Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

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Universidade de Coimbra Faculdade de Direito / Faculdade de Economia CES Centro de Estudos Sociais Curso de Doutoramento “Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI” A Ética da Eternidade Em Busca de uma Ética de Longo Prazo George Marmelstein ([email protected]) Maio - 2009

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Texto escrito durante o curso de doutoramento em "Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI", da Universidade de Coimbra

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Universidade de Coimbra

Faculdade de Direito / Faculdade de Economia

CES – Centro de Estudos Sociais

Curso de Doutoramento “Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI”

A Ética da Eternidade

Em Busca de uma Ética de Longo Prazo

George Marmelstein

([email protected])

Maio - 2009

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“- Ivã, há imortalidade? Por pequena que seja, por mais modesta?

- Não, não há. - Nenhuma? - Nenhuma. - Quer dizer, um zero absoluto, ou uma parcela? Não haveria

uma parcela? - Um zero absoluto”.

Fiodor Dostoiveski, em “Os Irmãos Karamazov” 1

“Num instante tu não serás mais que cinza, esqueleto, um nome ou nem mesmo um nome”.

Marco Aurélio, Pensamentos V, 33 “Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em

mim, ainda que esteja morto, viverá”. João 11:25 “E esta é a promessa que Ele nos fez: a vida eterna” João 2:25

1 DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os Irmãos Karamazov (Brátia Karamázavi, 1879). Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes.

São Paulo: Abril Cultural, 1970, p. 137.

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Sumário

1 Introdução ...................................................................................................................... 4

2 Ética, Religião e Razão .................................................................................................... 7

2.1 A Laicidade do Estado, o Direito Positivo e a Ética Religiosa .................................. 7

2.2 Ética Religiosa versus Ética Laica ........................................................................... 10

2.3 A Filosofia Moral Contemporânea ......................................................................... 16

3 A Ética Laica de Peter Singer e a Oração de São Francisco de Assis ............................ 21

3.1 Darwinismo, Teoria dos Jogos e Cooperação ........................................................ 22

3.2 A Ética da Reciprocidade como Estratégia Evolutivamente Estável ...................... 27

4 Vivendo Para a Vida Eterna .......................................................................................... 33

4.1 Fundamentos Naturais da Ética ............................................................................. 33

4.2 A Falácia Naturalista .............................................................................................. 37

4.3 A Ética e as Emoções .............................................................................................. 39

4.4 Ética da Eternidade ................................................................................................ 45

4.5 A Ética e as Gerações Futuras (Ética Intergeracional) ........................................... 50

4.6 A Ética e o Diálogo ................................................................................................. 52

4.7 Heurística Negativa e Positiva da Ética .................................................................. 56

5 Conclusões .................................................................................................................... 60

Referências Bibliográficas ................................................................................................ 62

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1 Introdução

No presente paper, será defendido que qualquer concepção ética precisa se apegar a

alguma noção de eternidade ou, pelo menos, de uma existência temporal voltada para o

futuro. Ressalto, desde já, que a concepção de eternidade que será aqui defendida não tem

nenhum sentido teológico, espiritual ou metafísico, nem mesmo significa defender que um

ser humano pode viver para sempre enquanto indivíduo, nem que existe vida depois da morte

ou uma alma imortal capaz de sobreviver ao término da existência corporal, nem nada

parecido. Como se verá no momento oportuno, a eternidade que entendo que deve estar na

base da ética é uma mera eternidade biológica, baseada na perpetuação genética, e

funcionará não como um substituto das concepções teológicas de eternidade, mas como um

reforço para o cumprimento dos deveres éticos de longo prazo. Não se pretende especular

sobre uma ficcional e utópica vida eterna do ser humano enquanto tal, mas tão somente de

sua unidade genética, que já vem se perpetuando ao longo do tempo, como demonstram os

estudos mais recentes da biologia e da genética. Isso significa que o conceito de vida eterna

aqui adotado não englobará o organismo, mas o gene (nível micro), bem como todos os seres

vivos num nível mais macro.

Sob o aspecto prático, o desenvolvimento desse tema servirá para os seguintes

propósitos:

(a) defender que as melhores concepções éticas devem mirar conseqüências de longo

prazo, ampliando-se ao máximo o círculo de pessoas abrangidas pela rede de preocupação

ética, inclusive os membros das gerações futuras e até mesmo de outras espécies;

(b) sustentar que as concepções éticas de longo prazo bem-sucedidas são aquelas que

estimulam a cooperação entre os seres racionais e o respeito aos interesses de todos os seres

sencientes, ou seja, todos os seres capazes de sentir prazer e dor, bem como a preservação do

mundo natural e biológico para que os futuros organismos possam desfrutar de seus recursos

de forma satisfatória;

(c) sugerir alguns parâmetros objetivos de julgamento comparativo de teorias éticas

rivais, fornecendo, ainda que genericamente, algumas características negativas que nenhuma

teoria ética deveria ter, bem como algumas características positivas que as teorias éticas

deveriam perseguir.

O que me motivou a refletir sobre esse assunto foi o famoso argumento que

Dostoievski desenvolveu no seu clássico “Irmãos Karamazov”, através do personagem Ivã

Fiódorovitch, que pode ser expresso do seguinte modo: “Mas então, que se tornará o homem,

sem Deus e sem imortalidade? Tudo é permitido, por conseqüência, tudo é lícito?”. Uma

versão alternativa da mesma idéia, que é apresentada em outra passagem do mesmo livro, diz

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o seguinte: “se não há imortalidade da alma, então não há virtude, o que quer dizer que tudo

é permitido”2.

O personagem de Dostoievski tenta fazer uma ligação forte entre a idéia de

imortalidade (que é uma idéia essencialmente religiosa) e o fundamento da ética, defendendo

que, se o que vale é o aqui e agora, sem perspectivas de uma vida para além da morte, então

o melhor é viver o presente intensamente, sem outras preocupações éticas além da busca do

prazer individual imediato. “Se o amor havia reinado até o presente sobre a terra, era isto

devido não à lei natural, mas unicamente à crença das pessoas em sua imortalidade”, de sorte

que “se destruís no homem a fé em sua imortalidade, não somente o amor secará nele, mas

também a força de continuar a vida no mundo. Mais ainda, não haverá então nada de imoral,

tudo será autorizado, até mesmo a antropofagia”3.

À luz do senso comum, é possível reconhecer um fundo de verdade nessa idéia. A

esperança na existência de vida futura é um dos principais argumentos religiosos para

incentivar uma conduta ética. Muitas pessoas praticam boas ações, algumas vezes em

sacrifício de seus interesses pessoais, pensando em recompensas que receberá “no paraíso”. É

inquestionável que, se existir vida depois da morte, há muito mais motivos para seguir uma

vida virtuosa.

Mas de repente veio o Iluminismo com a sua crença na razão e na comprovação

empírica das teorias e colocou em dúvida vários dogmas religiosos previstos na Bíblia. Foi

defendido claramente que o Gênesis está errado se interpretado literalmente. O mundo não

foi feito em sete dias; o homem não surgiu do barro; a mulher não foi criada a partir da

costela de Adão; o planeta Terra não é o centro do universo; nem mesmo a Via Láctea é a

única galáxia do universo, mas apenas mais uma entre bilhões e bilhões de outras…

Ora, se as observações empíricas e a racionalidade crítica demonstraram tantos

equívocos nos dogmas religiosos contidos na Bíblia, então por que a idéia de vida eterna

também não seria falsa, já que não pode ser empiricamente comprovada?

Foi diante disso que Ivã Fiódorovitch formulou o argumento antes citado, concluindo

que tudo seria moralmente permitido sem a noção de imortalidade.

Nietzsche, com seu niilismo característico, foi ainda mais além, diagnosticando a

própria morte de Deus pela boca de Zaratustra: “Será possível que este santo ancião ainda

não ouviu no seu bosque que Deus já morreu?“. E Mais: “Noutros tempos, blasfemar contra

Deus era a maior das blasfêmias; mas Deus morreu, e com ele morreram tais blasfêmias”4.

2 DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os Irmãos Karamazov (Brátia Karamázavi, 1879). Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes.

São Paulo: Abril Cultural, 1970, pp. 81 e 580. 3 DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os Irmãos Karamazov (Brátia Karamázavi, 1879). Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes.

São Paulo: Abril Cultural, 1970, p. 67. 4 NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra (Also sprach Zarathustra, 1885). São Paulo: Martin Claret, 1999,

pp. 7 e 84.

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6 No seu “Genealogia da Moral”, Nietzsche prosseguiu no mesmo assunto, fazendo o

seguinte questionamento provocador dirigido especificamente à ética cristã e à sua fé na vida

eterna tal como prometida pela Bíblia:

“Fé em quê? Amor a quê? Esperança de quê? - Esses fracos [ou seja, os cristãos] - também eles desejam ser os fortes algum dia, não há dúvida, também o seu ‘reino’ deverá vir algum dia - chamam-no simplesmente ‘o Reino de Deus’, como vimos: são mesmo tão humildes em tudo! Para vivenciar isto é preciso viver uma vida longa, que ultrapasse a morte - é preciso a vida eterna para ser eternamente recompensado no ‘Reino de Deus’ por essa existência terrena ‘no amor, na fé, na esperança’. Recompensado pelo quê? E como?...”5.

Como se vê, a “morte de Deus”, tal como diagnosticada por Nietzsche, também teria

representado a própria morte da ética de um modo geral e da ética cristã, em particular, que

se sustentava na crença em Deus e na esperança de uma vida plena no Reino de Deus.

Diante disso, só nos resta questionar: será que ser cooperativo perdeu o sentido? Será

que seguir um estilo de vida prudente e preocupar-se com o bem-estar alheio é apenas para

“os fracos”? Será que não há mais espaço, diante da entronização do racionalismo, para uma

concepção ética baseada na solidariedade e na compaixão?

Ao longo deste estudo, será defendida uma postura otimista e conciliatória entre o

racional e o humanitário, tentando demonstrar que o pensamento racional, ao invés de

refutar as concepções éticas solidárias, pode fornecer argumentos que reforçam a

necessidade de se seguir uma vida virtuosa “de amor ao outro”. Para alcançar o objetivo

previamente estabelecido, será necessário analisar algumas questões envolvendo o

pensamento racional, a laicidade do Estado e a ética religiosa, o que se fará no próximo

tópico.

5 NIETZSCHE, Friedrich. Para a Genealogia da Moral: uma polêmica (Zur Genealogie der Moral: Eine

Streitschrift, 1887). São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 15 – os colchetes não estão no original.

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2 Ética, Religião e Razão

Para a grande maioria dos seres racionais que habitam o planeta Terra, Deus não

morreu, ao contrário do diagnóstico fúnebre de Nietzsche. E mesmo aqueles que não

acreditam em Deus não concordam com a idéia de que tudo é moralmente permitido, ao

contrário do que propôs o personagem de Dostoievski, sendo capazes de seguir uma vida

moralmente irrepreensível com base em princípios fundamentais de orientação ética6. A ética

sobrevive mesmo sem a religião, e a religião sobrevive mesmo sem comprovação empírica.

Disso se conclui que: (a) a ética tem uma base racional que ultrapassa a religião e (b) a religião

se sustenta na fé e não apenas na razão, de modo que a razão dificilmente “destruirá” a

religião.

O enaltecimento da razão pelo Iluminismo não foi capaz de substituir a fé em Deus por

uma fé na razão. Apesar disso, o projeto iluminista não foi um fracasso total. Pelo contrário. A

razão ganhou muito prestígio e ocupou vários espaços, inclusive espaços estratégicos para a

vida em sociedade, como o espaço estatal, que antes era ocupado pela religião. O princípio da

laicidade do Estado é a maior demonstração desse fenômeno. Esse princípio estabelece uma

clara separação entre o Estado e a Religião, exigindo neutralidade religiosa por parte das

autoridades estatais na tomada de decisões oficiais.

2.1 A Laicidade do Estado, o Direito Positivo e a Ética Religiosa

Apesar da adoção quase generalizada do princípio da laicidade do Estado pelos países

ocidentais e até mesmo por alguns países orientais, ainda há um forte vínculo entre o direito

estatal e os valores religiosos. Muitas leis pelo mundo afora inspiram-se em concepções

religiosas bastante conhecidas, como o princípio da sacralidade da vida humana, por exemplo,

que ainda exerce influência na legislação relativa ao aborto ou à eutanásia, embora tenha

entrado em declínio nos últimos anos.

Essa relação entre o direito positivo e a ética religiosa não deveria causar tanta

estranheza, pois tanto o direito quanto a religião são instrumentos éticos desenvolvidos pela

6 Até mesmo um filósofo católico como Hans Küng admite tal fato. Para ele: “é incontestável, de um ponto de

vista antropológico, o fato de muitos indivíduos não religiosos formularem e possuírem objetivos, prioridades, valores e normas, ideais e modelos, critérios para destrinçar o verdadeiro do falso como princípios básicos”. E mais: “é irrefutável, sob uma perspectiva filosófica, que ao Homem cabe, enquanto ser racional, uma verdadeira autonomia – autonomia essa que lhe permite, sem crer na existência de Deus, sentir uma confiança fundamental na realidade e apreender o seu grau de responsabilidade no mundo: uma auto-responsabilização e uma responsabilização perante o mundo” (KÜNG, Hans. Projecto para Uma Ética Mundial (Projekt Weltethos, 1990). Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços. Lisboa: Piaget, 1996, p. 75/76).

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razão humana para proporcionar uma vida melhor em sociedade. O direito e a religião

compartilham, muitas vezes, os mesmos propósitos éticos e convergem em vários pontos

importantes. Os princípios éticos mais básicos (não matar, não agredir, não mentir, não

roubar, cumprir os pactos etc.) continuam sendo o alicerce do direito contemporâneo e

surgiram originalmente como princípios religiosos, estando presentes nos textos sagrados

mais conhecidos. Por isso, ainda que os argumentos religiosos não se misturem (ou pelo

menos não deveriam se misturar) com os argumentos jurídico-políticos, tal como determina o

princípio da laicidade, sempre haverá uma confusão teleológica entre esses dois instrumentos

da ética, de modo que, na prática, será quase impossível distinguir seus fundamentos.

Vale citar um exemplo para reforçar esse argumento.

A caridade é um dos principais princípios éticos do cristianismo. É certo que quase

todas as religiões, de algum modo, pregam a caridade, mas o cristianismo fez da caridade uma

bandeira central de sua doutrina. Ora, mas se a caridade é um princípio ético de natureza

originalmente religiosa, então, nenhuma lei poderia estimular a caridade caso o princípio da

laicidade do Estado fosse levado às últimas conseqüências. Essa conclusão seria absurda, pois

a caridade é, sem dúvida, um comportamento ético que merece ser estimulado pelo Estado

por meio de políticas públicas que incentivem a sua prática, pouco importando se a sua

origem é religiosa ou não. Existem razões fortes para acreditar que as sociedades que

praticam a caridade são mais coesas e, por isso, mais estáveis, e os seus membros mais felizes.

Desse modo, ainda que se reconheça a importância do princípio da laicidade do

Estado, não há o menor sentido em defender um racionalismo radical em matéria de

legislação, pois: (a) separar o estritamente racional do estritamente religioso não é fácil nem

útil, podendo levar a um embate desnecessário entre dois instrumentos éticos que, na

maioria das vezes, possuem objetivos comuns e se reforçam mutuamente no papel de

estímulo à prática de comportamentos eticamente desejáveis7; (b) o próprio racionalismo

radical é insuficiente para solucionar todos os problemas da vida, já que as explicações

racionais são apenas tentativas sempre provisórias de descrever a realidade e, portanto,

sujeitas ao erro8, de modo que a crença na razão não deixa de ser também, em certo sentido,

um ato de fé; (c) há muitos princípios éticos de natureza religiosa que também são racionais,

7 Isso não significa reconhecer que o direito e a religião sempre cumprem esse papel de realizar objetivos éticos.

Como qualquer produto cultural, tanto a religião quanto o direito podem ser manipulados para fins pouco nobres e o são com muita freqüência. 8 Karl Popper, um dos maiores filósofos da ciência do século XX, foi um dos primeiros pensadores a reconhecer

que existe uma semelhança entre as explicações científicas da modernidade e as explicações mitológicas da era pré-socrática. A diferença básica é que as explicações científicas estimulam o debate crítico e racional, permitindo a evolução do conhecimento, enquanto que os mitos se baseavam no dogmatismo e, por isso, não podiam ser refutados. Porém, mesmo o conhecimento científico, por mais refinado que seja o seu método e os seus argumentos explicativos, descreveria apenas uma verdade meramente provisória, pois nunca se poderá ter certeza se uma teoria científica corresponde com perfeição à realidade (POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações (Conjectures and Refutations, 1963). Coimbra: Almedina, 2006).

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pois podem ser justificados com consistência e coerência, inclusive com comprovação

empírica9.

O grande significado do princípio da laicidade do Estado não é repudiar a religião ou

estabelecer um anti-clericalismo, como se fosse possível estabelecer uma linha de separação

absoluta entre o direito positivo e as crenças baseadas na fé. O principal objetivo do princípio

da laicidade é o de exigir que os agentes públicos de um modo geral não invoquem dogmas

religiosos na fundamentação de suas decisões, nem favoreçam ou prejudiquem nenhuma

concepção religiosa em específico. Do mesmo modo, o referido princípio tem a força de

justificar o reconhecimento da inconstitucionalidade de leis baseadas em dogmas religiosos

destituídos de racionalidade, se, efetivamente, a sua irracionalidade for manifesta. Mas isso

não significa que toda legislação que possa ter sido influenciada por concepções religiosas seja

necessariamente inconstitucional. A inconstitucionalidade de uma determinada lei, em

virtude do princípio da laicidade do Estado, deverá ser aferida à luz da irracionalidade e das

suas conseqüências sociais danosas e não da religiosidade em si. A título ilustrativo, pode-se

citar o mandamento bíblico “não matarás”, que corresponde basicamente às leis criminais

que condenam o homicídio. Apesar de sua origem religiosa, nem por isso a condenação

normativa do homicídio viola o princípio da laicidade do Estado, já que está alicerçada em

fundamentos racionais sólidos, uma vez que nenhuma sociedade é capaz de sobreviver se

permitir que os seus membros se matem uns aos outros sem restrições. Por outro lado, uma

lei que proibisse o uso de anticoncepcionais com base em valores de índole religiosa ou uma

lei que condenasse o homossexualismo com base em interpretações do texto bíblico seriam

9 Em um sentido semelhante, mas muito mais confiante na importância da religião do que a aqui defendida, João

Loureiro sustenta que “é indubitável que o cristianismo traz um suplemento de fundamentação e um suplemento de motivação, importante quando se sabe que os direitos fundamentais dependem do cumprimento não apenas de um conjunto de pressupostos, mas também de expectativas constitucionais. Além disso, em sociedades plurais, o cristianismo contribui também para um suplemento de explicitação e densificação do texto constitucional, sendo legítima a mobilização de seus argumentos na esfera pública, apesar das vozes em contrário que, cegamente, continuam a fazer equivaler religioso e irracional, religioso e pura subjetividade (LOUREIRO, João Carlos. Pessoa, Dignidade e Cristianismo. in: Jorge de Figueiredo DIAS/ José Joaquim Gomes CANOTILHO/ José de Faria COSTA (Org.), ARS IVDICANDI: Estudos em homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, vol. I: Filosofia, teoria e metodologia, Coimbra, 2008, p. 695). Consigno, contudo, a minha discordância quanto à afirmação “sendo legítima a mobilização dos seus argumentos na esfera pública”, pois, na minha ótica, isso se choca com o princípio da laicidade. Os princípios religiosos que possam ser justificados racionalmente podem até fazer parte da argumentação jurídico-política na esfera pública, mas sem a roupagem religiosa. Os agentes estatais não devem invocar textos sagrados para justificar qualquer ponto de vista, pois, ainda que esses argumentos entrem na discussão como um mero topoi argumentativo como outro qualquer, passível de crítica e de refutação, muitos poderão enxergar nessa postura a defesa de um dogma, e isso certamente retira parte da legitimidade da decisão, pois o público tem uma expectativa de que as decisões estatais devem ser tomadas com base em dados estritamente racionais. Isso não significa dizer que os princípios religiosos são todos irracionais, mas apenas que invocar a religião num debate público pode atrapalhar a busca de uma racionalidade desejável e possível na fundamentação dos atos públicos.

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certamente inconstitucionais, por violarem, entre outras normas, o princípio da laicidade do

Estado10.

2.2 Ética Religiosa versus Ética Laica

Além de afetar o espaço estatal, o Projeto Iluminista também afetou o espaço

acadêmico, que passou a ser ocupado, em grande medida, pelo pensamento racional. Nas

ciências naturais (física, biologia, neurociência etc.), falar em “Deus” virou ironicamente uma

espécie de pecado intelectual. Aqueles que defendem uma concepção religiosa do mundo ou

da vida em uma reunião de biólogos ou de físicos correm um grande risco de serem ignorados

ou até mesmo ridicularizados pela comunidade científica11.

No campo da ética, por outro lado, vive-se um período híbrido, em que o racional

tenta conviver com o religioso. É uma convivência ainda não muito bem definida: há muitos

acordos, mas também muitos desacordos. Infelizmente, os desacordos costumam ser

superdimensionados pelo discurso acadêmico, gerando uma falsa sensação de que o diálogo

cordial e o consenso são inalcançáveis, o que não é de todo verdadeiro. A ética laica e a ética

religiosa podem sim conviver harmonicamente, ainda que possam ocorrer choques pontuais

típicos de qualquer debate.

Provavelmente, foram os gregos que deram início à separação da ética e da religião.

Sócrates deixou isso muito claro quando disse que as obrigações éticas são boas por si

mesmas antes de terem sido ordenadas pelos deuses. Essa idéia está no diálogo platônico

Eutífron, que foi talvez a primeira tentativa de demonstrar que as normas religiosas são

instrumentos da ética e não o contrário.

