Pais Desajustados Filhos Difíceis

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    J. M. DE BUK

    PAIS DESAJUSTADOS,

    FILHOS DIFCEIS

    TRADUO DE MARIA LUIZA STUDART DE MORAES

    1959

    RIO DE JANEIRO

    Traduzido do original francs:ERREURS SUR LA PERSONNE

    publicado porDescle de Brouwer

    N D I C E

    PREFCIO

    PRIMEIRA PARTERemedeie as verdadeiras causas

    PRIMEIRO CASO SEGUNDOCASO TERCEIRO CASO QUARTO CASO QUINTO CASO

    SEGUNDA PARTENo se deixe dominar pelos prprios complexos

    PRIMEIRO CASO SEGUNDOCASO TERCEIRO CASO QUARTO CASO

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    QUINTO CASO

    TERCEIRA PARTEDefenda sua vida conjugal

    PRIMEIRO CASO SEGUNDOCASO

    TERCEIRO CASO QUARTO CASO QUINTO CASO

    QUARTA PARTEPense na sua prpriaeducao

    PRIMEIRO CASO SEGUNDOCASO TERCEIRO CASO QUARTO CASO QUINTO CASO

    CONCLUSO

    PREFCIO

    Este livro destinado aos educadores que, alm da pedagogia usual, seinteressam pelo mtodo psico-pedaggico, pelo menos em relao reeducao decrianas a adolescentes normais, porm artificialmente difceis.

    Sabe-se que a aplicao desse mtodo vem, h dez anos, realizando progressosconsiderveis. Na Sua, Frana, Holanda, Sucia, Estados Unidos, Canad, centrosespecializados examinam milhares de crianas e adolescentes e, na grande maioria doscasos, a psico-pedagogia, devido aos seus resultados prticos, se revela muito superior apedagogia usual.

    A criana difcil, ou a "criana-problema", como a chamam, sendo mais bemcompreendida como pessoa, mas, sobretudo em funo do meio, pode, graas a umreajustamento afetivo, corrigir to bem os vcios caracteriolgicos de conformao que,em breve espao de tempo, consegue atingir e mesmo ultrapassar o nvel normal dascrianas de sua idade.

    No entanto, quem tem alguma experincia, no tanto dos exames psico-pedaggicos propriamente ditos, como das consultas que motivam esses exames, sabeque, em nove sobre dez casos, o problema da criana difcil mal apresentado. Em vezde verem neles um problema do meio familiar e escolar, transformam-nos numa espciede exame de laboratrio, cujo objeto a prpria criana, isolada porm, de todocontexto e julgada sem uma anlise prvia dos laos afetivos recprocos, que a vinculamao meio e mais especialmente aos pais.

    O pai, a me, os irmos, as irms, os avs, os professores e mestras de classe, oscamaradas quase no so levados em conta. Conseqentemente, as crianas parecemmnadas que devem forosamente entrosar-se numa ordem familiar e escolarpreestabelecida e se no o fazem ou o fazem com dificuldade, so consideradas difceis.

    S raramente ocorre a idia de que talvez essa ordem pr-estabelecida no sejaconveniente e que, portanto, a criana no pode adaptar-se a ela, e a sua inadaptao ou

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    a inadaptabilidade afetivas ao meio familiar e escolar so provocadas mais por essesmeios do que por ela prpria, e que se h crianas e adolescentes-problemas - o que inegvel - h sobretudo pais e educadores-problemas.

    Da o princpio psico-pedaggico: s h estudo verdadeiramente adequado deuma criana ou de um adolescente difcil quando ele estudado em funo do meiofamiliar e escolar e, mais precisamente ainda, em funo das relaes afetivas

    recprocas que o ligam a esse meio.O exame da criana e do adolescente, por mais necessrio, e mesmo por maisobjetivo e cientifico que deva ser, ser sempre um bosquejo sumrio da verdadeiradificuldade pedaggica. A nosso ver, omite-se com muita facilidade a anlise principal:a da afetividade dos pais e educadores.

    * * *

    Decerto s estamos enunciando uma idia nova para aqueles que aindaacreditam na infalibilidade absoluta do mtodo pedaggico usual. Para esses o problema simples: tm o direito de mandar, e a criana a obrigao de obedecer. Mtodosimplista sobre o qual o que se pode dizer de menos que nem sempre obtm um

    resultado favorvel.A razo desse fracasso pode ser perfeitamente explica da contanto que se recorra

    analise psico-pedaggica: o comportamento defeituoso da criana, no meio familiar ouescolar, aparece logo, no unicamente como um efeito. Em outros termos, existe muitasvezes uma perturbao afetiva, que provoca esse comportamento defeituoso, cujaresponsabilidade no s da criana, mas foi produzida, e talvez mesmo criada,artificialmente, pelo meio.

    Por conseguinte, convm dizer que, em grande nmero de casos, aresponsabilidade de ambas as partes; todavia, como esto em jogo adultos e crianas,parece normal supor que a responsabilidade dos adultos maior do que a das crianas.

    Mas por que falar em responsabilidade, que sugere, por definio, uma faltamoral mais ou menos consciente? Preferiremos, por isso, o termo erro". Nestaspginas, arriscando-nos talvez a parecer ingnuos, imaginaremos erros totalmenteinconscientes, por conseguinte no deliberados, no-desejados, no-previstos.

    Para no merecer essa critica, gostaramos, uma vez por todas e para no insistirmais sobre o assunto, de por em foco a questo da culpabilidade do pai e da me emrelao aos filhos, cujos vcios de formao caracteriolgicoseles se apressam tanto emcensurar sem reconhecer, na maioria das vezes, que sobre eles que talvez recaia aculpa desses mesmos vcios.

    So, por exemplo, evidentemente culpados os pais que esbordoam, batem,surram os filhos; que no lhes vigiam as sadas; que permitem camaradagens e amizadesperniciosas; que autorizam revistas, romances, filmes, peas de teatro erticos; que noprobem a entrada em certos dancings ou cafs; que sob o pretexto de camping e deauto-stop, expem os filhos s piores promiscuidades; que fecham os olhos adeterminados flertes, que no protestam contra certas voltas tardias para casa; que, emsuma, por mais entendido que sejam de pedagogia autoritria, deixam voluntariamente,ou por incria, prescrever seus direitos.

    Por conseguinte, h pais culpados; alguns ns os conhecemos, e, sem querer usarum paradoxo, dizemos que, pelo fato de serem culpados, que so, sobretudo pais-problemas. Porque, enfim, ilgico invocar por qualquer motivo a autoridade dos pais eusar detal maneira essa mesma autoridade, que ela venha a ser para a criana a origemde vcios de formao caracteriolgicose mesmo religiosos e morais.

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    Dito isso, confessaremos que, pelo menos entre os nossos clientes, hinfinitamente menos culpas que erros. Podemos, pois, dispensar-nos de falar deculpabilidade propriamente dita, e estabelecer a hiptese de pais sinceramente desejososde educar da melhor maneira possvel os filhos, mas que no o conseguem por razesque tentaremos especificar.

    * * *

    O caso tpico que desejaramos examinar o do menino e da menina, noconstitucionalmente perversos, mas artificialmente difceis. Pertencem a essa classesocial que chamam muito arbitrariamente de burguesia. Salvo uma ou outra exceo,que teremos o cuidado de assinalar, so todos, como os prprios pais, catlicospraticantes. Enfim, freqentam escolas e colgios confessionais.

    Todavia, como o adjetivo difcil tem um sentido inteiramente relativo - o que difcil para um pode ser extremamente simples para outro - daremos esse nome acomportamentos, condutas, conjuntos de reaes caracterolgicas, cuja causa exata no aparente e, por conseguinte, no podem ser corrigidos eficientemente.

    O adolescente e a adolescente difceis sero, portanto, para ns "pessoas"

    inexplicadas, seno inexplicveis, em suma, crianas e adolescentes que apresentampara os educadores um problema de mtodo.

    Pode este problema ser considerado de trs maneiras. Primeiro em si mesmo. o menino ou a menina que preciso examinar, tanto sob o ponto de vista fisiolgicocomo psicolgico e caracterolgico. Essa trplice anlise absolutamente necessria.Todavia, nos casos que examinaremos, essa anlise no dar nunca uma respostaabsolutamente adequada, porque, se faz sempre aparecer um vicio de formaofisiolgico, psicolgico e caracterolgico, apresenta geralmente um problema de meio.

    A segunda maneira de considerar o caso , conseqentemente, apresentar esseproblema de meio, estud-lo com cuidado, verificar se, eventualmente, algumaperturbao afetiva, sobretudo de ordem parental, criou na criana uma perturbaoparalela; o que possibilita uma soluo pedaggica muito mais sutil. O exame daafetividade parental dar em geral uma resposta, que, sem serem todas s vezesdeterminante, ter probabilidade de informar melhor o educador sobre a causa docomportamento defeituoso da criana.

    Enfim, pode-se tambm considerar o problema no seu conjunto, isto ,apresentando as reaes afetivas recprocas pais-filhos, filhos-pais. no estudo dessareciprocidade, que pode ser boa, medocre ou m, que teremos a chave de certas reaespsicolgicas e caracterolgicas... que s vezes nos causam admirao, mas se tornamcompreensveis em virtude dessa anlise prvia.

    * * *

    Em suma - e o que gostaramos de mostrar nestas pginas - o menino e amenina difceis so meninos e meninas, cujo comportamento defeituoso, familiar ouescolar, no encontrou explicao. E s uma anlise psico-pedaggica objetiva podedeterminar a causa, ou o conjunto de causas que provocam, como conseqncia, essecomportamento defeituoso.

    Todavia, a conseqncia tem pouco valor. Na quase totalidade dos casos, pode-se mesmo julg-la artificial. Basta, com efeito, eliminar o que a produz, isto , aperturbao afetiva recproca, para conseguir um resultado favorvel.

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    Por outro lado, como essa causa, por hiptese, prticamente desconhecida,seria pouco conveniente pretender corrigir um menino ou uma menina difcil apenaspelo mtodo autoritrio. Pode-se mesmo acreditar que, em grande nmero de casos, emvez de corrigir um comportamento defeituoso, esse mtodo s far agrav-lo. No ,alis, o que demonstra a experincia? Enquanto no se normalizarem as relaesafetivas entre pais e filhos e filhas e pais, o caso pedaggico no poder ser resolvido de

    modo definitivo. Quando muito, pode-se esperar uma retratao superficial etemporria, obtida por receio de sanes mais ou menos graves, mas que deixa intacta acausa real do comportamento.

    Portanto, se exato que uma criana ou um adolescente difcil por causa dasms relaes afetivas a que nosreferimos acima, possvel entrever os principais errospedaggicos que perturbaram essas relaes.

    Erro esse, diga-se de antemo, to grande e to grave em suas conseqncias,que nos perguntamos como um educador ou educadora pode comet-lo, pois consisteem censurar, repreender, castigar, sancionar um ato, uma conduta ou umcomportamento defeituoso, sem fazer nada de eficiente para corrigir-lhe a causaverdadeira e as conseqentes recidivas.

    O sublata causa, tollitur effectus, nem parece que lhes passa pela cabea. Da a

    concluso seguinte: quanto mais eles sancionam o efeito, isto , o comportamento, maisa causa se enraza, prolifera e ocasiona recadas freqentes. o mesmo que dizer quepor seu mtodo autoritrio, sem umas tantas sutilezas, eles se fecham, assim como acriana, alis, num circulo vicioso. o que desejaramos mostrar na primeira parte dolivro.

