Para a sociologia da música tradicional açoriana

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Biblioteca Breve SRIE MSICA

PARA A SOCIOLOGIA DA MSICA

TRADICIONAL AORIANA

COMISSO CONSULTIVA

JOS V. DE PINA MARTINS Prof. da Universidade de Lisboa

JOO DE FREITAS BRANCO

Historiador e crtico musical

JOS-AUGUSTO FRANA Prof. da Universidade Nova de Lisboa

JOS BLANC DE PORTUGAL

Escritor e Cientista

HUMBERTO BAQUERO MORENO Prof. da Universidade do Porto

JUSTINO MENDES DE ALMEIDA

Doutor em Filologia Clssica pela Univ. de Lisboa

DIRECTOR DA PUBLICAO LVARO SALEMA

J. M. BETTENCOURT DA CMARA

Para a Sociologia da Msica

Tradicional Aoriana

MINISTRIO DA EDUCAO

Ttulo Para a Sociologia da Msica Tradicional Aoriana ___________________________________________ Biblioteca Breve /Volume 94 ___________________________________________ 1. edio 1984 ___________________________________________ Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Ministrio da Educao ___________________________________________ Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Diviso de Publicaes Praa do Prncipe Real, 14-1., 1200 Lisboa Direitos de traduo, reproduo e adaptao, reservados para todos os pases __________________________________________ Tiragem 5000 exemplares ___________________________________________ Coordenao Geral Beja Madeira ___________________________________________ Orientao Grfica Lus Correia ___________________________________________ Distribuio Comercial Livraria Bertrand, SARL Apartado 37, Amadora Portugal __________________________________________ Composio e impresso Oficinas Grficas da Minerva do Comrcio de Veiga & Antunes, Lda. Trav. da Oliveira Estrela, 10. Janeiro 1985

A meus Pais

NDICE

PREMBULO.................................................................... 7 I / TRADIO E MUDANA NA SOCIEDADE

AORIANA.......................................................... 15 II / MSICA, DANA, DIVERTIMENTO

COLECTIVO E FESTA........................................ 40 III / MSICA, POESIA E ESPECTCULO: OS

CANTADORES .................................................... 52 IV / MSICA E FORMAS DE RELIGIOSIDADE

POPULAR: OS ROMEIROS DE S. MIGUEL ..... 86 BIBLIOGRAFIA ............................................................ 118

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PREMBULO

Pretendemos, com o ttulo deste livrinho, tornar evidente a sua natureza de simples contributo. De modo nenhum se contm aqui uma sociologia da msica tradicional aoriana, empreendimento a que por enquanto no nos sentimos habilitados a lanar mos. , por um lado, incompleto ainda o nosso conhecimento da msica tradicional do Arquiplago Aoriano e, por outro, no dispomos tambm de um nmero mnimo de estudos sobre a sociedade e a histria social daquelas ilhas. Ocupando-se da interseco dos dois temas, natural se torna que das lacunas na investigao de ambos se ressinta este trabalho. Apesar de tudo, ei-lo, justificado apenas pela inteno de contributo que o anima e, porventura, pela novidade do assunto.

Em jeito apenas de desculpa, permitimo-nos alertar para o esforo de sntese a que ele obrigou, no tanto porque assim o desejssemos, mas antes pelas prprias circunstncias que rodearam a sua elaborao, as quais, evidentemente, nos transcendem. No existem ainda, com efeito, outros trabalhos de contedo etnomusicolgico que, ocupando-se do patrimnio musical de alguma regio de Portugal, pretenda especificamente desbravar a relao do mesmo ao meio

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humano que o produziu. Pelo que sabemos, no abundam tambm, na bibliografia musico-lgica internacional, os ttulos referentes sociologia da msica; dentro desta, so tambm raras as obras sobre o contexto social das msicas tradicionais. Se, na generalidade, deparamos com largo nmero de trabalhos que, tratando das formas de expresso musical desta comunidade, daquela regio ou mesmo de algum pas, incluem judiciosas reflexes sobre o tema que aqui nos interessa, cremos faltar-nos ainda a obra que, partindo de um conhecimento detalhado das diversas situaes, sistematize dados relativos sociologia das msicas tradicionais, se tal trabalho passvel de realizao.

De utilidade foram as vrias monografias existentes sobre comunidades rurais portuguesas, a bibliografia disponvel sobre sociologia rural e sociologia da(s) arte(s), as quais tornmos alimento das nossas prprias perguntas, confrontando-as com algumas convices que, naturalmente, tambm mantemos.

No que respeita, alis, s questes tericas que um tema como este evidentemente implica, desejaramos encontrar o lugar prprio da prudncia que nos aconselha a conscincia dos nossos limites e hesitaes. O que perdermos em segurana agrada-nos saber que ganhamos em sinceridade. Sem esquecer os valores da audcia, gostaramos, contudo, de no penetrar nos domnios da polmica.

Lidamos aqui, afinal, com toda a problemtica subjacente s diversas cincias sociais. Pressentindo-a a rondar sempre o nosso assunto, no a podemos evidentemente resolver. Apenas o avano das referidas cincias, individual e interdisciplinarmente,

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o pode porventura conseguir, revelando ento melhor o carcter prematuro de trabalhos como este, ou ainda as ingenuidades a que no tenha podido fugir.

Gostaramos de nos manter perto do que para muitos pelo menos j constitui indiscutveis evidncias. Longe (?) vo os tempos de luta pela afirmao das dimenses sociais na obra de arte. Compreendida muito embora de modos diversos, a sociologia da arte recebeu j reconhecimento acadmico generalizado, tendo sido inserida na estrutura curricular de muitas universidades do mundo. Independentemente das referncias ideolgicas de cada interlocutor, aceita-se hoje que a arte, quaisquer que sejam as coordenadas de espao e tempo que a determinam, tem que relacionar-se ao contexto que a fez nascer. E este sempre, obviamente, um tempo e um espao sociais, humanos.

-nos grato saber que nos tempos que correm tais afirmaes constituem j lugares comuns. De modo tal que com facilidade esquecemos outros, bem prximos de ns ainda, em que as compreenses da arte se ficavam pela simples leitura das suas caractersticas formais, mitigadas por alguma referncia biografia do seu autor.

Mesmo esta, no funcionava, seno raramente e sempre de forma insuficiente, como ensejo para o alargamento situao histrico-social que determinou a realizao e o ser da obra de arte.

A sociedade gera, pela aco dos indivduos, a cultura; esta exprime de algum modo o perfil da matriz em que foi gerada. Os laos entre a arte e a vida social so vastos e fundos, mesmo quando, justamente, recusamos as concluses apressadas dos

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determinismos fceis. Temos para ns como um dos pressupostos fundamentais de todo o enfoque rigoroso da cultura que as obras do homem (Herskovits) so as obras da sociedade humana.

Os elos que prendem a arte sociedade, sejam eles da determinao mais evidente nuns casos, de reflexo menos ntido noutros, ou mesmo de recusa nalguns ainda (qual o significado e alcance da recusa aqui?), no podem ser considerados em detrimento da especificidade da aco e da obra artsticas. Ou seja, pondo a questo de forma interrogativa, que podemos esperar da sociologia da arte? Qual o alcance do contributo da sociologia para a compreenso do fenmeno artstico? Quais os limites da sociologia da arte? Se verdade que a sociologia no se move numa zona absolutamente exterior arte, tambm o parece ser que ela no pode fornecer-nos a viso do especificamente artstico. Mas a que rea do conhecimento devemos cometer a especificidade da arte?

A algumas destas questes j foram dadas achegas de vulto; outras porm, decerto pela prpria natureza do objecto que manuseiam, continuam a revelar-se cho incerto donde regressamos acompanhados da insatisfao que nele nos fizera penetrar.

De qualquer modo, a sociologia no pretende dar-nos uma ltima palavra sobre a arte (se ltimas palavras se admitissem!). Cremos, contudo, que dimenses nela existem sobre as quais a sociologia pode lanar grande luz, no invalidando a importncia do contributo de outras disciplinas para a compreenso da arte.

possvel saborearmos um trecho de msica tradicional de qualquer regio do globo sem

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dispormos de informao mnima sobre o mesmo, relativa sua constituio como objecto sonoro ou ao meio humano que o produziu; possibilita-o o que de verdade subsiste nos lugares-comuns repetidos cerca da msica como linguagem universal. Contudo, o sabermos que se trata de um canto entoado por mulheres enquanto modo o gro ou de um espcime associado a ritos de iniciao ou a prticas mgicas decerto nos levar a melhor entender a sua estrutura rtmico-meldica e as suas caractersticas tmbricas.

No se distinguem, neste aspecto, as msicas tradicionais das obras musicais eruditas; podemos colher prazer da audio de certa sinfonia de Haydn antes de obtermos algum conhecimento sobre a circunstncia da sua criao; todavia, informados de que foi a mesma concebida como msica de cena para determinada comdia compreenderemos melhor, porventura, a razo do bom humor que as suas pginas contm. Estamos seguros de que, para alm da existncia daquilo que Hauser chamou de nveis educacionais na histria da arte (da arte musical, neste caso), para alm da diversificao de produtos que queles correspondem e da sua estruturao em domnios do conhecimento com alguma autonomia, deve a aplicao da investigao sociolgica msica prosseguir esforadamente no projecto unitrio duma sociologia da msica global.

As msicas tradicionais, expresso, nalguns casos privilegiada, das comunidades ditas primitivas em zonas extra-europeias e das comunidades rurais do velho continente, necessitam e merecem a sua sociologia. Como j afirmmos, o desenvolvimento desta disciplina subsidirio dos avanos verificados

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na chamada sociologia primitiva (Lowie) e na sociologia rural, assim como na prpria musicologia.

Tentando ultrapassar carncias, abrimos este trabalho com um breve tempo de reflexo sobre a sociedade aoriana. Os meios de que para tal nos socorremos so de natureza essencialmente qualitativa, partindo do conhecimento pessoal e directo que temos dessa mesma sociedade. Dispomos, de facto, da presena prolongada e repetida ao objecto vivo da investigao que a antropologia cultural vem tradicionalmente exigindo aos que a professam. Fazemos f ainda no velho mtodo da etnologia que valoriza a presena directa e viva realidade que se pretende compreender. Sem perdermos conscincia dos limites que a escolha, mais consentnea com as nossas tendncias e formao, naturalmente implica.

Como tratariam a questo outros, mesmo quando prximos da nossa circunstncia? Como seremos por outros entendidos, particularmente por aqueles que no nosso discurso possam intervir como sujeitos? Reconhecer-se-iam minimamente naquilo que sobre eles escrevemos, no tanto porque os desejamos homenagear mas acima de tudo porque os queremos compreender e compreender com o rigor a que no deve fugir qualquer discurso que se queira cincia?

Depois desta tentativa de reflexo volta do perfil tradicional e, simultaneamente, dos sinais de mudana que hoje exibe a sociedade aoriana, debruam-se as trs partes seguintes deste estudo, na impossibilidade de um tratamento sistemtico da questo, sobre alguns domnios da msica tradicional das ilhas dos Aores, procurando privilegiar-lhes aspectos caracteristicamente sociolgicos.