Porém, na Idade Média, a ética voltou a confundir-se com a religião através da densa

filosofia moral de Agostinho de Hipona e de Tomás de Aquino, que ainda hoje orientam as

diretrizes éticas mais relevantes da Igreja Católica e ainda exercem alguma influência na

10

Os dois exemplos referem-se a conhecidos julgamentos realizados pela Suprema Corte dos Estados Unidos: o Caso Griswold v. Connecticut (1965) e o Caso Lawrence v. Texas (2003). No primeiro, foi reconhecida a inconstitucionalidade de uma lei estadual que proibia a comercialização de anticoncepcionais. No segundo, foi reconhecida a inconstitucionalidade da lei texana que punia criminalmente o homossexualismo. 11

O documentário norte-americano “Expelled: no intelligence allowed” (2008) retratou satiricamente a perseguição sofrida nos Estados Unidos pelos acadêmicos que defendem o chamado “Intelligent Design”, que é uma teoria alternativa ao evolucionismo de Darwin, com alguma influência religiosa, ainda que seus adeptos neguem essa influência. Apesar de o filme ter um viés sensacionalista com fortes propósitos ideológicos e, por isso, conter algumas informações incompletas e equivocadas acerca da teoria da evolução, não se pode negar que surtiu o efeito desejado que era apontar a discriminação sofrida por cientistas que ousaram criticar o evolucionismo. Uma visão geral da polêmica gerada pelo filme pode ser conferida no seguinte endereço eletrônico: http://en.wikipedia.org/wiki/Expelled. Vale ressaltar que o sensacionalismo e a deturpação de informações também está presente no discurso dos darwinistas, bastando citar, por todos, o livro “Deus, um delírio”, de Richard Dawkins, que iniciou uma guerra ideológica entre a ciência e a religião totalmente desnecessária e infrutífera.

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política legislativa estatal de diversos países. A existência de Deus é um ponto-chave tanto na

ética de Santo Agostinho quanto de Santo Tomás de Aquino.

Com o Renascimento e, mais intensamente, com o Iluminismo, que provocaram a crise

e o enfraquecimento da religião medieval, os filósofos passaram a tentar encontrar um

suporte de racionalidade nas normas éticas independentemente da vontade de Deus. A

filosofia kantiana talvez seja o exemplo mais notável desse projeto.

2.2.1 Immanuel Kant

Immanuel Kant construiu um elaborado modelo ético em que cada ser racional/moral

seria auto-legislador de si próprio12. A dignidade do ser racional estaria na sua capacidade de

não obedecer a outra lei senão àquela que ele mesmo elabora. A ação moral condizente com

o imperativo categórico kantiano seria a que pudesse se universalizar, ou seja, que pudesse se

tornar uma norma geral de conduta para qualquer pessoa que estivesse naquelas mesmas

condições.

O que move (ou deveria mover) o ser humano a agir moralmente é a sua boa vontade,

que constitui “a condição indispensável do próprio fato de sermos dignos de felicidade” (p.

22). Para Kant, de nada vale ter discernimento, capacidade de raciocínio, caráter,

autodomínio, moderação nas emoções e nas paixões, calma etc., se a intenção do agente não

for boa. Afinal, todas as grandes qualidades de um indivíduo podem gerar conseqüências

perversas se não forem dirigidas pela boa vontade13. E a vontade absolutamente boa é aquela

que, ao transformar-se em lei universal, não pode nunca se contradizer: “age segundo

máximas que possam simultaneamente ter a si mesmas por objeto como leis universais da

natureza” (p. 85), eis o primeiro imperativo categórico formulado por Kant. Categórico porque

é incondicional, ou seja, não depende nem de “mas”, nem de “se”. Deve ser cumprido em

todas as circunstâncias e ponto final.

É nesse contexto que Kant desenvolve o conceito de Dever, que conteria em si o de

boa vontade. Uma ação somente será considerada como moralmente boa se for praticada por

12

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008. As citações deste tópico foram extraídas do referido livro, salvo indicação em contrário. 13

Pode-se aqui fazer um paralelo com os agentes do nazismo e o modelo de vida por eles defendido. Os nazistas eram portadores de várias qualidades que podem ser consideradas como virtuosas, como a coragem, a disciplina, o autocontrole, honra etc. No entanto, seus objetivos não eram nada virtuosos, de modo que os valores nazistas perderam completamente a sua importância ética, justamente por não serem movidos por uma boa vontade. Sobre isso, Kant certamente diria: “com efeito, sem os princípios duma boa vontade, podem elas [as qualidades dos indivíduos] tornar-se muitíssimo más, e o sangue-frio dum facínora não só o torna muito mais perigoso como o faz também imediatamente mais abominável ainda a nossos olhos do que o julgaríamos sem isso” (p. 22).

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dever. A ação moral kantiana deveria ser totalmente descompromissada. O único sentimento

que deveria guiar o agente moral seria o sentimento de dever.

Como se vê, na formulação kantiana, a religião não se torna necessária, ainda que Kant

invoque a idéia de Deus em diversas passagens de sua “Fundamentação da Metafísica dos

Costumes”. Quem age pensando em recompensas ou castigos divinos (o paraíso ou o inferno)

não estaria agindo moralmente segundo Kant.

A boa vontade seria boa em si mesma, independentemente das conseqüências que

promove ou realiza14. Daí se diz que a ética kantiana é deontológica, ou seja, não se preocupa

com as conseqüências da ação, mas apenas com o seu fundamento. Pode o mundo ruir, mas

se a sua ação foi guiada pela boa vontade, então você fez o certo, já que o valor moral da ação

não reside nos efeitos que dela se espera. A ética kantiana é, portanto, uma ética da

convicção.

O dever moral, segundo Kant, é um dever puro, imaculado, beatificado pela razão e só

pela razão. Até mesmo o conceito de Deus como bem supremo seria um produto “da idéia

que a razão traça a priori da perfeição moral e que une indissoluvelmente ao conceito de

vontade livre” (p. 45). Portanto, na filosofia kantiana, Deus é substituído pela razão: a

dignidade do homem consiste na sua capacidade de pensar por si próprio e de tomar as

decisões que afetam a sua vida com autonomia.

A razão, que é compartilhada igualmente por todos os seres humanos, é o principal

ingrediente da ética kantiana: “Ouse pensar” (“Sapere audere”), sugeria o filósofo alemão.

Para Kant, a pessoa que, por comodidade, opta por renunciar à capacidade de pensar por si

próprio é um covarde que pode ser equiparado a um animal domesticado. Por isso, ele

conclamava as pessoas a exercerem um senso crítico para pensar e tomar decisões com

autonomia, fugindo da preguiça intelectual de sempre seguir passiva e acriticamente a

orientação de outras pessoas15. Essa idéia sintetiza a base da concepção ética de Kant que,

como se vê, se distancia das concepções éticas religiosas, que recomendam a incondicional

obediência aos mandamentos divinos. Enquanto a religião recomenda a observância dos

14

Eis suas palavras: “Ainda mesmo que por um desfavor especial do destino, ou pelo apetrechamento avaro duma natureza madrasta, faltasse totalmente a esta boa vontade o poder de fazer vencer as suas intenções, mesmo que nada pudesse alcançar a despeito de seus maiores esforços, e só afinal restasse a boa vontade (é claro que não se trata aqui de um simples desejo, mas sim do emprego de todos os meios de que as nossas forças disponham), ela ficaria a brilhar por si mesma como uma jóia, como alguma coisa que em si mesma tem o seu pleno valor. A utilidade ou a inutilidade nada podem acrescentar ou tirar a este valor. A utilidade seria apenas como que o engaste para essa jóia poder ser manejada mais facilmente na circulação corrente ou para atrair sobre ela a atenção daqueles que não são ainda bastante conhecedores, mas não para a recomendar aos conhecedores e determinar o seu valor” (KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 23). 15

Essa idéia foi desenvolvida no texto “Resposta à Pergunta “O que é Iluminismo?”, que pode ser encontrado em: KANT, Immanuel. A Paz Perpétua e Outros Ensaios. Tradutor: Artur Morão Lisboa: Edições 70, 2002, pp. 11-19.

Page 13: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

13

preceitos divinos como um ato de fé, sem críticas e questionamentos, Kant coloca a sua fé na

razão, ou seja, na capacidade de os indivíduos, por si próprios, encontrarem as melhores

respostas éticas.

O homem, e, de uma maneira geral, todo o ser racional “existe como um fim em si

mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”16. Daí o segundo

imperativo kantiano: “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como

na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente

como meio”17. A dignidade da humanidade consiste precisamente “nesta capacidade de ser

legislador universal, se bem que com a condição de estar ao mesmo tempo submetido a essa

mesma legislação” (p. 89).

Graças a Kant, a filosofia moral passou por uma profunda revolução nas suas bases e

no seu desenvolvimento, pois se percebeu que é possível construir uma noção de ética bem

fundamentada sem apelar para argumentos religiosos.

Depois de Kant, veio John Stuart Mill, que talvez seja um dos mais influentes filósofos

morais no ocidente até os dias de hoje. Suas idéias não apenas são discutidas no meio

acadêmico, como também se transformaram na política oficial de vários países de feição

liberal, com particular destaque para os EUA. Várias decisões judiciais da Suprema Corte

norte-americana seguem, explícita ou implicitamente, as idéias de Stuart Mill18. Em razão

disso, vale analisar com mais atenção o pensamento ético deste notável filósofo inglês.

2.2.2 John Stuart Mill

Stuart Mill também defende com fervor a idéia de autonomia da vontade. Para ele,

cada um deve ser senhor de si próprio, tomando as decisões que lhe afetam com autonomia e

responsabilidade. Mill foi um dos primeiros filósofos a estender as suas conclusões também

para as mulheres: assim como os homens, as mulheres também deveriam ser “senhoras de

si”, não devendo se sujeitar aos caprichos dos seus maridos ou dos seus pais, uma idéia

explosiva para época (século XIX) e certamente contrária à doutrina oficial da maioria das

religiões até então dominantes. Eis suas fortes palavras:

“o princípio que regula as relações sociais existentes entre os sexos – a subordinação legal de um sexo a outro – está errado em si mesmo e, portanto, é um dos

16

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 71. 17

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 73. 18

Podem-se citar, por exemplo, várias decisões em matéria de liberdade de expressão, de igualdade de gêneros e de autonomia da vontade em que foram invocados argumentos desenvolvidos originalmente por Stuart Mill. Os casos mais relevantes julgados pela Suprema Corte norte-americana, envolvendo essas temáticas, seguem, em alguma medida, as idéias liberais de Mill.

Page 14: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

14

principais obstáculos para o desenvolvimento humano; tal subordinação deveria ser substituída por um princípio de igualdade perfeita, sem qualquer poder ou privilégio para um lado e incapacidade para o outro”19.

No pensamento de Mill, a importância conferida à autonomia da vontade não se

restringe ao âmbito da filosofia moral. A liberdade de escolha também – e sobretudo –

deveria ser tornar a diretriz política oficial, ou seja, os Estados deveriam respeitar a autonomia

da vontade dos indivíduos sempre que o seu exercício não prejudicasse outras pessoas: “O

único objetivo legítimo do poder sobre qualquer membro da comunidade civilizada, contra a

sua vontade, é evitar que outros sejam prejudicados”. Para ele, as escolhas pessoais de cada

um, desde que tomadas de forma verdadeiramente livre e que não fossem prejudiciais aos

interesses dos outros, não deveriam sofrer interferências indevidas nem do Estado nem da

sociedade como um todo20.

John Stuart Mill se distancia de Kant em um ponto fundamental: Mill se preocupa com

as conseqüências das ações. Para ele, influenciado por Jeremy Bentham, na aferição da

qualidade moral de uma determinada conduta, seria mais importante verificar os resultados

(exteriores e objetivos) produzidos por essa ação ao invés de um mero sentimento subjetivo

de dever, tal como sustentado por Kant. Enquanto a filosofia kantiana é deontológica, a de

Mill é utilitarista. Para Kant, o que vale é a intenção do agente; para Mill, as conseqüências da

ação, ou seja, a qualidade moral de uma ação é julgada com base na quantidade de felicidade

que foi maximizada com aquele ato, incluindo também a prevenção ou redução da

infelicidade, que é um objetivo menos quimérico do que a busca da felicidade.

Desse modo, uma ação é moral, conforme Mill, se maximizar a felicidade tanto quanto

possível:

“Toda ação visa um fim qualquer, e as regras da ação, parece natural supor, devem adquirir todo o seu caráter e orientação do fim ao qual estão subordinadas. (...)

As ações são corretas na medida em que tendem a promover a felicidade, e incorretas na medida em que tendem a gerar o contrário da felicidade. Por felicidade entendemos o prazer, e a ausência de dor; por infelicidade, a dor, e a privação do prazer”21.

Com base nessas premissas, o utilitarismo desenvolveu o princípio da maior felicidade,

que seria o fim último da ética. Afinal, se todos desejam “uma existência tanto quanto

possível isenta de dor e tão rica quanto possível em prazeres, tanto em qualidade quanto em

quantidade”, então este também deve ser o “padrão da moralidade”, que deveria ser, na sua

máxima extensão, garantida a toda a humanidade e “não apenas à humanidade, mas, na

medida em que a natureza das coisas o permitir, a todas as criaturas sencientes” (p. 44/45).

19

MILL, Stuart. A Sujeição das Mulheres (The Subjection of Woman, 1869). São Paulo: Escala, 2006, p. 15. 20

MILL, Stuart. Ensaio sobre a Liberdade (On Liberty, 1859). São Paulo: Editora Scala, 2006. 21

MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 44 e 51. As citações seguintes, deste tópico, são do mesmo livro, salvo indicação em contrário.

Page 15: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

15 É preciso enfatizar que a felicidade que constitui o padrão da moralidade na ótica

utilitarista não é a felicidade do agente, mas de todos os envolvidos: “O utilitarismo exige que

o agente seja tão estritamente imparcial entre a sua própria felicidade e a dos outros como

um espectador desinteressado e benevolente” (p. 64).

A preocupação com os interesses dos outros está bastante presente na ética

utilitarista de Stuart Mill. Para ele, “desde que estejam a cooperar, os seus fins estão

identificados com os dos outros; existe pelo menos um sentimento temporário de que os

interesses dos outros são os seus próprios interesses”. Por isso,

“O fortalecimento dos laços sociais, e todo o crescimento saudável da sociedade, não dá apenas a cada indivíduo um interesse pessoal mais forte na consulta efetiva do bem-estar dos outros; leva-o também a identificar cada vez mais os seus sentimentos com o bem deles ou, pelo menos, com um grau ainda maior de consideração prática por esse bem. Como que por instinto, o indivíduo ganha consciência de si próprio como um ser que obviamente se preocupa com os outros. O bem dos outros torna-se para ele um coisa à qual se tem de dar atenção, natural e necessariamente, como a qualquer dos estados físicos da nossa existência (...). Num estado de aperfeiçoamento da mente humana, as influências que tendem a gerar em cada indivíduo um sentimento de unidade com todos os outros estão em aumento permanente; sentimento que, se perfeito, faria o indivíduo nunca pensar em qualquer condição benéfica para si mesmo, ou desejá-la, caso não estivessem todos incluídos no seu proveito” (p. 85 e 86)22.

Costuma-se dizer que as teorias utilitaristas são maquiavélicas, ou seja, aceitam todos

os meios para que os seus fins sejam alcançados. Essa acusação certamente não pode se

aplicar ao pensamento de Stuart Mill, que entende que aquele que pratica o mal pensando

em receber algum benefício imediato para si ou para outrem “desempenha o papel de um dos

piores inimigos da humanidade” (p. 44 e 64). Até mesmo a Idéia de justiça e de direitos

desempenha um papel importante no utilitarismo de Mill. Eis suas palavras:

“Embora ponha em causa as pretensões de qualquer teoria que estabeleça um padrão imaginário de justiça não baseado na utilidade, considero que a justiça que fundada na utilidade a parte principal, e incomparavelmente a mais sagrada e vinculativa, de toda a moralidade. (...)

As regras morais que proíbem os seres humanos de fazer mal uns aos outros (nas quais nunca devemos esquecer-nos de incluir a interferência incorreta na liberdade uns dos outros) são mais vitais para o bem-estar humano do que quaisquer máximas, por mais importante que sejam, que apenas indiquem a melhor forma de gerir um dado setor da vida humana. (...)

É a observância destas regras morais que, só por si, preserva a paz entre os seres humanos. Se a obediência a elas não fosse a regra, e a desobediência a exceção, cada um

22

Stuart Mill, numa visão bastante avançada para a época, já anteviu as vantagens biológicas de um tal sentimento de empatia: “Graças à sua inteligiência superior, mesmo sem ter em conta o maior alcance da sua empatia, um ser humano é capaz de dar-se conta da comunidade de interesses entre si e a sociedade humana da qual faz parte, de tal forma que qualquer conduta que ameace a segurança da sociedade em geral é ameaçadora para a sua própria segurança e desperta o instinto (se é que é um instinto) de autodefesa. A mesma superioridade de inteligência, aliada à possibilidade de sentir empatia para com os seres humanos em geral, permite-lhe ligar-se à idéia coletiva da sua tribo, do seu país, ou da humanidade, de tal maneira que qualquer ato prejudicial para eles desperta o seu instinto de empatia, e insta-o a resistir” (p. 112).

Page 16: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

16

veria em todos os outros um provável inimigo, contra o qual teria de se manter permanentemente em guarda” (p. 122).

Poderiam ser formuladas algumas críticas tanto à filosofia moral de Kant quanto à de

Mill, mas isso não importa neste momento. O que se pretende destacar é que também a

filosofia moral de Stuart Mill é laica, ainda que não seja ímpia23. Não há qualquer invocação da

vontade divina como fundamento das normas éticas. Para Mill, as pessoas gostam de sentir

prazer. Logo, a conduta ética é aquela que maximiza o prazer do maior número de pessoas

possíveis. E o que move o ser racional a agir moralmente não é a obediência cega aos

mandamentos divinos, mas a busca do prazer (ou a prevenção da dor) para si e para os

outros.

2.3 A Filosofia Moral Contemporânea

É lógico que nem Kant nem Mill são a última palavra em matéria de ética, pois se há

uma coisa que os dois ensinam é que a razão nos fornece instrumentos para questionar tudo,

inclusive as suas próprias teorias. Se até mesmo as doutrinas éticas de matriz religiosa podem

ser colocadas em dúvida pelo pensamento crítico, com muito mais razão as doutrinas laicas

também devem ser analisadas com o máximo rigor, até porque os seres humanos, por mais

brilhantes que sejam, são falíveis e dispõem de uma quantidade muito limitada de

informações para basear suas conclusões.

Ao contrário do que muitos pensam, a ética evolui, assim como qualquer produto

cultural pode evoluir na medida em que o conhecimento vai se acumulando. É possível

observar que a ética, pelo menos na teoria, está evoluindo a passos largos, ainda que as

evidências da realidade demonstrem o contrário. A destruição dos valores morais nesses

tempos de individualismo egoísta, motivada por uma ganância de lucros materiais sem

qualquer propósito, não deve gerar a falsa sensação de que a filosofia moral está em declínio.

Não está. Há muitos estudos de altíssimo nível sendo produzido no campo da ética. Aliás, o

avanço da ética talvez seja até um sintoma dessa patologia dos valores da nossa atual

sociedade. E o curioso é que esse fenômeno vale tanto para a ética laica quanto para a ética

religiosa, que também tem ressurgido com muita força, inclusive no meio acadêmico. Basta

ver, por exemplo, os escritos de Alasdair MacIntyre para perceber esse fenômeno24.

23

Mill defende o utilitarismo da acusação de ser uma teoria ímpia com os seguintes argumentos: “caso seja verdade a crença de que Deus deseja, acima de todas as coisas, a felicidade das suas criaturas, e que esse foi o seu propósito ao criá-las, a utilidade não só não é uma doutrina ímpia, como é mais profundamente religiosa do que qualquer outra” (p. 70). 24

MacIntyre, que já foi marxista, abraçou a ética das virtudes com confessada influência da Igreja Católica e, hoje, é um ardoroso defensor de uma filosofia moral de índole religiosa e, ao mesmo tempo, racional. Ao criticar a concepção ética da modernidade, de feição liberal e individualista, ele tenta resgatar a ética das virtudes, proposta inicialmente por Aristóteles e abraçada posteriormente por Tomás de Aquino, defendendo a criação de

Page 17: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

17 Outro filósofo moral com inspiração religiosa que vem se destacando é o teólogo suíço

Hans Küng, sacerdote da Igreja Católica25. No seu “Projeto para uma Vida Ética”, Küng

defende a união de todas as religiões para tentarem construir, a partir de um diálogo

ecumênico, um ethos mundial para toda a humanidade como referência de base, pois “a

sociedade mundial não carece, na realidade, de uma religião ou de uma ideologia únicas ou

unificadas, mas sim de determinadas normas, valores, ideais e objetivos de caráter

vinculativo”26. Nesse processo, como se vê, a religião tem um papel de grande importância,

ainda que movida por um sentimento baseado numa fé racional.

Para Küng, a religião teria uma dupla face:

“as religiões podem de fato ser tirânicas, autoritárias e, na verdade, foram-no vezes de mais: podem gerar o medo, a mesquinhez, a intolerância, a injustiça, a frustração e a abstinência social; podem legitimar e inspirar a imoralidade, deficiências sociais e guerras no interior de uma nação ou entre nações;

As religiões podem também atuar de forma libertadora numa perspectiva orientada para o futuro e humanizada, e já o fizeram também diversas vezes; podem difundir um sentimento de confiança na vida, de generosidade, tolerância, solidariedade, criatividade, empenhamento social e podem ainda impulsionar um renascimento espiritual e a paz mundial”27.

Küng acredita numa união entre as religiões, pois, na sua percepção, todas elas, por

mais perplexamente divergentes que sejam quando confrontadas umas com as outras,

respondem a questões fundamentais semelhantes dos seres humanos. E todas elas

proporcionam, além de interpretações do mundo, “caminhos para a salvação semelhantes:

caminhos para escapar – através de um agir com sentido e consciente das responsabilidades

dos homens nesta vida – às miséria, ao sofrimento e à culpa inerentes à existência humana,

pequenas comunidades locais onde esses valores podem florescer. Suas principais idéias estão nos livros: “After Virtue”, “Whose Justice? Which Rationality?”, “Three Rival Versions of Moral Enquiry” e “Dependent Rational Animals”, que compõem aquilo que se convencionou chamar de “Projeto After Virtue”. Para uma versão geral do pensamento do referido autor: GONÇALVES, João Pedro. O Horizonte da Justiça em Alasdair MacIntyre. Braga: Universidade Católica Portuguesa, 2007. A página acadêmica de Alasdair MacIntyre é: http://www.nd.edu/~ndethics/about/macintyre.shtml. 25

Hans Küng, que foi ordenado sacerdote em 1954, se auto-intitula teólogo ecumênico, já que defende um pluralismo religioso onde todas as religiões possam contribuir para a paz mundial. Em 1979, Küng perdeu a licença concedida pela Igreja Católica para lecionar teologia em seu nome, por haver criticado o dogma da infalibilidade papal no livro “Infallible? An Inquiry”, publicado em 1970. Continuou lecionando em Tübingen até a sua aposentadoria em 1996 e sempre defendeu idéias polêmicas, como o fim da obrigatoriedade do celibato clerical e uma maior participação laica e feminina na Igreja Católica. No campo da ética, tem defendido um “Projeto para Uma Ética Mundial”, já que é impossível sobreviver em um ethos mundial (KÜNG, Hans. Projecto para Uma Ética Mundial (Projekt Weltethos, 1990). Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços. Lisboa: Piaget, 1996). (Wiki: http://en.wikipedia.org/wiki/Hans_K%C3%BCng). 26

KÜNG, Hans. Projecto para Uma Ética Mundial (Projekt Weltethos, 1990). Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços. Lisboa: Piaget, 1996, p. 11. 27

KÜNG, Hans. Projecto para Uma Ética Mundial (Projekt Weltethos, 1990). Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços. Lisboa: Piaget, 1996, p. 89. Vale ressaltar que Hans Küng, apesar de ser sacerdote da Igreja Católica, é bastante crítico quanto a alguns posicionamentos de sua igreja e defende abertamente esse tipo de auto-crítica como forma de engrandecimento interno. Para ele, “o Vaticano, a última monarquia absolutista da Europa, não só ainda não subscreveu a Declaração dos Direitos Humanos do Conselho da Europa, como também tem necessidade ainda de levar a cabo uma Glasnost e uma Perestroika” (p. 156).