    O segundo erro tambm certo, a menos que se consinta em renunciar, aindaque seja por instantes, ao mtodo pedaggico usual para recorrer anlise psico-pedaggica. Certos educadores, e mais particularmente certos pais, deixam-se dominarmuito facilmente por suas prprias perturbaes afetivas, entre as quais as principais soo sentimento de decepo, de impacincia, de desnimo, de pessimismo. Eis por que emlugar de sancionar, com calma e ponderao, atos, condutas, comportamentosdefeituosos - o que, diga-se de passagem, continua sendo absolutamente necessrio -fazem-no sob o impulso de um choque emocional ou mesmo passional, o que traz comoconseqncia mais certa o rompimento das relaes afetivas entre os filhos e elesprprios.

    Essa separao, e mesmo em muitos casos esse verdadeiro divrcio afetivo, temgeralmente origens remotas. mesmo raro que tenha incio na adolescnciapropriamente dita. Como veremos na segunda parte deste livro, pode vir na primeirainfncia, isto , da poca em que a criana, de uma maneira suficientemente conscientepara ser explcita, se ope pela primeira vez as injunes dos pais, e, maisparticularmente, as da me.

    Porque preciso, assim como o demonstra a anlise psico-pedaggica, que se dmaior relevo me. ela que, por nervosismo, impacincia, aspereza, inabilidade, sedeixa dominar vela inquietao afetiva. ela que na maioria das vezes d origem aodivrcio afetivo que se ir agravando at a adolescncia do filho e mesmo alm.

    Se adotasse uma atitude exatamente oposta, sobretudo em relao ao filho, oerro pedaggico seria ainda maior, pois a ternura excessiva, os agrados e mimosfixariam nela a afetividade do filho, no lhe dando a possibilidade de emancipar-se, oque o levaria diretamente a comportamentos exageradamente passivos, que alguns - eela prpria - julgaro talvez encantadores, mas que contm em germe as pioresdeformaes psicolgicas e caracterolgicas.

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    A perturbaoafetiva dos pais, da me sobretudo, cria a perturbao afetiva dacriana e posteriormente do adolescente, para no talar do adulto. No h exagero emdizer que, deixando-se dominar por essaperturbao, os pais, e principalmente a me,criam artificialmente comportamentos difceis.

    Talvez seja preciso ir ainda mais longe, porque, num grande nmero de casos,seno em todos, essa perturbao afetiva dos pais no existiria se no existisse antes

    uma perturbao afetiva conjugal: isso entra, olhos a dentro, se se aprofunda umpoucomais a anlise do meio.Decerto no nos referimos, quando falamos em perturbao afetiva conjugal, a

    esses grandes dramas - e eles existem! - que levam separao ou ao divrcio. Comodissemos acima, muito raro, entre os nossos clientes, que os princpios morais ereligiosos no evitem, pelo menos, essas catstrofes. O que existe, porm, e comprovado por alguma experincia de consultas psico-pedaggicas, so certasdissenses conjugais que, por serem menos trgicas, no deixam, contudo, de serdolorosas.

    muito difcil afirmar onde comea o conflito conjugal e, sobretudo onde acaba.So tantas as causas que intervm que no ousaramos arriscar-nos e enumer-las todas.Seja qual for, quase certo que um fracasso, ou apenas um semi-fracasso, no se

    compensa freqentemente no plano conjugal. Uma mulher decepcionada, ainda queapenas sob o ponto de vista fisiolgico, pode facilmente recorrer, mesmo sem perceber e seria esta a hiptese que adotaremos sempre neste livro a compensaes afetivasque encontrar no filho ou na filha. Pode tambm, sem o saber, assumir, em relao aeles, atitudes agressivas. A origem do erro pedaggico, tanto num como noutro caso,ser mesma. Provir de uma perturbao conjugal que, se no tiver cuidado, destruirprogressivamente as relaes afetivas recprocas entre os filhos e ela.

    Assim, alis, acontece tambm com o pai, especialmente em relao filha. Ofracasso ou semi-fracasso pode perfeitamente ditar-lhe atitudes pedaggicas inbeis,pois fixaro a filha exclusivamente na pessoa do pai, da se originando talvez ocomportamento defeituoso da menina em relao me. Em posio inversa, o paiagressivo com o filho, ve-lo- opor-se sistemticamente a ele para fixar-se na me.

    O erro pedaggico cometido pelos pais se originar, por conseguinte, em ltimaanlise, da prpria perturbao afetiva e esta de um fracasso ou semi-fracasso malcompensado.

    Ainda que essa eventualidade parea pouco provvel aos que julgam de fora,essa perturbao afetiva conjugal deriva de outras causas. na prpria infncia dospais, como o demonstra uma anlise objetiva do meio, que preciso pesquisar sequeremos ter a palavra - chave do enigma.

    Tocamos, decerto, aqui em noes pouco familiares pedagogia usual, masquando nos aprofundamos um pouco, torna-se evidente que falta harmonia interior,unidade e equilbrio numa grande percentagem de pais, devido a uma causa que elesmesmos ignoram, e que provm da prpria infncia.

    No o dizemos por prazer e muito menos por opinio sistemtica, mas porque a verdade real, por ns comprovada mil vezes.

    Renunciemos, uma vez por todas, por mais que isso desagrade ao nosso amorprprio, ao postulado fundamental da pedagogia usual, que pretende ser o adulto semprecapaz de educar a criana.

    Digamos mais modestamente que s alguns adultos podem arcar com essamisso delicada, na qual tudo depende, como acabamos de dizer, de harmonia interior ede equilbrio prprio.

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    O problema da educao, que tiveram, influir sobre o pai e a me, alm dasreaes afetivas, parentais e conjugais. Muitas vezes sem se aperceberem, seroagressivos com os filhos, porque outros foram com eles prprios durante a infncia e aadolescncia. Sua perturbao afetiva, conjugal e parental, se origina, portanto, dessasprimeiras experincias, est inscrita na prpria trama de sua "histria pessoal," einscrever-se-, conseqentemente, na "histria pessoal" daquele ou daquela que, no

    presente, esto encarregados de educar. essa incidncia da educao pessoal dos paissobre a educao dos filhos que nos propomos salientar na ltima parte deste livro.

    * * *

    Resta-nos saber que no devemos desesperar, pois sempre se pode fazer algopara escapar a servides que primeira vista parecem irremediveis.

    Se o primeiro dever do conselheiro psico-pedaggico no enganar, sob aalegao de simpatia, os clientes que o procuram, ele no podetambm, em caso algum,sugerir-lhes truques, recursos ou pequenos meios tcnicos, cuja inocuidade, porexperincia, bem conhece. Censurar, repreender, punir um pouco mais ou um poucomenos, na maioria dos casos, no tem a menor eficincia.

    Uma criana difcil uma criana-problema, e o principalmente porque tem delidar com pais-problemas; portanto sobre esses que cumpre agir. E o conselheiropsico-pedaggico pode faz-lo pelo menos de duas maneiras: primeiro, mostrando-lhesdocumentadamente a perturbao afetiva que os atinge e que, quase sempre, esto longede perceber; segundo, sugerindo-lhes, no pequenos meios tcnicos como o fazordinriamente a pedagogia usual, mas atitudes, condutas, comportamentos que podemparecer no incio extremamente artificiais, mas que se tornaro um hbito se, para tanto,eles se esforarem.

    No tenhamos iluso: no h nenhuma esperana, como o veremos em todos oscasos examinados nestas pginas e, especialmente, nas diretrizes pedaggicas quetentaremos dar, no h nenhuma esperana de melhora caracterolgica para a crianasem a prvia melhora caracterolgica dos pais. Nossas diretrizes podero serconsideradas imprecisas, sobretudo se forem julgadas em funo das normas dapedagogia usual, mas, na realidade, no achamos que se possa tentar outra coisa - nahiptese otimista de no ser tarde demais para tentar algo - seno pedir aos pais que sedominem, isto , que pelo menos em sua ao pedaggica, no dem expanso a suasperturbaes afetivas, sejam essas de origem parental, conjugal ou educacional.

    Depois de ter dado milhares de consultas desse gnero, no achamos, salvoalgumas medidas prticas que, no entanto, no tm influncia determinante por maisnecessrias e urgentes que sejam, que haja outras diretrizes alm desta: "Na medida emque voc mudar de atitude em relao a seu filho ou filha, eles tambm mudaro deatitude em relao a voc. Se reconhece que no pode chegar a esse domnio de siprprio e ningum o condenar por isso, j que sua perturbao afetiva vem de tolonge que data provavelmente de sua infncia - ento, abra mo. Tome em relao a seufilho ou filha uma atitude de neutralidade bondosa, e delegue o exerccio de suaautoridade a outra pessoa que se encarregar de exerc-la.

    Em nossas diretivas encontraro, por conseguinte, apenas isso; no porquetenhamos perdido a esperana de salvar essas crianas e adolescentes, mas porque,sinceramente, no temos outra coisa a dizer, e quanto basta.

    * * *

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    caso, por mais benevolente que se seja, deve-se admitir uma tendncia profunda,fortalecida pelas prprias recidivas e que compromete essa estrutura. Mais ainda, essasrecidivas so uma expresso da estrutura, e no se poderia corrigir-lhes asconseqncias, nesse caso as mentiras e roubos, sem corrigir-lhes primeiro a causa.Porm pesquisar a causa, considerar menos o presente que o passado, tentarinterpretar menos as manifestaes de fato, isto , os sintomas, que toda a "histria

    pessoal" da qual eles procedem.

    * * *

    E inicialmente, por que comete o educador esse erro fundamental? Por que seobstina em ver apenas o presente? Por que, procurando melhorar as coisas, noultrapassa o passado imediato da criana?

    Parece que esta a primeira razo: o educador no tem meios de investigaoque lhe permitam ultrapassar o presente ou o passado imediato. E isso certo, porexemplo, em relao a professores, encarregadas de turmaou monitoras de jogos. Ascrianas e adolescentes que lhes so confiados, a quem devem formar, guiar eaconselhar, esto, na maioria das vezes, desligadas de todo contexto familiar e social.

    Esto na aula, na sala de estudos, no ptio de recreio. O educador, a educadora vem-nos agir, observam-nos, fazem deles uma idia, julgam-nos. Ser que esse julgamentovai muito alm das aes concretas e imediatas de que essas crianas, esses adolescentessohicenuncos autores?

    Tal aluno, diz um professor, um insolente que reclama e se revolta contraqualquer disciplina. Se lhe perguntam porque julga assim esse menino, ficar muitoatrapalhado. Assinalar, quando muito, uma causa imediata, que nada explicar ou queequivaler a dizer que esse insolente um insolente, o que todos pem em dvida. Seele tivesse os meios suficientes de investigao, veria que essa insolncia - a menos queseja um ato isolado e acidental - supe uma estrutura mental e caracterolgicadeterminada, que essa estrutura no fruto do acaso, mas pelo contrrio, conseqnciaduma longa continuidade psicolgica, e que preciso, atravs dessa continuidade,chegar at a causa originria, causa que divergir conforme os indivduos. Por exemplo,esse aluno est atualmente insolente e indisciplinado porque, aos trs ou quatro anos,teve uma crise aguda de cimes da irm mais moa, crise essa que, mal compensada,produziu uma agressividade latente, que se exterioriza hoje pela insolncia eindisciplina. A explicao de um comportamento no est, pois no presente nem nopassado imediato, mas no passado longnquo, na "histria pessoal" da criana. Se oprofessor dispusesse de uma tcnica de explorao suficiente, ter-se-ia dado conta dessaverdade primordial.