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Dos espcimes musicais que servem as estruturas coreogrficas aorianas, parcialmente analisadas no mbito de obra anterior, interessa-nos aqui a sua relao ao contexto em que so reproduzidos: as funes por elas cumpridas na vida do povo ilhu, as marcas que ostentam da ideologia do mesmo

No caso dos cantadores, analisado a seguir, assistimos a um fenmeno que no anterior se no verificara, consistindo no destaque de indivduos que nas comunidades rurais se evidenciam como improvisadores poticos e como msicos, sem que no entanto cheguem a atingir um estatuto de profissionais.

Para ilustrao das formas de religiosidade popular e do papel nelas desempenhado pela msica, escolhemos as romarias que durante a Quaresma, percorrem, em impressionante manifestao humana, o contorno da ilha de S. Miguel. Porqu estas e no as pitorescas festas do Esprito Santo, que constituem o mais vulgarizado cartaz turstico de todas as nove ilhas do Arquiplago? Optmos, como se ver, por referir-nos brevemente a estas ltimas no segundo captulo deste trabalho, considerando-as de um ponto de vista da sociologia da festa e como contexto de prticas coreogrficas do povo aoriano; desculpamo-nos, alm disso, por pretendermos, com o ltimo captulo deste livro, remir velha dvida: no em vo que, nascidos nesta ilha, assistimos, desde que para a vida nos comemos a abrir, ao desfile quotidiano de dois ou trs ranchos de romeiros que, durante as seis semanas que precedem a Pscoa, nos passavam frente casa paterna a melodia cansada da Ave-Maria brotando lentamente a ocidente e crescendo, at que na curva despontavam as duas filas de

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homens empunhando o bordo ferrado, a cabea sumida sob o xaile escuro Nem cremos que, depois de algumas dezenas de pginas sobre o tema, seja esta impresso substituda por outra de dvida remida. Precisvamos de um livro inteiro.

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I/TRADIO E MUDANA NA

SOCIEDADE AORIANA

Pouca gente encontraremos hoje sobre a terra que no experimente de um modo ou outro e no tenha chegado a uma conscincia mais ou menos explcita das profundas modificaes por que passa, contemporaneamente, a sociedade humana. Procure-se pelos cinco continentes, em todas as regies onde a tradio impere ainda com algum vigor: um pouco por toda a parte daremos com as marcas das transformaes que agora constituem questo da humanidade enquanto tal.

Trata-se de um processo que, assumindo ritmos desiguais em cada ponto da terra, vem bulir com modos de vida que historicamente remontam ao Neoltico, e abre portas chamada modernizao. Transformam-se as condies de desenvolvimento material a ritmos muita vez assombrosos e transformam-se as mentalidades a um passo que, embora claudicando em relao ao anterior, no deixa tambm de ser visvel a qualquer olhar. De formas mais ou menos pronunciadas de autarcia, parecemos caminhar para a interdependncia; de conjuntos scio-polticos relativamente pouco numerosos, para

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ordenamentos muito vastos; de dimenses excessivamente locais de pensamento, para o emergir de uma conscincia planetria.

Os fenmenos em que nos estribamos para apontar no sentido destas concluses no nos permitem, contudo, receb-las como se de fatalidades se tratasse; conhecemos demasiado do passado humano para nos entregarmos a qualquer espcie de f no seu advento inevitvel e incondicional. No as deveramos, ademais, acolher sem crtica, no modo de quem apenas sofre a histria, no a conseguindo minimamente determinar. A salvaguarda da diversidade cultural da terra contra a sua uniformizao empobrecedora ter de funcionar como um dos critrios orientadores das referidas tendncias. Uma das aplicaes mais dignificantes da antropologia cultural sem dvida o despertar do maior nmero possvel de indivduos para a conscincia desta necessidade de preservar a pluralidade cultural do planeta.

Por outro lado, muito poucos, neste quase ocaso do sculo XX, se revelaro ainda subsidirios duma mstica do progresso que h cerca de cem anos ainda inflamava alguns dos melhores espritos do mundo ocidental. Os resultados duma industrializao agora em crise deixaram de ser vistos com ingenuidade, dados os graves problemas, em grande parte dela decorrentes, que atormentam o mundo contemporneo.

As condies de vida nas grandes cidades, onde as relaes humanas, impessoais, no podem satisfazer a necessidade fundamental de uma existncia regida por laos pessoais e afectivos, levam-nos ainda conscincia de que, para alm da soluo dos

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problemas de ordem tcnica e material (quando os conseguiu de facto resolver), a chamada civilizao urbana fez mo baixa de valores de outra ordem, igualmente imprescindveis existncia do homem.

margem das urbes gigantescas onde aquelas consequncias so bem visveis, na Europa as aldeias mantiveram por mais tempo as caractersticas de um modo de sociabilidade que, desde Tnnies, vem sendo designado com o termo comunidade. Ali, cada indivduo mantm com os outros elementos da sociedade contactos regulares, praticamente quotidianos, e a vida social marcada por acontecimentos de natureza diversa que ciclicamente se repetem, de semana a semana, de ano a ano: a missa de cada domingo, os encontros de algumas tardes de vero em stio adequado ao entretenimento colectivo, a festa anual do orago local Ali, os conflitos so habitualmente personalizados, exprimindo-se diariamente no que se tornou hbito considerar o mal caracterstico dos meios rurais: a coscuvilhice. O peso das normas sociais, a presso do grupo sobre o indivduo concedem ali menor espao originalidade ou excentricidade nas formas de comportamento, e a quem chegue de meio urbano faro a impresso de liberdade tolhida que eventualmente lhe tornar insuportvel a vida na aldeia.

Para alm de uma tipologia dualista das formas de sociabilidade humana comunidade versus sociedade perfila-se afinal a grande questo que nos ltimos dois sculos tem vindo a ser desbravada a nvel terico e, menos porventura (?), ao nvel da prtica scio-poltica questo que respeita determinao das formas de existncia colectiva do

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prprio homem, manipulao j no apenas do espao que ele habita e da mquina com que ele transforma esse espao, mas das prprias malhas resultantes do facto de com outros semelhantes ele ter que habitar, sem qualquer alternativa que no seja a autodestruio.

Aldeia e cidade, nas configuraes que exibe o mundo de hoje, so realidades histricas cujo destino ningum, evidentemente, poder prever. Que as formas de sociabilidade futuras possam da comunidade rural e da sociedade urbana reter os valores e exorcizar os males o que, todos, temos o direito de esperar.

No podendo entender-se isolada dos problemas

da urbe moderna, todavia a crise do mundo rural que particularmente nos interessa quando, dentro de um projecto de estudo sociolgico das msicas tradicionais europeias, nos interrogamos sobre o destino das mesmas sobretudo a crise das zonas rurais da Europa at agora mantidas margem dos ritmos mais pronunciados de industrializao e que, consequentemente, por mais tempo garantiram a subsistncia das formas de vida tradicionais.

A abertura destas zonas emigrao e aos chamados meios de comunicao de massa determinou nas ltimas dcadas uma situao que podemos com razo considerar de crise, e que no podia deixar de reflectir-se nas formas culturais ali reproduzidas. As aldeias de velhos, mulheres e algumas crianas com que em muitos casos deparamos j no apresentam as condies necessrias para proporcionar s referidas formas o suporte vivo imprescindvel sua continuidade. O

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definhamento e, nalguns casos, desapario das mesmas pode, assim, tomar-se como um dos sinais de evidncia da crise.

Ao banir as formas de trabalho comunitrio, a modernizao das tcnicas agrcolas deixou de proporcionar ocasio e razo de ser aos espcimes musicais que lhes estavam associados. A perda de significado das formas de religiosidade popular para as novas geraes rurais, contagiadas por maneiras de pensar caractersticas da chamada civilizao urbano-industrial, levar possivelmente ao seu desaparecimento.

Os exemplos poderiam multiplicar-se, diversificando-os. O que dizemos da msica verifica-se naturalmente no domnio de outras formas de expresso. O prprio termo crise se revelar porventura insuficiente, dadas as dimenses atingidas pelo fenmeno. No deveramos antes falar de agonia, considerando a actual situao das msicas tradicionais como sinal da extino de todo um sistema cultural, o que facilmente admitiro quantos de ns se acham mais predispostos a crer na vitria incondicional da civilizao urbano-industrial a nvel de todo o planeta? queles que de modo pessimista encaram as contradies desta ltima no parece, empiricamente, tirar razo o facto de os que nas aldeias experimentam a crise do mundo rural olharem a cidade cobiosamente, predispostos a declarar superiores as formas de vida urbanas?

Com efeito, a conscincia da crise no s dos que, vindos das cidades, chegam ao campo em busca de formas culturais de que primeiro tomaram conhecimento por via livresca. Os camponeses vivem-na e, sem erudies, sabem encontrar os meios

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de exprimir a conscincia que dela tm; necessrio se torna apenas, como noutros domnios alis, saber escut-los. No s devido a uma condio psicolgica de velhos que os informadores contactados pelo antroplogo constantemente afirmam que j nada como dantes. Sem perder de vista que transformaes sempre se verificaram, devemos contudo afirmar que eles vivem de facto, em sua velhice, modificaes tais que no podem ter sido experimentadas por seus avs.

Por outro lado, a chegada de estranhos localidade em busca de testemunhos da cultura do passado levanta neles a suspeita dos valores por esta realizados. Constatamos ainda a incapacidade daqueles que cresceram no meio de estruturas tradicionais quase no tocadas pela civilizao urbano-industrial para fazer suas as formas culturais fornecidas pelos meios de comunicao moderna. A fraca receptividade que neles encontra a msica popular dos meios urbanos contemporneos significativa deste facto. evidente que encontraremos, mesmo entre os elementos mais idosos de uma comunidade rural, casos de mais larga capacidade de adaptao e portanto de maior abertura a esse tipo de msica; porm a experincia permite-nos concluir que tais exemplos esto longe de fazer a maioria.

primeira vista, factos como estes poderiam levar-nos a julgar que a crise, se existe, no teria contudo as dimenses que h pouco lhe queramos atribuir. Lembremos, primeiro, que so efectivamente os elementos mais idosos das populaes rurais a revelar pouco interesse pela msica popular da civilizao urbana; o mesmo j no se verifica no caso

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dos jovens das nossas aldeias, que parecem to receptivos s referidas formas musicais quanto os que habitam meios citadinos. Depois, no do prprio facto de a alternativa proposta pelos meios de comunicao modernos no obter deles grande receptividade que a tradio musical das aldeias recebe garantias de sobrevivncia.

