piadinha de todos os

lados”. De alguns parlamentares ouviu

que o projeto era inconstitucional, de ou-

tros, que se tratava de censura. A resposta,

para ambos os argumentos, ela tem na

pontadalíngua.“Essaleiregulamentariao

capítulo dos Direitos das Mulheres presen-

tenaConstituiçãobaiana,queestáaíhá20

anos para inglês ver. Lá está dito que o Es-

tadodeveimpediraveiculaçãodeimagens

que atentem contra a dignidade da mu-

lher. E sobre essa questão da censura, fa-

la-semuitonaliberdadedeexpressão,mas

o direito individual não pode estar acima

do coletivo”.

Saindo dos corredores da Assembleia,

o projeto virou acalorada discussão de

botequim.Oscantoresecompositoresde

pagode logo disseram-se vítimas de pre-

conceito, e a deputada, como não seria

difícil prever, acabou virando letra de...

pagode. A música, batizada Vem pro meu

mundo, é fruto da parceria entre Robsão,

do Black Style, e Márcio Brasil, da banda

O Troco:

A deputada quer barrarum gosto popular, masnão vai conseguir.Porque o povo não vaideixar(...).Vem pro meu mundo.Barrar o pagode é umabsurdo.Eu disse ia, ia, eu sou fielà putaria.Ia, ia, o meu pagode éalegria.Cadê a saúde?

Cadê a educação?Cadê a segurança?Quer barrar meupagodão?Eu disse ia, ia, sou fielà putaria

Clebemilton Nascimento nunca foi pa-

godeiro, mas também diz ter sido discrimi-

nado desde que encasquetou de estudar o

gênero.Osolharestortosvieramdemuitos

de seus pares na universidade. “Não há

muitos espaços acadêmicos que se abrem

para acolher discussões como essa. As pes-

soas achavam o projeto interessante, mas

nunca tinha ninguém para me orientar”.

Acabou encontrando um lar no Neim

(NúcleodeEstudos Interdisciplinaressobre

a Mulher), da Ufba. Lá, tornou-se mestre

no ano passado com a dissertação Entre-

laçando Corpos e Letras: representações de

gênero nos pagodes baianos. Estava inte-

ressado em descobrir por que a presença

das mulheres é tão forte como temática

das letras (foram objeto de mais de 75%

dasmúsicasestudadas)equalera,afinal,a

representação que advinha daí. Concluiu

que,se“opanoramadopagodenaBahiaé

eminentemente heterogêneo, musical-

mente falando, a investida sobre a mulher,

sobre seu comportamento, é, na maioria

das letras, desqualificadora, exigindo uma

atitude submissa e demonizando as con-

quistas feministas,oque,comoumaonda,

vai penetrando nas camadas populares”.

Em entrevista à Muito, Clebemilton re-

chaça a crença de alguns de que os fãs de

pagode não estão ligando para o que está

sendo dito na música. A prova maior é que

o corpo sempre reproduz o que diz a letra.

“Nenhumdiscursoéideologicamenteneu-

tro. Embora o pagode seja um produto di-

recionado ao entretenimento, não está

imune a isso. Há um sistema de opressão

que se dá a partir dessas letras, e a lingua-

gem verbal acaba, de alguma forma, legi-

timando a violência física”.

Para o professor, a “objetificação do cor-

po”damulhernopagodeétãointensaque

não sobra espaço para outras representa-

ções.“Omais incríveléqueopagodenasce

do povo, da periferia, mas, quando conse-

gue penetrar num espaço mais dominan-

te, não vai entrar como faziam os blocos

afro, que tinham um discurso de afirmação

da identidade étnico-racial. Eles vão entrar

com um discurso extremamente conserva-

dor, machista”.

Posto deste modo, é bastante previsível

sua opinião sobre o PL Antibaixaria. “Sou

favorável. Está se passando uma imagem

de que o projeto está tentando censurar, e

não é isso. O que se pretende é que o re-

cursopúblicosejainvestidoembandasque

não desqualifiquem a mulher”. Sua única

preocupaçãoéoquepoderiaacontecerde-

pois da aprovação da lei. “Esses artistas te-

riam que passar por um julgamento, o que

ésempremuitosubjetivo.Éumfiltromuito

complicado de resolver”.

