Palhaços Excêntricos Musicais 27.pdf

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  • Grupo Off-Sina

    Palhaos Excntricos MusicaisErminia Silva

    Celso Amncio de Melo Filho

    Rio de Janeiro

    2014

  • AutoresCelso Amncio, Ermnia Silva, Lilian Moraes e Richard Riguetti.

    Conselho EditorialCelso Amncio, Ermnia Silva, Lilian Moraes e Richard Riguetti.

    Direo de ArteCristhianne Mandalozzo Vasso.

    Foto da capaMarcus Gullo

    RevisoErica Resende

    ProduoLilian Moraes, Richard Riguetti e Simone Dutra.

    RealizaoGrupo Off-Sina

    PatrocnioPrefeitura da Cidade do Rio de Janeiro / Secretaria Municipal de Cultura.

    Dados internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    S586 Silva, Erminia Palhaos excntricos musicais / Erminia Silva e Celso Amncio de Melo Filho. Rio de Janeiro: Grupo Off-Sina, 2014.

    Inclui Bibliografia. ISBN

    1. Palhao. 2. Arte e msica. 3. Instrumentos musicais. I. Melo Filho. Celso Amncio de.

    CDD: 791.33

  • SUMRIO

    APRESENTAO

    INTRODUO

    CAPTULO 1PALHAOS EXCNTRICOS MUSICAIS: debates e origens

    1.1 Palhao excntrico: debate histrico1.2 Dramaturgia do palhao excntrico artes circenses/musica/teatro/dana, tudo isso?1.3 Quem so os excntricos para os autores estrangeiros?1.4 E no Brasil?

    CAPTULO 2PALHAOS MUSICAIS E EXCNTRICOS: os autores conduzidos pelas mos de artistas, mestres e parceiros circenses

    2.1 Nego Beijo: acrobata, palhao, cantor, instrumentista, ator, autor, diretor e excntrico (Erminia Silva)2.2 Doracy Campos e Alvina Campos Palhao Treme-Treme e Palhaa Corrupita (Erminia Silva) 2.2.1 Formao do artista 2.2.2 Menino em fuga, casaca-de-ferro, palhao, domador destaque na mdia 2.2.3 Dos vrios processos herdados e alou grandes voos 2.2.4 Doracy Treme-Treme e Alvina Campos 2.2.5 Diversos sentidos, diversos sons no Circo Treme-Treme mistura total: circo/rdio/shows/TV/circo-teatro/ teatro dcadas 1950 e 1960 2.2.6 Polifonia e polissemia artstica mistura total: circo/rdio/shows/tv/circo-teatro/teatro dcadas 1950 e 1960 2.2.7 Treme-Treme e Corrupita vo para Televiso 2.2.8 De volta ao Rio de Janeiro e boa parte do Brasil 2.2.8.1 Vamos falar um pouco do Txi Maluco 2.2.8.2 Treme-Treme vai para a Barra da Tijuca funda o Teatro de Lona 2.2.9 Breve anlise final que outro incio2.3 Tefanes Silveira Palhao Biribinha (Celso Amncio de Melo Filho) 2.3.1 Biribinha e sua turma 2.3.2 No solo do inusitado2.4 Circo Amarillo e o espetculo Sem Concerto (Celso Amncio de Melo Filho) 2.4.1 Circo Amarillo no Brasil 2.4.2 Sem Concerto

    CAPTULO 3GRUPO OFF-SINA: encontros e afetos

    3.1 Doracy e Alvina Campos, Richard Riguetti e Lilian Moraes3.2 Trajetria do Grupo Off-Sina: da rua para a lona3.3 Palhaos Excntricos Musicais - Caf Pequeno e Currupita3.4 Escola Livre de Palhaos ESLIPA3.5 Texto Complementar: ESLIPA: A ousadia pioneira de uma dupla de palhaos (Michelle Cabral)

  • CAPTULO 4A MULTIPLICIDADE DE VOZES: com quantos artistas/msicos se faz um Excntrico Musical?

    4.1 As vozes de amigos e parceiros 4.1.1 Amir Haddad 4.1.2 Daniel Gonzaga 4.1.3 Joo Batista 4.1.4 Tefanes Silveira 4.1.5 Marcelo Bernardes 4.1.6 Mnica Besser 4.1.7 Mauro Bruzza 4.1.8 Cristiano Pena 4.1.9 Edmilson Santini4.2 Futuros Excntricos Musicais - Depoimento dos alunos da Eslipa 4.2.1 Carlos Souza Palhao Carlitos 4.2.2 Diogo Maroja - Palhao Moleza 4.2.3 Bruno Frana Palhao Felizardo Tum Tum 4.2.4 Cntia Nunes Palhaa Rita Roberta 4.2.5 Gzuz Lima Palhao Mijolino

    REFERNCIAS

  • APRESENTAOLus Alberto de Abreu

    Em O Nome da Rosa, de Umberto Eco, o monge franciscano Guilherme de Baskerville conversa com um mestre vidreiro, beneditino, encarregado da reposio dos pequenos vidros dos imensos vitrais da abadia. O mestre vidreiro lamenta que por mais que labore no consegue dar aos vidros que fabrica as mesmas cores, as mesmas transparncias, a mesma beleza que os antigos mestres, de h quase quatrocentos anos (a ao do romance d-se no sculo XIII), construtores da abadia e criadores dos vitrais, conseguiram. E conclui o beneditino: os antigos eram gigantes. Ns somos anes. Guilherme de Baskerville, esprito aberto s mudanas do mundo, reflete um momento e concorda com o mestre vidreiro. verdade, ns somos anes. Mas somos anes nas costas de gigantes de tal forma que podemos ver melhor e mais longe do que os prprios gigantes conseguiram enxergar. No so as exatas palavras de Umberto Eco em O Nome da Rosa, lidas h mais de trinta anos, mas esse o raciocnio e ele veio de pronto ao terminar a leitura deste livro de Erminia Silva e Celso Amncio de Melo Filho.

    O livro sobre o palhao circense, mais especificamente sobre um deles, o palhao excntrico musical. No entanto, no existe assunto nico, qualquer assunto sempre refere a outros assuntos e, ento, o livro se desdobra em histria e organizao do circo tradicional, processos de aprendizado artstico, o carter mltiplo do espetculo circense e algumas de suas figuras emblemticas como Benjamim de Oliveira e Doracy e Alvina Campos. No bastasse os autores traam a ponte entre a tradio circense e a contemporaneidade evidenciando a importncia das tcnicas e procedimentos do espetculo circense na construo espetculos de novos grupos oriundos da msica, do teatro, da performance, como o grupo Off-Sina e a Cia Teatral Turma do Biribinha e o Circo Amarillo. Por fim, o livro reafirma uma verdade que finalmente comea a se firmar: o artista de circo no pode ser encerrado numa idealizao romntica de uma hipottica pureza da tradio. Ele sempre foi contemporneo, sempre fez a transio entre as tcnicas e a mentalidade do passado e as novas ideias e tcnicas que os novos tempos requeriam e necessitavam. O artista circense tambm no pode ser relegado a simples rodap na histria das artes e espetculos como querem os pesquisadores e historiadores das artes cultas. O artista circense , e sempre foi, extraordinariamente maior do que pode imaginar o senso comum ou o preconceito que, desde o sculo XVIII, a cultura dominante abriga e dissemina: o circo divertimento das classes menos abastadas e como tal um amontoado grosseiro de tcnicas sofrveis que no conseguiriam alar altura de uma verdadeira Potica.

    H tempos que a historiadora Erminia Silva investe contra esse tipo de desinformao e de preconceito. Desde sua dissertao de mestrado sobre a socializao/formao/aprendizado de tcnicas e prticas circenses no chamado circo-famlia, ela desvela um mundo onde a educao artstica atingia nveis de qualidade, amplido e conhecimento, processos de aprendizado e rigor, inimaginveis em nossas melhores escolas de formao artstica. E em sua tese de doutorado aborda uma figura lendria na histria do circo, Benjamim de Oliveira, com um alcance muito alm da figura de palhao, como ficou conhecido. Benjamim foi uma figura mltipla ator, dramaturgo, diretor, compositor, instrumentista, empresrio e empreendedor. Um artista que dialogou com outras linguagens e meios de comunicao da poca, transitando com desenvoltura entre a tradio e a contemporaneidade. E isso, como elucida a autora, no

  • se deveu a um isolado gnio criativo, mas estava perfeitamente em consonncia com as formas e prticas do aprendizado artstico caracterstico do circo. A inventividade de Benjamim de Oliveira lanou razes e pode se desenvolver porque existia o terreno frtil da formao artstica circense. Uma formao rigorosa, mltipla, completamente aberta s inovaes e ao trnsito com outras linguagens.

    No presente livro, Erminia retoma Benjamim de Oliveira e o compara a outra figura, Doracy Campos que com sua mulher, Alvina Campos, tornou-se emblema desse artista mltiplo, na segunda metade do sculo XX. Doracy empreendeu, inventou, criou tcnicas, transitou porvrios veculos de comunicao e linguagens artsticas, fez o que a slida formao de artista circense lhe possibilitou: tornar-se um artista completo. Doracy tornou-se mais conhecido como palhao excntrico musical Treme-Treme que fez dupla com a palhaa Corrupita, criada por sua mulher Alvina. Ambos marcaram poca nas duas ltimas quadras do sculo XX. E aqui voltamos ao foco destas pesquisas de Erminia Silva e Celso Amncio de Melo Filho, o palhao excntrico musical, um tipo que sintetiza em si toda a multiplicidade da formao do circense: ator, acrobata, inventor, cengrafo, figurinista, dramaturgo, palhao, instrumentista e compositor musical. Alm claro de empresrio e empreendedor, funes bsicas do artista circense.

    Numa escrita clara, sugestiva, altamente envolvente Celso e Erminia abrem, passo a passo, o caminho em direo essa figura iluminada do palhao excntrico, mais um ser do que um personagem. Uma figura fora do centro, fora das regras, aberto como criana a quaisquer estmulos que logo se transformam em riso e alegria em razo da maneira inusitada, inventiva com que processa e dialoga com a realidade. Uma figura risonha e ao mesmo tempo potica porque vasculha as coisas cotidianas e extrai delas ora elementos grotescos, ora elementos to delicados que alcanam o pattico, o terno, o avesso da matria de que as coisas cotidianas so feitas. Um mgico sem truques que consegue extrair harmonias musicais de garrafas, penicos e latas, fazer msica atirando moedas sobre uma pedra, consegue buscar sons, rudos cmicos e notas musicais de bexigas e bombas de bicicletas, harmonizando, transformando numa pequena sinfonia sons, rudos e notas musicais. O excntrico musical traz a magia ao mundo cotidiano e revela que os mais toscos objetos cotidianos podem abrigar dentro de si uma potncia inusitada quando tocados com outros objetivos. Os objetos no so o que aparentam e revelam-se em sua grandeza harmnica, revelam-nos a prpria alma de que tambm so feitos. Esse o mais alto grau de magia. Nada no mundo o que aparenta. Essa a verdade risonha que o palhao excntrico musical nos oferece. O tonto sbio como s o sbio reconhece.