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18

em busca de uma salvação duradoura, permanente, eterna...”28. Daí, conclui que “a vida

humana em sociedade é impossível sem um ethos mundial de todas as nações; é impossível

haver paz entre as nações sem paz entre as religiões; é impossível haver paz entre as religiões

sem diálogo entre as religiões”29.

Apesar do ressurgimento do interesse acadêmico pela ética religiosa, é possível

perceber que, na esteira de Kant e de Mill, a ética laica também continua ganhando cada vez

mais espaço e tende a se desenvolver ainda mais em razão do acúmulo de conhecimento e de

troca de experiências que a tecnologia da informação proporciona. A globalização também

tem seu lado bom: permitir um intercâmbio universal de idéias, possibilitando uma

aproximação ainda que virtual de todos os seres humanos.

Um dos principais responsáveis pela evolução contemporânea da ética prática não-

religiosa é, sem dúvida, o polêmico filósofo australiano Peter Singer30.

Singer ficou famoso por sua defesa do direito dos animais, cuja argumentação principal

foi desenvolvida no livro “Libertação Animal”. Para ele, a dor é má seja quem for aquele que

sofre, razão pela qual deve ser evitada e minimizada independentemente da raça, do sexo ou

da espécie do indivíduo que sofre. Como os seres humanos não são os únicos seres capazes de

sentir dor ou de sofrer, o sofrimento dos animais também deveria ser levado em conta em

qualquer concepção ética, razão pela qual devemos trazer os animais não-humanos para o

interior de nossa esfera de proteção moral. Não podemos ignorar eticamente os interesses de

outros seres apenas por eles não serem membros da nossa espécie. Por isso, Singer defendeu

a prevenção do sofrimento e do suplício dos animais; combateu a discriminação arbitrária por

motivo de espécie (especismo31); e lutou ativamente contra o sofrimento desnecessário e a

exploração sofrida pelos animais, pois, na sua ótica, a posse de um grau superior de

inteligência não conferiria a um ser humano o direito de tratar outros seres (humanos ou não-

humanos) somente como um meio para atingir os seus fins32.

28

KÜNG, Hans. Projecto para Uma Ética Mundial (Projekt Weltethos, 1990). Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços. Lisboa: Piaget, 1996, p. 225 – os destaques não constam no original. 29

KÜNG, Hans. Projecto para Uma Ética Mundial (Projekt Weltethos, 1990). Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços. Lisboa: Piaget, 1996, p. 241. 30

Página acadêmica: http://www.princeton.edu/~psinger/ 31

O especismo consiste em um preconceito ou em uma atitude tendenciosa em relação aos interesses dos membros de nossa própria espécie em detrimento dos interesses dos membros de espécies diferentes. “Os racistas violam o princípio da igualdade atribuindo maior peso aos interesses dos membros de sua própria raça quando se verifica um choque entre estes interesses e os interesses de uma outra raça. Os sexistas violam o princípio da igualdade favorecendo os interesses do próprio sexo. De modo similar, os especitas permitem que os interesses da sua própria espécie se sobreponham e anulem os interesses maiores de outras espécies. O padrão repete-se em cada um destes casos” (SINGER, Peter. Escritos sobre uma Vida Ética (Writings on na Ethical Life, 2000). Trad. Pedro Galvão, Maria Teresa Castanheira e Diogo Fernandes. Lisboa: Dom Quixote, 2008, p. 50). 32

Singer escreveu essas idéias nos anos 1970 e é notável perceber como elas tiveram influência e resultaram em medidas práticas que diminuíram efetivamente o sofrimento dos animais no mundo todo, ainda que muito ainda tenha a ser feito. Desde então, foram aprovadas inúmeras leis de proteção aos animais, foram abolidos várias

Page 19: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

19 Ainda que esse seja um ponto nuclear da ética singeriana, suas idéias não se

restringem a isso. Singer também gerou algumas polêmicas ao defender a eutanásia

voluntária e ativa (inclusive para amenizar o sofrimento de crianças com graves deficiências

mentais, desde que fosse esse o desejo dos pais) e o aborto (sem maiores restrições quanto

ao tempo da gestação, desde que o ato cirúrgico produzisse o mínimo de dor possível ao

feto)33. Sobre essas questões, vale a leitura do seu “Ética Prática”. Para Singer, “quando

consideramos a gravidade de tirar uma vida, não devemos olhar para a raça, sexo ou espécie

do ser em questão, mas para as características do ser individual que pode ser morto, como,

por exemplo, os seus próprios desejos a respeito de continuar a viver ou o gênero de vida que

ele poderá vir a ter“34.

Outra idéia polêmica, mas bem-vinda, foi a defesa de uma ética global única para todo

o planeta, à semelhança do que Hans Küng desenvolveu no seu “Projeto para uma Ética

Mundial”. Para Singer, a globalização deveria gerar um efeito positivo: a criação de um vínculo

de solidariedade e de empatia entre todos os seres humanos de modo que cada um se sinta

responsável pelo bem-estar do outro, por mais distante fisicamente que esteja o outro e

independentemente da nacionalidade ou da etnia do outro. Essas idéias estão no seu “Um Só

Mundo”. Para ele, “somos responsáveis não só por aquilo que fazemos, mas também por

aquilo que poderíamos ter impedido. Nunca mataríamos um desconhecido, mas podemos

saber que a nossa intervenção salvaria a vida de muitos desconhecidos num país distante, e

mesmo assim não fazemos nada. Não nos consideramos responsáveis de forma alguma pela

morte dessas pessoas. Isto é um erro. Devemos considerar as conseqüências tanto daquilo que

fazemos quanto daquilo que decidimos não fazer“35.

No próximo tópico, discorrerei sobre algumas idéias de Peter Singer comparando-as

com a filosofia de São Francisco de Assis, no intuito de tentar demonstrar que é possível

justificar racionalmente uma concepção ética humanista, reforçando o argumento de que

formas de experimentos dolorosos que eram realizados desnecessariamente em animais, a indústria alimentícia passou a ser um pouco mais atenciosa quanto aos interesses dos animais e assim por diante. No caso do Brasil, por exemplo, o princípio da proibição de crueldade contra animais tornou-se norma constitucional (art. 225, § 1º, inc. VII, da CF/88). 33

Ressalte-se que o próprio Singer afirmou, no seu “Escritos sobre uma Vida Ética“ (p. 12), que essas suas idéias sobre o aborto e a eutanásia constituem uma parte “menos importante” de sua filosofia, com o que estou plenamente de acordo. Elas são menos importantes tanto porque abrangem uma parcela muito pequena de casos éticos (ao contrário da tese sobre a libertação animal ou do combate à pobreza, por exemplo), além de não atingir o seu propósito principal, que é diminuir o sofrimento do mundo. A morte de uma criança, mesmo com grave deficiência, nunca diminui o sofrimento do mundo. Pelo contrário, aumenta. Por outro lado, os argumentos utilizados para justificar a eutanásia voluntária em pacientes adultos dotados de autonomia de vontade são mais consistentes, pois prestigia a autonomia da vontade sem violar o direito de outras pessoas além daquele que deseja ter uma morte digna. Mas não é o propósito deste estudo se alongar nesse tema. 34

SINGER, Peter. Escritos sobre uma Vida Ética (Writings on na Ethical Life, 2000). Trad. Pedro Galvão, Maria Teresa Castanheira e Diogo Fernandes. Lisboa: Dom Quixote, 2008, p. 13. 35

SINGER, Peter. Escritos sobre uma Vida Ética (Writings on na Ethical Life, 2000). Trad. Pedro Galvão, Maria Teresa Castanheira e Diogo Fernandes. Lisboa: Dom Quixote, 2008, p. 13.

Page 20: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

20

nem toda concepção ética de matriz religiosa é necessariamente irracional. Vale ressaltar que

limitarei minha análise ao livro “Como Havemos de Viver?”, pois certamente, em outros livros,

como o “Ética Prática”, Peter Singer adotou alguns posicionamentos que certamente não são

compatíveis com a ética franciscana, especialmente no que se refere à sacralidade da vida

humana.

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21

3 A Ética Laica de Peter Singer e a Oração de São Francisco de Assis

A Oração de São Francisco de Assis é, certamente, um dos mais belos cânticos

religiosos que existem, tanto por sua melodia quanto pela sua letra. Curiosamente, não foi

composta por São Francisco de Assis. Foi escrita no século XX e São Francisco de Assis viveu

entre os séculos XII e XIII. Em 1916, a Oração de São Francisco “foi impressa em Roma numa

folha, em que num verso estava a oração e no outro verso da folha foi impressa uma estampa

de São Francisco. Por esta associação e pelo fato de que o texto reflete muito bem o

franciscanismo, esta oração começou a ser divulgada como se fosse de autoria do próprio

santo”36. A autoria da letra é, até hoje, um mistério.

A ética contemporânea proposta pelo filósofo ateu Peter Singer lembra, em muitos

aspectos, os ensinamentos franciscanos contidos na referida oração. A idéia de que os animais

merecem ser tratados com dignidade, por exemplo, também era uma das principais

características da filosofia franciscana. A caridade e o sacrifício dos interesses pessoais em

favor de outras pessoas, inclusive estranhos, também estão presentes na filosofia de vida

pregada por São Francisco de Assis. Singer também propõe uma vida de poucos luxos, onde a

preocupação com o sofrimento alheio ocupa uma função primordial na sua proposta ética. Ele

critica enfaticamente a ética da ganância individual e do interesse próprio onde o essencial é

fazer dinheiro, ficar rico e se dar bem às custas dos outros. Para ele, o princípio do “que lucro

eu com isso?”, que vigora na sociedade contemporânea, debilita o nosso sentido de fazer

parte de uma comunidade e destrói qualquer laço mais duradouro entre os indivíduos, pois

cada um se vê como uma mera fonte de lucro. “A suposição é que o melhor é olharmos para

nós próprios, pois o outro aproveitar-se-á de nós sempre que possível - e a suposição torna-se

uma profecia que se cumpre a si mesma porque de nada vale ser cooperante com quem não

sacrificará o seu ganho pessoal de curto prazo a favor de benefícios mútuos de longo prazo”37.

Porém, uma sociedade ligada apenas por laços efêmeros do interesse próprio, não pode ser

uma sociedade boa, até porque um consumismo desenfreado dos limitados bens naturais

acarretará, mais cedo ou mais tarde, a própria destruição do planeta.

De um modo geral, era isso o que defendia São Francisco de Assis. A diferença

fundamental é que os filósofos laicos tentam justificar racionalmente a sua ética, enquanto

que, em São Francisco, a mera possibilidade de uma vida eterna já seria suficiente para seguir

os ensinamentos de Cristo. São Francisco diria: “onde houver dúvida, que eu leve a fé”. A ética

36

A referida informação foi obtida a partir da Wikipédia, que cita a seguinte fonte: RENOUX. Christian. La prière pour la paix attribuée à saint François, une énigme à résoudre. Paris: Paris Editions franciscaines, 2001. 37

SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?, 1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 77.

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22

laica, por outro lado, defende: “onde houver dúvida, que eu leve o pensamento crítico-

racional”. “Agir eticamente é agir de um modo que se possa recomendar e justificar”, adverte

Singer, para lembrar a constante necessidade de fundamentar racionalmente os

comportamentos éticos, de forma a tentar convencer as pessoas racionais a agirem

eticamente38.

3.1 Darwinismo, Teoria dos Jogos e Cooperação

Ao justificar a sua noção de ética, Peter Singer segue um caminho que muitos acharão

perigoso: aceita a teoria da evolução de Charles Darwin para defender que a cooperação é

uma estratégia de ação bem sucedida na ótica evolucionista. Para Singer, “os seres humanos

são muitas vezes egoístas, mas a nossa biologia não nos obriga a ser assim. Pelo contrário,

leva-nos a cuidar dos nossos filhos, dos nossos familiares mais afastados e, em certas

circunstâncias, também de grupos maiores”39.

Há, nesse aspecto, um claro questionamento da idéia de egoísmo que o polêmico

biólogo da atualidade Richard Dawkins40 defendeu em seu livro “Gene Egoísta” publicado pela

primeira vez em 197641.

A base teórica de Dawkins é o darwinismo, com as contribuições fornecidas pelos seus

seguidores, em especial George Williams e William Hamilton. O ponto original no pensamento

defendido por Richard Dawkins é que, para ele, a seleção natural não operaria no nível dos

indivíduos, nem dos grupos, nem das espécies, e sim dos genes. Em outras palavras: seriam os

genes que lutam para sobreviver e que estão na base da teoria evolutiva. Os seres vivos

seriam projetados para agir de forma a aumentar a probabilidade de que seus genes, ou

cópias de seus genes, sobrevivam e se reproduzam. Para Dawkins, os organismos seriam

meras máquinas de sobrevivência – robôs cegamente programados para preservar as

moléculas egoístas chamadas genes, que fazem tudo para se perpetuar. Somente o gene

egoísta seria capaz de sobreviver, pois se o gene for altruísta o suficiente para permitir que

outro gene sobreviva em seu lugar, certamente esse gene altruísta deixará de existir. Dawkins

diz ainda que o egoísmo do gene seria uma característica boa, no sentido de que facilitaria a

sobrevivência. O gene egoísta seria mais apto a vencer a luta pela vida. Todo gene estaria

programado para sobreviver e se reproduzir e fará o que for preciso para se perpetuar. No

nível dos genes, não haveria espaço para o altruísmo.

38

SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?, 1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 306. 39

SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?, 1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 197. 40

Página acadêmica: http://richarddawkins.net/ 41

DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Page 23: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

23 Dawkins, logicamente, não nega a existência do altruísmo e da cooperação entre os

animais sociais, inclusive os seres humanos. No entanto, ele não considera que esse altruísmo

seja genuíno e autêntico, pois, no fundo, não passa de um egoísmo genético: o gene que age

de forma cooperativa nada mais está fazendo do que usar todas as armas disponíveis para se

perpetuar. No final, sempre haverá uma componente de egoísmo.

Embora as explicações desenvolvidas pela biologia evolucionista sejam bastante

plausíveis, o termo “gene egoísta” é enganador, pois, paradoxalmente, esse gene egoísta

geraria seres cooperativos, conforme reconhece o próprio Dawkins. Há um capítulo do “Gene

Egoísta” que defende claramente que a melhor estratégia de evolução a longo prazo,

considerando não o gene, mas a espécie e os grupos, não seria o egoísmo, mas a

cooperação42.

Essas idéias também foram bem desenvolvidas por Matt Riddley, no seu “A Origem da

Virtude: um estudo biológico da solidariedade”, que forneceu explicações biológicas bastante

convincentes acerca do surgimento da solidariedade entre os organismos sociais,

demonstrando que a evolução, essencialmente uma questão de competitividade, às vezes

pode dar origem a instintos de cooperação43. Para Riddley, “a revolução do gene egoísta,

longe de ser uma ordem sombria e hobbesiana para ignorarmos o bem-estar alheio, é

exatamente o oposto (...). Genes egoístas às vezes usam indivíduos desprendidos para

alcançar os seus fins”44. E o que importa para sociedade é o fato de as pessoas serem boas

umas com as outras e não os seus motivos.

É justamente essa incoerência na teoria de Richard Dawkins (ou seja, um apego

desnecessário e equivocado à idéia de “egoísmo”, gerando uma falsa impressão de que ser

egoísta é uma boa estratégia evolutiva para o indivíduo) que Peter Singer aproveita para

desenvolver uma ética que, alicerçada, pelo menos em parte, em bases darwinistas, se

aproxime, quanto aos propósitos axiológicos, dos valores de solidariedade tão caros à

humanidade.

3.1.1 O Dilema do Prisioneiro

Para justificar seu ponto de vista, Singer, na esteira de vários outros pensadores,

invoca o famoso Dilema do Prisioneiro, formulado por Albert W. Tucker em 1950, que tem

servido como modelo básico de jogo para estudar a teoria da escolha racional, que é a teoria

42

O capitulo em questão intitula-se: “Os bons rapazes terminam em primeiro”. 43

RIDLEY, Matt. As Origens da Virtude: um estudo biológico da solidariedade (The Origins of Virtue, 1996). Rio de Janeiro: Record, 2000. Curiosamente, Dawkins disse que o livro de Ridley poderia ser considerado como a segunda parte do seu “Gene Egoísta”. 44

RIDLEY, Matt. As Origens da Virtude: um estudo biológico da solidariedade (The Origins of Virtue, 1996). Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 29.

Page 24: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

24

que procura fornecer as melhores soluções racionais em situações complexas que envolvem

incertezas e estratégias de cooperação social45.

O jogo consiste numa situação hipotética que pode ser descrita do seguinte modo:

“Dois suspeitos, A e B, são presos pela polícia. A polícia tem provas insuficientes para os condenar, mas, separando os prisioneiros, oferece a ambos o mesmo acordo: se um dos prisioneiros, confessando, testemunhar contra o outro e esse outro permanecer em silêncio, o que confessou sai livre enquanto o cúmplice silencioso cumpre 10 anos de sentença. Se ambos ficarem em silêncio, a polícia só pode condená-los a 6 meses de cadeia cada um. Se ambos traírem o comparsa, cada um leva 5 anos de cadeia. Cada prisioneiro faz a sua decisão sem saber que decisão o outro vai tomar, e nenhum tem certeza da decisão do outro”46.

Se cada jogador se guiar pensando unicamente nos seus próprios interesses,

certamente irá trair o seu companheiro, pois essa é a melhor estratégia de decisão individual,

seja qual for a atitude tomada pelo outro. Em outras palavras: se você trair, você tem chance

de sair livre, caso o seu companheiro não lhe entregue, ou ser condenado a apenas cinco anos

de prisão, caso o seu companheiro também o traia. Por outro lado, se você não trair, pode ser

condenado a até dez anos de prisão, caso o seu companheiro o traia. Desse modo, se você

pensar em si próprio, desconsiderando os interesses do outro jogador, é melhor trair. O pior é

que, se o seu companheiro pensar do mesmo modo, certamente a melhor solução que ele

adotará é também o trair, pelas mesmas razões já apresentadas.

Não há dúvida que, numa perspectiva egoísta de curto prazo, trair é a melhor

estratégia, pois as chances de se beneficiar são maiores. Porém, tudo muda se o jogo se

45

A teoria dos jogos é um campo da matemática que tem sido desenvolvido para analisar esse tipo de problema, ou seja, é uma teoria que estuda a escolha de decisões ótimas sob condições de conflito. Ela foi criada “para se modelar fenômenos que podem ser observados quando dois ou mais ‘agentes de decisão’ interagem entre si. Ela fornece a linguagem para a descrição de processos de decisão conscientes e objetivos envolvendo mais do que um indivíduo” (SARTINI, Brígida Alexandre e outros. Uma Introdução à Teoria dos Jogos. Bahia: Universidade da Bahia, 2004). A Universidade de Yale disponibilizou na íntegra e gratuitamente um Open Course em “Game Theory”, ministrado pelo professor Ben Polak que pode ser acompanhado no seguinte endereço eletrônico: http://oyc.yale.edu/yale/economics/game-theory. Sob um olhar crítico, deve-se reconhecer que a teoria dos jogos pode ser útil como exercício de racionalização e de explicação, mas creio que, dificilmente, ela terá alguma utilidade prática concreta para o direito ou para a ética a curto prazo. É que essa teoria se baseia na atribuição de valores para determinadas conseqüências e nem todas as conseqüências desejadas pelo direito ou pela ética podem ser matematizadas. Como atribuir valores para a liberdade, para a vida humana, para família etc.? Como decidir uma questão de eutanásia, ou de aborto, com base na teoria dos jogos? Talvez os problemas ético-jurídicos estritamente comerciais possam ser, de algum modo, solucionados pela teoria dos jogos, já que é possível encontrar, com mais facilidade, o equilíbrio de Nash. Mas aquelas que envolvem direitos ou valores não econômicos possuem um componente ético que não segue a lógica matemática e que, portanto, dificilmente podem ser transformadas em fórmulas numéricas. De qualquer modo, é tentador pensar numa função normativa para a teoria dos jogos, onde o papel do direito seria o de estabelecer mecanismos para que o equilíbrio de Nash fosse atingido e observado. O direito, então, funcionaria como um mecanismo para incentivar os comportamentos que gerem uma situação em que todos os envolvidos possam ganhar o máximo possível. Dentro da lógica nashariana, o direito deveria punir aqueles “jogadores” que se desviem do equilíbrio e premiar aqueles que sigam essa estratégia. Como se disse, esse tipo de especulação não passa de um exercício de racionalização. Por enquanto, é improvável tirar algum proveito imediato e concreto para os problemas mais complexos da ética com base em qualquer teoria matemática. 46

Fonte: Wikipédia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_dos_jogos).

Page 25: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

25

repetir ao longo do tempo. Se forem jogadas várias partidas, a traição certamente não é uma

boa opção, pois o companheiro vai perceber que você não é de confiança e também vai trair.

No final, os dois se prejudicam se adotarem uma postura egoísta. Eis o grande paradoxo do

Dilema do Prisioneiro: quando cada pessoa age racionalmente perseguindo seus próprios

interesses individuais pode acabar pior do que se estivesse agindo pensando de forma não-

egoística. Logo, se a ação racional deve mirar a satisfação dos próprios interesses, então é

melhor agir pensando também no comportamento esperado do outro. No fundo, a

cooperação e honestidade são as melhores políticas - eis a lição deixada pela teoria dos

jogos47.

