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Dunquerque, França — 1o de junhode 1940 — 15h06

Os pulmões do garoto ardiam, lágrimas escorriamde seus olhos.

Ele precisava chegar à Inglaterra. Era agora oununca. Uma fumaça acre, de pólvora ecombustível, se espalhava por toda parte. Elecorria e, toda vez que respirava, sentia umapunhalada no peito. Não podia parar, precisavachegar ao mar, passar pelos veículos em chamas,pelos cadáveres e moribundos estendidos na areia.Mantinha os olhos fixos nas centenas de barcos de

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todos os formatos e tamanhos que estavam aliancorados: barcas e veleiros, destróieres e naviosde passageiros. Parecia que todas as embarcaçõesda Grã-Bretanha tinham atravessado o canal daMancha para ajudar seus soldados a fugir doExército alemão que avançava.

O garoto tropeçou em equipamentosabandonados, mochilas de soldados, caixas demunição e pilhas de armas. E então ouviu orugido penetrante de aviões se aproximando. Elese virou. Três aviões de caça Messerschmittvinham em sua direção e não estavam nem aduzentos metros acima de sua cabeça. Faltava tãopouco. Ele tropeçou e cambaleou enquanto osaviões riscavam o céu. De repente, se deu contade que havia perdido sua pochete. A pequenabolsa fechada com zíper guardava sua vida inteira,tudo o que havia conseguido pegar em casa natarde em que fugira: fotos dos pais e do irmão, aidentidade, o passaporte alemão e o que restara deseu dinheiro.

Enquanto disparos de metralhadoralevantavam colunas de areia à sua volta, o garoto

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se ajoelhou e procurou a pochete pela praia. Algocintilou a alguns metros de distância. Ele rastejouaté lá apoiado nos joelhos e cotovelos. Era orelógio de pulso de seu pai, que estava guardadona pochete. Pelo menos isso ele havia encontrado.Todo o resto fora levado pelos nazistas.

Subitamente, ouviu-se uma saraivada de apitosna costa e o som de ordens sobrepondo-se àsexplosões e aos disparos. Os barcos de resgateestavam partindo. O garoto correu os últimosmetros até a água, mergulhando na arrebentação.Outra leva de aviões alemães circundou rumo aooeste, alinhando-se para o ataque. Ele viu umpequeno barco a vapor com casco verde e frisobranco a apenas cinquenta metros, abarrotado desoldados. O capitão, com um casaco de lona e umcachimbo entre os dentes, levantava a âncora.

O garoto correu pela água com dificuldade,até perceber que não dava mais pé. Ele era bomnadador, e a água fria o reanimou. Ele levantou acabeça para ver onde estava e viu uma nuvem degás preto sair do barco enquanto o capitão dava apartida nas hélices.

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“Bitte warten Sie!”, gritou o garoto a plenospulmões.

Mas eles não ouviram. Não iam esperar porele. O barco começava a avançar na arrebentação,e o capitão tentava manobrar entre os destroçosem chamas de outros barcos naufragados.

O garoto sabia que, se soltasse o relógio dopai, conseguiria ir um pouco mais rápido, mas serecusou a fazê-lo. Era tudo o que havia lherestado. Em vez disso, ele mergulhou a cabeça naágua e bateu os pés com mais força. Precisavacontinuar. Tinha de conseguir.

Então, seu braço atingiu a lateral do barco, eele levantou a cabeça. O barco, abarrotado degente, estava a menos de trinta centímetros acimada superfície da água. Ele agarrou a corda presa àlateral com uma das mãos, tentando respirar, e sedeu conta de que estava sendo levado.

Uma onda surgiu na parte da frente daembarcação. Uma bomba. O capitão girou oleme. O garoto achou que seu braço seriaarrancado do ombro quando o barco conseguiuatravessar a arrebentação gerada pelo impacto da

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bomba. A cabeça do menino se chocou contra ocasco.

“Hilfe! Hilf mir!”, ele gritou.O garoto sentiu a força de sua mão na corda

encharcada diminuir e sabia que não conseguiria sesegurar por muito mais tempo. Sua cabeçaafundou nas ondas.

De repente, mãos fortes o pegaram pelasaxilas, e ele foi içado a bordo. Ele abriu os olhos.Estava deitado de costas no deque, tentandorespirar, engasgado. Um grupo de soldadosbritânicos o olhava de cima. Estavam todosensanguentados e cheios de curativos. O garotosentiu cheiro de fumaça de cigarro. Um deles ochutou levemente nas costelas.

“Hilfe? Você disse ‘Hilf mir’. Por acaso você éalemão?”

O garoto meneou a cabeça e tentou ficar depé.

“Por favor, eu também estou fugindo de HerrHitler.” Ele precisava convencê-los a levá-lo.“Vitória para a Inglaterra!”, gritoudesesperadamente.

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E então revirou os olhos e caiu de bruçossobre o deque.