    * * *

    O segundo motivo que faz o educador obstinar-se sobre as conseqncias e nosobre as causas a pressa de agir, que decorre justamente de certas verificaesevidentes.

    De fato, que vemos? Uma atitude muito comum: o educador fecha a princpio osolhos sobre certas travessuras sem conseqncias, raciocinando consigo mesmo que setrata de uma criana, que toda criana tem defeitos, que no se deve ser exageradamenteexigente, que esses pequenos vcios de formao caracterolgica se corrigem por simesmos, etc. ... Contenta-se, por conseguinte, em ministrar sanes mnimas, quasesempre exteriores, e no encara, absolutamente, certos estados afetivos antigos que,

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    entretanto, explicariam o atual comportamento defeituoso da criana. Esses estadosafetivos tornam-se mais fortes e ditam, conseqentemente, recidivas cada vez maisfreqentes, que por sua vez do origem a defeitos graves.

    Ento - e quase sempre na poca da pr-adolescncia - o educador mudasubitamente de mtodo. Quer recuperar o tempo perdido. Torna-se severo, intransigente,e, como tivesse tcnica bastante de investigao - o que no o caso obstina-se numa

    estrutura mental e caracterolgica que, mesmo na hiptese de no estar aindacristalizada, est em vias de s-lo. No v que tarde demais e que a pressa em agir lhetira a ltima oportunidade de corrigir realmente esse adolescente, porque essa pressa,deixando-o cego diante da causa real, porm longnqua, dos defeitos que percebe, f-loenxergar apenas o presente e o imediato.

    Vejamos, por exemplo, o caso de um menino mal-humorado, resmungo, quaseintratvel. No tm camaradas e muito menos amigos. Recusa integrar-se num jogocoletivo, numa equipe esportiva, numa organizao de jovens. um isolado, incapaz dededicao e de desprendimento. Os educadores notaram outrora essa tendncia que hojese tornou um grave defeito. Julgavam, entretanto, uma tendncia benigna e transitria.No a diagnosticaram em tempo, no a atalharam com remdios apropriados. Hoje, queo menino tem quinze anos, preocupam-se com o seu comportamento, julgam-no

    severamente, tentam corrigi-lo de qualquer maneira. Mas o remdio pior que o mal: orapazinho, alistado, contra suas tendncias profundas, numa patrulha de escoteiros, porexemplo, se revolta. No so mais demonstraes de grosseria ou intratabilidade, masde selvageria; no mais isolamento, mas solido; no mais introverso, mas egosmo.

    Em educao no h, por conseguinte, pior conselheiro que a pressa de agir. Seos educadores tivessem acordado em tempo e se tivessem munido de meios deinvestigao suficientes, talvez verificassem que a causa do comportamento defeituosoera, por exemplo, um estado depressivo, que as razes imediatas no explicavam, masque decorria de um fato longnquo da primeira infncia, um certo medo, por exemplo,mal compensado em virtude de uma educao excessivamente severa e pouco sensvel acertas mincias.

    * * *

    Se os educadores s agissem apressadamente seria apenas um mal incompleto,mas agem muitas vezes s avessas. conhecido o princpio pedaggico segundo o qualse deve lutar contra um defeito por atos que lhe so contrrios. Lamentando entristecercertas pessoal cujas teorias parecem obsoletas, devo dizer que esse princpiovoluntarista, excelente em alguns casos, fez mais crianas e adolescentes artificialmentedifceis do que todos os outros erros pedaggicos juntos.

    Eis, por exemplo, um adolescente sensual e mesmo dado masturbao. Amaioria dos educadores dir que para tornar-se, e, sobretudo, para conservar-se casto,deveria fazer atos contrrios a seu defeito, isto , intrinsecamente castos. Ou esseprincpio uma tautologia mais do que evidente, ou ento nada significa, j que o nicomeio para tornar-se e conservar-se casto , de incio, o de deixar de ser sensual e,principalmente, masturbador. No esse, porm, o x do problema. A questo exatamente esta: a sensualidade, a masturbao, tendo uma causa, qual ela? Segundo,uma vez diagnosticada, como poder voc suprimi-la? Se deixar a causa intacta, se nemsequer a diagnosticar, a sensualidade, a masturbao no desaparecero, por maiscoragem que demonstre o menino, fazendo atos contrrios ao defeito. Mais ainda, provvel que, pelo menos num certo nmero de casos, o defeito se agrave na medida emque se obstinar no na causa, mas nas conseqncias. o que se chama agir s avessas.

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    Inversamente, ainda que sejam escassas as tcnicas de que se dispe, ainda quese demonstre pouca objetividade e pacincia, ver-se-, por exemplo, que essasensualidade, essa masturbao so fenmenos de compensao. E que quecompensam? Por exemplo, um estado depressivo devido aos contnuos fracassosescolares. Procure remediar esses fracassos e conseqentemente o estado depressivo queeles geram, e ver a sensualidade e a masturbao desaparecerem, seno imediatamente

    - o que todavia no impossvel - pelo menos em breve espao de tempo.

    * * *

    A quarta razo, que faz tantas vezes os educadores se obstinarem nasconseqncias e no na causa, fruto de certos estados afetivos de que eles prprios sovtimas. E isso verifica-se ainda mais nos pais do que naqueles a quem delegaram todaou parte de sua autoridade.

    Perdoa-se, geralmente, sem dificuldade, a criana que faz uma bobagem umanica vez. V-Ia, porm, recair nessa falta muitas vezes, decepciona e sobretudohumilha. Faz, alm do mais, que se augure mal o seu futuro.

    Da uma inquietao e um pessimismo, que ditam condutas pedaggicas

    geralmente pouco objetivas e, em todo caso, desprovidas de uma verdadeira simpatia,de pacincia, calma e habilidade.

    Quantas vezes no testemunhamos a violncia de certo pai, ou desespero - e aslgrimas - daquela me, descontrolados pelo comportamento do filho ou filha! Quantasvezes no os ouvimos expandir a apreenso e amargura em julgamentos de tal maneirainexatos - e mesmo s vezes ofensivos para o filho - que nos perguntvamos como seriapossvel mostrar-lhe o absurdo e as contradies de seus conceitos!

    Evidentemente, essa falta de objetividade, essa clera, essa violncia, essaansiedade, esse desespero, no podem em caso algum remediar causas profundas, que,para serem analisadas e diagnosticadas, requerem, de incio, uma serenidade quase-cientfica. Este menino um mandrio, afirma voc. Seja: ele o . Mas de que lheadianta a sua clera? Essas cenas e descomposturas? Essas sanes cada vez maisseveras e menos eficazes?

    Ainda uma vez, a resposta, simples: desconhecendo a causa exata dessapreguia, obstinam-se os pais nas conseqncias imediatas, nos sintomas. Ser entoextraordinrio que esses sintomas se agravem em conseqncia mesmo das prpriasrecidivas? E que, conseqentemente, o pessimismo, a clera e a amargura dos paissigam um ritmo idntico? Na realidade, fica-se prisioneiro de um crculo vicioso, de queno se pode sair seno por uma anlise objetiva e serena das causas.

    Eis, por exemplo, um rapaz que, aos dezessete anos, ainda est no 3 anoginasial. Poder-se-ia primeiro perguntar por que, nessa idade, ainda est nessa classe,pois, no final das contas, isso depende dos pais e mestres e no apenas dele que gostaria,sem dvida, de estar mais adiantado. Segundo, por melhor inteno que tenham tido ospais, estaro eles certos de que o filho tenha os meios e aptides que requer o cicloescolar, onde o obrigaram a ingressar? Se no, as violncias, ameaas, sanes severass servem para acrescentar dificuldade mental uma dificuldade caracterolgica,porque esse rapazinho, alm de continuar preguioso, tornar-se-, conforme o caso, umagressivo ou um deprimido.

    Na realidade, dever-se-ia proceder totalmente de maneira diversa. precisopesquisar a causa verdadeira, profunda, essencial e apresentar, com toda a objetividade,um diagnstico sobre os meios e aptides mentais do aluno. Se esses meios e aptidesso insuficientes, de que adianta obstinar-se?

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    Procure orient-lo, ento urgentemente, para uma tarefa escolar que lhe sejaaccessvel e onde no somente se tornar um aluno estudioso, como perder tambm aagressividade ou a depresso. Vocs mesmos, conseqentemente, deixaro de ser unsdesiludidos, amargurados, pessimistas, receosos do futuro e se adaptaro melhor prpria tarefa pedaggica. Repitamos ainda uma vez: a causa e no apenas asconseqncias que tm importncia. Todavia, a causa s poder ser analisada e

    diagnosticada por objetividade, se houver um mnimo de serenidade que certos estadosafetivos no permitem.

    * * *

    Se procurarmos verificar qual o principal inconveniente desse mtodopedaggico superficial, veremos que a ineficincia: a criana e o adolescentecontinuaro difceis, enquanto no se houver atingido e extirpado a raiz de seus defeitos.

    Naturalmente, antes, de tudo distingamos aqui, como, alis, j o fizemos acima,o ato isolado no qual se deve ver um simples acidente, das tendncias profundas,sobretudo se incrementadas por recidivas freqentes. Uma coisa , por exemplo, umaao desleal, e outra o hbito generalizado da deslealdade. Sendo assim, dir-se- que um

    menino difcil porque foi desleal uma vez? No se restringir esse qualificativo apenasquele cujas recidivas so to numerosas que demonstram muito mais que um simplesacidente?

    Se, por conseguinte, dizemos que um mtodo pedaggico superficial, - isto ,que no tem como base a "histria pessoal" da criana - no poder triunfar dastendncias profundas, porque no as conhece, e no pode fazer-lhes o diagnstico exatodas causas, evidente que esse princpio no se aplica a todos os casos. mesmoprovvel que, querendo aprofundar e analisar exageradamente um caso simples, se corrao risco de torn-lo complexo e mesmo inextricve1. E o que mais, nada nos garanteque, tentando corrigir desse modo uma criana, em geral dcil e de boa vontade, noacabaremos por provocar a crise que certamente gostaramos de evitar. Como em todasas coisas,o timo seria aqui inimigo do bom.

    Por outro lado, se a criana ou o adolescente habitualmente difcil temos odireito de acreditar - e a experincia o prova - que as sanes superficiais no resolveroo caso. A razo que elas atingem os atos e no a causa desses atos. Ora, como o vimosacima, a causa - ou o conjunto de causas - est inscrita na prpria contextura da "histriapessoal" da criana ou do adolescente. a esse ponto que se deve atingir, a ele quecumpre remediar, o que implica uma anlise mais hbil que um simples julgamento devalor sobre uma ao repreensvel, embora, em geral, esse julgamento possa ser muitojusto.

    Vejamos, por exemplo, uma criana habitualmente rancorosa. Pode-se corrigi-Iacastigando unicamente as conseqncias de sua raiva, isto , a dissimulao, ahipocrisia ou as palavras falsamente reivindicadoras? Decerto no. Enquanto no sesouber exatamente as causas do seu rancor, enquanto no se tiver eliminado, na medidado possvel, o motivo autntico; por conseguinte enquanto no se houver descoberto emarcado exatamente, na prpria trama de sua "histria-pessoal", a perturbao afetivaque lhe est ditando esse comportamento, no provvel que se possa corrigi-Ia. poisa anlise psicolgica e caracterolgicae no apenas a simples pedagogia de autoridade -entretanto suficiente em casos mais simples - que sugerir o mtodo pedaggicoverdadeiramente eficaz.

