Panorama: fantasmas latentes II - tinawc.com · Casa Angolana é moderna e re flexo do debate...

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Panorama: fantasmas latentes II LIFE&ARTS A propósito da exposição, na Galeria do Banco Económico até 25 de Janeiro 2019, da artista angolana Mónica de Miranda, a arquitecta e curadora escreve sobre a reflexão do projecto colonial e o seu impacto na formação das cidades Angolanas como ponto de partida na observação do projecto pós-arquivo da artista. anorama é o título do projecto e também o icónico hotel construído na década de 60- 70 na Ilha de Luanda, onde os hóspedes tinham uma visão panorâmica da Baía de Luanda e do oceano Atlântico, um dos mais emblemáticos e charmo- sos hotéis em Luanda, há mui- to desactivado e relegado ao abandono. O hotel traz consi- go a simbologia da viagem, dos trânsitos diaspóricos, é um dos elementos arquitectó- nicos recorrentes nas explo- rações da artista. Em Hotel Globo (2015), obra que tem como ponto de partida o hotel construído na década de 50 na Baixa de Luanda, o edifício adquire um status de quase resistên- cia às mudanças aceleradas em seu redor; Panorama materiali- za a decadência, é um navio naufragado, resignado à própria sorte. Mas Panorama não se refere apenas ao Hotel e abre um amplo conjunto de signi cados – uma visão multifacetada e integral de vários objectos ou temas. Este duplo signi cado assume-se por um lado, como estratégia narrativa e por outro lado como estratégia de representação. A dualidade entre passado e presente (e futuro), permeia o projecto como um todo, e está patente em obras como Fall (Que- da) ou Angolan House (Casa Angolana). A primeira, uma alusão directa à queda do império e ao contexto para o qual somos transportados - as quedas de Kalandula. Aqui, uma antiga pou- sada colonial é engolida pela natureza. A paisagem repousa in- tacta e imponente, e absorve a arquitectura. A segunda remete imediatamente à “Casa Portuguesa”, reexo do debate sobre a identidade política, cultural e artística e das mani- festações de procura de uma identidade original portuguesa. Aqui somos confrontados com a ideia de uma Casa Angolana, totalmen- te preservada, mas que não se assume completamente como tal. A Casa Angolana é moderna e re exo do debate sobre a origem da arquitectura moderno-tropical e sua autenticidade. O tratamento dado às imagens, com uma intervenção em cera dão às imagens uma dimensão temporal de eternidade, remetendo à urgência de pre- servar o estado físico e consequentemente, a memória. A inclusão de personagens crípticas como as Gémeas em “Karl Marx” e “When words escape, owers speak” ampli cam o signi fi- cado de identidade, gémeas carregam em si uma dupla identidade que confunde ou se sobrepõe, mas é sempre distinta e individual; a ccionalização da história com micronarrativas acrescenta dimen- sões temporais que remetem não só ao passado colonial, mas tam- bém a história mais recente de Angola e ao futuro. A instalação Dó, desenvolvida especialmente para esta exposição conta com a colaboração do artista Soundslike Nuno (Chullage) na construção da paisagem sonora. Uma bailarina clássica observa a cidade do alto do prédio do livro, enquanto uma orquestra de cordas toca uma composição com acordes descontínuos, numa performan- ce em diferentes locações, à procura do acorde perfeito. Composto como uma sinfonia da cidade, o lme é um estudo sobre a cidade actual, seus ritmos e transformações, onde os personagens transi- tam entre o ser parte integrante, agentes ou meros observadores de uma história em construção. Panorama não é uma arqueologia urbana, nem somente uma me- ditação sobre a presença dos passados coloniais em contextos pós- coloniais, sobre a memória individual versus memória colectiva. As imagens não são um registo, elas existem num espaço fronteiri- ço, que permite uma reexão mais ampla sobre estratégias de for- mação das identidades individuais e colectivas que, tal como ante- cipado por Homi K. Bhabha “Initiate new signs of identity, and innovative sites of collaboration, and contestation in the act of de- ning the idea of society itself ”[i]. Ao sublinhar a forma como o império adquiriu uma feição mate- rial no quotidiano urbano, permeando e condicionando o imaginá- rio colectivo, Panorama revela fantasmas latentes, por vezes esca- moteados pela aceleração do tempo e do espaço e lembra-nos da necessidade de distintas interpretações da realidade envolvente, e de nos concentrarmos nos momentos produzidos na articulação de diferenças culturais enquanto momentos de confronto, em con- traponto com a amnésia histórica, e cruciais para a construção de qualquer sociedade. M P POR PAULA NASCIMENTO FOTO MÁRIO MACILAU Artista Mónica de Miranda 22 MERCADO 30.11.18