    Como se v, esta no uma Apresentao rigorosa, mas isso decorre do alto poder sugestivo do trabalho desses dois pesquisadores. No possvel uma leitura fria do livro, nem ater-se a um nico assunto. Neste livro no entramos apenas na discusso terica do palhao excntrico musical, entramos no universo circense, em sua histria, seu complexo e rigoroso processo de formao artstica fundamentado na preservao da tradio e, ao mesmo tempo, na sede da inovao; na abertura para quaisquer linguagens artsticas, na predisposio para a criao de novas formas e inveno de novos artefatos que possam alar a arte a nveis sempre mais altos. um livro que se l imaginando,participando da mesma aventura e com uma vontade nostlgica e absurda de ter nascido na dcada de 40 do sculo XX e fugir, ainda menino, comum circo para aprender a fazer arte. Como Doracy Campos fez. Ou como Benjamim de Oliveira fez ainda no sculo XIX.

    No entanto, na leitura do livro no aflora nenhum sentimento nostlgico em relao ao circo. No h lamrias passadistas. No h o mais leve lamento sobre um hipottico paraso perdido. Ao contrrio, os autores deixam evidenciado que o circo bem mais que uma lona e artistas ambulantes. O circo um bem imaterial, um processo de formao artstica, um conjunto de tcnicas rigorosas que trazem consigo

  • uma viso artstica de mundo. uma linguagem de comunicao variada e dinmica que se traduz em um espetculo diferenciado de outros espetculos artsticos. E nesse sentido o circo no morre, morre a forma como ele se apresenta, imediatamente substituda por outra, seja debaixo de uma lona ou no.

    Celso e Erminia aps relatarem como o valioso processo de criao artstica do circo transferiu-se para as escolas de circo sendo assim preservado, analisam casos de grupos de artistas que derivaram para a esttica circense tendo como foco o palhao excntrico musical, como o Grupo Off-Sina e o Circo Amarillo. E abrem igualmente espao para o relato do processo de reinveno de um coletivo circense, a Cia Teatral Turma do Biribinha. So saborosas e altamente esclarecedoras as histrias desses grupos pesquisados. Revelam a fora que o espetculo circense exerceu sobre esses profissionais motivando-os a reinvent-lo ou apreend-lo com a ajuda e ensinamentos do prprio mestre Doracy Campos, como foi o caso do Grupo Off-Sina. So aventuras exemplares de como o circo, entendido como linguagem, permanece sob outras formas, em outros espaos, com outras histrias de construo. E evidncia que circo uma linguagem mltipla, altamente dinmica, rigorosa, que tangencia os limites do corpo, do esprito e da inveno. E o palhao excntrico musical tornou-se seu mastro.

    E, de lambujem, como se dizia na poca do circo-famlia, o livro traz depoimentos de novos circenses, filhos da contemporaneidade, mas formados com o velho rigor artstico da tradio.

    Enfim, um livro que vale a pena. Mesmo porque no pena nenhuma, mas um prazer, mergulhar neste livro.

  • INTRODUO

    Esta obra o resultado de uma srie de encontros felizes que aconteceram ao longo de anos, encontros e trocas realizadas por pessoas com desejos e anseios comuns que se descobriram parceiras como artistas, pesquisadores ou simplesmente enquanto seres sensveis e afetuosos que partilham os mesmos ideais.

    Em 1991, Richard Riguetti e Lilian Moraes, os artistas do Grupo Off-Sina, iniciaram seu intercmbio com Doracy e Alvina Campos, os palhaos Treme-Treme e Corrupita, mestres e parceiros fundamentais a esse grupo para o entendimento e aprofundamento da potica dos palhaos e das singularidades do universo circense. Sem poder prever onde chegariam, a dupla comeou a carregar uma bagagem cada vez mais ampla de experincias, aprendizados e possibilidades artsticas, permeadas pela busca das linguagens do palhao, do circo-teatro e do teatro de rua enquanto suas opes criativas. Somou-se a essa bagagem de vivncias o acervo de uma memria de grande valor para o entendimento das histrias circenses no Brasil. Aps o falecimento de seus mestres e amigos, o Grupo Off-Sina herdou de Mrcia Campos, filha do casal Doracy e Alvina Campos, os arquivos pessoais com uma srie de lbuns e pastas contendo fotografias e notcias de jornal que ilustram suas trajetrias artsticas.

    A historiadora circense Erminia Silva, uma das autoras deste livro, trouxe ao convvio do grupo uma viso mais aprofundada sobre as artes circenses no Brasil, por meio de sua pesquisa sobre Benjamim do Oliveira, tornando-se parceira e coordenadora de pesquisas do Grupo Off-Sina. Iniciou-se ento o estudo do material de Doracy Campos, com o intuito de realizar um registro de seu legado artstico e tambm compreender melhor sua potica. Todo o material foi ento higienizado, cuidadosamente catalogado e arquivado em pastas, graas parceria com a bibliotecria e pesquisadora rica Resende, que realizou tambm a reviso deste livro. Esse conjunto de materiais, com o qual foi possvel mapear o percurso do casal Campos, tornou-se uma das principais fontes utilizadas na constituio desta obra.

    Nestes entremeios, um outro achado foi encontrado entre os pertences pitorescos da bagagem de Treme-Treme: a arte dos palhaos excntricos musicais. O Off-Sina iniciou ento seu trabalho nessa maneira peculiar de fazer arte. Como consequncia, o artista e pesquisador Celso Amncio de Melo Filho, o outro autor deste texto, que fora aluno de Erminia Silva na UNESP, aproximou-se tambm do Grupo Off-Sina durante a realizao de sua pesquisa de mestrado, que teve como temtica a msica como recurso cnico de palhaos. Entre tantos encontros e cumplicidades, e aps a experincia de trabalhar j em vrios projetos com Erminia Silva e ter Celso Amncio como colaborador, o Grupo Off-Sina idealizou este livro como uma obra que integrasse todas essas pesquisas compartilhadas ao longo de anos.

    Assim, essa obra o dilogo entre as pesquisas pessoais dos dois autores, o material herdado pelo Grupo Off-Sina e a prpria experincia prtica desse grupo na construo de sua potica de palhaos excntricos musicais, tanto em suas criaes quanto em seu trabalho como educadores. Nesse sentido, Richard e Lilian se tornam, ao mesmo tempo, pesquisadores e artistas abordados, alm de serem os promovedores desta publicao.

    Nesta jornada entre memria e inveno, fundamental lembrar e agradecer a colaboradores imprescindveis: Simone Dutra, produtora do Grupo Off-Sina; Renato Riguetti, que realizou a gravao em

  • vdeo da entrevista com o Grupo Off-Sina; Mrcia Campos, a filha de Doracy e Alvina Campos; Tefanes Silveira, Marcelo Lujan e Pablo Nrdio, que gentilmente nos cederam um pouco de suas histrias; Cristhianne Vasso, que fez todo o projeto grfico e diagramao do livro; Lus Alberto de Abreu, um dos principais dramaturgos brasileiros, que compartilhou seu conhecimento e sensibilidade para o texto de apresentao; e por fim, a todos os artistas que emprestaram suas vozes em entrevistas, versos ou testemunhos, expressando a grande multiplicidade e diversidade da arte musical dos palhaos.

    Este livro parte integrante do projeto: Circo do Rio Manuteno Grupo Off-Sina 26 anos, contemplado pelo Primeiro Programa de Fomento Cultura Carioca, no ano de 2013.

    Boa leitura e boas descobertas!

  • CAPTULO 1PALHAOS EXCNTRICOS MUSICAIS: debates e origens

    Sobre o que iremos tratar nesta publicao, que produto de uma pesquisa realizada pelos autores, a partir do projeto proposto pelo Grupo Off-Sina?

    So muitas as respostas, mas o principal tema o palhao e, em particular, o palhao excntrico. Mas, no possvel realizar essa tarefa sem entender o quanto h, a, inscritas histrias de vidas e de existncias, experincias fabricadas por vrios artistas, circenses que construram e constroem a diversidade de formas de se produzir o circo/circo-teatro/msica/teatro/dana, tudo junto e ligado, coproduzidos ao mesmo tempo, rizomticos.

    Quando se trata destes conceitos, em particular: circo, circo-teatro e palhao, h certo senso comum de definies prontas ou mesmo uma urgncia por definies, como se no carregassem em si histria, potncias, disputas no campo das relaes de poder e saber. Nesse sentido, o debate realizado tem a inteno de trazer tona a ideia de que conceitos como estes efetivamente tm histria, so compostos por multiplicidades e precisam ser analisados a partir de quem os inventou(a), alm do como e quando foram e so inventados. Devem ser analisados pelos dilogos que realizam com uma rede quase que infinita de intensas criaes, invenes e disputas em cada um dos processos histricos. E, mesmo assim, no se pretende que feito tudo isso se esgote o entendimento de um ou vrios deles, pois como multiplicidade, no h conceito que no remeta a outro e assim infinitamente. Os conceitos se acomodam uns aos outros, superpem-se uns aos outros 1, agenciam-se.

    No so poucas as vezes que vrias perguntas so feitas, hoje em dia, sobre os temas acima, sendo que muitos dos interlocutores nesse campo, de diversas origens (acadmicas ou no) alunos/artistas, professores/artistas, pesquisadores, jornalistas acabem aguardando uma definio nica e precisa, como se isso fosse possvel, a no ser no contexto de que um pensamento pode de fato representar uma realidade como se ela fosse fixa e plenamente transparente a esse modo de pensar.

    Cada vez que uma pesquisa sobre a produo das artes do circo tem incio, inmeros conceitos so levantados. normal, isto vale para qualquer campo de estudo acadmico ou no. Mas, preciso pensar que alguns (ou muitos) conceitos utilizados para definir o que significa circo ou palhao, em como as vrias prticas circenses, carregam em si uma firme proposta de serem a verdade, ou respostas nicas contendo verdades sobre o que se pretende demonstrar.

    Primeiro: conceitos nicos que pretendam ser totalitrios so conceitos representao, ou seja, pretendem dar uma mesma noo do que circo tanto para trs mil antes de Cristo, como no final do sculo XVIII e agora na primeira metade do sculo XXI. Neles, no h histrias e mudanas, transformaes culturais na produo do que seja um espetculo circense a ponto desse no poder conter uma definio clara a priori, fora de si como um fazer. Por isso, em vez de se ter uma definio formal, representacional do que circo, por exemplo, possvel e necessrio responder de outra forma: a produo circense s pode ser vista e falada no ato de sua fabricao, no momento em que est acontecendo. Portanto, a definio depende dos processos relacionais vivenciados em cada acontecimento histrico. Da o pensamento no estar antes, representando, ele est a no acontecer, quer dizer, no h conceito pronto antes de um fazer no seu lugar, suas relaes polticas, sociais, culturais, no seu momento histrico.

  • Segundo: conceitos de representao tendem a deixar de fora aquilo que no se quer falar, pensar, aquilo que no se pretende visvel. Por exemplo, para muitos que s entendem a partir do campo do pensamento representao, circo : um espetculo realizado sob a lona, nmade e de famlias. Bom, a rigor esta definio vale, de fato, para apenas uma parte dos mais de 200 anos de histria da produo circense, e assim sendo, ser que este conceito d conta de pensar a diversidade da produo histrica da linguagem circense desde o final do XVIII? Ser que este conceito d conta de pensar a diversidade de produo histrica da linguagem circense contempornea, particularmente depois das escolas de circo, do circo social, da formao de grupos, etc.? Aqui est se falando de circo, imagina para o conceito de palhao? Seria outro arsenal de perguntas.

