Pânico de Palco - Modernismo, Antiteatralidade e Drama - Martin Puchner

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vol. 13, n. 1, jun 2013, p. 13-46 Em pauta Pânico de Palco: Modernismo, Antiteatralidade e Drama Martin Puchner 1 A Invenção da Teatralidade Stage Fright 2 (1950) de Alfred Hitchcock é o mistério de um assassinato ambien- tado no submundo 3 do teatro. Marlene Dietrich interpreta uma diva cujo luto pelo marido assassinado é tão obviamente teatral que ela se torna imediatamente a suspeita número um do filme. Ela é seguida por uma jovem estudante de artes dramáticas, que prepara uma armadilha para revelar sua culpa. Esperando avidamente pela exposição da diva, a audiência caminha em direção a outro tipo de armadilha, atraídos pelo inte- ligente contraste entre a atriz imoral, em quem não podemos confiar, pois a atuação se tornou sua segunda natureza, e a novata, em quem podemos confiar por sua inex- periência de palco. O assassino, porém, não é a diva, mas um psicopata que já havia matado antes. Observa-se que o pânico de palco 4 a que o filme de Hitchcock se refere não é o medo do ator diante da plateia, mas o medo do ator por parte da plateia. 5 Tal medo ou suspeita, que é evocado por Hitchcock a fim de apresentá-lo à nossa apreciação crítica, é parte de um aparentemente inerradicável e moralizante antiteatralismo, o qual Jonas Barish chamou de “preconceito antiteatral” . Tal precon- ceito é diverso em seus fundamentos filosóficos, religiosos e morais, se não em suas conclusões, pois permanece retomando um número limitado de obsessões: a imorali- 1 Puchner é crítico literário e filósofo. Atualmente é professor na Harvard University. 2 Lançado no Brasil como “Pavor nos Bastidores”. 3 Nota do Tradutor: o termo original demimonde refere-se a um submundo específico, precisamente a determinado grupo de mulheres marginalizadas pela sociedade por conta de comportamento promíscuo e muitas vezes envolvendo homens ricos. Uma posição intermediária entre a indiscrição e a prostituição. Também pode-se considerá-lo como sendo um grupo de pessoas cuja respeitabilidade seja dúbia. 4 “Pânico de palco” seria a tradução ao pé da letra do título do filme. 5 Uma mídia mais nova, o filme, reflete aqui uma ansiedade que é própria de uma mídia mais antiga, o teatro.

Transcript of Pânico de Palco - Modernismo, Antiteatralidade e Drama - Martin Puchner

  • vol. 13, n. 1, jun 2013, p. 13-46Em pauta

    Pnico de Palco: Modernismo, Antiteatralidade e Drama

    Martin Puchner1

    A Inveno da Teatralidade

    Stage Fright2 (1950) de Alfred Hitchcock o mistrio de um assassinato ambien-

    tado no submundo3 do teatro. Marlene Dietrich interpreta uma diva cujo luto pelo marido

    assassinado to obviamente teatral que ela se torna imediatamente a suspeita

    nmero um do filme. Ela seguida por uma jovem estudante de artes dramticas, que

    prepara uma armadilha para revelar sua culpa. Esperando avidamente pela exposio

    da diva, a audincia caminha em direo a outro tipo de armadilha, atrados pelo inte-

    ligente contraste entre a atriz imoral, em quem no podemos confiar, pois a atuao

    se tornou sua segunda natureza, e a novata, em quem podemos confiar por sua inex-

    perincia de palco. O assassino, porm, no a diva, mas um psicopata que j havia

    matado antes. Observa-se que o pnico de palco4 a que o filme de Hitchcock se refere

    no o medo do ator diante da plateia, mas o medo do ator por parte da plateia.5

    Tal medo ou suspeita, que evocado por Hitchcock a fim de apresent-lo

    nossa apreciao crtica, parte de um aparentemente inerradicvel e moralizante

    antiteatralismo, o qual Jonas Barish chamou de preconceito antiteatral. Tal precon-

    ceito diverso em seus fundamentos filosficos, religiosos e morais, se no em suas

    concluses, pois permanece retomando um nmero limitado de obsesses: a imorali-

    1 Puchner crtico literrio e filsofo. Atualmente professor na Harvard University.

    2 Lanado no Brasil como Pavor nos Bastidores.

    3 Nota do Tradutor: o termo original demimonde refere-se a um submundo especfico, precisamente a determinado grupo de mulheres marginalizadas pela sociedade por conta de comportamento promscuo e muitas vezes envolvendo homens ricos. Uma posio intermediria entre a indiscrio e a prostituio. Tambm pode-se consider-lo como sendo um grupo de pessoas cuja respeitabilidade seja dbia.

    4 Pnico de palco seria a traduo ao p da letra do ttulo do filme.

    5 Uma mdia mais nova, o filme, reflete aqui uma ansiedade que prpria de uma mdia mais antiga, o teatro.

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    dade da exposio pblica, de excitar a plateia, e, de modo mais importante, daqueles

    que praticam profissionalmente a arte da dissimulao. E assim, ns, amantes do

    teatro, podemos ficar tentados a considerar todas as formas de antiteatralismo como

    sintomas de um preconceito do qual a cultura precisa ser curada para que o teatro

    possa progredir. O impulso para proteger o teatro de todos os inimigos antiteatrais tem

    seus polmicos mritos, e a eficcia da isca de Hitchcock demonstra a necessidade

    contnua de tal proteo. Mas ao mesmo tempo, a postura defensiva que resultado

    de tal protecionismo tambm tem seu preo: a tentativa de desfazer ou exorcizar o

    antiteatralismo obscurece o fato de que a suspeita pelo teatro desempenha um papel

    constitutivo no perodo do modernismo, especialmente no teatro e no drama moder-

    nistas. Ao contrrio de simplesmente desconsiderar a crtica modernista ao teatro

    como sendo preconceito infundado, cegueira ou ideologia, devemos, porm, perguntar

    o porqu de ser uma tradio substancial dentro do modernismo achar-se necessrio

    definir a si mesmo em contrariedade com o teatro.

    A melhor maneira de caracterizar esta dinmica constitutiva antiteatral dentro

    do modernismo como sendo uma forma de resistncia. No necessrio recorrer a

    Freud para compreender o quanto o ato de resistncia acaba determinado por aquilo

    contra o que se resiste. A negao e a rejeio inerentes ao termo antiteatralismo no

    so, portanto, para serem compreendidos como a destruio do teatro, mas como

    sendo um processo que dependente daquilo que nega e em relao ao qual, portanto,

    permanece calibrado. Mesmo as formas mais duras de antiteatralismo modernista se

    alimentam do teatro e o mantm ao alcance da mo. A resistncia registrada no prefixo

    anti, por conseguinte, no descreve um local fora do horizonte do teatro, mas uma

    variedade de posturas atravs das quais o teatro mantido ao alcance da mo e, no

    processo de resistncia, absolutamente transformado.

    Ao analisar um impulso antiteatral dentro do perodo do modernismo, no desejo

    aparecer com mais uma teoria monoltica do modernismo. Conforme Richard Sche-

    ppard argumentou recentemente, tentativas como esta falharam desde que o termo

    modernismo foi utilizado pela primeira vez. Ao mesmo tempo, no me contento em

    anunciar uma pluralidade indiferenciada de modernismos, um posicionamento que

    no trata de discutir sobre o que seja o modernismo, mas apenas uma recusa a tal

    discusso. Navegando entre uma teoria monoltica do modernismo e uma feliz plura-

    lidade de modernismos, defendo que existe uma tradio dentro do modernismo que

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    pode ser descrita em termos de suas vrias formas de resistncia ao teatro, mas

    prontamente reconheci que h modernismos que no caem na categoria de antitea-

    tralismo. Na verdade, defendo que o antiteatralismo modernista encontra sua contra-

    parte em uma segunda tradio, que eu chamo de (pro)teatralismo. A diferena entre

    antiteatralismo e (pro)teatralismo no tanto uma dicotomia estvel, mas sim uma

    ferramenta para se analisar uma variedade de posies e fenmenos que viro a ser

    variadamente entrelaadas e interligadas.

    A fim de compreender as caractersticas da resistncia ao teatro dentro do perodo

    do modernismo, pode-se recorrer queles tericos que explicitamente definem os valores

    do modernismo atravs de um ataque ao teatro: Friedrich Nietzsche, Walter Benjamin e

    Michael Fried. Em 1888, Nietzsche afirmou que o teatro era incapaz de alcanar coerncia

    orgnica e deveria, portanto, ser impedido de exercer sua deplorvel influncia sobre as

    outras artes: Teatrocracia [Theatokratie] -, a loucura de acreditar na primazia do teatro,

    no direito do teatro comandar as artes, de se comandar a arte. (NIETZSCHE 1991) Niet-

    zsche, aqui, toma o teatro como uma fora que impe seu comando sobre as outras

    artes, levando a uma teatrocracia, uma forma de governo teatral. Segundo Nietzsche,

    esta teatrocracia particularmente evidente em Wagner que sujeita qualquer arte, at

    mesmo a msica, primazia da representao teatral e, em particular, dos atores; o

    resultado uma msica que adquiriu atributos do teatro e da interpretao, o que Niet-

    zsche chamou de maneira polmica de msica cnica ou gestual. Se for surpreendente

    encontrar o autor de The Birth of Tragedy (1871) condenando abertamente o teatro com

    tanta veemncia, pode ser bom lembrarmos que a anlise de Nietzsche da tragdia

    grega continha a impossvel projeo de um teatro sem script, sem uma plateia, e, de

    modo mais importante, sem atores individuais ou individualizados. Podemos comear

    a reconhecer aqui que o uso derrogatrio de Nietzsche do termo teatro uma objeo

    especfica de Nietzsche contra atores e seus gestos.

    A posio antiteatral de Nietzsche ecoada, algumas vezes ipsis litteris, por

    Michael Fried, que igualmente considera que o teatro, ou a teatralidade, seja simples-

    mente o inimigo da arte. (FRIED, 1998) O entendimento repulsivo do teatro de Fried,

    assim como o de Nietzsche, se preocupa primariamente com a influncia do teatro

    sobre outras artes, em seu caso no sobre a msica, mas sobre pintura e escultura.

    E novamente encontramos uma crtica particular ao ator motivando essa postura anti-

    teatral. Nas formulaes frequentemente metafricas de Fried, pinturas ou esculturas

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    teatrais so descritas como se fossem atores; tais esculturas esto cientes da audi-

    ncia e dessa forma perdem sua unidade e integridade autossuficientes, no processo

    em que comeam a lembrar fteis atores humanos se insinuando para a plateia. De

    fato, Fried atribui a tais obras teatrais uma qualidade antropomrfica que conduz a

    uma espcie de naturalismo personificado. (FRIED, 1998, p.19) A suspeita do ator

    vivo que fala atravs da linguagem figurada de Fried se torna aparente quando ele diz

    que a nica forma de arte segura de tais efeitos antropomrficos deplorveis o filme.

