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FICHA TÉCNICA Título original: Liquidator Autor: Andy Mulligan Copyright © Andy Mulligan, 2015 Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2016 Tradução: Maria Fraústo Revisão: Carlos Jesus / Editorial Presença Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1.ª edição, Lisboa, agosto, 2016 Depósito legal n.º 412 522/16 Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730‑132 BARCARENA [email protected] www.presenca.pt

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FICHA TÉCNICA

Título original: LiquidatorAutor: Andy MulliganCopyright © Andy Mulligan, 2015Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2016Tradução: Maria FraústoRevisão: Carlos Jesus / Editorial PresençaComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.ª edição, Lisboa, agosto, 2016Depósito legal n.º 412 522/16

Reservados todos os direitospara a língua portuguesa (exceto Brasil) àEDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 ‑132 [email protected]

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Para a Vicky

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O NOSSO COMPROMISSO CONTIGO

De mim terás a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade. De todos nós, na realidade, de todos os que aqui estão sentados a escrever isto… Foi o que combinámos enquanto eu juntava tudo o que tinha registado.

Há partes em que não vais acreditar, mas não nos importamos com isso. Há partes que nem deve-rias ler porque são VIOLENTAS e PERTURBADORAS, mas o que é que havíamos de fazer? Deixar coisas de fora e censurarmo-nos a nós mesmos? A respos-ta é um grande e redondo «NÃO, ISSO NÃO É POSSÍVEL».

Continua a ler, se tens coragem! Porque come-çamos na manhã em que o rastilho se acendeu e a vida mudou para sempre.

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Vicky

7h03Em casa

O Stagger e eu temos um motociclo. O motociclo em questão chama‑se George e nós os dois tirámo‑lo de um contentor, à porta de nossa casa. Para e arranca e faz ruídos estranhos, mas damo‑nos muito bem com ele e normalmente não nos deixa ficar mal.

Primeiro sento‑me eu. O Stagger senta‑se nele para ficar à frente. Eu enfio‑me debaixo do casaco dele, mantendo a cabeça bem em baixo. Depois ponho os braços à volta da sua cintura e lá vamos nós a abrir naquela posição, com os joelhos aconche‑gados. Gritamos no meio do trânsito, a quanto?… — quarenta ou cinquenta à hora quando o vento nos dá por trás, a todo o vapor pela rua abaixo! — e sim, é ilegal, nós sabemos… mas de qualquer maneira o Stagger não tem carta de condução e às vezes é preciso dar a volta às coisas, se não for assim nunca chegaremos ao Céu. Quando penso no que aconteceu, acho que devia ter sido mais prudente e ter apanhado o autocarro — mas o meu pai tinha ficado a pé a noite inteira, às voltas, e por isso eu tinha dormido mal e não ouvi o despertador… e foi por esse motivo que corri escadas acima para bater à porta do Stagger e pedir ajuda.

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— Preciso de boleia! — gritei.Ele primeiro disse que não.— Tens de me dar boleia, Stag — disse eu —, por favor! É o

grande dia! O dia importante…— Porquê?— Vão anunciar os estágios — gritei. — Dá‑me boleia, Stag!

Fico a dever‑te mais esta, para todo o sempre…Por fim deixou‑me entrar e eu fui‑lhe buscar os jeans. Arras‑

tei‑o pelas escadas abaixo, depois ele descobriu que estava sem as chaves e tive de voltar a subir as escadas, a correr, para as ir buscar. Ora, a minha escola fica a quarenta minutos dali, por isso já estávamos no limite: eram nove e vinte quando saímos, o que queria dizer que eu já tinha perdido a primeira reunião — graças a Deus —, mas às nove e meia a campainha toca e a minha turma iria entrar para se encontrar com o professor com menos humor da escola: o professor Millington careca.

