Paixão – Uma história de Rubem Alves

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Paixo

Uma histria de Rubem Alves

Dedico esta crnica aos apaixonados, mesmo sabendo que servir para nada: intil falar aos apaixonados. Os apaixonados s ouvem poemas e canes. A paixo, experincia insuperv l de prazer e alegria, pelo fato mesmo de ser uma experincia insupervel de prazer e alegria, coloca o apaixonado fora dos limites da razo. Todo apaixonado tolo. Po de ser que ele escute a fala da razo. Escuta mas no acredita. Diz ele: O meu caso diferente! Tolo mesmo quem tenta argumentar com os apaixonados. Comea, pois, assim, minha intil meditao com um verso terrvel de T. S. Eliot. Ele est ezando. Ele sabe que somente Deus tem poder para lidar com a loucura da paixo. El e reza assim: : . . livra-me da dor da paixo no satisfeita e da dor muito maior da paixo satisfeita. Todo mundo sabe que paixo no satisfeita di. Mas poucos sabem que a paixo s existe se no for satisfeita. A paixo fome. Ela s floresce na ausncia do objeto amado. Mais pre cisamente, ela vive da ausncia do objeto amado. No se trata de ausncia fsica, do obj eto amado distante, longe. A dor da ausncia fsica tem o nome de saudade. Saudade tem cura. A saudade curada quando o seu objeto volta. A dor da paixo dife rente. No tem cura. A saudade do objeto amado, mesmo quando ele est presente, o pe rfume caracterstico da paixo. Cassiano Ricardo sabia disso e escreveu. Por que tenho saudade de voc, no retrato ainda que o mais recente? E por que um simples retrato mais que voc, me comove, se voc mesma est presente? Que coisa mais esquisita! Como pode ser isso? Como se pode sentir saudade de alg o que est presente? A resposta simples: a gente sente saudade de uma pessoa prese nte quando ela est se despedindo. Cecilia Meireles, desenhando sua av morta, a que m ela muito amava, disse: Tu eras uma ausncia que se demorava; uma despedida pron ta a cumprir-se. Diro natural; um dia ela possuir o objeto da sua paixo. Mas a dor m uito maior , da paixo satisfeita, no tem mais esperanas. O objeto se desfez. Ela vive na tristeza do objeto perdido.

Escrevi uma histria sobre isso. A Menina era apaixonada pelo Pssaro Encantado. Mas ela sofria porque o Pssaro era livre, O Pssaro Encantado era sempre uma ausncia qu e se demorava, uma despedida pronta a cumprir-se. O Pssaro lhe disse que era prec iso que fosse assim, para que eles continuassem apaixonados. Ele sabia que a pai xo no ama pssaros em vo. Mas a Menina no acreditou. Prendeu-o numa gaiola. Gaiola? H as feitas com ferro e cadeados. Mas as mais sutis so feitas com desejos. Esquisito o que vou dizer: a alma uma biblioteca. Nela se encontram as estrias q ue amamos Romeu e Julieta, Abelardo e Heloisa, O paciente Ingls, As Pontes de Madi son, A Menina e o Pssaro Encantado. As estrias que amamos revelam a forma do nosso desejo. Delas escolhemos uma, a nossa gaiola. Gaiola na mo, samos pela vida procu ra do nosso Pssaro. Quando imaginamos hav-lo encontrado, uh, que felicidade! Ficar feliz em nossa gaiola. Ser o amante da nossa estria de amor: eu pr voc, voc pr mim. . . Ns colocamos l dentro e pedimos que nos cante canes de amor. Acontece que o Pssaro tambm tinha a sua estria. E era outra. Todo Pssaro deseja voar . Ele bate suas asas contra as grades, suas penas perdem as cores e o seu canto se transforma em choro. E, de repente, ele se transforma. No mais o reconhecemos, um outro. Essa a razo por que a dor da paixo satisfeita muito maior. Rubem Alves: Retratos de amor