    * * *

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    O segundo inconveniente de um mtodo pedaggico superficial agravar ocomportamento, j defeituoso, da criana. pois muito pouco contentar-se em afirmarque o mtodo ineficiente; mais do que isso ele provoca no raro a fixao da causa docomportamento.

    Isso decorre, sem dvida, do fato de serem difceis a criana e o adolescente,

    principalmente por causa de certos estados afetivos. a afetividade, perturbada, quemsabe, desde a primeira infncia, que os torna insuportveis. Ora, evidente que umasano imposta de fora, por mais til e necessria que possa parecer s vezes, em vez deremediar a perturbao afetiva s far exacerb-la. No raro acontecer que apenas umcastigo inbil fixe definitivamente a perturbao afetiva e a torne, portanto,irremedivel.

    Todo educador encontrou desses alunos decepcionantes a quem chamam de"incapazes". A palavra, como o veremos adiante, pouco significa. um rtulo cmodoque indica um gnero, no uma espcie. Porque certos "incapazes" s o so pelaimpossibilidade que tm de compreender e assimilar um programa escolar que lheimpuseram arbitrriamente. Uns, por mais bem dotados que sejam, no podem dar oesforo moral que esses estudos requerem. Outros ainda se opem sistemticamente ao

    programa, por animosidade ou hostilidade em relao ao pai, me ou ao tutor. Estes,humilhados por um concorrente mais estudioso, mais apto, ou mais hbil, desanimam emergulham na mediocridade. Aqueles, enfim, teriam sobressado se tivessem, algumdia, achado um estimulante afetivo. E assim indefinidamente. O problema psicolgico epedaggico do "incapaz" no assim to simples e, de toda maneira, ultrapassa umdiagnstico superficial. Por conseguinte, se nos apressamos demasiadamente em fazerum julgamento de valor a respeito do comportamento de um menino, est claro quecorremos o risco de nos enganar e agravar o caso, tornando-o, como o dizamos, talvezirremedivel.

    Por exemplo, eis-nos diante de um incapaz" cujos meios psicolgicos soinadequados finalidade proposta, mas o pai, devido a preconceitos sociais, exige queele termine, entretanto, o curso clssico. Mentalmente inadaptado tarefa escolar, podealgum admirar-se de que ele fracasse nos estudos? Se fracassa no decorrer de semanas,meses, e at mesmo anos, por que se espantar que contraia essa variante do sentimentode inferioridade que se chama o sentimento de fracasso? Por que se admirar que da emdiante sanes, censurar, repreenses, castigos, privaes de sada, de festas colegiais ede frias s consigam aumentar-lhe a animosidade em relao ao pai e lev-llo acompensar-se, conforme os casos, com sentimentos agressivos ou depressivos? Ele serpois ou um indisciplinado, um mentiroso, um insolente, um presunoso, brigo e umreivindicador, ciumento de sua personalidade e na livre disposio de sua pessoa, ouento um pobre coitado, um resmungo, um desanimado, sem iniciativa, semcapacidade, sem gosto para a ao e os riscos que dela decorrem, duvidando de simesmo e de seu destino, vtima de desiluses e decepes.

    O importante, aqui, no tanto ser um revoltado, ou um choro, umreinvidicador, ou um resmungo, nem mesmo o fato de ser ou no ser um "incapaz",mas saber exatamente porque esse "incapaz" fracassa nos estudos e prevenireficientemente esses fracassos, o que est alm e muito alm de um diagnsticosuperficial.

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    O terceiro inconveniente desse mtodo dar ao educador o sentimento de umasegurana falsa. Ele pensa agir para o bem da criana, persevera em seu mtodo,obstina-se nele s vezes porque consegue uma certa melhora transitria, mas no v -nem poderia ver por falta de meios de investigao - que a criana difcil submete-se auma fora a que, de fato, no pode escapar, mas que, em absoluto, no a corrige.

    O perigo desse mtodo, sobretudo em adolescentes e, mais ainda, em pr-

    adultos, gerar hipcritas. Revoltando-se interiormente contra sanes que no podemevitar, dependendo, durante alguns anos ainda, de pessoas mais fortes que eles, freqente que esperem por uma desforra ou a ela renunciem, infelizmente, com muitafacilidade.

    Na verdade, sem uma investigao profunda - e ainda assim! - nunca sabemosmuito bem o que se passa na cabea de uma criana ou de um adolescente difcil;ignoramos as peripcias de seu drama pessoal de que eles prprios nem sempre tmconscincia; em geral s vemos o comportamento exterior que s vezes apenas umamscara, que esconde aos olhares estranhos a perturbao afetiva que os faz sofrer. ,no entanto, essa perturbao, esse drama que precisamos tentar compreender de incio,sem dar importncia preponderante a algumas melhoras passageiras, provocadas porcertas sanes quase sempre negativas. Porque, recorrendo fora, um educador pode

    triunfar - temporriamente - do pior indisciplinado. Resta saber se no errou no clculo,se no est se embalando numa segurana enganadora, se est remediando a causa domal e no apenas as suas conseqncias, numa palavra, se est educandoverdadeiramente.

    Para ilustrar esse princpio, poderamos citar o exemplo de numerososadolescentes vezeiros em fugas, que, devido ao comportamento escolar, aceitavamhipocritamente algumas duras repreenses e depois, um belo dia, e sem motivoaparente - assim o dizem! - abandonavam o lar paterno a que s retornavam depois deuma triste odissia. Poderamos citar ainda o caso desses meninos, sempre retidos nocolgio, censurados, ainda por cima pelos pais, curvando-se aparentemente a essassanes, mas desforrando-se ignbilmentenuma irm mais moa ou num irmozinhopequeno. Poderamos enfim mostrar, em certas adolescentes sobretudo, que o "porqu"e o "como" do seu mau comportamento esto apenas na passividade aparente e todasuperficial, com que aceitam tanto o desentendimento crnico que existe entre a me eelas como as sanes excessivamente severas causadas por esses desentendimentos

    Podemos pensar que foi o prprio mtodo pedaggico que ocasionou essesdesastres. Se tivesse sido mais malevel, mais profundo e sobretudo mais bem adaptadoao drama individual de cada uma dessas crianas e adolescentes difceis. teria resolvidoo conflito interior, no qual eles se debatiam, em vez de multiplicar-lhes asconseqncias. Mas, ainda urna vez, tero os pais, os educadores a possibilidade deatingir essas profundezas? Conhecero ao menos a tcnica apropriada? E.desconhecendo-a, no do um crdito excessivo ao mtodo usual, baseando naautoridade e nas sanes, mtodo esse, entretanto, incapaz de resolver esses problemas?

    Por outro lado, a experincia mostra que agindo de outra forma, o educadorconsegue resultados no somente mais rpidos, como mais duradouros. porque assimrespeita, sem dvida, uma das leis psicolgicas mais fundamentais: a da continuidade.

    Da primeira infncia at a adolescncia e a maturidade, no h soluo decontinuidade. Tudo se liga. Tudo se entrosa. Tudo causa e efeito. Um espetculo, umapalavra, uma leitura, uma simples atitude, um comportamento, um estado afetivoqualquer, razovel ou no, compreendido ou no, justificado ou no, podem terconseqncias longnquas. Toda a arte do psiclogo est em descobrir a pista na

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    "histria pessoal" da criana e do adolescente difceis, em ir buscar a origem de seudrama, em resolver o primeiro conflito, em acalm-lo, se possvel, de uma maneiradefinitiva.

    Eis por que, de incio, ele nunca isolar a criana do meio familiar, social eescolar. Porque, se esses meios no explicam tudo, todavia de acordo ou em desacordocom eles que a criana cresceu, desenvolveu-se, formou-se ou deformou-se. Se neles se

    sente adaptada, o risco de conflitos afetivos diminuto. Mas se, uma razo qualquer,alguma coisa - ou algum - atrapalhou essa consonncia e essa harmonia, deve-se vernisso uma causa de conflito inevitvel, cujos efeitos podem permanecer latentes duranteanos, mas acabaro por traduzir-se em comportamentos defeituosos.

    Ora, nunca salientaremos excessivamente que o que chamam meio no s umconjunto de coisas, tambm - mesmo sobretudo - um conjunto de pessoas: pai, me,irmos, irms, avs, companheiros e companheiras de jogos ou de estudo, professores; omdico que chamado para uma gripe, o dentista consultado para um dente cariado, eat o guarda, ou o dono do armazm. A ttulos diversos, todos exercem uma influncia.E basta ler algumas biografias ou dirios ntimos para nos darmos conta da lembranavivssima que certos escritores guardam, mesmo j velhos, no apenas de tal lugar ou detal acontecimento da primeira infncia, mas de algumas pessoas que, mesmo sem o

    saber, lhes ditaram reaes afetivas, e mesmo passionais, de alegria ou desespero, desegurana interior ou receio, de amor ou intolervel antipatia.(l)

    (1). Leia-se, por exemplo, o Dirio de Gide, Mauriac, Green ou tantos outros. Ficar-se-admirado ao ver como eles esto presos infncia, como so incapazes de exorciz-las. O que faz aunidade da obra de Mauriac precisamente esse enfeitiamento exercido por uma infncia e umaadolescncia dolorosas.

    Esses casos, porm, so de adultos e adultos habituados s dificuldades da auto-anlise. A criana, o adolescente, no tem essa virtuosidade. Ouo a resposta dealgumas pessoas: melhor para eles! Decerto! Mas quem lhes resolver o drama interiorse eles prprios no tm capacidade e se nenhum dos educadores se preocupa com Isso?

    O estudo dos meios - coisas e pessoas no bastam. apenas um elemento do

    problema e no,o preponderante. Na verdade, o que importa a criana e o adolescentedifceis em si prprios, corpo e alma, em sua personalidade fsio-psicolgica.Apresentam-se, pois, a esse respeito problemas que s um mdico - e que

    precisa ser um especialista - pode resolver satisfatoriamente. Castigar uma crianapreguiosa ou sensual, colrica ou ciumenta, sem dvida, uma necessidade. Seriapreciso ver se, na realidade, essa preguia, essa sensualidade, esse cime, essa clera,no so mais conseqncias de uma hereditariedade duvidosa, de uma tara fisiolgica,de uma perturbao glandular do que de uma m vontade.

    E depois, h a questo primordial das aptides e dos meios mentais, que aespecialidade do psiclogo. Voc diz, por exemplo, que este menino no tem boas notasporque tem falta de mtodo, o que muito provvel. Mas por que razo no tem elemtodo?

    Pode, realmente, acontecer que o menino no se d ao trabalho de adquirir essemtodo, como tambm pode ser que o prprio professor no o tenha. No ser, porm,que o que voc considera "falta de mtodo" uma falta de memria? E essa falta dememria no ser uma falta de ateno? E essa falta de ateno no provir de uma faltade concentrao, devida a um tono psquico instvel e intermitente? E dessa maneira,toda a fisiologia e psicologia da criana esto em jogo unicamente porque ela "estudamal". Quem quiser que acredite na melhoria dos resultados escolares por meio decastigos; pessoalmente acho que s se pode esperar um progresso duradouro do trabalhoescolar se se melhora primeiro o equilbrio do tono psquico. Obtida ou recuperada essa

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    estabilidade, nada mais Impedir, se fazem questo de recorrer s repreenses e castigo.Dever voc ainda repreender? Punir?

