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PAINEL:
RETRATOS DO JUDICIÁRIO –
SOB OS OLHARES DO GRANDE IRMÃO, A PROTEÇÃO DA INTIMIDADE*
DES. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS
Senhoras e Senhores, estamos dando início ao Painel Retratos do Judiciário, que é
uma promoção costumeira e tradicional do Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul e
que aborda nesta tarde, com dois brilhantes e eruditos especialistas, o tema Sob os Olhares do
Grande Irmão, a Proteção da Intimidade.
É um fato recorrente nesses nossos tempos essa questão relativa à intimidade. Os
meios modernos de comunicação, o progresso da ciência, a biotecnologia, a evolução dos
costumes têm contribuído para que determinadas normas constitucionais tenham, de certa
forma, hoje um maior desenvolvimento e uma maior proteção. A Constituição de 1988 foi
enfática em determinar a proteção da imagem da pessoa e da intimidade da personalidade, a
intangibilidade corporal, enfim, direitos fundamentais da pessoa.
Nos dias atuais, por força de uma série de circunstâncias externas e de conflitos
que normalmente surgem no próprio âmbito social, é preciso, de determinadas maneiras,
estabelecer um conflito entre a preservação da intimidade e, ao mesmo tempo, a segurança e o
interesse público. Sempre haverá, portanto, essa bipolaridade de dois princípios
constitucionais que vão chocar-se: de um lado a proteção da pessoa humana, a dignidade
humana da personalidade; de outro, a segurança e outros valores do estado de direito.
Em nossos dias, temos câmeras pelas ruas e no interior das casas, pode-se dizer
até que aquele círculo de intimidade que a doutrina italiana criou, fazendo círculos
concêntricos, tem sido afetada de acordo, às vezes, com a condição da pessoa, a sua situação, a
sua profissão, a sua exposição pública, a sua intimidade.
E é sobre esse tema que gostaríamos de ouvir esses dois brilhantes palestrantes,
pessoas altamente credenciadas para esse diálogo. Por isso, estão conosco aqui o Dr. Danilo
Cesar Maganhoto Doneda, que é Professor da Faculdade de Direito de Campos, no Estado do
Rio de Janeiro, Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná e Mestre em Direito
e Doutor pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É Professor atualmente do
*Painel realizado na 56ª Feira do Livro de Porto Alegre, no Santander Cultural. Mediação: Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis.
Mestrado da Faculdade de Direito de Campos, do Bacharelado em Direito da UniBrasil e de
diversos cursos de especialização. Foi pesquisador visitante da Università degli Studi di
Camerino e na Autorità Garante per La Protezione dei Dati Personali, ambas da Itália. É
consultor do Ministério da Ciência e Tecnologia, da UNESCO e membro da Comissão de
Comércio Eletrônico do Ministério da Justiça. Tem grande experiência na área de Direito
Civil, atuando principalmente nos temas específicos da privacidade, bancos de dados, dados
pessoais, direito da informática e direitos da personalidade.
A Professora Regina Linden Ruaro, que também nos acompanha, possui
graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Doutorado
em Direito pela Universidad Complutense de Madrid e Pós-Doutorado pelo Centro de
Estudios da Universidad de San Pablo de Madrid. Atualmente é Professora Titular da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Procuradora Federal e membro
honorário do Instituto Internacional do Estudo de Direito do Estado. Tem experiência na
área de Direito Público, com ênfase em Direito Administrativo. Atua principalmente na
Proteção de Dados da Pessoa no Estado Democrático de Direito, Responsabilidade Civil da
Administração Pública e lidera um grupo de pesquisas cadastrado no CNPq na área de Direito
Público.
Portanto, estamos em belíssima companhia.
Registramos, com grande orgulho, a presença do nosso ex-Presidente do
Tribunal de Justiça, Desembargador Cacildo de Andrade Xavier, dos Excelentíssimos Juízes-
Corregedores Doutora Marcia Kern Papaleo e Dra. Maria Lúcia e do Excelentíssimo Doutor
Luiz Felipe Rauen Filho, representante da AJURIS.
Também saudamos as demais pessoas, Colegas, acadêmicos.
De início, então, passamos a palavra ao Dr. Danilo César Maganhoto Doneda.
DR. DANILO CÉSAR MAGANHOTO DONEDA
Muito obrigado pelo convite, pela promoção do evento, pela oportunidade de
estar aqui participando. Agradeço à Magistratura do Estado Rio Grande do Sul o convite da
Profa. Regina e do Prof. Ingo Sarlet.
Vou tratar do tema da proteção da intimidade, da vida privada, a privacidade, a proteção
de dados, tema bastante relevante e atual hoje em dia. Não somente o Judiciário, mas o
cidadão comum vêm-se deparando com crescentes desafios, medos e angústias sobre a
utilização de suas informações, sobre eventuais violações de sua privacidade, que são
potencializadas e aumentadas com o processamento automático de dados por computadores,
pela utilização de dados pessoais pelo Estado, por empresas privadas, com cada vez maior
intensidade.
Isso muito provavelmente vai ocasionar uma reação regulatória, com a
instauração de marcos normativos que procurem fornecer maior segurança tanto ao cidadão
quanto às entidades interessadas, tanto o Estado quanto a iniciativa privada, para que tenham
a segurança e possam tratar dados com respeito à privacidade do cidadão.
Mas como nós chegamos até o ponto em que estamos? Há dois temas que se
entrelaçam aqui que não são propriamente as divisões clássicas entre intimidade e vida privada,
mas é uma linha divisória moderna que podemos tratar, que vai entre a privacidade e a
proteção de dados.
Como o evento se realiza no âmbito da Feira do Livro de Porto Alegre, não
consegui furtar-me a fazer uma pequena incursão em algumas metáforas literárias. O próprio
título expõe uma visão do Grande Irmão, uma metáfora do Big Brother, que tantas vezes é
invocada quando se trata da privacidade e também da proteção de dados. É uma metáfora
muito comunicativa, muito forte, mas talvez não seja tão acurada a representação factual do
problema da privacidade e da proteção de dados hoje em dia.
O que é o Big Brother? É uma metáfora de um Leviatã informacional moderno,
do estado totalitário, quando, na verdade, não é somente e talvez nem principalmente no
Estado que se encerre o problema da invasão da privacidade, da vigilância hoje em dia. Esse é
um título menos evocativo diretamente, mas talvez mais representativo de um problema que
nós tenhamos com a nossa privacidade e proteção de dados hoje em dia, talvez seja de outro
sucesso literário não muito distante, o Admirável Mundo Novo, de Huxley, no qual os
cidadãos estavam submetidos a um sistema de controle sobre os seus corpos, sobre a sua vida,
sobre a sua informação, um controle que não era centralizado talvez de uma forma direta num
estado totalitário, mas em vários mecanismos sociais de vigilância, monitoramento, controle e
interdependência, um controle muito mais sutil e talvez muito mais perverso. A grandeza e a
natureza das relações de controle que hoje em dia a invasão de privacidade e dos danos
pessoais pode causar talvez sejam mais facilmente refletidas pela metáfora do Admirável
Mundo Novo do que pelo Big Brother.