    Em contraste com o teatro infinitamente personalizante, o filme no apenas retira os

    atores da presena da plateia, como tambm os corta em pedaos atravs de close-

    -ups e montagem. (FRIED, 1998, p.171)

    Foi Walter Benjamin quem transformou esta diferena de postura entre o teatro

    e o cinema em relao aos atores em uma teoria geral de arte modernista. Para ele,

    o teatro, mais do que qualquer outra forma de arte, retira do ritual seu investimento

    na intensa presena viva que conecta o ator ao pblico. Esta presena vivencial, e

    por isso nica, significa que o teatro est empossado de maneira singular do que

    Benjamin chama de aura, que transforma esta personagem viva em um valor abso-

    luto. Para Benjamin, este uso do termo aura ele mesmo uma retroprojeo, pois seu

    ensaio est mais preocupado com a maneira pela qual o filme foge desta qualidade

    aurtica por transformar o ator humano intrprete em nada mais do que um material

    dentre outros, um material que infinitamente manipulado, fragmentado, e desper-

    sonificado por um aparato que agora media a relao entre o ator e o pblico. Posto

    que A Obra de Arte na poca de sua Reprodutibilidade Tcnica deriva todos os seus

    termos negativos do teatro, ele deve ser compreendido menos como um tratado pr-

    -filme e mais como um tratado antiteatral em que o ator vivo se torna um obstculo a

    uma arte verdadeiramente modernista.

    A natureza extrema e polmica dessas declaraes podem ser explicadas em

    parte por seus respectivos contextos: a ruptura de Nietzsche com Wagner (aproxima-

    damente entre 1876 e 1878); os ataques de Fried ao minimalismo de 1967; e a tentativa

    de Benjamin de entrar em termos com as implicaes do filme em 1934. Considerar

    esses contextos tambm significa reconhecer que os ataques desses tericos ao teatro

    no indicam uma simples rejeio a ele. Nietzsche, por exemplo, procurou introduzir

    uma forma de teatralidade em sua filosofia; Benjamin foi atrado pelo drama alegrico

    do alemo Trauerspiel; e a polmica de Fried no se dirige contra o teatro per se, mas

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    contra certos tipos de pintura e escultura; ele at mesmo admira Brecht por voltar o teatro

    contra si mesmo. Mesmo assim, as articulaes antiteatrais desses diferentes tericos

    apontam para alm dos contextos polmicos e em direo a uma maior, e tambm mais

    difusa, tendncia operativa antiteatral dentro do perodo do modernismo.

    Traos de tais formas tericas de antiteatralismo podem ser encontradas, por

    exemplo, no trabalho de Theodor W. Adorno. Adorno herda de Nietzsche uma crtica

    msica teatral e gestual, que dirige, ento, no apenas contra Wagner, mas tambm

    contra Stravinsky, a quem acusa de deixar o bal influenciar sua msica, fazendo com

    que regrida para o nvel de brincadeiras gestuais de crianas. (ADORNO, 1978, p.150)

    Para toda a distinta teoria de Adorno sobre a mimese e sua defesa da mimese contra

    seus detratores formalistas o que existe por trs de sua crtica a Wagner e Stravinsky

    a crtica a uma forma primitiva de mimese que lembra Adorno das performances

    do tipo macacos que parecem humanos se apresentam nos zoolgicos. (ADORNO,

    1970, p.181) Essa mimese primata ou picaresca no deve ser simplesmente reprimida;

    ela precisa ser internalizada e lembrada alegremente [trstlich] para o propsito

    expresso de evitar o tipo de regresso de que Stravinsky culpado. Somente quando

    houver negado com sucesso tal mimese primata, a arte poder integrar a mimese de

    uma forma propriamente modernista.

    Contemplando essas formulaes esparsas, comea-se a suspeitar que os

    macacos e palhaos que simbolizam uma forma atvica de mimese so figuras para o

    ator de baixa qualidade. Quando lemos os ensaios de Adorno sobre Brecht e Beckett

    sob esta luz, fica claro que para ele o sucesso do modernismo no teatro depende da

    habilidade do teatro para resistir ao pessoal, o individual, o humano, e o mimtico os

    quais esto todos amarrados ao atores que encenam. Na verdade, Adorno defende

    que a dependncia do teatro na individuao um fardo insustentvel do qual mesmo

    Brecht sofreu, mas contra o qual ele se rebelou com sucesso. Beckett, entretanto,

    o dramaturgo que lidou com este fardo mais convincentemente, ao atacar impla-

    cavelmente a presena de realidade e pessoas no teatro e por transformar essas

    pessoas em mscaras vazias. (ADORNO, 1974) Atores humanos vivos so permi-

    tidos apenas quando esto absolutamente despersonificados. O que impressionante

    sobre Adorno, Fried e Benjamin que seus vrios antiteatralismos so baseados no

    em ataques externos ao teatro, mas ao prprio teatro modernista. O fato de Brecht e

    Beckett permanecerem entrando nessas polmicas no como exemplo do que h de

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    errado com o teatro, mas como solues para essas objees dos tericos ao teatro

    pode servir como uma primeira indicao do papel formador e produtivo desempe-

    nhado pelo antiteatralismo para o drama e o teatro modernos.

    O que est por trs dos ataques antiteatralistas contra os atores no a suspeita

    mais tradicional, moralizante, de que atrizes so prostitutas (ou, no caso de Marlene

    Dietrich, inclinadas a assassinarem seus maridos), nem os outros aparentemente iner-

    radicveis topoi do tradicional preconceito antiteatral (que eles subvertem a ordem

    social; que eles ensinam trapaas e mentiras), mas um conjunto de valores especifi-

    camente modernistas que um dos propsitos do meu estudo detalhar. No que as

    formas modernistas de antiteatralismo no bebam do preconceito mais antigo, mora-

    lizante. Mas no importa a que ponto os crticos modernistas do teatro ainda estejam

    imbudos deste preconceito, eles o integram em um novo e especificamente moderno

    conjunto de questes. O que eles tendem a objetar uma forma particular de mimese

    atuante no teatro, uma mimese causada pela posio desconfortvel do teatro entre

    as artes performticas e mimticas. Enquanto uma arte performtica como msica ou

    bal, o teatro depende da habilidade artstica de intrpretes humanos vivos no palco.

    Enquanto uma arte mimtica como pintura ou cinema, porm, ele precisa usar esses

    intrpretes humanos como material significante a servio do projeto mimtico. Uma

    vez que a natureza da mimese esteja submetida ao escrutnio e a ataques, como

    est no modernismo, essa dupla filiao do teatro se torna um problema porque, dife-

    rente da pintura ou do cinema, o teatro permanece ligado aos intrpretes humanos

    no importa o quo alienada possa ser sua atuao. O teatro acaba ficando, assim,

    fundamentalmente em conflito com uma crtica, ou complicao, mais amplamente

    divulgada da mimese porque essa crtica requer que o material usado no trabalho

    artstico seja capaz de abstrao e distanciamento. Diretores podem tentar distan-

    ciar ou despersonificar esses humanos intrpretes, treinando e controlando seus

    movimentos e gestuais, e a anlise de Joseph Roach da cincia da atuao traa a

    histria dessas tentativas. (ROACH, 1993) Mas a personificao do ator permanece

    mesmo assim travada fundamentalmente em um tipo de mimese no mediado que

    impede a obra de arte de atingir estruturas internas complexas, reflexividade distan-

    ciada e constituio formal.

    A problemtica presena do ator humano no palco tem sido obscurecida por

    muitos ramos da semitica do teatro, que tende a assumir que assim que um corpo

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    humano enquadrado pelo palco, ele automaticamente se torna um signo, como se

    por definio. Entretanto, declarar simplesmente que os atores sejam signos homo-

    materiais os humanos (ao contrrio da tinta) significando outro humano tende a

    apagar as tenses e problemas particulares causado pela presena continuada de

    atores humanos na produo desses signos. Um problema premente que nenhum

    controle total sobre a emisso desses signos jamais ser possvel. Do ponto de vista

    da recepo, esse fato gera uma crise dos signos teatrais: nunca saberemos exata-

    mente quais gestuais e movimentos so parte do trabalho artstico e quais deles so

    resultados de acidentes no palco. Enquanto esta incerteza pode no ser um problema

    para o aparato semitico formal, ele um problema para a plateia, que continua

    a estar diante daquilo que no pode deixar de ver como contingncias, acidentes,

    maneirismos individuais e idiossincrasias. O mesmo problema aparece do lado da

    produo. Reformadores do teatro tais como Edward Gordon Craig insistem em reter

    total controle sobre seu material e por conta disso, tentam substituir atores vivos por

    marionetes, enquanto outros tais como Oskar Schlemmer, Nicolai Foregger e Vsevolod

    Emilievich Meyerhold tentam transformar o ator humano em uma mquina. Mesmo

    D. H. Lawrence escreveu que drama encenado por criaturas simblicas formadas

    a partir da conscincia humana: tteres, se preferir: mas no indivduos humanos.

    Nosso palco est todo errado, to aptico em sua personalidade. (LAWRENCE, 1989,

    p.201-2) Esses diversos escritores parecem concordar em uma coisa; a dependncia

    do teatro em seus atores humanos sua maior desvantagem, e um teatro modernista

    apenas pode surgir do ataque contra eles. Esta agresso contra o ator, pode-se dizer

    tambm que causou o que Elianor Fuchs chama de morte da personagem: uma vez

    que a figura do ator esteja sob ataque ele no pode mais prometer personificar o que

    era anteriormente conhecido como uma personagem. (FUCHS, 1996)

    Para se compreender a emergncia de uma resistncia modernista contra o teatro,

    necessrio examinar a tradio contra a qual este antiteatralismo reage e, assim sendo,

    pela qual moldada: a ascenso, no final do sculo XIX, de uma celebrao sem prece-

    dentes do teatro e da teatralidade que se poderia chamar de teatralismo. difcil no ser

    afetado pela energia nervosa daqueles reformistas e revolucionrios do teatro da virada

    do sculo que tomaram para si o trabalho de resgatar o teatro daquilo que eles pensavam

    como sendo seu acelerado declnio. Se os sintomas desse declnio a ganncia dos

    gerentes do teatro, a vaidade dos atores que eram estrelas, o trabalho convencional,

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    comercial dos dramaturgos, e os gostos vulgares das plateias podem nos impres-

    sionar enquanto topoi familiares na histria do teatro, as concluses que esses utpicos

    do teatro tiraram delas, no. Sua crtica ao teatro contemporneo no se encarregava

    tanto de melhorar o gerenciamento, atores, dramaturgos e plateias quanto de resgatar e

    promover o teatro, ou a teatralidade, como tal. A retrica tautolgica desses reformistas

    foi capturada em uma frase cunhada por George Fuchs em 1904: a re-teatralizao do

    teatro. (FUCHS, 1905) Esse slogan foi ecoado pela nova classe de estrelas da direo e

    por tericos, que tentavam arrancar o teatro das mos dos atores e produtores; isso pode

    ser encontrado, por exemplo, em On the Art of the Theatre (1911) de Edward Gordon

    Craig, La mis-en-scne du drame Wagnrien (1895), Rejuvenation of the Theatre (1913),

    e The Theater as Such (1913) de Nicolai Evrainov. (FISCHER-LICHTE, 1997) Tais posi-

    es foram subsequentemente tomadas por extremas pela emergente vanguarda: F.T.