Segundo alguns, os modernos meios de comunicao, longe de serem em parte responsveis pela crise das msicas tradicionais, constituiriam para estas uma forma possvel de a ultrapassar, proporcionando-lhes um mais amplo espao de divulgao, um mais largo pblico fruidor do que os grupos reduzidos das comunidades rurais onde originalmente surgiram. Sem podermos fazer nossa esta tese, no deixamos de reconhecer que ela parece encontrar apoio em factos que, esses, no podemos ignorar. ver o lugar dado nos programas radiofnicos a certos usos do folclore musical (referimo-nos a apropriaes, umas mais digestivas do que outras, da msica tradicional pela msica popular dos meios urbano-industriais), ou realizao de festivais de msica e dana tradicionais, constitudos quase sempre exclusivamente pela exibio de ranchos folclricos, ou ainda presena da msica tradicional, ao lado da msica popular urbana, em feiras e romarias, onde antigamente participava apenas a primeira, mas agora servidas ambas por mais poderosos meios de difuso do que cantadores e tocadores vivos

Parecem, no entanto, esquecer os defensores da dita tese (ou quando no esquecem, no conferem ao facto a devida importncia) que um abismo se cava entre esta nova circunstncia e o meio original das

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msicas tradicionais. Mesmo quando se trata da mais rigorosa recolha da msica tradicional dos Aores, difundida nalgum arraial das Ilhas atravs de potentes microfones, ela no pode soar como quando, h trs ou quatro dcadas ainda, a gente de cada aldeia se juntava para o divertimento colectivo, entregando-se alegria da movimentao coreogrfica ou da simples prtica musical. A msica tradicional perdeu, est perdendo o seu contexto original. Crendo na irreversibilidade e agravamento futuro deste processo, julgamos que, agora sem riscos de sermos mal compreendidos, podemos de facto falar de agonia; o meio scio-cultural que deu origem s msicas tradicionais transforma-se a um ritmo tal que, a breve trecho, no poder ser considerado o mesmo; a sua morte sobreviver inevitavelmente.

Todavia, tal no implica, a nosso ver, que a prpria msica tradicional esteja condenada a perecer ou passe a reservar os seus tesouros para especialistas fiis que, fechados nas torres da erudio, persistam em oferecer-lhe o seu esforo teimoso. No seu destino necessrio o frio espao dos museus ou a mudez defunta dos arquivos. Os valores que encerra permitem-lhe esperar um futuro vivo, exigem a sua salvaguarda para geraes vindouras. Como?

A analogia com o que repetidamente se verifica ao longo da histria da chamada msica erudita pode, de novo, ser-nos til para o esclarecimento da questo. A aristocrtica msica de cmara setecentista continua a ser executada nas nossas salas de concertos, se bem que tenham desaparecido os senhores de cabeleira para quem, s vezes por quem, ela era feita. A msica religiosa de Palestrina, para ser minimamente revivida, no exige o enquadramento

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litrgico a que originalmente se destinava. Mais longe ainda, o facto de no sermos monges do sculo X no impede que nos emocione a serena beleza do canto gregoriano.

Do mesmo modo, as msicas tradicionais realizam valores que, mesmo quando extinto o contexto histrico-social que lhes era prprio, justificam a sua interpretao em salas de concertos ou noutros espaos adequados prtica musical. At certo ponto, a situao actual das msicas tradicionais, no que sua interpretao respeita, j se aproxima das que acabmos de referir relativamente msica erudita. Os que ainda hoje as executam, em boa parte dos casos fazem-nas menos para si mesmos que para consumo alheio de forasteiros que s aldeias se deslocam atrados pelos valores da vida rural; a apresentao de ranchos folclricos em meios cosmopolitas sem dvida um exemplo extremo, mas bem significativo do facto que pretendemos realar.

Os chamados ranchos folclricos surgem, alis, como soluo que, para alm de outros inconvenientes, parece marcada por um alto grau de efemeridade, na medida em que os mesmos se apoiam principalmente em elementos idosos da populao cujo desaparecimento poder ocasionar o fim das reduzidas garantias de autenticidade de que eles, nuns casos mais do que noutros, ainda parecem dispor. verdade que, dentro desses grupos, a transmisso das formas artsticas tradicionais tambm se processa e, estamos dispostos a admiti-lo, sem um muito mais alto coeficiente de transformao do que aquele que se verificava na transmisso de gerao a gerao, quando a msica tradicional era reproduzida no seu meio original por e para os habitantes locais.

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Seja como for, a ideia da criao de escolas voltadas para a defesa da cultura tradicional, e portanto tambm do patrimnio musical de cada regio, parece-nos reunir vantagens relativamente situao actual. A direco e apoio s mesmas por parte de especialistas dotados de slida preparao profissional ser garantia bvia de maior rigor no processo de manuteno e desenvolvimento das msicas tradicionais.

Tal nos leva inevitavelmente reafirmao da necessidade do desenvolvimento prvio da etnomusicologia. A prtica futura das msicas tradicionais parece passar obrigatoriamente pelo incremento da cincia que as tem por objecto. A recolha exaustiva dos espcimes, nos moldes que hoje em dia todos concordamos serem os mais adequados sua preservao integral, ou seja, atravs de registo fonogrfico, surge como a condio primeira para que as msicas tradicionais efectivamente subsistam. O seu estudo posterior, ao nvel das estruturas musical e potica como no das suas dimenses sociais, contribuir igualmente para a sua salvaguarda nas melhores condies possveis.

De novo se revela sugestiva a analogia com o que, ao longo do nosso sculo, tem vindo a verificar-se no domnio da recuperao da chamada msica antiga: a erudio musicolgica foi posta ao servio dessa recuperao, sem prejuzo de uma vivncia autntica da prpria msica. Julgamos que o mesmo poder vir a dar-se futuramente no domnio da msica tradicional: os valores nela contidos, repetimos, fazem-no esperar e, eventualmente, exigem-no.

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Entre todas as regies de um Pas onde a industrializao mal chegou, o Arquiplago Aoriano indubitavelmente daquelas em que formas scio-culturais arcaicas mais persistiram at aos nossos dias. No se pense, porm, que nos Aores, entrados j na penltima dcada do sculo XX, encontramos ainda, ao dispor desses ex-caadores de mundos em extino que so os etnlogos, uma sociedade de cunho tradicional integralmente preservada das investidas da modernizao. O que a olhos adestrados nas Ilhas se oferece antes uma sociedade a braos com transformaes tais que de alguns dos fenmenos procurados mais facilmente encontraremos relatos em determinado livro velho do que reprodues vivas no dia-a-dia aoriano, e de muitos outros apenas fragmentos que o tempo ainda no conseguiu apagar definitivamente.

A que sociedade aoriana, assim, iremos aqui referir-nos? dos tempos imediatamente subsequentes ao povoamento, quatrocentista, que o historiador eventualmente preferiria, ou, no extremo oposto, dos nossos dias, viva perante ns, ao dispor do socilogo que se disponha a estud-la? Procuremos definir as balizas temporais entre as quais se situa a realidade social que neste trabalho nos interessa compreender.

A busca de formas de vida tradicional nas Ilhas levar-nos- necessariamente ao contacto com os elementos mais idosos da actual populao aoriana; eles so, no presente, testemunho das formas culturais que procuramos recolher e estudar, suporte vivo dos modos de pensar que s mesmas correspondem, mais do que seus filhos ou netos a quem parcialmente os transmitiram, mas que com

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maior intensidade foram tocados pelas transformaes do mundo contemporneo. Constataremos que, na maior parte dos casos, se trata de indivduos no apresentando marcas de qualquer formao escolar ou exibindo-as com dimenses mnimas; testemunham assim de uma sociedade no letrada nas Ilhas, na qual a oralidade representava a forma fundamental de comunicao.

A data de nascimento desses informadores remontar, nalguns casos, aos ltimos anos do sculo passado e, na maior parte dos outros, s primeiras dcadas deste. Fizeram todos, de qualquer modo, a sua vida de jovens e adultos no mbito da primeira metade deste sculo. Digamos, por isso, que a sociedade aoriana que aqui nos interessa, aquela que temos em mente sempre que tal expresso utilizamos, precisamente a da juventude e adultez dos nossos informadores agora entrados na velhice, ou seja, a que esquematicamente poderamos identificar com a da primeira metade do sculo XX.

Surpreendemo-la presente ainda no discurso da gente idosa que abordamos nas Ilhas, mas j fragmentada que aos nossos olhos ela se apresenta, dadas as profundas alteraes por que est passando de algumas dcadas a esta parte. Mesmo que a estrutura social das Ilhas se no tenha modificado significativamente nas ltimas trs dcadas, as formas culturais, essas, transformaram-se a um ritmo visvel mesmo na curta durao de uma vida individual.

Contrariamente quilo que de imediato seramos talvez levados a supor, no remontam essas modificaes ao ano de 1974, por incidncia no Arquiplago das alteraes polticas ento ocorridas no nosso Pas. Cremos que as mesmas se esboam

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desde os anos cinquenta, principalmente pelo incremento da emigrao para o outro lado do Atlntico e pela expanso nos Aores dos meios de comunicao modernos. O processo de autonomizao poltico-administrativa resultante das referidas alteraes a nvel nacional veio encontrar modificaes culturais que de qualquer modo lhe eram anteriores.

No pretendemos, fique claro, que a sociedade aoriana da primeira metade do sculo XX, antes das conquistas recentes da modernizao, exiba caractersticas tais, em especial relativamente a tempos anteriores, que cerca dela possamos falar de verdadeira especificidade estrutural. sabido que aqui, tal como noutras zonas rurais da Europa, persistncias estruturais desafiam sculos. Estando por fazer muito embora a histria social das Ilhas, parece fcil adivinhar o forte substrato estrutural que se mantm ao longo da evoluo da sociedade aoriana, desde a sua fundao, marcada pelo regime senhorial ali implantado com o povoamento quatrocentista, at primeira metade do nosso sculo.

Em boa parte ainda, a sociedade aoriana da primeira metade do sculo XX revela-se particularmente adequada s descries conhecidas da sociedade portuguesa do Antigo Regime. Perguntamo-nos assim (e talvez outros tambm o faam em relao a demais zonas rurais do Pas) que incidncia efectiva tiveram nas comunidades camponesas das Ilhas acontecimentos da histria nacional to relevantes como o advento do liberalismo, na terceira dcada do sculo passado, e o da Primeira Repblica, no dealbar deste que ainda corre. (Que sentido pode ter, alis, para a maior parte

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do Pas rural que somos aquilo que se escreve sob o nome de histria nacional?) Em especial, que consequncias teve na vida colectiva das aldeias das Ilhas o primeiro daqueles acontecimentos que, paradoxalmente, nas Ilhas produziu a estrutura jurdica destinada a cimentar a nova sociedade oitocentista portuguesa? (Referimo-nos legislao liberal de Mouzinho da Silveira, promulgada, como sabido, na Ilha Terceira em 1832).

Temos conscincia de no sermos os primeiros a erguer voz de alerta para esta questo; contudo, achamos necessrio reafirm-la em contextos diversos, dada a evidente importncia de que se reveste. Melhor do que ns a enunciou V. Magalhes Godinho, ao escrever: No se chegou a realizar, no sc. XIX portugus, a sociedade burguesa; no foi possvel, entre ns, a burguesia instalar sua civilizao. E isto porque se goraram as sucessivas tentativas de introduzir a revoluo industrial e permaneceram enquistados os vrios focos modernizadores, sem constituirem verdadeiros polos de desenvolvimento. Porque foram excessivamente lentas as transformaes do regime da terra e as inovaes de tcnica agrcola, daquelas dependentes, de modo que uma estrutura tradicional persistiu sob a capa de modificaes jurdicas, apenas mudando, em vrios casos, os beneficirios mas no as relaes fundamentais com o mundo que explora o solo (A Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, 3. ed. p. 155).