    Terceiro: ao ser nico e no dar visibilidade multiplicidade histrica cultural circense, o que expe so silncios como nas histrias oficiais do teatro, da msica, da dana que no incluem as produes dos artistas circenses homens e mulheres nos seus processos histricos, ali no seu fazer o circo. Alm disso, dependendo de quem fala as disputas de saberes e poderes em relao ao que acredita que deva ser circo, qual de fato a verdadeira histria do circo, acabam por excluir aqueles que no se enquadram, criam at certa viso de anomalias.

    Estas trs questes levantadas valem para todo e qualquer lugar que a pessoa que estuda circo se coloca, seja nos chamados tradicionais, ou nos chamados novos e mais recentemente contemporneos, ou nas pesquisas acadmicas que leem muito rapidamente a bibliografia sem se aprofundar nas histrias das existncias e produes circenses, bem como nas prprias constituies histricas das atividades culturais artsticas dos inmeros pases, cidades, bairros, ruas e grupos pelos quais os circenses passaram, contaminaram, construram, copiaram, protagonizaram, divulgaram, etc.

    Em primeiro lugar, cada conceito remete a outros conceitos, no somente em sua histria, mas em seu devir ou suas conexes presentes. Cada conceito tem componentes que podem ser, por sua vez, tomados como conceitos [...]. Os conceitos vo, pois ao infinito e, sendo criados, no so jamais criados do nada. 2

    Mas... afinal, o que aqui se entende por conceito?

    Deleuze e Guattari, no livro O que a Filosofia?, realizam um importante debate a respeito do que seja um conceito. No possvel entend-lo como algo simples. No existem conceitos simples, todos so compostos por multiplicidades.

    Evidentemente todo conceito tem uma histria. [...]. Numa palavra, dizemos de qualquer conceito que ele sempre tem uma histria, embora a histria se desdobre em ziguezague, embora cruze talvez outros problemas ou outros planos diferentes. Num conceito, h, no mais das vezes, pedaos ou componentes vindos de outros conceitos, que respondiam a outros problemas e supunham outros planos. No pode ser diferente, j que cada conceito opera um novo corte, assume novos contornos, deve ser reativado ou recortado. 3

    Essas questes j faziam e fazem parte h anos de nossas pesquisas, particularmente de uma das autoras Erminia Silva (2007, 2009a, 2009b, 2011b) mas, nos ltimos 40 anos esto presentes na maioria dos debates que vm ocorrendo sobre a produo da dramaturgia do circo-teatro e do palhao,

  • o que resulta em elaboraes constantes em torno da esttica e da tica. Claro que, como historiadora/pesquisadora, um dos focos de elaborao da autora tratou da produo das memrias sobre a multiplicidade de significados acerca do conceito circo-teatro em geral, e do palhao em particular. Para Celso Amncio de Melo Filho (2013) este debate em termos de pesquisa acadmica mais recente, o que no significa que como palhao/msico no estivesse presente o tempo todo.

    Assim, o que apresentamos a partir de agora so conceitos/temas que estudamos, pesquisamos nas fontes e a partir delas construmos nossas anlises. Dialogamos com as fontes (orais, escritas, peridicos, etc.), bibliografias, existncias distintas que nos informaram sobre os seus fazeres, suas aes. Dentre as inmeras existncias iremos destacar: Benjamim de Oliveira, Doracy Campos, Alvina Campos, Tefanes Silveira, Marcelo Lujan e Pablo Nrdio. Cada nome mencionado trabalhado como um coletivo.

  • 1.1 Palhao Excntrico: debate histrico

    H pesquisas que no s delimitam o que deve ser palhao, como o fazem tambm para alguns dos inmeros modos de se produzir este personagem, dentro ou fora da linguagem circense, sendo quase o mesmo durante longo perodo histrico. O caso destes muitos modos de atuao nos espetculos dos artistas que construram seus palhaos era o denominado palhao excntrico.

    Entendendo, como dissemos, que todo conceito tem uma histria, sem se propor a esgotar todas as fontes de pesquisas de ambos os autores, levantaremos apenas alguns exemplos nos quais nos propomos dar visibilidade de algumas formas como historicamente a denominao de excntrico e palhao excntrico foi abordada.

    O conceito de excntrico, em si, d margem uma infinidade de possibilidades que vo desde denominaes na rea da sade (esta pessoa excntrica no sentido de portador de transtorno mental) at a tentativa de denominar palhao excntrico apenas aquele que toca instrumentos no usuais em seus espetculos. Ao pesquisarmos em dicionrios disponveis na internet, excntrico no sentido de fora do comum apresenta os sinnimos: bizarro, esdrxulo, esquisito, esquisitrio, estapafrdico, estapafrdio, estramblico, estrambtico, estranho, estrdio, excepcional, extico, extravagante, heterclito, incomum, irregular, mirabolante, singular, surpreendente.

    Mas, h outras formas de utiliz-los para uma pessoa por ser: caprichoso, novo, louco, diferente, luntico, manaco, grotesco, ridculo, extraordinrio, incrvel, inslito, tipo, rato, delirante, desnatural, esquiptico, funambulesco, gozado, original, sistemtico, sofisticado, voluntarioso, baldoso, barroco, psicodlico.

    No difcil supor que a produo histrica dos milhares de artistas que construram seus palhaos (e nos ltimos 40 anos as palhaas) inclua todos esses sinnimos desde bizarro a surpreendente, desde caprichoso a psicodlico. Alm de todo conceito ter uma histria, ele ou a produo dele rizomtica. Construir novos percursos, desenhar novos territrios a cada ponto de encontro que os homens e mulheres circenses operavam e operam como resistncias e alteridades, com os quais a linguagem dialogou de modo polissmico e produziu diferentes configuraes nesse campo de saber e prtica, inclusive velhas/novas, distintas e inmeras definies.

    E sim, palhao tudo isso e muito mais que no cabe aqui, por isso que s vezes tentar entender um conceito nico para ele, bem como colocar um adjetivo como se resolvesse tudo, torna-se muito complicado. Mas afinal, como ser que excntrico foi tratado em nossas fontes da pesquisa? Desta forma mesmo, pois em cada fonte, em cada autor, todos os sinnimos estavam presentes, por exemplo, Alice Viveiros de Castro 4:

    O palhao a figura cmica por excelncia. Ele a mais enlouquecida expresso da comicidade: tragicamente cmico. Tudo que alucinante, violento, excntrico e absurdo prprio do palhao. Ele no tem nenhum compromisso com qualquer aparncia de realidade. O palhao comicidade pura.O palhao no um personagem exclusivo do circo. Foi no picadeiro que ele atingiu a

  • plenitude e finalmente assumiu o papel de protagonista. Mas o nome palhao surgiu muito antes do chamado circo moderno. Alis, seria melhor dizer os nomes. Uma das grandes dificuldades que a maioria dos autores encontra ao estudar a origem dos palhaos est na profuso de nomes que essa figura assume em cada momento e lugar. Clown, grotesco, truo, bobo, excntrico, tony, augusto, jogral, so apenas alguns dos nomes mais comuns que usamos para nos referir a essa figura louca, capaz de provocar gargalhadas ao primeiro olhar.

    Ao discutir sobre o que seria o palhao no primeiro pargrafo acima, Castro coloca o debate em termos das dificuldades em ter uma nica definio, mas ao mesmo tempo, no seguinte o conceito excntrico surge como mais uma das caractersticas misturadas que essa figura se apresentou e se apresenta. Assim, temos que ele teria inmeros nomes em seu processo histrico, rizomtico. Mas, no segundo j aparece como um entre as diversas denominaes.

    Continuando, quando Castro descreve a formao de duplas de palhao, informa que no comeo, quem mandava era o branco autoritrio e cruel , exibindo-se no picadeiro com seus trajes majestosos, repletos de bordados de paets e lantejoulas. J o parceiro da dupla o pobre augusto, que tambm pode ser chamado de tony ou excntrico, sofria na mo do clown, mas, aos poucos este segundo teria assumido o picadeiro jogando para longe o velho branco Hoje estaramos vivendo o reinado absoluto do augusto, depois da queda irremedivel do clown branco.5

    Nesta proposta da autora, uma das muitas denominaes dadas ao palhao (que tambm foi ou ainda) clown, seria de duas opes semelhantes tony ou excntrico. No decorrer de seu trabalho, especifica mais essa opo, quando, por exemplo, lista diversos palhaos brasileiros e suas especificidades. Para Juan Cardona, que chegou ao Brasil na segunda metade do sculo XIX, casado com a artista Lili Cardona (ambos os tios de Oscarito), Alice6 o descreve como um excntrico, um augusto exagerado, mas quando queria montava nmeros de clown clssico.

    Aqui excntrico ligado a augusto exagerado, igual descrio que faz do sobrinho de Juan, Oscarito que era mais um excntrico, o palhao sem medidas, que abusava das caretas, tinha um jeito desajeitado de ser, um giro de corpo de quem ia, mas no foi, malcia ingnua - tudo isso ele herdou de seus antepassados, honrando os 400 anos de humor que trazia nas veias. Nesse sentido, a autora concorda com a fala de Grande Otelo, seu parceiro em 34 filmes, que declarou: Eu acho que eu era um ator mais completo. Oscarito era mais um excntrico, ao passo que eu procurava valorizar o dilogo e a interpretao, em busca de um tom adequado. Pode ser que eu esteja enganado, mas ele era mais um excntrico e eu um comediante.7

    interessante aqui a questo colocada por alguns pesquisadores, e mesmo alguns artistas com relao diferena entre ser um ator mais completo e o outro ser um excntrico, complementando que ele valorizava o dilogo e a interpretao, sempre em busca de um tom adequado, enquanto o outro era mais excntrico. Ser ento que ser excntrico no significava ou significa ser um bom ator? Ser que pelo fato de que Oscarito era um ator completo, que ele tinha sucesso como excntrico, pois tambm tinha que saber valorizar o dilogo, a interpretao, ter um tom adequado? Ser que aqui uma diferena entre a hierarquia de ser ator e ser palhao? Mas, com certeza ser excntrico no sentido do exagero, sem medidas, abusando das caretas, desajeitado, malcia ingnua para uma parte oficial do teatro no ser bom ator, no tem capacidade de valorizar o dilogo, e como diziam os circenses nas propagandas do sculo XIX: etc., etc. e etc.

  • Mario Fernando Bolognesi8 ao analisar as razes etimolgicas do termo clown afirma:

    Clown uma palavra inglesa, cuja origem remonta ao sculo XVI, derivada de cloyne, cloine, clowne. Sua matriz etimolgica reporta a colonus e clod, cujo sentido aproximado seria homem rstico, do campo. Clod, ou clown, tinha tambm o sentido de lout, homem desajeitado, grosseiro, e de boor, campons, rstico. Na pantomima inglesa o termo clown designava o cmico principal e tinhas as funes de um servial. No universo circense o clown o artista cmico que participa de cenas curtas e explora uma caracterstica de excntrica tolice em suas aes.

