PAINEL: RETRATOS DO JUDICIÁRIO VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ... · * Painel realizado na 55ª Feira do...
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* Painel realizado na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, no Santander Cultural. Mediação: Des. Donato João Sehnem.
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PAINEL: RETRATOS DO JUDICIÁRIO - VIOLÊNCIA DOMÉSTICA:
PERFIL E PERSPECTIVAS∗∗∗∗
DESEMBARGADOR DONATO JOÃO SEHNEM – Dirijo uma saudação
especial a todos os que aqui acorreram e que prestigiam, dessa forma, o Memorial do
Tribunal de Justiça do Estado, que todos os anos tem se inserido no contexto da Feira do
Livro, sempre com um tema do interesse tanto do Judiciário quanto de toda a cultura
jurídica do Estado e também da sociedade em geral. Para hoje, nós temos um tema que é
comum em toda a sociedade, está nas ruas, nas escolas, nas famílias, em todas as partes em
que há convivência social: a violência doméstica.
Para este evento, nós organizamos um painel diversificado, para o qual
convidamos uma pessoa do Judiciário, Dra. Camila Luci Madeira, uma Delegada de
Polícia, Dra. Tatiana Pereira Bastos, da Delegacia da Mulher, um psiquiatra, Dr. Paulo
Seixas, e um professor, Sr. Aloísio PEDERSEN, que exatamente está em uma área de
grande envergadura e que necessita de uma presença constante não só de autoridades, mas
principalmente de professores com concepções pedagógicas adequadas e que possam
criar, dentro da sociedade, começando pelas escolas, um nível de compreensão para esse
enfrentamento.
Evidentemente não se pode querer exigir uma solução exclusivamente das
autoridades constituídas - Judiciário, Polícia, Ministério Público -, pois é um problema da
sociedade e, como tal, tem de ser compreendido e enfrentado, especialmente com um
movimento de índole geral de todos os segmentos para que sejam encontradas soluções
adequadas.
Como todo painel - e agora me dirijo aos ilustres painelistas -, há limitação de
tempo, até porque não é uma palestra individual. Cada palestrante terá 20 minutos, no
máximo 25 minutos. Sei que cada um teria a possibilidade de falar durante uma hora ou
mais, mas solicito a compreensão de todos.
Também quero saudar os presentes, em especial o Des. Garibaldi, um veterano do
Judiciário, que conhece a Instituição de longa data e durante muito tempo trabalhou
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dentro da perspectiva de solução pacífica da sociedade; o Dr. Délio, que também nos
honra com a sua presença; a Dra. Márcia, nossa Juíza-Corregedora; a Dra. Márcia
Azambuja Giordano, representante da OAB, cuja atuação é indispensável para a jurisdição
constitucionalmente e tão importante para a sociedade; o Professor Carlos Alberto Cibils,
que também sempre nos honra nesses eventos; a Dra. Débora, da Delegacia da Mulher,
por quem tenho um especial carinho, pois nos conhecemos há muito tempo.
Feita essa apreciação inicial, destaco que a organização é da Dra. Mary
Biancamano com sua equipe do Memorial, cujos integrantes estão aqui presentes e fazem
este trabalho, que tenho a honra de coordenar.
Passo a palavra, inicialmente, para a Juíza de Direito Camila Luci Madeira, filha de
um advogado amigo meu.
DRA. CAMILA LUCI MADEIRA – Eu gostaria de agradecer aos organizadores
do evento pelo convite, que, considero, prestigia a Magistratura do Interior do Estado e da
Grande Porto Alegre. Eu sou Juíza de Direito há onze anos, não atuo na Capital, mas,
sim, em São Leopoldo. A minha competência é uma Vara Criminal especializada em
violência doméstica e em infância e juventude. O meu público, portanto, está sujeito à
violência doméstica: mulheres, crianças e adolescentes.
As principais vítimas da violência dentro da unidade familiar são a criança e o
adolescente. Às vezes, mesmo quando não são vítimas diretas, o fato de presenciar a
violência no âmbito familiar produz efeitos na sua formação. Quais os prejuízos? Dano
psicológico, desenvolvimento emocional afetado, baixo rendimento escolar, fuga da
residência, abandono do lar, vivência em situação de rua com sujeição à dependência de
drogas e exploração sexual. Em São Leopoldo, a população de adolescentes de rua é
grande, e muitos verbalizam em audiência que não voltam para casa em razão da
negligência familiar e da situação de violência na família.
Analisar o contexto da violência doméstica só no âmbito regional é algo que
prejudica; temos que começar a analisar a situação da mulher no mundo inteiro. A mulher,
por razões culturais, religiosas e legais, é discriminada em vários países. Estes são os
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principais regramentos internacionais relativos à violência doméstica: a Convenção das
Nações Unidas sobre Direitos da Criança e a Convenção sobre a Eliminação de todas as
Formas de Discriminação contra a Mulher. Essas são as duas convenções mais assinadas
no mundo inteiro. A das crianças só não foi assinada por dois países (Estados Unidos e
Somália); a da mulher foi assinada por 186 países. Na Convenção sobre Eliminação de
todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, não consta o tema específico da
violência doméstica. Ela será tratada na Declaração sobre Eliminação de Violência contra
a Mulher e na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher.
Caso Maria da Penha. A Lei nº 11.340 é também chamada de Lei Maria da Penha.
Todos sabem que Maria da Penha é uma mulher que foi vítima do marido, que por duas
vezes tentou matá-la. Poucos sabem, no entanto, que Maria da Penha teve que recorrer a
um tribunal internacional, no caso a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que
é reconhecida pelo Brasil, para reclamar da forma como o País estava conduzindo o
processo em relação ao seu marido. Já fazia 17 anos de tramitação do processo, e ele não
tinha ainda sido julgado. Essa Corte, então, intimou o Brasil para se manifestar, e o Brasil
não se manifestou no processo. O que aconteceu? A Corte, ante a documentação que ela
forneceu, entendeu que 17 anos não era um tempo razoável para uma pessoa ser julgada e
condenou o Brasil a pagar uma indenização para ela e recomendou ao Brasil que mudasse
a sua legislação de forma a proteger mais a mulher. Foi um caso emblemático sob o ponto
de vista da responsabilização internacional de um Estado, o Brasil, por meio de um
sistema adicional e subsidiário de proteção a direitos humanos no âmbito interno. Então,
ela teve que ir para fora do País pedir um reconhecimento da sua situação.
Eu trouxe aqui uma frase da Flávia Piovesan, que trata dos direitos humanos no
Direito Internacional. Ela, analisando os casos do Brasil nas Cortes Internacionais, diz que
hoje os direitos humanos não são violados por razões políticas, como em razão do Golpe
Militar; eles são violados por situações de pobreza, exclusão social ou pertencimento a
grupos vulneráveis, como é o caso das mulheres, crianças e adolescentes.
Normativa nacional. No âmbito interno, quais as leis que regulam essa questão da
violência familiar? O Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei nº 11.340. O Estatuto
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diz que a criança tem direito à integridade física, psíquica e moral, tem direito à dignidade,
pondo-a a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou
constrangedor. O art. 6º da Lei Maria da Penha expressamente diz que a violência
doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos
humanos e amplia o conceito de violência. Violência já não é mais só a violência física,
mas a sexual, a patrimonial, a moral, a psicológica, que causa dano emocional e diminuição
da autoestima.
Uma das principais inovações da Lei Maria da Penha foi autorizar a prisão
preventiva. O que é isso? Grande parte dos crimes envolvendo violência doméstica são
ameaças. Antes da lei, um Juiz não podia prender provisoriamente um homem que
estivesse ameaçando a ex-mulher ou a ex-namorada, a mulher ou a namorada. Isso porque
a ameaça tem uma pena baixa e é punida só com detenção, e a lei vedava a prisão por
detenção.
Outra coisa que a lei trouxe foram as medidas protetivas em favor da vítima. Hoje
o Juiz pode dar uma série de medidas para uma pessoa que está sendo ameaçada por
questão de gênero. Quais são essas medidas? Afastamento do lar, proibição de aproximar,
proibição de frequentar determinados lugares, como, por exemplo, o local de trabalho da
vítima. E a medida mais grave é a prisão.