    Marinetti declarou em 1915 que tudo de qualquer valor teatral (MARINETTI, 1968,

    p.117); os dadastas fizeram de tudo para arrastar todas as artes para o Cabaret Voltaire;

    e Antonin Artaud clamou por uma fuso entre a vida e o teatro. O que comeamos a

    verificar aqui que a polarizao entre antiteatralismo e teatralismo corresponde at

    certo ponto distino feita por um certo nmero de tericos entre alto modernismo e

    vanguarda. Podemos, assim, falar de um antiteatralismo modernista e um teatralismo

    de vanguarda.

    Porm, estou menos interessado em manter a velha distino entre alto moder-

    nismo e vanguarda do que em reformul-la em termos de antiteatralismo e teatra-

    lismo. Na verdade, antiteatralismo modernista e teatralismo de vanguarda s vezes

    chegam a concluses similares, por exemplo, uma crtica do teatro atual. O desejo

    de ir alm dos espaos circunscritos do teatro deixou alguns dos teatralistas insatis-

    feitos no apenas com o palco e seus atores mimticos, mas com quase todas as

    formas existentes de teatro, um atributo visvel, por exemplo, na exigncia de Mari-

    netti de uma teatralit senza teatro (teatralidade sem teatro) (1968). As formas mais

    radicais de teatralismo, assim, chegam a algumas das mesmas concluses quelas

    alcanadas pelo antiteatralismo, e s vezes uma crtica particular ao teatro parece

    pertencer a ambos os campos (um exemplo Craig, outro, talvez, Nietzsche). Isso

    no significa, no entanto, que uma diviso no possa ser traada entre os ataques ao

    teatro motivados por uma celebrao do valor da teatralidade e aqueles motivados por

    uma resistncia a ela. O que a concordncia parcial entre proteatralistas e antiteatra-

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    listas demonstra uma irreversvel dissociao do valor da teatralidade a partir das

    realidades do teatro real. Essa dissociao tem implicaes de longo alcance, com a

    mais importante sendo no que o pr-teatralismo possa se voltar contra o teatro real,

    mas, inversamente, que o antiteatralismo possa retornar ao teatro. Se existe, conforme

    Marinetti sugere, uma teatralidade sem teatro, ento tambm existe um teatro sem

    teatralidade. O drama e o teatro modernistas podem ser considerados exatamente

    isso, um teatro em conflito com o valor da teatralidade. Uma anlise do teatro antitea-

    tral demanda no uma histria descritiva do teatro, mas uma histria do valor do teatro

    ou da teatralidade, o que poderia ser chamado, emprestando o termo de Nietzsche,

    uma genealogia do teatro.

    No nada surpreendente que os discursos contemporneos sobre o teatro no

    sejam simpticos resistncia modernista contra o teatro. Inmeros artigos na rea do

    teatro e estudos performticos comeam com um ataque aos supostos inimigos do

    teatro, tais como Michael Fried. Esses ataques tm valor limitado, nem tanto por no

    fazerem justia teoria de Fried, mas porque eles perpetuam a relutncia ou incapa-

    cidade por parte dos estudos do teatro de tomar o antiteatralismo por qualquer coisa

    que no seja uma fora do mal. Ao mesmo tempo, a maioria das prticas tericas que

    ajudaram a institucionalizar o modernismo literrio Nova Crtica, formalismo, estru-

    turalismo e desconstrucionismo tenderam a negligenciar a categoria do teatro. Yvor

    Winters e Helen Vendler, por exemplo, reduziram abertamente as peas de Yeats a lite-

    ratura potica que nada tem a ver com o teatro. (VENDLER, 1963; WINTERS, 1960)

    Jacques Derrida est empenhado demais em incluir o teatro sob uma criture geral para

    reconhecer no teatro textual de Mallarm uma resistncia ao teatro. (DERRIDA, 1972)

    Mesmo semioticistas explicitamente devotados a analisar a pluralidade de sistemas

    de signos no teatro, tais como Patrice Pavis, rotineiramente se apoiam na noo de

    texto performtico, enquanto outros, tais como Anne Ubersfeld, usam o ato de ler para

    descrever a atividade de se assistir uma pea, como se eles simplesmente no fossem

    capazes de surgir com uma teoria de emisso e recepo de signos que no fosse no

    mnimo modeladas metaforicamente na escrita. O problema com tais leituras no ,

    como acadmicos da rea de estudos do teatro certas vezes argumentam, que eles

    falhem em celebrar escritores tais como Yeats ou Mallarm como gnios negligenciados

    do teatro. Pelo contrrio, o completo apagamento da categoria do teatro os torna inca-

    pazes de analisar a resistncia desses escritores ao teatro, que , por sua vez, a carac-

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    terstica central de sua obra. Poderia-se dizer, ento, que justamente como o estudo

    contemporneo do teatro tende a continuar o teatralismo de vanguarda em virtude de

    sua dedicao amplamente acrtica ao valor do teatro, o estudo do modernismo literrio

    tende a perpetuar o antiteatralismo modernista atravs de um apagamento acrtico da

    categoria do teatro. Neste livro, tento relacionar criticamente estas duas tradies entre

    si, no com a pretenso de me colocar inteiramente de fora dessa histria do valor, mas

    com a esperana de que uma reflexo sobre essa histria possa conduzir genealogia

    do valor de teatralidade que o teatro modernista demanda.

    A fim de se compreender o teatralismo triunfante da vanguarda e, portanto, a

    resistncia modernista a ela, necessrio no apenas olhar adiante, em direo aos

    estudos contemporneos de teatro, mas tambm olhar para trs, para a figura qual

    os partidrios do teatro continuam a se referir de uma forma ou de outra, e de quem

    derivam seus principais slogans, que Richard Wagner. por esta razo que meu

    estudo comea atribuindo a Wagner, que tambm foi a primeira estrela moderna da

    direo, a inveno do que subsequentemente se tornou o teatralismo de vanguarda.

    Neste sentido, foi graas a Wagner que a teatralidade foi acusada por todo o fervor refor-

    mista, revolucionrio e utpico que caracterizam seus prprios manifestos ou escritos

    do tipo manifesto e aqueles da vanguarda histrica. Porm, ao invs de imaginar

    alguma forma de teatralidade abstrata, terica, Wagner insistiu que essa noo de

    teatralidade deve ser realizada sobre um palco real na forma do Gesamtkunstwerk. A

    importncia de Wagner para o modernismo reside, ento, no fato dele haver tomado o

    teatro como valor absoluto, e ao mesmo tempo, aspirou realizar seu valor no teatro.

    precisamente porque Wagner transformou o teatro em um valor que ele foi celebrado

    pela vanguarda, e pela mesma razo, ele se tornou o objeto dos ataques modernistas

    antiteatrais mais polmicos. (HUYSSEN, 1986, p.42) Isso pode ser chamado de efeito

    Wagner: forar as artes a tomar uma postura definida em direo ao teatro teatrali-

    zado. Destaca-se aqui pois a emergncia de uma ambivalncia modernista sobre o

    teatro nos escritos dos crticos de Wagner, para quem ele, quase como uma diva do

    palco, continua a simbolizar tudo o que pode ser grandioso e fascinante, mas tambm

    perigoso e objetvel, sobre o teatro e a teatralidade.

    Uma vez que reconheamos que os valores estticos centrais dominantes no

    perodo do modernismo brotam de uma resistncia ao teatro, podemos questionar por

    que esses valores surgiram, antes de tudo. Quais eram as condies sob as quais uma

  • 23

    tradio interna ao modernismo comeou para adotar precisamente aqueles valores

    que a colocam em conflito com o teatro? Para responder esta pergunta, necessrio

    nos voltarmos para as condies histricas e sociais que deram impulso ao alto moder-

    nismo. Tornou-se uma crtica clich observar que muito da arte modernista descolou-

    -se de qualquer engajamento direto com a esfera pblica e os modos de representao

    exigidos para isso, em particular a ideia de que a esfera pblica inevitavelmente levaria

    a uma arte popular, uma arte para as massas. O antiteatralismo modernista pode ser

    visto como uma reao a esse medo das massas e da esfera pblica. Por isso mesmo,

    o abrao da vanguarda ao teatro e ao teatralismo pode ser tomado como um sinal da

    maior afinidade da vanguarda com o populismo e as massas, o que Andreas Huyssen

    chama de dialtica oculta de vanguarda e cultura de massa.

    O teatro sempre foi a forma de arte mais pblica, e continuou a depender da colabo-

    rao da coletividade mesmo em um tempo em que o modernismo celebrou a figura do

    artista individual, que se subtrai esfera pblica e s supostas massas indiferenciadas.

    Interseccionando-se mais diretamente com as duras restries dos negcios, o teatro

    depende de um processo de produo colaborativo que inclui gerentes voltados a neg-

    cios, atores sonhando com o estrelato, e dramaturgos prontos a agradarem uma audi-

    ncia em busca de prazer. Esse processo colaborativo era uma maldio pra os moder-

    nistas antiteatrais, mas tambm incomodou os reformadores do palco de maneira geral.

    A ascenso do chamado teatro de diretor no final do sculo XIX pode ser vista como uma

    tentativa de reduzir a colaborao no teatro e concentrar os atos de criao nas mos de

    um superdiretor. Esta motivao particularmente evidente no caso de Craig, cujos pol-

    micos ataques ao teatro foram feitos a servio de obter total controle sobre o processo de

    produo e assim sendo, de eliminar todas as contingncias associadas colaborao.

    O processo de produo colaborativa , porm, apenas um lado do problema; o

    outro lado a recepo coletiva de performances teatrais. Para muitos modernistas, a

    recepo coletiva provou ser ainda mais perturbadora do que produo coletiva e foi

    por esta razo que comearam a celebrar agressivamente as virtudes da leitura soli-

    tria como modelo para se assistir uma pea. Fried deu um nome a essa preferncia,

    compartilhada por muitos modernistas, de ler a assistir e de texto a teatro, chamado

    absoro. (FRIED, 1980) Fried se incomoda com os atores vivos no palco, mas ele est

    no mnimo to perturbado quanto pelas pessoas na plateia, cuja presena rompe com

    o que havia se tornado condio sine qua non do modernismo: uma intensa concen-

  • 24

    trao sobre trabalhos que se encaixam no ideal modernista da dificuldade. Tal ideal

    requer um controle sobre as circunstncias externas de recepo que impossvel

    de se implementar no teatro. Um certo nmero de escritores modernistas desejavam

    extrair uma concluso radical da natureza colaborativa e coletiva inerente ao teatro:

    liderados por Mallarm, eles se retiraram para seus estdios e gabinetes particulares,

    que assim se tornaram os beros do drama modernista.