Outra questão que intriga o professor, e

igualmente persiste sem resposta, é a ra-

zão que faz as mulheres se empenharem

tanto nos shows em “encenar a própria

desqualificação”. “A gente julga, mas não

sabemosoqueelasefetivamentepensam.

Quando elas dançam como cachorras, tal-

vezestejamdesconstruindoanormadomi-

nante, que as coloca no espaço do privado,

do casamento, da maternidade. Então tal-

vez ali seja um espaço de subversão”. E aí

vem o conflito entre a cultura mais burgue-

sa, “que censura esta mulher”, e a cultura

afro-baiana, que a “acolhe, por não ver a

sexualidade como um tabu”.

Não é, então, uma postura paternalista

doEstadoprotegermulherescrescidasein-

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trangimento”, o que acabou virando pro-

jeto de lei, batizado de PL Antibaixaria.

Luiza, 59, casada com o prefeito de Ca-

maçari, Luiz Caetano, aparece no seu ga-

binete na Assembleia carregando uma es-

trelinha dourada com o número 13 no pes-

coço e só começa a falar depois de passar

hidratantenasmãos.Proclama-se feminis-

ta desde os 13 anos e diz que o projeto faz

parte desta ideologia. “A violência não é só

a porrada, o estupro. Há também a violên-

cia simbólica, que é mais difícil de abordar.

Há uma campanha de dizer que nós somos

objetos, que somos iguais a cadelas. Isso

reforça uma situação de inferioridade em

que a sociedade historicamente nos colo-

cou. O primeiro passo é que o dinheiro pú-

blico não financie essa desqualificação”.

Pelo projeto, a Secretaria Estadual de

PolíticasparaaMulherapresentariaanual-

menteumalistacomosnomesdosartistas

atentatórios, mas, para facilitar a fiscaliza-

ção, Luiza sugere que os gestores públicos,

no momento de contratação das bandas,

estabeleçam cláusulas no contrato que

proíbam a execução das tais canções ofen-

sivas – que, a deputada lembra, abundam

também no forró, vide Bomba no Cabaré,

da Mastruz com Leite:

Jogaram uma bombano cabaré...Voou pra todo cantopedaço de mulher.Foi tanto caco de putavoando pra todo lado.Dava pra apanhar de pá,de enxada e de colher!

A votação do projeto de lei está prevista

para o dia 26 deste mês, mas o resultado é

imprevisível. Luiza diz estar sofrendo um

verdadeiro “bombardeio” na Casa. “Foi

muita chacota, muita piadinha de todos os

lados”. De alguns parlamentares ouviu

que o projeto era inconstitucional, de ou-

tros, que se tratava de censura. A resposta,

para ambos os argumentos, ela tem na

pontadalíngua.“Essaleiregulamentariao

capítulo dos Direitos das Mulheres presen-

tenaConstituiçãobaiana,queestáaíhá20

anos para inglês ver. Lá está dito que o Es-

tadodeveimpediraveiculaçãodeimagens

que atentem contra a dignidade da mu-

lher. E sobre essa questão da censura, fa-

la-semuitonaliberdadedeexpressão,mas

o direito individual não pode estar acima

do coletivo”.

Saindo dos corredores da Assembleia,

o projeto virou acalorada discussão de

botequim.Oscantoresecompositoresde

pagode logo disseram-se vítimas de pre-

conceito, e a deputada, como não seria

difícil prever, acabou virando letra de...

pagode. A música, batizada Vem pro meu

mundo, é fruto da parceria entre Robsão,

do Black Style, e Márcio Brasil, da banda

O Troco:

A deputada quer barrarum gosto popular, masnão vai conseguir.Porque o povo não vaideixar(...).Vem pro meu mundo.Barrar o pagode é umabsurdo.Eu disse ia, ia, eu sou fielà putaria.Ia, ia, o meu pagode éalegria.Cadê a saúde?