A lei também vedou, ou seja, não permite mais a aplicação da transação e da
suspensão condicional do processo previstas na Lei nº 9.099. O que quer dizer isso? No
Juizado Especial Criminal, muitos casos envolvendo violência doméstica eram arquivados
se o réu pagasse uma cesta básica. Os grupos de defesa das mulheres entendiam que isso
era uma banalização da violência e fizeram uma forte pressão para ser alterado, o que
aconteceu na Lei nº 11.340. Também, em caso de condenação, a pessoa não pode fazer
um pagamento para uma entidade fixada pelo Juiz como forma de cumprir a pena. Esse
tipo de pena agora está expressamente excluído da lei.
Críticas. A lei agora exige inquérito policial, e o inquérito policial é mais formal.
Isso pode levar à demora na conclusão do processo e, em alguns casos, levar à prescrição.
O que é a prescrição? É quando um crime, em razão da demora na tramitação do
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processo, não pode mais ser objeto de condenação do réu. O réu, então, é beneficiado em
razão da prescrição.
Ausência de previsão na lei de conciliação e mediação. Essa lei reforça muito o
aspecto punitivo, o aspecto de condenar o agressor. Então, ela não prevê conciliação e
mediação, embora também não as proíba. O Tribunal de Justiça tem orientado os Juízes
no sentido de que façam as audiências de conciliação, que têm sido muito exitosas.
A lei prevê tratamento da vítima e do acusado, mas isso depende muito de política
pública e de um Estado com recursos para disponibilizar grupos multidisciplinares, com
terapeutas e assistentes sociais, para tratar a vítima e o acusado.
Agora, fornecerei alguns dados de São Leopoldo, do Juizado em que trabalho, de
janeiro a setembro de 2009, e de Porto Alegre, o Juizado de Violência Doméstica da
Capital, de abril a dezembro de 2008. Os dados de Porto Alegre me foram fornecidos pelo
Prof. Rodrigo Azevedo, da PUC, a quem agradeço, e apurados por um grupo de pesquisa
em políticas públicas de segurança e administração da justiça penal da PUC com apoio do
CNPQ. Fazendo este painel, eu vi quão parecidos são os dados, como vocês verão.
Em São Leopoldo, hoje a violência doméstica abrange 15% de todos os processos
criminais em tramitação; 33% são crimes de menor potencial ofensivo, que são crimes
com a pena máxima de 2 anos; 13% são outros crimes, dentre eles o contra a liberdade
sexual – estupro, atentado violento ao pudor; 5% são por porte de arma; 4% por tráfico;
24% por crimes contra o patrimônio – roubo, furto, estelionato, receptação; e 6% por
homicídio. Vê-se que houve um aumento da violência doméstica, que, agora, está pegando
uma parcela maior.
Os legisladores criam leis para tornar o Judiciário mais rápido, mas o que acontece
é que mais gente vem ao Judiciário, facilita o acesso. Isso aconteceu com o Juizado
Especial Criminal, o Juizado Especial Cível e o Juizado Federal. Aumentou a chance de as
pessoas virem, e mais pessoas vêm. Hoje, de cada grupo de três brasileiros, um tem um
processo judicial.
Outro dado importante aqui da pesquisa de Porto alegre é sobre a escolaridade da
vítima e do agressor. Verifica-se que a maioria das pessoas que nos procura tem
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escolaridade baixa. Temos a informação de que a violência doméstica é igual em qualquer
classe social. No entanto, esses gráficos que trago retratam o contrário: quem vem ao
Judiciário não tem ensino médio completo, a maioria é de não alfabetizados, com ensino
fundamental incompleto ou completo e ensino médio. O índice de pessoas com pós-
graduação é de 0%. O próximo gráfico traz dados quanto à escolaridade do acusado em
relação aos dados de Porto Alegre.
Tipos penais. Quais são as principais ocorrências? Observem como são parecidas!
As principais são lesão corporal e ameaça, como acontece em São Leopoldo. Na injúria,
varia um pouco.
Manifestação da vítima. Este dado é bem importante. Apenas os sinalizados em
vermelho no gráfico representam os processos que prosseguem. O cinza e o lilás
representam que a vítima, perante o Juiz, depois de fazer a ocorrência, diz que não quer
mais prosseguir. Do universo de 100% em Porto Alegre, só 10% viram efetiva ação penal.
É muito comum as vítimas depois não prosseguirem, voltarem atrás. Em São Leopoldo, o
índice é de 14,7%.
Condenações. Da totalidade dos inquéritos, apenas 0,3% resultam em condenação
em Porto Alegre, e 0,5% em São Leopoldo. Por que tão poucas condenações? Primeiro,
porque o percentual já é bem reduzido, já que apenas 10% e 14,7% dos processos seguem.
Outros dados. Mesmo prevendo a lei uma discriminação positiva, ou seja, um
tratamento diferenciado para a vítima, deve o magistrado, no curso da ação penal, aplicar
princípios do processo e direito penal: garantias do acusado. Que princípios são esses?
Presunção da inocência e, na dúvida, absolvição. Esse é um princípio básico do Direito
Penal. Outro dado: não raro, no curso do processo, a vítima altera a sua versão dos fatos,
o que enseja absolvição. Na Delegacia, elas fornecem uma versão e, perante o Juiz, já
mudam um pouco, muitas vezes porque o processo demorou mais tempo, outras vezes
porque se reconciliaram e não têm mais interesse em uma punição do agressor.
Outro caso é a dificuldade da prova nos referidos casos. Esses crimes acontecem
no ambiente doméstico, em que é difícil haver testemunhas. O Tribunal nos orienta no
sentido de ficarmos atentos: não é o fato de a vítima ter uma versão e o réu ter outra que
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vai gerar uma absolvição; o Juiz deve analisar caso a caso, as circunstâncias daquele casal,
do modo como ele vive.
Concluindo, em relação às questões de gênero, persiste a dicotomia do espaço
público e do espaço privado, sem a garantia dos direitos humanos fundamentais à mulher
de forma satisfatória, prática que perpetua o ciclo vicioso de discriminação e violência
iniciado no ambiente familiar. Através da lei, busca-se alterar a realidade social, sendo o
processo de transformação lento e gradual, mas que já vem produzindo efeitos.
Para encerrar, refiro uma frase que não é de um filósofo, não é de uma criança,
não é de um adolescente, nem de uma vítima; é a frase de um agressor, uma frase
interessante porque resume uma série de aspectos e nos faz pensar se só a pena resolve. A
realidade social tem que mudar não só com a lei. Vou contar a história desse agressor. O
Ministério Público ingressou com uma ação para destituir o pai do poder familiar sobre
seus cinco filhos. O que aconteceu? A mulher dele pediu uma ordem de separação de
corpos porque era agredida por ele. O Juiz da Família de São Leopoldo deu essa ordem,
mas ele, em uma noite, invadiu a casa, quis agredir a esposa, segundo ele, mas acabou
agredindo a filha menor, e fugiu. Chamaram a Polícia, e a mulher foi levar a filha pequena
ao hospital. Ele retornou para casa e agrediu o filho mais velho, porque ele havia
intercedido em favor da mãe. Eis o que ele disse: “Referiu sobre infância triste, onde
presenciou o genitor agredindo a genitora, que aguentava, estava sempre firme. Essa é a
postura que ele espera de uma mulher: apanhar sempre firme”. Por fim, ele verbalizou:
“Quando a pessoa não tem carinho de pai e mãe, a pessoa fica perturbada. Às vezes, me
sinto perturbado. É de geração, passa de pai para filho. A gente não recebe carinho e não
tem emoção para dar”.
Muito obrigada.
DESEMBARGADOR DONATO JOÃO SEHNEM – Agradeço a participação
da Dra. Camila Luci Madeira e passo a palavra para a Dra. Tatiana Pereira Bastos,
Delegada da Delegacia da Mulher.
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DRA. TATIANA PEREIRA BASTOS – Boa-tarde a todos. Agradeço o convite
que me foi feito para participar deste evento, que trata de um tema tão relevante, tão
importante não só para as mulheres, mas para toda a sociedade: a violência doméstica.
Como o nosso tempo é curto, eu vou ser bem objetiva, procurarei me deter mais
nos dados estatísticos da Delegacia da Mulher. Eu sou Delegada de Polícia há cinco anos e
estou na Delegacia da Mulher há aproximadamente quatro meses. É pouco tempo, vocês
podem pensar, mas eu já trabalho com violência doméstica desde que ingressei na Polícia,
porque ela não é uma realidade só das Delegacias da Mulher, mas de toda a Polícia Civil,
todas as Delegacias tratam de violência doméstica, embora não de uma maneira
especializada.