    Tanto os amigos quanto os detratores do teatro sempre suspeitaram que junto com

    sua produo colaborativa e sua recepo coletiva, vinha uma relao mais direta com as

    esferas social e pblica. Anedotas e histrias sobre insurreies e revolues causadas

    por performances teatrais ocupam um lugar de destaque na imaginao dos entusiastas

    do teatro. E, deveras, a reunio comunitria de um pblico no teatro tem sido usada como

    modelo recorrente para o pblico em geral. Esta afinidade ajuda a explicar por que estudos

    sociolgicos tais como Strukturwandel der ffentlichkeit (1962) de Habermas conside-

    rariam as pessoas reunidas no teatro como sendo uma base de treinamento para a

    formao de uma poltica pblica apropriada. (HABERMAS, 1990, p.88) E o que para

    Habermas apenas uma prefigurao torna-se um modelo de organizao no Fall of the

    Public Man (1977) de Richard Sennett, que usa a histria do teatro e seu pblico como,

    alternativamente, uma instncia e uma causa locais, e um correlativo objetivo natureza

    mutante da esfera pblica nos sculos XVIII, XIX e XX. (SENNET, 1977) O prprio estudo

    de Sennett continua uma longa tradio de pensamento poltico que considera que a

    esfera pblica talvez seja uma forma de theatrum mundi. A fora dessa tradio fica regis-

    trada mais claramente, talvez, por seu maior crtico, Jean-Jacques Rousseau, cujo medo

    de que o teatro possa corromper a esfera pblica presume que os dois sejam homlogos

    o suficiente para o primeiro ter tal efeito prejudicial sobre o ltimo. (ROUSSEAU, 1967)

    A afinidade vista entre o teatro e a esfera pblica um fator chave na formao

    de um antiteatralismo especificamente modernista. Graas a esta afinidade, o teatro,

    ou o ato de teatralizar outras formas de arte como pintura ou escultura, ameaa

    devolver a arte esfera pblica. O investimento em proteger os receptores do pblico

    no significa apenas permitir a eles que apreendam, com a mxima concentrao, a

    complexidade da obra de arte. Tanto a insistncia com a complexidade quanto os tipos

    de receptores demandados por ela so respostas ao medo de que o teatro possa real-

    mente prover um frum em que a construo de opinio pblica possa tomar lugar. A

    crtica modernista do realismo, da mimese e do literalismo, e sua fixao na absoro

  • 25

    silente e solitria no so, portanto, valores independentes que por acaso esto em

    conflito com o que o teatro representa; eles so barreiras erigidas contra a possibili-

    dade do papel pblico da arte sugerido pelo teatro.

    Podemos ver aqui tambm at que ponto a polarizao entre antiteatralismo e

    pr-teatralismo corresponde quela entre modernismo e a vanguarda. Enquanto o

    antiteatralismo modernista atacava o teatro para impedir o engajamento poltico direto,

    a vanguarda reconhecia que o teatro era o ponto arquimediano a partir do qual se

    podia atacar os valores mais centrais do modernismo. A vanguarda no celebrou a

    teatralidade simplesmente partindo de um amor inocente pelo teatro; ela escolheu a

    teatralidade to bem como tudo relacionado a ela, tal como produo colaborativa,

    recepo coletiva, distrao, e plateias turbulentas como seu slogan precisamente

    porque a teatralidade prometia conduzir a arte de volta esfera pblica da qual o

    modernismo havia se distanciado to avidamente. Este compromisso do teatro com a

    esfera pblica j visvel na obra de Richard Wagner. Para ele, o teatro de Bayreuth

    se torna uma arena poltica ideal epitomando a Alemanha e o Volk alemo. Entretanto,

    o olhar para o teatro como um lugar poltico privilegiado no se origina com Wagner.

    O teatro tem sido a forma de arte escolhida por projetos que procuram fundir esttica

    e poltica, como visvel, por exemplo, dos argumentos colocados atravs da Europa

    em favor do estabelecimento de teatros nacionais. A instrumentalizao do teatro para

    a poltica tambm est por trs da diagnose antiteatral de Walter Benjamin de uma

    estetizao da poltica fascista, pois esta estetizao mais drasticamente alcan-

    ada nos rituais teatrais fabricados pelo fascismo, dos espetculos e paradas para

    massas aos cuidadosamente orquestrados Ralis de Nuremberg. (BENJAMIN, 1977)

    A crtica antiteatral de Benjamin de arte aurtica , portanto, motivada por sua experi-

    ncia com os rituais poltico-teatrais do fascismo.

    A tese de Benjamin sobre o fascismo, porm, deve ser ampliada para incluir uma

    gama maior de fenmenos, pois a conjuno entre esttica e poltica teatral pode ser

    encontrada tambm em projetos revolucionrios como o dad de Berlin, assim como

    o espetculo de agitprop6 de Meyerhold The Storming of the Winter Palace (1920).

    Ambas so formas extremas do que Raymond Williams chamou de teatro enquanto

    frum poltico. (WILLIAMS, 1989) Sem criar um falso paralelismo entre a poltica

    teatral do fascismo e aquelas da jovem Unio Sovitica, que poderia, por exemplo,

    6 Nota do Tradutor: Agitao e Propaganda

  • 26

    apagar a diferena entra uma plateia silenciosa massiva oprimida por um espetculo

    e uma massa politizada que participa da recriao de uma ao coletiva revolucio-

    nria, ainda assim central reconhecer que ambos basearam suas esperanas na

    criao de um pblico poltico no teatro. De fato, a ascenso no incio do sculo XX

    do que hoje conhecido como poltica de massa, que foi acolhida por alguns teatra-

    listas, como Marinetti, enquanto realizao de uma nova teatralidade, deu uma nova

    e notria dimenso poltica desconfiana das massas do final do sculo XIX. Ainda

    que esta associao entre o pblico em massa e o teatro possa parecer basear-se em

    um entendimento limitado tanto do teatro quanto da esfera pblica e indicarei alguns

    caminhos alternativos para se pensar sobre esta relao importante reconhecer

    que essa associao uma das foras motrizes por trs do teatralismo (de vanguarda)

    e do antiteatralismo (modernista), de modo semelhante.

    Mas onde que esta considerao deixa o teatro modernista? Pegos, digamos

    assim, entre a cruz da crtica modernista do teatro e a espada do teatralismo de

    vanguarda, como um drama e um teatro modernistas poderiam emergir ao invs de

    espetculos de vanguarda dessa batalha pela teatralidade? O prprio termo teatro

    modernista no nos deveria impressionar como um oximoro? Defendo que o drama e

    o teatro modernos, talvez surpreendentemente, no sofreram tanto de seus inimigos

    modernistas e entusiastas de vanguarda; pelo contrrio, eles internalizaram tanto a

    crtica quanto o entusiasmo pelo propsito de uma reforma de profundo alcance da

    forma dramtica e da representao teatral. O drama, como o filme de Hitchcock, tem

    sempre registrado e respondido aos argumentos de seus detratores. As Bacantes de

    Eurpedes, por exemplo, personifica o perigoso ator no Dioniso Asitico e o medo de

    palco antiteatral no moralista Penteu. O drama moderno continua a registrar o anti-

    teatralismo em nenhum lugar mais obsessivamente do que na obra de Luigi Piran-

    dello mas se permite tambm ser moldado pelo antiteatralismo. A desconfiana de

    Brecht com o teatro, a invectiva de Yeats contra os atores, o nervosismo de Stein na

    presena de atores reais, e a rejeio de Mallarm pelo teatro so variedades de uma

    resistncia ao teatro que so estruturais e fundamentalmente formativas, moldando o

    uso do texto dramtico, dos dramatis personae, e de atores por esses escritores. No

    mais interessados em banir atores ou fechar teatros, o antiteatralismo modernista no

    permanece externo ao teatro, mas pelo contrrio, se torna uma fora produtiva respon-

    svel pelas realizaes mais gloriosas do teatro.

  • 27

    O Drama Modernista de Gabinete

    A parte II constri e analisa um grupo de textos marcados pela resistncia

    modernista ao teatro, que chamo de drama modernista de gabinete. Previsivelmente,

    o drama de gabinete foi desdenhado pelos promotores do teatralismo como Wagner,

    que o chamaram de aberrao ultrajante (WAGNER, 1971-73, Vol.3, p.132), por sua

    recusa teimosa a reconhecer o valor da teatralidade total. Mas Wagner estava longe

    de ser o nico a sentir desprezo pelo gnero. O drama de gabinete nem interessa a

    estudos do teatro (e performance) hostis aos textos literrios, nem aos estudos lite-

    rrios sem interesse no teatral (mesmo quando o valor do teatro est sendo questio-

    nado). O resultado dessa dupla negao que o drama de gabinete um dos gneros

    menos analisados e menos compreendidos. E ainda, conforme minha argumentao,

    apenas atravs do drama de gabinete que podemos comear a entender como o

    drama moderno se relaciona com o teatro.

    O nico terico a reconhecer o valor do drama de gabinete foi Georg Lukcs,

    que o viu como sintoma de um dilema central no drama moderno em geral. Hoje visto

    primariamente como crtico da novela, Lukcs na verdade comeou como estudioso

    do drama, e seu primeiro estudo crtico descreve o teatro do sculo XIX como pade-

    cente de uma crescente evaso de pblico, processo que no final levou a uma ciso

    entre drama e teatro Lukcs v esta evaso de pblico como resultado da falha do

    teatro em expressar a condio moderna. A vida no mais dramtica. (LUKCS,

    1981), ele exclama, concluindo que o drama no mais capaz de falar a um pblico

    de massa. O sintoma deste dilema, se no sua soluo, a emergncia do drama de

    gabinete, ou Buchdrama, que por sua vez desistiu completamente do pblico. Sem

    assinar embaixo do diagnstico pessimista de Lukcs, e suas suposies subjacentes

    sobre a relao entre a vida e a forma dramtica, atenho-me observao de que o

    drama de gabinete expressa algo crtico sobre a condio do drama moderno. Mas

    onde Lukcs toma o drama de gabinete para marcar o fracasso do drama moderno,

    vejo isso como a mais clara expresso de uma resistncia modernista ao teatro.

    Uma razo para a relativa rejeio ao drama de gabinete a natureza particu-

    larmente instvel dessa categoria. O drama de gabinete parece depender dos capri-

    chos dos gerentes do teatro e do orgulho ferido dos dramaturgos, desde Sneca at

    Milton e Byron, que oficialmente se recusaram a escrever para o palco to logo se

    sentiram rejeitados por ele. Mas o que acontece quando a moda (e a censura) teatral

  • 28

    muda e esses dramas de gabinete acabam sendo encenados depois de tudo, contra

    a vontade declarada dos desapontados dramaturgos? Hoje, nosso entendimento da

    relao entre texto e teatro mudou tanto que quase todo tipo de texto pode ser e tem

    sido trazido para o teatro. Alm disso, enquanto muitos pretendem que os dramas de

    gabinete sejam colocados no palco retroativamente, a tragdia grega, no mnimo a

    partir de Aristteles, tem sido considerada h muito tempo como um ramo da litera-

    tura e consequentemente integrado ao cnone pedaggico. Isso significa que ela

    lida, estudada, circulada, copiada, transcrita, traduzida e finalmente impressa como

    literatura ao invs de scripts feitos para serem interpretados. Uma histria similar de

    recepo tem ocorrido com Shakespeare. (SCOLNICOV & HOLLAND, 1991) A obser-

    vao de Coleridge de que Shakespeare tinha seu prprio lugar no corao e no

    gabinete pode ser tomado como um sentimento representativo de toda uma tradio

    de admiradores antiteatrais de Shakespeare. (RICHARDSON, 1988; HELLER, 1990;

    SIMPSON, 1998) A consequncia desta convico foi que qualquer drama pronto para

    competir com Shakespeare teria que aspirar condio do closet de Coleridge.