Era por isso que eu precisava de chegar a horas: tínhamos um tempo especial e alargado com um orientador para definirmos para onde iríamos ser enviados. A escola tinha organizado um programa inovador de três dias chamado «Vai Trabalhar!» — e isso queria dizer que toda a turma iria passar a quarta, a quinta e a sexta fora da escola, no mundo do trabalho. Para onde iríamos? Tínhamos entregado as nossas candidaturas um tempo antes, escrevendo para escritórios, clubes de futebol, hotéis e hospi‑tais — havia imensas hipóteses, mas o meu coração fixara‑se no jornal local, para treinar a única coisa que me interessava ser: jornalista de investigação. Tinha estado o período todo a sonhar com aquilo, por isso, enquanto íamos acelerando pela estrada principal, atrasados, delineei uma estratégia. Saltaria do George e iria a correr até à porta lateral. Deslizaria até à sala de aula e saltaria para a minha secretária. Depois sentar‑me‑ia, pronta para trabalhar tal como o resto da turma que ali estava enfiada.

Fechei os olhos, senti as curvas e contracurvas da estrada secundária… estava tudo bem. Acelerámos ainda mais e o Stagger fez um pouco de gincana entre o trânsito — o George

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estava a portar‑se bem e poderia ter corrido tudo na perfeição se o tubo do gasóleo não tivesse entupido mesmo à saída de uma rotunda. De repente a moto começou a perder velocidade e a engasgar. Tirei a cabeça de dentro do casaco do Stagger, e onde é que parámos? Não dava para acreditar, foi mesmo em frente da nossa recém‑estreada e moderníssima esquadra da polícia. E o que é que acham que estava a bloquear‑nos o caminho, mesmo no meio da estrada? Um carro‑patrulha cintilante com dois agentes mal‑encarados sentados nos bancos da frente, com os olhos esbugalhados na nossa direção.

Não estavam a sorrir.

Perdemos duas horas.Duas horas insuportáveis numa sala de espera de paredes

brancas porque, como já disse, o Stagger não tinha carta e a única identificação que eu tinha era uma pasta cheia de livros escolares e um passe de autocarro amarrotado. Quando final‑mente me deixaram ir embora, tive de separar‑me do Stagger e ir a correr o caminho todo. A manhã estava quase a acabar e quando eu, ofegante, abri a porta da sala de aula todas as cabeças se viraram para mim e percebi imediatamente que tinha perdido o momento mais importante. Todos tinham o seu enve‑lope. Todos tinham um formulário. No quadro branco estava uma grelha com nomes junto aos estágios — e o único espaço em branco era o do meu nome.

— Oh, meu Deus, desculpe… — Suspirei.O professor Millington levantou as sobrancelhas. — Atra‑

sada — disse ele.— Eu sei, professor. Ah… Não foi de propósito.— Nunca é, pois não? Mas no mundo do trabalho, Vicky, é

disso que estamos a falar hoje, no mundo do trabalho profissio‑nal, a palavra «atrasada» é irreversível.

— Mas não sobrou nada? — perguntei. Continuava ofegante. — Guardou‑me alguma coisa? O jornal?

— Não. Deduzi que não estavas interessada, Vicky.

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— Mas estou. O professor sabe que estou.— Podes sempre ficar na escola e dar uma ajuda no primeiro

ciclo…— Não quero. Quero participar nisto.— Então gostava que te organizasses. Olha para o estado em

que estás… — Levantou‑se devagar e dirigiu‑se à sua secretária. — Acho que agora já não há grande coisa no dossiê — disse ele. — Não deixei nada de lado, aliás estivemos a rapar o tacho, para dizer a verdade.

Comecei então a reparar nos pormenores. A grelha revelava‑‑os implacavelmente a preto e branco e o trabalho que eu mais queria tinha sido entregue às gémeas Polly e Molly Tuttle. Esta‑vam sentadas lado a lado, aparentemente satisfeitas consigo mesmas, enquanto o posto de «aprendiz de bibliotecário» — a minha segunda opção — tinha sido atribuído a um iletrado chamado David que não gostava de livros, a não ser para os destruir. Só havia mais um trabalho que me tinha interessado ligeiramente, era o de «assistente de encadernador» e tinha sido entregue a um rapaz pequeno chamado Lewis que uma vez foi apanhado num armário a cheirar cola. Estava a tremer de entusiasmo.