A violência doméstica, infelizmente, é um fenômeno social que persiste em todos
os países do mundo. De todas as formas de violência, acredito que ela é a mais cruel e
perversa, porque ocorre dentro do lar, em um ambiente que deveria ser acolhedor, de paz,
de descanso, de tranquilidade, mas transforma-se em perigo contínuo, porque a violência
doméstica, em regra, é realizada de forma continuada.
A Dra. Camila já falou bastante das convenções e pactos internacionais da ONU,
da OEA. De muitas delas o Brasil é signatário. Por não ter uma legislação que tratasse de
forma adequada o combate e a prevenção à violência doméstica até o advento da Lei
Maria da Penha, ele foi punido pela OEA e teve que, em 2006, fazer uma lei que tratasse
de maneira mais rigorosa esse problema. O Brasil, em 1988, iniciou as tratativas de
combate à violência doméstica. O art. 5º, inc. I, da Constituição Federal já diz que homens
e mulheres são iguais em direitos e obrigações, e o art. 226, inc. VIII, diz que o Estado
deve assegurar a assistência à família e combater a violência dentro das relações
domésticas e familiares.
As Delegacias de Polícia de Defesa e Proteção aos Direitos da Mulher surgiram no
ano de 1985 no Brasil, na capital paulista, e esta foi a primeira Delegacia da Mulher do
mundo. Hoje existem outras Delegacias em outros países, mas o Brasil foi o pioneiro
nisso. Em São Paulo, temos aproximadamente 130 Delegacias, o que dá mais ou menos
50% de todas as Delegacias da Mulher do Brasil, que chegam a 380. No Rio Grande do
Sul, a primeira Delegacia da Mulher foi criada em 1988, Delegacia na qual eu trabalho.
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Hoje, estão em funcionamento 11 Delegacias especializadas, fora toda a demanda que
todas as Delegacias de Polícia têm e registram diariamente. Existem, também,
aproximadamente 32 postos policiais de atendimento à mulher. Esses postos são
vinculados a Delegacias de Polícia, mas atendem de maneira especializada a mulher vítima
de todos os tipos de violência, não só a doméstica.
A Delegacia da Mulher foi a primeira política pública de enfrentamento da
violência contra a mulher. As Delegacias da Mulher foram uma experiência pioneira,
como eu falei para os senhores, genuinamente brasileira desde a sua criação, e
contribuíram para dar visibilidade ao problema da violência contra a mulher,
especialmente aquela ocorrida no âmbito doméstico.
Os movimentos femininos, principalmente na década de 70, fizeram uma grande
pressão não só nacionalmente, mas também internacionalmente para ver esta grande
conquista: não só uma legislação adequada, não só políticas de enfrentamento à violência
doméstica, mas também a criação, felizmente, de delegacias especializadas no atendimento
à mulher. Houve o reconhecimento pela sociedade, finalmente, embora tardio, da natureza
criminosa da violência baseada em diferenças de gênero à qual a mulher estava submetida.
Por muito tempo, nós - acho que até hoje - ouvimos o ditado popular de que “em briga de
marido e mulher, ninguém mete a colher”. Entendia-se que a violência doméstica era uma
questão privada, particular do casal. Hoje, felizmente, já há algum tempo, sabemos que
esse é um crime que afeta toda a sociedade, afeta as relações domésticas, afeta as crianças
e os adolescentes que convivem em um ambiente em que há violência.
As atividades da Delegacia da Mulher têm caráter não só repressivo, que é a
atuação precípua da Polícia Civil, mas também preventivo, pautado no respeito aos
direitos humanos e princípios do estado democrático de direito. Caráter preventivo
porque tem uma função pedagógica, a Polícia Civil tem também o papel de educadora
para a cidadania, comunicando técnicas, recomendando procedimentos e atitudes que
resultem em uma efetiva prevenção do crime. A nossa preocupação não é apenas
combater, repreender a violência doméstica após ela já ter ocorrido, mas hoje,
principalmente, é orientar essa vítima, encaminhá-la para uma rede de apoio. Muitos dos
nossos atendimentos não são propriamente de questões que a Polícia Civil pode resolver;
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são questões familiares, como separação, guarda de filhos. Nesse casos, encaminha-se
para a Defensoria Pública.
Em relação ao caráter repressivo, temos os procedimentos policiais. Hoje, a
grande maioria dos casos envolvendo violência doméstica é analisada por meio de
inquérito policial, o que é uma grande conquista, uma inovação da Lei Maria da Penha,
porque antes nós fazíamos os Termos Circunstanciados, que eram procedimentos
sumários, encaminhados diretamente ao Poder Judiciário sem todas as diligências
necessárias ao inquérito policial.
Prisões em flagrante e prisões preventivas também são inovações da Lei Maria da
Penha. Antes não podíamos, como a Dra. Camila bem elucidou, pedir a prisão preventiva
dos agressores, porque, na maioria dos casos, eram crimes de menor potencial ofensivo,
como ameaças, vias de fato, lesão corporal, que tinham pena reduzida.
A Lei nº 11.340, Lei Maria da Penha, que entrou em vigor em 22 de setembro de
2006 - foi publicada em 07 de agosto, mas teve uma vacatio de 45 dias -, trouxe, dentre
outras inovações, a medida protetiva de urgência. Quando a vítima chega ao balcão de
uma Delegacia para registrar uma ocorrência policial, ela já tem, sendo uma violência
doméstica, oportunidade de solicitar medidas protetivas de urgência. Embora a lei preveja
um prazo de 48 horas, na DM de Porto Alegre, elas são encaminhadas em 24 horas.
Quando é um caso muito urgente, no momento seguinte ao registro, colocamos a vítima
em uma viatura, pegamos essa medida protetiva e a encaminhamos diretamente ao Poder
Judiciário. Hoje mesmo, houve dois casos em que agimos dessa forma. Havendo o
deferimento (o Poder Judiciário analisa em 48 horas essa medida protetiva de urgência) e
havendo o descumprimento dessa medida protetiva – esse é um fato muito positivo para
nós –, além de acarretar o delito de desobediência, ele é um dos requisitos para a
solicitação da prisão preventiva do agressor. Cabe medida protetiva quando o agressor for
marido, ex-marido, companheiro, ex-companheiro, namorado ou ex-namorado da vítima.
A lei fala em relação íntima de afeto. No art. 5º, ela trata dessa forma. Há alguns casos em
que há divergência jurídica se cabe ou não a medida protetiva. Nós, na dúvida,
encaminhamos, ampliamos até um pouco a proteção, e o Poder Judiciário analisa. Se ele
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entender que não é o caso de violência doméstica, então ele vai indeferir essa medida, mas
igual nós fazemos o inquérito policial para esse caso.
Prisões em flagrante em Porto Alegre. Temos uma média de 15 prisões por mês
após o advento da Lei Maria da Penha. Em 2009, em março, foram 13 prisões em
flagrante; em abril, 18; em maio, 17; em junho, 15; e, em julho, 17.
Dados estatísticos da Delegacia da Mulher de Porto Alegre. No ano de 2004 –
portanto, antes da Lei Maria da Penha -, foram 6.237 registros na Delegacia. Notem que
esses registros foram aumentando gradativamente e, após a Lei Maria da Penha, a partir de
2007 até 2008, eles dobraram. Isso não quer dizer que a violência doméstica tenha
aumentado nesse período, mas, sim, que as mulheres se sentiram mais encorajadas a
denunciar, o que é muito positivo. Isso se deu não só pelos mecanismos todos que a Lei
Maria da Penha nos fornece - medida protetiva, prisão em flagrante, vedação da aplicação
das medidas despenalizadoras do Juizado Especial -, mas pela divulgação, porque a mídia
deu muita informação e deixou a mulher bem ciente dos seus direitos, fez com que ela se
reconhecesse vítima de violência doméstica e se sentisse encorajada a denunciar o agressor
com mais facilidade.
Os crimes mais registrados na Delegacia são lesão corporal, ameaça, crimes contra
honra – injúria, calúnia e difamação -, assédio sexual, estupro, atentado violento ao pudor,
agora juntos, porque houve recentemente uma alteração legislativa, e a conduta de
atentado violento ao pudor passou a integrar o tipo estupro. Então, hoje, tratamos não só
a conjunção carnal, mas todo ato libidinoso diverso da conjunção carnal como sendo
crime de estupro. As contravenções mais comuns – e temos muito delas – são as vias de
fato, que é aquela agressão que não provoca lesão, e a perturbação da tranquilidade.
