PAPER - Ética - Nietzsche e Moral Pública Tribunalesca
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINACENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO
VICTOR CAVALLINI
ÉTICA E MORAL EM NIETZSCHE E CRÍTICA AO CONCEITOTRIBUNALESCO DE “MORAL PÚBLICA”
Florianópolis2011
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Introdução:
No presente trabalho, serão abordadas as ideias presentes no livro
de Nietzsche intitulado “Além do Bem e do Mal” acerca da concepção da razão e
da moral na sociedade “científica” e a crítica que a partir destas perspectivas
podem ser feitas à ideia tão presente em nossos tribunais de ordem e moral
pública, tendo como exemplo estudado o acórdão do Habeas Corpus 0586473-
83.2010.8.26.0000 do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Desenvolvimento:
Desde início cabe salientar o foco da crítica nietzscheana que
perpassa a razão, a moral e a religião: a fé. Para o autor, o conhecimento encontra-
se de sobremaneira corrompido e distorcido por essa concepção que a fé coloca:
uma concepção de ciência sob um espectro de contemplatividade e,
consequentemente, de crença incondicional nos seus preceitos. A crítica que ele
dirige, portanto, acaba por se aplicar não apenas à religião, mas à própria razão. Oproblema por ele apontado é que a mesma ainda é concebida sob uma perspectiva
muito semelhante à da religião: uma perspectiva sagrada.
O sagrado está presente no racional e no moral da mesma forma
que está presente no religioso. Substituiu-se uma crença incondicional em um deus
religioso por uma crença em outro ente que, no lugar de destruir o trono de ouro no
qual o anterior se assentava, limitou-se a tão somente ocupar o seu lugar; a
racionalidade científica surge então somente como o “novo deus”, a nova
“personificação” do sagrado. Ela é o novo meio pelo qual os homens canalizam a
sua necessidade de ter fé.
No entanto, como apontado, Nietzsche questiona menos o instinto
humano de ter fé que a negação da existência dessa fé. O problema se encontra
não na necessidade humana de ter “algo” que lhe seja superior, mas na hipocrisia
presente no ato de negar que esse ação se dá a partir de um perspectiva irracional
e “religiosa”. Para ele a irracionalidade faz parte do ser humano. Justamente nessa
negação está o germe de toda a corrupção da ciência.
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A contemplatividade que decorre dessa concepção de razão acaba
por aniquilar de pronto todo o espírito criativo que deve estar presente no
desenvolvimento da ciência. Ao não questionar as bases desta razão, já que ela
passa por esse processo de sacrum facere, o cientista não consegue desenvolver
uma crítica verdadeira1 à realidade. Não se é possível pensar o mundo não porque
o mundo é impensável, mas porque, desde o começo, não se está pensando. A
razão, nesse aspecto, acaba sendo apenas mais um ato de fé.
Assim, a partir dessa razão religiosa, ou religião da razão,
estabelecer-se-ão as bases de todos o males que acometem o pleno
desenvolvimento da ciência. Dentre os maiores problemas, destacam-se portanto a
passividade, a a-criatividade e a acriticidade em relação ao “racional” e “universal”
que vem de cima.
A partir da análise da razão em Nietzsche é que conseguimos
compreender o que é a moral para o autor. Ela surge como “a” moral, ou seja, a
única existente e a universalmente válida. Ele questiona portanto, com base na
crítica à fé na razão, as bases de sustentação dessa moral, que se constituem
justamente nessa universalidade proposta e nessa unicidade aparente no campo
da existência, no seu ontos.
Em outras palavras, o autor dirige à moral uma crítica contundente
a partir da desconstrução da fé na racionalidade e o posterior reencontro da razão
humana com o irracional humano (instinto). Ou seja, o que ele faz é negar a aura
sagrada em que a razão se encontra envolta para depois relacioná-la com suas
verdadeiras causas: o instinto humano. Assim, a razão nada mais seria que a
articulação de “elementos racionais” (ou seja, que justificam racionalmente) a fimde legitimar o instinto humano, qualificado como uma vontade humana de
dominação sobre os demais. Assim, a natureza humana não está na razão, mas
apenas nessa capacidade que temos de articular esta razão a partir da nossa
vontade. Em última análise, a expressão máxima do homem continua sendo a
irracionalidade.
Com isso, a moral encontra-se tremendamente abalada. A moral é
1 Verdadeira não no sentido transcendental de verdade, tão criticado por Nietzsche por ser umaexpressão própria desta maneira de pensar a razão, mas no sentido de uma crítica assentada emuma base humana, não-religiosa, que permite ao cientista tocar “efetivamente” o mundo em quevive.
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assentada nesta falsa razão; os elementos morais são justificados a partir de uma
tentativa racional de ordenar a sociedade e harmonizar os indivíduos, de forma a,
sempre racionalmente, estabelecer a maneira correta pela qual a sociedade deverá
se desenvolver . A moral é, em suma, a ordenação racional da sociedade; tudo o
que contraria a moral é, portanto, irracional.