    A intencionalidade e a histria da recepo so, porm, apenas os marcos

    externos do que eu tomo por ser intrnseco ao drama de gabinete enquanto gnero:

    sua resistncia ao teatro. Esta resistncia se manifesta ao longo da histria do drama

    de gabinete, especialmente em sua origem na tradio greco-latina, nomeadamente,

    nos dilogos de Plato. (Pode-se considerar o amplamente dialgico livro de J como

    o primeiro drama de gabinete na tradio judaico-crist; ele tambm serviu de modelo

    estrutural para o Fausto de Goethe, que foi o drama de gabinete mais influente do

    sculo XIX). Chamar os dilogos de Plato de drama de gabinete em si uma atri-

    buio retroativa, pois no so nem tragdias e nem comdias, e por conta disso no

    teriam sido reconhecidos pelos gregos como drama, absolutamente, a despeito de sua

    mimese do movimento, da interao e do gesto. Aristteles, porm, tinha apreo pelo

    que certas vezes, e desajeitadamente, chamou de forma literria dos dilogos socr-

    ticos, e ele sagazmente os relacionou s comdias em prosa de Xenarco e Sfron.

    (ARISTOTLE, 1995, 1447b) A conexo que ele desenha dessa forma uma crtica

    subliminar a seu professor, que no queria ser lembrado como autor de esquetes

    cmicos, quanto mais ser categorizado como criador de peas de mimese em prosa.

    O fato de Plato, o fundador do antiteatralismo, ter se convertido forma dramtica

    certamente complica sua posio antiteatral, mas isso sinaliza uma tenso que marca

  • 29

    o drama de gabinete ao longo de sua histria, por ele permanecer vinculado ao teatro

    ao qual ele luta para combater.

    A resistncia ao teatro nos dilogos de Plato se manifesta em duas tradies do

    drama de gabinete, das quais uma podemos chamar de drama de gabinete comedido,

    e a outra de drama de gabinete exuberante. O drama de gabinete comedido, indo de

    Plato a Hofmannsthal, passando por Milton e Swiburne, consiste de falas e mon-

    logos filosficos ou poticos, um teatro caracterizado pela retirada da ao cnica e

    pela resistncia a ela. Na verdade, Hofmannsthal traou uma conexo explcita entre

    seu drama de gabinete lrico Der Tod des Tizian e Plato, observando que talvez no

    se deveria cham-la de pea para o teatro [Theaterstck], mas um dilogo maneira

    de Plato de Atenas. (HOFMMANSTHAL, 1982, p.377) O drama de gabinete exube-

    rante tambm resiste ao palco, mas o faz atravs de um excesso de ao teatral. O

    Fausto II de Goethe, La Tentation de Saint-Antoine de Flaubert, e The Enemy of the

    Stars de Pound so exemplos de tal teatralidade flutuante e frequentemente alegrica,

    cujas constantes mudanas de cenas, enormes elencos de personagens, aparies e

    desaparecimentos repentinos, e estratgica mistura de alucinao e realidade propo-

    sitalmente excedem os imites da representao teatral.

    Enfatizo a resistncia ao teatro do drama de gabinete porque o drama de gabi-

    nete modernista a leva ao extremo. E como qualquer forma de resistncia, o drama

    de gabinete se refere quilo que resiste e constantemente se mantm em contato

    com ele. Quer tenda para a tradio comedida, quer para a exuberante, o drama de

    gabinete modernista nunca abandona o teatro e transforma sistematicamente seus

    espaos, atores e objetos. Por essa razo, seria errado considerar o drama de gabi-

    nete uma negao ao teatro. Pelo contrrio, devemos perguntar o que o drama de

    gabinete quer do teatro, como se nutre de sua crtica ao teatro, e como esta necessria

    relao conduz o drama de gabinete, no a acabar com o teatro, mas a transform-lo.

    Tais transformaes assumem formas particularmente convincentes e de grande

    alcance nos dramas de gabinete de Mallarm, Joyce e Stein, os quais, portanto, esto

    no centro de minha anlise. Nas mos desses escritores, as dramatis personae proje-

    tadas so transformadas em montagens isoladas de gestos e poses que so infun-

    didas com significao simbolista (Mallarm), ou usados para a construo de uma

    montagem teatral (Stein), ou feita para oscilar entre alucinao e a realidade do palco

    (Joyce). Tornou-se comum atribuir cultura teatral da virada do sculo um retorno do

  • 30

    corpo, que Harold Segel chamou de o corpo ascendente, e a ascenso desse corpo

    frequentemente tomada como uma reao contra no apenas o texto dramtico, mas

    tambm uma crise de linguagem mais amplamente distribuda, como Erika Fischer-

    -Lichte argumentou. (SEGEL, 1998; FISCHER-LICHTE, 1997, p. 63) O drama de gabi-

    nete pode ser visto como a parte inferior desta polarizao: aqui est a linguagem,

    na forma de um drama de gabinete, que corresponde e at mesmo soluciona o que

    ento poderia ser visto como a crise do ator. O que mais notvel, talvez, do que esta

    reverso o fato de que teatralismo e antiteatralismo se encontram aqui uma vez mais

    em seu ataque compartilhado sobre a natureza individual e humana do ator. Enquanto

    Craig demanda que o ator seja substitudo por um marionete, muitos escritores de

    dramas lricos ou escreveram peas para marionetes, como fez Maeterlinck, ou imagi-

    naram ter suas peas encenadas por marionetes, como fez Hofmannsthal. No caso

    de Mallarm, Joyce e Stein, porm, nenhuma referncia a uma real substituio do

    ator humano necessria ser trazida para uma completa despersonificao da figura

    humana, por eles empregarem modos de representao textual que explicitamente

    impedem qualquer ato de personificao.

    Dado que a resistncia ao teatro do drama de gabinete uma instncia particular

    da resistncia modernista esfera pblica, tentador dirigir contra ele o tipo de crtica

    que Lukcs e Brger colocaram contra o alto modernismo mais geralmente. A partir

    de tal perspectiva, o gnero do drama de gabinete pareceria ser indicativo de um afas-

    tamento deplorvel da responsabilidade artstica e uma adeso narcisista a um tipo

    de variante de lart pour lart; de fato, os primeiros dramas de gabinete modernistas,

    de Mallarm a Hofmannsthal, so inegavelmente parte do esteticismo. E desde que o

    gabinete o que se define por sua separao da esfera pblica da plateia, tentador

    considerar isso como a prpria imagem da retirada para o espao privado. Entretanto,

    esta viso pega na equalizao indiferenciada do teatro, da esfera pblica, e da pol-

    tica sobre a qual o teatralismo poltico de Wagner, Marinetti e Meyerhold baseada.

    To logo suspendamos este pressuposto, podemos ver que os dramas de gabinete

    de Mallarm, Stein e Joyce se retiram do pblico no tanto para celebrar narcisistica-

    mente sua prpria autonomia, mas sim para resistir a formas particulares de normati-

    vidade que eles associam com a representao teatral.

    O aspectos mais visveis da normatividade do teatro so a maior vigilncia do

    censor, o (percebido) conservacionismo dos gerentes de teatro e do gosto do pblico,

  • 31

    e formas de censura internalizadas. O drama tem se inclinado a funcionar como um

    gnero privilegiado para reflexo moral e instruo em virtude de representar as aes

    dos participantes de um mundo socializado. Apesar deste papel moral ter levado a

    formas de oposio tericas ao status quo, mais fundamentalmente, ele tem levado

    a um maior policiamento da representao teatral. O fato de que o teatro est preso

    normatividade tende a vir como surpresa para aqueles estudiosos do teatro e da

    performance e para os praticantes que pensam o teatro como um lugar onde sistemas

    de valor e normas sociais esto invariavelmente em solo movedio, sujeitos a deslo-

    camento e crtica devido primazia do teatro sobre a ontologia e da mscara sobre a

    essncia. Se estamos encenando aes socializadas no teatro, isso no significa que

    estamos declarando implicitamente que essas aes sejam meras performances e,

    portanto, modelos sociais que podem ser mudados? A teoria do teatro no cheia de

    tentativas de desestabilizar o status quo?

    As questes sobre a natureza subversiva do teatro e da performance recentemente

    culminaram em um debate entre tericos da performance e tericos da performativi-

    dade. Enquanto estudos da performance tendem a considerar a arte performtica como

    subversiva, crticos como Judith Butler tm enfatizado que teatro e performance tambm

    produzem a normatividade social que eles podem pretender subverter em performances

    particulares. (BUTLER, 1993; BUTLER, 1990; MCKENZIE, 2001) Podemos, assim, nos

    voltar para a teoria da performatividade de Butler para explicar a normatividade inerente

    ao teatro. Todo ato de parodiar um ato roteirizado, normativo, tambm uma repetio

    daquele ato normativo e portanto participa em formar, ao invs de abolir ou sobrepujar,

    a norma que o governa. Alienaes teatrais de normas so dependentes e portanto

    envolvidas na produo de normas que podem procurar subverter. Em sua introduo a

    Bodies That Matter (1993), Butler deixa esta consequncia de sua teoria explcita, insis-

    tindo que as performances teatrais so roteirizadas pelo comportamento normativo e

    por rituais pblicos externos ao teatro. At o ponto em que o teatro, mais do que qualquer

    outra forma de arte, replica o mundo social e em particular a interao humana atravs

    de humanos reais no palco, ele pode, portanto, ser considerado a forma de arte que est

    mais diretamente amarrado normatividade social.

    Outro modo de abordar a normatividade do teatro analisar a maneira com que

    o drama de gabinete procura evitar representao teatral. O drama de gabinete cria um

    espao que permite a Mallarm defender que uma danarina no mais uma dana-

  • 32

    rina, um espao em que ele, o poeta masculino, pode assumir vrios pseudnimos;

    essa a condio que permite que Leopold Bloom se torne uma mulher (e isso signi-

    fica se transformar real e verdadeiramente em uma mulher, ao invs de fazer apenas

    cross-dressing); e essa a condio sob a qual nunca ser possvel reduzir Santa

    Teresa de Stein a qualquer forma, corpo ou personagem em particular. Neste ponto,

    podemos lembrar tambm que a histria do drama de gabinete est, na verdade, cheia

    de vrias formas de desvios, do Simpsio de Plato e da Medeia de Sneca at a Tenta-

    tion of Saint Anthony, passando por Cenci de Shelley, sem mencionar o texto que tem

    mostrado de uma vez por todas, e com todas as implicaes possveis e impossveis,

    que o gabinete do drama de gabinete tambm um boudoir: o drama de gabinete de

    Marqus de Sade, Philosophy in the Bedroom. Porque os dramas de gabinete usam

    sua liberdade da normatividade do teatro para criar mundos caracterizados por vrias

    formas de ambiguidade e desvio, possvel adotar o projeto de Eve Kosofsky Sedgwick

    de uma epistemologia do gabinete para o drama de gabinete. (SEDGWICK, 1990)

    A resistncia normatividade do teatro em ao nos dramas de gabinete fora

    dos padres se torna claramente visvel quando esse dramas de gabinete so trazidos

    de volta ao palco. Nas verses de palco de Livre, Circe e Four Saints in Three Acts,

    a danarina de Mallarm se torna feminina mais uma vez; Leopold Bloom nunca se

    torna uma mulher; e Santa Teresa talvez nem mesmo flerte com Santo Incio. Quando

    se contemplam estas mudanas, fica claro que o que preocupa Mallarm, Stein e

    Joyce no tanto uma simples retirada da esfera pblica enquanto separao ou alie-

    nao da representao teatral plena, em particular do ator humano. A estrutura da

    resistncia sugere que o drama de gabinete no consegue escapar inteiramente da

    normatividade teatral; que aquilo que se parece com liberdade do teatro nada mais

    do que um efeito da resistncia a ele. Isso verdade, mas isso no significa que esses

    efeitos no sejam significativos. Isso significa que a resistncia do drama de gabinete

    ao teatro tambm produz um teatro, um que rompe com a figura humana e se rebela

    contra os confinamentos mimticos de uma ao de palco e teatral. no gesto da

    rebelio que o drama de gabinete ainda est calibrado com o teatro e deriva disso o

    material cuja decomposio o processo atravs do qual constitui a si mesmo.