Na Delegacia da Mulher, após a Lei nº 11.340, fazemos, por imposição legal,
acompanhamentos para a retirada de pertences pessoais da vítima. Fizemos, mais ou
menos, neste ano de 2009, 250 acompanhamentos. Então, nas segundas, quintas e sextas-
feiras pela manhã, em regra, fazemos os acompanhamentos de vítimas. Nos casos
urgentes, assim que a vítima chega à Delegacia, nós já fazemos esse acompanhamento.
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Defensoria Pública. Muitos dos casos têm que ser resolvidos via separação judicial,
há questões cíveis a serem resolvidas, e nós encaminhamos, então, essa vítima à
Defensoria Pública.
Casa de Apoio Viva Maria, albergues e abrigos. No caso de mulheres que não têm
como voltar para casa, uma vez que lá não têm segurança, elas são encaminhadas,
emergencialmente, às casas-abrigo. Infelizmente, as vagas ainda são bastante limitadas.
Após a Lei Maria da Penha, esses centros de referência para a mulher, essas casas-albergue
ampliaram o seu atendimento, aperfeiçoaram-se, mas ainda não é uma situação ideal para
se combater a violência doméstica.
Hospitais e centros de referência. Muitas mulheres chegam muito feridas, muito
lesionadas, e nós as encaminhamos imediatamente para um hospital. Temos, na Polícia
Civil, a Policlínica, que eventualmente atende as vítimas, embora deva atender somente os
policiais. Às vezes, as vítimas passam mal, desmaiam, estão grávidas, e a equipe médica
tem dado esse apoio.
Juizado da Violência Doméstica. Porto Alegre tem uma Vara Especializada, e nós
encaminhamos, então, todos esses procedimentos, inquéritos e termos circunstanciados,
ao Juizado Especializado. Cinquenta por cento das vítimas que se retratam em juízo
retornam para novo registro de ocorrência. A Dra. Camila estava exatamente falando que
infelizmente há um grande número de retratação, só que mais da metade dessas mulheres
acabam retornando para fazer novo registro, porque voltam a ser vítimas de violência. A
cada cem mulheres atendidas que registram ocorrência, dez (portanto, 10%) possuem
mais de três ocorrências registradas. A violência é continuada. Não adianta. Se a mulher
não tomar medidas para sanar, terminar ou pelo menos minorar o problema da violência
doméstica, ele não vai ser solucionado por si só. Ela terá que tomar uma medida, solicitar
ajuda, pensar em uma separação judicial, ou seja, terá que tomar iniciativa de resolver o
problema.
Reincidência. Nós não temos dados precisos sobre a violência doméstica, até
porque varia de crime para crime, mas pode-se dizer que essa reincidência cai para 10%
dos casos após o infrator, o agressor, ser interrogado em uma Delegacia de Polícia. Claro
que nós gostaríamos que não houvesse reincidência, mas isso não depende só da
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Delegacia de Polícia, mas de toda uma rede de apoio e de políticas de proteção à mulher.
Nos casos em que há notícia de dependência química, esse número sobe para 48%. Ou
seja, mesmo após ser ouvido na Delegacia, ser interrogado, em 48% dos casos, esse
agressor volta a delinquir, porque tem por trás da violência doméstica o uso abusivo de
álcool ou drogas.
Perfil da mulher vítima em Porto Alegre. Traçamos esse perfil com base em dados
da Delegacia da Mulher de Porto Alegre. Setenta e um por cento das mulheres estão em
idade produtiva, entre 18 e 40 anos. Sessenta e seis por cento possuem o primeiro grau
completo ou incompleto, 29% têm ensino médio, 2% têm ensino superior, e 3% são
analfabetas. Um dado importante no ensino superior é que as mulheres de alto poder
aquisitivo e classe social superior passaram a denunciar com muito mais frequência após o
advento da Lei Maria da Penha. Então, hoje é muito comum termos vítimas médicas,
advogadas, enfim de classes sociais superiores, o que não víamos antes da Lei Maria da
Penha, porque essas mulheres acabavam resolvendo seus problemas de violência
doméstica com psiquiatras, psicólogos, terapeutas, resolviam de outra forma, separavam-
se, mas não procuravam a Delegacia de Polícia. A maioria não tem qualificação
profissional, mas ainda assim possui uma renda, ainda que baixa, ou seja, a maioria
depende economicamente do agressor. Geralmente, possui de um a três filhos e não é
usuária de álcool ou drogas, ao contrário do agressor.
Agressor. Oitenta e sete por cento encontram-se em idade produtiva, de 18 a 40
anos. Sessenta e oito por cento têm o primeiro grau completo ou incompleto, 22% têm o
ensino médio, 5% têm o ensino superior – um número mais elevado que o da mulher –, e
5% são analfabetos. A maioria tem qualificação profissional. Enquanto 7% das mulheres
recebem três salários ou mais, 31% dos homens possuem essa renda; 65% dos homens
são dependentes de álcool ou drogas. Esse número é o que está por trás da violência
doméstica. Desses 65%, 55% são usuários de crack, que hoje temos como a droga mais
lesiva.
Proporção das vítimas de violência doméstica no caso de homicídio tentado.
Setenta e cinco por cento das mulheres que sofreram uma tentativa de homicídio já eram
vítimas de violência doméstica. Esses dados são do Rio Grande do Sul.
* Painel realizado na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, no Santander Cultural. Mediação: Des. Donato João Sehnem.
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Motivos dos homicídios tentados. Vê-se que 44%, ou seja, a maioria da motivação
é o fato de o homem, o agressor, não aceitar a separação. Depois vêm discussões, ciúmes
e outros motivos, mas a separação é o principal.
Homicídio consumado. No Rio Grande do Sul, 30,23% dos homicídios contra a
mulher são cometidos pelo seu companheiro. O marido é em número menor, até porque
hoje o número de união estável é bem superior ao número de casamentos. Aí já fica
demonstrada essa diferença. Se cometidos por pessoas desconhecidas, o percentual cai
para 5,81%. Note-se que, em quase 95% dos casos, no caso de homicídio, o crime contra
a mulher é cometido por uma pessoa com quem ela tem uma relação afetiva.
“Eu matei a minha mulher, estou em um orelhão e quero me entregar.” Esse é o
relato de uma ocorrência recente nossa, de 28 de setembro. Ele havia matado a mulher no
dia anterior. De fato, quando a Brigada recebeu esse telefonema, acreditou que fosse trote,
mas dirigiu-se até o local e encontrou a mulher morta por espancamento em cima da cama
do casal. Esse homem não foi preso em flagrante, porque já haviam passado mais de 24
horas, mas foi preso preventivamente e na prisão continua. Essa mulher já havia sido
vítima de violência doméstica não por esse companheiro, mas por dois companheiros
anteriores. Acho que esse é um dado importante. A mulher vítima de violência doméstica
tem atraído novas relações problemáticas, ela não é vítima somente daquele agressor. Ela
termina, rompe a relação e volta a ser vítima. Em média, a cada 35 horas, uma mulher é
morta no nosso Estado; em Porto Alegre, até junho deste ano, 16 mulheres foram mortas,
sendo que 7 delas pelos maridos e companheiros. A cada 15 segundos, uma mulher é
vítima de violência doméstica no Brasil. Esse é um dado bastante alarmante.
A Delegacia da Mulher funciona 24 horas em regime de plantão. Então, as vítimas
devem sentir-se motivadas, encorajadas a procurar a Delegacia da Mulher, porque lá elas
vão tratar com profissionais especializados, a grande maioria é de mulheres treinadas, que
têm sensibilidade para tratar com esse tipo de violência e lhes darão todo o atendimento e
todo o encaminhamento necessários.
A Delegacia da Mulher de Porto Alegre fica na Av. João Pessoa, no Palácio da
Polícia. O Disque-Denúncia é 180. Trata-se de um serviço nacional de atendimento à
mulher, não só para denúncia – inclusive, denúncias anônimas -, mas para dúvidas,
* Painel realizado na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, no Santander Cultural. Mediação: Des. Donato João Sehnem.