— Ela podia ficar com os esgotos — disse um rapaz à minha esquerda.

— Oh, não — disse eu.— Eles querem duas pessoas, professor, não é? Ela podia

ficar comigo!Quem estava a falar era o Spud Cropper, que piscava os olhos

e sorria. Toda a sua família trabalhava na indústria da água e dos esgotos e eu até estremeci perante a ideia de ser sugada juntamente com ele. O Spud não tinha amigos e tinha o pior corte de cabelo da turma — uma espécie de peruca desastrosa que parecia cortada com a tesoura das unhas da mãe. Eu sei que isso não deveria ter importância mas tinha — toda a gente o evitava. Vi o nome dele no cimo da lista: estava em «engenheiro de esgotos n.º 1».

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Por baixo dele li Eldon, Eleanor Louise. Queria ser veteri‑nária e tinha ficado com a função de «passeadora de cães», o que era muito parecido com o que ela gostava. Quando olhei para ela vi que estava a sorrir de contentamento e a marcar o seu envelope com uma caneta cor‑de‑rosa fluorescente. O Ben Gallagher ficou com «programador informático», o que não era de admirar já que ele vivia para a tecnologia. Na verdade, toda a turma parecia estar surpreendentemente satisfeita.

Só eu é que não tinha colocação.— Fico com qualquer coisa — disse eu. — Menos os esgotos.— A sério? — perguntou o professor Millington. — Muito

bem! — Pegou nos envelopes que sobravam e abriu o primeiro. — Pedem um aprendiz controlador de nabos, na Quinta Hails‑tone… é um bocado longe e… ah!… querem um rapaz.

— O que é que há mais? — perguntei.— Assistente de lavandaria; tem de gostar de lavar. Não é

uma das tuas paixões, pois não, Vicky? Vamos ao último… este só chegou ontem, para dizer a verdade foi uma espécie de urgência. É para a indústria alimentar. O que é que tu sabes de comida?

— Sei que a como — disse eu.— Mas estás familiarizada com a confeção?— Não, professor.— Então este é bom para ti, pode ser que descubras a tua

vocação. É «assistente de montador de sanduíches», na Lockson & Lockson. É uma empresa que fica mesmo à saída da cidade e precisam de mais um par de mãos na cozinha. «Damos farda e formação.» — Olhou para mim. — Mas é para começar às oito em ponto. Achas que consegues arrastar‑te para fora da cama por uma coisa destas?

— Sim, professor — disse eu —, consigo.Finalmente sorriu, mas era um sorriso de vitória. O professor

Millington era daqueles professores que gostam de destruir o entusiasmo dos outros e naquele momento dava para perceber que eu estava desiludida. Ele sabia que eu queria o trabalho

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de jornalismo porque tinha trazido um recado especial do meu pai. Até subornei e tiranizei o pobre coitado para que escrevesse aquela mensagem.

Peguei no meu envelope e ouvi alguém dar um risinho tro‑cista. Mais uma vez, estavam todos a olhar para mim e só me apetecia sair dali e ir para a casa de banho chorar de desgosto. Sanduíches, pensei, vão ser três dias de seca a pôr manteiga no pão, tudo por causa de uma motorizada avariada que entupiu no sítio errado à hora errada. Quando a campainha tocou, fui a primeira a sair para o corredor.

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Vicky

12h25Casa de banho das raparigas

Abri a torneira da água fria e lavei a cara. A porta da casa de banho abriu‑se de repente e percebi imediatamente quem tinha vindo atrás de mim.

— Oh, Vi — disse a voz. — Vi… tenho tanta, tanta pena. Minha querida, coitadinha!

— Olá, Katkat — disse eu. Senti uns braços fininhos à volta dos meus ombros. Virei‑me de frente para o abraço e senti o cheiro de um perfume caro.

Tinha o corpo de um bicho‑pau comprimido contra o meu. — Oh, detesto‑o! O professor Millington é tão cruel — disse ela. — Nem acredito no que ele foi capaz de te dar.