    Os dramas de gabinete modernistas procuram desfazer o teatro e seus atores

    humanos atravs de programas que so mais bem descritos por termos como literari-

    ness, criture ou writerliness. importante reconhecer que, no contexto do drama de

  • 33

    gabinete, estes termos no descrevem simplesmente a condio da literatura, mas,

    sim, representam uma escolha da literatura sobre o teatro. Da perspectiva do drama de

    gabinete, a valorizao da literariedade pode ser entendida como uma reao contra

    a representao teatral. E exatamente como literaturnost e criture so termos direcio-

    nados contra o teatro, da mesma forma a teatralidade frequentemente direcionada

    contra o texto dramtico, e assim sendo, literatura em geral. (Evreinov, por exemplo,

    cunhou o termo teatralnost aproximadamente ao mesmo tempo em que Roman Jako-

    bson cunhou o termo literaturnost.). Talvez o estudo do drama de gabinete seja um

    lugar privilegiado para se refletir sobre a relao conflituosa entre a cultura literria e

    o teatro. Reconhecer a relao essencial entre o teatro em ao nos dramas de gabi-

    nete de Mallarm, Joyce e Stein, que alcanaram proeminncia em outros gneros

    literrios, pode ser um bom caminho para introduzir a categoria do teatro, inclusive a

    resistncia a ele, no estudo do modernismo literrio em geral.

    Drama e Teatro Modernistas

    apenas por meio do drama de gabinete e sua construo da plateia como

    leitor que podemos comear a compreender por que Beckett considera as indicaes

    cnicas do teatro to importantes quanto o dilogo, ou por que Brecht quer ensinar a

    plateia a adotar a postura de um leitor. Defendo que Yeats, Brecht, Beckett e de forma

    menos desenvolvida, o cnone todo do drama moderno adotam, do drama de gabi-

    nete, estratgias para incorporar o antiteatralismo no apenas na forma dramtica,

    mas tambm na representao teatral.

    Esta afirmao parece ser anti-intuitiva dado que estes trs dramaturgos eram

    ativos no teatro. O uso da dana por Yeats, o teatro pico de Brecht, e as encenaes

    meticulosas de Beckett indicam o fato de que ao invs de rejeitar o teatro como um

    todo, esses escritores tiveram um interesse agudo em assuntos teatrais. Embora isso

    seja certamente verdadeiro, eu mostro que Yeats, Brecht e Beckett esto engajados

    mesmo assim em um discurso explicitamente antiteatral em vrios momentos de suas

    vidas: Yeats em sua fase mais tenra de escritor de peas simbolistas, Brecht em suas

    polmicas contra Wagner, e Beckett em sua cruzada contra os atores. Mais importante,

    porm, do que suas denncias por vezes categricas ao teatro e teatralidade (denn-

    cias que ecoam ipsis litteris o antiteatralismo dos dramas de gabinete e dos tericos

    modernistas antiteatrais) o fato de que estas pessoas canalizaram sua resistncia ao

  • 34

    teatro de volta para dentro do prprio teatro. A explcita desconfiana do teatro de Brecht

    o leva a transformar atores em testemunhas, e a fantasia de controle inicial de Yeats de

    confinar atores em barris foi sagazmente posta em prtica nos planos de Beckett de apri-

    sionar atores em urnas, latas de lixo e montes de terra. O teatro de Yeats tradicional-

    mente rotulado como simbolismo, assim como o drama poltico de Brecht e o teatro do

    absurdo de Beckett. A despeito destas diferenas, eles constituem trs manifestaes de

    uma compartilhada resistncia modernista ao teatro. Na realidade, defendo que foi sua

    resistncia ao teatro que provou ser a fora motriz por trs das reformas e revolues no

    teatro pelo qual eles so agora muito bem recohecidos.

    Uma forma pela qual o antiteatralismo latente destes escritores e diretores est

    registrado na objeo deles poltica teatral propagada por Wagner e pelo teatra-

    lismo de vanguarda. Como Mallarm e Joyce, Yeats e Brecht veem a afinidade entre

    a plateia e a esfera pblica com a maior das suspeitas e procuram embutir em seus

    teatros polticos o maior nmero de elementos antiteatrais possvel, com o mais impor-

    tante sendo a limitao obsessiva da plateia. por esta razo que a maioria das peas

    programticas destes autores so peas de cmara, peas com uma profunda descon-

    fiana quanto plateia e uma poltica teatral. Os pequenos pblicos vislumbrados por

    estes escritores so explicitamente no pblicos, sua seleo sempre questo de

    exclusividade, e mesmo seu comportamento meticulosamente prescrito a fim de

    evitar que a coletividade desenvolva qualquer dinmica prpria, particularmente, qual-

    quer coisa que lembre as revoltas to intencional e estrategicamente provocadas pelos

    teatralistas de vanguarda.

    A limitao e o controle da plateia so algo que o drama moderno aprendeu do

    drama de gabinete, que por sua vez sempre aceitou, como uma espcie de compro-

    misso, uma pequena confraria assistindo uma leitura dramtica ou mesmo uma ence-

    nao de cmara: o gabinete do drama de gabinete, em outras palavras, tanto pode

    ser um lugar para um pblico ntimo quanto para uma leitura solitria. O fato dos teatros

    pequenos serem a fora motriz por trs da maioria das reformas da virada do sculo,

    assim sendo, no apenas reflete as presses econmicas, mas tambm registra uma

    retirada deliberada de um pblico de massa para um espao ntimo e privado. A tenta-

    tiva de criar um antipblico privado expurgado de tudo associado teatralidade pol-

    tica visvel mesmo em Mallarm, o mais radical dos dramaturgos de gabinete, que

    vislumbrou leituras perfeitamente programadas de suas peas por um grupo seleto de

  • 35

    amigos, uma plateia ntima que lembra talvez aquela de um salo. Da mesma forma,

    alguns dramas de gabinete no rejeitam completamente, mas qualificam, a ideia do

    theatrum mundi, como fez Hofmannsthal, que reduziu o Great World Theater (1641) de

    Caldern a Das kleine Welttheater (O pequeno teatro mundo) (1897). esta tentativa

    de criar um pequeno pblico, e portanto, ideal, que podemos ver funcionar em tais

    pea de cmara como Peas para Danarinos de Yeats e Lerstcke de Brecht.

    A persistncia do antiteatralismo no drama modernista significa que, assim como

    o drama de gabinete, ele joga sua prpria literariedade contra a teatralidade. Na reali-

    dade, esta confiana no texto dramtico como uma estratgia contra o teatro que

    registra mais claramente a afinidade entre o drama moderno e o drama de gabinete.

    Mais importante, entretanto, o drama moderno, mais do que qualquer drama ante-

    rior, se torna um gnero literrio dirigido tanto para um leitor quanto para uma plateia.

    Neste ponto, meu projeto se intersecciona com a histria do livro. Atravs de um longo

    processo, o qual Julie Stone Peters reconstruiu em The Theater of the Book, a cultura

    impressa e a performance tiveram uma histria conflituosa e entrelaada. O drama tem

    sido impresso desde antes do perodo elisabetano, e dramaturgos individuais tais como

    Ben Jonson devotaram considervel energia e notas explicativas s verses impressas

    de suas peas, que certas vezes eles preferiram no lugar de performances teatrais. No

    curso dos sculos XVIII e XIX, o drama contemporneo (ao contrrio da tragdia grega,

    de Shakespeare ou dos clssicos) construiu gradualmente seu leitor implcito, para

    usar o termo emprestado de Wolfgang Iser, no apenas como um profissional do teatro

    responsvel por realiz-lo no palco, mas como um leitor genrico: todo texto dramtico,

    portanto, tambm, se no exclusivamente, uma leitura ou um drama de gabinete.

    Um dos poucos observadores contemporneos que reconhecem a importncia da

    impresso para o drama moderno foi o crtico norte-americano Archibald Henderson,

    que atribuiu a crescente importncia das edies impressas ao carter internacional

    do drama moderno, que tem circulado na forma de tradues e antologias traduzidas,

    uma tendncia ilustrada na singular influncia das peas de Ibsen atravs da Europa.

    Este modo de publicao encorajou a prtica da leitura do drama contemporneo, uma

    prtica fortalecida, anotou Henderson em 1914, pelo crescente estudo de literatura

    dramtica em Harvard, Yale e Columbia. Causas adicionais que Henderson poderia ter

    somado lista eram de natureza legal. A censura sempre foi mais restritiva em relao

    s performances teatrais do que com respeito a peas impressas, um desequilbrio que

  • 36

    j ele mesmo o produto de um antiteatralismo enraizado e moralizante. E alteraes

    nas leis de royalties nacionais e internacionais s vsperas do sculo XIX aboliram

    alguns dos desestmulos aos dramaturgos quanto a publicarem seus trabalhos antes

    de sua encenao. A integrao do drama aos mercados de publicaes genricas,

    portanto, envolve um certo nmero de fatores prticos, legais e econmicos, atravs

    dos quais o drama fica aparentado, quando no co-extensivo, ao drama de gabinete.