    Este mesmo autor, quando discute as divergncias dos pesquisadores, em particular dos historiadores circenses, sobre as origens do chamado augusto (sendo o outro chamado de branco), o faz mencionando a questo de como este personagem descrito como uma forma diferenciadora para distinguir de seu parceiro, sendo que a excentricidade no vestir, na forma de atuar seriam algumas das caractersticas:

    As verses de sua origem, portanto, apontam o Augusto associado a uma estupidez espontnea, vestido de forma excntrica, livre e sem a formalidade dos clowns anteriores. Entretanto, antes de se dedicar investigao das origens e, consequentemente, de dar a elas um lugar de destaque, como se criao do tipo fosse resultado exclusivo de um incidente deve-se perguntar pelas razes que fizeram o Augusto se firmar.9

    Em seu projeto de pesquisa, Celso Amncio de Melo Filho (2013 um dos autores deste texto), tambm analisa a dificuldade de preciso quando das inmeras definies sobre o que seria palhao excntrico. Para ele, essa definio, assim como parte da terminologia clownesca, no alcana exatido, havendo certa divergncia quanto ao seu uso. H, entretanto, em alguns autores pesquisados por Melo Filho, particularmente aqueles que apontam as origens destes personagens ou conceito no sculo XIX, que parece haver uma convergncia que talvez seja capital para o entendimento desse tipo seja o fato de estarem mais associados aos music halls, ou seja, ao espao teatral do que ao picadeiro. 10 Um dos pesquisadores foi Robert Beauvais 11, que segundo ele o excntrico teria surgido justamente da adaptao do clown tradicional estrutura de palco, uma nova arte de rir que contaminou a raiz do cinema nascente por meio de artistas que migraram dos teatros de variedades aos cinemas, como Charles Chaplin, Buster Keaton e, mais recentemente, Jacques Tati. O excntrico seria, grosso modo, o elo entre os clowns e essas personagens cinematogrficas que o senso comum reconhece como palhaos.

    H certo consenso ou senso comum no meio dos circenses e de pesquisadores sobre a relao entre palhao e msica (cantada, danada e, principalmente, tocada), que, em geral, denominado palhao excntrico. Mas, como veremos, tambm h uma diversidade ou um leque de anlises que associam formatos de como o palhao usa a msica, principalmente instrumental, que teria como caracterstica a excentricidade. Castro 12, ao mencionar Piolin formando dupla com Alcebades Pereira (no circo do segundo) descreve:

    Alcebades, o clown, tocava pistom e Piolin, o excntrico, tocava bandolim. At que uma pulga mordia a perna de Piolin que, desesperado, interrompia o dueto para procurar

  • a pulga, apesar dos protestos de Alcebades. O concerto recomeava e novamente a pulga atacava outra parte do corpo de Piolin que, desesperado, interrompia o dueto para procurar a pulga, apesar dos protestos de Alcebades. O concerto recomeava e novamente a pulga atacava outra parte do corpo de Piolin, que parava de tocar, procurava a pulga e deixava Alcebades furioso.

    Tristan Rmy dedica um captulo aos clowns musicais, domadores, humorsticos e polticos, dando especial ateno aos primeiros e chegando a afirmar que um clown menos engraado se salva se for um pouco msico.

    Apesar de abordar o clown msico com certa diferenciao, Rmy tambm compreende a arte musical como prpria das ferramentas do trabalho clownesco, afirmando que os clowns so frequentemente instrumentistas hbeis e ressalta que, independentemente do surgimento de grupos de clowns que se denominavam musicais, no podemos limitar essa denominao exclusivamente a estes, j que alguns utilizam a msica como ferramenta cmica ocasionalmente, desenvolvendo nmeros musicais ao lado de seus outros nmeros. Para tanto, o autor cita exemplos como os Cairoli; o clown Antonet, que tocava violino; Dario Meschi, que era acordionista; os Fratellini que possuam algumas entradas musicais; Rico Briatore, que tocava violo e cantava; e Grock em especial, multi-instrumentista que desenvolveu a partir da msica as grandes linhas de seus nmeros. 13

    Rmy14, segundo Melo Filho, tambm associa os excntricos aos palcos dos music halls, analisando as ferramentas cmicas destes nos excntricos solitrios. De acordo com esse autor, os excntricos possuem as mesmas fontes de riso que os clowns, tendo inclusive deixado os traos de sua originalidade em numerosas entradas clownescas. Seriam oriundos diretamente do augusto tradicional, tendo herdado o uso de acessrios da tradio inglesa e tambm dos tramps americanos. O tramp, que em ingls significa vagabundo, um tipo particular de cmico circense surgido nos Estados Unidos, uma figura de face enegrecida e de vestes maltrapilhas resultado da Guerra de Secesso Americana, que deixou vtimas esfarrapadas vagando pelas estradas do pas. Segundo Bolognesi15, um tipo de palhao que passou a ocupar o espetculo juntamente com o augusto e o clown branco, mas permanecendo margem do picadeiro tal qual sua origem.

    De acordo com o entendimento da potica do excntrico por Rmy, este psicologicamente o oposto do augusto, no sendo nunca um imbecil, mas uma espcie de augusto esperto e ardiloso que termina sempre por cima da situao. Sua arte estaria em criar obstculos em grande quantidade para ter o mrito do triunfo de uma s vez, atuando de maneira calculada e precisa. Sua obra seria ento constituda de uma soma de dificuldades vencidas ao mnimo custo, na qual nada descosturado e perdido, sem margem para improvisaes. Para Rmy, o imprevisvel o pesadelo dos excntricos.16

    Como se pode observar, pesquisadores europeus e brasileiros, em algum momento de suas pesquisas, fazem associaes entre o conceito de excntrico ligado aos palhaos que tocam instrumentos na sua diversidade. Mas, h tambm um caminho traado por vrios autores (que sero nomeados) e fontes pesquisadas, para especificar o palhao excntrico musical somente aquele que tocava instrumentos inusitados.

  • 1.2 Dramaturgia do Palhao Excntrico artes circenses/msica/teatro/dana tudo isso?

    Como observamos, no vamos atrs das origens da excentricidade cmica, entretanto, foi importante a realizao de uma cartografia, no exaustiva, mas suficiente para assinalarmos vrias formas utilizadas e denominadas do palhao excntrico. E a relao da questo da msica e palhao talvez a que mais tempo vem sendo construda, at agora, relacionando palhao excntrico como palhao musical.

    A cartografia realizada pelos autores deste texto, em suas pesquisas e publicaes, vem demonstrando o quanto o entrelaamento, a transversalidade, as misturas das diversas linguagens artsticas sempre fizeram parte das produes histricas de todas elas, seja do teatro, msica, dana e das artes circenses nas suas mais diversas formas de produo, atuao e esttica.

    Os artistas que circularam pelas ruas, praas e feiras, antes que se construssem os primeiros teatros e se organizassem em companhias circenses tinham na versatilidade uma das principais caractersticas de sua expresso. Eram artistas que, sem se preocupar com delimitaes de seu ofcio, podiam ser a um s tempo: acrobatas, atores, danarinos e msicos. Msica e circo, assim como teatro e circo, sempre se entrelaaram nas criaes de diversos tipos de profissionais que contriburam para a construo do que hoje percebemos como a arte de atores cmicos e palhaos. Muito antes da palavra: palhao ser de uso corrente, diversos tipos de artistas valiam-se de tcnicas e linguagens artsticas variadas em suas criaes e seus modos de produo. Podemos citar exemplos que abarcam diferentes pocas e perodos histricos, como os mimos greco-romanos, os saltimbancos, bufes e artistas de feira durante a Idade Mdia, os atores da chamada commedia dellarte, entre os sculos XVI e XVII, dentre muitos outros que circularam por diversos espaos de encenao e que as fontes no conseguem abarcar. Os palhaos e os tipos cmicos que os precederam so oriundos de contextos nos quais o entendimento do que significava ser um artista consistia dominar uma multiplicidade de tcnicas e recursos. Esses artistas eram profissionais versteis e detentores das linguagens artsticas de sua poca. A compreenso da potica de artistas como estes implica um olhar distinto da noo de artista enquanto algum dedicado a uma nica tcnica e separadamente discriminado como msico, ator, danarino ou acrobata. O ofcio de palhao e de artista circense caracteriza-se por sua multiplicidade.

    Multiplicidade no somente de tcnicas, mas tambm de tendncias e artistas de universos muito diversificados, pois a partir aproximadamente de 1780, uma grande variedade de profissionais passou a fazer parte da nova organizao espetacular que eram os circos, artistas que

    se apresentavam nas ruas, praas e teatro de feiras, mas tambm havia artistas dos teatros fechados italianos, elisabetanos, arenas, hipdromos, ciganos, prestidigitadores, bonequeiros, danarinos, cantores, msicos, artistas herdeiros da commedia dellarte, acrobatas (solo e areo), cmicos em geral que se apresentavam em seus entreatos, com o objetivo de imprimir ritmo s apresentaes e dar um entretenimento diferente ao pblico.17

  • Portanto, sem que houvesse delimitaes de seus ofcios, a atuao dos palhaos representou, e ainda representa, uma sntese de diversas linguagens que circularam pelas ruas e feiras, sendo abarcadas pelo circo e tambm pelo teatro.

    Alm disso, havia ainda a necessidade de execuo de trabalhos muito diversos ao fazer artstico, como os cuidados com o material de trabalho, a confeco dos figurinos, os encargos de transporte, a montagem e a desmontagem dos palcos, dos cenrios, ou das tendas, alm da versatilidade para encarnar diferentes funes e papis de acordo com as necessidades do grupo com o qual se trabalhava, fosse este uma trupe de saltimbancos, uma famlia de bufes ou uma companhia circense. O circo moderno manteve esse modo de trabalho compartilhado, no qual seus agentes precisam atuar em diversas funes para viabilizar o espetculo, sendo geralmente os mesmos artistas que executam os nmeros acrobticos, as apresentaes cmicas e teatrais, assim como os trabalhos tcnicos de produo.

    Ao incluirmos os palhaos como herdeiros e propagadores deste modus operandi, torna-se evidente que a msica, em suas variadas possibilidades, parte intrnseca de sua potica cnica. Ademais, outros fatores pertinentes histria da arte circense tambm contribuem para acentuar essa caracterstica. Um desses fatores diz respeito ao contexto inicial das entradas e reprises de palhaos, quando eram construdas como pardias de nmeros circenses, desde os nmeros equestres s apresentaes musicais. Para que as pardias pudessem acontecer era importante que o palhao tivesse ao menos uma noo mediana a respeito do que debochava, isso quando no era necessrio um domnio ainda mais amplo, j que no ato de parodiar muitas vezes est implicado a representao da falha e sua superao por meio de situaes ainda mais adversas que a prpria habilidade impe em suas condies usuais.

  • 1.3 Quem so os excntricos para autores estrangeiros?

    Alguns palhaos excntricos musicais tornaram-se marcantes na memria circense europeia, como por exemplo, os Irmos Price, os Chesterfilds e Grock.

    Os irmos John e William Price, em meados do sculo XIX, reuniam o triplo talento de serem equilibristas, saltadores e msicos, mas sendo primeiramente e sobretudo acrobatas msicos. Dentre os nmeros musicais desses artistas esto os violons sauteurs (violinos saltadores), duos acrobticos intercaladas por saltos mortais e contorcionismos, entremeados de rias executadas ao violino nas posies mais inacreditveis. A dedicao msica tambm figurava nas vestimentas dos Irmos Price, que eram decoradas de signos da escrita musical, como notas, fermatas, claves diversas, entre outras figuras.18

    Os Chesterfields19 interpretavam msicos desajeitados, em uma atuao virtuose que trabalhava a comicidade em gestos insignificantes e desajeitados, em atitudes esquisitas e em automatismos que saiam totalmente do controle.