— Bem, a culpa foi minha, não foi?— Não! Tu és sensível!— Nem por isso.— Mais ninguém se interessou pelo trabalho das sanduíches,

devias ter‑te oposto! Eu ter‑te‑ia apoiado, sabes que sim. Tens de ser mais assertiva!

Piscou os olhos e uma lágrima saltou‑lhe elegantemente das pestanas e pousou na sua escura e bem desenhada maçã do rosto.

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— Vais ficar presa numa cozinha qualquer! — gritou. Tinha a voz a tremer. — Meu Deus, o que é que isso vai fazer à tua pele? Já está tão pálida! E ao teu cabelo também… e olha para os teus ombros, vais ficar toda curvada, como uma criada…

— Katkat, é só até sábado.— Estás a ver?… És tão otimista!— Afinal quem é que se importa, a sério? — disse eu. — Tu

és a miss turma e conseguiste uma coisa bem especial.— Isso não é verdade — disse ela. — E eu importo‑me. Quero

ajudar‑te!— Não podes, Katkat. Pensa em ti… estás preparada para

o estrelato?— Estrelato? — disse ela, sorrindo. A sua expressão ilumi‑

nou‑se quando se lembrou do seu estágio. — Acho que não.— Mas é uma grande oportunidade.— Tive sorte, Vi… só isso. E de qualquer forma não quero

falar de mim! Sabias que o Edgar ficou como personal trainer no ginásio?

— Não me admira — disse eu.— Bem, ele faz exercício a sério. E a Leela, viste o trabalho

que lhe deram? Uma coisa assustadora… um médico qualquer ou seria um dentista?

— Ela queria um cirurgião.— Que horror! Porquê?— É bom. Katkat… ela adora essas coisas. O Damien sempre

conseguiu ficar com os bombeiros?— Acho que sim. Tens reparado nas borbulhas dele? Está

pior do que o Spud. Eu acho que aquilo é lepra, Vi… Espero que ninguém tenha de o chamar numa emergência. Ai meu Deus!… Estou doida para começar. Vão mandar um carro para me buscar.

— Quem?— Não sei… acho que é a equipa dele.— Então vai mesmo acontecer? Espero que sim!A Katkat voltou a sorrir. Vi‑a pôr uma madeixa de cabelo

atrás da orelha e dar uma voltinha diante do espelho.

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— Não digas a ninguém, está bem? — disse ela. — Mas eles ligaram‑me ontem à noite a dar‑me instruções. Portanto… quem sabe?

— Vais a casa dele?Ela acenou afirmativamente e bateu palmas. — Ainda nem

estou a acreditar! O meu pai puxou uns cordelinhos, Vicky… a escola não fez nada. Mas têm de me vir buscar por questões de segurança. Mas aposto que não o vou ver, o próprio ao vivo… Se calhar acabo num escritório nas traseiras sem ter nada para fazer! — Riu‑se e as suas pestanas encheram‑se novamente de lágrimas. — Se calhar vai ser tão horrível como fazer sanduí‑ches. E depois acabam por me dar um pontapé quando perce‑berem como eu sou burra. Oh, Vicky, se calhar devíamos trocar os estágios uma com a outra. Só que tu não sabes cantar, pois não? Nem dançar…

— Eu fico bem, Katkat.— Mas podias tentar. Temos mesmo de nos manter em

contacto.

É melhor revelar já tudo e acabar com isto.Katkat Madamba ia passar os seus três dias com uma ridícula

estrela famosa do rock que se estava a preparar para o concerto do século. Tínhamos descoberto isso umas semanas antes, mas ela obrigou‑nos a jurar que manteríamos segredo. Como é que ela tinha conseguido aquilo? Bem, foi tudo uma questão de contactos e favores, claro. O pai dela era produtor musical e a mãe trabalhava com moda. Puxaram uns cordelinhos e fizeram‑‑se acordos. A Katkat, sortuda, iria passar aqueles dias com a banda, a fazer chá nos últimos ensaios.

A propósito, não posso dizer o verdadeiro nome do cantor, por razões legais, mas vocês sabem quem ele é porque a música dele está em todo o lado. É provavelmente a estrela rock mais conhecida entre as pessoas da nossa idade, já ganhou mais prémios do que aqueles que conseguiríamos contar e ganhou tanto dinheiro que nem em sonhos será capaz de gastá‑lo todo.