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orientações. Enfim, durante 24 horas por dia, qualquer mulher que queira se aconselhar,
obter informações, pode procurar o serviço.
Agradeço a atenção de todos e a iniciativa do Memorial do Poder Judiciário por
este evento.
Obrigada.
DESEMBARGADOR DONATO JOÃO SEHNEM – Agradecemos a
participação da Delegada Dra. Tatiana Pereira Bastos.
Registro aqui a presença dos meus Colegas Desembargadores Vladimir
Giacomuzzi e Érico Barone Pires, que nos honram com sua presença, e passo a palavra
para o Dr. Paulo Seixas, psiquiatra, que nos dará o enfoque dentro da sua especialidade.
DR. PAULO SEIXAS – Inicialmente, eu gostaria de agradecer o convite feito pelo
Desembargador Donato João Sehnem por intermédio da Dra. Márcia Papaléo para
participar deste painel.
Violência doméstica – perfil e perspectivas. Quando falamos nisso, certamente, é
importante pensarmos em possíveis causas que estimulam os atos violentos. Mas, se
ficarmos presos exclusivamente a causas que possam desencadear atos violentos,
corremos o risco de dar um enfoque um tanto ingênuo à questão. A questão de base é que
não podemos negar que nosso cotidiano está cheio de evidências e atos de maldade ou
crueldade inteiramente sem justificativa e sem nenhuma razão aparente e, muitas vezes,
parecem apontar para uma forma estranha de prazer: o prazer de perseguir, de torturar ou
mesmo de eliminar a si mesmo, aos outros, aos animais, ao meio ambiente. É como se a
violência fosse uma espécie de fim em si mesmo, e aqui não me refiro aos grandes atos
que saem nos jornais.
Será que, no dia a dia, na convivência diária, nas relações entre pais e filhos, nas
relações entre marido e mulher, entre amigos e colegas, não nos defrontamos com
evidências de pequenas maldades, pequenos atos que parecem ter a intenção de ferir ou
magoar o outro sem nenhuma necessidade, assim como atos de vingança inteiramente
* Painel realizado na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, no Santander Cultural. Mediação: Des. Donato João Sehnem.
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desproporcionais? De alguma forma, todos nós até fazemos humor e piadas com
pequenas torturazinhas, e naturalmente isso não é condenável dentro de certos limites.
Um exemplo muito singelo e inocente: quem, por exemplo, não morre de dar gargalhadas
nas “pegadinhas”, pegar alguém desprevenido e dar um susto ou passar um trote? E,
quanto maior é a aflição da vítima, mais divertida é a cena. O que dizer das deliciosas
piadas de humor negro? Até aí, tudo bem, é até divertido, não seria esse o problema.
Vejamos mais de perto: tudo isso, seja uma inocente brincadeira ou um crime
hediondo, anuncia o ponto central que eu gostaria de desenvolver: a violência é um
componente da própria natureza humana e, em termos gerais, deve ser compreendida
dentro do contexto da naturalidade. Com isso não pretendo justificar a prática da
violência, mas entendê-la num enquadre de um fator intrínseco do ser humano, e não
apenas como algo extrínseco, que vem de fora e que domina o indivíduo a partir de uma
exterioridade.
Desde já, eu gostaria de firmar o ponto de vista de que atos de violência, de
agressividade ou de crueldade, como queiramos chamar, não seriam apenas - mas também
- reações ou respostas a algum fator desencadeante externo ao indivíduo. Talvez a reação
mais imediata seria dizermos que a violência ou a crueldade é fruto de algum transtorno
psíquico, resultado de uma má educação ou consequência dos tempos em que vivemos,
mas nada disso isenta o indivíduo como elemento ativo na prática do ato violento ou do
ato cruel.
Eu participo deste painel na qualidade de psiquiatra e, como tal, proponho refletir
essas questões como um fenômeno cujo processo tem início no íntimo do próprio
indivíduo, e isso naturalmente não exclui suas amplas dimensões sociais e legais. A
maldade pessoal de cada indivíduo pode tornar-se uma epidemia social e um desafio para
as ciências jurídicas. Existe no homem uma raiz selvagem que precede o acontecer cultural
e social, ou seja, é o estado de natureza do homem que sempre oferece o risco de
explosões imprevisíveis dentro do relativamente instável e frágil equilíbrio pessoal, cultural
e social. É prudente ter sempre presente o dito popular: “O homem deixa a grota, mas a
grota não deixa o homem”.
* Painel realizado na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, no Santander Cultural. Mediação: Des. Donato João Sehnem.
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No século IV, Santo Agostinho, um importante pensador cristão, dizia:
“Nascemos entre fezes e urina”. Por meio dessa crua metáfora, ele queria dizer que somos
sempre acompanhados e marcados por sentimentos inferiores, como o ódio, a inveja, a
agressividade e, pior, disfarçados com a tendência hipócrita e falsa de negarmos tudo
através do bem conhecido mecanismo da projeção: o errado são os outros, os ruins são os
outros, o eixo do mal está sempre do outro lado do oceano.
Proponho, então, um primeiro ponto de reflexão: o ser humano, entre todos os
predicados bons que possa ter, é também naturalmente violento. Não digo simplesmente
que é capaz de tornar-se violento sob determinadas condições, quando provocado, por
exemplo, mas algo mais forte e radical. A violência, a agressividade ou a crueldade é um
atributo da natureza humana.
Em segundo lugar, o homem não é violento à maneira dos animais, que o são
como forma de sobrevivência, mas é violento porque pode sentir prazer em ser violento.
Uma das suas fontes de satisfação pode ser a prática de atos de crueldade. Aqui se coloca
uma estranha dimensão do desejo, o desejo destrutivo, considerando-se aqui também o
desejo autodestrutivo.
Apresso-me em anunciar um terceiro ponto antes que a plateia comece a me julgar
um fanático do apocalipse, cuja palavra deva ser imediatamente cassada: o ser humano não
é nem deve ser um refém passivo da sua própria natureza desejante. A racionalidade, a
liberdade e a identificação generosa com os outros também são traços poderosos da
humanidade. Por isso, não há justificativa para alguém agir exclusivamente segundo os
ditames do seu potencial agressivo, embora ele exista, assim como a sexualidade. A
sexualidade, apesar de ser um traço da natureza, não justifica nem nos autoriza a
manifestá-la de qualquer jeito, de qualquer maneira, isenta de critérios, e de forma
destrutiva e cruel.
Pensemos, então, na violência, incluindo a violência doméstica, no enfoque da sua
naturalidade, ou seja, não apenas como um ato de autodefesa a serviço da preservação da
vida, mas como uma categoria da vontade humana: a vontade de ver o mal e praticar o
mal. Nesse sentido, o mal e a agressividade têm que ser encarados como uma categoria,
como um substantivo, ou seja, não como um simples adjetivo em comparação ao que
* Painel realizado na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, no Santander Cultural. Mediação: Des. Donato João Sehnem.
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poderia ser bom e bonito. Por exemplo, eu não me refiro ao mal no mesmo sentido de
quando se diz que “Fulano está com mal aspecto hoje” ou “este trabalho está mal-feito”.
Não. Nós estamos falando em algo mais profundo. Estamos falando em uma ontologia do
mal, ou seja, o mal como sendo algo em si, como algo primário. A questão vai além da
Psiquiatria, da Psicologia, das Ciências Jurídicas, da Sociologia. Trata-se de um problema
que tange as raias do filosófico, do existencial, pessoal, pois todos nós - e isso é uma
conclusão lógica - somos violentos ou sujeitos a ficarmos reféns da nossa própria violência
e maldade, pois ela é uma categoria do nosso ser e devemos tomar plena consciência dessa
realidade. Quando digo isso, não me refiro apenas à possibilidade de perpetrarmos algum
tipo de crueldade e violência contra terceiros, mas, também e muitas vezes, voltamos a
crueldade contra nós mesmos, numa faixa que vai desde o extremo do suicídio até formas
mais brandas, mas não menos deletérias, como o cultivo da baixa autoestima, do
autodesprezo, da falta de cuidado consigo mesmo, do boicote sistemático ao próprio bem-
estar, incluindo aqui aquela categoria que Freud caracterizou como os “arruinados pelo
sucesso”, o não poder suportar a própria felicidade, ter que estragar o fato de estar bem
ou de ser feliz. Existem pessoas que sistematicamente parecem passar a vida se
autodestruindo e destruindo tudo o que lhe possa proporcionar bem-estar e segurança e
não se dão conta disso.