    A criana ou adolescente difcil no apenas um problema de fisiologia ou depsicologia. principalmente um problema de temperamento, por conseguinte deconduta e comportamento, agindo e reagindo bem ou mal sobre determinados meios. E,nesses pontos, encontramos ainda tcnicas especiais, acessveis apenas aos especialistas.

    Eis, por exemplo, uma criana tmida, que se perturba s com a possibilidade derecitar alto a lio ou resolver no quadro negro um problema de lgebra. Repito, oseducadores podem constrang-la. Se for, porm, um grande emotivo, incapaz desseesforo? Essa mesma emotividade a que - a quem - deve ser atribuda? E se essemenino, ainda par cima, um secundrio, cujos temores se multiplicam at o ponto deprovocar o bloqueamento total da ao? O fato de castig-lo porque se nega, comoacontece s vezes, a recitar a lio, a fazer a demonstrao de lgebra, far com que aemotividade, origem de sua timidez, obtenha alguma melhora?

    * * *

    Enfim, por pouco que se tenha a experincia das consultas psico-pedaggicas,

    percebe-se logo que uma criana ou um adolescente no difcil apenas por causa dosmeios onde vive, nem por uma anomalia fisiolgica, nem por uma deficinciapsicolgica ou caracterolgica, mas por uma razo, ou um conjunto de razes,estritamente pedaggica. A criana, afinal de contas, normal; os educadores, noentanto, agiram com ela erradamente.

    O meio, dizamos, tambm - mesmo sobretudo - as pessoas. Ora, vale a penaperguntar-nos se todos os que pretendem exercer a misso de educador e educadora tmos dons necessrios, principalmente se lidam com crianas difceis. A verdade nosobriga a responder negativamente, pelo menos para um bom nmero. A verdade e aobjetividade mais elementar tm direitos. Se no se deve sempre, e sistemticamente,desculpar a criana, no se deve tampouco, sempre e sistemticamente, inculp-la.Depois de ter estudado, com o auxlio de especialistas, milhares de casos de crianas eadolescentes difceis, somos obrigados a reconhecer que alguns devem, com todajustia, ser declarados culpados. Todavia o maior nmero, seno a quase totalidade, sera difcil porque a isso os tinham reduzido enormes inabilidades pedaggicas, ouporque, apesar da vontade de corrigirem realmente essas inabilidades, j era tardedemais para remedi-las com eficcia.

    Podemos, por conseguinte, afirmar, embora talvez magoemos algum, quecertos educadores e educadoras nem sempre tm a habilidade exigida para essa misso.Infelizmente, parece que no delicado dizer isso e muito menos demonstr-lo.Entretanto, se renunciando ao mtodo usual, que autoritrio, examinamosobjetivamente a "histria pessoal" de cada criana e adolescente difcil, verificamoslogo a influncia pedaggica desastrosa exercida por certos educadores, como odemonstraremos largamente nas pginas que se seguem.(2)

    (2). Fazamos umdia uma conferncia diante de umauditrio de pais. Terminando, sugerimosque os ouvintes apresentassemobjees. Uma senhora levantou-se e de maneira extremamente amvel,fez-nos a seguinte pergunta: "Padre, disse ela. o sr. chamou a ateno sobre os erros pedaggicos dospais, por que, entretanto, no falou sobre os que cometemos professores?" "Minha senhora, respondicom a mesma amabilidade, porque no ouso," Era a estrita verdade. Ningum imagina asusceptibilidade de umdiretor de estabelecimento escolar, de umprefeito de estudos ou de disciplina, deumprofessor! Se os pais reconhecemde bomgrado os seus erros, multo raro que os membros de umcorpo docente aceitemsobre o mesmo assunto a menor aluso.

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    Uma coisa o meio, mesmo se este, como o vimos, supe necessariamente apresena de certa pessoas, e outra coisa a presena ativa dessas pessoas, isto , ainfluncia direta sobre a educao da criana. O pai e a me, bem entendidos, exercemsobre o filho uma ao muito mais imediata que o irmo ou irm, por conseguinte tmuma responsabilidade muito maior.

    Por outro lado, seria erro dissociar da influncia pedaggica dos pais a do corpo

    docente da escola. Deve-se, mesmo, acreditar que na maioria dos casos to estreitaessa colaborao Que no se pode distinguir uma da outra. Se uma criana, porexemplo, estuda ou se comporta mal na escola, evidente Que, salvo incria dos pais,sentir a repercusso disciplinar em casa. O pai ralhar com ela, repreend-la- e,fazendo-o, assumir a responsabilidade do julgamento que o professor fez sobre acriana. Sabe-se, alis, que a maior parte dos conflitos que surgem no meio familiarprovm da escola.

    Todavia, o contrrio tambm verdade. O pai, por exemplo, muito exigente emrelao a notas, obrigar o filho a estudar nos dias feriados, privando-o das folgasnecessrias, dos exerccios fsicos ou esportivos que garantiriam, entretanto, umrendimento escolar melhor. Evidentemente esse erro de pedagogia familiar terinfluncia sobre o estudo e o comportamento do menino na escola.

    Aluno cansado, nervoso, e portanto distrado e mal adaptado sua tarefa, sermuito provavelmente o objeto de repreenses, ralhos e at mesmo de castigos na escola.Entra pois num circuito perigoso que, se no se tiver cuidado, pode tornar-se umverdadeiro crculo vicioso. Punido na escola porque est nervoso e desatento, ficaprivado de distraes em casa. Privado delas em casa, mais nervoso e desatento se tornana escola.

    O erro pedaggico de um educador pode por conseguinte muito bem provocar ode um outro educador. As influncias se interferem; a criana o sente e os engloba todosna mesma reprovao; torna-se indisciplinada e agressiva ou passiva e deprimida; soessas as duas maneiras principais de ser um menino difcil, ou pelo menos de vir a s-lo.

    * * *

    Quando examinamos o "caso" de uma criana e sobretudo de um adolescentedifcil, no devemos, pois, limitar-nos, como o fazem geralmente, a verificar fatos esancion-las. um grave erro psicolgico que impede, num grande nmero de casos,uma verdadeira teraputica.

    Na realidade, devemos considerar as manifestaes de um defeito comosintomas, que devem ser analisados, para se chegar causa; causa essaque est inscritana "histria pessoal" da criana. Para diagnostic-la ser necessrio, na maioria dasvezes, ir busc-la muito longe.

    Quaisquer que sejam as tcnicas de investigao que variaro, alis, com agravidade do "caso", pode-se dizer que a causa - ou o conjunto das causas - devida: 1.- aos meios freqentados pela criana e, antes de tudo, a famlia e a escola; 2. - a certosfatos fisiolgicos, por conseguinte tambm hereditariedade e ao temperamento; 3. - psicologia, isto , aos meios mentais e aptides da criana; 4. - ao temperamento, isto, adaptabilidade, ativa ou passiva, a meios e circunstncias concretas; 5. - ao meiopedaggico bom, medocre ou mau, que os educadores e, antes de todos, os pais eprofessores adotaram em relao a ela; 6. - ao esforo pessoal para utilizar da melhormaneira as aptides e meios, assim como ao potencial de adaptabilidade relativa a meiose circunstncias apresentados.

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    Houve quem dissesse que a criana difcil era uma criana-problema. V-sequanto precisa essa expresso. V-se, sobretudo o perigo de erro que h quando seacusa - ou desculpa - uma criana difcil sem a prvia anlise psico-pedaggica. E esseprimeiro erro no seria nada se, baseados num julgamento de valor to frgil, no nosobstinssemos em querer corrigi-la a custa de sanes.

    * * *

    Relativamente aos casos que veremos adiante e que so destinados a mostrar aeficincia de um mtodo pedaggico menos sumrio que o mtodo usual, gostaramosde chamar a ateno sobre alguns dos princpios que nos motivaram a escolha:

    1. Todos esses casos so difceis, mas, na realidade, nenhum grave, porque foisuficiente encontrar a causa autntica da dificuldade para modificar o mtodo deeducao usado com essas crianas e corrigi-las.

    2. Nenhum desses casos excepcional. Pelo contrrio, foram escolhidos depropsito entre os mais comuns. A tcnica de investigao. se funo de especialistas,continua entretanto psicolgica e caracterolgica, no psiquitrica ou psicanaltica.

    3. Todos esses casos provm de um erro pedaggico inicial, involuntrio e

    mesmo inconsciente, mas cujo efeito um vcio grave de conformao caracterolgicana criana. Falar em erro apenas supe, naturalmente, que no h "falta" explcita,comprometendo a responsabilidade moral dos pais ou professores. Por outro lado, nuncaincriminaremos a responsabilidade moral da criana em relao a um vcio deconformao caracterolgica.

    4. Enfim, evidente que uma anlise psico-pedaggica absolutamenteinoperante por si mesma. A terapia da criana difcil, pelo menos em casosrelativamente benignos como esses, deve ser feita pelos prprios educadores. o que selhes expe na consulta psico-pedaggica que sucede anlise do caso. Essa consulta,bem entendido, geralmente longa demais para ser consignada por escrito. Dar-se-,por conseguinte, apenas um esquema.

    PRIMEIRO CASO

    Exposio

    Pedro o mais velho de trs irmos. Tem quinze anos e dois meses. O pai,industrial, excessivamente absorvido pelos deveres profissionais, pouco se ocupa com aeducao dos trs filhos, salvo no que concerne aos estudos, ponto em que severodemais. Alm do mais, v no mais velho um sucessor natural. A me, senhora meiga ededicada, se apaga de bom grado diante da personalidade eficiente e muito marcante domarido.

    Todavia, boa educadora, nem sempre est de acordo com o mtodo do esposo,mas diante dos trs filhos. no deixa transparecer a mnima divergncia a esse respeito.Ensina-lhes a respeitar o pai, a abrir-se com ele, a compreender-lhe a severidade. Almdisso, inegvel que tem certa preferncia pelo mais velho, o que tambm nodemonstra. Esfora-se para equilibrar bem a balana e manter o bom entendimento entreos trs filhos.

    Recai portanto sobre ela a quase totalidade do encargo pedaggico.Apesar das circunstncias difceis, sua influncia boa. Tem o maior cuidado

    com a educao moral e religiosa dos trs filhos.

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    Entretanto, Pedro um adolescente difcil, voluntarioso, violento,indisciplinado, vingativo em relao aos irmos. As cenas so, por conseguinte,freqentes. O pai costuma censur-lo violentamente e o menino responde-lhe no mesmotom. Quando a me intervm, Pedro zanga-se com ela, o que provoca geralmente umcastigo severo do qual o menino guarda um profundo ressentimento. Nega-se, durantevrios dias, a dirigir a palavra ao pai, levanta os ombros quando este lhe fala, o que d

    margem a novo drama.Alm disso, Pedro est no quinto ano "latino", num colgio particular.(3) A mdiade suas notas no apenas medocre mas detestvel, pelo menos de vez em quando.Tem horror ao latim e ao grego, porm mostra ter queda pela matemtica e as cincias.Enfim, seu comportamento indisciplinado provoca numerosas repreenses, castigos eprivaes de folgas. Conta vantagens e mentiras aos camaradas, e um dia chegou aapostar com um deles que, no fim do trimestre, totalizaria cem horas de reteno, o querepresenta uma mdia aproximada de oito horas por semana. Aposta que ganhou, masque ocasionou a sua expulso do Colgio. Da a exasperao do pai e as lgrimasdesesperadas da me.