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Foi ele que organizou aqueles festivais gigantes para acabar com a guerra e a desigualdade. No entanto, nos últimos anos, tornou‑se um recluso virtual, por isso como é que alguém o conseguiu convencer a fazer este concerto é um mistério total.

Concordou em participar no «Africa’s Weeping!», que foi uma superangariação de fundos para as crianças pobres doentes e a precisar de ajuda. A venda de bilhetes esgotou em noventa segundos, mas ele recusou‑se a fazer duas atuações. Aquela seria uma atuação especial única e agora tenho a certeza de que já sabem de quem estou a falar — vamos chamar‑lhe «Snowy»1, é esse o nome que os amigos íntimos lhe chamam por causa daquela famosa juba de cabelo prateado.

Já agora, tenho de acrescentar que a Katkat é uma música fantástica — é justo dizer isto. Toca guitarra baixo na melhor banda de rock da escola (são todos rapazes, exceto ela) e tem lições de canto desde os cinco anos. Qualquer pessoa consegue perceber que está destinada à fama e o que antes me espantava era o facto de ela ter aterrado na nossa vulgar e pequena escola. Só estava connosco há uns meses e várias vezes faltou por estar doente, com problemas alimentares ou com ansiedade. Não foi fácil para ela integrar‑se.

Voltou a olhar‑se ao espelho. — Não vou ser autorizada a aproximar‑me do… do maestro — disse ela. — Ninguém é.

— Acho que a ti te vão deixar, Katkat — disse eu.— Nem penses.— Mas ele gosta de toda a gente, não gosta?Ela abanou a cabeça. — Sabes como é. Ele já não deixa as

pessoas aproximarem‑se. Tem uma espécie de barreira invisível

1 Se quiserem aprofundar mais, há várias biografias do Snowy. Posso reco‑mendar duas: A Vida no Topo: Vamos Dizer a Verdade. Esta é autorizada, por isso é ótima para factos e discografia. A segunda chama‑se Será Que Ele É Deus? — é uma exploração sem limites da viagem espiritual do Snowy e fala sobre a sua mudança de vida quando esteve nos cultos animistas do Congo.

O seu site oficial também é uma boa maneira de começar — mas pode não contar tudo sobre esta história, por isso não vão lá ver, ainda…

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à volta dele e tu não podes entrar a não ser que ele te convide pessoalmente… é muito supersticioso.

— Isso é boato — disse eu.— Não é, não!— Aposto que vai simpatizar contigo. Vão acabar por ser

melhores amigos.Ela voltou a bater palmas e eu reparei como as suas mãos

eram magras. — Oh, Vi — disse ela —, és tão animadora, sabias? Vamos ser amigas, OK? Vamos apoiar‑nos uma à outra; tu precisas de apoio, coitadinha! Estás tão sozinha, só tens o teu velho pai e… aquele rapaz horrível. Como é que ele se chama?

— Stagger.— Stagger. — Riu‑se e voltou a dar‑me um beijo. — Não sei

como é que aguentas a vida que tens… eu não aguentava.

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Vicky

7h02Cozinha da Lockson & Lockson

Vou passar a palavra aos outros, mas como foi o meu estágio que causou a explosão inicial vou ficar aqui mais um capítulo. Quando o grande dia chegou, acordei antes dos passarinhos. Fui tão rápida a tratar dos animais de estimação que até se assustaram — mas não me importei porque ia chegar ao sítio das sanduíches antes da hora.

Tivemos uma grande discussão sobre a viagem porque nenhum autocarro ia na direção certa e querem saber se nos atre‑vemos a usar o George? Eu não queria, apesar de já estar nova‑mente a andar. O Stagger disse que valia a pena correr o risco e por isso, depois de uma enorme discussão inútil, acabei por concordar. Tínhamos apenas de ser supercuidadosos. E, ah!… tenho de deixar aqui bem claro que, apesar daquilo que a Katkat disse (e tenho a certeza de que ela não estava a ser maldosa), o Stagger era a pessoa mais fiável e confiável da minha vida, desde que o conhecera, sem um tostão e a sangrar, num parque de estacionamento. Eu tinha ido ao vidrão e ele estava sentado num separador do parque depois de ter sido assaltado. Primeiro não acreditei na história que me contou, mas rapidamente aprendi uma coisa muito importante: o Stagger não mente.