O tema da privacidade evoluiu nos últimos 40 anos de certa forma
transmudando uma disciplina que não propriamente, nos ordenamentos jurídicos de muitos
países, a proteção somente do que é privacidade. A proteção à privacidade se transmudou no
que se denomina para muitos países de proteção de dados pessoais. É um pouco diferente, um
direito um pouco mais restrito no sentido de que não é a privacidade em si somente que se
protege, mas, por outro lado também, acaba sendo muito mais amplo, porque, pelo controle
que nós cidadãos podemos ter em relação aos nossos dados pessoais, vamos ter garantida não
somente a nossa privacidade, mas a nossa liberdade, a nossa isonomia, a nossa igualdade, no
sentido de não sermos discriminados, prejulgados, enquadrados e classificados por meio da
nossa informação pessoal.
É interessante notar que, muito embora diferente da privacidade, a proteção de
dados é uma evolução dessa. A literatura também pode ser utilizada como balão de ensaio
para se traçar uma linha evolutiva que permita caracterizar o que se denominou de privacidade
num determinado período.
A ideia de privacidade que nós temos até hoje é recente, não está presente nas
culturas clássicas, não está presente até o momento em que houve a eclosão do individualismo
e da formação do indivíduo burguês, com reflexos claros na literatura. Simplificando muito
uma história que é muito mais longa e complexa, e que nem eu seria a pessoa mais qualificada
para dar, mas principalmente talvez nas vertentes do Romantismo, pode-se identificar várias
eclosões da intensificação do individualismo. A ideia de Madame Bovary, a própria ideia do
bovarismo, a pessoa que encontrou a sua própria identidade no mundo que começava a
mudar, começava a proporcionar algumas pequenas válvulas de escape para o
desenvolvimento daquela personalidade, daquela individualidade e que proporcionou àquela
mulher, que, numa situação anterior, não teria um espaço para desenvolver as suas próprias
angústias, desenvolver a sua angústia.
Aquele foi o primeiro sintoma de um individualismo que se percebe na literatura,
e, não somente na questão do individualismo, a literatura pode ajudar-nos a traçar os perfis da
ideia de privacidade que temos hoje. A literatura também permite verificar de que forma o
direito passou a enquadrar a criação dos espaços íntimos e de questões referentes à honra, à
imagem e à privacidade também contidas nas obras criativas, nas obras literárias, com reflexo
hoje nas obras cinematográficas outras.
Honoré de Balzac, do Romantismo francês, misturava personagens reais e
imaginários nos seus romances. Hoje em dia, se você não tiver acesso a um guia muito
gabaritado sobre a sua obra, você pode não saber quais personagens existiram na vida real e
quais personagens eram frutos da sua imaginação. E o problema era tão sério que, até na
cabeça dele, em alguns momentos, isso foi uma dúvida. Dizem que, no leito de morte, ele
chamava o Dr. Biancon. O Dr. Biancon nunca existiu, foi um médico clássico dos romances
de Balzac, e foi por ele que Balzac chamava no leito de morte. Isso, na época, talvez não fosse
algo relevante juridicamente, como um problema pelo menos de alta conta, mas, com o
tempo, foi-se tornando, indo até os dias de hoje, quando a prefiguração de uma pessoa viva
numa obra literária estaria sujeita a várias constrições de caráter jurídico.
Avançando um pouco mais, Nelson Rodrigues também fazia a mesma coisa,
misturava gente viva com gente imaginária nos romances, até com bastante criatividade. A
peça O Beijo no Asfalto traz muitos personagens reais, José Ramos Tinhorão, Otto Lara
Resende, que era um amigo e desafeto de Nelson Rodrigues ao mesmo tempo. Ele
pessoalmente se sentiu desconfortável com a penetração de seu eu numa obra de ficção em
situações que não eram tão lisonjeiras, o que feriria talvez a sua privacidade de certa forma.
Nelson Rodrigues chegou ao ponto, quase uma desfaçatez, de chamar uma peça teatral dele de
Bonitinha mas Ordinária, ou Otto Lara Resende, que é o título oficial da peça que estreou no
Teatro Municipal do Rio.
O que acontece é que, hoje em dia, a percepção da privacidade pode ser
retraçada a partir de exemplos da literatura e com a juridicização de alguns direitos
relacionados à privacidade.
Outro tema de que nem vou tratar, só vou mencionar, é o das biografias, que,
hoje em dia, fornecem um material bastante fértil para a discussão jurisprudencial sobre o
tema. Hoje em dia, no Brasil, questões relativas à privacidade e intimidade fazem com que
algumas biografias sejam recolhidas das livrarias, sejam sequer editadas e que, talvez de uma
forma mais perversa ainda, desincentivem editoras e potenciais autores a escreverem biografias
com medo de que não seja possível vendê-las. É um efeito que não aparece muito claramente,
mas, no ramo editorial, é presente, da quase morte do ramo da biografia em alguns aspectos
por medo de eventuais processos.
Quando foi recolhida a biografia de Manuel Garrincha, isso aconteceu; com a
biografia do Roberto Carlos, o mesmo, e cada vez mais alguns advogados percebem esse filão,
que contrasta, pelo menos a meu ver, com a garantia, nem propriamente da privacidade, mas
da liberdade de expressão. A privacidade não é um direito absoluto e deve ser sopesada com
outras questões.
Mas essa privacidade que tem a ver com a garantia do espaço íntimo, pessoal,
com isolamento, tranquilidade, sossego, é uma faceta que acabou se desenvolvendo, indo até o
que hoje em dia chamamos de proteção de dados pessoais.
A proteção de dados pessoais é uma disciplina que existe em vários países e que
procura conferir a todas as pessoas controle sobre as nossas próprias informações e fornece
meios para que o Judiciário, para que órgãos públicos possam exercer um tipo de controle
efetivo sobre essas informações.
As normativas que tratam disso em alguns países procuram garantir por meio da
proteção de dados a liberdade da pessoa, como o habeas corpus protege a liberdade corporal.
Hoje em dia, como os nossos dados pessoais são tratados de uma forma
avassaladora por instituições públicas e privadas, a verdade é que, se não tivermos garantia
sobre nossos próprios dados, se não pudermos saber com quem eles estão, se estão corretos
ou não, para não permitir que eles sejam utilizados abusivamente, não teremos liberdade, não
sobre o nosso próprio corpo, mas uma liberdade análoga. Vamos ter cerceados nossos direitos
de livre desenvolvimento da personalidade, de livre opção de escolha, vamos perder um pouco
da nossa liberdade.
Por isso, a ideia do habeas data originalmente não é propriamente uma ação como
se configurou no Brasil, mas um direito de liberdade e de controle sobre as próprias
informações. Análogo ao habeas corpus, como seria para o corpo físico, hoje se tem o habeas data
para o corpo eletrônico ou corpo informacional.
Sintetizando, da privacidade e proteção a dados pessoais, temos uma evolução
do paradigma do segredo ao paradigma do controle. Isso é importante, porque a lei de
proteção de dados não visa a enclausurar as pessoas, ela visa a proporcionar controle sobre a
própria informação, inclusive o controle para liberar o fluxo da informação.
Eu posso querer ter uma vida completamente pública, o que tenho que ter
garantido são os meios para, no futuro, quando quiser cessar essa exposição, que esse meu
desejo seja atendido. Tenho que manter o controle. É uma ferramenta, portanto, a proteção
de dados, para regular a exposição da minha própria informação pessoal e do meu
relacionamento com o mundo.
Como essa tendência normativa da proteção de dados pessoal se desenvolveu?