A Primeira Repblica, outro marco relevante na histria do liberalismo portugus, acabou por reduzir-se a curta experincia de menos de duas dcadas, interrompida pelo advento do Estado Novo. O cariz reaccionrio do regime instaurado por este

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movimento significou, para os Aores, o fim de algumas tmidas reclamaes permitidas pelo representativismo liberal e ligadas afirmao acanhada de uma reduzida burguesia local, as quais vinham j, alis, das ltimas dcadas do sculo passado.

Coincide na sua maior parte com a vigncia do Estado Novo o momento da histria social dos Aores que aqui nos interessa. Constantemente perpassa nas palavras dos nossos informadores a situao da gente das Ilhas sob aquele regime que, de certo ponto de vista, significou indubitavelmente para as estruturas tradicionais do Arquiplago forte garantia de salvaguarda, no alterando as condies de vida que continuaram empurrando a populao aoriana para a emigrao.

Desde as primeiras levas, destinadas ao Brasil, ainda nos tempos de Gaspar de Frutuoso, aos mais recentes contingentes que os azares da histria canalizaram principalmente para o Canad, so sempre as insuficincias das formas de existncia material que tm determinado fundamentalmente a emigrao aoriana. No pode, por exemplo, deixar de relacionar-se descries conhecidas da situao dos camponeses das Ilhas nos fins do sculo passado (cfr. Alice Baker, A Summer in the Azores with a Glimpse of Madeira) com os factores que explicam a emigrao aoriana daquela poca para os Estados Unidos da Amrica. A parte adulta da actual populao aoriana decerto reconheceria intacta nas referidas descries, se as lesse, a situao social em que decorreu a sua juventude, tal o grau de inrcia histrica, se assim nos podemos exprimir, que ali constatamos, numa altura em que as inovaes caractersticas da sociedade

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industrial transformavam rapidamente as condies de vida noutros pontos do globo. O cereal () cortado com uma foice e os feixes atados por homens, mulheres e crianas, como no tempo de Rut e Booz, nos campos das Ilhas, ou os interiores () nus e vazios da habitao rural aoriana e o bolo grosseiro de milho, cozido numa tripea por cima das brasas da alimentao do campons do Arquiplago (cfr. da obra de Alice Baker acima referida, a traduo portuguesa de Joo H. Anglin, p. 19 e segs.) relatados por escritora norte-americana habituada a outros ritmos de transformao histrica, so praticamente os mesmos que hoje nos descrever a gente idosa dos Aores.

Mesmo face aos casos em que o surto migratrio imediatamente motivado por cataclismos vulcnicos, impe-se recordar que no fossem as fragilidades do sistema econmico do Arquiplago e o recurso emigrao seria desnecessrio.

Periferia de um Pas cujos focos de transformao por via da indstria, alm de raros, se revelaram de influncia circunscrita, dos Aores h a afirmar que conservou at ao presente uma economia marcada por fortes traos de arcasmo. Dado o peso diminuto na mesma de uma tmida actividade industrial, nunca ali chegou a ser posto em causa o predomnio do sector agrcola, constante na histria econmica do Arquiplago. As condies envolventes (referimo-nos evidentemente sua vasta zona martima exclusiva), no permitem ao Arquiplago, alis, queixar-se da ausncia de alternativas ao trabalho da terra. tambm sobejamente conhecida a dependncia da parte mais significativa das indstrias existentes em

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relao ao sector agrcola: a importncia crescente dos lacticnios confirma-o.

Apesar deste predomnio historicamente inquestionado da agricultura na economia aoriana, s as ltimas dcadas vieram introduzir nas prticas agrcolas do Arquiplago critrios de eficincia e produtividade, fazendo desaparecer paulatinamente as tcnicas tradicionais.

No se caia, por tudo o que foi referido, na ideia ingnua de que a histria econmica das Ilhas se reduziu a termos de quase pura subsistncia, fora do imprio das leis da economia de mercado. Pelo contrrio, desde as origens que grande parte dos resultados do esforo produtivo das comunidades rurais insulares foi canalizada para fora do Arquiplago. Desde o clebre trigo da ilha (S. Miguel), que no sculo XV abasteceu praas fortes portuguesas do Continente e norte de frica, aos laranjais do sculo XVIII, aos batatais e vinhedos do sculo XIX, e s culturas do tabaco, anans ou ch j deste sculo, a economia aoriana foi determinada pelas leis do mercado, e condicionada por contingncias e calamidades que deram origem a uma sucesso de ciclos econmicos caracterizados pela cultura dominante de certos produtos.

Ao lado desta forte determinante capitalista, formas de economia de subsistncia persistiram nos Aores at h pouco. Ainda por meados do nosso sculo, se verificavam nas comunidades rurais do Arquiplago prticas de comunitarismo, destinadas a abrandar o ardor de certas colheitas; o uso da troca directa persistiu igualmente at aos nossos dias, exigido pelos magros salrios rurais que no pela imposio gratuita de vigorosos hbitos ancestrais.

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Na terra, encontrou garantia de subsistncia a

maior parte da populao das Ilhas. Dentro dos estreitos limites dos campos que a envolvem, a aldeia aoriana organizou as suas formas de existncia. No mbito deste pequeno mundo, o campons do Arquiplago consumiu os seus dias, dele saindo infrequentemente mesmo para aldeias prximas.

Cremos que dificilmente conseguiramos construir um modelo nico representativo das aldeias dos Aores. A diversidade de tipos de povoamento, se bem que em certas ilhas predomine algum deles, como que fornece a contrapartida visual da diversidade social e humana de que se reveste o Arquiplago. No podemos deixar de frisar, por exemplo, as diferenas, notveis em muitos casos, de configurao social de uma aldeia para outra. Os contrastes podem ser, neste domnio, muito vincados num caso e menos perceptveis noutro: uma aldeia dominada por um proprietrio mdio ser vizinha de outra onde as diferenas se esbatem numa relativa proximidade de condio econmica de todos os seus habitantes.

Estas discrepncias como que se prolongam no contraste verificado entre as prprias ilhas. conhecida, neste aspecto, a oposio entre S. Miguel onde, no perodo a que nos vimos referindo ao longo deste captulo, as diferenas sociais se cavam desde a proletarizao extrema at ao latifundarismo absentista, e as demais parcelas do Arquiplago onde uma mais equilibrada diviso da propriedade obviou a to gritantes situaes de injustia social.

Entre o assalariado rural que, na primeira metade do sculo, nem conseguia por vezes a esmola do

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trabalho, particularmente difcil de obter durante o inverno, e o pequeno ou mdio proprietrio que prezava a sua camisa lavada e algumas leituras (para j no considerar um ou outro elemento da pequena burguesia ligado ao sector dos servios), a populao da aldeia das Ilhas exibia larga diversidade em matria de condies scio-econmicas.

J de um ponto de vista ideolgico a aldeia aoriana se apresenta marcada por franca homogeneidade, contrastando neste aspecto com as vrias diferenas que constatmos a nvel social. O pequeno ou mdio proprietrio da freguesia (o termo aldeia no faz parte do vocabulrio popular aoriano) no exibe um discurso muito diferente do campons iletrado. -lhes comum um mesmo sistema de valores, que caracterizaremos recorrendo designao criada pela antropologia social britnica quando, na sequncia da derrocada do imprio, aquela passou a conceder a sua ateno aos povos do sul da Europa: a sociedade aoriana , deste ponto de vista, uma sociedade mediterrnica.

Pode dizer-se, com efeito, que de modo geral os traos ideolgicos caractersticos das populaes da Europa meridional se manifestam tambm nas gentes do Arquiplago Aoriano, com os seus valores de honra e vergonha. Trata-se naturalmente duma ideologia de tipo arcaico, no marcada, como as do moderno mundo industrial, por preocupaes de rigor cientfico e eficincia tcnica, mas fundamentalmente determinada pelo princpio da autoridade e por um reduzido grau de abertura inovao.

O peso da religio (o cristianismo catlico, que nos Aores, mais ainda do que em Portugal

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continental, goza de foros de exclusividade) nas mentes insulares considervel, persistindo subterraneamente a seu lado prticas mgicas e bvias manifestaes de pensamento mtico. Por outro lado, o afastamento histrico da religio oficial concebida alis como o valor dos valores ( a religio que nos faz diferentes dos animais) relativamente s condies culturais concretas do povo aoriano, determinou porventura o aparecimento de formas de religiosidade popular que, algumas delas, motivaram conflitos repetidos com os representantes da hierarquia catlica.

As tintas patriarcais sobressaiem vigorosamente neste quadro ideolgico, levando a que ao homem exclusivamente seja entregue a responsabilidade da manuteno econmica do grupo familiar. O modelo proposto ao homem aoriano cumpre-se necessariamente na constituio de famlia, pelo casamento: por este, s por este, se adquire o estatuto da responsabilidade.

So ntidas as tenses que se estabelecem entre os princpios da moral crist e os expedientes a que eventualmente obriga a responsabilidade de sustentar mulher e filhos: os objectivos individualistas desta ltima entram em contradio com os ditames altruistas do cristianismo, mas as prprias instituies do catolicismo ( o caso da confisso, por exemplo) fornecem, na prtica, os meios para resolver as referidas tenses ao nvel das conscincias individuais.

Escusado se torna referir que a situao actual, tambm no que concerne ao domnio dos valores, de crise explcita. A obrigao incondicional de obedecer aos mais velhos no menos

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frequentemente posta em questo pelas novas geraes das Ilhas do que pelas de outras paragens: a sociedade baseada no princpio da autoridade desintegra-se ali tambm. Os critrios da racionalidade e da eficincia sobrepem-se progressivamente aos preceitos da tradio. Nos modos de fazer como nas maneiras de pensar, a mudana progride inexoravelmente.

A vida nas aldeias aorianas processou-se, at

meados deste sculo, com um notvel grau de autarcia em relao ao exterior. No nos referimos aqui ao isolacionismo a que as Ilhas, em consequncia da sua condio geogrfica, estiveram desde sempre submetidas, o que evidentemente tem a ver com a questo; falamos da totalidade scio-cultural que representava, dentro de cada ilha, cada uma das suas aldeias.