    (3). Lembramos ao leitor que na Blgica o menino comea o sexto ano de latimcomdoze anos.Acaba, pois, o curso secundrio, seis anos de estudo, comaproximadamente dezoito anos. Estar com

    quinze anos e dois meses emquinto ano representa umatraso de dois anos. Como no existe na Blgicaumexame final de curso secundrio, o primeiro ano de filosofia, ou matemtica superior j umcursouniversitrio, que se chama a primeira candidatura.

    Qualificao do caso

    Sem dvida, defrontamo-nos com um adolescente difcil: o caso sobretudocaracterolgico. Parece-nos tambm que os educadores no encontraram o mtodoadequado: portanto, o caso igualmente pedaggico.

    Enfim, o atraso escolar desse rapazinho demonstra que h um problema deorientao e, eventualmente, de reorientao escolar. Por fim, como a experincia oprova, pode-se presumir que essas trs qualificaes supem apenas uma: o menino difcil porque estuda mal por falta de meios e aptides.

    Inqurito preliminarObservao que s parecer inslita aos no-iniciados, o inqurito escolar foi

    satisfatrio, salvo no que diz respeito ao estudo propriamente dito. Este, como j sedisse, foi considerado detestvel, mas o comportamento da criana foi descrito comserenidade pelos educadores. Nenhum deles, entretanto, suspeitou que houvesse umarelao de causa e efeito entre o trabalho deficiente e o comportamento. Nenhumtampouco falou em inaptido, nem mesmo em inadaptabilidade ao ciclo dashumanidades antigas. Em suma, aos olhos deles, Pedro era um "preguioso" mas bomcamarada, pouco senhor de si, capaz de todos os "bluffs" e vtima, sobretudo, de suaimpulsividade.

    O inqurito familiar foi ruim. O pai descreveu o filho como uminsubordinado,um insolente, um "incapaz", de quem nada se podia esperar. Se no se emendasseimediatamente e radicalmente, ameaara-o de denncia ao Juiz de Menores. A me, umpouco mais objetiva, realou as qualidades de corao do filho, e aludiu discretamente extrema severidade do marido assim como a seu mtodo muito autoritrio. Bastantepreocupada pela insensibilidade do filho a seu respeito, receava sobretudo que se

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    estabelecesse, entre ela e ele, uma espcie de divrcio afetivo, que a impedisse de cuidarcom eficincia da educao moral e religiosa.

    O exame

    1. O exame biomtrico e fisiolgico no foi dos melhores. Pedro era um desses

    adolescentes que crescem de uma arrancada e cujo peso muito deficiente. "Nervoso",vtima de sua instabilidade, era certamente incapaz de um trabalho longo e constante. Omdico no assinalava, entretanto, nenhuma tara, nenhuma anomalia profunda. Apuberdade acusava um atraso de mais de um ano.

    2. O exame psicolgico, particularmente importante, mostrou, como freqente,uma certa mediocridade geral e uma especializao precoce das aptides.

    O cociente intelectual era de 103 (mdia 100),o ndice intelectual chegava a 117 (mdia 100);o nvel global era mdio.A ateno voluntria era infra-normal. O menino sentia muita dificuldade em

    concentrar-se, salvo quando as provas o interessavam. Demonstrava claramente repulsapelos testes de memria, mais ridos e que dificilmente conseguiu realizar. A

    concentrao era intermitente e instvel.A compreenso, no entanto, era viva e muito exata, sobretudo com a ajuda de

    certos estimulantes afetivos: amor prprio, vaidade, e mesmo orgulho. O campo deapreenso parecia, porm, restrito.

    A imaginao era muito rica, mas sobretudo inventiva, a partir de imagens malcoordenadas. O esforo voluntrio, quase nulo.

    A inteligncia, bastante lenta e imprecisa no abstrato, mostrava-se vontade nassituaes concretas. No raciocnio matemtico concreto dava provas de rara eficincia,mas baseada mais na Intuio do que nos processos discursivos.

    A linha das tendncias indicava um imaginativo-concreto, ainda que os testesno tenham revelado nenhuma anomalia grave. Parecia tratar-se de uma espcie de"falta" psicolgica ocasionada por uma pedagogia escolar mal apropriada.

    3. O exame caracterolgico foi medocre, demonstrando o menino, no incio,muito m vontade para submeter-se s diversas provas. Birrento, e, por vezes malvolo,exagerou a expresso de sua agressividade, chamando at o examinador de "carrasco" e"gestapista".

    Para conseguir melhores disposies deram-lhe para ler durante algunsmomentos jornais humorsticos, que apreciou e cujas caricaturas o divertiram. O examecontinuou depois mais satisfatoriamente.

    A agressividade fixava-se sobretudo no pai; o menino disse que "o atiraria norio, quando crescesse".(4) Por outro lado, demonstrava uma extrema ternura em relao me. Como chamaram a ateno para sua atitude que parecia no estar de acordo comos sentimentos que manifestava, respondeu: " intil tentar: mesmo porque ela nuncanada!

    (4)Uma vez por todas, deixemos bemclaro ao leitor e, sobretudo, leitora exageradamentesensveis, a extrema importncia dessas confisses, por mais ofensivas que sejam. Um exame psico-pedaggico no uma conversa amigvel. Consiste de fato, na explorao de certas tendncias, namaior parte inconscientes. timo que a criana. confie espontaneamente a chave de certos estadosafetivos de que ningumdesconfia e que explicam, contudo, o seu comportamento.

    A causa dessa hostilidade era certamente a atitude afetiva do pai para com ofilho, atitude que lhe sugeria palavras extremamente duras e mesmo injustas. Contudo,certos acontecimentos que datavam sem dvida da infncia do rapazinho, isto , dos 5 -

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    6 anos, contriburam para revelar todo o progresso de autodefesa. Sua me, nessa poca,lhe demonstrava uma afeio que o pai julgava excessiva e que o irritava.

    4. Uma vez por todas, deixemos bem claro ao leitor e sobretudo leitoraexageradamente sensveis, a extrema importncia dessas confisses, por mais ofensivasque sejam. Um exame psico-pedaggico no uma conversa amigvel. Consiste, defato, na explorao de certas tendncias, na maior parte inconscientes. timo que a

    criana confie espontaneamente a chave de certos estados afetivos de que ningumdesconfia e que explicam, contudo, o seu comportamentoUma noite, diante dos filhos, e por causa de umas palavras excessivamente

    afetuosas em relao ao rapazinho, fez uma cena de cimes com a mulher, e ameaoupr o menino num internato severo no estrangeiro. Pedro da em diante tornou-sedesconfiado, depois com a idade, violento tambm. Enfim, a me, aderindo atitude dopai, sem dvida para salvaguardar a vida conjugal, comeou publicamente a tomartambm partido contra o filho.

    A hostilidade do menino compensou-se desde ento com mentiras e hipocrisias;depois, mais ousadamente com acessos de raiva, indisciplina, brigas e rancores. Sozinhodiante da animosidade universal, de que, certo ou erradamente, se achava objeto,tornou-se, em compensao, um prosa e um contador de histrias diante dos camaradas.

    Da a aposta estpida que fez e ganhou.Em suma, o rapaz poderia classificar-se entre os adolescentes emotivos no-

    ativos secundrios, de tipo introvertido.

    Erros pedaggicos

    Quando o pai e a me tornaram a procurar-nos, sentimos que ele continuavaexasperado e disposto a tomar medidas extremas; ela se mostrava cada vez maisapagada, mais desanimada e pessimista.

    Como sempre, a primeira causa a fazer era chamar a ateno sobre os errospedaggicos, sem desculpar exageradamente a criana, por receio de represlias. Ora,esse erro era trplice:

    1. Os pais s tinham visto o imediato, isto , o comportamento atual do menino,que era de fato o agressivo, o violento, o colrico, o indisciplinado, que eles haviamdescrito.

    2. Tinham adotado em relao a esse agressivo, cuja oposio sistemtica ao pai,e por ao reflexa me, no passava de um processo compensador de auto-defesa, umsistema pedaggico muito autoritrio, muito severo e por demais humilhante para ummenino que era um grande emotivo, e, sobretudo, um secundrio.

    3. Haviam prejulgado os seus meios e aptides e, sem exame prvio, o tinhamorientado para o ciclo escolar menos conveniente para ele Esse imaginativo concreto,por felicidade com grandes aptides para a matemtica, deveria ter sido encaminhadodiretamente para matrias escolares mais tcnicas, onde, sem dvida, teria sobressadoe, conseqentemente, encontrado compensao e exutrio para as tendncias agressivase reivindicadoras.

    Diretivas pedaggicas

    No mencionemos os conceitos agridoces que acolheram esta exposio, eresumamos os conselhos prticos que propusemos:

    1. No se poderia esperar nenhuma alterao no comportamento do menino semque anteshouvesse uma mudana total no mtodo pedaggico adotado em relao a ele.

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    Alm disso, no era possvel essa mudana de mtodo sem que houvesse antes mudanano estado afetivo recproco dos pais e da criana. A "maneira severa" no somente eraineficaz, como prejudicial. Tornaria esse indisciplinado um rebelde, que, aos 17 ou 18anos, ningum poderia dominar.

    2. Por outro lado, no se atalha em oito dias uma agressividade que data dos 5ou 6 anos de idade. Devia-se, pois, contar com um perodo de adaptao muito lento,

    com recidivas cada vez mais espaadas. A melhora caracterolgica estariaparalelamente na dependncia do estado afetivo parental em relao criana, ereciprocamente.

    3. Aconselhamos ao pai que durante trs meses, pelo menos, no se ocupassemais do filho, deixando me a totalidade do esforo pedaggico e tomando umaatitude de neutralidade benvola, como a que temos para um amigo, cujos defeitosconhecemos, mas com quem queremos nos entender, a qualquer preo. Por conseguinte,ficavam abolidos repreenses, castigos, palavras amargas ou ofensivas. Depois de trsmeses desse regime, sugerimos uma tcnica pedaggica muito mais flexvel: apelar parao raciocnio, o bom corao, o amor prprio e, sobretudo, recorrer s felicitaes epalavras animadoras logo que o menino as merecesse.

    Finalmente, aconselhamos ao pai que se aproximasse afetivamente do filho,

    pondo em prtica uma pedagogia de "presena", e que sobretudo o deixasse, em limitesrazoveis, desenvolver-se, equilibrar-se e harmonizar-se, conferindo-lheprogressivamente autonomia prpria.

    4. Sugerimos me, j que devia assumir, durante um tempo bastante longo, atotalidade do esforo pedaggico, que no se mostrasse fraca, porm extremamenteobjetiva e imparcial. Recomendamos, sobretudo, que no desse ao filho a impresso deter ganho uma vitria sobre o pai. Aconselhamos, alm disso, que fizesse a distinoexata entre o essencial e o acessrio, sendo essencial a prtica moral e religiosa, orespeito da autoridade parental, a obedincia s ordens, a lealdade, o dever de estado,que nesse caso era ser um colegial estudioso. Enfim, recomendamos que s recorresses sanes, sobretudo negativas, com prudncia e calma, j que a finalidade destatcnica pedaggica era obter uma espcie dereconciliao progressiva, primeiro, entre ofilho e ela, depois entre o filho e o marido. E a vitria estaria vista, quando tivesseobtido esse espairecimento afetivo, sem o qual uma melhora caracterolgicada crianaera radicalmente impossvel.