3.1.2 Tic for Tat (“Pagar na Mesma Moeda”)

O professor de ciência política e políticas públicas Robert Axelrod48, da Universidade

de Michigan, desenvolveu uma competição, simulada por sistemas computacionais, para

tentar definir qual seria a melhor estratégia de ação no Dilema do Prisioneiro caso o jogo se

repetisse por várias jogadas.

A estratégia vencedora de todas as competições, desenvolvida por Anatol Rapoport,

foi extremamente simples e pode ser resumida na frase “pague na mesma moeda” (em inglês:

“Tic for Tat”). Dito de outro modo: “a. Na primeira jogada, cooperar; b. em cada jogada

subseqüente, agir segundo aquilo que o outro jogador fez na jogada anterior” – eis a

estratégia vencedora de todas as competições do Dilema do Prisioneiro. Assim, dentro da

lógica do Tic for Tat, se você cooperar e o outro jogador também cooperar, aja assim

indefinidamente sem mudar sua linha de ação. Se, em algum momento do jogo, o outro

jogador mudar de estratégia, faça o mesmo, como forma de punição, até que ele resolva

voltar a cooperar. A cooperação mútua é, portanto, uma solução estratégica ótima para todos

os envolvidos, pois é onde se atinge o chamado “equilíbrio de Nash”, que nada mais é a

situação em que cada jogador não tem incentivo para mudar de estratégia se os demais

jogadores também não o fizerem49.

47

Uma vasta bibliografia envolvendo a evolução da cooperação, a teoria dos jogos e o dilema do prisioneiro, desenvolvida por Robert Axelrod e Lisa D’Ambrosio foi disponibilizada no seguinte endereço eletrônico: http://www.cscs.umich.edu/research/Publications/Evol_of_Coop_Bibliography.html. 48

Página acadêmica: http://www-personal.umich.edu/~axe/. 49

É lógico que o Dilema do Prisioneiro é uma simplificação extremamente reducionista dos dilemas que ocorrem na vida real, já que se trata de um jogo estritamente lógico-matemático, cujas soluções podem ser antecipadas por um sistema de processamento de dados relativamente simples. Já os problemas da vida costumam ser muito mais complexos, uma vez que as suas conseqüências não podem ser antecipadas com facilidade e, portanto, sempre haverá um componente de incerteza nas escolhas adotadas. Na vida real, há mais “jogadores”, mais opções de ação e muito mais fatores em jogo do que a mera preocupação com o prêmio ou com o castigo. Há laços afetivos, econômicos, éticos que também são levados em conta e, muitas vezes, não podem ser matematizados. Além disso, o Dilema do Prisioneiro foi “montado”, de fato, para favorecer estratégias

Page 26: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

26 Para Singer, a verdadeira importância do resultado descoberto por Axelrod ainda não

foi devidamente valorizada fora de um círculo restrito de especialistas, apesar de ser capaz de

alterar profundamente as nossas vidas e até mesmo a política numa visão mais macro.

Em primeiro lugar, a competição demonstrou que as “estratégias simpáticas”, ou seja,

aquelas em que nunca se é o primeiro a agir de forma não-cooperativa, saem-se melhor do

que as estratégias “más”. Isso significa que o comportamento não-egoísta pode desempenhar

melhorias das nossas perspectivas de sobrevivência e de deixar descendentes, ou seja, os

seres humanos que agem de forma altruísta conseguem viver tão bem, ou mesmo melhor, do

que aqueles que agem de modo completamente egoísta. Com isso, conclui-se: (a) ao agir em

seu favor, a estratégia Tic-for-Tat também cria um ambiente em que as outras estratégias

simpáticas podem se desenvolver, já que as estratégias simpáticas, em geral, apóiam-se

mutuamente; (b) em contraste gritante com as estratégias simpáticas, as estratégias más

estragam as possibilidades de outras estratégias más que jogam contra elas, de modo que, ao

jogarem entre si, as estratégias más acabam por obter péssimos resultados; (c) quando se

defrontam estratégias simpáticas e más, as estratégias simpáticas terão bons resultados se

forem provocadas para retaliar pela primeira ação egoísta da outra50.

Desse modo, usando uma lógica estritamente de acordo com a teoria dos jogos e com

a descoberta de Axelrod, Singer elabora as seguintes estratégias de ação para uma vida ética:

1. Comece por manifestar vontade de cooperar, assumindo uma postura amigável;

2. Faz bem a quem te faz bem (cuidar de quem cuida de nós) e puna aquele que te faz mal, para não ser explorado;

3. Preserve a simplicidade; 4. Seja clemente; 5. Não seja invejoso.

Talvez o único princípio que possa ser questionado à luz da ética cristã é a segunda

parte do item 2 (punir a quem te faz mal). Afinal, o cristianismo recomenda que devemos

amar até mesmo nossos inimigos e fornecer o outro lado do rosto diante de uma agressão51.

cooperativas de longo prazo, demonstrando que as estratégias simpáticas saem-se melhor do que as estratégias egoístas. Certamente, se o “prêmio” para a traição fosse maior, talvez fosse aconselhável trair em algum momento dentro da lógica do interesse próprio. Isso sem falar que o Dilema do Prisioneiro representa aquilo que, em teoria dos jogos, chama-se de “jogo de soma diferente de zero”. Isso significa que é possível que todos os jogadores envolvidos podem vencer ao mesmo tempo, assim como todos podem perder ao mesmo tempo, dependendo da estratégia adotada pelos jogadores. Na vida real, há jogos de soma diferente de zero, mas também há muitos jogos de soma zero, onde a vitória de um representa, necessariamente, a derrota do adversário. Por isso, o Dilema do Prisioneiro deve ser visto tão somente como um exercício simulado de compreensão das atitudes humanas e não como uma verdadeira reprodução do que ocorre na vida real. Sua lição maior, contudo, é válida: mesmo que você seja egoísta, talvez valha a pena pensar em ser cooperativo. 50

SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?, 1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 249. 51

É certo que há várias interpretações sobre essa passagem do Novo Testamento. De qualquer forma, o cristianismo defende, de um modo geral, que não devemos fazer mal nem mesmo àqueles que nos fazem mal.

Page 27: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

27

“Onde houver ofensa, que eu leve o perdão”, diz a oração franciscana. Para Singer, se não

castigarmos aqueles que praticam ações não-cooperativas estaremos estimulando a prática

de condutas não-cooperativas e os egoístas se aproveitarão da nossa boa vontade52. Isso

representa, segundo ele, “uma refutação experimental do famoso ensinamento de Jesus

sobre dar a outra face. (...) Dar a outra face é ensinar aos candidatos a vigaristas que a vigarice

compensa”53. Por isso, devemos estabelecer alguma forma de punição para aquelas pessoas

que não cooperam e que traem a nossa confiança54.

Mas há um detalhe importante que concilia o Tic-for-Tat com o pensamento cristão,

que é o perdão: se a pessoa que cometeu um ato não-cooperativo mostrar disposição de

voltar a cooperar, devemos ser clementes e perdoá-la. “É perdoando que se é perdoado”,

conforme já sugeria a Oração de São Francisco de Assis. Ou, como dizia o João Paulo II, “posto

que a justiça humana é sempre frágil e imperfeita, exposta às limitações e aos egoísmos

pessoais e de grupo, deve exercer-se e de certo modo completar-se com o perdão, que cura

feridas e restabelece em profundidade as relações truncadas”55. Perdoar quando o outro

demonstra arrependimento sincero é uma forma de restabelecer o equilíbrio de Nash, de

modo que todos possam sair beneficiados no longo prazo.

3.2 A Ética da Reciprocidade como Estratégia Evolutivamente Estável

Por detrás da estratégia “pagar na mesma moeda” está a idéia de reciprocidade, que

orienta a grande maioria das concepções éticas, inclusive religiosas, que seguem a chamada

“regra de ouro”: não faça aos outros aquilo que gostaria lhes fizessem ou, numa versão

alternativa, faça aos outros aquilo que gostaria que lhes fizessem56.

52

Vale ressaltar que, para Singer, não devemos seguir à risca o princípio do “pagar na mesma moeda” se o mal causado puder resultar na destruição definitiva de ambas as partes. Nesse caso, ainda que exista a capacidade de retaliar, não faz sentido fazê-lo, mesmo que possa (p. 262). Para evitar uma situação de mútua destruição, Singer recomenda o desenvolvimento de um conceito de imparcialidade e de um sistema que produza decisões imparciais acerca daquilo que constitui o tratamento equitativo (p. 270). Do mesmo modo, Singer, como qualquer pessoa de bom-senso, rejeita a “lei do Talião”, do “olho por olho, dente por dente”. 53

SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?, 1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 252. 54

Essa idéia de que se devem evitar as pessoas agressivas não é, contudo, estranha à Bíblia. Eis um trecho dos Provérbios: “não tenha companheirismo com alguém dado à ira” (22:24); “se fores companheiro de pessoas sensatas, ganharás entendimento; mas, se andares com gente tola, ver-te-ás em apuros” (13:20). Esses conselhos bíblicos não deixam de ser uma forma de retaliação àqueles que não são cooperativos. 55

apud LOUREIRO, João Carlos. Pessoa, Dignidade e Cristianismo. in: Jorge de Figueiredo DIAS/ José Joaquim Gomes CANOTILHO/ José de Faria COSTA (Org.), ARS IVDICANDI: Estudos em homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, vol. I: Filosofia, teoria e metodologia, Coimbra, 2008, p. 701. 56

A regra de ouro é comum há várias religiões. Confúcio, por exemplo, dizia: “aquilo que não desejas para ti, não o faças aos outros”. No Judaísmo, o Rabi Hillel desenvolveu a idéia de que “não faça aos outros aquilo que não queres que os outros te façam a ti”. No Cristianismo, tem-se: “o que quiserdes que os homens vos façam, fazei-lho”. Hans Küng defende que “o imperativo categórico de Kant poderia ser entendido como uma modernização,

Page 28: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

28 Na Oração de São Francisco, há um belo trecho em que se sugere que devemos antes

compreender do que ser compreendido; antes amar do que ser amado. Compreender o outro

talvez seja um dos princípios éticos mais importantes para uma vida em sociedade. É um

ponto comum na filosofia moral a idéia de que uma característica essencial do pensamento

ético é a nossa disponibilidade para nos colocar no lugar dos outros antes de pronunciar um

juízo moral. Assim, para se pensar eticamente é necessário nos imaginarmos na situação de

todos aqueles afetados pelas nossas ações, levando em conta as preferências que eles

possuem.

Na verdade, a ética nada mais é do que a preocupação com o outro e,

conseqüentemente, significa compreender os desejos do outro. Viver eticamente é viver

levando em conta os interesses do outro. É ter a consciência de que o outro não deve ser visto

como um mero objeto, mas como um fim em si mesmo, merecedor da mesma consideração

que reservamos a nós próprios. “É pensar sobre as coisas que se encontram para além dos

nossos próprios interesses. Quando penso eticamente torno-me apenas um ser, com

necessidades e desejos próprios, certamente, mas a viver no meio de outros que também têm

necessidades e desejos”57.

A ética da reciprocidade insere-se naquilo que os biólogos chamariam de “estratégia

evolutivamente estável”58, para usar uma expressão de John Maynard Smith. A estratégia

evolutivamente estável é aquela estratégia comportamental que, se adotada pela maior parte

dos membros da população, não pode ser derrotada por outra política comportamental

adversária, numa competição onde a vitória significa a sobrevivência. A pressão evolutiva

penalizará aqueles elementos da população que se afastem da estratégia evolutivamente

estável e favorecerá os que adotarem a estratégia comportamental vencedora.

Logicamente, os comportamentos éticos não são regidos por leis biológicas da

natureza, mas pela evolução cultural. Enquanto a evolução biológica é aleatória, a evolução

cultural pode ser consciente e dirigida pelos seres racionais. Mas, de qualquer modo, talvez

seja possível extrair da idéia de “estratégia evolutivamente estável” pelo menos uma linha

geral de direcionamento das teorias éticas para excluir de plano as estratégias destrutivas e

não-cooperativas. Não se deve seguir uma concepção ética que não seja uma estratégia

evolutivamente estável.

racionalização e secularização desta regra de ouro” (KÜNG, Hans. Projecto para Uma Ética Mundial (Projekt Weltethos, 1990). Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços. Lisboa: Piaget, 1996, p. 111). 57

SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?, 1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 307/308. 58

Em inglês: Evolutionary (or Evolutionarily) Stable Strategy.

Page 29: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

29 “É dando que se recebe”, diz a oração franciscana, numa síntese bastante feliz da ética

da reciprocidade, cujo viés utilitarista é inegável, mas nem por isso menos nobre59. Aliás, é

esse tipo de pensamento que Richard Dawkins chama de egoísmo, já que, mesmo quando age

de forma cooperativa, o indivíduo estaria pensando apenas no que seja melhor para a sua

perpetuação genética. É o chamado “egoísmo recíproco”, em que “uma mão lava a outra”60.

Para Singer, contudo, é um erro pensar dessa forma. “Não se deve ver tais

recompensas intangíveis como a negação da motivação altruísta do indivíduo”61. Afinal de

contas,

“quem se importa com o ‘verdadeiro significado’ deste tipo de altruísmo, se o que nos interessa é compreender como as pessoas podem ser motivadas a agir eticamente? Se os doadores de sangue são movidos por um sentido de obrigação para com a comunidade ou uma consciência da aprovação social, isso não significa que as suas ações não são éticas ou mesmo altruístas. Agir ética e altruisticamente, nos sentidos moralmente importantes destes termos, consiste, entre outras coisas, em ser movido por um sentido de obrigação para com a comunidade, ou um desejo de fazer o que granjeará a aprovação daqueles cujas opiniões respeitamos. Seria absurdo negar que uma ação é

59

Stuart Mill, na sua defesa da ética utilitarista, sugeriu que “na regra de ouro de Jesus de Nazaré vemos o espírito completo da ética da utilidade. Fazer aos outros o que queremos que nos façam a nós, e amar o próximo como a si mesmo, constituem a perfeição da moralidade utilitarista” (MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 64). Os defensores do cristianismo certamente não concordariam com Stuart Mill, pois, na ética cristã, a ação do sujeito que realiza boas obras pensando em tirar algum proveito disso teria um valor moral menor do que o daquele sujeito que age altruisticamente. Eis uma passagem do Novo Testamento que bem ilustra isso: “1. Guardai-vos de fazer as vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles; de outra sorte não tereis recompensa junto de vosso Pai, que está nos céus. 2. Quando, pois, deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa. 3. Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita; 4. para que a tua esmola fique em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará. 5. E, quando orardes, não sejais como os hipócritas; pois gostam de orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa. 6. Mas tu, quando orares, entra no teu quarto e, fechando a porta, ora a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará” (Mt 6, 1-6). Assim, na ética cristã, a intenção do agente serviria para graduar a quantidade de recompensa merecida pelo ato: quanto mais altruísta e desinteressada a ação, maior seria a recompensa. Aquele que faz o bem apenas para que Deus lhe recompense na vida eterna receberá uma recompensa menor do que aquele que faz o bem por genuína compaixão. Ambos serão recompensados, mas não na mesma medida. (Devo ao amigo André Dias Fernandes, juiz federal no Ceará, as informações apresentadas aqui nesta nota de rodapé). 60

Do ponto de vista filosófico, a idéia do egoísmo recíproco é bastante antiga. Já estava presente, por exemplo, no Tratado da Natureza Humana, de David Hume, que defendia uma concepção de justiça em que o respeito ao outro seria condicionado pelo respeito dos outros aos nossos próprios interesses. Assim, dizia Hume: “é unicamente do egoísmo do homem e da sua generosidade limitada, juntamente com a parcimônia com que a natureza providenciou a satisfação de suas necessidades, que a justiça tira a sua origem” (p. 571). “Foi portanto a preocupação do nosso próprio interesse e do interesse público que nos fizeram estabelecer as leis da justiça” (p. 572). “O interesse próprio é o motivo original do estabelecimento da justiça; mas uma simpatia com o interesse público é a origem da aprovação moral que acompanha esta virtude” (p. 576). “Sendo os homens naturalmente egoístas ou dotados apenas de uma generosidade limitada, não são facilmente induzidos a realizar uma ação no interesse de estranhos, a não ser que tenham em vista uma vantagem recíproca que não teriam esperanças de obter senão mediante esta ação” (p. 600). As citações são todas de: HUME, David. Tratado da Natureza Humana (A Treatise of Human Nature, 1888). Trad. Serafim da Silva Fontes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. 61

SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?, 1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 194.

Page 30: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

30

ética meramente porque as pessoas que a realizam podem, de fato, se beneficiar com ela, caso sejam movidas pela expectativa de um ganho pessoal - e ainda mais absurdo se elas nem sequer tiverem consciência dessa expectativa” 62.

Nesse aspecto, é patente a influência de Stuart Mill no pensamento de Peter Singer.

Ao seu tempo, Mill dizia:

“Honra seja feita àqueles que conseguem renunciar por si mesmos aos deleites pessoais da vida, quando mediante tal renúncia contribuem de forma válida para o aumento da quantidade de felicidade no mundo; mas aquele que o faz, ou professa fazê-lo, com qualquer outro objetivo, não é mais merecedor de admiração do que o asceta empoleirado no seu pilar (...)

A moralidade utilitarista reconhece, de fato, nos seres humanos o poder de sacrificarem o seu maior bem em prol do bem dos outros. Apenas recusa admitir que o sacrifício é, em si, um bem. A moralidade utilitarista considera desperdiçado qualquer sacrifício que não aumente, ou tenda a aumentar, a quantidade total de felicidade” 63.

Essa lógica de dar pensando em receber ou de sacrificar-se pensando na utilidade de

tal conduta também não seria uma atitude moralmente relevante para Immanuel Kant, pois,

como se viu, a sua ética é inspirada unicamente por um sentimento de dever que não se

interessa por recompensas ou castigos. Para Kant, somente o ato moral puro e desinteressado

possuiria um verdadeiro valor moral. O dever moral “deve eliminar totalmente a influência da

inclinação e com ela todo o objeto da vontade”64. Assim, a ação daquele que fizesse caridade

pensando em sentir um prazer íntimo por espalhar alegria a sua volta ou por se satisfazer com

o contentamento dos outros, não teria, contudo, qualquer valor moral, por mais amável que

fosse essa conduta. A caridade somente teria um autêntico valor moral se o agente fosse uma

pessoa sem qualquer inclinação para ajudar as outras pessoas e mesmo assim ajudasse

exclusivamente por dever de agir moralmente65. O agente moral kantiano é insensível e frio

por natureza e faz o bem não por inclinação, mas por puro respeito ao dever, mesmo com

prejuízo de todas as inclinações, tal qual uma máquina previamente programada para adotar

a conduta previamente estabelecida.

Singer critica a noção kantiana de dever moral, defendendo que o cumprimento do

dever pelo cumprimento do dever em si, tal como proposto por Kant, é irrealizável, pois é

hostil à natureza humana, já que os seres humanos são seres físicos providos de desejos. Além

disso, “por muito que encorajemos as pessoas a cumprir o seu dever pelo dever, o verdadeiro

62

SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?, 1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 196. 63

MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 44 e 62/63. 64

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 31. 65

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 28/29.

Page 31: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

31

objetivo por detrás desse encorajamento é pô-las a fazer o seu dever devido às boas

conseqüências que advirão do fato de elas o fazerem”66.

Para Singer, sem uma preocupação com as conseqüências dos atos, um forte sentido

do dever pode levar ao fanatismo moral rígido, o que certamente não é desejável. A história

tem inúmeros exemplos que demonstram que o sentimento de dever canalizado para o mal é

a pior ameaça à dignidade humana. Vários nazistas que foram julgados por crimes contra a

humanidade demonstraram uma forte pré-disposição para seguir o seu sentimento de dever,

mesmo quando isso ia contra o seu senso de empatia por suas vítimas. Por isso, conclui

Singer, “abandonemos, de uma vez por todas, a idéia de Kant de que o valor moral se

encontra apenas quando cumprimos nosso dever pelo dever (…). Então, podemos construir

uma descrição da ética que assenta, em ver de se afastar, na nossa própria natureza enquanto

seres sociais”67.

O que Singer quer dizer é que até mesmo uma noção de dever moral que seja

consciente das boas conseqüências que a ética trará para a humanidade merece ser

estimulada. Como diria Mill, “o motivo nada tem a ver com a moralidade da ação, embora

tenha muito a ver com o valor do agente. Quem salva um semelhante de se afogar faz o que

está moralmente correto, quer o seu motivo seja o dever, ou a esperança de ser pago pelo

seu incômodo”68.

De fato, parece ser muito mais condizente com a racionalidade uma concepção ética

em que o agente moral tem plena consciência de que a sua ação é boa por produzir bons

resultados e não por ser um mero dever sem sentido. E se ele sabe que a sua ação produzirá

bons resultados, inclusive para si, nada mais natural do que aceitar que essa ação gere um

sentimento íntimo de prazer que servirá como uma motivação extra para as boas ações.

Afinal, por que existe um sentimento de cumprimento do dever moral? Parece óbvio que o

dever moral só faz sentido porque produz bons resultados a longo prazo.

66

SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?, 1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 326. 67

SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?, 1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 329. Vale ressaltar que o próprio Singer descarta qualquer vinculação entre o nazismo e a ética kantiana, já que, de fato, o nazismo foi uma clara violência do segundo imperativo categórico kantiano, que obriga que tratemos a humanidade sempre com um fim em si mesmo. 68

MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 44 e 65. Em uma nota explicativa, Mill faz uma distinção entre a intenção do agente e o motivo do agente. Embora o motivo seja irrelevante para aferição da qualidade moral da conduta, a intenção é de suma importância, pois, se o agente pratica uma determinada conduta, em princípio correta, com a intenção de prejudicar ainda mais o outro, certamente essa atitude não é moralmente boa. É o caso do sujeito que salva uma pessoa de morrer afogada com o intuito de lhe infligir tortura para que sofra ainda mais. Daí, Mill esclarece que: “a moralidade da ação depende inteiramente da intenção – isto é do que o agente quer fazer. Mas o motivo, isto é, o sentimento que o faz desejar tal coisa, quando não tem importância na ação, não tem nenhuma moralidade; embora faça uma grande diferença na nossa avaliação moral do agente, especialmente se indicar uma disposição habitual boa ou má – uma inclinação de caráter da qual sejam passíveis de resultar ações úteis ou prejudiciais” (p. 66).