Dizia Ortega y Gasset, um filósofo: “Eu sou eu e minhas circunstâncias”. Ora,
uma das minhas circunstâncias, uma das circunstâncias do eu é ser portador em si mesmo
daquilo a que Freud chamava de pulsão de morte. Com isso ele se referia àquela dimensão
instintiva, destrutiva e autodestrutiva. Tal constatação conduziria a uma postura do tipo
“nada podemos fazer?” Absolutamente não, pois também está implícito que o ser
humano não é apenas desejo, mas é também razão, vontade e liberdade ética.
Lembramos aqui da genial escritora Clarice Lispector quando diz que a natureza
humana precisa ser construída, ou como sintetizou o filósofo Spinosa no século XVII:
“Descobrimo-nos escravos, compreendemos nossa escravidão, reencontramo-nos livres
com a tal descoberta”. A questão tem um elemento perturbador que seria a falta de lógica,
e é exatamente esse o motivo da perplexidade. É bom pensarmos e sentirmos que existe
lógica apenas na generosidade, no amor, na preservação da vida, mas qual a lógica de um
desejo vinculado à destruição pela destruição, a causar o mal, a ser agente da dor ou da
* Painel realizado na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, no Santander Cultural. Mediação: Des. Donato João Sehnem.
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violência? Coisas de louco, de uma mente psicótica, poderíamos responder. Vamos com
calma, vamos pegando leve nisso, não vamos ser tão apressados. As evidências
demonstram que também existe uma parcela da nossa natureza comum que não seria
regida apenas por essa lógica, e isso não se constitui exceção reservada aos loucos ou
insanos perversos. Estamos falando não só de racionalidade, mas de sentimentos e afetos,
estamos falando de paixões.
Existem afetos e paixões amorosas, e existem afetos e paixões destrutivas. O
universo humano é feito de amor e ódio. A pergunta que não quer calar é a seguinte: as
várias causas apontadas como geradoras da violência esgotariam o problema em toda a sua
dimensão? Voltamos à questão de fundo e podemos dizer: “Claro que existem pessoas
doentes, mas não seria o normal. O sujeito normal é naturalmente bom”. Mas o que seria
um sujeito normal? Vamos começar pela definição negativa: um sujeito normal não é em
absoluto o indivíduo que não sente ódio, inveja, desejos mórbidos, sadismos e
masoquismos, que está imune a isso. Aliás, os santos foram exatamente santos porque
souberam superar esses aspectos em si mesmos. A normalidade, se podemos aplicar essa
categoria plenamente a alguém, estaria no nível do autoconhecimento, da autocrítica, da
capacidade de integrar e manter tais desejos sob contínua autoavaliação e autoanálise.
Uma pesquisadora ligada à Psicanálise, Melanie Klein, julgava detectar traços
intensamente destrutivos de ódio e inveja em crianças muito pequenas dirigidas ao seio
materno e à pessoa da mãe. Penso que esse ponto nos interessa particularmente, pois
falamos de violência doméstica e suas perspectivas. Segundo a própria Melanie Klein, a
estrutura familiar e a atitude dos primeiros cuidadores da criança, pai e mãe,
principalmente pai, seriam fundamentais no sentido de neutralizar a inquietação destrutiva
e natural da criança. Uma teoria da Melanie Klein é que o primeiro sentimento do ser
humano, por mais estranho que possa nos parecer, é o de ódio e revolta. Ele se revolta
contra a impotência e a dependência.
Nessa esteira de raciocínio, também a cultura ou a sociedade desempenham um
fator enormemente facilitador ou inibidor do potencial violento de cada ser humano.
Como sistema aberto, o indivíduo sofre influências do meio, seja no sentido positivo, seja
no sentido negativo. O nosso raciocínio tem que ser dialético. Por um lado, seria ingênuo
* Painel realizado na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, no Santander Cultural. Mediação: Des. Donato João Sehnem.
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considerarmos que o homem se torna violento exclusivamente a partir do que vem de
fora. Por outro lado, também seria falso considerar que o meio externo não exerça
importante papel desencadeador ou liberador do potencial agressivo e violento das
pessoas. Afinal, esse é o raciocínio médico inclusive. Por exemplo, alguém que sofre de
alergia, como eu, sabe que, além da propensão natural de o sujeito ser alérgico, a
exposição ao fator externo é fundamental para desencadear uma crise alérgica.
Temos de nos preocupar com a seguinte constatação: será que não tem
importância que, de dez programas de TV, oito exibam atos onde é comum e banal matar
e torturar? Há poucos dias, eu observava em uma praça pública a brincadeira de duas
crianças, onde o objetivo era uma matar a outra com armas de brinquedo sob o olhar
indiferente dos pais. Tudo isso me faz lembrar um poema de Bertold Brecht: “A corrente
impetuosa é chamada de violenta, mas, o leito do rio que a contém, ninguém chama de
violento”. Qual é o leito do rio? Os pais omissos, que não põem limite nos filhos, os
meios de comunicação, os espetáculos e filmes que banalizam a violência, a corrupção
pública.
Ficamos estarrecidos, por exemplo, com o crime da pedofilia, mas é fácil
apontarmos o dedo para o indivíduo pedófilo e afirmarmos que aquele é o criminoso - e
sem dúvida o é -, mas o que dizer de uma certa atmosfera difusa e insinuante,
intensamente hipersexualizada e pedofílica, que paira no ar e de que nem nos damos
conta? O que dizer de pais que incentivam crianças pequenas, pré-púberes a se
hipersexualizarem precocemente para serem modelos mirins, estimulados e incentivados
por setores da mídia preocupados com o IBOPE?
É ilusório eliminarmos o mal ou a tendência cruel da nossa naturalidade, mas, isto
sim, podemos tomar plena consciência e assumir a responsabilidade de que isso existe em
nós e sermos em primeiro lugar precavidos, atentos e honestos para o que se passa no
nosso próprio interior. Pensando bem, quanta coisa vamos descobrir, coisas boas também
certamente? Penso nos processos educacionais de reeducação e reabilitação, assim como
nos tratamentos psicológicos, psicoterápicos, que, se adequadamente conduzidos, têm o
objetivo de ajudar as pessoas a tomar consciência do seu próprio potencial destrutivo e a
melhor maneira de controlá-lo.
* Painel realizado na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, no Santander Cultural. Mediação: Des. Donato João Sehnem.
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Temos de ser honestos: o problema exige uma contínua vigilância sem soluções
ideais. A violência pode ressurgir sempre nas mais variadas formas dentro e fora de nós.
Não existem fórmulas mágicas. Este painel coloca uma provocação: quais as perspectivas?
O que podemos fazer em relação à violência, inclusive a violência doméstica? Todo o meu
percurso nessa curta exposição procurou enfocar que, antes de tudo, é preciso estarmos
atentos e conscientes na medida do possível para auscultarmos o que se desenrola no
fundo dos nossos coração e das nossas paixões, termos a coragem e a disposição para
tanto. Daqui evoluem os atos violentos.
Em segundo lugar, mesmo não sendo profissional da área da educação, é óbvio
que a orientação, a disciplina, o modelo, a contenção e a colocação de limites não apenas
para os jovens, mas como um programa de educação continuada para todos nós, inclusive
quem tem cabelos brancos, é indispensável. Mas é importante uma ressalva: não é possível
neutralizar a violência com violência, mas neutralizá-la através do potencial amoroso. Para
tanto temos de cultivá-lo dentro e fora de nós como um bem precioso. Insisto na
expressão: cultivar o potencial amoroso, pois ele não existe pronto e acabado. Isso é uma
tarefa para toda a vida.
Pretendo não ter feito um discurso moralista, mas considero essa a única via
realista de sobrevivência.
Obrigado.
DESEMBARGADOR DONATO JOÃO SEHNEM – Agradecemos a
participação do psiquiatra Dr. Paulo Seixas, que acedeu ao nosso convite para comparecer
a este Painel e passo a palavra ao Professor Aloísio PEDERSEN, da Escola Padre Réus.
PROFESSOR ALOÍSIO PEDERSEN – Antes de mais nada, quero dizer que é
uma honra participar novamente de um evento do Poder Judiciário, honrado pela
presença dos colegas e especialmente do Des. João Donato, por quem tenho grande
admiração.
* Painel realizado na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, no Santander Cultural. Mediação: Des. Donato João Sehnem.