Cadê a educação?Cadê a segurança?Quer barrar meupagodão?Eu disse ia, ia, sou fielà putaria

Clebemilton Nascimento nunca foi pa-

godeiro, mas também diz ter sido discrimi-

nado desde que encasquetou de estudar o

gênero.Osolharestortosvieramdemuitos

de seus pares na universidade. “Não há

muitos espaços acadêmicos que se abrem

para acolher discussões como essa. As pes-

soas achavam o projeto interessante, mas

nunca tinha ninguém para me orientar”.

Acabou encontrando um lar no Neim

(NúcleodeEstudos Interdisciplinaressobre

a Mulher), da Ufba. Lá, tornou-se mestre

no ano passado com a dissertação Entre-

laçando Corpos e Letras: representações de

gênero nos pagodes baianos. Estava inte-

ressado em descobrir por que a presença

das mulheres é tão forte como temática

das letras (foram objeto de mais de 75%

dasmúsicasestudadas)equalera,afinal,a

representação que advinha daí. Concluiu

que,se“opanoramadopagodenaBahiaé

eminentemente heterogêneo, musical-

mente falando, a investida sobre a mulher,

sobre seu comportamento, é, na maioria

das letras, desqualificadora, exigindo uma

atitude submissa e demonizando as con-

quistas feministas,oque,comoumaonda,

vai penetrando nas camadas populares”.

Em entrevista à Muito, Clebemilton re-

chaça a crença de alguns de que os fãs de

pagode não estão ligando para o que está

sendo dito na música. A prova maior é que

o corpo sempre reproduz o que diz a letra.

“Nenhumdiscursoéideologicamenteneu-

tro. Embora o pagode seja um produto di-

recionado ao entretenimento, não está

imune a isso. Há um sistema de opressão

que se dá a partir dessas letras, e a lingua-

gem verbal acaba, de alguma forma, legi-

timando a violência física”.

Para o professor, a “objetificação do cor-

po”damulhernopagodeétãointensaque

não sobra espaço para outras representa-

ções.“Omais incríveléqueopagodenasce

do povo, da periferia, mas, quando conse-

gue penetrar num espaço mais dominan-

te, não vai entrar como faziam os blocos

afro, que tinham um discurso de afirmação

da identidade étnico-racial. Eles vão entrar

com um discurso extremamente conserva-

dor, machista”.

Posto deste modo, é bastante previsível

sua opinião sobre o PL Antibaixaria. “Sou

favorável. Está se passando uma imagem

de que o projeto está tentando censurar, e

não é isso. O que se pretende é que o re-

cursopúblicosejainvestidoembandasque

não desqualifiquem a mulher”. Sua única

preocupaçãoéoquepoderiaacontecerde-

pois da aprovação da lei. “Esses artistas te-

riam que passar por um julgamento, o que

ésempremuitosubjetivo.Éumfiltromuito

complicado de resolver”.

Outra questão que intriga o professor, e

igualmente persiste sem resposta, é a ra-

zão que faz as mulheres se empenharem

tanto nos shows em “encenar a própria

desqualificação”. “A gente julga, mas não

sabemosoqueelasefetivamentepensam.

Quando elas dançam como cachorras, tal-

vezestejamdesconstruindoanormadomi-

nante, que as coloca no espaço do privado,

do casamento, da maternidade. Então tal-

vez ali seja um espaço de subversão”. E aí

vem o conflito entre a cultura mais burgue-

sa, “que censura esta mulher”, e a cultura

afro-baiana, que a “acolhe, por não ver a

sexualidade como um tabu”.

Não é, então, uma postura paternalista

doEstadoprotegermulherescrescidasein-

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dependentes que estão pouco ou nada ofendidas com tais can-

ções? “É uma questão que se coloca. Tenho certeza de que essas

mulheres não ligam para isso. Quem se preocupa é parte do mo-

vimento feminista. Mas o importante é pensar nos efeitos para

nossa cultura de manter a mulher nesse espaço de objetificação. E

aí a lei cabe como medida protetiva”.

A jornalista argentina Graciela Natansohn, professora da Fa-

culdade de Comunicação da Ufba e que pesquisa relações de

gênero, concorda. “O espírito do projeto é apenas ser coerente

com políticas estatais de proteção à mulher. Se o Estado gasta

dinheiro para desenvolver projetos de atendimento especiali-

zado, nada mais natural do que esse mesmo governo tome me-

didas culturais no sentido de reprimir manifestações de violên-

cia contra a mulher”.