Ora, quando a própria racionalidade é irracional, qualquer elemento
que se justifique a partir dela (de forma estreita) encontra-se desde já
deslegitimado. A moral, portanto, não é uma expressão de uma razão
transcendental, supra-humana, mas a expressão de uma razão verdadeiramente
humana, ou seja, uma razão intimamente ligada com a vontade humana de
dominar os demais, subjugando-os de acordo com os ditames de seu instinto.
Assim, se se quer justificar a moral a partir de seus próprios preceitos racionais, a
própria moral é imoral.
A moral que existe enquanto a moral é, então, a moral que
conseguiu se fazer dominante. Aqueles que conseguem exercer o seu domínio
sobre os demais estabelecem o que deve ser seguido, os valores que devem ser
respeitados, as atividades que devem ser desenvolvidas, tudo de acordo com os
seus interesses. É a vigência da lei do mais forte.
Colocando de lado a discussão da irracionalidade de quem se diz
racional e o mérito de quem teria a verdadeira capacidade de fazer a verdadeira
ciência por seu pensar se traduzir em um poder – reflexos do pensamento
altamente aristocrata de Nietzsche, que defendia os privilégios desta classe em
virtude da sua capacidade de tornar seu “saber” uma verdade, devemos nos
debruçar agora sobre este lugar-comum tão presente no universo jurídico: a moralpública.
Muito se fala sobre ela, e a mesma é reproduzida de infinitas
maneiras, utilizada como justificativa-mor para a manutenção da ordem e do bem-
estar social. Atente a moral, atinja a ordem. Esses são os valores defendidos.
Acontece que, partindo do questionamento já exposto das bases
da moral, vemos que ela passa a não servir como justificativa racional para mais
nada. Ao se defender a manutenção da ordem social a partir da defesa
incondicional e irresoluta da moral pública, estamos novamente conferindo à moral
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um caráter transcendental absoluto, calcado principalmente na crença de que esta
moral se desenvolveu num processo racional tido como sagrado, de forma que a
ordem social defendida se justifica por si só porque está amparada por uma
estrutura moral que também se justifica por si só, a partir de uma concepção de
razão que se justifica por si só. Ou seja, por uma ordem, uma moral e uma razão
justificadas por nada mais que a fé.
Para ilustrar, traz-se abaixo a ementa do voto do ministro relator do
acórdão referido na introdução, o qual se encontra de inteiro teor anexado ao
presente trabalho:
HABEAS CORPUS - Liberdade provisória - Acusação de prática de rouboqualificado contra estabelecimento comercial - Análise cuidadosa e
individualizada da conduta do paciente que demonstra insensibilidade moral -
Excepcional prisão preventiva necessária ao caso concreto para garantia da
ordem pública - Ordem denegada – (voto n. 11613).2
O que viria a ser insensibilidade moral? Partindo de todo o
pensamento aqui já desenvolvido, tem-se que a insensibilidade moral é a
insensibilidade à ordem moral estabelecida de acordo com o interesse daquelesque conseguiram fazer com que a sua vontade de dominação se fizesse
efetivamente dominante. Em outras palavras, esta insensibilidade moral é apenas a
não convergência do seu interesse particular com o interesse particular de quem
exerce o domínio sobre ele.
Agora outro fundamental questionamento deve ser colocado:
porque um sistema de regulamento das condutas humanas supostamente não
esvaziado de conteúdo, que entre seus princípios fundamentais elenca a liberdade,a dignidade e a igualdade entre os indivíduos que ele regula, permite que se
tutelem os interesses de dominação de um indivíduo sobre outro simplesmente
pelo fato de que este indivíduo é capaz, ou seja, goza de certos privilégios que o
fazem “capaz”, de exercer de fato essa dominação?
Não discutindo a utilidade de se exercer a crítica dentro de uma
estrutura que serve justamente à supressão da mesma (ou seja, o direito) – mas
certamente devendo fazê-lo –, limitamo-nos aqui a analisar o teor das afirmações2 5864738320108260000 SP 0586473-83.2010.8.26.0000, Relator: Newton Neves, Data de Julgamento:
29/03/2011, 16ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 07/04/2011
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colocadas e a sua relação com o que foi dito pelo autor.
Ora, a dominação é defendida porque é tudo arquitetado para que
seja defendida a dominação. Se a dominação é boa e justa, se ela é exercidadentro de limites morais, nada disso importa: o próprio dominador é quem dita as
regras do jogo, é ele quem estabelece os termos no qual se dará o julgamento.
Assim, aparentemente não devemos questionar a moral. Ela está
aí, estabelecida, é fruto de um processo “racional”, puro e sagrado. É isso que
estão dizendo quando falam de moral pública.