Em 1970, o Departamento de Saúde, Educação e Bem-Estar do governo norte-americano
elaborou um documento em que estavam presentes alguns princípios para tratamento de
dados pessoais. Esses princípios estão na base de várias normas nacionais e internacionais
sobre o tema. Esses princípios, fair information principles, são a coluna dorsal de praticamente
toda a lei ocidental sobre proteção de dados e se encontram visíveis, por exemplo, até no
nosso Código de Defesa do Consumidor ou, de certa forma, na ação de habeas data. Esses
princípios estão presentes nas normas mais influentes sobre a matéria, na Convenção de
Estrasburgo; na Convenção nº 108 do Conselho da Europa, de 1980, sobre processamento
automatizado de informação pessoal; estão presentes nas Linhas-Guias da OCDE, do mesmo
ano; estão presentes na norma que unifica as normativas europeias sobre proteção de dados,
que é a Diretiva nº 9.546/1995, uma norma posterior, mas que vai reciclando esses mesmos
princípios. Esses princípios serviram para formar as bases do que, posso afirmar, seja um
modelo europeu de proteção de dados.
Todo país da União Europeia tem normas sobre proteção de dados que são
razoavelmente harmônicas. Todos os países europeus têm uma autoridade-garantia, que é um
órgão público, uma agência, um gabinete, enfim, depende da configuração institucional de
cada país, mas é um órgão público que vai receber reclamações de cidadãos, vai realizar
inspeções, vai aplicar sanções. Enfim, vai realizar vários atos visando à efetividade da lei de
proteção de dados, desafogando o Judiciário numa tarefa que exige uma atualização
tecnológica, uma dinâmica tal que se demonstrou não plenamente vocacionada a ser garantida
por ações ordinárias. É um sistema parajurisdicional que vai servir como anteparo dessa tutela
antes que ela chegue aos tribunais.
A Diretiva nº 9.546 da Comissão Europeia é uma norma que foi internalizada
por cada país da União Europeia. Ela possui termos mínimos que foram internalizados na lei
de cada país. Portanto, há uma harmonia entre as leis de todos os países europeus. Esse
modelo europeu não permite que dados de cidadãos europeus saiam da Europa e sejam
processados em outros países que eventualmente podem não ter nenhuma garantia, nenhum
controle maior sobre isso. Seria uma espécie de paraíso de dados, como existe o paraíso fiscal.
Então, esses dados não podem sair, a não ser que o país tenha uma norma adequada. Se o país
tem a norma adequada, ele pode receber um produto, um investimento europeu que implique,
por exemplo, tratamento de dados.
O Brasil não tem uma norma, não pode receber tal tipo de dados, não pode
receber alguns investimentos. A Argentina tem essa adequação, tem essa norma, ela pode
receber algumas encomendas de serviço. Por exemplo, a folha de pagamentos da Bayer, uma
multinacional farmacêutica, é processada na Argentina justamente por fornecer essa segurança.
O modelo europeu se baseia no consentimento, isto é, para processar dados
pessoais, é necessário que o titular do dado tenha dado consentimento, tenha autorizado, ou
então que a lei preveja expressamente que aquele dado pode ser processado sem
consentimento. São os dois fatores de legitimação para tratamento de dados.
Por fim, talvez paradoxalmente, a lei europeia facilita o livre fluxo de dados.
Como assim, livre fluxo de dados? Ela não restringe? Vejam bem: a unificação da legislação
europeia sobre proteção de dados faz com que exista um panorama comum de proteção de
dados. Não há um estado que tenha uma norma muito mais pesada do que outro, isso quer
dizer que não há barreiras para transferência de dados entre os países da União Europeia. Isso
é importantíssimo para o mercado comum, garante que não vão existir barreiras comerciais
que tenham como motivo alguma coisa referente ao tratamento de dados.
É isso que não temos no Mercosul, por exemplo. Então, dando segurança
jurídica ao mercado e aos países da União Europeia, cria-se também um mercado para
transferência de dados pessoais dentro de um patamar de licitude.
Nos Estados Unidos existem normas de tratamento de dados? Existem, mas são
diferentes. Não existe um modelo norte-americano propriamente dito, porque a proteção de
dados lá é descentralizada. Não há uma norma única geral, talvez nem pudesse existir. Os
Estados Unidos têm uma engenharia federativa muito diferente, a competência de direito
privado é fracionada entre os entes federativos. Não seria possível concentrar a mesma gama
de poderes que um estado tipo europeu tem na estrutura federativa norte-americana. Isso é
um motivo.
O outro motivo também é cultural. A tradição da common law aqui se repete de
uma forma muito fiel, e muitas questões referentes à proteção de dados são tratadas
jurisprudencialmente, isto é, os abusos maiores são controlados a posteriori, não a priori, por
princípios, por regras apriorísticas.
A tutela é fortemente setorizada. Alguns setores têm normas fortes de proteção,
outros não têm nenhum. Dados genéticos são bem protegidos, dados clínicos são muito mal
protegidos. Alguns dados que aparentemente mereceriam pouca proteção têm uma proteção
forte por um motivo corriqueiro qualquer. Enfim, não é um sistema lógico, pelo menos na
lógica à qual nós estamos acostumados, hierarquizada.
A autorregulação é muito importante e costuma ser tomada não só nesse ponto
como em outros como a primeira alternativa a ser tentada, isto é, a própria indústria tenta
autorregular o seu tratamento de dados.
A Federal Trade Comission, que é órgão encarregado da proteção ao consumidor e
que acabou sendo com o tempo vocacionada também a tratar da proteção de dados, acaba
assumindo um papel de tentar apontar muitas vezes em quais momentos a autorregulação
falha e em quais momentos a autorregulação não atende às legítimas expectativas do
consumidor, do cidadão. Também tenta recomendar edição de leis ou endurecimento das
normas de autorregulação e assim por diante.
Enfim, é um modelo bastante diferente do europeu. Funciona muito bem em
alguns aspectos, como todo modelo bastante pragmático e centrado na realidade, mesmo com
uma estrutura aparentemente caótica e desorganizada, em alguns aspectos, costuma dar um
resultado até mais forte do que o europeu; por outro lado, carece de uma coesão, e hoje em
dia se veem muito fortemente alguns problemas, principalmente em relação ao
monitoramento de navegação na Internet e outros problemas que esse modelo não está
conseguindo enfrentar com a nova indústria da informação.
Na América Latina, o que acontece? Qual é o nosso panorama na América
Latina para chegar ao Brasil? No Brasil, não há uma lei geral de proteção de dados pessoais.
Temos, é claro, a proteção à vida privada e à intimidade, na Constituição Federal, no art. 5º, X;
na garantia fundamental à confidencialidade das comunicações de dados, inc. XII; na ação de
habeas data, também constitucional, regulamentada em 1997.
Talvez a peça mais moderna da nossa legislação a respeito seja o Código de
Defesa do Consumidor, cujo art. 43 estabelece regras para o tratamento de dados de
consumidores em cadastros de proteção ao crédito. É um esquema que serve para uma grande
parte das demandas brasileiras sobre o tema, a demanda referente a cadastro de consumo é
muito forte.
O habeas data teve uma demanda localizada num determinado momento, mas,
hoje em dia, já se percebe claramente que não é capaz de abranger a complexidade da questão
e o peso das questões hoje em dia.
Se fizermos um breve retrospecto, nem vou dizer dos últimos anos, vou dizer
dos últimos meses, veremos vazamento de dados do exame do ENEM, vazamento de dados
da Receita Federal, venda de CDs, DVDs com informações fiscais de todos nós a um preço
irritantemente baixo até, ou seja, a banalização do acesso à informação pessoal no Brasil
potencializou o surgimento de novos problemas, que tendem a piorar cada vez mais, e (...)
uma forma qualquer de regulamentação. Qual é que vai ser a opção a ser tomada? Vamos ver a
seguir.