Page 32: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

32 Por fim, a parte final da Oração de São Francisco de Assis faz menção à vida eterna. É

como se sugerisse o seguinte: se você seguir esses ensinamentos, viverá eternamente. É

precisamente aqui que entra a idéia da ética da eternidade, que formularei no tópico

seguinte.

Page 33: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

33

4 Vivendo Para a Vida Eterna

4.1 Fundamentos Naturais da Ética

O que significa viver para a vida eterna? Reformulando a pergunta: como pensar em

vida eterna sem pensar em religião? Por mais paradoxal que possa parecer, a teoria da

evolução talvez tenha uma resposta. É uma resposta não-metafísica e, por isso, sujeita à

refutação empírica. Mas não pretende, de modo algum, substituir as versões metafísicas e

espirituais fornecidas pela religião. É um argumento a mais para fundamentar a necessidade

da ética, que serve de reforço a outras concepções teológicas de eternidade. Não pretendo

cair no erro do reducionismo e achar que tudo se resume a uma sobrevivência de genes, até

porque a teoria da evolução pode estar errada e nem por isso as teorias éticas cooperativas

devem ser vistas como equivocadas69.

Esse reducionismo é a base da chamada “sociobiologia”, que defende que todo

comportamento humano, incluído o rancor, a agressão, a xenofobia, o conformismo, a

homossexualidade etc., é influenciado basicamente pelas predisposições genéticas dos

indivíduos, ou seja, pelo “fator genético”70. Daí porque seria melhor “retirar a ética das mãos

dos filósofos e colocá-la nas dos biólogos”71. A sociobiologia tem sido refutada com

veemência tanto por biólogos quanto por não-biólogos, pois não há qualquer evidência direta

do controle genético sobre comportamentos sociais específicos, sendo bastante arriscado

tirar conclusões precitadas tão graves numa fase ainda inicial do estudo do genoma

humano72. Parece ser auto-evidente que, em temas éticos, o fator cultural exerce muito mais

influência do que o fator genético. Mas isso não significa que a própria cultura e a própria

ética não possa ser analisada sob uma ótica evolucionista. Vale dizer: os valores sociais

participam de processo meio aleatório de seleção, onde os valores “mais aptos”

“sobrevivem”, isto é, tornam-se a mentalidade dominante, geralmente por produzirem

conseqüências sociais mais bem sucedidas. É com base nesse pressuposto evolucionista que

tentarei desenvolver uma ética de longo prazo que tenha algum sentido nos dias de hoje.

69

Em matéria de ética, nunca é prudente se apegar a um único fundamento, pois, se esse fundamento não se mostrar sólido, a ética corre o risco de perder o sentido, abrindo margem para especulações semelhantes àquelas utilizadas por Dostoievski ou por Nietzsche, tal como citado no início deste texto. O melhor então é criar uma rede de argumentos capazes de convencer as pessoas a agirem corretamente, mirando o bem-estar global de longo prazo e não o egoísmo próprio. 70

WALLACE, Robert A. Sociobiologia: o Fator Genético (The Genesis Factor, 1979). São Paulo: Ibrasa, 1985 71

WILSON, Edward O. Sociobiology: the New Synthesis. Cambridge: Harvard University Press, 1975, apud CELA-CONDE, Camilo J. Ética, Diversidade e Universalismo: a herança de Darwin. In: CHANGEUX, Jean-Pierre (dir.). Uma Mesma Ética para Todos? (Une Même Éthique pour tours?, 1997). Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p; 80. 72

GOULD, Stephem Jay. Darwin e o Grandes Enigmas da Vida (Ever Since Darwin: reflections in natural history, 1987). São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 249/259.

Page 34: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

34 A hipótese é relativamente simples: hoje estamos vivos porque nossos antepassados

souberam adotar a melhor estratégia de sobrevivência diante das informações de que

dispunham e das condições ambientais específicas em que viveram. Somos fruto de uma

história evolutiva de sucesso. Os pais dos nossos pais tiveram pais cujos pais fizeram o que era

correto para sobreviver e assim sucessivamente. Talvez eles tenham tomado decisões sem

pensar na nossa existência atual, mas certamente adotaram um estilo de vida que permitiu

que nós surgíssemos. Do contrário, não estaríamos vivos. Se tivesse havido qualquer ruptura

nessa cadeia hereditária, ou seja, se um só de nossos ascendentes tivesse cometido algum

erro fatal, nossa existência não teria sido possível. Aliás, apenas um número infinitamente

pequeno de organismos foi capaz de deixar uma herança genética que até hoje sobrevive e há

estudos demonstrando que, a cada dia, extingue-se uma espécie vegetal ou animal, o que

reforça a idéia de que os seres vivos são mesmo raros e preciosos.

Para que a linha da vida não se quebre, os organismos precisam adotar uma estratégia

comportamental de sucesso. A noção de vida eterna, num sentido biológico, está, portanto,

ligada à idéia de “estratégia evolutivamente estável”, já mencionada, juntamente com a

perpetuação genética daí decorrente.

Por detrás de tudo isso, está, como é óbvio, algumas idéias da teoria da evolução, que

podem assim ser sintetizadas: no quadro da seleção natural, qualquer característica que

permita fazer crescer a proporção de certos genes nas gerações seguintes acabará por

caracterizar a espécie. Essas características podem ser adaptações orgânicas, mas, quando os

organismos estão implicados em relações com outros organismos, também podem ser

comportamentos sociais. Desse modo, é bastante plausível acreditar que alguns de nossos

comportamentos podem ter sido influenciados, pelo menos em alguma medida, por objetivos

que conduziram até nós e que, através de nós, se perpetuam73.

Se voltarmos a um período muito remoto e talvez hipotético em que a vida era um

mero aglomerado de células, perceberemos que, de certo modo, ali estavam os nossos

primeiros antepassados, cuja missão biológica consistia basicamente em sobreviver e se

duplicar, deixando descendentes cuja missão seria idêntica. Essa vida rudimentar, é lógico,

não agia eticamente, pois não tinha capacidade de raciocínio, nem de reflexão. Ela não

aprendia com os seus erros, nem formulava abstratamente teorias de ação rivais para serem

testadas. O ensaio e erro não eram conscientes e, por isso, o organismo corria muitos riscos: o

73

Esse parágrafo foi um resumo, com ligeiras adaptações, da introdução elaborada por Marc Kirsch no livro CHANGEUX, Jean-Pierre (dir.). Fundamentos Naturais da Ética (Fondaments Naturels de l’Éthique, 1993). Lisboa: Piaget, 1996.

Page 35: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

35

erro quase sempre era fatal para a sua sobrevivência. O seu sucesso evolutivo foi fruto do

acaso ou, para os que acreditam numa intervenção divina, fruto de um desígnio superior74.

Na medida em que as formas de vida foram se tornando cada vez mais complexas,

começaram a surgir “sensores” cerebrais que davam um sentido finalístico às ações das

espécies. Talvez o princípio de sobrevivência mais rudimentar para essa fase da evolução

biológica foi este: busque o prazer e evite a dor, que está presente em praticamente todas as

espécies mais complexas. O sistema nervoso pode ter sido o primeiro instrumento capaz de

antecipar as tentativas mal-sucedidas de sobrevivência. O prazer significava sucesso evolutivo;

a dor, a morte. Embora já existisse aqui uma convivência entre espécies e até mesmo algumas

técnicas rudimentares de mútua cooperação, ainda não há nesse processo um componente

ético a orientar as condutas dos organismos, já que não havia consciência nem liberdade de

escolha nem linguagem nem memória nem teorias nem raciocínio nem reflexão. Pode-se dizer

que havia apenas um mundo 1 (dos fatos) e um mundo 2 (das sensações), para utilizar a

metáfora popperiana75. As espécies irracionais vivem nesse estágio até hoje.

74

Vale ressaltar que, até hoje, os cientistas não conseguiram apresentar explicações convincentes sobre como surgiram essas primeiras formas de vida, por mais simples que fossem. Apesar do livro de Darwin se chamar “A Origem das Espécies”, ele não apresentou qualquer explicação definitiva sobre como a vida se originou, mas apenas como as espécies evoluíram e ainda assim com vários erros que foram apontados posteriormente por seus seguidores, que, logicamente, também estão sujeitos ao erro. 75

Popper desenvolveu a metáfora dos três mundos com uma finalidade prática inegável: tentar demonstrar a objetividade do conhecimento e ajudar a esclarecer o complexo problema “mente-corpo”. Nas palavras do próprio Popper, “para compreender as relações entre o corpo e a mente, temos de admitir primeiro a existência do conhecimento objetivo como um produto objetivo e autônomo da mente humana, e em especial o modo como usamos esse conhecimento como um sistema fiscalizador na resolução de problemas fundamentais” (POPPER, Karl. O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente (Knowledge and the Body-Mind Problem, 1996). Trad. Joaquim Alberto Ferreira Gomes. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 12). Assim, ele concebeu a existência de três mundos: Mundo 1 – é o mundo físico e natural, que temos contato por meio de nossos sentidos. Ou seja, o Mundo 1 é o que normalmente conhecemos por mundo; Mundo 2 – é um mundo psicológico, dos estados mentais, que está dentro das nossas cabeças (como os pensamentos, as emoções, os desejos, os sentimentos de um modo geral etc.). O mundo 2 não é um mundo “palpável”. A leitura mental, solitária e silenciosa, que você faz ao olhar o texto no seu computador, bem como os pensamentos vagos, sensações, enfim, tudo o que se passa no interior do seu cérebro, faz parte do mundo 2. O seu mundo 2 é só seu. Quando se diz que “os autistas vivem no seu próprio mundo“, esse mundo é o mundo 2. Mundo 3 – é o mundo dos produtos da mente humana que ganham “existência” própria uma vez exteriorizados. É aqui que está o conhecimento objetivo, abrangendo as hipóteses e teorias, os problemas não resolvidos, os argumentos a favor e contra qualquer hipótese etc. Todas as informações produzidas pela razão fazem parte desse mundo 3. A matemática, a física, a biologia, o direito, a religião, a música, a arte, a literatura: tudo isto está nesse fantástico mundo 3, que é uma criação tipicamente racional, feita pelos seres humanos (é certo que, hoje, os computadores também estão contribuindo para a expansão do mundo 3. Mas como os computadores são criações humanas, então as informações e teorias desenvolvidas por sistemas de informática são, de certo modo, também criações humanas, ainda que indiretamente). O mundo 3 não faz parte do mundo físico. O computador que você tem à sua frente e que pode pegar e sentir pertence ao mundo 1. Mas as informações nele contidas fazem parte do mundo 3. O mundo 3 é fruto da razão, da linguagem e da memória coletiva exteriorizada e “existe” apenas num sentido metafórico. Quando entramos em uma biblioteca podemos falar sem medo: é um mundo de informações que tem lá dentro! Esse “mundo de informações” faz parte do mundo 3.

Page 36: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

36 Algumas espécies desenvolveram uma capacidade cerebral que lhes permitiram sentir

outras sensações além do prazer e da dor. O sentimento de empatia é talvez o mais notável: a

capacidade de se preocupar com o outro, que é uma característica muito visível entre os

animais sociais, desde mamíferos, aves e até peixes e répteis76. O sentimento de gratidão

também pode ter sido uma importante ferramenta evolutiva: retribuir aqueles que nos

ajudam e evitar aqueles que traíram a nossa confiança - eis a receita de sucesso de inúmeras

espécies. Para isso, foi necessário que fossem desenvolvidas capacidades cerebrais que

permitissem o reconhecimento do outro, bem como capacidades para memorizar o que o

outro fez no passado e agir conforme essa percepção.

No ser humano, a capacidade de se preocupar com o outro também é inquestionável.

Primeiro, veio a preocupação mais óbvia: cuidar dos filhos. Aqueles que desenvolveram a

capacidade de sentir afeto pelos seus descendentes tiveram mais chances de se perpetuar

geneticamente. Por outro lado, os pais desnaturados, que deixam sua prole à mercê de

predadores em um ambiente hostil, certamente desaparecem com o passar do tempo. Há,

pois, uma tendência natural de que apenas as espécies que cuidam de seus filhos alcancem “a

vida eterna”, ou seja, a perpetuação genética. Aliás, se há um princípio universal na natureza

humana certamente é este: cuide do seu filho, pois a morte de seus descendentes significa a

sua extinção.

Esse cuidado para com os descendentes foi se ampliando com o passar do tempo,

talvez muito mais por razões culturais do que propriamente biológicas. Os parentes mais

É preciso não confundir o Mundo 3 com o Mundo das Idéias de Platão ou das Essências de Aristóteles ou o Reino dos Fins de Kant, por exemplo. O Mundo 3 é produto do intelecto. Logo, é um mundo em constante evolução, já que o conhecimento racional vai-se acumulando gradualmente. No Mundo 3, não está a “verdade absoluta” ou a “essência das coisas”, mas apenas o conhecimento humano objetivado, que é sempre limitado e falível, pois sempre há conhecimento novo a ser adquirido ou descoberto. As idéias que estão no Mundo 3 são idéias em evolução. É como se fosse uma biblioteca onde a cada dia são acrescentados novos livros, ou então como a internet, que vai sendo alimentada com informações diariamente. Para compreender melhor essa construção dos mundos de Popper: POPPER, Karl. O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente (Knowledge and the Body-Mind Problem, 1996). Trad. Joaquim Alberto Ferreira Gomes. Lisboa: Edições 70, 2009). 76

Isso já havia sido mencionado por David Hume: “nenhuma qualidade da natureza humana é mais notável, tanto em si mesma, como nas suas conseqüências, do que a tendência natural que temos para simpatizar com os outros e para receber por comunicação as suas inclinações e sentimentos, por muito diferentes, ou mesmo contrários, que sejam dos nossos” (p. 372). Hume, porém, esqueceu-se de mencionar que não apenas a natureza humana, mas a natureza de várias outras espécies, também são dotadas do mesmo sentimento. Nesse aspecto, Stuart Mill foi mais preciso ao dizer que os seres humanos “apenas diferem dos outros animais em dois aspectos. Primeiro, em serem capazes de ter empatia, não apenas com as suas crias, ou, como alguns dos animais mais nobres, com algum animal superior que seja amável para com eles, mas com todos os seres humanos, e mesmo com todos os seres sencientes. Segundo, em terem uma inteligência mais desenvolvida, o que confere um maior alcance a todos os seus sentimentos, sejam eles de preocupação consigo mesmo ou de empatia”. Para Mill, o sentimento de justiça decorreria da mesma fonte e teria uma função semelhante: “o sentimento de justiça é o desejo animal de repelir ou retaliar um mal ou dano que nos é feito, ou é feito a alguém por quem sentimos empatia, alargado de maneira a incluir todas as pessoas, por meio da capacidade humana de empatia alargada, e a concepção humana de interesse próprio inteligente” (MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 112 e 114).

Page 37: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

37

próximos, como irmãos e primos, tornaram-se também objeto de preocupação afetiva.

Depois, essa preocupação estendeu-se aos amigos e, depois, aos demais membros do grupo.

De acordo com António Damásio,

“a história da nossa civilização é, de certo modo, a história de uma tentativa persuasiva de oferecer os melhores de entre os nossos sentimentos morais a círculos cada vez mais largos de humanidade, para além das restrições do grupo, de forma a abranger, eventualmente a humanidade inteira. Está bem de ver que estamos muito longe de

atingir esse ideal”77

.

4.2 A Falácia Naturalista

Um ponto de extrema importância que precisa ser destacado com ênfase é este: não

se pode confundir essa tendência natural de se sentir empatia pelo outro – nem qualquer

outro tipo de tendência natural – com a ética, sob pena de se cair na armadilha da falácia

naturalista. A falácia naturalista foi apontada inicialmente por David Hume e desenvolvida

posteriormente por G. E. Moore, no seu “Principia Ethica” e consiste em confundir o que é

com o que deve ser. O fato de a realidade ser de uma determinada forma não significa dizer

que ela necessariamente deve ser assim. A ética não deve descrever como são as ações

humanas, mas sim deve prescrever princípios normativos que indiquem como devem ser as

ações humanas.

Lembrar constantemente a falácia naturalista é fundamental para não se cair no erro

do darwinismo social que já provocou conseqüências nefastas para a sociedade, como por

exemplo:

(a) ao defender que o papel da ética é “acelerar a evolução”, permitindo uma seleção

artificial dos seres humanos “mais aptos”, por meio da eugenia e do extermínio de pessoas

supostamente “inferiores”, tal como previa o projeto nazista;

(b) ao defender que o Estado deveria intervir o mínimo possível na sociedade, já que a

luta pela sobrevivência seria a principal causa do progresso social, dentro da lógica de um

“laissez-faire” ético, onde os mais fortes teriam o direito de explorar os mais fracos, por ser

essa a “ordem natural das coisas”, tal como sugeria Herbert Spencer;

(c) ao criar uma situação de conformismo e de resignação em nome de um inevitável

determinismo natural, como se o natural fosse irremediável, e os seres humanos estivessem

predeterminados a obedecerem comandos genéticos pré-programados;

(d) ao servir como suporte para a pseudo-justificação de medidas discriminatórias em

nome de “diferenças naturais” supostamente insuperáveis nos seres humanos, como a

77

DAMÁSIO, António. Ao Encontro de Espinosa: as emoções sociais e a neurologia do sentir (Looking for Spinoza. Joy, Sorrow and the Feeling Brain, 2003). Minra-Sintra: Mem Martins, 2003, p. 188.

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38

tentativa de se defender que a inteligência ou os talentos pessoais são pré-determinados

geneticamente e, por isso, as pessoas não deveriam ser tratadas com igualdade, nem

deveriam ser criados mecanismos para compensar essas desigualdades;

(e) ao sugerir uma mera ética da sobrevivência, em que o papel da ética seria tão

somente desenvolver mecanismos para permitir a sobrevivência das espécies, sem nenhuma

preocupação com a qualidade de vida das pessoas.

O papel da ética é precisamente o contrário de todos esses pontos. Mesmo que a

teoria da evolução seja verdadeira, isso não significa que a ética deve seguir os seus

mandamentos como se os seres humanos nada pudessem fazer para mudar a realidade. O

que difere os seres racionais das demais espécies é a capacidade de refletir sobre a realidade,

exercer um juízo de valor sobre ela e, partir daí, adotar medidas concretas capazes de, se for o

caso, alterá-la. Não se revoltar diante de uma injustiça natural e não lutar para transformá-la,

quando se é possível transformá-la, é uma atitude indigna de um ser dotado de capacidade de

raciocínio, de reflexão e de vontade consciente.

A ética, assim como a justiça e o direito, não são fenômenos controlados pela

natureza, nem mesmo por genes, mas sim por seres racionais, que podem até estar

influenciados por fatores naturais, ambientais ou genéticos, mas possuem a capacidade de se

revoltar contra isso. O papel da ética – e, pela mesma razão, da justiça e do direito – é fazer

com que a convivência entre os seres racionais se dê de forma harmoniosa e equilibrada, sem

a implacável dominação do mais forte sobre o mais fraco, que é o que costuma predominar

no mundo natural.

Somente o ser racional, já dizia Kant, tem a capacidade de agir conforme princípios

ditados pela razão (prática), que é a mola propulsora da vontade, ou seja, da “faculdade de

escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como

praticamente necessário, quer dizer como bom”78.

Com otimismo, Stuart Mill dizia que “a maioria dos grandes males absolutos do mundo

são em si mesmo elimináveis, e serão por fim reduzidos ao mínimo, se o conhecimento

humano continuar a melhorar”. Para Mill, os grandes males do mundo seriam as fontes do

sofrimento físico e mental: a indigência, a doença e a crueldade, a indignidade, ou a perda

prematura de objetos de afeto. Assim, “todas as grandes fontes do sofrimento humano

podem, em grande medida, ser conquistadas pelo emprego e esforços humanos, muitas delas

quase inteiramente”79.

78

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 50. 79

MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 44 e 60/61.

Page 39: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

39 O ser racional que se deixa escravizar pelas leis da natureza quando pode mudá-la pela

vontade racionalmente dirigida perde a sua capacidade de ser legislador de si próprio

(autonomia) e, portanto, a sua dignidade.

Se os mais fortes têm mais chances de vencer a “luta pela vida” imposta pela seleção

natural, a finalidade da ética é fazer com que os seres fragilizados tenham iguais chances de

sobrevivência e de ter uma vida decente, tranqüila e feliz. Se, por exemplo, as pessoas sentem

uma tendência natural para sentir mais simpatia pelos seus compatriotas do que pelos

estrangeiros, cabe à ética tentar demonstrar que esse tipo de comportamento não se justifica

moralmente, pois todo ser humano merece ser tratado com igual respeito e consideração. Do

mesmo modo, se existe um impulso natural para que cuidemos de nossos parentes, nem por

isso o nepotismo deixará de ser moralmente errado. Nem tudo o que é natural é ético. Nem

tudo o que pode ser explicado racionalmente é necessariamente justo. Como disse John

Rawls, seguindo uma tradição filosófica bem antiga, fatos naturais não podem ser justos ou

injustos, éticos ou anti-éticos. É a forma como os seres humanos lidam diante desses fatos

naturais que faz com que eles possam ser considerados como justos ou injustos, certos ou

errados80.

4.3 A Ética e as Emoções

O sentimento de empatia, assim como o sentimento de dor e de prazer, de medo, de

vergonha, de gratidão, de culpa, de ciúme, de indignação e de repúdio, fazem parte do mundo

das sensações e funcionam como uma “antena” para orientar os seres sencientes a agirem de

tal forma a se perpetuarem geneticamente. Essa “antena” tem sido um eficiente mecanismo

de sobrevivência não só para os seres humanos, mas para várias outras espécies. Isso pode

explicar porque sentimos tanto prazer com a alimentação ou com o sexo, por exemplo, ou

então porque temos tanta ojeriza à dor e à fome. É provável que esses sentimentos tenham

sido “moldados”, pelo menos em alguma medida, pela evolução para servir como relevantes

ferramentas de sobrevivência. Nenhuma teoria ética pode deixar de aproveitar essas emoções

como catalisadores das ações humanas e indicativos precários e provisórios de uma conduta

ética.

Quem defendeu muito bem essa perspectiva foi António Damásio, o famoso

neurocientista português, que pesquisa há bastante tempo o papel das emoções na tomada

de decisões comportamentais.