A aldeia, nos Aores, significou sobremaneira a estrutura humana fortemente determinada pelos laos afectivos que ligam indivduo a indivduo a que as cincias sociais vm chamando comunidade. Parece-nos, efectivamente, que s por via erudita se pode indagar da conscincia comunitria das populaes aorianas ao nvel do municpio (Cfr. Jlio da Rosa, A Conscincia de Comunidade na Vida e Histria do Povo Aoreano, in Livro da Terceira Semana de Estudos dos Aores, pp. 33-37). ao nvel da aldeia que, a nosso ver, se realiza nos Aores o conceito sociolgico de comunidade. A conscincia da comunidade municipal a que se pertence nunca floresceu com dimenses significativas na mente do campons das Ilhas. Mesmo a noo da pertena a uma comunidade regional, a conscincia de ser-se aoriano, revelou-

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se nela, at h pouco, bastante frgil, se bem que se tenha desenvolvido notavelmente a partir de Abril de 1974. (Frisamos que aqui nos referimos apenas mentalidade do campons dos Aores, no do pequeno-burgus ou burgus das vilas, e cidades do Arquiplago; diferenas notrias teramos de constatar nesta matria, se a pudssemos agora desenvolver. Curioso seria, decerto, proceder igualmente indagao das marcas, nas mentes insulares, de uma conscincia nacional.)

Seja como for, a realidade que nos Aores sobremaneira se revela adequada ao conceito de comunidade a aldeia. A ela adere afectivamente o campons das Ilhas, dizendo-a e sentindo-a sua. Outra aldeia diferir dela porque no a sua. Ao experimentar como outras as aldeias vizinhas, encontra nesta experincia de alteridade a conscincia da comunidade a que pertence.

Quanto ao municpio, demasiado vasto demograficamente, sem implicaes afectivas como a aldeia, -lhe algo exterior. Ir vila, para ele, era sempre em grande parte sair do seu mundo. Fazia-o para consultar o advogado ou o mdico, para comparecer perante o juiz ou o notrio. Tribunal, polcia, estruturas administrativas so realidades que ele, pode dizer-se, no entende, impostas que lhe so do exterior. A figura do guarda da G.N.R. das aldeias do Continente no encontra equivalente nas aldeias aorianas, que desconhecem no seu seio a polcia.

O campons que desce vila ou cidade apercebe-se, ainda hoje, das diferenas existentes entre as suas mos calejadas e as do empregado que o atende do outro lado do balco. Ao dirigir-se-lhe, diz: O senhor, mas em troca ouve: homem. E

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se hoje mais fcil v-lo erguer a voz exigindo os seus direitos, nos tempos a que nos vimos reportando era quase impossvel deixar de o ver curvado, chapu na mo, de repartio em repartio, sem perceber bem a razo de todos os seus passos.

O recurso aos padrinhos tem de compreender-se neste contexto: no entendendo as malhas em que se v envolto, bate porta do padre ou do compadre rico e a galinha gorda, a melhor parte do porco pela matana, a fruta do quintal ou da vinha cuidadosamente tratada nunca pagavam os favores grandes de um filho livre nas sortes, uma questo de polcia ou sentena favoravelmente resolvidas

A vida nas aldeias aorianas feita tambm destas ligaes ao exterior, de que ela no pode abstrair mas que pouco contaram no fluir do seu prprio quotidiano. Elas nos do, todavia, o grau verdadeiro da autarcia que acima referimos, das suas dimenses e das suas fronteiras.

A informao de que vivia o campons das Ilhas era de natureza essencialmente oral, no constituda pela leitura dos jornais ou pela audio da rdio e da televiso, mas a que proporcionava o contacto e o convvio quotidiano com os outros elementos da comunidade a que ele pertencia. O sistema cultural que o envolvia assentava quase exclusivamente nessa forma de comunicao que a oralidade. O que nos captulos seguintes iremos avanar sobre formas de entretenimento colectivo ou expresses religiosas tradicionais, nunca poder ser compreendido fora das afirmaes que acabmos de proferir.

No sendo verdade que cada aldeia criava as suas formas culturais especficas (h uma cultura popular aoriana de facto, mesmo que at recentemente se

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no tenha desenvolvido de modo notvel uma conscincia regional nas mentes das comunidades rurais das Ilhas so questes diferentes!), -o que todas elas viveram, flectidas para dentro das suas fronteiras geogrficas e humanas, uma intensa vida comunitria, que as ltimas dcadas tem vindo a alterar substancialmente.

Torna-se, por isso, fcil de compreender que a atitude do campons aoriano face ao Estado seja de alheamento, quando no de desconfiana. Visto por ele como algo que lhe exterior, no entende que o Estado tenha deveres em relao ao cidado que ele . As penses arriscam-se, assim, a ser vistas como esmola e os impostos como extorso, nunca como obrigao do Estado em relao ao indivduo e deste relativamente comunidade nacional.

A participao das populaes rurais do pas na vida poltica nacional foi at ao presente reduzida. O liberalismo portugus oitocentista manteve no sistema de voto o princpio restritivo (voto censitrio), e o anticlericalismo da Primeira Repblica, temeroso da influncia eclesistica nos meios rurais, no se preocupou com alargar a capacidade de participao da gente dos campos na vida poltica portuguesa; do Estado Novo, naturalmente, no podia esperar-se que esboasse qualquer propsito de descentralizao. Compreende-se, deste modo, que o Estado sempre tenha sido visto com desconfiana pelas comunidades rurais das Ilhas e da maior parte do Pas, ao que sabemos. A administrao sempre temida, nunca entendida. Reparties, polcia, tribunais (Feio como a justia! costuma ouvir-se em S. Miguel) assustam ainda hoje o campons aoriano obrigado a penetr-los.

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Se a introduo dos modernos meios de comunicao no Arquiplago tinha determinado uma lenta transformao neste estado de coisas, foram contudo as alteraes ocorrentes no Pas a partir de 25 de Abril de 1974 que mais contribuiram para a mudana neste domnio. O campesinato aoriano foi, a partir de ento, massivamente acordado de um letargo secular, abrindo-se s contradies decorrentes da participao poltica possvel nas chamadas democracias liberais. Despertando para a experincia das tenses prprias do sistema liberal, ele confrontado com as grande divises do mundo contemporneo o pluripartidarismo, as opes geo-estratgicas Os meios de comunicao exibem-lhe a espectacular realidade planetria as diferenas, a fome, o conflito, a guerra

Como no entender, assim, a perplexidade das mentes moldadas no exguo espao das estruturas scio-culturais tradicionais, de sbito expostas vastido do mundo contemporneo? Sendo verdade que nem por isso elas so incapazes de julgar, compreensvel a hesitao revelada e o receio da mudana: face insegurana do futuro desconhecido, o presente surge como valor a salvaguardar, mau grado as suas contradies, apesar das suas insuficincias.

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II/MSICA, DANA, DIVERTIMENTO COLECTIVO E FESTA

Afirmmos que o facto de cada aldeia e, noutro

plano, cada ilha dos Aores terem vivido at recentemente em elevado nvel de autarcia relativamente ao exterior no obsta a que devamos falar da existncia de uma cultura popular aoriana como tal. A referida autarcia e a prpria condio geogrfica do Arquiplago, a famigerada insularidade, explicam sobejamente a diversidade (dela abordaremos um exemplo significativo no ltimo captulo deste trabalho) que, a diferentes nveis, apresentam as Ilhas diversidade facilmente apercebida por quem, vindo do exterior, aos Aores concede um tipo de olhar que no apenas a do vulgar turista. Todavia, este mesmo olhar, capaz de se dar conta da diversidade, constatar tambm, sem paradoxo, a evidente homogeneidade cultural do Arquiplago. Uma simples descrio de alguns traos culturais de natureza tcnica ou espiritual bastaria para o tornar evidente mesmo para aqueles que da vida nas Ilhas nunca puderam ter experincia directa.

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No sentido de evitar mal-entendidos e obstar a determinados usos do facto a que nos estamos referindo, torna-se necessrio reafirmar, ao lado da evidente identidade cultural dos Aores, a insero do Arquiplago no todo da cultura popular portuguesa. A tal somos obrigados simultaneamente pela histria, ou seja, pela gnese dos fenmenos culturais, como pelas caractersticas estruturais dos mesmos. Basta cotejar, por exemplo, determinados espcimes ou formas da msica tradicional dos Aores com outros procedentes de Portugal continental para que a cultura popular das Ilhas nos surja claramente como parte da cultura popular portuguesa ou, para utilizar a expresso de alguns tericos da cultura, como sub-cultura da mesma. Referir a existncia em ambas de formas musicais que, para alm de uma designao comum, exibem com efeito caractersticas idnticas apenas um exemplo possvel entre muitos outros a que poderamos recorrer mesmo para alm do domnio musical, desde a arquitectura rural prpria culinria. O facto de persistncias seculares, por razo de factores subejamente conhecidos, terem pesado mais nas Ilhas do que na maior parte de Portugal continental no retira fora obrigao de considerar a cultura tradicional dos Aores no horizonte mais largo da cultura tradicional portuguesa.

As danas tradicionais das Ilhas fornecem-nos um exemplo qui excelente das consideraes que temos vindo a tecer sobre a diversidade e homogeneidade da cultura popular aoriana e da sua insero no conjunto das formas de expresso tradicionais do povo portugus. Fazemo-lo na sequncia do que sobre esta questo afirmmos no mbito da obra anterior, a propsito da anlise de algumas das

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formas msico-coreogrficas comuns a todo o Arquiplago. Com efeito, a existncia de pelo menos chamarritas, pezinhos e sapateias em todas as nove ilhas aorianas parece-nos ilustrar, a nvel musical e coreogrfico, ao mesmo tempo a diversidade e homogeneidade cultural do Arquiplago, visto aquelas danas, como conclumos no referido trabalho, deverem considerar-se como estruturas msico-coreogrficas que, de ilha para ilha e mesmo dentro de cada uma delas, recebem realizaes diferentes, ao nvel pelo menos da melodia (no nos referimos aos aspectos coreogrficos daquelas danas, por os considerarmos domnio para outros esforos que no os nossos). A anlise das designaes e das caractersticas literrias, meldicas, rtmicas e harmnicas das referidas realizaes, detectar nas mesmas elementos suficientes para ilustrar sociedade os aspectos de diversidade, homogeneidade e dependncia que pretendemos salientar na msica tradicional dos Aores.

Procuraremos agora, dentro do plano deste contributo para a insero sociolgica da msica tradicional aoriana, descrever os contextos habituais das prticas coreogrficas da gente das Ilhas.

Colheitas divertidas foi a expresso que

escutmos a alguns dos nossos informadores em S. Miguel para designar um conjunto de recolhas de produtos agrcolas ainda cultivados naquela ilha por meados deste sculo, conjunto que engloba a apanha e o trabalho do linho, as vindimas e a preparao do vinho, assim como as colheitas do milho, do trigo, da fava e do tremoo.

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Compreenderemos logo que aquilo que tornava divertidas aquelas actividades particularmente rduas no conjunto das que ocorriam na ilha ao longo do ano agrcola era precisamente a associao da msica a prticas ainda eminentemente comunitrias, em que dcadas prximas de ns vieram vibrar a machadada final. Colheita divertida , na definio popular, aquela em que as pessoas amigas se renem para ajudar na recolha dos cereais e ao mesmo tempo cantar e balhar.

A definio que, pelo seu sabor e preciso, no resistimos a fixar, diz efectivamente a essncia destes trabalhos, deixando adivinhar o lugar e a funo que neles cumprem as formas musicais tradicionais. Descrevamo-los, para que o papel destas ltimas, na circunstncia, surja a nossos olhos com a nitidez desejada.