    O artista suo Adrien Wettach (1880-1959), que interpretava o palhao Grock, um excntrico musical de gnio20 tambm transitou tanto entre palcos quanto picadeiros, tornando-se um dos excntricos musicais lendrios no comeo do sculo XX. Grock era acrobata, excelente mmico e sabia explorar a comicidade das palavras, aliando estas habilidades ao universo musical. A comdia musical foi a fonte principal de inspirao de Grock. Violino, piano, saxofone, concertina, tais so os fios de seu bordado clownesco21 Um dos vrios instrumentos que dominava tratava-se de um violino minsculo que carregava em um estojo enorme, executando nesse violino inslito melodias to complexas quanto em um violino convencional. Dentre os filmes que esse artista realizou, o filme Grock (1931)22, pode ser facilmente assistido na internet.

    Outros nomes que Pierre Levy cita em sua obra, j da segunda metade do sculo XX so: Pipo Junior, Grigorescu, Etvus, os Francesco, os Sipolo e os Rastelli.23

    Um outro tipo cmico que tambm trabalhava acentuadamente com a linguagem musical era os chamados blackfaces ou minstrels (menestris), cujas apresentaes, os minstrel shows, eram os entretenimentos mais populares nos Estados Unidos entre 1840 e 189024, uma popularidade que emigrou para a Europa, onde o modelo americano de blackface se tornou preponderante a similares europeus.

    Os blackfaces americanos eram tipos cmico-musicais que satirizavam a fala e os costumes de afrodescendentes, apropriando-se de seus aspectos culturais. Na maior parte das vezes, os blackfaces eram interpretados por homens brancos com o rosto pintado por cortia queimada, graxa preta ou manteiga de coca. Nos primeiros anos possuam lbios exageradamente pintados de vermelho e nos anos tardios eram brancos ou sem pintura. O pblico branco da poca inicial no aceitava negros nesses papis sem que utilizassem a maquiagem preta, porm, a partir da dcada de 1860, aproximadamente, possvel encontrar j homens negros interpretando esses papis com a cor de sua pele. Em fontes do perodo possvel perceber que a popularidade do fenmeno est relacionada a tenses entre interesses contrrios e favorveis ao regime escravocrata, j que parte da comicidade desses espetculos era criada por meio de esteretipos racistas das populaes afrodescendentes americanas. Mas outra parte do fascnio que

  • esses artistas exerciam estava vinculada msica, pois suas apresentaes tinham como base um grupo de msicos, todos com caracterizao, geralmente tocando banjos, tamborins, ossos25 e rabecas.

    Na Europa do final do sculo XIX, havia tanta procura por excntricos musicais que muitos blackfaces de origem americana eram contratados para temporadas em teatros e circos. Assim, esses artistas tambm contriburam e influenciaram os nmeros musicais cmicos de palhaos, trazendo instrumentos tpicos dos minstrel shows, como o banjo, o tamborim, a gaita de boca, os ossos, e teriam tambm enriquecido a construo de instrumentos cmicos com objetos de uso cotidiano. A despeito de uma grande ocorrncia deste tipo cmico nos Estados Unidos, personagens de face pintada de preto podem ser verificados em outros momentos e locais, havendo incidncia j nos teatros de moralidades medievais e na Commedia dellarte italiana.

  • 1.4 E no Brasil?

    No Brasil dos finais do sculo XIX e comeo do sculo XX, aconteceu um fenmeno relativamente similar na popularidade dos palhaos cantores que se valiam das grias, das danas e dos ritmos das populaes escravas. Podemos encontrar ainda personagens cmicas de caras pintadas de negro em manifestaes populares do ciclo do boi, como o Cavalo-marinho, especialmente na representao de mscaras que cumprem funes similares aos palhaos.

    Msica e comicidade tambm so elementos constitutivos dos folguedos populares brasileiros, assim como a indumentria, a coreografia e as representaes teatralizadas. Dentre as personagens mascaradas de manifestaes como as festas do ciclo do boi (Cavalo-marinho, Boi-bumb, Reizado, entre outras), as Folias de Reis e os Pastoris Profanos, existem personagens cmicas que encarnam as funes dramticas dos palhaos, aproximando-se desses pela maneira de atuao, visualidade e jogo cmico, mas tambm por aspectos antropolgicos mais profundos, especialmente se considerarmos as razes ritualsticas de nossos brincantes. Segundo o pesquisador Ivanildo Piccoli dos Santos:

    O palhao o responsvel pelo profano, pela dualidade do sagrado, pelo grotesco no rito sacro. Ele incorpora em seu comportamento um carter de deboche da prpria vida, do mal, dos erros, da tentativa frustrada do homem de se imortalizar. Como o palhao de circo ou um servo astuto da commedia dellarte, ele desafia a gravidade caindo, provocando riso pelas pancadas, pela agressividade. O palhao coloca o homem de frente ao mundo e diante de si mesmo, fazendo rir de si e dos outros e do mundo, como um bufo medieval, mostrando a incompetncia, os limites, o errado e o ridculo.26

    Os palhaos da cultura popular, com personagens denominados Mateus, Bastios, Catirinas, Velhos, dentre outros, so tambm tipos cmicos com habilidades mltiplas, que danam, interpretam, improvisam versos e cantam. Ivanildo Piccoli dos Santos, em sua pesquisa acerca da mscara do palhao nessas manifestaes citadas, analisa constantemente o papel crucial da msica e suas caractersticas nos folguedos populares. Para citar um exemplo, ao abordar o Bumba-meu-boi, o autor refere-se msica como importante para sustentar a brincadeira pelo seu longo tempo de durao, dando entusiasmo e ritmo ao brincante.27 No caso do Cavalo-marinho, derivao do Bumba-meu-boi em Pernambuco, o autor destaca-o por mesclar a msica com interpretaes cnicas e elementos dramticos, caracterizando assim a definio de Mrio de Andrade de dana dramtica. 28

    Os palhaos-brincantes da cultura popular se relacionaram e intercambiaram com a arte dos palhaos circenses. Na pesquisa de Ivanildo dos Santos, foi verificada uma maior abrangncia de relaes com o palhao circense na figura do Velho, personagem central do Pastoril Profano, cuja caracterizao tem uma influncia ntida dos palhaos, inclusive pelo uso do nariz vermelho. Nessa manifestao, a msica executada por uma banda que pode incluir instrumentos variados como saxofone, bumbo, trombone e sanfona. Na fala transcrita de um dos artistas entrevistados pelo pesquisador podemos identificar a presena de msicos de circo, justamente pela possibilidade de excentricidades sonoras. Segundo Walmir

  • Chagas 29, o Velho Mangaba:

    uma banda fixa, fixa assim. Fixo o cargo, vamos dizer assim. Tem que ter um trombone, no necessariamente tem que ter aquele professional [] Eu chamo a bateria de circo, porque uma bateria meio percusso: em buzina, tem um bocado de breguetes, o zabumbeiro que faz a parte. Olha que cada um tem um naipe, o grave, o mdio e o agudo. E trs de cada um grave, o violo, o mdio o bandolim; e o cavaquinho l fazendo o agudo. Trombone fazendo o grave, trompete fazendo o mdio; e o sax o agudo. Na percusso, tem a mesma coisa. O bombo, o do meio faz tudo a coisa pequena, ganz tringulo, no sei o qu [...] uma orquestrinha uma minibanda de circo, uma mini-orquestra. uma minibanda com nove integrantes.

    A despeito do exemplo citado, ser de um artista contemporneo, ele evidencia o intercmbio e a miscigenao cultural entre esses territrios artsticos. Os circos sempre estiveram presentes nas localidades e datas religiosas em que aconteciam festas populares, atrados pela possibilidade de garantir um pblico mais numeroso. Da mesma maneira que os palhaos circenses influenciaram a comicidade dos brincantes, tambm receberam influencia.

    A arte dos palhaos brasileiros durante todo o sculo XIX incorporou ritmos e gneros locais, em especial as modinhas e os lundus. importante ressaltarmos que sempre houve a mistura do que nossos colonizadores europeus traziam com as culturas artsticas locais. Isto sempre fez parte do que se analisou neste texto das caractersticas da teatralidade circense, ou seja, a incorporao em suas produes das manifestaes artsticas contemporneas, pois s assim fazia sentido para a heterogeneidade do pblico que assistiam aos espetculos.

    O uso e domnio da msica segundo as particularidades dos palhaos europeus, assim como era usual em seus pases de origem, teve continuidade no circo brasileiro. Muitos palhaos europeus vieram ao Brasil para temporadas, o prprio Grock veio com a companhia de Frank Brown Amrica do Sul.

    Muitos artistas que realizavam acrobacias de solo tambm as faziam tocando. Porm, o artista que desempenhava o palhao era identificado como msico instrumentista, sendo chamado muitas vezes de cmico excntrico, palhao excntrico e, cada vez com mais frequncia, no final do sculo XIX, de clown excntrico. Seus instrumentos variavam desde o violino e o trompete, at gaitinhas, apitos, guizos, pratos e tambores uma bateria completa!, sempre executando saltos acrobticos e de dana, com a peripcia de nunca desafinar 30

    Vrias famlias de artistas circenses permaneceram por aqui, dentre estas, algumas eram anunciadas como clowns instrumentistas excntricos, como os Seyssel, os Temperani e os Ozon 31 dando continuidade em solo brasileiro ao trabalho mltiplo dos palhaos europeus.

    Assim, ao nos debruarmos sobre o tema da msica nos espetculos circenses, at pelo menos a dcada de 1960, em particular no Brasil, esta no deve ser vista apenas como acompanhamento para os nmeros em geral. As produes musicais nos picadeiros acompanharam a multiplicidade de variaes de ritmos e formas, que aconteciam nas ruas, nos bares, nos cafs-concerto, cabars, nos grupos carnavalescos, nas rodas de msica e de dana dos grupos de pagodeiros, seresteiros, sambistas, de lundu,

  • do maxixe, no teatro musicado com suas operetas e sua forma mais amplamente usada e consumida, que foi o teatro de revista. Enfim, as manifestaes artsticas musicais que eram inteligveis para a populao tiveram sua representatividade e expressividade nos palcos/picadeiros.

    Normalmente, a primeira imagem que se tem quando o tema msica no circo de uma banda ou charanga antiga denominao dada a pequenas bandas formadas basicamente por instrumentos de sopro. De fato, desde Philip Astley, a banda, independente do nmero de componentes, foi importante para qualquer circo. Com seus instrumentos de sopro, metais e percusso, em alguns casos tocados pelos prprios artistas ginastas e cmicos, as bandas eram responsveis pela veiculao da propaganda nas cidades, anunciando os espetculos, por vezes junto com os palhaos-cartaz. Antes de iniciar o espetculo ela dava as boas-vindas ao pblico, nas portas dos circos. Durante o espetculo, eram elas que davam a cadncia dos nmeros e marcavam o compasso da teatralidade dos mesmos, utilizando desde ritmos da msica clssica aos mais populares, dependendo da velocidade dos movimentos dos artistas para desenvolver suas apresentaes, aumentando o suspense, a tenso ou acentuando a irreverncia dos palhaos.