O Brasil está, de certa forma, a um passo atrás também em relação à América
Latina. Como já mencionei, a Argentina, por exemplo, comemora dez anos da existência da
sua lei de proteção de dados, que é inclusive adequada à legislação europeia. O Uruguai, em
2008, aprovou a sua lei de proteção de dados em caráter geral e, provavelmente, em 2011 vai
obter também a adequação da União Europeia. Posso citar outros países: Chile, Colômbia,
Peru. Há uma tendência latino-americana ao endurecimento e uma convergência de normas de
proteção de dados em standards maiores do que aqueles do Brasil hoje em dia.
Existe um modelo latino-americano de proteção de dados diferente daquele
europeu, norte-americano? Acho que, apesar de algumas similitudes geopolíticas entre todos
esses países, não. O habeas data poderia ser esse modelo? Alguém já se perguntou isso. O habeas
data é uma ação, ou é um direito presente em várias Constituições e ordenamentos latino-
americanos. Brasil, Argentina, Peru, Colômbia, Venezuela, Paraguai e Equador possuem ou
em suas Constituições ou em suas normativas infraconstitucionais o habeas data. Não temos o
termo habeas data, mas a doutrina e a jurisprudência reconhecem um direito de habeas data pela
influência provavelmente de um legislador brasileiro até, que cunhou a expressão. Dizem que
foi de José Afonso da Silva a ideia originária, que foi dele a primeira obra doutrinária que
tocou na expressão no Brasil.
Mas a identidade de expressão não garante identidade de configuração, de
eficácia. Não existe um modelo uniforme de habeas data na América Latina. O modelo no
Brasil não é um direito de proteção de dados propriamente dito, mas a ação de habeas data
proporciona o direito de acesso e retificação, e paramos por aí. Não permite outros tipos de
controle sobre os dados pessoais que são necessários hoje em dia, não permite muitas vezes a
venda secundária de dados pessoais, só para dar um exemplo.
Na Argentina, o habeas data é muito mais do que uma ação. É todo um modelo,
um conjunto de normas visando a conferir direitos de várias ordens ao titular de dados sobre
os seus dados. Enfim, varia-se tremendamente. É um modelo latino-americano? Não. É uma
terminologia que acabou sendo introjetada na nossa cultura jurídica latino-americana. Nas
Filipinas também existe por motivos que escapam, até não consigo nem ter um palpite sobre o
motivo disso, provavelmente é uma questão individual. Mas é um modelo que foi gestado e
floresce aqui. Não é um modelo, aliás, é uma terminologia que floresce no nosso continente,
mas não significa que tenhamos um tratamento harmônico.
Em muitos países, o fato mero do habeas data existir na Constituição não garante
que seja efetivo. O Paraguai tem o habeas data na Constituição e não tem normas nem uma
tradição jurídica que garanta efetivo controle sobre dados pessoais, por exemplo. Não existem
mecanismos regionais de uniformização legislativa como na União Europeia e também não
existe um direito latino-americano. Não há uma unidade cientificamente comprovável que nos
permita entender uma entidade, um objeto de estudo, pelo menos para o que nos interessa,
coeso, chamado de um sistema jurídico latino-americano.
A ação de habeas data no Brasil não se presta nem foi intencionada para que fosse
uma ação de proteção de dados pessoais. Ela nasceu, como Dalmo de Abreu Dallari em 1991
já observava com bastante propriedade, como uma garantia voltada para o passado. Ela foi
muito importante para que, por exemplo, pessoas e familiares de vítimas da ditadura militar
pudessem ter acesso aos seus fichários, enfim informações nos órgãos de repressão, em
hospitais, que não eram acessíveis durante a ditadura. Para isso, ela foi uma peça fundamental
na reconstrução democrática brasileira, mas requeria um esforço que não se justifica para
situações cotidianas, de consumo, por exemplo.
Para impetrar uma ação de habeas data, deve-se ter um advogado, fornecer prova
da recusa da Administração Pública ou da empresa privada a fornecer pela via administrativa.
Enfim, são custos e dificuldades que a tornam tremendamente pouco prática para a sociedade
da informação.
Lembro-me de um caso mostrado numa pesquisa que foi feita na Magistratura
do Rio de Janeiro. Em um determinado ano, algo como 2004, 60% das ações de habeas data no
TJ do Rio de Janeiro foram impetradas por um único autor, que era um funcionário
aposentado do BANERJ, o banco estatal, que resolveu infernizar a vida de todo mundo que
tenha dito “oi” para ele um dia na rua. Não era um número tão colossal, o que quer dizer que
ela não é um instrumento de acesso democratizado à informação, não funciona como isso. Já
teve a sua função e hoje em dia não cumpre a função de proteger os dados da sociedade de
informação.
Quais são as perspectivas que temos? O Mercosul, em maio de 2010, aprovou
dentro do Subgrupo de Trabalho nº 13, uma normativa sobre proteção de dados pessoais, que,
se vier a ser aprovada no ano que vem como normativa no Mercosul, deve vincular todos os
países da região a ter uma norma genérica de proteção de dados. Argentina e Uruguai já têm,
faltam o Brasil e o Paraguai.
O Ministério da Justiça do Brasil, agora em agosto, anunciou que preparou um
anteprojeto de lei de proteção de dados pessoais que pretende levar à consulta pública. Foi
anunciado ainda este ano, não se sabe se isso vai acontecer já ou não, mas é iminente a
publicização desse anteprojeto.
Quais as bases genéricas desse anteprojeto? Ele tem uma dupla natureza, isto é,
ele se presta tanto a proteger os dados dos cidadãos quanto a fornecer um patamar mínimo de
proteção que permita que todos aqueles interessados em tratar dados pessoais tenham
segurança ao fazê-lo. Se uma empresa quer tratar dados pessoais, ela pode fazê-lo dentro de
certas regras. E nós, consumidores, cidadãos, muitas vezes temos muito a ganhar com isso.
Hoje em dia, na Internet, temos tantos serviços gratuitos por quê? Porque pagamos com a
nossa informação. Não é um problema em si, o problema é não ter controle, não saber o que
vai ser feito com esse dado e vir a ser prejudicado no futuro por isso.
Então, ao fornecer um patamar de segurança para tratar a informação pessoal,
você incentiva aquela empresa responsável a atuar e desincentiva as empresas mais temerárias
ou com uma agenda dupla a entrar numa atividade arriscada, porque estariam dispostas a
sofrer a consequência numa ação judicial.
O anteprojeto é unitário, isto é, aplica-se tanto ao setor público quanto ao
privado, porque o direito é do cidadão. Ele pode ser violado tanto pelo Estado quanto pela
iniciativa privada. Não interessa quem violou, interessa que, em sofrendo abuso, ele tem os
instrumentos para poder reclamar.
O anteprojeto também procura estabelecer como fatores de legitimação para o
tratamento de dados o consentimento do cidadão ou uma autorização prévia prevista em lei
por motivos específicos, motivos justificados.
O anteprojeto de lei procura proteger de forma especial os dados sensíveis. Dá
uma proteção maior a dados que se prestam a uma maior discriminação, como dados sobre
saúde, dados genéticos, dados sobre preferências sexuais, filosóficas, partidárias, religiosas,
etc., ou seja, dados cujo tratamento não pode ser banalizado.