No Vero e Outono, era costume na ilha, nas noites de luar franco, levantar-se cada famlia muito cedo (logo que o primeiro galo cantava) e, na companhia de elementos de outras famlias a que se encontrava ligada por laos de amizade, dirigir-se para os campos a fim de proceder recolha dos produtos acima referidos. Ali, comeava-se por arrancar o cereal, luz da lua. Iniciava-se a colheita muito cedo para fugir ao calor do dia, trabalhando pela fresca.

Entretanto, surgiam j as primeiras cantigas ao desafio, a cano individual ou em grupo. Se algumas quadras eram improvisadas, no caso de despique que se estabelecesse entre rapaz e rapariga mais ousados, as melodias utilizadas eram as mesmas que serviam as danas tradicionais praticadas com mais frequncia, um Balho Furado ou algum Pzinho.

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Terminada aquela primeira tarefa, improvisava-se a eira num lugar propcio, habitualmente ao meio do campo. Em cada aldeia, havia eiras permanentes nos campos das famlias abastadas; os camponeses pobres, no dispondo de terreno suficiente, faziam-nas de ocasio. Era ento que, at pela necessidade de bater a terra, se balhava at ao romper do dia, sobre a eira onde o gro ia ser separado da palha. Trazidas de casa, alfaias igualmente necessrias, as violas da terra, impeliam, vibrantes, os pares que volteavam na Chamarrita, no Pezinho da Vila ou na Bela Aurora. O ritmo das danas populares precedia, no dia nascente, o dos manguais que, empunhados por braos possantes, mais tarde fariam saltar o gro das paveias estendidas sobre o cho endurecido.

Pelo que dissemos, ficou claro que aquilo que se cantava por ocasio das colheitas divertidas no constituia o que em rigor se deve entender por msica de trabalho (que nem por isso desconhecida no corpo etnomusical aoriano). Ouviam-se ento os mesmos trechos musicais e recorria-se s mesmas danas que, como veremos, se escutavam aquando as festas do Esprito Santo ou pelas tardes dos domingos de vero. De qualquer modo, aqui a funo do canto e da dana, , em parte, diferente da que cumpre nos casos que a seguir descreveremos; finalidade de entretenimento que nestes surge com mais exclusividade, junta-se determinante, no caso das colheitas divertidas, uma outra: a de atenuar o esforo exigido pela aco laboral, aproximando esta tanto quanto possvel da aco ldica. Referir o facto de o canto e, particularmente, a dana implicarem um esforo suplementar em relao ao trabalho, ajuda decerto a melhor entender a funo da msica

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quando surge em contextos deste tipo: expresso da alegria (o gro colhido garantia do po de um ano inteiro) e meio sobremaneira eficaz de conjugao de esforos, a msica aproxima o ardor do trabalho do prazer da diverso. Mesmo sem nos fornecerem exemplares de msica de trabalho, as colheitas divertidas da ilha de S. Miguel do-nos deste facto mais uma confirmao eloquente.

Meio de entretenimento e de instaurao de alegria

colectiva, as danas tradicionais aorianas no podiam estar ausentes das manifestaes que, por fora de costume multissecular, se tornaram no que certamente constitui a maior festa do povo aoriano e um dos traos que de forma mais ntida parecem exprimir a sua identidade cultural. Uma tentativa de enumerao das circunstncias em que ocorrem as prticas coreogrficas tradicionais da gente dos Aores no poderia deixar de incluir as festas com que ali homenageado o Esprito Santo.

Temos que alertar, todavia, para o facto de no ser este ainda o lugar para o estabelecimento da etnomusicologia integral daquelas festas. No poderemos ter em devida conta, por exemplo, a actuao dos folies por ocasio das mesmas, dado o facto de, aqui, elas nos interessarem apenas como mais uma circunstncia em que habitualmente a gente das Ilhas executava as suas danas.

Remontando a sua origem a tempos medievais, o culto popular do Esprito Santo foi trazido para as Ilhas pelos seus primeiros habitantes. Ao contrrio do que acontece com outros costumes ancestrais dos Aores, acerca deste dispomos de diversos

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documentos que atestam a sua antiguidade, e que aqui supomos desnecessrio referir.

De iniciativa aristocrtica no seu incio, as festas do Esprito Santo significavam originalmente a magnanimidade dos senhores para com a populao das localidades em que decorriam. A distribuio de carne, po e vinho mantm ainda hoje algo deste significado original, dado que nem todos os camponeses das aldeias aorianas podem arcar com as despesas de uma mordomia; mas a iniciativa aristocrtica das festas perdeu-se h sculos, tornando-se elas, deste modo, manifestaes exclusivamente populares.

O seu sentido fundamental reside, a nosso ver, no carcter de festa comunitria que marca essencialmente as celebraes aorianas do Esprito Santo. A festa sempre o dia diferente que corta a pesada banalidade do quotidiano, interrompendo a sequncia dos dias de trabalho e abrindo espao para a euforia colectiva. A carne, o po e o vinho distribudos asseguram a fartura do dia de festa, fartura de que ao longo do ano a gente pobre no tinha garantia. Quem conhece o regime alimentar do povo aoriano at h pouco, compreende-o: o vinho e, particularmente, a carne e um po melhor, por excepcionais durante todo um ano, fazem, com a msica, a dana e a liturgia popular, efectivamente, a festa.

este o quadro que temos de ressurgir na nossa tentativa de reconstituio de mais uma das circunstncias em que a gente aoriana praticava as suas danas. Por ocasio das festas do Esprito Santo, danava-se nas aldeias aorianas principalmente aos domingos, depois do jantar (refeio do incio da

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tarde). Balhava-se, por vezes, na cozinha ou no meio-da-casa trreos da habitao que naquela semana tinha o Senhor Esprito Santo. Chegava a desarmar-se o Esprito Santo, a fim de obter espao para a dana. (H diversos nveis semnticos no uso da expresso Esprito Santo: terceira pessoa da Trindade crist, ela designa, na linguagem popular aoriana, as insgnias que simbolizam aquela, ou seja, a bandeira e a coroa, e como aqui o prprio espao domstico, profusamente ornamentado, onde em cada habitao se instalam as ditas insgnias). Contudo, porque em geral o espao no era suficiente para a gente que acorria (e o que nas ltimas dcadas do sculo passado j dizia Csar das Neves acerca destes costumes do povo aoriano, ou seja, no se negar a entrada a qualquer indivduo, mesmo que seja estranho, que pea para assistir ao divertimento, continuou verdade at aos nossos dias), era mais frequente, pelo menos enquanto durava a luz do dia, danar-se na rua em frente habitao da famlia que festejava o Esprito Santo.

As danas prolongavam-se por toda a tarde, at ao tero, recitado perante o Senhor Esprito Santo. A este seguia-se a mudana para a casa de quem detinha a dominga prxima. Durante a mudana, prosseguiam as cantigas ao desafio, quando as violas da terra no resolviam descansar da maratona da tarde. J na outra morada, instalava-se a coroa e a bandeira, davam-se os parabns e desejava-se sade para gozar o Senhor Esprito Santo, voltando-se depois aos jogos prprios da poca (alm do jogo das prendas e do anel, toda a gente conhecia a brasa, a braa, o zango e o mentes-tu), quando no havia

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ainda foras para retomar pzinhos, chamarritas e balhos furados.

Era habitualmente fora de casa que tinham lugar

essas formas de convvio comunitrio que constitua, para as populaes rurais das Ilhas, a prtica das suas danas tradicionais.

O facto de o contexto que a motivava, colheitas ou festas do Esprito Santo, ocorrerem na poca do ano propcia permanncia ao ar livre explica parcialmente este facto. Ele, por outro lado, determina, a nosso ver, algumas caractersticas das danas tradicionais aorianas, ao nvel da sua dimenso musical pelo menos. A propsito disto, no podemos deixar de pensar, por exemplo, na Chamarrita do Caracol da ilha do Pico que, pelas suas caractersticas meldicas, nos parece exigir efectivamente como meio adequado sua realizao espaos mais vastos que as quatro paredes de alguma das divises da casa rural aoriana. O registo particularmente agudo em que ela quase sempre se movimenta o que os cantores daquela ilha nem por isso resolvem atravs do falsete, mas por uma potente emisso vocal trai, a nosso ver, este meio original em que habitualmente eram executadas as danas tradicionais das Ilhas.

Cada aldeia dispunha de um ou mais stios tradicionalmente utilizados para as suas prticas coreogrficas, se bem que em qualquer lugar que oferecesse condies mnimas para as mesmas elas se pudessem efectuar. Estes locais instituiam-se, de certo modo, como pontos de encontro, correspondendo satisfao das necessidades de convvio e diverso das populaes de uma ou mais

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aldeias. Com efeito, se por via de regra estas manifestaes colectivas incluam elementos de uma nica localidade, sabemos tambm de lugares onde, pelas tardes dos domingos de vero, convergia gente de diversas aldeias vizinhas, em busca de convvio mais alargado que aquele que lhe era proporcionado dentro dos limites da sua prpria aldeia.

Curiosamente, no se balhava por ocasio das festas de vero com que cada localidade comemorava o seu patrono religioso. Nem mesmo as manifestaes profanas que aquelas festas incluam, como os arraiais, depois das procisses, permitiam quaisquer manifestaes coreogrficas populares. Tal facto explica-se pela interferncia severa das autoridades eclesisticas, que geralmente desaprovavam e, por vezes, proibiam explicitamente as danas tradicionais, consideradas imorais (!), afastando-as de todas as celebraes de carcter religioso.

A gama de funes cumpridas pela msica e pela dana na vida social de tal ordem que nem mesmo a aco de to poderosos adversrios conseguiu extirpar a sua necessidade do seio da vida colectiva nas aldeias aorianas. Sem incorrermos no erro de tomar a parte pelo todo, e sem pretendermos que os mais belos exemplares da msica tradicional aoriana se encontram entre os trechos musicais que servem as suas danas, podemos decerto afirmar que o Arquiplago soube criar e desenvolver um notvel conjunto de formas coreogrficas, o qual constitui uma das melhores expresses do seu inconfundvel perfil cultural.

Chegou mesmo a estabelecer-se nalgumas ilhas uma sequncia obrigatria de danas, o que, como

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sabido, corresponde tambm ao princpio da aristocrtica suite. Na ilha Terceira, era costume abrir essa srie com a Charamba e encerr-la com a Sapateia. As palavras de certas quadras caractersticas daquelas danas testemunham a funo que lhes era atribuda na referida sequncia. Da Charamba, por exemplo:

Das modas da minha terra a Charamba a primeira; vou comear por cant-la louvando a ilha Terceira.

Sapateia, como dissemos, cabia fechar o ciclo de

danas que impunha a tradio na ilha Terceira:

Aqui vem a Sapateia para o baile se acabar, senhores para quem cantei bem me queiram desculpar. A moda da Sapateia no pense que h-de acabar, eu hei-de aqui voltar quando bem me apetecer.