    5. A um e outro, mostramos a necessidade absoluta de uma nova orientaourgente para os cursos cientficos, no tendo o menino aptides para os cursos clssicosgreco-latinos. Quando fosse ultrapassada a primeira fase de adaptao, era provvel queele conseguisse os primeiros xitos escolares, o que teria um duplo resultado: no dariamais aos pais um motivo de descontentamento evitando conseqentemente cenas esanes, e compensaria a agressividade reivindicadora e mesmo vingadora.

    Concluso

    Prestemos aqui uma homenagem a esses pais. Contrariamente a tantos outros,tiveram a coragem de vencer o seu amor prprio e reconhecer em tempo os erros. Ofilho j est hoje com quase 16 anos. No o primeiro da turma, mas os estudos sobem satisfatrios. Reconciliado logo com a me, e em parte com o pai, seucomportamento, apesar de uma ou outra reincidncia devido primeira educao -porque h etapas psicolgicas que no poderiam ser recomeadas - equilibrou-se eharmonizou-se sensivelmente.

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    SEGUNDO CASO

    Exposio

    Jacqueline uma menina de 12 anos e dois meses; tem um irmo mais velho de17 anos e uma irmzinha de 5 anos. O pai mdico e trabalha no hospital de um grandecentro industrial. Muito absorvido pela profisso, a que se dedica de corpo e alma,quase que s v os filhos uma vez por semana, no dia que considera o seu dia dedescanso. Tem uma preferncia marcada pela filha, ainda que se entenda bem com ofilho, que, alis, bom rapaz e estuda sem fazer grandes esforos. No querendo,durante as poucas horas que passa em casa, envenenar a prpria vida e a dos seus comobservaes, censuras e castigos, mostra-se muito compreensivo, alegre, tolerante,deixando a cargo da mulher todo o lado odioso da educao dos trs filhos. Para o maisvelho, esse mtodo no apresenta inconvenientes, mas para Jacqueline e a irm detestvel.

    De fato, a me, senhora de conscincia at mesmo escrupulosa, no consegue

    dominar as meninas. Entre as duas, h brigas constantes, nomes feios, insultos,acompanhados de choros, acusaes mtuas, algumas das quais mentirosas, em suma,um comportamento de gatas enfurecidas, com unhadas escondidas e pequenasvinganazinhas feias e hipcritas.

    Quando a me lhe conta os acontecimentos da semana, o pai sorri, levanta osombros e nega-se a tomar partido. A me, sentindo-se sozinha e horrorizada com aresponsabilidade, castiga severamente as duas meninas, o que, longe de reconcili-las,provoca novas cenas, uma acusando a outra de ter provocado a briga ou de ter sidoobjeto de uma acusao injusta.

    Da o velho crculo vicioso: quanto mais a me castiga, mais as crianas ficaminsuportveis; quanto mais insuportveis, mais a me as castiga.

    Digamos aqui toda a verdade, por mais desagradvel que seja para nossasensibilidade: a animosidade de Jacqueline para com a me foi-se transformandoimperceptivelmente num verdadeiro dio. Numa crise de clera mais violenta, elachegou a dizer um dia: " pena que a gente no possa matar os pais" E, uma noite,como a me recomendasse filha que beijasse o pai antes de ir dormir a meninaencarou-a e respondeu: "No costumo beijar homens!"

    Uma bofetada do pai veio imediatamente sancionar essa rplica ambgua.Jacqueline ficou a princpio estarrecida, depois enrubesceu, empalideceu e acabou porcair no cho desmaiada. Ao voltar a si, vendo o pai sua cabeceira, disse-lhe: "Detestovoc tambm!.

    A partir desse momento, a atitude da menina mudou completamente. Tornou-sesilenciosa, fechada, e ningum mais conseguia vencer esse mutismo a no ser o irmomais velho, a quem obedecia com uma submisso exagerada. Essa submisso tornou-sedepressa uma espcie de admirao fervorosa, cujo carter equvoco era bem evidente.O rapazinho, equilibrado demais para prestar-se a esse jogo perigoso, tentava dirigir eaconselhar a irm usando mtodos violentos: "Obedea seno apanha" era sua expressofavorita. E a pequena obedecia para no apanhar.

    O pai, apesar de mdico, considerava excelente essa influncia e a me, cansadade intervir, alegrava-se com a paz relativa que reinava afinal em casa. Isso no impediaque, de vez em quando pelo menos, achassem estranho que a menina quase no lhes

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    dirigisse a palavra, s tivesse atenes para o irmo mais velho e s lhe obedecesse soba ameaa de pancadas.

    Inqurito preliminar

    O inqurito familiar foi, de certo modo, muito difcil, porque o pai se esquivava

    sob o pretexto de ocupaes profissionais urgentes, e a me respondia s nossasperguntas com visvel repulsa. Contudo, ela parecia ser uma senhora arguta, dotada deintuio, aberta aos problemas psicolgicos. Vivia, porm, dominada pelo temor, quasedoentio, da sua responsabilidade. Muito emotiva, com a vida conjugal parecendo poucoharmoniosa, temia sobretudo desagradar ao marido. "Vou perguntar a meu marido...""Meu marido lhe responder..." " meu marido que deve decidir... Mas o marido,como o dissemos, s pensava no seu hospital, nos seus doentes, nos seus operados.

    Alm disso, como todas as que abusam da intuio, perdia-se em hipteses. Emlugar de pr o dedo na causa exata da dificuldade, hesitava, discutia indefinidamente opr e o contra e tergiversava. A filha parecia-lhe um enigma absolutamente indecifrvel,e castigava-lhe o comportamento sem ir at os motivos que o ditavam.

    Esse comportamento, verdade, justificava as suas apreenses. Muito objetiva

    em suas queixas, a me no exagerava nada. Coisa bastante rara, era perfeitamenteexato aquilo de que se queixava.

    Sobre a primeira educao da menina no havia nada de extraordinrio. Alis,at os quatro ou cinco anos, a pequena fora fcil de educar. Alegre, impulsiva, umpouco fantasista, era mimada por todos. A primeira modificao caracterolgicamanifestou-se no nascimento da irm mais moa. No ficou logo enciumada, mas, pordiversas vezes, mostrou um ligeiro mau humor. S dois anos depois que comearamas grandes crises de cime, rancor e violncia. Foi quando a me interveio, castigandoseveramente as implicncias, as pancadas, e sobretudo as acusaes mentirosas.

    Assinalemos enfim que Jacqueline, pbereh dois meses, no tinha sido avisadadesse acontecimento. Como se assustara com ele, a me lhe respondera que "issoacontecia com todas as meninas bem comportadas". Sabendo que no era "bemcomportada", fazendo mesmo tudo que podia para no s-lo, a menina ficara semcompreender nada. Uma companheira de classe, mais esperta, preveniu-a de que o "bomcomportamento" nada tinha a ver com o caso e que "s assim se poderia ter um beb",mas que para ter um beb "era preciso tambm um homem" (sic). Jacqueline,assombrada, no quis saber de mais nada. Interrogou capciosamente o irmo mais velhoque a mandou para o diabo. Como insistisse, ele repetiu o seu famoso "Obedea, senoapanha", e contou a histria me; esta, no s por um pudor excessivo como porreceio de despertar uma animosidade que parecia adormecida, achou prefervel nointervir.

    O inqurito no meio escolar foi excelente. J acqueline era muito querida pelasmestras e companheiras. A professora de educao fsica, uma moa de 25 anos,adquirira sobre ela uma grande ascendncia. O aproveitamento escolar da meninaatingia 85%. Descreveram-na como obediente, mansa, servial, gostando de repartirdoces e balas com as colegas mais pobres. Alm disso, estudiosa e disciplinada, muitoraramente tinham necessidade de castig-la. Sua primeira comunho, que se realizaraseis meses antes, parecera entristec-la durante algumas semanas. Nenhuma de suaseducadoras podia justificar-lhe o comportamento familiar defeituoso. Finalmente, amenina manifestara o desejo de comear, no ano seguinte o curso de letras clssicas etornar-se mais tarde enfermeira.

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    Qualificao do casoA primeira vista, o caso de Jacqueline parece inteiramente de ordem

    caracterolgica. Certas extravagncias de seu comportamento familiar e unicamentefamiliar - fazem pensar, alm disso, que elas poderiam ser atribudas a um erropedaggico dos pais. Faltava, enfim, encontrar uma boa orientao escolar.

    O exame

    1. Consultando o relatrio mdico, verificamos logo certas anomalias, que nosendo graves, podem, entretanto, explicar a medocre estruturao do carter assimcomo o comportamento, certamente pouco harmonioso da menina.

    Peso e estatura deficientes, Jacqueline uma quase-dbil. Nenhuma das medidasbiomtricas se aproxima da mdia das meninas de sua idade. Alm disso, tem umaligeira escoliose. A tenso arterial extraordinriamente baixa.

    As investigaes neuropsquicas no descobrem nenhuma anomalia grave, masrevelam certamente uma criana instvel e bastante emotiva. As coordenaes

    neuromusculares so rpidas, vivas, de grande amplitude, mas geralmente imprecisas.2. O exame psicolgico superior mdia.O cociente intelectual atinge 119 (mdia 100). Os resultados no so to bons

    quando entra em jogo a memria, que parece imprecisa e pouco persistente. Ainteligncia prtica excelente. Os testes analticos so bem compreendidos pelamenina que demonstra um interesse especial na sua realizao. O raciocnio, sobretudono concreto, est muito acima da mdia.

    3. Os resultados do exame caracterolgico so maus. J acqueline umaintrovertida, cuja afetividade est evidentemente perturbada, e mesmo bloqueada, pelaquantidade de problemas que ficaram sem respostas e a preocupam. Restabelecendo,depois dos testes, e em virtude de uma entrevista algo inamistosa, o fio da "histriapessoal" dessa menina, encontramos uma atitude contrada, afetivamente poucoconsoante com o meio familiar. "Eu tambm preferia que gostassem de mim!" "Por que que os outros tm tudo?" "Mame s gosta de papai!" "Se a empregada no metrouxesse comida, mame me deixaria morrer de fome". Essa dissonncia afetiva com omeio familiar tem, entretanto, como base o cime, fixado, ao mesmo tempo, no pai, name e na irm mais moa. "Que que a mame tem tanto que dizer ao papai?" "Quandoele chega, acabou-se, ela no pensa mais em nada" "Um dia, eu beliscarei Odette comtanta fora que ela fugir para a rua!"

    Reavivando lembranas da primeira infncia, tem-se a impresso de queJacqueline era extremamente mimada pelo pai, que s tinha para ela beijos, agrados,apelativos carinhosos. Quando Jacqueline tinha quatro anos, nasceu, como j dissemos,uma irmzinha. A menina no fora de modo algum preparada para essa eventualidade,entretanto capital para ela. Como natural - e, por conseguinte, no h o que censurarnessa atitude parental - o pai e a me repartiram o carinho entre as duas filhinhas. Da amodificao profunda do carter de Jacqueline, que se tornou desconfiada, teimosa,susceptvel, tudo fruto de um cime inconsciente. Menina hiper-emotiva, alm dissointrovertida, quanto mais a castigavam, mais insuportvel se tornava, concorrendo assanes apenas para agravarem cada vez mais o cime.