Apesar de não acompanhar de perto a cena do pagode na ci-

dade – tirando as inevitáveis audiências públicas –, Graciela tem

explicação para a participação das mulheres nos shows. “O ma-

chismo é uma ideologia que não tem sexo. Há mulheres e homens

machistas. Nós temos a obrigação de discutir isso”.

FASCINANTEO maestro Fred Dantas é um entusiasta do pagode baiano.

Ritmicamente, considera-o “fascinante”. “É a música mais viva,

mais real. O axé está morrendo por falta de renovação, de ou-

sadia. Parou no ai-ai-ai, ui-ui-ui. Os empresários não deixaram

que aquela linha mais progressista que Daniela Mercury inau-

gurou com Feijão com Arroz evoluísse. Com o pagode, é o con-

trário. Está, cada dia mais, incorporando novas informações, so-

noridades, soluções”.

Ao ouvir distante a música A Revolta, de Raghatoni, teve uma

visão. “É o nosso jazz, nosso blues, é a voz baiana”. Quando Fred

começou a decifrar a letra, veio o “horror” diante de uma história

“nada edificante”:

Aí, a sacanagem lá rolava,Fiquei maluco com tanta piriguete.O som do “ragha” que rolava.Uma subia, outra descia, o pau comia.E eu comendo minha água.Encontrei mais uns parceiros,torrei meu dinheiro e a horapassava...Olha que onda da zorra.Eu estava ali e a cabeça em casa,querendo logo chegar pra pegar minhanegona e dar minha “porrada”

Por essas e outras, acredita que o projeto da deputada Luiza

Maia é bem-vindo. “Ela não pretende, como uma espécie de Hi-

tler, proibir que se toque o pagode. Só quer impedir que as ver-

bas dos nossos impostos sejam usadas para promover esse tipo

de coisa”. Fred acredita que tais composições se mantêm por

conta de um imbricado “sistema mercantilista” que inclui em-

presários, radialistas e, claro, o gosto das pessoas. “Não há mú-

sica que ganhe corpo sem a cumplicidade da população. Se, nos

anos 1940, progrediu aquela coisa da dor de cotovelo, de May-

sa, de chora para lá, chora para cá, é porque a população estava

romântica. E a população de Salvador está se comportando co-

mo uma letra de pagode. Está ocupando as calçadas com chur-

rasquinho de um real na jante, tomando cerveja, comendo ran-

go de um real, suco e hambúrguer. A vida em Salvador está na

promoção, por R$ 1,99”.

E, se é assim, é até natural que o duplo sentido – tradição que

acompanhaamúsicapopularbrasileiradesdequeosambaésamba

– esteja dando lugar a uma linguagem cada vez mais direta, com

referênciasexplícitasàsexualidade.“É comodizGerônimo.Umpas-

so adiante vai ser simplesmente a prática de sexo no palco, ao vivo,

comaspessoasaplaudindoembaixo.Alémdacoisadasexualidade,

há também uma apologia às drogas. Porque o camarada diz assim:

‘Pega o prato, faz a linha/ dá um tiro na farinha’ (da banda

Klak-Bumm). Isso é apologia explícita ao uso de cocaína”.

O maestro não considera que a discussão em torno do PL revive

oeternoembateentrealtaebaixacultura.“Emcomparaçãoaisso,

o samba de roda de Santo Amaro, o maculelê, qualquer atividade

tradicional pode ser considerada alta cultura. O que há é uma so-

ciedadequevivecomumaperspectivadevidamuitocurta,ondeas

pessoas são assassinadas e nada é apurado, onde a vida parece

extremamente provisória... Embalando essa coisa toda tem a pro-

liferaçãodasigrejasquepregamarealizaçãododesejoali,emcima

da bucha. Você vai no pagode, realiza explicitamente todas aque-

As fotos desta

matéria foram

feitas durante

show do grupo

Saiddy Bamba,

na casa de

espetáculos The

Best Beach, na

Ribeira

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dependentes que estão pouco ou nada ofendidas com tais can-

ções? “É uma questão que se coloca. Tenho certeza de que essas

mulheres não ligam para isso. Quem se preocupa é parte do mo-

vimento feminista. Mas o importante é pensar nos efeitos para

nossa cultura de manter a mulher nesse espaço de objetificação. E

aí a lei cabe como medida protetiva”.