Para alm da funo de entretenimento cumprida

de forma porventura mais bvia pelas danas tradicionais, no podemos deixar de referir ainda a sua funo integradora, e mesmo de atenuamento de conflitos entre os indivduos.

Danar era, ali como em todo o lado, um acto eminentemente social. Nele a comunidade se empenhava e exprimia como tal. Participavam no apenas os que entravam na roda, danando e cantando, e os que se encarregavam do

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acompanhamento instrumental, mas tambm quem, em redor, descansando do pzinho anterior, se preparava para a chamarrita seguinte, rindo com alguma quadra brejeira de rapariga afoita a homem maduro (durante a dana, as quadras, improvisadas ou no, eram lanadas tanto pelos bailarinos como por aqueles que assistiam). Nem estava completamente ausente quem ficasse em casa, retido por luto, desgosto grave ou por simples rezinguice de marginalizado, argumentando com as palavras do padre contra as formas de divertimento colectivo.

A crtica social bem humorada que estas manifestaes permitiam, outro dos aspectos que melhor revelam a natureza das mesmas. O cancioneiro tradicional aoriano est cheio de produtos que resultaram certamente de ocasies como as que descrevemos e que, por sua qualidade, depressa foram fixadas pela tradio oral. A figura literria da Chamarrita, de todas as ilhas do Arquiplago, ou a das Velhas, da ilha Terceira, constituam pretexto para o exerccio de uma crtica social que podia ir de breve aluso mordacidade e ao sarcasmo mais cruis.

A dimenso social destas formas artsticas populares no exterior sua essncia. Os elementos aduzidos permitem-nos, julgamos, conclu-lo seguramente. Elas exprimiam e realizavam como tais as comunidades rurais das Ilhas, possibilitando aos indivduos que as compunham um tipo de relacionamento diverso daquele que lhes proporcionava o labor do dia-a-dia, mas como este ltimo imprescindvel sua subsistncia futura.

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III/ MSICA, POESIA E ESPECTCULO:

OS CANTADORES

Entre as vrias caractersticas das formas artsticas produzidas no seio das comunidades rurais europeias , sem dvida, do anonimato que mais frequentemente se tem recorrido para definir a arte tradicional. Assim, A. Hauser caracteriza nos termos seguintes aquilo que ele prprio designa por arte folclrica: Pertence essncia deste tipo de arte que os que a mantm no so apenas passivamente receptores, mas so normalmente participantes inventivos nas actividades artsticas e, contudo, no se distinguem como indivduos nem reivindicam qualquer autoria pessoal das criaes (Teorias da Arte, ed. Presena, l. ed., p. 309).

No domnio da msica tradicional aoriana, esta caracterstica verifica-se obviamente no caso dos espcimes musicais que servem as estruturas coreogrficas tradicionais, de cujo contexto social nos ocupmos no captulo anterior deste trabalho. S por alguma ingenuidade cairamos no risco de transformar a preocupao pelo conhecimento das origens de uma chamarrita, uma sapateia ou um pzinho, na identificao dos seus eventuais autores.

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Todavia, nem em toda a cultura tradicional das Ilhas esta caracterstica se apresenta com o mesmo peso, sendo, por exemplo, assaz evidentes as marcas de individualidade na produo potica dos improvisadores populares aorianos, para alm da linguagem fortemente padronizada em que a mesma possa exprimir-se.

Inclui ainda Hauser na sua definio de arte folclrica segunda caracterstica que outros nela costumam igualmente salientar: a participao intensa dos que a mantm, no se comportando estes como seus meros receptores, op-la-ia arte popular da civilizao urbano-industrial, onde ntido o fosso que separa o indivduo produtor do objecto artstico e o pblico fruidor do mesmo. Veremos, por quanto referirmos sobre a arte dos improvisadores aorianos, fugir-nos, num dos domnios mais ricos da cultura popular das Ilhas, alm da dita caracterstica de anonimato, esta outra de participao, que para muitos sabemos constituir um dos aspectos fundamentais por que deve definir-se o perfil da arte tradicional.

Vamos, de facto, falar de vedetas. O nosso relato aparecer povoado de nomes que aos ouvidos de cada aoriano, da ilha do Corvo de Santa Maria, soam familiares, ainda que no baseados num conhecimento directo das pessoas por eles designadas. Mesmo sem lhes estabelecermos o elenco completo, poderamos tornar a enumerao de alguns desses nomes num dos esteios do nosso relato, se o no desaconselhasse a aridez do processo.

Vamos falar de espectculo: a um lado, aqueles que, fazendo uso de capacidades em que naturalmente sobrelevam os demais, produzem arte, e

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do outro os que da simples presena ao acto retiram agrado, no modo que acima, em nossa opinio pouco adequadamente, vimos designado como passivo. No vamos, contudo, falar de profissionais, situao que por momentos alguns deles quase atingiram, mas de camponeses que raramente (seno por interferncia da emigrao) deixaram a condio de camponeses.

Conservemos o nome que lhes do nas Ilhas cantadores; mas veremos que, de certo modo a contradizer a designao, eles so sobretudo improvisadores poticos: de natureza literria o produto que lhes ficamos devendo, servindo aqui a msica de simples suporte e veculo duma comunicao essencialmente verbal, veculo de cuja presena mal tomam conscincia os que no processo intervm.

Temos razes suficientes para crer, mesmo sem o

apoio explcito de documentos, que a existncia de improvisadores constante ao longo da histria das populaes aorianas. A origem das prticas contemporneas neste domnio deve remontar data do povoamento das Ilhas. Por esta razo, como por outras certamente, no descabido aproxim-las da raiz de manifestaes actuais idnticas em Portugal continental, particularmente as, porventura mais conhecidas, ocorrentes na metade sul do Pas.

Pondo de lado a preocupao pela dimenso histrica, no nos difcil aceitar como natural, porque correspondendo a necessidades efectivas de comunidades por longo tempo fechadas sobre si mesmas, o aparecimento e desenvolvimento nas mesmas de indivduos histrionicamente mais dotados, que fazem uso dos seus talentos em resposta s ditas

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necessidades colectivas. Cremos tratar-se duma constante verificada nas comunidades tradicionais em geral, constante que s comea a claudicar com a expanso dos chamados meios de comunicao de massa.

Mendona Dias (cfr. A Intelectualidade nos Aores) recolheu notcia de alguns improvisadores micaelenses das primeiras dcadas do sculo passado. Do seu relato, permitimo-nos extrair a informao referente a Antnio Loureno, o Cara Velha, devido ao sabor do prprio episdio e pelo facto de o contexto nos referir uma data precisa para o acontecimento (1832).

Nado e crescido nos Fenais da Ajuda (S. Miguel), assistiu o Cara Velha, por casual ida cidade, chegada de D. Pedro IV a Ponta Delgada cara j o Pas na guerra civil que opunha constitucionalistas e defensores do Antigo Regime. Comparece ao desembarque real e, apesar da multido, consegue abeirar-se do monarca. Ento, como quem sada mas aproveita para dar recado (portentoso recado da gente dos campos aos que, manipulando os cordelinhos da poltica, o enredam em malhas que ele no pode compreender!), o Cara Velha atira afoitamente:

Ns uns pobres jornaleiros com as enxadas na mo, como havemos de saber qual dos dois reis tem razo?

Arrastado sob priso por entre o alvoroo que

entretanto se gerara, o Cara Velha compreende que a franqueza tem seu preo e h que mudar de atitude; enquanto D. Pedro o pode ouvir, lana ainda:

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Esse dia desejado, dou o que seu a seu dono, s ser quando estiver Dona Maria no trono

A segunda quadra valeu-lhe a interveno do

prprio rei e o retorno liberdade que a primeira, por pouco, lhe ia tirando.

Episdios como este j nos situam completamente no modo de actuao dos improvisadores actuais, tanto mais apreciados quanto melhor apreendem e exploram determinados aspectos da circunstncia que no momento os envolve, e mais agilmente se desembaraam das peias lanadas pelo adversrio.

A primeira metade deste sculo, perodo a que algo artificialmente delimitmos o mbito cronolgico deste trabalho, particularmente rico, quantitativa e qualitativamente, no que existncia de improvisadores nas Ilhas diz respeito. Nos tempos que ora correm todos decerto concordaro connosco nesta matria assistimos extino de uma pliade brilhante de improvisadores populares que, infelizmente, no encontraram herdeiros. Talvez por isso seja altura de fixar seus nomes, uma vez que a parte maior da sua arte, por espontnea e efmera como muito daquilo que de belo devemos natureza, j no possvel preservar.

No h no Arquiplago pessoa para quem no

sejam de algum modo familiares os nomes da Turlu (Maria Angelina de Sousa, S. Mateus, Terceira, 5/11/1908), do Charrua (Jos de Sousa Brasil, Cinco Ribeiras, Terceira, 24/6/1910) ou de Mestre Joo

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Plcido (de Medeiros, Lombinha da Maia, S. Miguel, 25/6/1911 - Hamilton, Canad, 9/1/1983). Alm destes, acaso por ns promovidos a um primeiro lugar com alguma injustia para os demais, vrios outros nomes venceram igualmente as fronteiras da terra que os viu nascer, atingindo a sua fama, nalguns casos, a outra margem do Atlntico. o caso do Ferreirinha das Bicas (Francisco Ferreira dos Santos, Terra Ch, Terceira, 25/10/1914), do Tenrinho (Jos Gonalves Martins, Angra do Herosmo, 8/11/1884 - Santa Brbara, Terceira, 20/9/1945) ou do Barbeiro (Serreta, Terceira, 9/12/1923). Salientamos ainda o Carvalho (Bretanha, S. Miguel), o Furtado (Cabouco, S. Miguel), o Gaitada (Francisco Rodrigues de Lima, Lages, 30/3/1916 - Angra do Herosmo, Terceira, 12/12/1975) e outro Barbeiro (Jos Pacheco Cmara, Vila do Nordeste, S. Miguel).

Procedem todos os improvisadores acima referidos das ilhas de S. Miguel e Terceira. Com efeito, deram origem, estas duas ilhas, ao que julgamos ter constitudo a mais brilhante gerao de improvisadores aorianos. Nelas se desenvolveu sobremaneira o gosto pela cantoria, tendo ns notcia de despiques realizados noutras, como Santa Maria, Graciosa e S. Jorge, mas por cantadores vindos de S. Miguel e Terceira; contudo, mesmo ali, o costume nunca recebeu a adeso entusistica que recolheu nestas duas ltimas ilhas, o que no significar certamente que as demais fraces do Arquiplago tenham desconhecido por completo a existncia de improvisadores.