A moral pública não existe. A moral só existe enquanto fruto de
vontades privadas dominantes. É inconcebível – por mais que se façam tentativasmirabolantes a fim de que se conceba – uma vontade pública, que pertença a todos
ao mesmo tempo. A tentativa de se fazer isso nega completamente as contradições
presentes na sociedade, colocando tudo sob um raciocínio matemático de que os
opostos se anulam. Analisando a realidade a partir de uma perspectiva
minimamente dialética, entendemos que as contradições existentes entre as
vontades ditas individuais não podem ser de nenhuma maneira suprimidas; elas
coexistem e se contradizem, mas nunca se anulam. Advogar pela eliminação dascontradições não passa de uma tentativa parca de conceber um mundo perfeito,
onde a força contraditória que inevitavelmente será a perfeita consistirá na vontade
de quem domina.
Assim, a visão maniqueísta arquitetada pela moral esconde as
contradições sociais e os conflitos, de forma que aquele que está infringindo as
regras morais é o mau, e por isso deve ser execrado desta sociedade boa e feliz
que se orienta com base em valores universais. E, como é a grande maioria queestá em aparente contradição com o bem, é inevitável que o que é defendido
enquanto exceção venha a se tornar a regra mais recorrente. É o caso da
crescente proliferação de prisões abusivas e denegações de pedidos de habeas
corpus, justificadas unicamente pela salvaguarda da ordem pública daqueles que
não obedecem a moral pública.
Não adentrando as questões de mérito do voto do relator, o que se
observa é um uso de frases vazias, genéricas, que refletem a própria genericidade
do Direito enquanto ciência. Defender a ordem pública é muito fácil se não
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colocamos o caráter desta ordem em foco. Quando não discutimos o que é, a
quem serve, a quê serve e por que existe esta ordem pública, podemos pura e
simplesmente justificarmos o nosso ato com base na manutenção dessa “coisa”
(fala-se em “coisa” mesmo, no sentido mais depreciativo da palavra). Descolamos
totalmente a nossa razão da nossa vontade, de forma que estamos não emitindo
enunciados do nosso instinto, mas falando em nome de uma estrutura superior
que, justificada por si mesma (ou seja, pela fé que temos nela), justifica e ratifica
todos os atos que realizamos em sua defesa.
Estes pobres de espírito realizam, assim, uma magnífica e
esplendorosa ode ao ser e dever ser que é.
Conclusão:
Temos então que, com a manutenção da fé na racionalidade e
consequente manutenção da fé na moral enquanto expressão racional, temos a
completa dissolução de um pensamento crítico que se proponha a, revendo os
valores morais de acordo com sua dimensão irracional e contraditória, estabelecer
os limites desta realidade e as possíveis perspectivas necessárias aodesenvolvimento de uma realidade verdadeira.
Não que Nietzsche viesse a defender isso: o que ele ataca é esta
fé, mas o que ele defende é que, com o reconhecimento deste ato de fé que é a
razão humana e a posterior re-união do racional e irracional humanos, da razão
com a vontade de dominar, dê-se o devido lugar no berço da razão àqueles
nascidos para isso – os aristocratas.
Reconhecendo a importância e também os limites do pensamento
de Nietzsche, a ideia que se desenvolve é que se configura como inadmissível a
preponderância de discursos que legitimem esta ideia de razão. Escolheu-se o
presente acórdão por ele se configurar com o exemplo mais genérico do Direito
que se desenvolve no Brasil: um Direito genérico. Um direito vazio, asséptico, onde
as discussões acerca dos reais valores por trás de toda a estrutura aparente
inexiste. Onde a razão, a ordem e a moral são sagradas.
A maior dificuldade dentro de uma ciência que se dirige em sua
quase totalidade à manutenção da ordem, ou seja, à manutenção do ser que é, é
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justamente tentar desenvolver o que Nietzsche chama de “espírito livre”: uma razão
efetivamente crítica que possa desenvolver plenamente as capacidades do
pensamento humano de acordo com o que é inerente ao homem, ou seja, sua
parcela instintiva. Somente a partir da desconstrução da razão que temos, e
consequentemente de toda esta estrutura de manutenção da aparência que se
desenvolve a partir dessa falsa razão, é que se tornará possível o desenvolvimento
de uma ciência que possa entender e promover uma sociedade plenamente
humana. Não boa ou má, mas simplesmente livre.
Bibliografia:
DEBORD, Guy. “A sociedade do espetáculo”: Comentários sobre a
sociedade do espetáculo. São Paulo: Contraponto Editora, 1997. 240 p.
KELSEN, Hans. “Teoria Pura do Direito”. 8ª ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2009. 448 p.
NIETZSCHE, Friedrich. “Além do Bem e do Mal”. São Paulo: Editora
Centauro, 2008. 192 p.
SZANIECKI, Barbara. “Estética da Multidão”. São Paulo: Civilização
Brasileira, 2007. 128 p.
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ANEXO 1 – Acórdão do HC 0586473-83.2010.8.26.0000 do TJSP.
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