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Além disso é corajoso — como vão ver. Seja como for, ele não tinha para onde ir e parecia tão perdido que o meu pai o deixou dormir na nossa cave, encostado à máquina de lavar. De uma noite passou a quinze dias e… Bem, nunca se foi embora. As pessoas deduzem que ele é o meu irmão mais velho e suponho que foi nisso que ele se tornou.

Agora que tínhamos tido tempo para pesquisar um pouco, eu sentia‑me muito mais otimista sobre a minha tarefa. Era apenas um cargo monótono de técnica de sanduíches numa cozinha insignificante e sem glamour nenhum, mas tinha descoberto que a empresa — a Fundação Lockson — era um grande e próspero escritório de advogados. O website tinha tantos gráficos anima‑dos que acabou por bloquear o nosso computador, que é antigo. Apesar disso, consegui ver o que são escritórios modernos com equipas de advogados de aspeto sério. Olhavam‑nos pelo ecrã, caras magras e poderosas, e era bastante óbvio que qualquer sanduíche que eu fizesse iria acabar entre os seus perfeitos den‑tes branco‑pérola. Isto seria, certamente, sinónimo de conversas interessantes — os advogados são educados, pessoas letradas que escrevem relatórios e discursos.

E se um deles, ou uma delas, estivesse a precisar de uma ideia quando eu lhe estivesse a servir o almoço? E se um as sociado sénior com pouca visão quisesse que alguém lhe lesse um do cumento em voz alta? Eu poderia acabar sentada ao seu lado para responder a essa necessidade. Falei com o Stagger sobre isto e estávamos os dois de acordo: as oportunidades aparecem quando as pessoas estão preparadas! Foi por isso que me levantei tão cedo, determi‑nada a provar ao professor Millington que estava enganado sobre a minha pontualidade.

Na verdade, quando finalmente me atrevi a levantar a cabeça, dei um pequeno grito. Parecia que tínhamos entrado para dentro de um filme de ficção científica: o edifício da Lockson & Lock‑son era um grande foguetão de vidro, pronto a levantar voo. Estava envolvido em cabos de aço que se erguiam, pelo menos,

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doze andares acima de nós até chegarem a um nariz azul afiado. E estava um Porsche amarelo no parque de estacionamento. Mesmo por trás daquilo tudo havia uma queda‑d’água que caía sobre umas letras maiúsculas enormes com o nome da empresa.

— Meu Deus! — disse eu.— O que foi? — disse o Stagger. — Não fiques intimidada

com isto!— Não estou intimidada! É lindo!Todo aquele lugar transmitia riqueza e poder e eu teria ido

diretamente para a porta giratória se o Stagger não me tivesse agarrado por um braço.

— Olha, Vi — disse ele —, acalma‑te!— Eu estou calma!— Não estás. E vais para as cozinhas, certo? Por isso não te

entusiasmes muito.— Mas isto é lindo, Stagger! Olha lá…— Acho que essa nem sequer é a tua entrada. O que tu queres

é a porta das traseiras. É ali.Fez‑me rodar sobre mim mesma e apontou para um pequeno

letreiro.

COZINHAS ➔A seta levou‑me a atravessar um gradeamento e um aglo‑

merado de caixotes do lixo a transbordar. Quando encontrei a campainha, toquei insistentemente e com força. Minutos depois ouviu‑se um rangido e um guincho, e uma porta vertical abriu‑se lentamente revelando um par de pés. A farda apare‑ceu, era de náilon fino e lavável, e finalmente dei comigo olhos nos olhos com uma senhora de idade, demasiado ofegante para conseguir falar.

Estendi‑lhe a minha carta de apresentação. — É a senhora Meakin? — perguntei.