A jornalista argentina Graciela Natansohn, professora da Fa-

culdade de Comunicação da Ufba e que pesquisa relações de

gênero, concorda. “O espírito do projeto é apenas ser coerente

com políticas estatais de proteção à mulher. Se o Estado gasta

dinheiro para desenvolver projetos de atendimento especiali-

zado, nada mais natural do que esse mesmo governo tome me-

didas culturais no sentido de reprimir manifestações de violên-

cia contra a mulher”.

Apesar de não acompanhar de perto a cena do pagode na ci-

dade – tirando as inevitáveis audiências públicas –, Graciela tem

explicação para a participação das mulheres nos shows. “O ma-

chismo é uma ideologia que não tem sexo. Há mulheres e homens

machistas. Nós temos a obrigação de discutir isso”.

FASCINANTEO maestro Fred Dantas é um entusiasta do pagode baiano.

Ritmicamente, considera-o “fascinante”. “É a música mais viva,

mais real. O axé está morrendo por falta de renovação, de ou-

sadia. Parou no ai-ai-ai, ui-ui-ui. Os empresários não deixaram

que aquela linha mais progressista que Daniela Mercury inau-

gurou com Feijão com Arroz evoluísse. Com o pagode, é o con-

trário. Está, cada dia mais, incorporando novas informações, so-

noridades, soluções”.

Ao ouvir distante a música A Revolta, de Raghatoni, teve uma

visão. “É o nosso jazz, nosso blues, é a voz baiana”. Quando Fred

começou a decifrar a letra, veio o “horror” diante de uma história

“nada edificante”:

Aí, a sacanagem lá rolava,Fiquei maluco com tanta piriguete.O som do “ragha” que rolava.Uma subia, outra descia, o pau comia.E eu comendo minha água.Encontrei mais uns parceiros,torrei meu dinheiro e a horapassava...Olha que onda da zorra.Eu estava ali e a cabeça em casa,querendo logo chegar pra pegar minhanegona e dar minha “porrada”

Por essas e outras, acredita que o projeto da deputada Luiza

Maia é bem-vindo. “Ela não pretende, como uma espécie de Hi-

tler, proibir que se toque o pagode. Só quer impedir que as ver-

bas dos nossos impostos sejam usadas para promover esse tipo

de coisa”. Fred acredita que tais composições se mantêm por

conta de um imbricado “sistema mercantilista” que inclui em-

presários, radialistas e, claro, o gosto das pessoas. “Não há mú-

sica que ganhe corpo sem a cumplicidade da população. Se, nos

anos 1940, progrediu aquela coisa da dor de cotovelo, de May-

sa, de chora para lá, chora para cá, é porque a população estava

romântica. E a população de Salvador está se comportando co-

mo uma letra de pagode. Está ocupando as calçadas com chur-

rasquinho de um real na jante, tomando cerveja, comendo ran-

go de um real, suco e hambúrguer. A vida em Salvador está na

promoção, por R$ 1,99”.

E, se é assim, é até natural que o duplo sentido – tradição que

acompanhaamúsicapopularbrasileiradesdequeosambaésamba

– esteja dando lugar a uma linguagem cada vez mais direta, com

referênciasexplícitasàsexualidade.“É comodizGerônimo.Umpas-

so adiante vai ser simplesmente a prática de sexo no palco, ao vivo,

comaspessoasaplaudindoembaixo.Alémdacoisadasexualidade,

há também uma apologia às drogas. Porque o camarada diz assim:

‘Pega o prato, faz a linha/ dá um tiro na farinha’ (da banda

Klak-Bumm). Isso é apologia explícita ao uso de cocaína”.