O anteprojeto tem um caráter transnacional também no sentido de que procura
dificultar saídas de dados de cidadãos brasileiros do Brasil para evitar aquele mecanismo do
paraíso de dados. Também institui uma autoridade de garantia para zelar pela aplicação da lei.
Os princípios básicos da lei são aqueles princípios a que me referi no começo: a
atualização dos fair information principles. O princípio da finalidade diz que os dados pessoais
somente podem ser tratados para a mesma finalidade que ocasionou a sua coleta. Se os seus
dados pessoais são coletados para você obter um financiamento, eles não vão poder ser
utilizados pelo banco para serem revendidos a terceiros para você receber mala-direta na sua
casa, a não ser que você tenha expressamente anuído com essa utilização. Isso, por si só, já é
um grande avanço e resolve uma percentagem grande dos problemas que enfrentamos hoje
em dia.
O princípio da necessidade diz que os dados pessoais só podem ser tratados se
forem necessários para uma determinada finalidade, o que é parecido com o princípio da
proporcionalidade. Eles não podem ser excessivos. Deve haver um bom motivo para os dados
pessoais, não posso ir além dos motivos razoáveis, ferindo as expectativas de privacidade do
cidadão.
O princípio da qualidade: os dados devem ser verdadeiros. Dado falso é a pior
coisa que pode acontecer, porque você às vezes autoriza o dado pessoal a ser tratado, mas não
sabe que ele é falso. Você pode estar sendo prejudicado sem sequer desconfiar que isso esteja
acontecendo. Esse é um grande problema, por isso que a autoridade de garantia é tão
importante, porque mesmo a pessoa mais consciente de todos os riscos não é capaz de
acompanhar o que é feito nos próprios dados. O princípio da qualidade obriga aquele que
trata os dados a tratar dados verdadeiros, atualizados e relevantes.
O princípio da transparência diz que todo tratamento de dados pessoais têm de
ser de conhecimento público, deve ser transparente. Se alguma empresa, algum setor do
governo trata meu dados, esse tratamento deve ser conhecido, até mesmo para conhecer
como é feito esse tratamento, senão não posso exercer o último princípio, que é o direito de
livre acesso, e o direito de livre acesso é pré-requisito para modificarmos o dado, corrigi-lo,
etc.
Por fim, o princípio da segurança, que implica dificultar a invasão física e lógica
de dados pessoais.
A Comissária para Consumo na União Europeia, Meglena Kuneva, deu uma
declaração no passado que ficou muito famosa, e muita gente repete. Diz que os dados
pessoais são o novo combustível da Internet e a nova moeda no mundo digital. Muitos novos
modelos de negócio se estruturam, são aparentemente grátis para o consumidor, mas são
pagos com informação pessoal.
Isso é necessário e não é um mal em si, pode ser muito interessante para todos
nós, mas é necessário que saibamos, se isso é uma nova moeda, quem são os bancos, quem
são os responsáveis pelo armazenamento do dado pessoal, e que eu, como cidadão, tenha
meios para coibir qualquer abuso que possa restringir a minha liberdade e a minha privacidade.
Lembro a obra famosa do Torres Garcia, que vivia pintando a América Latina
virada, mas quem disse que é virada? Quem disse que o norte aponta para um lado e não para
outro? A evocação que faço é um paralelo até curioso com uma capa da Revista The
Economist de uma das semanas de outubro, que também pintou a América Latina
aparentemente invertida, mas chamando a atenção que o desenvolvimento econômico latino-
americano assume destaque internacional relevante pela primeira vez na história moderna.
Interessantemente, o novo campo de batalha por assim dizer da geopolítica da proteção de
dados hoje em dia é diretamente aqui.
Temos aqui o mapa no sentido tradicional que conhecemos, onde os países em
azul são os que têm leis de proteção de dados. Não é um mapa muito fiel, eu talvez não
assinasse embaixo. A Rússia não tem propriamente uma lei muito eficaz de proteção de dados,
e os Estados Unidos, coitado, que estão em branco, como quem não tem lei nenhuma, tem
um sistema bastante eficaz, porém particular, de proteção de dados, com falhas graves, mas
com vários méritos também. Os países em vermelho estão atravessando um processo de
formulação de leis de proteção de dados. A América Latina, que, em anos anteriores, era quase
toda branca, começou a ficar vermelha e hoje em dia está começando a tender para o azul. É
um movimento que vai certamente refletir nas próximas movimentações legislativas.
Muito obrigado pela atenção.
DES. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS
Agradecemos ao Dr. Danilo César Doneda essa magnífica viagem que nos
proporcionou, essa exposição cartesiana, histórica, realmente didática.
Concederemos a palavra aos participantes depois da palestra da Profa. Regina
Linden Ruaro, a quem passo a palavra para abordar o tema por trinta minutos.
DRA. REGINA LINDEN RUARO
Muito obrigada, boa-tarde a todos. Quero, em primeiro lugar, agradecer Sua
Excelência, o Presidente da Mesa, também ao Colega Danilo Doneda, que me acompanha
nesta jornada, do qual sou discípula - depois da sua palestra, fica difícil até falar -, Suas
Excelências, Desembargadores, Juízes, demais pessoas do público, a Mary, e o meu marido,
que sempre me prestigia e que está aqui também.
Depois dessa brilhante palestra, bastante técnica, desse apanhado, desse
histórico, eu iria até passar lâminas, mas, por duas razões, não vou fazê-lo. A primeira, é que
não dá para competir com o Dr. Doneda. A segunda é que temos todos compromissos, eu
dou aula na PUC às sete e meia, e ele tem que pegar um voo. Então, resolvi fazer uma fala
reflexiva a respeito do tema de proteção de dados e proteção de dados pessoais.
Começo conceituando, porque é preciso que tenhamos presente o que vem a ser
um dado pessoal. A diretiva europeia e os países da União Europeia incorporaram como
conceito de dado pessoal todo aquele dado de pessoa identificada ou identificável, quer dizer,
tudo aquilo que possa nos identificar enquanto ser humano é um dado pessoal.
Infelizmente, no Brasil - o Prof. Doneda é mais otimista do que eu -, penso que
ainda vamos bastante atrasados na matéria. Há um projeto do Senado Sérgio Zambiasi que é
de 2004 e que não saiu do papel. Há agora esse projeto do qual o Prof. Danilo Doneda é um
dos construtores dos conceitos, no qual tem trabalhado muito, e ele deveria ter ido já para o
Congresso, enviado pelo Ministério da Justiça no final de agosto, mas, com as questões
eleitorais, realmente fica bastante difícil, até para que não seja usado para fins políticos.
Aqui temos de tratar da questão do Grande Irmão e as janelas do Judiciário. Ao
fim e ao cabo, no Estado da questão em que estamos, tudo desemboca no Poder Judiciário, e
eu me explico: a ausência de uma regulação relativamente à proteção de dados pessoais faz
com que toda a sua má utilização tenha de ser recomposta por meio de uma ação por danos
morais ou materiais no Poder Judiciário pela via do Código Civil.
O Poder Judiciário, que evidentemente tem o seu papel e a sua importância,
poderia, se houvesse uma regulação por parte do Estado, ver-se desabarrotado, como
acontece em países que têm agências de proteção de dados - a que eu mais me acerco é a
Espanha, pois trabalho com a Universidade de lá e tenho mais vínculos -, que evitam esse
abarrotamento de ações no Poder Judiciário.