Ela acenou afirmativamente.— Eu sou a Vicky — disse eu. — Não tenho formação nem

experiência neste ramo… mas estou pronta para aprender.

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Edgar

8h03Ginásio Fitness‑Forever!

Não vou dizer que tinha alguma expectativa especial sobre isto, nenhuma, e nem me deixei levar pelas tretas de «que sorte que nós temos por faltarmos às aulas». Encaremos as coisas como elas são, se uma pessoa quiser faltar às aulas não precisa que ninguém lhe diga que pode faltar, falta e pronto — mas aca‑baram por me atribuir o ginásio F‑F! (caí na asneira de dizer que era o tipo de coisa que me interessava). O Fitness‑Forever! é um espaço novo e pretensioso que abriu há pouco tempo mesmo ao lado de uma série de casas de fast-food onde as pessoas comem demais e entopem as artérias… e depois sentem‑se culpadas por isso.

Há três raparigas na receção.— Quem? — perguntou uma delas, depois de eu lhe dizer

o meu nome.— Ed‑gar — disse eu muito devagar.— Edgar quê, meu querido? — perguntou outra. — O que

é que tu queres?Mostrei‑lhes o pequeno papel que tinha no bolso há cerca de

uma semana, desdobrei‑o debaixo dos narizes desinteressados delas, endireitei‑o e tirei‑lhe os vincos…

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— Experiência laboral — disse eu. — Fico com vocês até sábado.

— Ah, não me parece! — disse a primeira, com um ar assustado.

— Estavam à minha espera, não estavam?— Estávamos?— Não…— Eu não estava…— Oh — disse eu, tentando ser simpático. — Não se preo‑

cupem, posso ajudar a treinar, eu mexo bem em pesos e alteres…— Não, não! — gritaram todas. — Oh, meu Deus! Não!

Não podes trabalhar com o público! O departamento de saúde e segurança não ia permitir uma coisa dessas.

— Não estamos autorizados a admitir menores — disse a ter‑ceira. — Talvez… esperem. Ele não pode transportar as caixas dos novos folhetos?

— Sim — disse a segunda. — Lá atrás, no anexo?— Isso era melhor — disse a primeira. — Podia arrumar o

armazém…

Que fantástica maneira de começar, professor Millington — Deus lhe pague —, tirar caixas grandes de paletes para as pôr nas prateleiras, arranjar espaço para arrumar caixas cheias de caixas mais pequenas, antes de destruir todas as caixas vazias para as pôr no contentor. Se for bom nisto, consigo voltar a fazer o mesmo amanhã e, quem sabe?… sexta‑feira a mesma coisa. É bom ou não é? A minha vida não é o máximo?

Um beijo do Edgar xxx

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Leela

8h30Hospital de East Dean

A única coisa que eu sabia era que ia passar três dias com um cirurgião: o doutor Ahsan. A enfermeira que me recebeu parecia estar nervosa e tinha um cartão na mão. Consegui ver que estava escrito com gatafunhos.

— Já o conheces? — perguntou.— Nunca o vi.— Ah.Fez uma pausa. — Escreveste‑lhe, não foi? É amigo da tua

família?— Não — disse eu. — Nunca falei com ele.A rececionista levantou o olhar. — Com quem é que vais

ficar? Com o doutor Ahsan?— Sim.— Estás a falar a sério? Posso ver o que ele escreveu?Olhou para o cartão e lemo‑lo juntas:

Leela Bhatnagar vai ficar sob a minha supervisão; por favor

preencha todas as formalidades por mim e envie a autorização

de acesso e os acordos legais ao meu cuidado.

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Autorizações e insensões isenções serão aprovadas por mim — todos

os pedidos devem ser-me dirigidos diretamente. L2-6 às 9h00.

Obrigado.

Ahsan

A rececionista disse: — Isto é no bloco operatório. Não te importas?

— Não me importo com o quê? — perguntei.— Que idade é que tu tens?— Treze. Há algum problema?— Não, nenhum… ele é o melhor. Só que é um bocadinho…

diferente.

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