    Consignemos tambm algumas manifestaes de auto-acusao: "Sei que noestou sendo delicada." " por minha culpa que ningum gosta de mim". Essa auto-acusao acompanhada pelo sentimento deprimente da inutilidade do esforo: "No

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    adianta nada." Da um sentimento de fracasso muito pronunciado. Certamente a meninasofre por no se sentir afetivamente adaptada ao meio familiar.

    Enfim, notemos que, a no ser algumas Informaes imprecisas e fragmentrias,essa menina, entretanto pbere, no recebeu absolutamente nenhuma iniciao sexualsistemtica. No sabe nada alm daquilo que a colega de turma sugeriu. Suasexualidade, se assim se ousa dizer, puramente afetiva, e fixada no pai que teve a

    inabilidade insigne de esbofete-la num momento de crise. Fixou-se depois no irmomais velho, e, de um modo ambivalente, na monitora de educao fsica.

    Erros pedaggicos

    O caso, conforme o exposto, seguramente da alada do mdico. No h amenor dvida de que tambm de ordem caracterolgica. incontestvel, porm, que aeducao dessa criana tenha sido vitima de enormes erros pedaggicos, que explicamem grande parte o seu comportamento familiar defeituoso.

    Notemos principalmente:

    1. O erro fundamental cujo estudo objeto deste captulo. Os pais sancionaramconseqncias: cime, desobedincia, revolta, mentira, rancor, etc., e nada fizeram paraatalhar a causa, isto , o estado afetivo donde esses comportamentos procedem e queinflui sobre eles desde a primeira infncia.

    2. Os erros pedaggicos cometidos pelo pai que, desde o nascimento, lhedemonstrou um carinho excessivo, Alm disso, a profisso, obrigando-o a ausnciasmuito freqentes, no lhe deu a oportunidade de equilibrar esse carinho com uma certafirmeza. Na ocasio do nascimento da segunda filha, no parece ter acostumado a maisvelha a repartir uma afeio que, evidentemente, no podia continuar absoluta.Finalmente, cometeu o erro de esbofetear a menina num momento de choque emocionalgrave. Embora esse fato no tenha chegado a ocasionar um traumatismo, o certo que ogesto violento, num momento de perturbao to srio, podia gerar uma crise aguda demutismo e afastamento do meio familiar.

    3. Os erros da me so, pelo menos, igualmente numerosos. Alm do fato de ter,como o pai, sancionado conseqncias sem atalhar a causa, ela parece ter feito tudo oqueera preciso para criar essa causa e, principalmente, cometeu, ela tambm, o erro deno preparar a menina para o nascimento da irmzinha. Mais ainda, no a habituou arepartir uma afeio parental que, naturalmente, no podia ser egosta. Sendo a filhauma hiper-emotiva secundria, no lhe deu, no entanto, nenhuma informao sexual,mesmo elementar, nem ao menos no momento, contudo previsvel, da puberdadepropriamente dita. Dizer que "isso acontece com todas as meninas bem comportadas"era evidentemente um absurdo, tanto mais que se fartavam de afirmar-lhe que ela no oera. Enfim, notemos o abuso de sanes negativas: ralhos, censuras, reprimendas, quelonge de acalmarem essa pequena ciumenta, s fizeram exacerbar o seu cime. Da ascrises de auto-acusao e o sentimento de fracasso afetivo.

    4. No colgio, parece no ter havido nenhum erro especial. Teriam podido,entretanto cometer um extremamente grave, se dando, de antemo, razo aos pais,amoldassem a sua pedagogia pela deles No h dvida de que a menina se teria tornadoainda mais desconfiada e difcil de ser levada. J ulgando-se perseguida em casa esentindo-se pouco apreciada na escola, a situao de Jacqueline teria sido catastrfica.Louvemos, especialmente, a atitude comedida da professora de educao fsica que,

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    longe de ceder s demonstraes afetivas da aluna, soube aproveit-las para criar entreambas um amizade sadia, sensata e equilibrada.

    5. Enfim, realcemos a atitude pedaggica do irmo mais velho. Afinal de contas,foi o nico que no cometeu nenhum erro. Em circunstncias muito difceis, adotou aatitude mais prudente e, de toda maneira, a nica possvel. "Obedea ou apanha" erauma expresso com que nunca se magoou a irm mais moa e que opunha uma barreira

    s manifestaes de uma afetividade profundamente perturbada. E isso se explicaporque uma menina de 12 anos, quando tem de lidar comi um rapazinho de 17, no dmuita importncia ao vocabulrio. A expresso enunciava apenas uma ordem fraterna,peremptria, se se quiser, mas que no sugeria absolutamente a perspectiva de umasurra, mesmo hipottica.

    Conselhos pedaggicos

    Mais uma vez, o pai, muito absorvido pela profisso, no veio consulta. A mese apresentou sozinha, muito perturbada, mas convencida, como freqente, que contraela no havia nada.

    Era urna mulher extremamente conscienciosa, como o dissemos no incio desta

    anlise, mas se enganara gravemente. O problema era convenc-la disso e depois faz-laadotar as atitudes pedaggicas apropriadas, o que no aconteceu sem muitas lgrimas.

    J que no adianta sancionar sintomas, isto , um comportamento defeituoso,sem emendar preliminarmente a causa, tentamos mostrar-lhe, atravs de toda a "histriapessoal" da menina, o curso progressivo do seu cime, que, desde a idade de quatro oucinco anos, provocava a indisciplina, a desobedincia, a teimosia, etc..

    Para atalh-la propusemos uma soluo inicial: internar Jacqueline noestabelecimento escolar, onde ela parecia sentir-se to bem. Eram evidentes asvantagens dessa medida: a menina no ficaria sujeita, pelo menos durante algum tempo, influncia do meio familiar, causa primeira e preponderante de seu cime. Segundo,graas a esse afastamento momentneo, podia-se esperar que houvesse um certoespairecimento afetivo tanto nela prpria, como nos pais. Terceiro, J acqueline no podiaconsiderar essa medida como uma sano vexatria, j que a escola era o nico lugaronde ela se sentia bem, era apreciada e querida, tanto pelas mestras como pelas colegas.

    Todavia - apesar da opinio de algumas pessoas - o internato apresenta sempreinconvenientes graves. Antes de qualquer outro era, no momento, o de privar Jacquelinede um lar ao qual, como toda criana, ela tinha direito. Segundo, era livrar, muitofacilmente, os pais da tarefa de reeducao que lhes incumbia, tanto mais que eram oscausadores - involuntrios, no h dvida da dificuldade do caso. Terceiro, no atalhariaverdadeiramente a causa, porm, s remediaria os sintomas. Sendo preciso pr emevidncia o comportamento afetivo da menina em relao aos pais, no era suprimindotodo contacto com eles que se melhoraria o seu comportamento.

    Essa soluo no era, pois, das que se podem achar adequadas. Propusemosento outra, que aconselhamos muitas vezes e que d, em geral, timos resultados: pr acriana em casa de uma famlia amiga ou aparentada. O essencial encontrar um larsimptico, acolhedor e de condio social sensivelmente idntico. Alm disso, devehaver nessa famlia crianas muito mais moas ou bem mais velhas, de maneira que amenina difcil, ao ser acolhida, se veja obrigada, mesmo sem o perceber, a fazer umesforo de adaptao ao meio. Enfim, necessrio que a menina volte freqentemente acasa, por exemplo, nas tardes de feriados e domingos, e no perca o contado afetivocom os pais, irmos ou irms. Por outro lado, v-se que se essa medida j muito

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    melhor que o internato propriamente dito, no poderia, contudo, resolver integralmenteo problema.

    Era, porm, outra a soluo verdadeiramente adequada: dependia, porm, dospais, e mais ainda da adaptabilidade afetiva deles.

    Eis por que, depois de pesar bem todos os prs e contras, aconselhamos:1. Levar em considerao o estado fisiolgico da menina. Jacqueline, como o

    dissemos, era uma quase-dbil, precisando de cuidados solcitos. Impunha-se, porconseguinte, um tratamento mdico, e no se podia esperar nenhuma melhoracaracterolgicasem que houvesse uma melhora prvia do estado fsico. Essa "instvel",hiperemotiva, devia ficar durante muito tempo sob vigilncia mdica. Devido, porm, asua prpria hiper-emotividade, era contra-indicado chamar-lhe a ateno para a suadebilidade nervosa e trat-la como "doente".

    Enfim, ainda que fosse verdade, devia-se, diante dela, evitar de realar asrelaes entre causa e efeito, nesse caso, o seu estado geral e o comportamentodefeituoso, a fim de no criar nessa grande emotiva uma propenso para a chantagem:"No estou bem de sade, logo tenho o direito de ser insuportvel."

    2. A menina, muito jovem para compreender a origem -- sem dvida edipiana -de seu cime, precisava de que lhe fosse mostrado a inanidade deste cime, por uma

    modificao prtica e concreta das manifestaes, pelo menos exteriores, da afetividadedos pais. Sob esse ponto, era necessrio refazer toda a sua educao, na medida,naturalmente, em que se pode refazer uma educao errada. Estavam em causa, emprimeiro lugar, o que costumam chamar a sociedade familiar vertical, isto , asubordinao da criana aos pais, e depois, a sociedade familiar horizontal, isto , acoordenao das crianas entre si. Essa subordinao e essa coordenao no foram,desde o incio, bem compreendidas e "vividas" pela menina. Aconselhamos, porconseguinte, ao pai infelizmente ausente, que tivesse atitudes menos demonstrativas,tanto em relao mulher como filha pequena e que, pelo contrrio, durante algumassemanas pelo menos, manifestasse ostensivamente mais velha uma prefernciarazovel, isto , sem mimos, carcias, palavras ou apelativos excessivamente carinhosos.Cumpria-lhe tambm aproveitar o mnimo progresso caracterolgico para felicitar afilha sem grandes exageros. No fim de seis semanas desse tratamento, deveria voltarprogressivamente a um pouco mais de objetividade e procurar um bom equilbrioafetivo, compensando as manifestaes de ternura - alis normais - com atitudes defirmeza. Deveria evitar absolutamente, durante o perodo transitrio, qualquerreprimenda pblica, censura humilhante ou castigo capaz de ferir a susceptibilidade dafilha.

    3. Aconselhamos me uma atitude afetiva idntica do pai, apenas com umadiferena, que consideramos essencial: essa atitude deveria ser adotada, no durante seissemanas, mas pelo menos durante trs a seis meses. Fosse como fosse, s poderiaconsiderar a filha em vias de cura definitiva a partir do momento em que o seucomportamento agressivo, provocado pelo cime, tivesse desaparecido. Era precisotambm acostumar a menina a repartir a afeio materna com a irm mais moa,habituando-a aos poucos a interessar-se pela irm, a brincar com ela, vesti-Ia, vigi-la,lev-la a passeios, etc. Qualquer melhora caracterolgica deveria merecer uma palavrade felicitaes, at mesmo uma recompensa.

    4. Finalmente, era urgente e necessrio que se desse a essa menina osconhecimentos sexuais exigidos pela idade e a evoluo fisiolgica. Nesse ponto,porm, defrontamo-nos com uma atitude de recusa da me, ocasionada, sem dvida, poruma timidez e uma reserva excessivas. Como no achssemos que o pai, emboramdico, pudesse desempenhar essa tarefa, sobretudo quando a filha uma edipiana

  • 7/29/2019 Pais Desajustados Filhos Difceis

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    declarada, aconselhamos a me a dirigir-