Por detrs dos nomes que citmos, muitos outros modestamente se escondem, conhecidos que foram apenas em zonas restritas das Ilhas e esquecidos pelas

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geraes seguintes. toda uma tradio que, contando na primeira metade deste sculo com inumerveis cultores, desde os mais insignificantes lugarejos s vilas e cidades dos Aores, no passado se prolonga com o nome de muitos outros cuja memria, infelizmente, o tempo no fixou.

o caso do tio Rasinha (Rasina?), por exemplo, falecido muito antes de nascerem aqueles, agora idosos, de quem lhe recolhemos a lembrana j bastante turva. No Burguete, lugar da freguesia da Lomba da Maia, na costa norte da ilha de S. Miguel, margem da via principal que liga Ponta Delgada Vila de Nordeste, o tio Rasinha construa, nas ltimas dcadas do sculo findo e primeiros anos deste, ao que supomos, autnticos espectculos que todo um pblico de conterrneos, reunidos no largo junto fonte seguia atentamente, rindo com as suas chacotas.

Fisicamente invlido, subiam-no para um stio alto donde declamava os seus versos. Os nmeros mais aplaudidos eram elaborados previamente, decorando-lhe o texto, uma vez que o tio Rasinha no sabia ler nem escrever. O assunto ia busc-lo a episdios da vida quotidiana local que naturalmente todos conheciam, permitindo assim um saudvel exerccio de crtica social. De repetidos, para hilariedade de todos, os seus versos acabavam por ser memorizados por alguns. Ainda hoje, naquela zona, de uma ou outra quadra que muita gente conhece se atribui a paternidade ao tio Rasinha; mas uma trova (era esta designao que ele prprio dava s suas criaes) completa j no nos ser possvel, decerto, recuperar.

A sua fama estendeu-se a quase toda a ilha. Fazendo-se transportar em carroa puxada por um jumento, o tio Rasinha deslocou-se, para despiques, a

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localidades do norte e sul de S. Miguel. Um filho, tambm j falecido, herdou-lhe a facilidade para as rimas: a quem na rua o saudava, respondia com dstico ou quadra onde reluziam as qualidades da sua veia humorstica.

A glria da Turlu, essa, ultrapassou muito cedo os limites da ilha natal. Tendo aprendido a ler com sua me, recebeu do pai a alcunha por que veio a ser conhecida em todo o Arquiplago. Ouvida em arraiais e terreiros, nas festas do Esprito Santo, nos bailes e folias da rs, nunca mais deixou de cantar, sendo convidada para toda a parte da ilha e at para fora dela, tendo ido vrias vezes s ilhas de S. Miguel e de S. Jorge, batendo-se gloriosamente com os mais notveis cantadores aorianos (). Inteligente, alegre, expansiva, ela consegue o aplauso do pblico nas cantorias. Por vezes irascvel at ao exagero, chegando a esbofetear um cantador no prprio palco dos desafios, perante uma multido. (Gervsio Lima, A Turlu na Califrnia, p. 32).

Em qualquer lugar de qualquer das nove ilhas aorianas, o seu nome tornou-se de facto, sinnimo de cantadeira. Dadas as insuficincias da comunicao no tempo em que construiu a sua fama, ainda em boa parte um tipo de informao baseado na oralidade que se encarrega de ao nome lhe dar toda uma dimenso simblica, que tambm dever entender-se no contexto de uma sociedade essencialmente patriarcal. Conheceram-se nos Aores algumas outras cantadeiras, como a Celestina (Celestina Soares Cordeiro, Raminho, Terceira, 2/12/1898 - 17/1/1924); contudo, nome feminino capaz de ombrear, e na opinio de muitos ultrapassar, o dos maiores cantores aorianos s o da lendria

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Turlu. O cantador Manuel Carreiro Valrio que, tendo nascido em S. Carlos do Pinhal (Brasil, 15/8/1888), veio acabar os seus dias na Achada (S. Miguel), como moleiro, dizia-se admirador da Turlu unicamente por ser mulher, em seu entender, e no por cantar melhor do que qualquer outro por ser mulher que se apresenta em pblico a cantar com os mais afamados cantadores, a quem d combate (Manuel I. de Melo, Cantadores Populares).

Se bem que nunca nos tenha sido dado assistir a desafio em que participasse a Turlu, no nos difcil supor que s qualidades pessoais que lhe permitiam, por si, vencer qualquer bom adversrio, a cantadeira juntava, nuns casos como elemento favorvel, noutros como factor negativo, a sua condio de mulher. Pensamos em determinados temas ou em certas maneiras de dizer que as convenincias, ali como em muito outro lugar particularmente acatadas por imposio do sistema de valores em vigor, tornam vedadas mulher, sob pena de perder a respeitabilidade. Sabemos que a Turlu, frente a auditrios dominados pelo elemento masculino, soube correr esse risco, intuitivamente tirando do facto o melhor partido possvel.

Em despique ocorrido em Ponta Delgada no ano de 1937, a cantadeira no se esquivou a ler nas entrelinhas de certa quadra proposta por Gabriel Ferreira:

Tu tens um cantar to belo, mas eu c no fico atrs: Angelina um castelo como o nosso de S. Brs

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E respondeu letra:

Se no meu castelo te apanho, pobre de ti, coitadinho: morres l, triste morganho ou esperto passarinho.

No mesmo ano e ainda em Ponta Delgada, mas

em disputa com Tenrinho, ela prpria voltou ao tema da mulher (cfr. Manuel I, de Melo, Cantadores Populares, p. 59):

No vales uma pataca, no pensas no bem comum. Um garfo sem uma faca no d arranjo nenhum.

Tenrinho, por seu lado, pensou rpido e redarguiu:

Eu bem sei que ela se eleva seja em festas ou em bodo; j todos sabem que Eva desgraou o mundo todo.

A Turlu, porm, saiu-se airosamente, apoderando-

se do mote adversrio:

Olha que Ado foi mais bruto, no se soube defender: para que aceitou o fruto que Eva lhe deu a comer?

A sua condio de mulher esteve sempre presente

no percurso da cantadeira, como consequncia e contraponto necessrio ao sistema de valores firmemente implantados nas mentes das Ilhas. Em desafio com o Charrua, cada um procurou, por fora

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da simples gramtica, impor a supremacia do seu prprio sexo (cfr. Gervsio Lima, A Turlu na Califrnia, donde extramos apenas algumas quadras).

Turlu: A terra vale mais que o mar, a vara mais do que o metro, a coroa mais que o altar, a pomba mais do que o ceptro. Charrua: O pai mais vale que a filha, o vencer, mais que a derrota, o continente mais que a ilha, o ilhu mais do que a ilhota. Turlu: A casa mais que o palheiro, a serra mais que o valado, roseira mais que o craveiro, a relva mais que o silvado. Charrua: O palcio mais que a casa, o carneiro mais que a ovelha, o fogo mais que a brasa, o fogo mais do que a grelha.

Como aconteceu com os seus melhores

adversrios, a fama da Turlu cedo galgou as fronteiras do Arquiplago, tocando com sucesso o continente norte-americano. Nos Estados Unidos, primeiro, e no Canad, depois (1965), realizou autnticas digresses entre a colnia aoriana, onde alis j se tinham exibido outros improvisadores famosos, como o Charrua, de 1936 a 1938, e Tenrinho em 1937. Na sequncia deste ltimo, a cantadeira permaneceu na Amrica do Norte por um longo ano. Ela prpria descreveu saborosamente a experincia: Tenho ganho muito a cantar. Tenho corrido a Califrnia

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quase toda a cantar e todos os dias recebo cartas de convite para ir a vrios lugares. E onde vou a primeira vez querem que eu v segunda e terceira. Este povo parece doudo por me ouvir! At mandaram buscar um cantador baixa Amrica para cantar comigo porque lhes parece que os que esto c em cima na Califrnia so fraquinhos; pois o que veio de baixo quase a mesma coisa, mas sempre tenteia mais (Gervsio Lima, A Turlu na Califrnia, pp. 44-45).

Quanto ao impacte da vida das grandes metrpoles de alm-Atlntico no esprito ilhu, Maria Angelina referiu ao Correio dos Aores (cfr. Gervsio Lima, ob. cit., p. 51), com a mesma vivacidade com que esmagava os inimigos de tablado:

Das cidade que nos diz? So duma pessoa ficar banzada. So Francisco

da Califrnia e Los Angeles metem medo de Nova York nem lhe digo nada (). Que endoidecimento de automveis, de comboios, de gente. Parecia-me chegada ao dia do juzo final Pois no v que na cidade de Gustine at me levaram num andor pelas ruas, com um microfone a espalhar pelos ares as minhas cantigas Cantei no teatro da cidade, com a casa cunha, sem caber nem mais uma cabea de alfinete.

As incidncias do fenmeno da emigrao na vida e na arte dos improvisadores aorianos no se esgotam nas digresses por alguns deles efectuadas em terra americana; vrios acabaram por l se radicar, cedendo ao fascnio da civilizao tcnica. Joo Plcido, depois de vrias idas aos Estados Unidos e Canad, e da gravao de alguns discos para editores luso-americanos, fixou-se no Canad; a prpria Turlu

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vive actualmente nos Estados Unidos, consorciada com o mulo Charrua.

Quase todos camponeses, os cantadores procedem em geral das aldeias e no trabalho da terra encontraram o parco meio de subsistncia que partilhavam com o da maioria do povo aoriano. Mesmo no caso, bastante raro, dos que nasceram nalguma das pequenas cidades do Arquiplago (a Turlu, por exemplo), as suas formas de pensar no diferiam qualitativamente das que dominavam nas aldeias insulares. Deste modo, a sua voz sai incisivamente marcada pelas estruturas rurais que so ainda as do Arquiplago. Desajeitada a determinados olhos, alheia a requintes caractersticos duma cultura escolar, sem dvida; mas fresca, viva, para quantos estejam dispostos a entend-la

A condio social dos cantadores a mesma da maioria da populao aoriana. Ao sabermos que este foi barbeiro ou aquele moleiro, importa no esquecer o que significam estas designaes nas comunidades rurais dos Aores: quase nunca a profisso que define com exclusividade o modo de vida dum indivduo, mas o exerccio de uma funo mais ou menos nica na comunidade, se bem que raramente realizada a tempo pleno; nenhum barbeiro ou moleiro de aldeia aoriana deixou de cultivar o seu pedao de terra, pelo que se inseria na condio geral do homem das Ilhas.

Tal como verificmos nas comunidades rurais aorianas uma estratificao nalguns casos assaz pronunciada, assim constataremos certa diversidade na condio econmica dos cantadores, a qual podia ir desde a do assalariado rural em situao, por vezes, de proletarizao extrema, do pequeno proprietrio

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que vivia do cultivo das suas prprias terras, passando pela do rendeiro que trabalhava o solo de proprietrio absentista.

parte o caso dos cantadores que, impelidos emigrao, passaram a trabalhar alm-Atlntico como operrios, esta foi a condio em que nasceram e terminaram os seus dias quase todos os improvisadores aorianos. Alguns conseguiram amealhar p-de-meia com a sua arte; todavia, de acordo com as informaes que recolhemos, tal no se verificou com a maior parte deles. A cantoria no d para enriquecer era a resposta que, nessa matria, a nossa indagao em geral colhia.

Como parte da populao rural aoriana na primeira metade deste sculo, nmero significativo dos seus improvisadores no dispunha de qualquer instruo escolar. verdade que em obra recente (J. H. Borges Martins,