O maestro não considera que a discussão em torno do PL revive

oeternoembateentrealtaebaixacultura.“Emcomparaçãoaisso,

o samba de roda de Santo Amaro, o maculelê, qualquer atividade

tradicional pode ser considerada alta cultura. O que há é uma so-

ciedadequevivecomumaperspectivadevidamuitocurta,ondeas

pessoas são assassinadas e nada é apurado, onde a vida parece

extremamente provisória... Embalando essa coisa toda tem a pro-

liferaçãodasigrejasquepregamarealizaçãododesejoali,emcima

da bucha. Você vai no pagode, realiza explicitamente todas aque-

As fotos desta

matéria foram

feitas durante

show do grupo

Saiddy Bamba,

na casa de

espetáculos The

Best Beach, na

Ribeira

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Page 8: Pagode

26 SALVADOR DOMINGO 16/10/2011 27SALVADOR DOMINGO 16/10/2011

las aberrações e depois dá um pulinho ali,

dá 50 contos ao pastor e pronto. É a loteria

da fé”.

Contrário ao projeto de lei, o cantor e

compositor Márcio Victor, do Psirico, de-

fende a liberdade de expressão e também

a de escolha. “Não precisa ter uma lei que

proíba, porque isso lembra a ditadura, é

um pensamento arcaico. Quem gosta de

pagode, escolha as músicas que não têm

esse apelo. Cada um ouve o que quer. Lá

nos Estados Unidos, os rappers já cantam

coisas muito piores”.

Para ele, os políticos deveriam estar

preocupados com outras questões. “A gen-

te devia refazer todas as leis de assistência

à mulher. Veja o Iperba, sempre lotado. É

preciso respeitar as mulheres. Nem todo

mundonopagodeaceitaessadeofender”.

Apesar do discurso, Márcio admite que vez

por outra canta as tais músicas ofensivas

nosshows.“Tocosóalgumas,porqueopo-

vo gosta. É a linguagem do povo”.

Em entrevista por e-mail, Léo Santana,

da banda Parangolé, que ganhou desta-

que nacional com as inocentes Rebolation

e Tchubirabirom, não esclareceu se é a fa-

voroucontraoPLAntibaixaria.“Temgente

que curte a dancinha, tem gente que curte

oduplosentido,temgentequecurteoaxé.

Tem gosto para tudo e espaço para todos,

respeito e defendo o movimento do pago-

de. O Parangolé não canta duplo sentido,

cantoasmúsicas,masmudoaletra.Asmu-

lheres merecem todo respeito e carinho.

Sou um grande admirador das mulheres,

porém Carnaval sem duplo sentido não se-

rá o mesmo”.

DANÇA DO BUMBUMFilhote tardio da chula e do samba de

roda do Recôncavo, o pagode começou a

ganhar força na Bahia com o grupo Gera

Samba,rebatizado,nadécadade90,como

É o Tchan. Músicas como o megassucesso

Dança do Bumbum, que instava as mulhe-

res a balançarem “a poupancinha”, pare-

cemhojecoisadecriançapertodePerereca

Pisca, do Black Style:

Quando chego na boateEla se excita,levanta a garrafa deuísque,a perereca delaPisca,pisca, pisca, pisca, pisca

Como lembra o pesquisador Clebemil-

ton, se as décadas de 1960 e 1970 foram

marcadas por “discursos contestatórios” –

o que se refletia na produção musical dos

tropicalistas e, posteriormente, no surgi-

mento dos blocos afro, com maior expres-

são para o Ilê Aiyê –, hoje esse movimento

está sendo esvaziado.

O poeta e compositor José Carlos Capi-

nan, militante do Centro Popular de Cultu-

ra da UNE, em sua época de estudante de

direito da Ufba, lembra que é do tempo do

“proibido proibir” e, portanto, tem certos

receios em relação ao PL Antibaixaria. Não

concorda com “censuras estéticas”, mas

tampoucoapoiaqualquertipodeincentivo

à violência.

Há mais de dez anos lutando para ver

nascer o Museu Nacional da Cultura

Afro-brasileira, a verdade é que Capinan

não encontra razão para o projeto ter-se

cercado de tanto alvoroço. “Precisamos

consagrar aquilo que trabalha para mudar

esse contexto, para não ficar uma perse-

guiçãomoralista,puritana.Agenteprecisa

decretar mais escolas e educar pela arte,

pela música, pela poesia. E aí vencer o ne-

gativo por essas afirmações”. «designgráfico:tinaguedes