É emblemático o que Freud já colocava no início do século passado, que nós já
não somos mais donos do nosso eu interior. E vejam que nós não somos donos, e ele sequer
fazia ideia de que estaríamos hoje na era da cibernética, na Internet, navegando nas nuvens,
porque nós estamos nas nuvens.
Foi quebrada a lei da Física de que dois corpos não podem ocupar o mesmo
espaço, porque, no espaço virtual, milhares de corpos estão. Estamos em todos os lugares e
em lugar nenhum. E o Grande Irmão somos nós mesmos, não é só o Estado, porque
principalmente os jovens estão fazendo os seus perfis nos Orkuts, nos Facebooks, colocando
dados da máxima importância.
Hoje eu conversava com o Prof. Doneda sobre uma comunidade de Orkut
chamada de Eu Odeio o meu Chefe. Quero saber quantos daqueles participantes da comunidade
vão conseguir ou conseguiram emprego. É uma boa pesquisa.
O papel do Judiciário também se torna importante porque tivemos agora, no
primeiro semestre, uma consulta pública do Conselho Nacional de Justiça a respeito da
uniformização das informações a título de fazer valer a transparência pública e o princípio da
publicidade das informações processuais em rede mundial. Todas as informações serão, pela
proposta, disponibilizadas, com exceção daquelas reservadas ao sigilo e daquelas relativas às
relações de trabalho. Eu mandei milhares de e-mails, porque tenho me debruçado sobre uma
questão importante que parece que não está sendo vista. Intimidade, privacidade e proteção de
dados pessoais andam numa mesma linha, mas não são sinônimos, uma decorre da outra.
Vejam só, na Justiça do Trabalho, o empregador não pode, ou qualquer um de
nós, colocar o nome do empregado e saber se ele demandou alguém, mas os empregadores
têm redes internas. Isso nós sabemos que têm, como os bancos têm. Muito bem, é difícil
chegarmos até aí? Sim, mas eles estão utilizando dados cíveis, por exemplo, de candidatos a
empregos que estejam demandando em juízo questões cíveis ou sendo demandados, por mera
questão de índole de acesso por tutela no Poder Judiciário.
Então, se alguém está demandando um banco ou sendo demandado por um
banco, é pouco provável, e já há denúncia, de que consiga um emprego. Evidentemente que
não haverá essa justificativa. Assim como dizer que não empreguei um gordo por preconceito,
é preconceito dizer que não empreguei porque ele está sendo executado, mas já há casos, e
esses dias ouvi no Fantástico que uma pessoa não ganhou o emprego porque estava no SPC.
O próprio Poder Judiciário, que é aquele que tem o dever prestacional de
recompor dano, no intuito, e não é uma crítica destrutiva, é uma reflexão, por isso que sou
estudiosa, não pode ser aquele que dará subsídios. Inclusive no meu comentário na consulta
pública até fiz referência a que tipo de informações poderiam ser dados e que houvesse a
necessidade de informação de um CPF e uma senha - o CPF, e não pelo nome da pessoa,
porque a quem importa se estou demandando ou sendo demandado? É público, mas, se eu for
à 4ª Vara Cível e pedir para olhar um processo, vão me perguntar se tenho procuração, não
vão? Mas, em câmbio, como dizem os espanhóis, se eu colocar o nome na Internet daquela
pessoa, eu vou ver tudo. Para que vou me deslocar até a Vara e ainda gastar gasolina ou
passagem?
Existe um contrassenso que deve ser pensado. Por que importa a meu vizinho se
eu estou me separando judicialmente? Se ele bota o meu nome, se não está em sigilo, aparece
ali a ação, separação. Então, isso é muito complicado e requer cuidados.
Há um outro questionamento que tenho feito. Ontem eu abri o jornal e me
deparei com uma coluna de um historiador que dizia que as pessoas estão se preocupando
mais com os centavos que serão retirados pela CPMF do que com os dados que se recolhem a
partir da CPMF.
A movimentação bancária é sigilo. Só o Poder Judiciário pode autorizar a quebra
do sigilo bancário. As retiradas pela CPMF são uma contribuição que vai para os cofres
públicos. A origem do dinheiro está ali. Se, por um lado, a CPMF é o imposto mais
democrático que existe, ela tem uma dupla faceta, tudo o que faço, tudo o que compro, tudo o
que movimento, o Estado sabe. É o Grande Irmão que está olhando a todos nós, e o que é
pior: ele vai olhar para nós, cidadãos do bem, porque o tráfico não deposita em conta e, se
deposita, tem laranjas para fazê-lo e se assegura muito bem.
Também a partir dessa formação, dessa criação do Grande Irmão, do Big Brother,
tivemos já uma experiência trágica, que foi a experiência nazista.
A IBM comprou o sistema de uma empresa americana, a Hollerith, não sei se
vocês já ouviram falar e se em algumas empresas ainda utilizam o holerite como contracheque.
Hollerith era a empresa que processava mecanicamente as folhas de pagamento e os dados dos
seus empregados. A IBM a comprou, ela depois veio a ter o nome – IBM -, começou a fazer a
catalogação, e é acusada hoje de ter colaborado com o nazismo a respeito da catalogação dos
judeus, que tinham um número.
A Alemanha foi um país que se debruçou sobre a questão da proteção de dados
pessoais a partir de um intento do Estado por uma lei chamada Lei do Censo, em que todo
cidadão deveria responder 160 questões. A lei previa inclusive pena de prisão para quem não
respondesse. Essa lei foi objeto de ação de inconstitucionalidade, e o tribunal constitucional
alemão considerou a Lei do Censo inconstitucional porque remontava à experiência passada
do nazismo. Criou-se então, pela primeira vez, se não estou enganada, a ideia da
autodeterminação informativa.
Então, temos nesse apanhado geral, vários conceitos para tratar na proteção de
dados, uns a partir da liberdade, a liberdade de ir e vir, a liberdade de comerciar, a liberdade
para casar, a liberdade em todos os seus aspectos. Outro conceito que se extrai é o da
dignidade da pessoa humana, e aí vem a questão de eu entender como diferente privacidade,
intimidade e dado pessoal. Aquilo que está na minha privacidade está no âmbito da minha
convivência. Evidentemente, se eu for uma pessoa pública, tem-se que ponderar pelo
princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, o que é que deixa de ser da minha esfera da
privacidade. Aquilo que está na minha intimidade faz parte do meu secreto, muitas vezes, faz
parte do meu dado sensível, a minha orientação sexual, a minha religião, que eu não quero que
os outros saibam e que só eu, por autodeterminação informativa, é que posso dizer.
Entretanto, a proteção de dado, o dado pessoal não goza muitas vezes dessa
prerrogativa que a intimidade e a privacidade têm. Em que medida? Dados de saúde por
questões de saúde pública são dados que, a princípio, não requerem consentimento. Então, se
um médico recebe um aidético, ele tem que informar, ele não tem que divulgar, mas ele tem
que informar à autoridade pública da saúde da existência de fulano de tal, fulana de tal, que
tem AIDS, até por questões de políticas de saúde, de políticas públicas.
Os dados históricos também não são dados que necessitem de consentimento.
Agora mesmo o Censo do IBGE teve dificuldade para entrar em algumas casas por vezes por
motivos de segurança e outras vezes porque as pessoas não querem que o Estado saiba como
elas vivem, quanta elas ganham. Elas têm esse direito? Há de se pensar.