No seu livro “Ao Encontro de Espinosa”, Damásio tentou explicar a função das

emoções como dispositivos cerebrais que funcionam para alertar o organismo a respeito das

80

RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça (A Theory of Justice, 1971). Trad. Almiro Pisetta e Lenita Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Page 40: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

40

situações que podem ameaçar a existência: “os sentimentos orientam os esforços conscientes

e deliberados da auto-conservação e ajudam-nos a fazer escolhas que dizem respeito à

maneira como a auto-preservação se deve realizar”81. Isso porque, “a evolução teria dotado

os nossos cérebros com os dispositivos necessários para reconhecer certas configurações

cognitivas e desencadear emoções que levariam à solução de problemas e das oportunidades

postos pelas configurações” (188). Dentro dessa linha de raciocínio, Damásio especula que “os

seres humanos equipados com um repertório de emoções e cujos traços de personalidade

incluiriam estratégias de cooperatividade teriam sobrevivido mais facilmente e deixado, por

isso, mais descendentes” (187).

Apesar disso, António Damásio não considera que os sinais emocionais devam

substituir a razão. O papel desses sinais seria meramente auxiliar, funcionando como uma

ferramenta para aumentar a eficiência do raciocínio e aumentar a sua rapidez82. Não se trata,

portanto, de confiar nos sentimentos e de lhes dar a possibilidade de serem árbitros do bem e

do mal. Trata-se sim “de descobrir as circunstâncias nas quais os sentimentos podem, de fato,

ser um árbitro, e de combinar inteligentemente circunstâncias e sentimentos de forma que

eles possam guiar o comportamento humano”83.

Muitas vezes, os nossos sentimentos nos estimulam a adotar uma postura ética. O

cuidado com os filhos é um exemplo notório. Outras vezes, porém, nossos sentimentos são

“maus conselheiros” e podem nos encaminhar para uma direção anti-ética, por uma questão

de preconceito gerado pelas falsas generalizações que o nosso natural mecanismo de

pensamento indutivo nos conduz. Como explicou Damásio, os nossos cérebros continuam

equipados com a maquinaria biológica que nos leva a reagir de um modo ancestral, ineficaz e

inaceitável, em certas circunstâncias, sendo a raiva um exemplo ilustrativo desse fato84.

81

DAMÁSIO, António. Ao Encontro de Espinosa: as emoções sociais e a neurologia do sentir (Looking for Spinoza. Joy, Sorrow and the Feeling Brain, 2003). Minra-Sintra: Mem Martins, 2003, p. 96. As próximas citações deste tópico serão do mesmo livro, salvo informação em contrário. 82

DAMÁSIO, António. Ao Encontro de Espinosa: as emoções sociais e a neurologia do sentir (Looking for Spinoza. Joy, Sorrow and the Feeling Brain, 2003). Minra-Sintra: Mem Martins, 2003, p. 172. Como explica Damásio: “talvez o papel mais fundamental dos sentimentos no que diz respeito à ética sempre tenha sido, desde o seu aparecimento, o de manter mentalmente presente a condição da vida, de forma que essa condição pudesse desempenhar um papel principal na organização do comportamento. E é precisamente porque os sentimentos continuam a ter esse papel que julgo que eles devem ser ouvidos quando a coletividade social discute a avaliação, desenvolvimento e aplicação de instrumentos culturais tais como as leis, a justiça e a organização sociopolítica” (p. 190). 83

DAMÁSIO, António. Ao Encontro de Espinosa: as emoções sociais e a neurologia do sentir (Looking for Spinoza. Joy, Sorrow and the Feeling Brain, 2003). Minra-Sintra: Mem Martins, 2003, p. 204. No seu “O Erro de Descartes”, Damásio assinalou: “No que têm de melhor, os sentimentos encaminham-nos na direção correta, levam-nos para o lugar apropriado do espaço de tomada de decisão onde podemos tirar partido dos instrumentos da lógica” (DAMÁSIO, António. O Erro de Descartes. Emoção, Razão e Cérebro Humano. Lisboa: Publicações Europa-América, 1995, p. 13). 84

DAMÁSIO, António. Ao Encontro de Espinosa: as emoções sociais e a neurologia do sentir (Looking for Spinoza. Joy, Sorrow and the Feeling Brain, 2003). Minra-Sintra: Mem Martins, 2003, p. 57.

Page 41: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

41 Nesse aspecto, também se pode invocar o pensamento de David Hume, que

demonstrou que as nossas impressões nem sempre são confiáveis, pois funcionam

indutivamente, com base na observação de fatos que se repetem na natureza. É que nossas

impressões costumam gerar expectativas equivocadas em nossas mentes. Tendemos a fazer

inferências nem sempre corretas a respeito da realidade e, por força do costume e do hábito,

julgamos que é verdade o que é apenas uma falsa generalização que fantasiamos por

acreditar que “os casos de que não tivemos experiência se assemelham àquele que

experimentamos”85, quando, na verdade, “a razão jamais pode mostrar-nos a conexão de um

objeto com outro, ainda mesmo com a ajuda da experiência e da observação da sua

conjunção constante em todos os casos passados” (p. 12886). Seríamos, portanto, como

aqueles mentirosos que, “pela freqüente repetição das suas mentiras, acabam por acreditar

nelas e recordá-las como se fossem realidades” (p. 12187).

David Hume, porém, não acreditava no poder da razão para nos ajudar a escapar

dessas falsas generalizações, já que todo nosso raciocínio se baseia na indução e, como se viu,

o pensamento indutivo não se sustenta do ponto de vista lógico. Daí porque

“não é somente em poesia e música que devemos seguir o nosso gosto e sentimento, mas igualmente em filosofia. Quando estou convencido de um princípio qualquer é apenas uma idéia que me fere mais fortemente. Quando dou preferência a uma série de argumentos em relação a outra, não faço outra coisa senão decidir de acordo com o que sinto relativamente à superioridade da sua influência” (p. 140).

Para Hume, “a razão é, e deve ser apenas escrava das paixões; não pode aspirar a

outro papel senão o de servi-las e obedecer-lhes” (p. 482). Isso valeria até mesmo para os

juízos éticos, já que todas as paixões, hábitos, disposições de caráter que tendem a favorecer-

nos ou a prejudicar-nos causam-nos prazer ou mal-estar. Em razão disso, “visto que se admite

que há um prazer ou um mal-estar que acompanha sempre os méritos ou deméritos, isso é

tudo o que é necessário para o meu desígnio” (p. 349).

Kant defendeu justamente o oposto. Afinal, questionou o filósofo de Königsberg, se os

instintos devessem governar os homens, estabelecendo os meios para se alcançar a

85

HUME, David. Tratado da Natureza Humana (A Treatise of Human Nature, 1888). Trad. Serafim da Silva Fontes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 125. 86

Hume defende que “não há nada num objeto considerado em si mesmo que nos dê qualquer razão para tirar uma conclusão para além dele; e que mesmo depois da observação de uma conjunção freqüente ou constante de objetos, não temos qualquer razão para fazer qualquer inferência a respeito de qualquer objeto de que não tivemos experiência” (p. 179). Por isso, “a razão, por si só, jamais pode gerar uma idéia original” e “a razão, enquanto distinta da experiência, nunca pode fazer-nos concluir que uma causa ou qualidade produtora é absolutamente necessária para qualquer princípio de existência” (p. 198). Todas as citações são de HUME, David. Tratado da Natureza Humana (A Treatise of Human Nature, 1888). Trad. Serafim da Silva Fontes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. 87

Eis alguns exemplos contemporâneos desse fenômeno: “todos os políticos são corruptos”; “todos os muçulmanos são terroristas”; “todos os homossexuais são devassos” e por aí vai.

Page 42: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

42

felicidade, para quê então teria sido desenvolvida a razão no ser humano88? A razão parece

ser um instrumento muito raro, precioso e poderoso para se deixar escravizar pelas emoções.

Portanto,

“se a razão não é apta bastante para guiar com segurança a vontade no que respeita aos seus objetivos e à satisfação de todas as nossas necessidades (que ela mesma – a razão – em parte multiplica), visto que um instinto natural inato levaria com muito maior certeza a este fim, e se, no entanto, a razão, nos foi dada como faculdade prática, isto é, como faculdade que deve exercer influência sobre a vontade, então o seu verdadeiro destino deverá ser produzir um vontade, não só boa quiçá como meio para outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma, para o que a razão era absolutamente necessária, uma vez que a natureza de resto agiu em tudo com acerto na repartição das faculdades e talentos” 89.

Mas talvez Kant leve a crença na razão longe demais, chegando ao ponto de dizer que

uma ação somente teria conteúdo moral quando o agente age contra as suas inclinações

imediatas. Toda vez que existisse uma coincidência entre a emoção e a razão, a conduta

humana seria moralmente irrelevante. A pessoa que cuida do filho porque ama o filho não

estaria fazendo mais do que o seu dever biológico e, portanto, a sua ação seria indiferente do

ponto de vista moral. A conduta humana somente teria valor moral quando houvesse

sacrifício emocional, ou seja, quando os sentimentos fossem deixados de lado em favor da

razão90. “Nada esperar da inclinação dos homens”, defendia Kant91. Tudo o que é empírico (e

88

Eis seu argumento completo: “Quando consideramos as disposições naturais dum ser organizado, isto é, dum ser constituído em ordem a um fim que é a vida, aceitamos como princípio que nele se não encontra nenhum órgão que não seja o mais conveniente e adequado à finalidade à que se destina. Ora, se num ser dotado de razão e vontade, a verdadeira finalidade da natureza fosse a sua conservação, o seu bem-estar, numa palavra, a sua felicidade, muito mal teria ela tomado as suas disposições de escolher a razão da criatura para executora destas intenções. Pois todas as ações que esse ser tem de realizar nesse propósito, bem como toda a regra do seu comportamento, lhe seriam indicadas com muito maior exatidão pelo instinto, e aquela finalidade obteria por meio dele muito maior segurança do que pela razão; e se, ainda por cima, essa razão tivesse sido atribuída à criatura como um favor, ela só lhe poderia ter servido para se entregar a considerações sobre a feliz disposição da sua natureza para a admirar, alegrar-se com ela e mostrar-se por ela agradecida à Causa benfazeja, mas não para submeter à sua direção fraca e enganadora a sua faculdade de desejar, achavascando assim a intenção da natureza; numa palavra, a natureza teria evitado que a razão caísse no uso prático e se atrevesse a engendrar com as suas fracas luzes o plano da felicidade e dos meios de a alcançar; a natureza teria não somente chamado a si a escolha dos fins, mas também a dos meios, e teria com sábia prudência confiado ambas as coisas simplesmente ao instinto” (KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 24). 89

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 25/26. 90

O exemplo kantiano que melhor esclarece esse aspecto é o do suicídio versus o dever de viver: “conservar cada qual a sua vida é um dever, e é além disso uma coisa para que toda a gente tem inclinação imediata. Mas por isso mesmo é que o cuidado, por vezes ansioso, que a maioria dos homens lhe dedicam não tem nenhum valor intrínseco e a máxima que o exprime nenhum conteúdo moral. Os homens conservam a sua vida conforme ao dever, sem dúvida, mas não por dever. Em contraposição, quando as contrariedades e o desgosto sem esperança roubaram totalmente o gosto de viver; quando o infeliz, com fortaleza de alma, mais enfadado do que desalentado ou abatido, deseja a morte, e conserva contudo a vida sem a amar, não por inclinação ou medo, mas por dever, então a sua máxima tem um conteúdo moral” (KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 28).

Page 43: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

43

os sentimentos são empíricos) é não só inútil “mas também altamente prejudicial à própria

pureza dos costumes”92.

O rigorismo da moral kantiana tem sido criticado, com razão, por vários filósofos

morais ao longo do tempo. Talvez quem tenha melhor retrato o absurdo dessa rigidez foi

Friedrich Schiller que, com seus dois “dísticos elegíacos” satirizou esse aspecto da moral

kantiana de maneira bastante espirituosa. Eis suas palavras:

“Escrúpulos da consciência Amigos, que prazer servir-vos! Mas faço-o por amável inclinação. Portanto,

nenhuma virtude tenho e sinto-me profundamente desgostado. Solução do Problema Que posso fazer quanto a isso? Tenho de ensinar-me a detestar-vos, e, com

desgosto no coração, servi-vos como ordena o dever”93.

Nessa disputa entre Hume, que supervalorizava as paixões, e Kant, que supervalorizava

a razão, é possível encontrar um meio termo. Kant está certo quando defende a importância

da reflexão racional no processo de definição dos juízos éticos, já que os sentimentos podem

nos levar a cair na chamada falácia do desejo ou da esperança (wishful thinking), que é a

forma de pensamento que consiste em tomar como verdade o que se deseja que seja

verdade. Stuart Mill dizia com razão que “a humanidade está sempre predisposta a acreditar

que qualquer sentimento subjetivo, para o qual não há outra explicação, é uma revelação de

uma realidade objetiva”94. Mas não é preciso ser tão insensível quanto ao papel dos

sentimentos nesse processo de formação dos juízos éticos, já que as emoções podem

funcionar como um poderoso mecanismo para a criação de vínculos de afetividade e

cooperação entre as pessoas ao longo da evolução biológica, que são ótimos catalisadores das

condutas éticas – e talvez tenham sido desenvolvidos mesmo para esse fim.

Além disso, a razão não é infalível, nem perfeita, nem suficiente para solucionar todos

os problemas, em todos os tempos e lugares, especialmente os problemas éticos, cujas

conseqüências de longo prazo são marcadas pela incerteza, enquanto que a razão é sempre

alicerçada em um número limitado de informações fragmentadas e manipuláveis. Sob esse

ponto, Hume certamente está certo ao dizer que para o homem de melhor bom senso, a

91

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 68. 92

“o que constitui o valor particular de uma vontade absolutamente boa, valor superior a todo o preço, é que o princípio da ação seja livre de todas as influências de motivos contingentes que só a experiência pode fornecer. Todas as prevenções serão poucas contra este desleixo ou mesmo essa vil maneira de pensar, que leva a buscar o princípio da conduta em motivos e leis empíricas; pois a razão humana é propensa a descansar das suas fadigas neste travesseiro e, no sonho de doces ilusões (que lhe fazem abraçar uma nuvem em vez de Juno), a pôr em lugar do filho legítimo da moralidade um bastardo composto de membros da mais variada proveniência que se parece com tudo o que nele se queira ver, só não se parece com a virtude aos olhos de quem um dia a tenha vista na sua verdadeira figura” (KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 68/69). 93

apud POPPER, Karl. Busca Inacabada: autobiografia intelectual (Unended Quest: an intellectual autobiography, 1976). Lisboa; Esfera do Caos, 2008, p. 269. 94

MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 100.

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autoridade das opiniões nunca é completa, “pois mesmo um tal homem deve ter consciência

de se ter enganado muitas vezes no passado, e deve recear outro tanto no futuro”95. Também

está certo Mill quando dizia que

“se temos instintos intelectuais, levando-nos a ajuizar de determinada maneira, bem como instintos animais que nos levam a agir de determinada maneira, não há qualquer necessidade de os primeiros serem mais infalíveis na sua esfera do que os últimos na deles: pode muito bem dar-se o caso de os juízos errados serem ocasionalmente sugeridos por aqueles, tal como as ações erradas poderão ocasionalmente serem sugeridas por estes”96.

Nenhuma teoria ética deve se basear unicamente nas emoções, pois os sentimentos

nem sempre nos levam a agir eticamente, já que as sensações são subjetivas, individuais e,

muitas vezes, egoístas, ao passo que a ética deve ser objetiva, social, cooperativa. As emoções

visam o imediato, enquanto que a razão pode mirar conseqüências de longo prazo. O que nos

torna seres racionais é precisamente essa capacidade de refletir sobre nossas emoções e

controlar nossos impulsos que se afastem de uma noção ética desenvolvida por nós e para

nós. Mas nenhuma teoria ética deveria tratar os sentimentos com indiferença, como se

fossem inúteis e sempre atrapalhassem. Os mais recentes estudos neuropsicológicos

demonstram precisamente o contrário. Há fortes razões para crer que a emoção e o

sentimento desempenham um papel no raciocínio e esse papel é geralmente benéfico – e

quando o papel é benéfico, a presença da emoção e do sentimento é indispensável. António

Damásio demonstrou que pacientes que sofreram lesões cerebrais e perderam a capacidade

de sentir emoções sociais, como a empatia ou a vergonha, por exemplo, são capazes resolver

problemas lógicos como qualquer outra pessoa e até mesmo conseguem, em laboratório,

resolver problemas sociais e morais apresentados numa situação hipotética. Porém, de pouco

lhes serve toda esta sabedoria formal, lógica e racional quando enfrentam a realidade, pois a

sua indiferença emocional não lhes fornece nenhum estímulo para agir moralmente. Ao não

usar a experiência emocional acumulada ao longo de suas vidas, suas decisões

comportamentais na vida real costumam ser desastrosas, gerando problemas familiares,

financeiros e afetivos de um modo geral97. Por isso, “se fôssemos incapazes de sentir empatia

95

HUME, David. Tratado da Natureza Humana (A Treatise of Human Nature, 1888). Trad. Serafim da Silva Fontes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 225. 96

MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 100. 97

DAMÁSIO, António. Ao Encontro de Espinosa: as emoções sociais e a neurologia do sentir (Looking for Spinoza. Joy, Sorrow and the Feeling Brain, 2003). Minra-Sintra: Mem Martins, 2003. Damásio chega a defender que, na ausência de emoções e sentimentos normais, especialmente na ausência de emoções sociais (como o embaraço, a vergonha, a culpa, o desprezo, a indignação, a simpatia, a compaixão, o espanto, a admiração, a gratidão e o orgulho), a emergência de comportamentos éticos seria improvável, pois, em tais circunstâncias, a construção cultural daquilo que deve ser considerado bom ou mau seria mais difícil. As emoções e os sentimentos, na sua ótica, terão sido um alicerce necessário para os comportamentos éticos muito antes dos seres humanos terem iniciado a construção deliberada de normas inteligentes de conduta social (p. 183/184). É preciso lembrar, contudo, que não se deve confundir os sentimentos naturais de cooperação com a ética, sob pena de se cair no já comentado erro da falácia naturalista.

Page 45: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

45

– de nos colocarmos na posição dos outros e de ver que o seu sofrimento é como o nosso -, o

raciocínio ético não nos levaria a lado nenhum. Se a emoção sem razão é cega, então a razão

sem emoção é impotente”98.

A partir desses dados, é possível extrair as seguintes conclusões parciais acerca da

função do sentimento na elaboração e realização das condutas éticas:

(a) para os problemas éticos do dia-a-dia, com os quais já estamos acostumados e que,

por isso, não demandam uma reflexão mais profunda e exigem respostas imediatas, as nossas

emoções, vale dizer, o nosso pensamento intuitivo exerce uma função muito importante, pois

é capaz de nos fornecer, quase automaticamente, uma linha de conduta que, em geral, é

confiável, prudente e razoável;

(b) para os problemas éticos mais complexos, que não estamos preparados para

resolvê-los de imediato, o papel das emoções é apenas secundário, funcionando ora como um

indicador provisório de uma boa conduta, ora como um catalisador de nossa vontade;

(c) os juízos éticos abstratos podem ser formulados até mesmo por pessoas insensíveis,

pois qualquer pessoa que tenha capacidade de raciocínio lógico está habilitado, em tese, para

desenvolver soluções que possam ser justificadas racionalmente. Por outro lado, ainda que as

emoções não sejam imprescindíveis para a formulação de juízos éticos abstratos e hipotéticos,

elas são essenciais para motivar o agente a agir conforme essa solução, sendo fundamentais

para a realização prática da ética.

Por isso, pode-se dizer que o papel da ética é nos fornecer argumentos de reflexão

para que possamos avaliar se nossos sentimentos estão nos levando para o lado certo ou

errado, sobretudo quando colocamos os interesses dos outros na balança de nossas decisões.

Quando os sentimentos nos levam para o caminho da ética, é melhor embarcar neles com

razão e tudo. Se a razão é o motor da ética, a emoção é seu combustível.

4.4 Ética da Eternidade

A ética é uma construção teórica (cultural) que faz parte do mundo do conhecimento

objetivo e racional (o Mundo 3 popperiano). As diversas concepções éticas, inclusive aquelas

98 SINGER, Peter. Escritos sobre uma Vida Ética (Writings on na Ethical Life, 2000). Trad. Pedro Galvão, Maria

Teresa Castanheira e Diogo Fernandes. Lisboa: Dom Quixote, 2008, p. 17. Não se pode deixar de fazer uma analogia dessa idéia com a famosa passagem bíblica da Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios, cuja poesia não é capaz de afastar a sua racionalidade: “Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios e toda a ciência: ainda que eu tenha tamanha fé, a ponto de transportar montanhas, se não tiver amor, nada serei. E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres e ainda que entregue meu próprio corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso se aproveitará. O amor é paciente, é benigno, o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não procura seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade”.

Page 46: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

46

de natureza religiosa, foram desenvolvidas pelos seres humanos para proporcionar uma vida

melhor em sociedade, ainda que, muitas vezes, as teorias sejam manipuladas para

satisfazerem interesses de grupos e de pessoas específicas.

Dentro desse processo de desenvolvimento de teorias éticas, somente aquelas

concepções éticas que funcionam na prática sobrevivem e merecem ser seguidas. As

sociedades que seguiram condutas éticas destrutivas e não-cooperativas certamente

desapareceram (ou desaparecerão) e não deixaram (ou não deixarão) descendentes para

contar a história.

Aqui podemos aproveitar uma parte da ética kantiana, que é a idéia de universalidade.

Como se viu, Kant dizia que uma conduta será ética se puder se transformar em uma lei

universal de conduta. Mas Kant não disse qual a sanção para o descumprimento dessa lei

universal de conduta, nem forneceu qualquer motivo para obedecê-la, exceto uma sanção

interior provocada pelo sentimento de descumprimento do dever (“a lei moral dentro de

mim”).

Além dessa sanção subjetiva, há outro efeito de longo prazo: se você não agir de tal

forma que a sua conduta possa se tornar uma lei universal, certamente você, ou melhor, os

seus futuros descendentes perderão um lugar na vida eterna, pois, ao seguir uma ética não-

cooperativa, você terá mais dificuldades de perpetuar seus genes.

O próprio Kant tinha alguma noção desse fenômeno, ainda que, logicamente, não

tivesse qualquer contato com a idéia de gene, que foi desenvolvida algumas décadas depois.

Mas ele tinha uma noção de que uma conduta auto-destrutiva não cumpriria o requisito

moral da universalidade. Um de seus exemplos mais conhecidos é o do sujeito que, por estar

em apuros financeiros, questiona se deveria pedir dinheiro emprestado mesmo sabendo que

não poderá cumprir o pacto. Caso o sujeito tivesse em mente apenas a satisfação de seus

interesses imediatos, certamente não hesitaria em pedir emprestado o dinheiro para escapar

das dívidas já vencidas. Porém, se ele pensasse nas conseqüências futuras de seu ato, talvez

chegasse à conclusão de que poderia se prejudicar ainda mais, já que perderia a confiança dos

seus pares e nunca mais conseguiria realizar qualquer negócio. Assim, mesmo que estivesse

pensando em seus próprios interesses, esse sujeito chegaria à conclusão de que talvez fosse

melhor não assumir um compromisso que não pode cumprir.