    Nas pantomimas a msica tocada no era um simples adorno ou acompanhamento; era intrinsecamente ligada mmica, explicitando o enredo da pea, compondo a teatralidade. Os circos destacavam em suas propagandas que possuam uma banda prpria, como um sinal de status, colocando-a como chamariz entre os principais nmeros do espetculo. O circo de Manoel Pery, por exemplo, em 1881, em propaganda no jornal de Campinas, anunciava que tinha dezoito artistas, dez cavalos e uma excelente banda de msica, que executava lindas peas de seu repertrio, a qual tem sido muito aplaudida, em todos os pontos onde se h exibido 32. Em 1884, o mesmo circo anunciava uma grande banda de msica com 10 professores, confiada a regncia ao hbil maestro Leandro Paran, a exemplo do que ocorria no mundo musical das bandas. Muitos circos, como o Chiarini, chegavam mesmo a cham-las de orquestras, dando-lhes um lugar de destaque, abrindo o espetculo com uma sinfonia, e iniciando a segunda parte com uma ouverture 33. Mrio de Andrade informa que na segunda metade do sculo XIX organizavam-se, por toda parte no Brasil, orquestras, o que sugere a importncia dada pelos circos de assim nomearem o conjunto de seus msicos. 34

    Houve uma rpida incorporao e intercmbio entre as bandas circenses e as locais quanto aos seus profissionais e ritmos. Neste processo de insero no universo social e cultural nas cidades, circos e bandas transitavam por territrios diversos, reforando, entre as suas vrias funes, o poder simblico de saudao e boas vindas. 35 A partir da dcada de 1880, os circos formariam suas bandas com forte presena dos msicos locais, alm de incorporar as bandas das cidades, em suas variadas origens, para tocar na entrada do circo, recebendo os espectadores, nos intervalos e nas prprias apresentaes dos espetculos. Os intervalos circenses, geralmente em torno de 20 a 30 minutos, tornaram-se um espao importante para que o pblico tambm pudesse ouvir msica, como destacou a propaganda do Circo Casali, quando, no Rio de Janeiro, anunciou que nos intervalos tocaria a banda do I Batalho de Infantaria. 36 Alguns teatros, entre os quais o Teatro So Carlos, em Campinas, na dcada de 1870, apresentavam espetculos com vrios atos, com diversos cenrios que tornavam os jogos de cena e troca de figurinos muito lentos devido estrutura acanhada das instalaes; dessa forma, normalmente os entreatos eram muito demorados. O pblico, j prevendo isto, preparava uma espcie de piquenique dentro do teatro; e, a este recreio se juntavam as bandas de msica. 37

    Para Maria Luisa Duarte do Pteo, a pluralidade de tipos de bandas expressava algumas caractersticas da cidade naquele momento, indo alm de uma simples representao ou reflexo dela.

  • Mais do que apenas reproduzir grupos sociais, etnias, universos de trabalho, as bandas, atravs de sua performance musical, interferiam no cotidiano, nas relaes, nas formas de comunicao entre as pessoas, alterando os espaos de sociabilidade, imprimindo novos sentidos aos lugares e situaes por onde circulava 38. As parcerias entre bandas locais e circos, independentemente de suas origens e tamanhos, sero, tambm, importantes veculos de uma polifonia cultural e ldica, que imprimiu novas formas de viver o cotidiano urbano, principalmente atravs das bandas formadas pelos prprios circenses, que, devido ao seu nomadismo, percorriam espaos e territrios mais amplos, em todos os sentidos, seja no geogrfico, cultural ou social. Alm dos vrios ritmos musicais do repertrio, os prprios msicos e maestros circenses adaptavam todas as msicas que acompanhavam as pantomimas, peas teatrais, cenas cmicas e sainetes. Como a maioria das cidades visitadas no tinha banda, as dos circos divulgavam a multiplicidade de sons, a combinao de vrias melodias, de instrumentos e vozes, resultante das incorporaes e trocas que realizavam ao longo de seus trajetos. Juntavam-se a essa polifonia das bandas os circenses que tambm trabalhavam nas pantomimas e, em destaque, os que representavam o papel de palhao, que, de um modo geral, alm de ginastas, acrobatas, saltadores, tocavam algum instrumento musical e cantavam.

    Para Tinhoro, o clown de rosto pintado de branco, no estilo da commdia dellarte, seria a figura produzida pelo microcosmo artstico internacional do circo, destinada a emprestar sua universalidade criao adaptando o modelo importado s caractersticas regionais de um dos mais curiosos exemplos culturais de diluio do geral no particular. Afirma ainda que uma importante contribuio sul-americana criao internacional do circo teria sido o aproveitamento dos mltiplos talentos histrinicos e musicais exibidos pelos diferentes clowns europeus, para a criao de dois tipos locais que lhes sintetizariam todas as virtudes: o palhao-instrumentista-cantor (equivalente do chansonnier do teatro musicado) e o palhao-ator (responsvel pelo aparecimento da originalssima teatrologia circense das canes representadas, at hoje ignorada por historiadores e estudiosos do teatro) 39.

    A construo do espetculo circense, inclusive do personagem palhao, que temos analisado neste texto, passou por constantes transformaes e adaptaes, o que leva a crer que no se pode entender os dois tipos a que se refere Tinhoro apenas como criaes locais. Para ele, a combinao entre circo e teatro somente teria ocorrido e se consolidado, de fato, a partir de 1884, em particular na Argentina, com a experincia do personagem cmico representado por Jos Podest, o palhao Pepino 88. Entretanto, no possvel concordar com a defesa de uma inveno latino-americana da teatrologia circense e nem que ela tenha ocorrido a partir de uma nica experincia. As definies de palhao-instrumentista-cantor e palhao-ator so importantes para se observar e entender a produo dos espetculos circenses sul-americanos, em especial os brasileiros, que, se no eram originais, de fato acabaram por desenvolver caractersticas diferenciadoras das produes circenses europeias e americanas do final do sculo XIX e incio do XX. Apesar de realizarem mltiplas funes, alguns palhaos se destacavam por serem de fato atores. Dos artistas circenses, que sobressaam como os cmicos da companhia, eram exigidos boa dose de talento dramtico. O sucesso de uma cena cmica, uma entrada, uma reprise, uma mmica, e tudo aquilo que envolvia representao baseava-se, sobretudo, na qualidade dos intrpretes.

    A combinao dessa tradio do palhao-instrumentista europeu com as bandas e a presena cada vez maior de brasileiros entre os circenses resultaram numa transformao do palhao-instrumentista-cantor-ator. Os gneros como o vaudeville e o melodrama, atravs de diferentes modelos de pantomimas, misturados aos ritmos e musicalidade locais, tiveram a comicidade como a tnica daquelas produes. Os sainetes, peas curtas de um ato, com caractersticas burlescas e jocosas, que alinhavavam danas e

  • msicas, assim como as cenas cmicas, eram representados quase na sua totalidade pelos palhaos que j dominavam a lngua, portanto, eram falados e cantados em portugus. Isso possibilitou que em todos os gneros pantomimas, cenas cmicas, sainetes, arlequinadas, entremezes e entradas se incorporassem, de maneira parodiada, a msica e os assuntos corriqueiros do dia-a-dia das culturas locais, ao mesmo tempo em que se mantinha a forma do espetculo que migrou.

    Alm de valsas, polcas e mazurcas, as bandas tocavam tambm quadrilhas, fandangos, dobrados, maxixes, frevos, canonetas, modinhas e lundus. Os palhaos no s tocavam vrios destes ritmos, como tambm os danavam, ao som principalmente do violo. As cenas cmicas e os entremezes tambm eram produzidos nos moldes dos que eram realizados nos palcos teatrais e levados ao picadeiro pelos palhaos circenses. Assim, tendo em vista essa constituio, o espetculo circense e o teatro musicado, principalmente a revista, no podem ser vistos isoladamente. Ambos foram mais que parceiros, complementando-se o tempo todo. Enquanto estavam juntos nas grandes e mdias cidades, compartilhavam e disputavam palcos, artistas e pblicos. Nas pequenas cidades, lugarejos e bairros afastados dos centros das grandes cidades, em particular o Rio de Janeiro, eram principalmente os circos, devido ao seu nomadismo, que veiculavam as msicas e os gneros do teatro.

    Os ritmos e danas tocados e danados nos circos no eram novidade. Vale lembrar que, desde a dcada de 1830, os artistas j danavam, principalmente ao final do espetculo e acompanhando as pantomimas eram os bailes de ao ou pantommicos, cmicos e jocosos, anunciados como bailes da terra, nos quais as experincias dos artistas migrantes misturavam-se com as experincias dos artistas, ritmos e danas locais, inclusive escravos e libertos.

    Para os folcloristas e pesquisadores da msica, difcil precisar a diferena entre os vrios ritmos musicais e suas danas, em particular a chula, o fandango e o lundu. Mrio de Andrade, ao definir a chula, refere-se a uma dana portuguesa, na qual os danarinos ficam um indivduo defronte do outro, com os braos levantados, dando estalos com os dedos, ora afastando-se ora aproximando-se um do outro e girando sempre em crculo, ou sobre os calcanhares. Mas, para o autor, algumas referncias chula, quando se observa a unio desse tipo de dana com cantiga baiana, que falava em mulatas sensuais e alguma comicidade, podia ser identificada com o lundu, no Brasil. 40

    Cmara Cascudo afirma que no Brasil a chula-canto e a chula-dana foram independentes, e que o bailado variava em cada regio, indo desde uma coreografia agitada, ginstica e difcil, a uma forma mais tranquila. Quando cantada ao violo, era buliosa, ertica, assanhadeira, em particular no que se denomina nordeste tradicional, do Sergipe ao Piau. 41 Mas a chula tambm podia ser confundida com o fandango. J para Tinhoro, a coreografia tradicional do fandango ibrico, castanholando ou estalando os dedos, e a dana marcada por umbigadas, de origem africana, foram os elementos que deram origem ao lundu. Tinhoro define as chulas, conhecidas genericamente como chulas de palhao, como um recitativo rtmico base de perguntas e respostas dos desfiles dos palhaos de circo e da crianada, anunciando os espetculos pelas ruas das cidades. Cantigas que continham um nmero variado de versos, que iam se misturando, transformando e incorporando as chulas e toadas, tocadas e cantadas pelos tocadores de violo das cidades nas ruas e festas 42, assim como temas dos folclores dos lugares por onde passavam. As mais conhecidas tm como refro:

    raio, sol suspende a lua viva o palhao que est na rua

    E a partir da iniciavam-se perguntas e respostas entre o palhao e um coro, normalmente crianas:

  • Hoje tem espetculo? Tem, sim senhor.Hoje tem marmelada? Tem, sim senhor. 43

    Nas cidades, os ritmos das canes e das danas se entrelaavam; os circenses, brancos ou negros, estrangeiros ou nacionais, que no ficavam alheios ao que ia pelas ruas e pelo gosto do pblico, mantinham a proposta de um espetculo heterogneo um complexo mosaico de danas e estilos coreogrficos, apresentados para diversas outras reas urbanas e rurais. Nas vrias cidades pelas quais os circos passavam mesmo as mocinhas dos sales, que no frequentavam as ruas ou os batuques, iam com certeza ver os circenses palhaos cantarem e danarem as chulas, lundus e modinhas, reforando o seu papel como primeiros divulgadores dos ritmos musicais, da dana e do teatro musicado.