Então, o dado, a proteção do dado, no meu modo de ver, humildemente
falando, está muito mais no seu manejo do que na intimidade e na privacidade, porque aqueles
dados que eu não quiser fornecer, eu não vou fornecer, estão na minha intimidade. Aqueles
que eu tiver que fornecer, como é que vou ajuizar uma ação e não informar o meu endereço, o
meu CPF, para ficar no âmbito do Poder Judiciário. Como vou fazer isso? Eu tenho que fazer
isso, agora isso não pode tornar-se público. Aí vamos entrar na discriminação do que é
tornado público que não deveria ser tornado público.
Só para citar uns poucos, três exemplos: um, o caso de milhões de jovens que
tiveram os seus nomes e os seus dados lançados pelo famigerado ENAD, e ficaram os dados
por 24 horas na Internet. Hoje, na PUC, não podemos nem publicar nos quadros, como era na
minha época, em que se colocava lá a nota. Passava no corredor e olhava a nota. Hoje não,
nós temos de publicar na Internet, e o aluno, com a sua senha, vai ver. Penso que aí até já está
demais, mas, em todo o caso, há colégio que faz competição: os que tiram nota mais alta
ganham prêmios.
Outro caso eu comentei hoje à tarde numa defesa de uma banca. Foi feito o
estudo genético de uma tribo, no Canadá, em Salt Lake. Essa tribo mostrou tendência a
desenvolver diabetes do tipo 2. Isso era para ser utilizado pelo Poder Público em termos de
políticas públicas para as comunidades indígenas. Os dados vazaram, e essas pessoas tiveram
um tremendo prejuízo relativamente à discriminação, sobretudo de planos de previdência e de
saúde.
Outro problema, pesquisa com o genoma. Quem se responsabiliza pelos dados?
O DNA é único, nós temos os parentais, os pais, o pai e a mãe, que nós podemos dizer: “É
filho de”. Mas aquele DNA é meu, e a compatibilidade com o meu pai e com a minha mãe é
98%, 99%, o que já indica a maternidade e a paternidade, porque hoje o juris et de jure para a
maternidade também acho que o Poder Judiciário deve estar se batendo, porque quem é a
mãe? É a mãe biológica, é a mãe que alugou o ventre ou que emprestou o ventre, é a avó da
criança, que a nora ou a filha não podia gestar, e ela então gestou? Quem é a mãe? É outra
discussão. Aqui já é juris tantum.
Então, isso é discriminatório. Também agora a questão do monitoramento do
correio eletrônico pelo empregador. Isso vem no bojo de uma discussão de autorregulação e
regulação. Alguns são partidários de que haja mais uma autorregulação na proteção de dados
pessoais do que uma regulação por parte do Estado.
Eu sou partidária das duas correntes. Vejam: as instituições públicas e privadas já
se autorregularam quanto ao correio eletrônico. O uso do correio eletrônico institucional pelo
empregado tem que ser por motivos de trabalho, e as regras devem estar claras - decisão do
TST, que começou aqui no TRT4. O Des. Ghisleni inclusive colheu o trabalho de um
orientando meu na época para fazer o voto. Quando os discípulos superam os mestres é
muito bom, eu fiquei lisonjeada. Ele fez o seu voto, e o TST confirmou: o empregado pode,
sim, usar, mas nas condições e nas regras absolutamente claras fornecidas pelo empregador.
Vejam vocês que o Poder Judiciário tem essa cautela de autorregulação no site,
nos seus correios eletrônicos. Também tem essa cautela o Governo Federal. Quando acesso o
meu e-mail institucional, eu sei as regras de uso.
A regulação vem para quê? O Estado tem deveres, nós temos direitos
fundamentais de prestação, alguns de prestação positiva por parte do Estado, e outros de
prestação negativa.
Entendo pessoalmente – digo pessoalmente porque sempre me curvo às outras
opiniões, se for o caso – que o Estado tem que trabalhar com uma política preventiva,
prospectivamente, evitando que tudo vá acabar abarrotando o Poder Judiciário, que depois
fica com a pecha de inoperante. Em vez de escreverem Excelentíssimo Juiz, escrevem Esse
Lentíssimo – vocês conhecem essa anedota.
Então, tenho muito claro, muito instigante - deito e acordo com proteção de
dados pessoais -, que há uma verdade que, para mim, parece que está posta: a privacidade
acabou. Agora, como vamos fazer para nos proteger? Essa é a grande pergunta que deixo para
vocês.
Muito obrigada. Desculpem se não atendi às exigências.
DES. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS
Obrigado, Profa. Regina. Nós, do Memorial, sentimos júbilo porque houve
realmente uma interface entre as duas brilhantes palestras. Cada uma em uma vertente, em
uma ótica, cada uma delas contribuindo decisivamente para o nosso esclarecimento e a nossa
informação.
Temos uns dez minutos para formular perguntas aos nossos palestrantes.
Atrevo-me a fazer uma indagação ao Prof. Danilo. Recentemente aqui no Brasil
houve uma modificação no Estatuto da Criança e do Adolescente, especialmente no que se
refere ao filho adotivo, em que o Brasil pelo menos regulamentou a possibilidade do filho
adotivo. Isso também se estende àquele nascido de fecundação artificial, ou de fertilização
artificial, ou também daqueles que chamamos aqui no Brasil aqueles casos de adoção à
brasileira, que é de reconhecer um filho que não é seu. Então, há agora a possibilidade de o
filho adotivo buscar o conhecimento da sua origem genética.
O senhor fez um panorama na parte européia, e esse assunto afinal veio para o
Brasil por essas vertentes europeias, tanto é que o artigo da Lei do Estatuto é uma cópia
praticamente de outro dispositivo da Comunidade Europeia.
Esse consentimento dado pela pessoa serviria num caso de busca da informação
genética, da pesquisa do dado genético para esclarecer a paternidade? Alguém poderia, por
exemplo, fazer uma transfusão de sangue ou um tratamento, como a Professora falou no caso
do genoma, que fosse envolvido isso? Porque se sabe que uma das razões em que se admite a
possibilidade dessa pesquisa é para prevenir doenças genéticas. Existe na legislação a
possibilidade de alguém reservar aquela informação para outros casos que não para esse?
DR. DANILO CÉSAR MAGANHOTO DONEDA
Reservar informação sobre a verdadeira origem genética?
DES. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS
É, genética. O dado entregue, por exemplo, a uma clínica de fertilização, a um
banco. A doação anônima.
DR. DANILO CÉSAR MAGANHOTO DONEDA
Temas de proteção de dados envolvem dados pessoais, mas envolvem também
várias acessibilidades que às vezes também são locais, culturais, e não devem ser visualizadas
só do ponto de vista da proteção de dados estrita. Têm-se outros valores culturais e sociais
para serem levados em conta.
Sobre a doação anônima, por exemplo, de sêmen no Brasil, sabemos que não
existe uma resposta cabal e definitiva, mas tende a ser entendida como uma possibilidade
muito restrita, se é que é possível, porque quanto ao direito à identidade genética - muito
embora não se tenha articulado de forma definitiva no nosso ordenamento, como, aliás, tantas
outras coisas referentes à informação pessoal, inclusive genética -, à preponderância do
interesse individual de cada um de nós em saber a verdadeira origem, como por questões
sanitárias para a eventual prevenção -, sabemos que o quadro genético pessoal é muito
importante, o conhecimento da ancestralidade é importante para fechar algumas dúvidas e
tendências - há um interesse tanto científico, tanto de saúde, quanto interesse pessoal, que
considero digno de proteção, em saber a nossa própria ancestralidade. É um direito da
personalidade, eu não sou somente eu, dependo de onde vim.