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Sou professor há 32 anos e desenvolvo este trabalho que relatarei, mais ou menos
assim, há 32 anos. Estou aqui porque acho que a violência não tem sido debatida com
seriedade no nosso País. A abordagem da violência feita pelos Governos é incrivelmente
simplista. Ataca-se a consequência da violência aumentando presídios e se investe pouco
na prevenção. Tenho pesquisado a esse respeito, e esta é a constatação.
Hannah Arendt, num ótimo livro sobre violência, já traduzido para o português,
diz que vivemos em uma sociedade incrivelmente burocratizada e que, por lei, temos
todos os direitos - direto à vida, direito a uma boa escola, direito à saúde -, mas a realidade
não é bem assim, a escola não está legal, a saúde não está legal. Vejam nos noticiários de
hoje o caso de um pai que amparou o filho que nascia, porque a mãe não pôde entrar na
maternidade. Há uns dois meses, uma grávida foi procurar uma outra maternidade, com o
nome escrito pelo próprio médico, e acabou perdendo o nenê. Outra saiu da
maternidade, porque ali não havia vaga, e teve o bebê no primeiro banco que encontrou.
Aí foi feita a entrevista com ela na maternidade, ela estava bem feliz, já com a criança na
cama. A entrevistadora perguntou: “Agora, a senhora conseguiu!” E ela: “É, agora eu
consegui”. Que povo maravilhoso que nós temos! A criança linda, a mãe linda ali, quanta
força, quanta dignidade! Isso é o domínio do impessoal.
A verba para educação neste Estado e no Brasil nunca foi exercida, sempre é a
menor, e um empurra para o outro: a culpa é do Governo anterior, é da greve, é da seca.
Nunca é colocada essa impessoalidade da história, quer dizer, esse sentimento de
impotência do ser humano é que vai gerar a violência, segundo Hannah Arendt, é a tiraria
sem tirano. “Eu não sei para quem recorrer mais!” E ela diz que, quando a impotência se
sobrepõe aos valores morais, surgem as atitudes de violência e criminalidade.
Uma sociedade violenta gera uma família violenta, que vai explodir numa escola
violenta. A escola, então, funciona como um alarme social, e esse alarme já está
ensurdecedor. Nós já temos este ano três cadáveres de jovens em pátios de escola, dois
em Porto Alegre, um, infelizmente, numa escola próxima à minha, por questões de
bullying, gangues, drogas. Nós já estamos acumulando isso e não estamos fazendo muita
coisa.
* Painel realizado na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, no Santander Cultural. Mediação: Des. Donato João Sehnem.
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Por isso é que eu estou aqui, porque percebi a sensibilidade do Judiciário, que
entende que quase todos os presidiários e todos os abusadores passaram por uma escola.
E a escola está fazendo o quê? A escola, quando chega a agressão, a violência, toma uma
atitude simplista: “Vamos botar câmaras de vídeo, vamos aumentar os agentes
disciplinadores, vamos pedir para a Brigada Militar dar uma passada de vez em quando
para retirar um pouco os traficantes das redondezas”. Nada disso! Até agora essas medidas
foram totalmente ineficazes! As câmaras de vídeo são úteis na proteção do patrimônio,
mas são totalmente ineficazes no combate à violência dentro da escola.
Vinte e três por cento dos profissionais de educação de Porto Alegre, de escolas
particulares, já estão fazendo uso de remédios de tarja preta para dormir e se tranquilizar.
Esse dado é do SIMPRO, de outubro de 2009.
Daniela Vuoto é uma jovem que, por 7 anos, esteve numa escola particular. Saiu
de lá, tida como esquizofrênica, para uma clínica psiquiátrica. Há 2 anos, descobriu-se que
era vítima de bullying na escola, não era nada de esquizofrenia. Ela tinha um blog, que
funcionou há até dois, três meses, estava-se erguendo, namorando, entrando em
Pedagogia e voltou a adoecer. O bullying é algo seriíssimo na escola. O que é o bullying?
Essa expressão inglesa significa zoar, discriminar, gozar, intimidar, inferiorizar, botar
apelido, bater, roubar. É um conjunto de atitudes deliberadamente agressivas de um
agressor em relação a uma pessoa ou a um grupo de pessoas. E geralmente esse agressor é
vítima numa família violenta. Então, ele chega à escola e, para ninguém descobrir que ele é
vítima em casa, apanha, vê pai bater em mãe, mãe bater em pai, enfim, vai identificar o
mais frágil - o negro, o magro, o gordo, o caolho, o desdentado, o inteligente, o menos
inteligente - e partir para a agressão. O bullying existe em todas as escolas do mundo, do
jardim de infância à universidade.
Começa no ensino fundamental, quando ele vai roubar, vai rasgar o caderno do
colega, vai desprezar, vai inferiorizar. Então, esse agressor tem que ser barrado, tanto o
agressor quanto a vítima têm que ser identificados. O agressor é diferente do psicótico,
porque ele impinge sofrimento por livre vontade, ele acha que aquela pessoa é menor, é
inferior, é desprezível. Então, ele faz de tudo para se engrandecer. Depois, começa a
portar armas, participar de gangues. Cada vez mais ele tem que inferiorizar aquele e
* Painel realizado na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, no Santander Cultural. Mediação: Des. Donato João Sehnem.
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mostrar para os demais: “No final, na rua, vou trazer os meus amigos, e tu vais ver o que
vai acontecer contigo e tal”. Automaticamente, a vítima é calada, não conta nada em casa e
começa também a achar que tem algum defeito, que não merece respeito, entra em
isolamento, em depressão, vai ter insônia, vai sofrer repercussões psicossomáticas, vai ter
pensamentos suicidas. O Brasil já está cheio de casos de bullying, de suicídios de crianças
de 11, 12 anos, de vítimas que voltam à escola e matam e se matam depois.
Eu tenho visitado muitas escolas em virtude desses projetos, dos vídeos que os
alunos têm feito, e uma diretora de escola de ensino fundamental incompleto disse: “Aqui
está terrível, tem filho de drogado, tem filho de traficante, tem criança com medida
socioeducativa”. Não está dando certo, porque ela discrimina, ela segrega, e o aluno tem
dificuldade de voltar à escola, àquele ambiente. “E a senhora o que tem feito, Diretora?”
“Esta escola tem só até a 6ª série, eu vou empurrando com a barriga.”
Vou relatar uma experiência minha. Em 2006, um grupo de alunos chegou
quebrando o colégio. Eles queimaram uma porta, arrebentaram outras quatro a pontapés,
estouraram o banheiro masculino. O diretor imediatamente montou um dossiê, chamou
o Conselho Tutelar, chamou a SEC e chamou os pais para mostrar as normas e dizer
como o colégio reagiria a isso.
Então, é muito interessante, porque o diretor não conhece Hannah Arendt, que
diz que, nesse momento, com a família fragilizada, a sociedade do jeito que está, a escola
tem que exercer uma função paterna se quiser cumprir a sua principal função, que é
educar.
Fui, então, chamado para fazer um projeto. Sou professor de Educação Artística.
Nessa escola, já estou lá há 10 anos, ministro uma oficina de teatro. Inclusive, uma das
recepcionistas daqui tem uma irmã que foi minha aluna e hoje é professora da
universidade em Artes Cênicas. Já tive um aluno também que foi para o programa
Malhação.
Ele me chamou porque via que o aluno que fazia teatro comigo entrava quieto e
saía já para o Grêmio Estudantil, ele via que alguma coisa acontecia de melhor naquelas
oficinas no horário intermediário, oficina de duas horas e meia, que me deu prêmios,
representei o Rio Grande do Sul em Santa Catarina e Paraná. Até o Ministério Público,
* Painel realizado na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, no Santander Cultural. Mediação: Des. Donato João Sehnem.
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por meio do Dr. Roberto Bandeira, encampou um desses projetos. “Aloísio, temos que
fazer alguma coisa! Tu aceitas uma convocação?” Fiz tudo muito rápido, porque a
agressividade e a violência têm que ser enfrentadas para vermos que o monstro não é tão
grande assim, mas temos que ter um respaldo. Em maio, eu iniciei uma convocação e pedi
uma sala ampla, sem classes e sem cadeiras, onde eu poderia desenvolver as minhas
oficinas de duas horas e meia. Também estou dando oficina na Unisinos para a Guarda
Municipal. Agora, vão entrar a Brigada Militar e a Polícia Civil. É uma região
superagressiva, como os dados mostram.