    Ao se incorporarem aos circos como cantores (palhaos ou no) e compositores, inmeros artistas que fazem parte da histria oficial da chamada msica popular brasileira, juntaram seu repertrio ao que a teatralidade circense j possua, resultando em um rico dilogo entre a produo musical nacional e estrangeira, literria e dramatrgica. O teatro musicado nos palcos/picadeiros, nos seus mais variados gneros, que j compunha parte das representaes circenses atravs das pantomimas e cenas cmicas, ao dialogar com vrios outros que vem de fora da lona, passou por diferentes fases da produo das suas montagens; mas isso no implicou excluso ou diminuio do conjunto das pantomimas e composies musicais anteriormente encenadas. Apesar daquela parte do espetculo ainda ser denominada pantomima, as representaes faladas e cantadas em portugus foram adquirindo cada vez mais espao. Havia uma relao clara entre continuidade e transformao, no sentido mesmo da inovao e criatividade.

    Ritmos, sons, representaes cnicas e pardias por onde passavam faziam parte da caixa de ferramentas dos circenses. Assim, por exemplo, no Brasil, como comentamos o lundu enquanto cano tem origens complexas, sendo primeiro identificado como uma dana que unia a percusso dos batuques africanos com os movimentos do fandango europeu. 44 Para nosso estudo, importante ressaltar que esse gnero, em sua forma cantada, herdou caractersticas rtmicas da dana acrescidas de letras cmicas que satirizavam a situao de submisso dos negros e as particularidades de sua fala. Nesse aspecto, curioso notar certa semelhana ao que aconteceu nos Estados Unidos com os minstrels. Os lundus, por seu carter cmico, satrico e licencioso, tornaram-se muito presentes em representaes teatrais, dos picadeiros aos teatros de revista. Muitos palhaos dos circos brasileiros da virada do sculo XIX para o sculo XX tinham em seus anncios o destaque de serem cantores, tocadores ou danarinos de lundu.

    Tanto no Brasil quanto em outros pases da Amrica Latina, parece haver existido uma nfase maior na cano do que em outros recursos e gneros musicais em relao ao trabalho musical dos palhaos. Foi tambm uma singularidade dos palhaos desse continente, em comparao com os europeus, o fato de terem um repertrio que abrangia no somente canes cmicas, mas tambm aquelas de natureza sentimental ou romntica, como as modinhas e outros gneros que estavam em voga na poca. 45

    No caso brasileiro, e na parte que interessa mais diretamente msica popular, o circo ia revelar durante quase um sculo a importncia de veiculador das formas de teatro musicado das cidades, com suas bandas e seus nmeros de show, ficando reservado especialmente figura do palhao ao lado de sua funo cmica especfica a de equivalente das canonetistas de teatro e, mais tarde, dos cantores de auditrios de rdio. 46

  • Como visto anteriormente, um exemplo marcante de palhao msico e divulgador de canes foi Jos Podest, o Pepino 88. Podest era violinista, tocava violo e cantava, tendo se inspirado nos payadores: cantores peregrinos e populares argentinos que realizavam composies improvisadas acompanhadas de violo. 47 Podest explorou e se desenvolveu em todas as modalidades do gnero circense, comeando como acrobata e se tornando palhao.

    Na trajetria das artes circenses brasileiras, especialmente na primeira metade do sculo XX, possvel encontrarmos alguns palhaos cujo trabalho musical ficou registrado por pesquisadores e memorialistas. Um dos mais conhecidos dentre esses Jos Manoel Ferreira da Silva, o Polydoro (1853? -1916), artista de origem portuguesa que foi considerado por memorialistas do circo o pai dos palhaos brasileiros 48.

    Polydoro foi possivelmente uma influncia forte para a difuso e o desenvolvimento dos palhaos cantores brasileiros. Castro comenta que antes dele o palhao cantor e tocador de violo, danarino de maxixes e lundus era um tipo inferior, mais presente nas feiras e nas propagandas do circo, nas ruas. Sabemos que ele no foi o primeiro palhao-cantor, mas certamente foi ele o primeiro a conquistar para o gnero o reconhecimento do pblico, que o aclamou como o melhor palhao do seu tempo 49.

    Roger Avanzi, que por dcadas se destacou como o Palhao Picolino nos circos Nerino e Garcia, cita com destaque o artista Joo Bozan, que no comeo do sculo XX teria sido um dos maiores excntricos musicais do circo brasileiro, cuja arte consistia em transformar objetos comuns em instrumentos musicais. Ele tirava msica de serrote, garrafa, moedas, canos e guizos, entre outros objetos 50. Para Avanzi, Joo Bozan era da linhagem dos palhaos gordos e sabia tirar grande vantagem de seu tamanho, realizando nmeros com guizos presos no corpo e vestia tambm um capote cheio de buzinas de tamanhos diversos, alm de tocar vrios instrumentos inusitados. Tefanes Silveira, palhao Biribinha, cujo trabalho ser tratado no prximo captulo deste livro, recorda-se tambm do nmero realizado com as buzinas escondidas dentro da roupa, especialmente colocadas em locais cuja movimentao pudesse provocar som, como nas articulaes dos braos e das axilas.

    Avanzi descreve tambm o nmero Os Sete Msicos Infernais, que seria conhecido tambm como La Murga Gaditana, que o Circo Nerino exibiu por anos e exigia o entrosamento de sete bons palhaos: o maestro, o saxofonista, o bombeiro-percussionista, o ano tocador de tuba, o clarinetista perna-de-pau, o barrigudo tambm tocador de tuba e o trombonista 51. Barry Charles Silva, pai de Erminia Silva, em uma das vrias entrevistas realizadas, narrou que tambm seu pai, que nasceu em 1900, fazia a cena cmica (como era chamada) com vrios palhaos tocando instrumentos musicais, que no eram apito ou guizos, mas alguns dos que Avanzi menciona. Barry fala que o nmero chamava Murga. interessante observarmos a semelhana no Cortejo cnico do grupo Lume Teatro (Campinas SP). Trata-se de espetculo cnico-musical em forma de cortejo, sendo composto por

    uma procisso de fanticos, uma banda militar, um grupo de ciganos ou simplesmente atores-msicos tocam e cantam melodias tradicionais brasileiras e outras, coletadas de diversas culturas do mundo. Com intervenes poticas, a pea estruturada como um alegre ritual interage livremente com o pblico, provocando e divertindo ao mesmo tempo. 52

    Mesmo que o grupo no descreva como uma apresentao de palhaos musicais, quando se v

  • pela primeira vez e se sabe das Murgas de palhaos, no h como no comparar, ou pelo menos analisar como possveis heranas transformadas.

    Em um encontro realizado na sede do grupo Doutores da Alegria53, Roger Avanzi comentou a respeito da importncia das habilidades musicais para os palhaos, lembrando que ele prprio tocava pisto, aprendido na banda do Circo Nerino. Disse ainda que na Europa todos os palhaos tocam pelo menos um instrumento musical e isto uma exigncia do pblico, completando que tal exigncia no acontece com a mesma fora no Brasil.

    Outro exemplo descrito por Tefanes Silveira a famlia de Juca Lima, uma famlia circense que era proprietria do Circo-Teatro Show, um dos maiores circos do Nordeste, segundo o entrevistado. Em conjunto com seus filhos, Juca Lima, que era o maestro do grupo e tocava instrumentos de sopro, criou uma orquestra Os Sete Pierrots da Lua. Dentre os integrantes dessa famlia ele se recorda especialmente de Alda Lima, a caula, que tocava uma concertina de tamanho pequeno, e de Tagiba, o palhao Saarico, lembrado como o primeiro palhao msico a que assistiu. Saarico tocava vrios instrumentos e objetos como piano, chocalhos e taas de cristal, mas, dentre seus esquetes, o nmero das moedas musicais citado com destaque pela beleza de seu efeito sonoro, que consiste na execuo de melodias com moedas preparadas para ressoarem com a altura de notas musicais ao serem percutidas em um picadeirinho de mrmore. Tefanes Silveira associa a utilizao de instrumentos inusitados capacidade inventiva e transgressora dos palhaos nordestinos que tiravam um tanto essa seriedade da msica feita de uma forma toda correta, com obedincia cifrada e comearam tambm a fazer instrumentos malucos, tipo uma bateria de penicos, com latas, panela e inventando coisas.

    Tefanes Silveira lembra tambm de outro exemplo do Circo Nerino, o palhao Bil Bom, que executava o nmero do homem dos doze instrumentos. Tinhoro chama esse tipo de artista de homem dos sete instrumentos, citando-o como uma das personagens presentes nas ruas do Rio de Janeiro desde o Segundo Imprio.

    Em toda a histria da msica das ruas, nenhum personagem do povo ligado produo de sons com inteno musical ser mais original, mais heroico e mais estranho do que o chamado Homem dos Sete Instrumentos. Herdeiro direto daqueles saltimbancos de feira da Idade Mdia, que depois passariam aos circos [] e que se especializariam como msicos excntricos, o homem dos sete instrumentos constitua, no fundo, um atleta musical. 54

    Outro exemplo importante de citarmos Abelardo Pinto (1897-1973), o palhao Piolin, um dos mais destacados palhaos brasileiros do sculo XX, que em sua carreira destacada teve participaes no cinema e permaneceu muitos anos com seu circo armado no Largo do Paissand, na capital paulista. Piolin tocava violino e bandolim, tendo nmeros musicais com o clown branco Alcebades.

    A teatralidade circense ia adquirindo cada vez mais visibilidade, com o imbricamento entre a produo musical nacional e a produo teatral, em particular com os gneros do dito teatro ligeiro. No incio do sculo XX os circenses protagonizaram papis de agentes produtores, transformadores e difusores, ao ampliarem a incorporao e adaptao para o espao circense das produes musicais e literrias e do teatro tambm musicado.

  • CAPTULO 2PALHAOS MUSICAIS E EXCNTRICOS:

    os autores conduzidos pelas mos de artistas, mestres e parceiros circenses.

    Ao acompanhar os passos de mestres circenses possvel compreendermos o circo como um ofcio que abria um leque de atuao dos artistas, convertendo-os em verdadeiros produtores culturais. Sermos conduzidos por suas mos, de seus mestres e parceiros, permitiu-nos observar caractersticas significativas que compunham o conjunto do trabalho circense e que acabaram por orientar este estudo: a contemporaneidade da linguagem circense, a multiplicidade da sua teatralidade e o dilogo e a mtua constitutividade que estabeleciam com os movimentos culturais da sua poca. No se pode estudar a histria do teatro, da msica, da indstria do disco, do cinema e das festas populares no Brasil sem considerar que o circo foi um dos importantes veculos de produo, divulgao e difuso dos mais variados empreendimentos culturais. Os circenses atuavam num campo ousado de originalidade e experimentao. Divulgavam e mesclavam os vrios ritmos musicais e os textos teatrais, estabelecendo um trnsito cultural contnuo das capitais para o interior e vice- versa. possvel at mesmo afirmar que o espetculo circense era a forma de expresso artstica que maior pblico mobilizava durante todo o sculo XIX at meados do XX.

    Pensar as produes circenses, atravs das aes dos seus vrios sujeitos, pode revelar as distintas formas de fazer circo e as mais diferentes maneiras de ser artista circense, alm de dar pistas sobre os dilogos que estabeleciam com os movimentos culturais da sua poca. possvel, ento, investigar como homens e mulheres circenses no Brasil mantiveram uma especificidade, mas renovaram, criaram, adaptaram, incorporaram e copiaram experincias vividas no perodo, enfrentando continuidades e mudanas encontradas na sociedade, nas produes culturais e em si mesmos.