O sujeito moral kantiano, para resolver de maneira mais segura o problema de saber

se uma promessa mentirosa é conforme ao dever, precisaria perguntar a si mesmo: “ficaria eu

satisfeito de ver a minha máxima (de me tirar de apuros por meio de uma promessa não

verdadeira) tomar o valor de lei universal (tanto para mim como para os outros)?”

Raciocinando assim, a conclusão seria óbvia: se todos fizessem uma promessa

mentirosa quando se achassem numa dificuldade, uma tal lei universal impediria a existência

de qualquer tipo de promessa, “porque seria inútil afirmar a minha vontade relativamente às

Page 47: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

47

minhas futuras ações a pessoas que não acreditam na minha afirmação, ou, se

precipitadamente o fizessem, me pagariam na mesma moeda. Por conseguinte, a minha

máxima, uma vez arvorada em lei universal, destruir-se-ia a si mesma necessariamente”99.

Essa lógica utilizada por Kant é uma lógica muito semelhante à lógica

conseqüencialista. O respeito ao dever moral, já que alicerçado na razão, não é uma regra

sem sentido. O ser racional, ao se convencer que deve agir moralmente, tem plena

consciência de que vale a pena agir de tal forma para que sejam colhidos benefícios de longo

prazo. Kant, naturalmente, não concordaria com isso, pois ele insiste em afirmar a ação moral

não se interessa pelas conseqüências nem pelos motivos da ação. Eis suas palavras:

“não preciso pois de perspicácia de muito largo alcance para saber o que hei-de fazer para que o meu querer seja moralmente bom. Inexperiente a respeito do curso das coisas do mundo, incapaz de prevenção em face dos acontecimentos que nele se venham a dar, basta que eu pergunte a mim mesmo: - Podes tu querer também que a tua máxima se converta em lei universal? Se não podes, então deves rejeitá-la, e não por causa de qualquer prejuízo que dela pudesse resultar para ti ou para os outros, mas porque ela não pode caber como princípio numa possível legislação universal” 100.

O argumento é forte e convincente, mas Kant deu um salto arbitrário ao não

responder a seguinte questão básica: mas por que essa conduta (assumir compromissos

irrealizáveis) não pode se tornar uma lei universal? Quais as razões que conferem a uma

máxima o seu caráter universal? A resposta é simples, mas, ao respondê-la, temos que

assumir necessariamente uma postura conseqüencialista. Pode-se dizer que a promessa

mentirosa não é uma ação ética porque, entre outras coisas, não é uma estratégia

evolutivamente estável. Ela não sobrevive numa perspectiva de longo prazo, sendo destruída

por outras estratégias melhores, especialmente pelo Tic for Tat (aliás, é até curioso que Kant

tenha usado a expressão “pagar na mesma moeda” para justificar a destruição da promessa

mentirosa).

Kant sabia disso perfeitamente quando afirmou, com base em argumentos

nitidamente conseqüencialistas, que “a universalidade de uma lei que permitisse a cada

homem que se julgasse em apuros prometer o que lhe viesse à idéia com a intenção de o não

cumprir, tornaria impossível a própria promessa e a finalidade que com ela se pudesse ter em

vista; ninguém acreditaria em qualquer coisa que lhe prometessem e rir-se-ia apenas de tais

declarações como de vãos enganos”101.

99

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 35. O destaque foi acrescentado para reforçar a idéia de reciprocidade. 100

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 36. 101

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 64.

Page 48: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

48 É justamente por isso, ou seja, pelas conseqüências danosas que provoca em longo

prazo, que esse princípio de fazer uma promessa irrealizável não pode se tornar uma lei

universal102. E é importante que o agente moral saiba disso. O sujeito que atingiu um estágio

moral tão elevado quanto o proposto pelo o deontologismo kantiano, ou seja, que cumpre as

leis morais seguindo o seu puro sentimento de dever sem pensar nas conseqüências, é tão

confiante de si que sua arrogância pode ser fatal, já que é um passo para o fanatismo. O

melhor é nunca perder a humildade intelectual e meditar constantemente sobre os benefícios

de longo prazo que uma ação moral pode produzir. Agir tão somente por uma observância do

sentimento de dever é tão irracional quanto agir apenas pensando no prazer imediato. Tal

atitude não é digna de um ser racional.

O dever moral, portanto, não é nem deve ser um sentimento cem por cento puro e

totalmente indiferente aos resultados produzidos pela ação. O deontologismo kantiano, na

verdade, pode ser, com vantagens, transformado em uma ética conseqüencialista de longo

prazo103. Ao levar em conta o ser humano concreto – racional e emocional – os argumentos

kantianos deverão ser revistos e, uma vez ocorrendo isso, sua ética se aproxima da ética

utilitarista, pelo menos em parte, já que a sua utilidade não é o prazer, mas os benefícios

globais que ela gera104.

O dever moral nasce de uma reflexão racional que se preocupa com as conseqüências

de longo prazo e estimula o sujeito a segui-lo mesmo que os benefícios de curto prazo não lhe

sejam favoráveis. Se todos seguirem o dever moral, as relações sociais se estabilizam

102

Stuart Mill também percebeu isso. Ao elogiar Kant, dizendo que “este homem notável, cujo sistema de pensamento permanecerá por muito tempo um dos marcos da história da especulação filosófica”, diz que, quando tenta justificar o seu primeiro imperativo categórico, Kant “fracassa, de forma quase grotesca”. Tudo o que demonstra “é que as conseqüências da sua adoção universal seriam de tal ordem que ninguém escolheria sofrê-las”. Por isso, “para dar algum significado ao princípio kantiano, o sentido que lhe é conferido tem de ser que devemos moldar a nossa conduta por uma regra que todos os seres racionais pudessem adotar com benefício para o seu interesse coletivo” (MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 47 e 113/114). 103

R. H. Hare também sugeriu, no artigo “Could Kant have beem Utilitarian?” que Kant poderia ter sido utilitarista, embora não tenha sido. A teoria formal kantiana, segundo Hare, pode certamente ser interpretada de tal forma que permita que ele possa ser considerado como uma espécie de utilitarista, de modo que os desacordos de Kant com os utilitaristas podem ser bem menores do que os filósofos morais costumam bradar (HARE, R. H. Sorting Out Ethics. Oxford: Claredon Press, 1997, p. 147/166). Para os utilitaristas, não há, em verdade, um choque entre a ética utilitária e a ética deontológica, já que esta pode ser útil se canalizada para o bem, vale dizer: o próprio deontologismo é capaz de servir aos propósitos do utilitarismo. A esse respeito, Mill diria que “se a crença na origem transcendental da obrigação moral concede alguma eficácia acrescida à sanção interna, parece-me que o princípio utilitarista beneficia já dela” (MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 82). 104

O próprio Kant afirmou: “é absolutamente impossível encontrar na experiência com perfeita certeza um único caso em que a máxima de uma ação, de resto conforme ao dever, se tenha baseado puramente em motivos morais e na representação do dever (...). nunca podemos penetrar completamente até aos móbiles secretos dos nossos atos, porque, quando se fala de valor moral, não é das ações visíveis que se trata, mas dos seus princípios íntimos que não se vêem” (KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 42).

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49

indefinidamente no tempo e todos serão beneficiados no final. Por outro lado, aqueles que

não cumprem o dever o moral colherão os frutos negativos desta conduta mais cedo ou mais

tarde, ainda que possam receber alguma vantagem imediata.

Qualquer concepção ética, para ter alguma chance de sucesso a longo prazo, precisa

ter como mira a idéia de eternidade, isto é, precisa valorizar o futuro, por mais distante que

seja. As concepções éticas que se preocupam apenas com o aqui e com o agora

provavelmente não terão seguidores daqui a mil ou um milhão de anos. “Se alguém propõe

uma ética tão nobre que tentar viver à sua luz constitua um desastre para todos, então -

independentemente de quem a propôs - não é uma ética nobre de todo, é uma ética estúpida

que deve ser firmemente recusada”, diria Peter Singer105.

Nesse aspecto, Stuart Mill está errado quando defende que o remorso é “a sanção

derradeira de toda moralidade”106. O sentimento subjetivo de desaprovação, a nossa

consciência moral, a vergonha etc. são meras sanções internas que funcionam apenas como

uma espécie de combustível para motivar a prática das condutas éticas. A sanção derradeira

da ética, ainda quando não acumulada com as sanções jurídicas e sociais, é muito mais séria: é

a derrota biológica numa perspectiva de sobrevivência de longo prazo.

Isso não significa, contudo, que quem age segundo a máxima do “aja de tal modo que

sua ação possa ser considerada como uma estratégia evolutivamente estável” está

necessariamente agindo eticamente. Pode ser que existam estratégias evolutivamente

estáveis que não sejam éticas107. No entanto, qualquer noção de ética tem que ser uma

estratégia evolutivamente estável, pois esse é um pressuposto básico ditado pelas leis da

105

SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?, 1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 305. 106

MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 80. 107

Kant, por exemplo, cita o caso da caridade. Uma sociedade em que as pessoas não praticassem a caridade poderia até subsistir, “mas embora seja possível que uma lei universal da natureza possa subsistir segundo aquela máxima, não é contudo possível querer que um tal princípio valha por toda a parte como lei natural. Pois uma vontade que decidisse tal coisa pôs-se-ia em contradição consigo mesma: podem com efeito descobrir-se muitos casos em que a pessoa em questão precise do amor e da compaixão dos outros e em que ela, graças a tal lei natural nascida da sua própria vontade, roubaria a si mesma toda a esperança de auxílio que para si deseja” (p. 65). Em outra passagem, Kant invoca seu segundo imperativo categórico para justificar a caridade: “Ora, é verdade que a humanidade poderia subsistir se ninguém contribuísse para a felicidade dos outros, contanto que também lhes não subtraísse nada intencionalmente; mas se cada qual se não esforçasse por contribuir na medida das suas forças para os fins dos seus semelhantes, isso seria apenas uma concordância negativa e não positiva com a humanidade como fim em si mesma. Pois que se um sujeito é um fim em si mesmo, os seus fins têm de ser quanto possível os meus, para aquela idéia poder exercer em mim toda a sua eficácia” (p. 75). Todas as citações são de KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008. No fundo, se for analisada a questão da caridade numa perspectiva de longo prazo, certamente se concluirá que uma sociedade que não trata a caridade como um dever moral ou que não estimula a cooperação entre os seres racionais tem muito menos chances de sobreviver do que uma sociedade em que há um vínculo de afetividade e de compaixão entre as pessoas. Estratégias não-cooperativas estão fadadas ao fracasso. Sob esse tema, numa perspectiva biológica evolucionista, vale conferir: RIDLEY, Matt. As Origens da Virtude: um estudo biológico da solidariedade (The Origins of Virtue, 1996). Rio de Janeiro: Record, 2000.

Page 50: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

50

natureza108. A ética da reciprocidade, por exemplo, é uma ética que cumpre esse requisito e

talvez isso justifique a predominância histórica das religiões que recomendam a observância

da regra de ouro.

4.5 A Ética e as Gerações Futuras (Ética Intergeracional)

Nenhuma concepção ética pode deixar de pensar nas gerações futuras, nem na própria

“vida” do planeta, pois é nele que convivemos. As teorias éticas devem ser estabelecidas com

vistas a objetivos de longuíssimo prazo, considerando o valor intrínseco e permanente de

todas as riquezas ecológicas, não apenas para o presente, mas, sobretudo, para o futuro109.

Os efeitos das escolhas que tomamos e dos atos que praticamos agora, neste

momento presente, podem se prolongar no tempo e podem afetar não apenas os habitantes

atuais do planeta, mas também os habitantes futuros. Dependendo da dimensão do ato,

podem ser causados danos permanentes ou de difícil e longa recuperação que atingem de

uma forma direta as gerações futuras, já que muitos bens naturais não são regeneráveis ou

não são renováveis ou são de demorada regeneração/renovação. Se a ética deve mirar os

efeitos de longo prazo e deve ter como base a preocupação com os interesses de todos os

afetados pelos nossos atos, a conclusão óbvia é a de que o círculo ético deve ser alargado

para que sejam incluídos os seres que ainda virão.

Temos que ter consciência de que a capacidade do ambiente para satisfazer as

necessidades humanas é limitada. Portanto, ao usufruirmos dos bens naturais, devemos

também pensar na possibilidade de os nossos descendentes satisfazerem as suas próprias

necessidades e terem um nível de bem-estar ótimo, talvez até melhor do que temos hoje.

Quem talvez tenha melhor captado e divulgado essa idéia foi Hans Jonas, um filósofo

alemão da contemporaneidade que desenvolveu a noção de “ética da responsabilidade”, em

108

Sobre isso, Kant diria: “alguma ações são de tal ordem que a sua máxima nem sequer se pode pensar sem contradição como lei universal da natureza, muito menos ainda se pode querer que devam ser tal” (KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 66). 109

A esse respeito, vale citar o conselho de Hans Küng: “até à data, a Ética, enquanto reflexão sobre o comportamento moral do ser humano, tem chegado sempre tarde demais: na maior parte dos casos, interrogamo-nos acerca do que deveríamos fazer depois de já o termos feito. Para o nosso futuro, porém, será determinante que perguntemos o que deveríamos fazer antes de o termos feito. A Ética, ainda que circunscrita temporal e socialmente, não deveria apenas consistir numa reflexão em tempo de crise; quem observa constantemente pelo espelho retrovisor o troço de estrada percorrido esquece-se de olhar para o caminho à percorrer à sua frente” (p. 40). Em outra passagem, Küng complementa essa idéia: “Qual deveria ser, pois, a máxima a adotar com vista a um futuro comum? Qual seria o nosso ideal ético para o terceiro milênio? Qual a palavra de ordem para a nossa estratégia futura? Respota: palavra-chave para a nossa estratégia futura deverá ser a responsabilização dos seres humanos relativamente ao destino deste planeta, ou seja, um sentido da responsabilidade à escala planetária” (KÜNG, Hans. Projecto para Uma Ética Mundial (Projekt Weltethos, 1990). Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços. Lisboa: Piaget, 1996, p. 61).

Page 51: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

51

um famoso livro publicado logo depois do acidente de Chernobyl. Partindo de uma justa

preocupação com a não-destruição da humanidade em decorrência das novas tecnologias e

dos danos causados à natureza, Hans Jonas defendeu o desenvolvimento de uma ética

orientada para o futuro, que pretende proteger os nossos descendentes das nossas ações

presentes e não permaneça circunscrita ao âmbito imediato e interpessoal de nossos

contemporâneos. Para ele, a ética precisa deixar de pensar apenas no momento presente,

devendo ser capaz de impedir um desastre ecológico e antropológico irreversível que as ações

humanas são capazes de provocar com as técnicas de destruição recentemente adquiridas.

Por isso, a ética deve ser repensada para fornecer instruções de autovigilância em face do

desmesurado poder humano. Isso significa, entre outras coisas, que a humanidade tem a

obrigação ética de, entre outras coisas, conservar este mundo físico de tal modo que as

condições para tal existência permaneçam intactas.

A partir daí, Hans Jonas desenvolveu uma versão adaptada do imperativo categórico

kantiano, que poderia ser expresso do seguinte modo, nas suas próprias palavras: “age de tal

modo que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana

autêntica na Terra”, ou, na sua forma negativa, “age de tal modo que os efeitos de tua ação

não sejam destrutivos para a futura possibilidade dessa vida”, ou, simplesmente, “não ponha

em perigo as condições da continuidade indefinida na Terra” ou, finalmente, “inclua em tuas

considerações presentes, como objeto também de tua vontade, a futura integridade do

homem”110.

O tom alarmista de Hans Jonas talvez deixe transparecer um medo paranóico e

exagerado (heurística do medo), mas não é por menos. O mundo nunca esteve tão perto de

um colapso quanto no século XX, que viu duas guerras mundiais sangrentas e desumanas;

acompanhou uma longa guerra fria que separou a humanidade em dois blocos inimigos;

assistiu a um crescente desenvolvimento de armas de destruição em massa, cujo potencial

destrutivo ultrapassa qualquer noção de bom senso; presenciou dois ataques nucleares com

milhares de vítimas civis; sofreu acidentes ambientais sérios e irreversíveis, ora provocados

pelos próprios seres humanos ora pela impossibilidade de controle da natureza; sentiu os

efeitos danosos dos acidentes radiativos de grande magnitude, como bem demonstrou

Chernobyl; e tardiamente tem se conscientizado de um risco concreto de catástrofes

ambientais provocadas pelo aumento do buraco na camada de ozônio e pelo esgotamento

das fontes de energia e de recursos minerais, decorrente de um consumismo insustentável.

Tais ameaças e riscos se estendem até os dias de hoje e foram ainda mais potencializados

pelas pesquisas genéticas, atômicas e pelo aquecimento global, que pairam como uma

“espada de Dâmocles” na cabeça da humanidade.

110

JONAS, Hans. El Principio de Responsabilidad: ensayo de una ética para la civilización tecnológica. Barcelona: Herder, 1995, p. 40.

Page 52: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

52 Isso não significa que se deva abrir uma guerra contra a ciência ou contra a tecnologia.

Não há qualquer incompatibilidade absoluta entre as inovações tecnológicas e o necessário

respeito ao ser humano e à natureza que deve pautar todas as atividades sociais. Pelo

contrário. É o próprio conhecimento científico que tem sido capaz de detectar as principais

ameaças ao Planeta e sugerir soluções para minorar os problemas causados pelo avanço

tecnológico e pelo desenvolvimento econômico. Por isso, não é preciso defender a destruição

de todas as formas de tecnologias, como fizeram os ludistas no Século XIX, quando viram seus

empregos serem ameaçados pela automatização da indústria, mas tão somente exigir que o

método científico seja utilizado de forma “prudente para uma vida decente”, como bem

sugeriu Boaventura de Sousa Santos, tentando, acertadamente, contribuir para a legitimação

ética do método científico ao invés de combatê-lo111.

Há, ainda, outro efeito importante que surge a partir daí. É que a ética, que sempre

tem sido tratada como um assunto de foro privado, tem que buscar uma institucionalização

para poder surtir o efeito desejado de forma eficaz, devendo ser tratada como “um assunto

de interesse público e de primeira ordem”112. Vale dizer: a ética precisa se transformar em

direito para proteger a humanidade dela própria, pois somente a normatização jurídica é

capaz de gerar sanções legítimas e efetivas para estimular os indivíduos a agirem eticamente.

É preciso, pois, “passar da ética ao direito”113.

4.6 A Ética e o Diálogo

O pressuposto básico de qualquer pensamento ético é a capacidade humana de

raciocinar e de auto-refletir sobre os nossos próprios atos e sentimentos. A dignidade do ser

humano está na sua autonomia de vontade, ou seja, na sua capacidade de refletir, escolher e

agir em conformidade com nossas escolhas, e, por isso, é inegociável – não tem preço. Não

tratar os outros como objeto significa, em essência, respeitar a sua autonomia da vontade.

Kant e Mill demonstraram com muita clareza a importância da liberdade de escolha

consciente e pensada como nota distintiva dos seres racionais114. E se essa auto-reflexão

111

SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2004. 112

KÜNG, Hans. Projecto para Uma Ética Mundial (Projekt Weltethos, 1990). Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços. Lisboa: Piaget, 1996, p. 69. Para Küng, “os princípios e normas éticas podem e devem – em nome do bem-estar dos seres humanos -, se introduzidos nos debates e nas tomadas de decisões concretas, enquanto critérios de avaliação e de distinção” (p. 115). 113

CHANGEUX, Jean-Pierre (dir.). Uma Mesma Ética para Todos? (Une Même Éthique pour tours?, 1997). Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 22. 114

Eis as palavras de Kant: “são rejeitadas todas as máximas que não possam subsistir juntamente com a própria legislação universal da vontade. A vontade não está pois simplesmente submetida à lei, mas sim submetida de tal maneira que tem de ser considerada também como legisladora ela mesma e, exatamente por isso e só então submetida à lei (de que ela se pode olhar como autora)” (p. 71). “Todo o ser racional deve considerar-se como

Page 53: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

53

racional for incrementada com o diálogo intersubjetivo e produtivo tanto melhor, pois quanto

mais pessoas participam do debate maior é a quantidade de informações disponíveis para se

chegar à melhor solução e mais fácil se torna a compreensão dos interesses alheios, o que

certamente fortalece os elos sociais.

A ética do discurso desenvolvida pelo filósofo alemão Jürgen Habermas pretendeu

reformular a ética kantiana de modo a incluir a comunicação intersubjetiva na sua base,

tentando transformar o raciocínio moral em um acontecimento público em que todos

intervêm de forma conjunta e não em uma reflexão meramente privada e particular115.

Daí, a sua “fórmula-síntese” (Princípio “D”): “as únicas normas que têm o direito de

reclamar validade são aquelas que podem obter a anuência de todos os participantes

envolvidos num discurso prático” (p. 16). Em outros termos: “todas as normas em vigor teriam

de ser capazes de obter a anuência de todos os indivíduos em questão, se estes participassem

de um discurso prático” (p. 34).

A isso se soma um princípio de universalização (“U”) preocupado com as

conseqüências dos atos, algo que já havia sido apontado pelos utilitaristas: “no caso das

normas em vigor, os resultados e as conseqüências secundárias, provavelmente decorrentes

de um cumprimento geral dessas mesmas normas e a favor da satisfação dos interesses de

cada um, terão de poder ser aceites voluntariamente por todos” (p. 16).

Para Habermas, o fato de os seres humanos estarem entrelaçados em múltiplos

esquemas de dependência social implica que os sujeitos dotados da capacidade de linguagem

e de ação só se constituem como indivíduos na medida em que, enquanto elementos de

determinada comunidade lingüística, crescem num universo partilhado intersubjetivamente.