A minha sala de aula é demais, é no Brizolão. Para quem não sabe, Brizolão é uma
escola pública da década de 50, de madeira. Estavam faltando escolas, e o Brizola mandou
construir prédios de madeira superarejados. Eu adoro! Fui alfabetizado tardiamente,
porque eu odiava colégio, eu era um guri grande, vivia nos matos, e a minha mãe me
botou numa vizinha que dava aula particular para as crianças. Eu entrei atrasado na escola,
fiz 8 anos na primeira série, mas fui alfabetizado num Brizolão por uma normalista
maravilhosa, a Profa. Lúcia. Então, o Brizolão está caindo aos pedaços. Ontem, surgiram
duas goteiras. Quando chove muito, a sala fica inundada. O prédio é velho, e o diretor
quer botá-lo abaixo para tentar construir outro, mas ele acaba remendando por insistência
minha. Quando a SEC chega para fazer a supervisão, diz: “Não, o prédio está em
excelentes condições”. Estou seguindo com o prédio, pelo menos uma sala ampla eu
tenho. Ela tem um quadro verde, que não existe mais em nenhuma escola, e eu uso giz na
minha sala! Às vezes, escrevo no quadro. Havia dois ventiladores em 2006. Roubaram os
ventiladores, e eu consegui a sucata de outro ventilador.
Montei aulas-oficinas encadeadas, sequenciais para retraduzir essa violência,
“trazer” essa violência para dentro da escola. Comecei com respiração profunda,
alongamento, muitos jogos de concentração, de aproximação, tudo o que vocês possam
imaginar de sensibilização para essa gurizada. Lá pela sexta ou sétima aula - eu fiz um
relaxamento com todas essas turmas -, eles já estavam preparados, superconscientes da
história. Como é legal trabalhar! E eu estava com os alunos mais agressivos do colégio!
Depois do relaxamento, eu pedi para que eles “visualizassem” mentalmente o que eles
queriam banir da sociedade. Em seguida, eu pedi que cada um passasse o pensamento para
o corpo. E aí eu vi a escultura da tragédia da sociedade! Chamou-me a atenção
* Painel realizado na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, no Santander Cultural. Mediação: Des. Donato João Sehnem.
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especialmente uma menina, que ficou com o corpo de tal forma que me fez pensar: “É
um estupro”. Como aquilo me agrediu! Além de se picar, além de puxar fumo, tinha a
escultura viva da violência. Num terceiro momento, trabalhei de dois a dois, um como o
“escultor” e o outro como a “massa de modelar”. O escultor deveria modelar uma
daquelas três imagens que queria banir da sociedade. E aí comecei a ver aquela guria,
vítima do abuso, montando aquela menina. Havia gente cheirando, fumando,
representando discriminações, homofobia, tudo sendo feito com a maior seriedade, e ela
montando naquela menina, que ficava meio de perna aberta, dizendo coisas no seu
ouvido. Ao final, metade da turma era escultura, e metade era escultor. Perguntei aos
escultores o que estavam achando que as esculturas queriam dizer. Todos identificaram no
olhar perdido da menina desgrenhada o abuso sexual. Foi feita toda uma análise, e, a partir
dela, eles tiveram que criar cenas expressando o perfil da turma. A turma fez uma
representação de um jogo de futebol com as torcidas, e outra turma veio assistir. Nas artes
plásticas, sempre há o momento da apresentação ao público.
Numa dessas representações, um professor de Matemática, Prof. Osvaldino,
entrou com a sua turma e sentou ao lado de uma aluna superagressiva, em quem ele tinha
dificuldade de chegar. Tenho escrito num projeto o relato dele. A cena mostrava um casal
brigando, o marido agredindo e humilhando a mulher. E a guria do lado do Osvaldino
dizia: “Professor, isso o que está acontecendo aí é fichinha. Lá em casa, acontece muito
pior”. A partir daí, segundo o relato do professor, ele passou a respeitá-la, porque essa
menina tinha uma vida que ele jamais imaginaria. Ela passou a conversar melhor com ele e
se saiu até muito bem em Matemática, enfim, ficaram amigos.
Depois que isso foi feito, que essa violência veio para dentro de sala de aula, o que
eles me diziam? Que a escola não conhecia os alunos, que eles eram invisíveis à sociedade
e invisíveis lá. A direção estava quase sempre ocupada com quem pichava, com quem
brigava. Se eles querem mostrar a cara, vamos fazer o quê? Temos uma Bienal, e eles
tinham que construir uma coisa que existia imaterial entre a relação deles com a escola e
materializar. Então, fizeram uma parede do tamanho daquela ali, com 48 narizes de
fotografias de colegas e professores: “Embora diferentes, respiramos o mesmo ar”. E
assim teve filme do aluno que morava mais longe da escola, que ficava uma hora viajando.
E aí entramos para o modernismo contemporâneo. Esse grupo chegou quebrando o
* Painel realizado na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, no Santander Cultural. Mediação: Des. Donato João Sehnem.
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colégio e saiu me dando um prêmio nacional com a releitura do modernismo
contemporâneo, que saiu em todos os jornais.
O colégio tem que estar instrumentalizado para poder contrastar com essa
sociedade: “Se lá fora há agressividade, aqui não haverá, aqui nós vamos ter uma relação
legal e vamos instrumentalizar esses alunos para isso, para tentar fazer o inverso: a escola
levar para a família valores humanistas e trazer a sociedade para dentro da escola com
eventos”.
Conclusão: muitos pesquisadores têm assumido claramente que, quando
diminuem os problemas de comportamentos na escola, isso reflete em futuros dados
menores de criminalidade na sociedade. O que se precisa para tanto? É instrumentalizar
professores, e não é fácil. Com esse projeto que desenvolvo, que está sendo muito exitoso,
a escola não é mais pintada duas vezes por ano, é pintada uma vez só, a escola está toda
ajardinada e tem 1400 alunos! É difícil o professor hoje entender a violência, porque ele
também, muitas vezes, é vítima de bullying inclusive entre os próprios colegas. Eu me
predisponho a trabalhar com professores e multiplicar. Ninguém ainda está querendo
abraçar essa jornada.
Tenho dois blogs, que os alunos estão montando com vídeos dos projetos
anteriores sobre bullying e sobre drogas. Os vídeos foram parar no blog da Zero Hora. A
Zero Hora não havia entendido que aquilo era feito por alunos. Quando chegou ao
colégio e viu o que era, os vídeos foram para o blog.
Então, para quem quiser consultar esses blogs e mais alguma coisa dessa
exposição, eu tenho fotos aqui e estou distribuindo os cartõezinhos com os blogs para
vocês consultarem.
Muito obrigado.
DESEMBARGADOR DONATO JOÃO SEHNEM – Agradecemos a
participação do Prof. Aloísio Pedersen, da Escola Padre Réus, que trouxe a sua vivência
pessoal, o seu esforço no sentido de superar essa problemática.
* Painel realizado na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, no Santander Cultural. Mediação: Des. Donato João Sehnem.
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Antes de encerrar, eu agradeço a presença de todos e vou pedir para a Dra. Márcia
Papaléo e a Dra. Mary Biancamano, que foram as organizadoras deste evento, para que
façam o encerramento.
DRA. MÁRCIA PAPALÉO – Boa-noite a todos. Em face da limitação de horário
que nós temos, lamento não podermos ter um tempo para perguntas, questionamentos,
proposições. Mas, enfim, nós estaremos por aqui, porque nós vamos continuar com o
evento com uma sessão de autógrafos, e os nossos painelistas estarão à disposição de
todos.
Como vocês viram, foi algo meio conspiratório, porque eu imagino que um não
soubesse do conteúdo da apresentação do outro, e as coisas foram fechando como um
quebra-cabeças. Isso nos deixa muito satisfeitos, enfim, com a noção de que devemos
continuar, que o Judiciário também tem que se empenhar em tarefas preventivas. Penso
que estamos no caminho certo.
Agradeço profundamente a presença de todos e ao empenho de toda a equipe do
Memorial, equipe de que faço parte com muito orgulho e prazer.
Muito obrigada.
(DEGRAVADO E REVISADO PELO DEPARTAMENTO DE
TAQUIGRAFIA E ESTENOTIPIA DO TJ/RS.)