    Os dados quantitativos disponveis sobre a publicao de peas so frequente-

    mente insuficientes. O que deixa a pesquisa quantitativa de impresso e publicao

    especialmente precria no caso do drama o fato das peas serem frequentemente

    pirateadas por gerentes de teatro tentando evitar o pagamento de royalties ou impressas

    em edies baratas destinadas a atores e produtores. (STEPHENS, 1992) A falta de

    dados precisos marcando a evoluo da prtica da publicao de drama, porm, no

    tem tanta importncia para o meu argumento, que est menos preocupado com as

    causas quantitativas do que com seus efeitos qualitativos sobre a forma genrica

    do cnone to pequeno do drama moderno. Novamente, foi Henderson quem notou

    um particular efeito, nomeadamente, que no apenas fez Shaw gastar uma quantia

    extraordinria de tempo selecionando impresso, tipo e formato para a publicao

    de Plays Pleasant and Unpleasant, como o modo de publicao na verdade alterou

    a forma dramtica: Shaw adicionou longos prefcios e passagens narrativas e assim

    mudou a forma e a funo de suas direes de palco.O que Henderson observou em

    Shaw pode ser tomado como indicativo de que o drama moderno se realizou de modo

    mais geral como drama de leitura, primeiramente atravs da integrao das rubricas

    no texto dramtico primrio. Esta mudana na funo das indicaes cnicas uma

    consequncia da histria do drama impresso, e uma que s se manifestou plena-

    mente no final do sculo XIX. As rubricas tcnicas como a indicao de entradas e

    sadas, ou aquelas voltadas s descries de personagens, seus posicionamentos e

    movimentos, no mais foram descries direcionadas ao pblico genrico. As rubricas

    tornaram-se, portanto, um lugar privilegiado para a inovao formal. A emergncia

    dentro do drama moderno de elaboradas indicaes cnicas, descritivas e narrativas,

    revela uma postura mais geral de confiana por parte do drama moderno na linguagem

    que media, descreve, prescreve e interrompe o espao mimtico do teatro. Apontar

    para estas estratgias no significa tomar partido em uma luta sem fim entre texto

    e performance. Contudo, isso significa reconhecer, por um lado, que a performance

  • 37

    teatral parte do horizonte de qualquer texto dramtico mesmo o drama de gabinete

    se preocupa com a mimese do palco, na maioria das vezes de maneira negativa e,

    por outro lado, que uma performance teatral muitas vezes insere mediaes textuais

    entre o espectador e a mimese teatral. Proponho um termo para designar as estrat-

    gias descritivas e narrativas pelas quais o drama moderno procura canalizar, enqua-

    drar, controlar e at mesmo interromper o que percebe como sendo uma teatralidade

    no mediada do palco e seus atores. Este termo diegese.

    Mimese, Diegese e Gestos

    Diegese no um termo neutro no debate entre texto e teatro, pois ele brota

    dos escritos antiteatrais de Plato, onde usado em meio ao que pode ser enca-

    rado como a querela original entre a diegese verbal e a mimese teatral. No centro

    desta querela permanece a figura do ator. Plato chega sua crtica do ator somente

    por um caminho indireto, atravs da rapsdia homrica, que narra a ao ocorrida

    no passado, no presente e no futuro, em um modo que Plato chama de digsis

    (). Porm, uma vez que o poeta, ou o rapsodo, mude da terceira pessoa para

    a primeira, ele no mais relata a fala de um personagem, mas assemelha ()

    sua voz e seu gesto queles do personagem; o rapsodo no mais um narrador, mas

    est a caminho de se tornar um ator. Neste momento, a diegese rapsdica d lugar

    mimese desempenhada por um ator. Para Plato, esta performance se tornaria,

    portanto, diegese pela mimese ( ) (393c), em oposio

    diegese pura ou simples, que seria definida por sua diferena em relao mimese

    como uma diegese sem mimese ( ... ) (393c-d). Na viso de

    Plato, esta troca de rapsodo para ator crucial porque significa que o poeta esconde

    () (393c) a si mesmo sob a mscara do personagem, uma mscara cons-

    tituda de voz falsa e gestos falsos.

    O diligente interlocutor deste dilogo ou drama de gabinete imediatamente

    reconhece que Scrates no est realmente falando aqui sobre o rapsodo atuante, mas

    do ator dramtico. possvel, em princpio, imaginar um poema pico sem nenhum

    discurso direto, e desta forma, um rapsodo que nunca tenta imitar a voz e os gestos

    de personagens, embora tal abstinente recitao nunca tenha ocorrido realmente, pois

    a recitao de poesia pica era um evento de palco que atraa grandes multides. A

    fim de demonstrar esta possibilidade, Plato oferece uma traduo para a terceira

  • 38

    pessoa, e, portanto, para a diegese da fala de Crises no primeiro livro da Ilada. Este

    tipo de traduo a princpio possvel para a poesia pica, mas poderia alterar tudo

    se fosse aplicada ao drama, pois o drama geralmente depende de atores falando com

    suas prprias vozes como meio de imitar as vozes dos personagens que esto perso-

    nificando. Enquanto em teoria o rapsodo e a poesia pica poderiam ser salvos (se

    fossem apropriadamente transformados em narrativa pura sem dilogo), os atores e a

    forma dramtica esto desesperadamente perdidos porque precisam imitar as vozes

    e os gestos de outras pessoas, especialmente, Plato declara, as vozes e gestos de

    mulheres e covardes (395a). No surpreende, portanto, que quando fala sobre atores,

    Plato usa o termo grego padro, nomeadamente, , ou hypokrites, uma

    palavra cujo prprio significado foi reiteradamente imbudo pelo prprio antiteatralismo

    de Plato, at que tomou o sentido derrogatrio que possui hoje.

    A Potica de Aristteles se apresenta como uma defesa da mimese contra

    Plato, usando conceitos tais como a catarse e o impulso humano em imitar. O que

    passa frequentemente despercebido, no entanto, que Aristteles tambm possui um

    sentimento ambivalente quanto figura do ator. A maior concesso de Aristteles a

    Plato a afirmao de que o drama deveria ser capaz de ser feito inteiramente sem

    atuao e se contentar em ser lido () (1462a), e Aristteles provavelmente

    vislumbra aqui uma leitura silenciosa. Mas Aristteles, como sempre, tenta alcanar

    uma posio de compromisso, o que significa que ele tambm quer defender, pelo

    menos at certo ponto, os aspectos espetaculares e visuais do teatro (). Para este

    propsito, ele destaca que todas as artes performticas, incluindo rapsdia e msica,

    para o bem ou para o mal, participam em algum modo de visualidade. Esta visualidade,

    como o autor, bno e maldio, e Aristteles torna a narrar um exemplo negativo,

    nomeadamente, os gestos ridculos () de flautistas que tentam imitar Cila ao

    invs de suprimir essas influncias externas em sua msica (1461b) Aristteles soa

    aqui quase como Adorno. Este desejo por um compromisso se torna particularmente

    agudo quando se trata de atores, pois o desejo de Aristteles de salvar os bons atores

    da crtica de Plato o leva a sintomticas mudanas em sua terminologia. Frequen-

    temente, ele foge do termo padro de Plato para ator, nomeadamente hypocrites,

    usando em seu lugar a palavra , ou prattontes, que derivada da palavra

    praxis e, portanto, sugere a execuo de uma ao real, em contraste ao enganador

    fingimento. A deciso de Aristteles de usar praxis e prattontes para denotar uma ao

  • 39

    apresentada por um texto dramtico no palco pretende defender o teatro da acusao

    de que ele apresenta hipcritas que fingem emoes. E uma vez que Aristteles tenha

    construdo um agente-ator no hipcrita, ele pode prosseguir com a salvao da visu-

    alidade do teatro, que ele chama de opsis: ,

    (desde que os

    personagens/atores produzem mimese, segue-se que em primeiro lugar, a tragdia

    consistir em espetculo visual) (1449b30-32). A distino entre hypocrites e prat-

    tontes espelha a diferena entre teatral e no teatral. Por um lado, palavras como

    atos, agentes, aes e atores denotam aes e suas consequncias no mundo. Ao

    mesmo tempo, porm, esses conceitos tambm significam a representao de ao

    em um palco. Aristteles reconhece ambos os sentidos e estrategicamente os funde

    usando a palavra praxis para denotar o ator teatral: agora o teatro deixa de fingir e,

    pelo contrrio, se engaja em aes reais. Aristteles d ainda um passo adiante, trans-

    ferindo a nfase de atores para aes. Podemos imaginar tragdias sem personagens,

    diz Aristteles, portanto, conclui-se, sem atores personificando-os (1450a24). Mas no

    seria possvel existir tragdia sem ao ou prxis. Em ltima anlise, ento, Aristteles

    pode salvar atores associando-os com a ao no enganosa, mas no final a ao e

    no os atores, que ficam no centro da tragdia.

    Por Aristteles querer salvaguardar o bom ator, ele toma o cuidado de evitar o

    termo com o qual Plato conduziu seu ataque ao teatro: diegese. Esta evaso passa

    despercebida at mesmo por um narratologista to rigoroso quanto Grard Genette,

    que equivocadamente afirma que Aristteles aceita a noo de diegese de Plato

    quando na verdade ele obviamente a evita. (GENETTE, 1994, p.128) Em vez disso,

    quando Aristteles fala sobre narrativa, ele usa frequentemente termos alternativos,

    como , ou apaggelia, que significa relato ou histria. Esta mudana de

    terminologia estratgica porque est voltada para cercear a categrica oposio de

    Plato entre diegese e mimese, da mesma forma como o termo prattontes foi voltado

    para cercear o enganoso fingimento dos hypocrites. Em vez disso, Aristteles espera

    categorizar a poesia pica, a poesia lrica coral e o drama como diferentes formas de

    mimese de tal forma que aquilo a que Plato se referiu como diegese sem mimese

    agora uma sub-forma de mimese. O termo diegese, a arma antiteatral de Plato, foi

    assim efetivamente descarregada.

  • 40

    A estratgia de Aristteles para salvar e expandir a ideia de mimese e para

    suprimir o termo diegese de Plato tem sido to bem sucedida que o termo diegese,

    com sua investida antiteatral implicada, foi completamente colocada de fora da anlise

    do drama e do teatro e usada apenas no estudo da narrativa. Deve-se certamente

    aplaudir a tentativa de Aristteles de debelar a crtica de Plato aos atores e sua hipo-

    ttica consequncia: o fechamento dos teatros e o banimento dos atores. Mas esta

    simpatia pela causa de Aristteles no deve nos impedir de usar o termo diegese,

    porque ele registra precisamente as foras antiteatrais em ao no drama e no teatro

    modernos. A fim de examinar estas foras, necessrio insistir com Plato e contra

    Aristteles na distino, e assim sendo, na luta entre diegese e mimese teatrais. Isso

    significa que devemos distinguir entre a representao indireta, descritiva e narrativa,

    de objetos, pessoas, espaos e eventos atravs da linguagem (falada por um rapsodo,

    narrador, coro, ou autor, ou representada no texto dramtico pelo leitor) e a apresen-

    tao direta de tais objetos, pessoas, falas, espaos e eventos no palco. Apenas uma

    terminologia que reconhea essa distino pode capturar as estratgias atravs das

    quais o drama e o teatro modernos tentam resistir mimese teatral.

    A tragdia e a comdia gregas, e na realidade o drama ocidental e no ocidental,

    sempre incluram vrias formas de diegese. Passagens narrativas sobre o passado

    podem ser contadas por atores, e comentrios no tempo presente pelo coro. Aes

    ocorrendo fora do palco, por exemplo, so frequentemente relatadas por mensageiros

    ou por atores fingindo v-los do outro lado da parede (teichoscopia). A funo normal

    de tais formas de diegese no drama grego e no drama ocidental de maneira geral,

    expandir o universo de representao para alm do palco. Quando mensageiros

    relatam o que se passou em algum outro lugar, fora do palco ou por trs de uma

    parede, eles somam ao espao mimtico do palco o que Michael Issacharoff chama

    de espao diegtico de fora do palco. (ISSACHAROFF, 1989) Isso no , porm,

    o sentido de diegese que est especificamente conectado com o drama moderno,

    embora seja a base para ele. Porque o drama moderno introduz uma mudana impor-

    tante na funo dessas estratgias diegticas. Em vez de importar para o espao

    mimtico do palco algo que acontece fora dele, a diegese modernista se refere ao

    espao mimtico do prprio palco. (WORTHEN, 1992) Personagens, objetos e eventos

    que j esto presentes mimeticamente so subitamente confrontados com modos de

    diegese que projetam para o espao mimtico sua prpria verso dele.