    Produzir um espetculo uma maneira de compor o conjunto de expresses da teatralidade circense. A sua conformao datada, colada a um contexto, demarcando o circo como um espao polissmico e polifnico. Teatralidade circense entendida como o que engloba as mais distintas formas de expresses artsticas constituintes do espetculo circense. No perodo at a dcada de 1960, as apresentaes eram exibidas nos mais variados espaos: nas ruas, nas feiras, nos tablados, nos palcos teatrais e sob os toldos (na poca de algodo). Quaisquer lugares que eram ocupados pelos artistas do circo para comporem sua teatralidade tornavam-se palco/picadeiro, j que neles se realizavam as mltiplas linguagens artsticas circenses.

    Alguns dos agentes produtores do circo, como artistas, empresrios e pblico podem constituir uma janela para o resgate dessa histria, um caminho para seguir o desenvolvimento do espetculo circense, enriquecido pelo percurso especfico realizado por alguns circenses, representativos desta complexidade. Nesta direo, a partir de nossas pesquisas individuais, como trabalhos acadmicos ou como pesquisa realizada fora dos muros universitrios, optamos por acompanhar a vida de alguns artistas de circo, cuja multiplicidade de interlocues permite conhecermos a complexidade artstica construda por eles que eram e alguns ainda so: produtores musicais, palhaos cantores e palhaos excntricos:

    Benjamim de Oliveira - passagem do sculo XIX para o XX, por Erminia Silva; Doracy e Alvina Campos Treme-Treme e Corrupita: a partir dos anos 1940 at incios de

  • 2000; por Erminia Silva; Tefanes Silveira Biribinha (a partir da dcada de 1950 at a atualidade), por Celso

    Amncio de Melo Filho; Marcelo Lujan e Pablo Nrdio - O Circo Amarilho (a partir de meados da dcada de 1990

    at a atualidade), por Celso Amncio de Melo Filho. Grupo Off Sina Richard Riguetti e Lilian Moraes (a partir da dcada de 1980 at a

    atualidade) Este grupo ter abordagem no captulo III, por Erminia e Celso.

  • 2.1 Nego Beijo: acrobata, palhao, cantor, instrumentista, ator, autor, diretor e excntricoPor Erminia Silva

    Benjamim de Oliveira nos possibilita observar o dilogo criativo e permanente entre circenses e as outras produes culturais na passagem do sculo XIX para o XX. Atravs de sua trajetria, possvel compreender o circo como espao que permitia a seus integrantes tornarem-se produtores culturais e considerar as complexas relaes estabelecidas entre os distintos agentes envolvidos na construo do espetculo: os circenses, os artistas no-circenses que se apresentavam nos picadeiros, o pblico e empresrios dos veculos de comunicao e dos distintos espaos da produo cultural. Por isso, sua histria revela outras histrias de outros artistas (circenses ou no), que tambm produziram e consolidaram o circo-teatro, bem como as relaes de intercmbio entre os vrios tipos de manifestaes culturais urbanas e em particular o teatro e a msica.

    O convvio e o intercmbio entre artistas, palcos e gneros no final do sculo XIX, como se observa na prpria forma de se apresentarem Companhia Equestre, Ginstica, Acrobtica, Equilibrista, Coreogrfica, Mmica, Bailarina, Musical e ... Bufa resultaram em permanncias e transformaes dos espetculos, nos quais homens e mulheres circenses copiaram, incorporaram, adaptaram, criaram e se apropriaram das experincias vividas, transformando-se em produtores e divulgadores dos diversos processos culturais j presentes ou que emergiram neste perodo, contribuindo para a constituio da linguagem dos diversos meios de produo cultural do decorrer do sculo XX. O espao circense consolidava-se como um local para onde convergiam diferentes setores sociais, com possibilidade para a criao e expresso das manifestaes culturais presentes naqueles setores. Atravs de seus artistas, em particular os que se tornaram palhaos instrumentistas, cantores e atores, foi se ampliando o leque de apropriao e divulgao dos gneros teatrais, dos ritmos musicais e de danas das vrias regies urbanas ou rurais, elementos importantes para se entender a construo do espetculo denominado circo-teatro. Para a maior parte dos estudiosos, esse tipo de produo circense somente ocorreria a partir da dcada de 1910, porm, na prtica, todas aquelas atividades j faziam parte das experincias circenses.

    A partir das biografias dos vrios Benjamins observa-se que os circenses brasileiros, do perodo, disputavam a construo de novas linguagens culturais urbanas e o pblico dos diferentes setores sociais das cidades. Na sua forma de organizao, apreendiam, recriavam, produziam e incorporavam referncias culturais mltiplas e eram assistidos pelos mais abastados, intelectuais, artistas, trabalhadores ou no.

    Nascido em 11 de junho de 1870 na fazenda dos Guardas, que pertencia cidade Par de Minas, antiga Patafufo, foi o quarto filho de Malaquias e Leandra. A me, por ter sido uma escrava de estimao, segundo seu relato, teve todos os seus filhos alforriados ao nascer. Em 1882, aproveitando a ausncia do pai, uma espcie de capataz, frequentemente incumbido de capturar os negros fugidos, coincidindo tambm com o dia que o Circo Sotero, armado naquela cidade, estava partindo, saiu de casa com o tabuleiro e fugiu com a companhia. Registrando-se, futuramente, com o sobrenome Oliveira em substituio a Chaves, o de seus pais, os relatos de Benjamim possuem todas as riquezas e problemas de fontes registradas oralmente, destinadas a serem publicadas em veculos dos meios de comunicao de massa: jornais, revistas e depois o rdio.

    O aprendizado de Benjamim, nos circos por onde passou, permitiu que aperfeioasse as tcnicas

  • circenses, garantindo-lhe ser contratado por outras companhias, que tinha em sua programao um amplo cardpio de gneros artsticos do perodo: equestres, ginsticos, acrobticos, bailarinos, coreogrficos, zoolgicos, musicais e principalmente a representao teatral, inicialmente como pantomimas e depois com a mistura de msica, dana e texto falado.

    O final do sculo XIX e incio do XX, no Brasil, foi um perodo de intensa movimentao cultural, sobretudo nas grandes cidades, com ampliao e construes de novos espaos de apresentao como teatros, circos, cafs-concertos, music halls, pavilhes, politeamas, variedades, feiras e exposies, choperias, tablados, sales e clubes carnavalescos.

    Nos circos, a produo do teatro musicado e dos palhaos cantores foi se organizando de forma mais presente do que nos cafs-concerto. Quando novos repertrios de cenas cmicas, entradas de palhao, msicas e pantomimas apareciam, rapidamente entravam no circuito circense e acabavam por se espalhar por todas as regies. Por conta do grande trnsito de circos, em particular nesse perodo, pela capital e interior paulista, o intercmbio entre os mesmos e com os outros espaos era permanente.

    A combinao da tradio do palhao instrumentista europeu continuada no Brasil com os palhaos tocadores de violo com as bandas e a presena cada vez maior de brasileiros entre os circenses resultou numa transformao do palhao/instrumentista/cantor/ator. Os gneros como o vaudeville e o melodrama, atravs de diferentes modelos de pantomimas, misturados aos ritmos e musicalidades locais, tiveram a comicidade como a tnica daquelas produes. Os sainetes, peas curtas de um ato, com caractersticas burlescas e jocosas, que alinhavavam danas e msicas, assim como as cenas cmicas, eram representadas quase na sua totalidade pelos palhaos que j dominavam a lngua, portanto eram faladas e cantadas em portugus. Isto possibilitou que em todos os gneros pantomimas, cenas cmicas, sainetes, arlequinadas, entremezes e entradas se incorporassem, de maneira parodiada, a msica e os assuntos corriqueiros do dia-a-dia das culturas locais. Os palhaos Benjamins na histria do circo foram herdeiros e ao mesmo tempo protagonistas de mudanas e transformaes.

    Alm de valsas, polcas e mazurcas, as bandas (formadas pelos prprios circenses ou locais) tocavam tambm quadrilhas, fandangos, dobrados, maxixes, frevos, canonetas, modinhas e lundus. Os palhaos no s tocavam vrios destes ritmos, como tambm os danavam, ao som principalmente do violo. As cenas cmicas e os entremezes tambm eram produzidos nos moldes dos que eram realizados nos palcos teatrais e levados ao picadeiro pelos palhaos circenses.

    Os palhaos cantores, nos palcos/picadeiros circenses, foram responsveis, no final do sculo XIX at pelo menos a dcada de 1950, pela divulgao dos principais ritmos musicais; no s das msicas produzidas individualmente, mas, tambm, dos enredos musicais compostos para o gnero revista, nos teatros. Naquele perodo, com a crescente popularidade daqueles gneros e ritmos, duas outras formas de disseminao possibilitaram outra etapa para divulg-los e comercializ-los, das quais os artistas circenses tambm participaram: o crescente aumento de venda de publicaes em forma de livretos ou jornais de msicas, contendo colees de letras de modinhas, lundus, canonetas, entre outras; alm da recm-criada indstria fonogrfica Casa Edison fundada por Fred Figner, que j demonstrava fora de penetrao em todos os setores sociais, divulgando gravaes em cilindros, desde 1897, e os primeiros discos (chamados chapas), em 1902, de modinhas e lundus cantados por Cadete e Baiano. Acrescente-se a isso as msicas gravadas pela banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, formada e dirigida pelo maestro e compositor Anacleto de Medeiros, e aquelas produzidas por vrios msicos que tocavam e cantavam nos cafs, cabars, rodas de samba e circos que passavam pela cidade.

    Acontece que tanto Baiano (Manoel Pedro dos Santos), como Cadete, Medeiros, bem como

  • Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna), Mario Pinheiro, Catulo da Paixo Cearense, Eduardo das Neves e o prprio Benjamim de Oliveira, entre outros, que foram os primeiros a gravar discos no Brasil pela Casa Edison, todos estes ou eram artistas circenses ou j se apresentavam cantando nos espetculos de circo, uns como palhaos-cantores, outros nas pantomimas, tudo isso bem antes de gravar discos.

    Isto tudo leva a crer que, antes da virada do sculo XIX, os circenses e os palhaos cantores tivessem cruzados com a maioria deles, fosse nos cafs, fosse nos palcos. Mas tambm se cruzaram frequentando os mesmos espaos dos batuques e pagodes das casas das mes de santo, na Cidade Nova, onde nasceram ou conviviam. Segundo Maria Clementina Pereira Cunha, naquelas casas se mesclavam o baile, o sarau, a roda de samba, o candombl, e por onde circulavam todas as esferas da sociedade (do esnobe literato ao policial ou ao partideiro capoerista da Sade); entretanto, possvel afirmar que muitos dos palhaos cantadores de circo que j exerciam a profisso, ou que iria exerc-la, j estivessem presentes naqueles encontros.

    Quando o Spinelli e Benjamim estabeleceram-se no Rio de Janeiro, a partir de 1905, muitos deles foram seus companheiros de trabalho como palhaos cantores, atores nas pantomimas, parceiros de autorias das msicas feitas para as cenas cmicas e peas. Benjamim tambm foi parceiro desses msicos na nascente indstria fonogrfica, fazendo parte do primeiro elenco de cantores profissionais da Casa Edison, ao qual, alm dos j mencionados acima, acrescenta-se Nozinho. A relao de trabalho e de parcerias entre aquele grupo e os circenses, principalmente com Benjamim de Oliveira, ocorreu na dcada seguinte, quando muitos deles iro trabalhar com Benjamim