“Ninguém, por si só, consegue afirmar a sua identidade” (p. 19). Logo, “o sujeito dotado de

capacidade de juízo moral nunca pode por si próprio, mas sim em conjunto com todos os

outros indivíduos envolvidos, verificar se um modo controverso de conduta pode servir o

interesse coletivo enquanto prática geral” (p. 61). Somente uma argumentação conduzida de

modo intersubjetivo, e em que todos os indivíduos afetados possam participar, torna possível

a validade geral das normas morais. Para que o debate chegue a um consenso racional, todos

os participantes devem se guiar pela seguinte máxima: “que a tua ação seja orientada para o

entendimento comum e que conceda aos outros a liberdade comunicativa de poderem tomar

uma posição face às pretensões de validade” (p. 168).

legislador universal por todas as máximas da sua vontade para, deste ponto de vista, se julgar a si mesmo e às suas ações” (p. 79). “Autonomia é pois o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional” (p. 83). A heteronomia da vontade, por sua vez, é a “fonte de todos os princípios ilegítimos de moralidade” (p. 90). Todas as citações foram extraídas de: KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008. 115

As informações acerca da ética do discurso foram extraídas de HABERMAS, Jürgen. Comentários à Ética do Discurso (Erläuterungen zur Diskursethik, 1991). Lisboa: Instituto Piaget, 1999. As citações ao longo deste tópico foram extraídas do referido livro, salvo indicação em contrário.

Page 54: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

54 O papel das normas éticas, na teoria habermasiana, não é tão diferente da ética

utilitarista de Stuart Mill: garantir o respeito da dignidade individual e proporcionar a

cooperação entre os indivíduos, enquanto membros de uma comunidade. Esses dois objetivos

correspondem basicamente aos princípios de justiça e de solidariedade: “enquanto um

postula respeito e direitos iguais para cada indivíduo, o outro reclama empatia e cuidado em

relação ao bem-estar do próximo. Em sentido moderno, a justiça diz respeito à liberdade

subjetiva de indivíduos alienáveis; em contrapartida, a solidariedade prende-se com o bem-

estar das partes irmanadas numa forma de vida partilhada intersubjetivamente” (p. 19). “As

normas morais não conseguem proteger uma coisa sem a outra: nem conseguem preservar os

direitos e liberdades iguais do indivíduo sem o bem-estar do próximo e da comunidade a que

pertencem” (p. 71). E assim conclui:

“nas argumentações, os participantes têm de partir do pressuposto pragmático de que, por princípio, todos os indivíduos envolvidos tomam parte, enquanto sujeitos livres e iguais, numa procura cooperativa da verdade, na qual apenas o imperativo do melhor argumento deve ser contemplado. É neste fato universal que se baseia o princípio da ética do discurso: só aquelas normas que possam obter a anuência de todos os participantes de um discurso prático é que poderão reclamar validade” 116.

Habermas tem toda razão quando diz que, através da comunicação, torna-se mais fácil

descobrir os pontos de vista centrais para uma melhor correção ou compensação das

fragilidades que afetam os seres humanos. Do mesmo modo, parece ser inegável a utilidade

da ética do discurso para o desenvolvimento de uma concepção ética que pretenda alcançar

um grau de universalidade e de legitimidade que possa valer para todas as pessoas do

planeta.

Mas Habermas também se equivoca em alguns pontos. Em primeiro lugar, é um erro

achar que a ética do discurso substitui ou supera o ponto de partida kantiano “meramente

interior e monológico, segundo o qual cada indivíduo empreenderia in foro interno a avaliação

de suas máximas de conduta” (p. 23). A reflexão individual e privada sempre será o ponta-pé

inicial de qualquer processo discursivo. O raciocínio subjetivo continua a ter uma grande

importância. Para demonstrar isso basta dizer que a própria ética do discurso não foi

construída dentro dos pressupostos procedimentais que ela própria propõe. Ela é fruto de

uma construção meramente subjetiva, desenvolvida “in foro interno” na mente privilegiada de

Habermas e de outros filósofos. A ética do discurso está alicerçada em diversos elementos

materiais e leva a diversas conseqüências substanciais que não foram produzidas seguindo as

suas próprias regras. A teoria de Habermas é a prova maior de que o intelecto humano é

capaz de produzir bons argumentos éticos fora de um contexto intersubjetivo117.

116

HABERMAS, Jürgen. Comentários à Ética do Discurso (Erläuterungen zur Diskursethik, 1991). Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 62. 117

Logicamente, Habermas tem consciência disso. Ele próprio afirma que o discurso prático é um método “não ao serviço da produção de normas justificadas, mas sim da avaliação da validade de normas encontradas,

Page 55: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

55 É um grande exagero afirmar que “uma máxima que inicialmente ‘se afigura boa e

correta’ ao indivíduo só adquire a sua qualidade moral quando todos a aceitam como uma

máxima válida para todos os indivíduos” (p. 43). Não existe nenhuma máxima tão consensual

assim, a não ser em uma perspectiva ideal e, por isso, meramente imaginária. A própria ética

do discurso não teria qualquer qualidade moral já que não é aceita com unanimidade por

todos os seres racionais. E, com isso, deixaria de ser universalmente válida.

Há um caráter paradoxal nessa idéia. Habermas pretende criticar o individualismo,

mas, ao exigir um consenso universal, acaba por dar ao indivíduo um poder muito grande. Se

eu me enquadro no conceito de ser racional nos moldes idealizados pela ética do discurso

posso me tornar censor de toda e qualquer norma moral, já que a validade dos juízos morais

dependerá da minha aprovação. Logo, o meu “voto moral” individual tem o peso de invalidar

qualquer comportamento cujas conseqüências eu não aceite. No fundo, quando o contexto

comunicativo é encarado realisticamente, o indivíduo isolado tem um poder maior na ética do

discurso do que nas éticas individualistas que se guiam pelo princípio majoritário ou do

consenso possível.

Além disso, Habermas dá o mesmo salto arbitrário cometido por Kant, ou seja, não

explica porque que as pessoas racionais aceitariam consensualmente qualquer concepção

ética, nem diz o que pode ser considerado como “o melhor argumento”. Certamente é pelas

conseqüências que ela produz, diria Habermas, já que “uma norma só conseguirá obter

anuência de motivação racional da parte de todos, se todos os indivíduos participantes ou

potencialmente envolvidos levarem em linha de conta as conseqüências e efeitos

secundários, para si e para os outros, decorrentes da observância geral da norma” (p. 95).

Mas que conseqüências seriam essas? Para Habermas, não cabe aos filósofos morais

responder a essa questão, pois isso deveria ser definido pelos participantes do discurso. O

papel das teorias éticas seria meramente “explicitar as condições que possibilitam aos

intervenientes encontrar, por si mesmos, uma resposta racional” (p. 124).

Não há dúvida de que não vivemos, felizmente, um “governo dos filósofos” tal como

propunha Platão. Logo, não há mesmo qualquer sentido em atribuir à filosofia uma

autoridade de fornecer respostas definitivas e em última instância para as questões morais. As

teorias éticas, por si sós, não possuem qualquer validade normativa. Qualquer teoria ética

precisa passar por um processo de reconhecimento social ou de institucionalização para

adquirir validade social ou jurídica. Mas isso não significa que os próprios filósofos não

possam participar do grande debate democrático e, na qualidade de membros ativos da

problematizadas e refletidas hipoteticamente” (p. 36). Portanto, o discurso não produz nada, nem substitui a reflexão individual. Não há, a meu ver, que se falar em uma superação da ética individualista, até porque “as questões éticas não existem de modo algum uma cisão absoluta com a perspectiva egocêntrica” (HABERMAS, Jürgen. Comentários à Ética do Discurso (Erläuterungen zur Diskursethik, 1991). Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 106).

Page 56: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

56

comunidade discursiva, fornecer alguns critérios capazes de ajudar os debatedores a

chegarem a uma solução razoável118. É o que proponho a fazer no próximo tópico, não na

qualidade de filósofo, mas de um estudioso de filosofia moral e membro de uma comunidade

ética global.

4.7 Heurística Negativa e Positiva da Ética

Nem a ética, nem a justiça, nem o direito são teorias prontas e acabadas. Jamais o ser

humano criará uma concepção definitiva de justiça ou de ética, pois as teorias estão sempre

sujeitas a melhorias e evoluem conforme o conhecimento humano se acumula e se

desenvolve119. O máximo que se pode estabelecer são concepções éticas melhores do que

outras, mas nunca definitivas. E uma teoria ética será melhor do que a outra se obedecer aos

seguintes parâmetros negativos e positivos (que são meramente sugestivos, sem nenhuma

pretensão de taxatividade):

1 - Heurística negativa (o que a ética não deveria ser):

(a) não deve contribuir para a destruição do mundo físico-natural;

(b) não deve provocar sofrimento desnecessário nos seres sencientes;

(c) não deve impedir a expansão do conhecimento objetivo;

2 - Heurística positiva (o que a ética deveria ser):

(d) deve colaborar com a preservação do mundo físico-natural, inclusive as suas

espécies biológicas;

(e) deve proporcionar o máximo de prazer e bem-estar possível para as criaturas

sencientes;

118

Peter Singer, no texto “Especialistas em Moral”, que pode ser considerado com um marco na redefinição do papel dos filósofos morais, sustenta que “há razões para esperar que quem domine os conceitos e os argumentos morais e, além disso, disponha de muito tempo para recolher informações e pensar sobre a mesma chegue mais freqüentemente a uma conclusão bem fundamentada do que quem não domine os conceitos e os argumentos morais e disponha de pouco tempo. Desse modo, parece que pode existir uma especialidade em moral” (SINGER, Peter. Escritos sobre uma Vida Ética (Writings on na Ethical Life, 2000). Trad. Pedro Galvão, Maria Teresa Castanheira e Diogo Fernandes. Lisboa: Dom Quixote, 2008, p. 23). Na sua ótica, os filósofos teriam algumas vantagens sobre o homem comum, como o domínio de ferramentas argumentativas e a capacidade de detectar inferências inválidas, além de tempo para meditar sobre os problemas éticos com mais profundidade. Mas isso certamente não lhe dá qualquer autoridade para dar a última palavra em questões morais. Os argumentos filosóficos poderiam ter uma força argumentativa relevante no processo de tomada de decisões, mas não são suficientes por si sós para garantir a validade de uma regra moral. 119

Essa idéia também já estava presente em Stuart Mill: “os corolários do princípio de utilidade, como os preceitos de qualquer arte prática, permitem um aperfeiçoamento sem limites, e, num estado progressivo da mente humana, o seu aperfeiçoamento está em permanente curso (...). Informar um viajante sobre o seu destino final não implica proibir a utilização de marcos miliários e sinais pelo caminho. A proposição de que a felicidade é o fim e a meta da moralidade, não significa que não tenha de ser estabelecida uma rota para esse objetivo, ou que as pessoas que o procuram não devam ser aconselhadas a tomar uma direção em vez de outra” (MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 73).

Page 57: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

57

(f) deve permitir a expansão do conhecimento objetivo, especialmente daquele

conhecimento que possa trazer benefícios éticos.

Como se vê, uma teoria ética da eternidade afeta tanto o mundo 1 quanto o mundo 2

quanto o mundo 3, para invocar mais uma vez a metáfora popperiana. A ética “para um

mundo melhor” deve ser, na verdade, uma ética para “os mundos melhores”. Uma ética que

leva em conta apenas o mundo 1 (mundo físico) é uma ética naturalista que pode cair no erro

da “falácia naturalista”, com conseqüências funestas para a humanidade como um todo,

como bem demonstra o exemplo do darwinismo social. Uma ética que se preocupa apenas

com o mundo 2 (mundo das sensações) é uma ética emotivista que pode cair no erro do

relativismo moral e, conseqüentemente, da arbitrariedade e do subjetivismo, onde “vale

tudo”, até mesmo oprimir o semelhante, o que certamente não é aceitável. Uma ética que se

preocupa apenas com o mundo 3 (mundo das teorias racionais) pode cair no erro de um

deontologismo radical, alheio às conseqüências que a ação pode acarretar, o que leva ao

perigo do fanatismo e da idolatria, inclusive religiosa. Melhor então é uma ética que se

preocupa tanto com a ação e resultados (mundo 1), quanto com os sentimentos e valores

subjetivos (mundo 2) e com a razão e valores objetivos (mundo 3).

E justamente por ter consciência de que nunca será definitiva, por ser sempre

construída à luz de um conjunto finito de conhecimento que está sempre em expansão, e

também por ter consciência de que a mudança é permanente e o futuro imprevisível, a ética

da eternidade tende a ser tolerante e pluralista, sem ser contudo anárquica, onde “vale tudo”

(“anything goes”). Ela tenta compreender toda forma de ética que caiba dentro dos

parâmetros negativos e positivos por ela estabelecidos e julgará qualquer concepção à luz

desses parâmetros. Ter a consciência e a humildade para reconhecer que o saber humano

será sempre limitado e que não se pode ter certeza absoluta sobre nada neste mundo é o

primeiro passo para aceitar uma ética sempre aberta e pluralista, que não exclua outras

concepções éticas, mas antes busque nas outras referências éticas uma possibilidade de

aperfeiçoamento e de auto-correção constante.

Muitos estilos de vida e formas de cultura certamente atendem à ética da eternidade -

e todos merecem ser respeitados. Aliás, até mesmo aquelas pessoas que optam por não

seguir uma ética da eternidade também merecem ser respeitadas, pois o mais importante é o

respeito à autonomia da vontade. Nenhuma concepção ética pode deixar de respeitar a

liberdade de escolha dos indivíduos, salvo quando essa escolha afeta negativamente o

interesse de outras pessoas, ocasião em que deverão ser estabelecidos mecanismos de

julgamento imparcial (justiça) para definir quais interesses merecem ser respeitados,

protegidos e promovidos. Esses critérios imparciais e institucionais de julgamento e de

Page 58: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

58

solução de conflitos éticos rivais deveriam seguir, sempre que possível, os parâmetros acima

estabelecidos.

Ressalte-se que uma noção de eternidade e de universalidade de uma teoria ética não

significa necessariamente que a ética deva ser uniforme para todos os povos e pessoas, nem

mesmo significa a construção de normas éticas imutáveis para todos os tempos e lugares.

Universalidade não significa uniformidade, nem padronização120; eternidade não significa

imutabilidade, nem dogmatismo. Aliás, a constante mudança para melhor através da reflexão

consciente deve ser uma marca característica de qualquer concepção ética de longo prazo

que deseje se adaptar e evoluir na medida em que o próprio ser humano se desenvolve.

Habermas, nesse sentido, entendo que o princípio da universalização, enquanto regra

de argumentação, tem que ter um sentido operacional para sujeitos finitos dotados de

faculdade de juízo que é dependente dos variados contextos. Assim, “ele apenas pode exigir

que, no momento da fundamentação das normas, sejam contempladas as conseqüências e os

efeitos secundários que presumivelmente podem resultar do cumprimento geral de normas

no interesse de cada indivíduo, tendo como base a informação disponível e as razões

existentes na altura”121. Por esse motivo, “o princípio da universalização tem de ser formulado

de modo a não exigir nada impossível; tem de libertar o indivíduo que participa na

argumentação da atitude de tomar em consideração, logo no momento da fundamentação

das normas, o enorme número de situações futuras e completamente imprevisíveis”122.

R. M. Hare também sugere que os juízos morais devem ser universalizáveis, mas não

no sentido de que devam abarcar todas as situações possíveis em todos os lugares e em todas

as épocas de forma padronizada. Uma ação ética universalizável é aquela que podemos

prescrever independentemente do papel que desempenhamos na sociedade. É preciso levar

em conta o interesse de todos os que podem ser afetados por nossas ações. Só depois de

levarmos em conta as conseqüências globais de nossas ações, pode-se tomar uma decisão

ética e, se a reflexão ética for sincera, devemos nos conformar com o seu resultado mesmo

que ela possa nos prejudicar à primeira vista. Nesse processo, não se pode ignorar os efeitos

de longo prazo (promoção de laços familiares, criação de relações recíprocas etc.). O ideal é

que cada uma de nossas ações seja objeto de uma reflexão ética particularizada e tópica.

120

Lucien Séve, sobre esse assunto, diria que “o universalismo ético não poderia significar, sem desonrar a si mesmo, a uniformização despótica das culturas por um qualquer constrangimento exterior. É do interior de cada nação que se manifestam as novas exigências de universalidade e é no interior de cada indivíduo que se abrem laboriosamente novas abordagens particulares” (CHANGEUX, Jean-Pierre (dir.). Uma Mesma Ética para Todos? (Une Même Éthique pour tours?, 1997). Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 200). 121

HABERMAS, Jürgen. Comentários à Ética do Discurso (Erläuterungen zur Diskursethik, 1991). Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 137. Vale ressaltar que essa idéia está muito próxima do conceito de “conhecimento objetivo” adotado por Karl Popper, ainda que Popper e Habermas estejam em lados opostos do debate epistemológico. 122

HABERMAS, Jürgen. Comentários à Ética do Discurso (Erläuterungen zur Diskursethik, 1991). Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 137/138.

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Porém, como tal atitude é impossível na prática, podemos nos guiar por algumas regras

morais previamente estatuídas, não como repositórios de verdade moral absoluta, mas como

guias geralmente fiáveis em circunstâncias normais123.

Stuart Mill também reconhecia que “não existe qualquer doutrina ética que não

tempere a rigidez das suas leis, permitindo uma certa margem de manobra, sob a

responsabilidade do agente, para dar conta das peculiaridades das circunstâncias”. O

problema é que, “em qualquer doutrina, aproveitando esta abertura, infiltram-se o auto-

engano e a desonestidade casuística”124.

123

apud SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?, 1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 309. Habermas também pensa assim: “as normas válidas devem a sua universalidade abstrata ao fato de só passarem na tese da universalização sob uma forma descontextualizada. Nesta versão abstrata, elas só encontram aplicação sem reservas em situações-padrão, quando as características das mesmas foram contempladas, na qualidade de condições de aplicação, nos componentes condicionais da regra. Todas as justificações de normas têm de, por sua vez, operar sob as limitações normais de um espírito finito, isto é, não podem a fortiori levar explicitamente em consideração todas as características que irão descrever futuramente as constelações de casos particulares não previstos. É por esta razão que a aplicação de normas exige, por direito próprio, uma clarificação argumentativa” (HABERMAS, Jürgen. Comentários à Ética do Discurso (Erläuterungen zur Diskursethik, 1991). Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 113). 124

MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 75.

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60

5 Conclusões

Costuma-se falar que a ética é um conflito entre os interesses pessoais e os interesses

dos outros. Quem age eticamente não age pensando apenas em si, mas, sobretudo, no bem-

estar de outras pessoas, quase sempre sacrificando uma parte de seus próprios prazeres e

interesses para beneficiar estranhos. Respeitar os desejos de todas as outras pessoas, ainda

que em detrimento do interesse próprio, é a base da ética. Essa idéia é correta, mas pode ser

melhorada. A ética pode ser vista também como um conflito entre os interesses pessoais

imediatos (de curto prazo) e os interesses gerais de longo prazo.

A busca consciente e racional dos interesses gerais de longo prazo também beneficia,

como é óbvio, a pessoa que age eticamente. Portanto, agir eticamente não significa

necessariamente agir contra os próprios interesses, ainda que os prazeres subjetivos de curto

prazo possam ser eventualmente sacrificados em favor de benefícios futuros para todos.

A ética não deve mirar o prazer individual imediato, pois para isso existe a emoção,

que, nesse aspecto, funciona melhor do que a razão. A ferramenta natural para nos permitir

sentir prazer ou dor – e agir conforme esse sentimento – não é a razão, mas a emoção. É aqui

que está o retumbante erro do utilitarismo clássico de Bentham e Mill, que confundiram

prazer com felicidade. O prazer não é nem deve ser o principal objetivo ético. A ética tem sim

uma função utilitária, mas a busca do prazer não é certamente o seu “fim último”. O papel da

ética, enquanto mecanismo racional, é estabelecer linhas de conduta que visem um benefício

geral de longo prazo, tanto para a natureza, quanto para o bem-estar das pessoas quanto

para a evolução do conhecimento objetivo, que, por sua vez, deve também contribuir para

aprimorar os julgamentos éticos. Os sentimentos podem ser um indicativo provisório de que a

conduta atende aos interesses gerais mais duradouros, mas nem sempre são totalmente

confiáveis.

No campo da ética, o que a razão tem de melhor do que a emoção é a capacidade de

avaliar os efeitos de longo prazo. Para os problemas mais básicos da vida, que não geram

conseqüências danosas para o futuro nem exigem muita meditação, o instinto tem sido muito

útil e eficaz para nos fornecer respostas rápidas e automáticas “prontas para usar”. Porém, os

sentimentos tendem a favorecer apenas nossos interesses de curto prazo, o que pode

ocasionar resultados nem sempre benéficos numa perspectiva mais macro. A razão, por outro

lado, força-nos a meditar para além dos nossos desejos imediatos. Ela nos obriga a levar em

conta os interesses dos outros como se tivessem o mesmo peso dos nossos, ainda que, muitas

vezes, nossos próprios desejos contaminem essa avaliação. Ao ponderar todos os interesses

em jogo e optar por adotar uma estratégia comportamental que maximize a satisfação dos

interesses de todos os afetados, devo imaginar que, numa comunidade de pessoas racionais,

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todos agirão da mesma forma. Ao pensar assim, posso me convencer de que vale a pena

adotar uma conduta ética, pois essa atitude me compensará no futuro. E se, no meio desse

“jogo de cooperação”, algum jogador se afastar da estratégia comportamental ética, é preciso

estabelecer mecanismos sociais e institucionais de punição para que esse jogador perceba

que não vale a pena agir de forma não-cooperativa. As estratégias comportamentais não-

cooperativas devem ser penalizadas, pois impedem a coesão e a harmonia na sociedade e,

portanto, merecem ser “destruídas” ou dominadas pelas estratégias cooperativas.

Dessa forma, já para concluir, pode-se dizer que as concepções éticas de curto prazo,

onde o que vale é o prazer imediato mesmo em detrimento dos interesses dos outros, pode

ser uma fonte de êxtase, dinheiro e talvez até mesmo felicidade individual. Por outro lado, é

uma concepção ética fadada ao insucesso evolutivo. Daqui a alguns milhares de anos, os

eventuais sobreviventes serão aqueles que tiverem antepassados que, em suas vidas, agiram

de acordo com uma ética da eternidade, ainda que inconscientemente. Enfim, no final,

somente uma concepção ética que tenha como base a noção de estratégia evolutivamente

estável sobreviverá. E qualquer concepção ética que se pretenda duradoura deve ter como

princípio a cooperação, a honestidade, a mútua confiança, a preocupação com o outro e o

estímulo de laços afetivos fortes entre as pessoas para que todos se sintam responsáveis pelo

sucesso evolutivo uns dos outros e se ajudem reciprocamente. O nosso papel enquanto seres

racionais é fazer com que essa jornada “rumo à eternidade” se torne a mais agradável

possível para todos - num sentido bem amplo e aberto da palavra todos.

Page 62: Paper: A Ética da Eternidade - George Marmelstein

62

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