  • 41

    O que est por trs desta ttica de dirigir a diegese a favor e contra a mimese

    teatral o desejo por parte do drama moderno de enquadrar, controlar e interromper

    o espao teatral do palco. A representao teatral no deixada para os designers,

    atores e o diretor, mas sim colocada uma vez mais nas mos do autor dramtico. No

    lugar de representao visual, tais como adereos, iluminao e a organizao do

    espao do palco, assim como o movimento, a coreografia e a atuao, temos agora

    a linguagem descritiva. A maioria das formas de diegese modernista, no entanto, no

    so o resultado de batalhas pelo poder entre diretores, atores e autores; como carac-

    terstico do debate sobre teatralidade, esta postura antimimtica se transforma em

    um ataque contra a teatralidade como tal. A diegese redefine o que vemos, e assim

    sendo, condiciona nossa percepo e recepo do teatro. Fazendo isso, ela media

    o teatro atravs de uma forma de arte muito mais aceitvel ao modernismo, nome-

    adamente, a literatura. A diegese de Plato, sobre a qual toda essa energia antite-

    atral foi concentrada, portanto retomada pelo drama moderno para o propsito de

    manter sob controle e mediar a mimese teatral de atores e objetos no palco. A estra-

    tgia de Aristteles de recategorizar a diegese como uma forma de mimese pode ter

    salvo o teatro uma vez, mas no nos ajuda a compreender as relaes sutis entre

    modernismo, antiteatralidade e texto dramtico. Meu livro, portanto, examina o drama

    moderno pelas lentes do termo diegese de Plato, e nesse sentido, pode ser conside-

    rado no tanto um estudo do teatro no aristotlico, como Brecht o chamaria, quanto

    um teatro em dbito com Plato. O drama e o teatro modernistas so um teatro plat-

    nico, no que seja um teatro de ideias abstratas, mas um teatro infundido com tipos

    de antiteatralidade desenvolvidos pela primeira vez nos dramas de gabinete de Plato.

    (GOULD, 1989)A fim de mapear todos os mecanismos diegticos em ao no drama e

    no teatro modernos, necessrio distinguir entre diegese escrita e impressa (rubricas,

    falas descritivas e diegticas no drama de gabinete) e diegese praticada (fala diegtica

    falada pelo coro, comentaristas semelhantes ao coro ou personagens narrativos ou

    descritivos). Todas as indicaes cnicas so descries ou prescries do espao

    mimtico no palco, mas tradicionalmente a duplicao inerente a esta projeo desa-

    parece porque as direes de palco so consideradas apndices tcnicos dispensveis

    que no aparecem no produto final, a performance. Mas quando o drama se realiza

    enquanto drama de leitura, suas direes de palco no mais desaparecem e dessa

    forma, repentinamente assumem novo significado; elas constituem uma narrativa ou

  • 42

    discurso em terceira pessoa que assume o controle, para o leitor, do espao mimtico

    do palco. Enquanto alguns comentaristas, mais notavelmente Marvin Carlson, tm

    observado a ascenso e a mudana de significado das rubricas, poucos tm reconhe-

    cido neste fenmeno a mudana mais central que est ocorrendo no drama moderno.

    A crescente importncia das rubricas alcanam um clmax nas indicaes cnicas de

    Beckett, no porque sejam particularmente longas, pois a este respeito so superadas

    por aquelas de Shaw e ONeill, mas porque elas envolvem um universo paralelo ao

    drama falado, e portanto competem com ele a todo momento. Ler as peas de Beckett

    requer uma leitura dupla da fala direta e das direes de palco, e dessa forma, suas

    peas so divididas entre um teatro de dilogo e um teatro de objetos e gestos, o

    ltimo capturado pela diegese descritiva das direes de palco.

    A diegese textual do drama moderno aparece de forma destilada no drama de

    gabinete moderno, cujas descries de palco implcitas e explcitas conjuram um

    espao teatral mimtico apenas para desconstru-lo completamente. Este pode ser

    o lugar para destacar que o drama de gabinete modernista no constitui um teatro

    imaginrio no sentido em que o leitor deva simplesmente imaginar uma performance

    visual enquanto l. Tal palco imaginrio produzido no ato da leitura de qualquer

    texto dramtico tradicional; o efeito de uma forma dramtica que est voltada para

    o teatro. O drama de gabinete modernista, por contraste, no deixa o teatro intacto,

    nem mesmo na forma do teatro imaginrio, mas procura interromper e desmembrar

    qualquer possibilidade de um palco real assim como de um palco imaginrio. Neste

    sentido, o drama de gabinete moderno uma instncia do que Evlyn Gould chamou

    de teatro virtual, mas ele tambm se volta contra esta tradio ao procurar desima-

    ginar, desvisualizar, e destetatralizar o ato de leitura do drama.

    O desmantelamento diegtico at mesmo de um espao teatral imaginrio a

    instncia mais especfica do modo mais geral com o qual o drama de gabinete moderno

    resiste ao palco. A funo diegtica das direes de palco e das falas descritivas emerge

    mais conspicuamente nas tentativas desajeitadas de se levar os dramas de gabinete

    para o palco, contra a fora, por assim dizer, de suas mais antiteatrais estratgias dieg-

    ticas. Tais adaptaes do Livre de Mallarm, do captulo Circe de Joyce, da verso

    em libreto autorizada de Virgil Thomson para Four Saints in Three Acts de Stein intro-

    duzem fora a figura de um narrador ou comentarista para acomodar as direes de

    palco diegticas destes textos. Esses desajeitados narradores registram mesmo assim

  • 43

    o fato de que as rubricas dos dramas de gabinete esto no corao do gnero, e no

    podem mais simplesmente desaparecer no processo de encenao.

    Os narradores ou comentaristas que apresentam as rubricas diegticas do drama

    de gabinete pertencem a uma classe mais ampla de personagens diegticos que

    povoam o palco moderno. Derivados do coro grego ou do coro N, figuras diegticas

    projetam falas que condicionam o espao mimtico que est simultaneamente presente

    aos olhos da plateia. As peas N de Yeats, por exemplo, usam um coro que no parti-

    cipa na ao da pea, mas ao invs disso, comenta na pea, mais particularmente,

    controla sua recepo atravs de falas descritivas, diegticas. A diegese no , contudo,

    sempre reduzida a algo como o coro, situado margem do palco. Toda a reforma da

    atuao de Brecht pode ser vista como uma tentativa de transformar os atores em narra-

    dores diegticos, falando como se estivessem relatando sua prpria fala e condio. O

    confronto aqui entre mimese e diegese acontece com cada um dos atores/personagens.

    A funo central de tais fenmenos aparentemente diversos como as indicaes

    cnicas cada vez mais longas, o uso de um coro ou de figuras similares ao coro, comen-

    taristas e finalmente atores que se tornam observadores de si mesmos, s podem ser

    compreendidos se reconhecermos que tm algo em comum: eles sobrepem ao espao

    mimtico do palco camadas de descrio cujo propsito no replicar o palco, como

    se para preservar sua caracterstica particular teatral e mimtica, mas para adapta-la,

    transform-la e interromp-la. neste processo de adaptao ou transformao que

    podemos ver a marca de uma resistncia produtiva ao teatro, uma resistncia singular

    em sua motivao antiteatral, mas diversa em seus efeitos. O operador de Mallarm,

    o narrador dramtico de Joyce, as passagens descritivas e narrativas de Stein, o coro

    de Yeats, os atores picos de Brecht e as rubricas de Beckett podem, assim, serem

    reunidos sob o termo diegese porque todas so direcionadas, no sentido de Plato,

    contra a presena no mediada da mimese teatral.

    Mesmo que o termo diegese possa ser usado para descrever a resistncia ao

    teatro, ainda assim ele contm aquilo a que resiste; indicaes cnicas e narradores

    diegticos no abandonam a mimese teatral, mas a enviam de volta para o literrio,

    quer seja no texto ou na fala diegtica. Isso significa que a diegese no apenas produz

    a filtragem do teatro pela literatura, como tambm cria, no processo, uma nova forma

    de teatro. Esta dinmica se torna particularmente visvel atravs do uso recorrente

    do termo gesto. Por diversas vezes, a maneira pela qual os escritores de drama de

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    gabinete, assim como os dramaturgos modernos falam sobre seus textos, atravs

    do gestual, da noo de Wagner da linguagem gestual e do flerte de Joyce com a

    teoria de gestos de Marcel Jousse, at a noo de Bracht de gestus. Baseando-se no

    duradouro debate sobre a origem gestual da linguagem e a esperana de que uma

    escavao de tal origem possa levar a um rejuvenescimento da linguagem literria, o

    particular investimento em escrita gestual indica o desejo da literatura pelo teatro. Essa

    tradio vai desde a anlise de poesia em Language as Gesture de Richard Blackmur,

    ela mesma em dbito com o chamado dramatismo de Kenneth Burke, at a noo

    de Derrida da criture gestuelle de Mallarm, uma tradio investida na teatralidade

    daquela literatura. Ao mesmo tempo, existe uma segunda tradio, que vai de Wagner

    e Artaud a Pavis, devotada a desenvolver teorias do gesto na esperana de criar espe-

    cificamente sinais teatrais que ainda assim funcionassem como escrita. Ambas as

    tradies se baseiam em teorias da origem gestual da linguagem para estabilizar o

    termo gesto bem na fronteira entre literatura e teatro.

    Gestos nunca so apenas texto ou escrita, eles infundem o texto com remanescn-

    cias teatrais mesmo enquanto sugerem que uma performance teatral lembra a prtica

    da significao no texto. Julia Kristeva chega perto de tal compreenso de gesto em seu

    estudo (1969) no qual ela descola o termo gesto de seu papel usual como

    origem da linguagem e utiliza-o para uma anlise da produo de signos lingusticos

    inspirada no marxismo. (BLACKMUR, 1952) Gesto, aqui, se torna uma palavra para a

    prxis e o labor que se passam na produo da linguagem e da comunicao lingustica,

    o labor que mais ou menos apagado no produto finalizado lingustico. Uma anlise

    do gestual em textos literrios, ento, se torna uma investigao dentro destas prxis

    ocultas, um domnio que para Kristeva caracterizada por dois atributos: o impessoal

    e o espacial. Poderia-se adicionar um terceiro atributo, que ela no menciona talvez

    por causa de sua exclusiva ateno no estudo da novela, que o teatral. Uma anlise

    gestual do modernismo conduz diretamente conflituosa relao entre texto e teatro,

    ou, para ser mais preciso, os respectivos valores colocados neles.

    A anlise do gestual revela, ento, a face inferior da resistncia, o fato de que

    o teatro, o drama de gabinete e o teatro antiteatral de maneira mais geral tambm

    produzem uma forma de teatro no interior de seu prprio ato de resistncia. esta

    cumplicidade entre rejeio e produo que est por trs das vrias formas de drama

    moderno. Sua anlise o assu