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Panorama: fantasmas latentes II

L I F E & A R T S

A propósito da exposição, na Galeria do Banco Económico até 25 de Janeiro 2019, da artista angolana Mónica de Miranda, a arquitecta e curadora escreve sobre a reflexão do projecto colonial e o seu impacto na formação das cidades Angolanas como ponto de partida na observação do projecto pós-arquivo da artista.

anorama é o título do projecto e t a m b é m o i c ó n i c o h o t e l construído na década de 60-70 na Ilha de Luanda, onde os hóspedes tinham uma visão panorâmica da Baía de Luanda e do oceano Atlântico, um dos mais emblemáticos e charmo-sos hotéis em Luanda, há mui-to desactivado e relegado ao abandono. O hotel traz consi-go a simbologia da viagem, dos trânsitos diaspóricos, é um dos elementos arquitectó-nicos recorrentes nas explo-rações da artista. Em Hotel Globo (2015), obra que tem

como ponto de partida o hotel construído na década de 50 na Baixa de Luanda, o edifício adquire um status de quase resistên-cia às mudanças aceleradas em seu redor; Panorama materiali-za a decadência, é um navio naufragado, resignado à própria sorte.

Mas Panorama não se refere apenas ao Hotel e abre um amplo conjunto de significados – uma visão multifacetada e integral de vários objectos ou temas. Este duplo significado assume-se por um lado, como estratégia narrativa e por outro lado como estratégia de representação.

A dualidade entre passado e presente (e futuro), permeia o projecto como um todo, e está patente em obras como Fall (Que-da) ou Angolan House (Casa Angolana). A primeira, uma alusão directa à queda do império e ao contexto para o qual somos transportados - as quedas de Kalandula. Aqui, uma antiga pou-sada colonial é engolida pela natureza. A paisagem repousa in-tacta e imponente, e absorve a arquitectura.

A segunda remete imediatamente à “Casa Portuguesa”, reflexo do debate sobre a identidade política, cultural e artística e das mani-festações de procura de uma identidade original portuguesa. Aqui somos confrontados com a ideia de uma Casa Angolana, totalmen-te preservada, mas que não se assume completamente como tal. A Casa Angolana é moderna e reflexo do debate sobre a origem da arquitectura moderno-tropical e sua autenticidade. O tratamento dado às imagens, com uma intervenção em cera dão às imagens uma dimensão temporal de eternidade, remetendo à urgência de pre-servar o estado físico e consequentemente, a memória.

A inclusão de personagens crípticas como as Gémeas em “Karl Marx” e “When words escape, flowers speak” amplificam o signifi-cado de identidade, gémeas carregam em si uma dupla identidade que confunde ou se sobrepõe, mas é sempre distinta e individual; a ficcionalização da história com micronarrativas acrescenta dimen-sões temporais que remetem não só ao passado colonial, mas tam-bém a história mais recente de Angola e ao futuro.

A instalação Dó, desenvolvida especialmente para esta exposição conta com a colaboração do artista Soundslike Nuno (Chullage) na construção da paisagem sonora. Uma bailarina clássica observa a cidade do alto do prédio do livro, enquanto uma orquestra de cordas toca uma composição com acordes descontínuos, numa performan-ce em diferentes locações, à procura do acorde perfeito. Composto como uma sinfonia da cidade, o filme é um estudo sobre a cidade actual, seus ritmos e transformações, onde os personagens transi-tam entre o ser parte integrante, agentes ou meros observadores de uma história em construção.

Panorama não é uma arqueologia urbana, nem somente uma me-ditação sobre a presença dos passados coloniais em contextos pós-coloniais, sobre a memória individual versus memória colectiva. As imagens não são um registo, elas existem num espaço fronteiri-ço, que permite uma reflexão mais ampla sobre estratégias de for-mação das identidades individuais e colectivas que, tal como ante-cipado por Homi K. Bhabha “Initiate new signs of identity, and innovative sites of collaboration, and contestation in the act of de-fining the idea of society itself ”[i].

Ao sublinhar a forma como o império adquiriu uma feição mate-rial no quotidiano urbano, permeando e condicionando o imaginá-rio colectivo, Panorama revela fantasmas latentes, por vezes esca-moteados pela aceleração do tempo e do espaço e lembra-nos da necessidade de distintas interpretações da realidade envolvente, e de nos concentrarmos nos momentos produzidos na articulação de diferenças culturais enquanto momentos de confronto, em con-traponto com a amnésia histórica, e cruciais para a construção de qualquer sociedade. M

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P O R P A U L A N A S C I M E N T O F O T O M Á R I O M A C I L A U

Artista Mónica de Miranda

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