DES. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS
Seria quase a aplicação do princípio da proporcionalidade?
DR. DANILO CÉSAR MAGANHOTO DONEDA
Eu acho também. No caso, não imagino que uma lei de proteção de dados
pessoais e um eventual sigilo possam proteger, mas acho que aí se faz realmente um juízo de
proporcionalidade no qual a proteção de dados não pode interferir no interesse maior, que é o
interesse da identidade genética.
Há casos e casos, você veja o caso do parto anônimo por exemplo. Pode parecer
uma coisa semelhante, mas não é. O parto anônimo é possível em alguns países de tradição
jurídica parecida com a brasileira. Na Itália, a mulher tem o parto, some do hospital, o único
registro da maternidade somente pode ser usado com finalidades clínicas, não pode ser
utilizado para fins de investigação de paternidade.
É uma medida cruel por vários pontos de vista, por outro lado, evita o aborto
em algumas circunstâncias. É muito complicado fazer essa sintonia fina.
DRA. REGINA LINDEN RUARO
Eu comparto da mesma opinião do Prof. Doneda, é um direito de cada um saber
da sua origem. Isso diz com a dignidade da pessoa humana, mas, sobre a finalidade, a lei teria
que dispor. Parece que isso, nesse projeto que o Prof. Doneda expôs em linhas básicas, estaria
posto, ou seja, não se recolhe um dado pessoal por recolher, ele tem uma finalidade e tem de
ser usado para essa finalidade.
Um indivíduo que viveu quarenta anos sem querer saber o pai, de repente,
suspeita que o pai seja um milionário que morreu, tinha família. Ele vai entrar com uma
investigação de paternidade. Ele está preocupado com a sua origem ou ele está preocupado
com a sua herança? Claro que é um direito que ele tem, mas vamos colocar: o pai é alguém
que tinha outra família, que não foi revelada, a mãe não revelou, e de repente ele viveu muito
bem quarenta anos e só quis saber quem era o pai quando teve forte indício de que era um
milionário.
DES. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS
É por isso que aqui, na Justiça do Rio Grande do Sul, valoriza-se muito a
socioafetividade. Quando há um pai socioafetivo, aplica-se a teoria da proporcionalidade.
DRA. REGINA LINDEN RUARO
O Des. Ney Ahrends uma vez expôs numa palestra a questão da prova ilícita.
Foi utilizada pelo princípio da proporcionalidade. Era o caso de uma criança filha da
empregada com o de cujus, e só um amigo íntimo tinha a carta em que ele contava a verdadeira
história. A mãe era pobre, doméstica, e ele veio a falecer. O filho já tinha parece que 18 anos,
não lembro bem o caso, não tinha condições de sustentar os próprios estudos, e esse amigo se
viu moralmente compelido a revelar. Não revelou, mas subtraíram a carta, se não me engano,
e foi utilizado o princípio da proporcionalidade recepcionando a prova ilícita. Faz bastante
tempo que ouvi essa história, e chamou-me a atenção, porque o princípio da
proporcionalidade para o Direito brasileiro é novo, veio depois da Constituição.
DR. FELIPE RAUEN FILHO
Agradeço os preciosos e precisos ensinamentos que os Professores nos
trouxeram.
Na questão da proteção do princípio do direito à intimidade, que não é absoluto,
nós sabemos, o ilícito tributário, principalmente ilícito penal, pode ser enfrentado, não se diria
violado, por ordem do Poder Judiciário, mas também vigora, no nosso sistema, o princípio de
que o acusado não é obrigado a confessar, pode mentir, não é obrigado a falar, não é obrigado
a fazer prova contra si mesmo.
Então, eu pergunto: nesses sistemas em que o Judiciário autoriza violar a
privacidade por gravações e filmagens, nas quais o acusado é apanhado admitindo o fato
criminoso, não se está paradoxalmente protegendo o interesse público e, ao mesmo tempo,
atingindo aquele direito que o acusado tem de não se autocondenar?
DR. DANILO CÉSAR MAGANHOTO DONEDA
Vou tentar dar um palpite sobre essa questão. Mesmo a gravação obtida por
monitoramento não teria o caráter de prova confessional, tenho a impressão. Acho que o
caráter seria diferente. Poderia ser sujeita a algum tipo de contestação que não seria
equivalente a uma confissão, estritamente dizendo.
Pensar nisso, leva-nos a pensar em algumas formas, como a liberdade, que a
tradição jurídico-ocidental desenvolveu durante séculos, a garantia da não incriminação
pessoal, que talvez seja uma garantia cada vez menos real e concreta. Isso é bastante relevante,
diante das possibilidades de monitoramento.
Há um motivo, há uma razão de ser a garantia de não incriminação, todo mundo
sabe. É um direito que foi contestado, mas é de certa forma um avanço, uma conquista da
nossa tradição jurídico-ocidental, que demorou certo tempo para ser monitorada. É uma
conquista da qual podemos abrir mão a partir do momento em que confiemos em
mecanismos eletrônicos de monitoramento. Acho que esse ponto é excelente para reflexão.
DRA. REGINA LINDEN RUARO
Penso que melhor responderia isso o Prof. Rodrigo, mas me arrisco a elucubrar
que a origem dessa escuta telefônica e da permissão dessa ordem judicial está no poder de
punir do Estado, que também é inderrogável, porque ali estamos diante de uma situação que
viria em benefício da sociedade.
O poder de punir do Estado nada mais é do que a representação que o Estado
tem, enquanto grande e forte homem artificial, criado pelo homem natural, dito em Leviatã,
para recompor a ordem social.
Na medida em que há gravação, no meu modo de ver, ele não está fazendo
prova contra ele, porque ele tem o direito ao contraditório e à ampla defesa. Aquilo é objeto
de uma investigação que será levada ao Juiz, que, depois de feita a contraprova, poderá ser
esvaziada. E digo mais: pessoalmente, sou partidária dessas interceptações telefônicas, porque
muito já se conseguiu, nunca se botou tanto bandido grande na cadeia como se tem colocado
agora, e espero que se bote mais, principalmente bandido que rouba dinheiro público, que é
pior ainda.
Essa é a minha opinião. Acho que essas pessoas, principalmente quando
tratamos da coisa pública, não têm sequer o direito de invocar isso. Vão sair daqui dizendo
que eu sou reacionária, mas me refiro ao fato de que elas têm o direito de contraditar e de se
defender e de esvaziar. Elas podem dizer que todo aquele diálogo, se a confissão não foi
expressa, se referia a outra coisa, e muitas vezes é o que acontece. Como falam por símbolos,
entendo que é muito difícil.
Pode até ser verdadeira a afirmação do promotor quando alega que a caixa que
eu ia entregar era uma caixa de fotos do meu casamento - só para ilustrar. Por que é que tinha
que ser a caixa com dinheiro? Aí temos de fazer códigos.
Então, a minha opinião é nesse sentido, mas meramente especulativa, não é a
minha área. É pessoal e não acadêmica.
DES. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS
Lamento que temos que encerrar o painel.
Mais uma vez agradeço a colaboração dos palestrantes, com o seu
brilhantismo - esperamos encontrá-los em outras oportunidades seguramente -, e a presença
de todos, dando por encerrado este painel.
(Degravado e revisado pelo Departamento de Taquigrafia e Estenotipia do
TJRS).