Londres, Inglaterra — 1o de junhode 1940 — 16h30

Uma garota de catorze anos com longoscabelos castanhos colocou a cabeça para fora dajanela do passageiro de um carro preto que corriapela Haverstock Hill. Eles seguiam em direção aocentro de Londres. Em grandes letras brancas, lia-se na lataria do carro “Serviço de Transfusão deSangue”. A garota estava orgulhosa de finalmenteestar ajudando na guerra. Ela segurou a maçanetacom uma mão e tocou um enorme sino de bronzecom a outra.

“Segure-se”, gritou a motorista, Judy, umajovem audaciosa de Mill Hill, enquanto o carropassava pela ponte do canal Regent.

Quando um ônibus duplo apareceu bem nafrente do carro, as duas deram uma guinada para

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passar por ele e se depararam com um táxi vindoem direção contrária. A garota do sino fechou osolhos com força e a motorista pisou fundo noacelerador para desviar antes que os dois veículoscolidissem. Um policial de trânsito apitava eacenava freneticamente para elas em umcruzamento. A motorista abriu um sorriso deorelha a orelha. Ela tinha acabado de começar atrabalhar na coleta de sangue às quartas-feiras,quando só tinha aula por meio período. Judy eraótima, tinha quase vinte anos e dirigia como seestivesse voando. A garota havia começado otrabalho como uma forma de retribuir osbritânicos por salvá-la, mas agora havia se dadoconta de que também era muito divertido!

Menos de dez minutos depois, o carro freouna entrada do Hospital St. George, em Hyde ParkCorner. A movimentação era caótica, ambulânciaschegando com pessoas feridas, ambulânciaspartindo, com os sinos retinindo.

Funcionários do hospital se acotovelavamentre pacientes e visitantes. Soldados fumavam emseus postos de guarda, cercados por sacos de areia.

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O Palácio de Buckingham ficava próximo dali,por isso o lugar estava cheio de defesas antiaéreas.

A garota deu um salto e correu até a traseirado carro para abrir o porta-malas. Nele havia umgrande baú de madeira cheio de gelo e algunsengradados. Ela levantou a tampa. Lá havia trintagarrafas grandes cheias de um líquido vermelhoescuro, ainda intactas. Aliviada, a garotahabilmente selecionou oito garrafas, encheu doisengradados e atravessou rapidamente a entrada.

“Sangue urgente! Emergência, sangueurgente!”, ela gritava como uma vendedoraambulante, e a multidão do lado de fora se afastoupara deixá-la passar.

Alta e clara, sua voz guardava apenas um levetraço de sotaque austríaco.

Lá dentro, uma enfermeira esperava por ela aolado da sala de cirurgias. “Você demorou”, disse amulher, parecendo irritada.

“Desculpe”, respondeu a garota, chateada. Elatinha ido para lá o mais rápido que pôde.

“Não, eu é que peço desculpas”, respondeu aenfermeira, suspirando. “É só que precisamos do

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sangue com muita urgência.”Ela pegou os engradados com a garota e

empurrou a porta da sala com o quadril. A meninaconseguiu ver rapidamente o cirurgião que estavalá dentro. Havia sangue em seu avental deborracha.

“É grave?”, ela sussurrou.A enfermeira parou na porta.“Eles estão trazendo os feridos do litoral de

trem”, ela explicou, com discrição. “Esse aíperdeu as duas pernas. Ainda assim, acho que issodeve salvá-lo. Nos vemos depois.”

A porta se fechou.Lá fora, Judy havia virado o carro e estava

acelerando, impaciente.“Mein Gott, que confusão aqui”, disse a garota,

voltando para seu assento no carro, feliz por estarlonge da carnificina do hospital.

“Para onde agora?”, ela perguntou.“Whitechapel”, respondeu Judy, pisando no

acelerador.O carro voltou para o trânsito.“Agradeça por não estar em Dunquerque,

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menina, ou na Áustria. Esses nazistas nos puserampara correr, mas ainda não estamos derrotados.Churchill vai nos salvar. Pode escrever o queestou dizendo.”

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25 de maio de 1941 — Um anodepois

O primeiro-ministro Winston Churchill percorreurapidamente o caminho que ia do rio Tâmisa à

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Torre de Londres. Ele deveria permanecerincógnito durante a visita, mas, apesar da capa degabardine bege e do chapéu-coco escuro bembaixo, sua figura era inconfundível. Os guardasvestindo kilt e chapéu de pele de urso queguardavam a entrada da White Tower o saudaramvivamente quando ele se aproximou.

Ao lado de Churchill havia outro homem.Pelo menos vinte anos mais jovem, ele era alto,tinha um nariz grande e o cabelo, já um poucoralo, era castanho. Tinha olhos acinzentados eolheiras escuras, talvez por falta de sono. Usavaum uniforme de almirante da Marinha Real, mas,na verdade, era um membro importantíssimo daLCS, a Seção de Controle de Londres, umdepartamento encarregado do serviço deinteligência. Tratava-se de um grupo de operaçõesultrassecreto do primeiro-ministro, dedicado aderrotar Adolf Hitler por meio de açõesencobertas.

O almirante mostrou a um dos guardas suaidentificação. Pareceu um tanto desnecessário,considerando quem ele estava acompanhando,

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mas, mesmo assim, o guarda seguiu o protocolorigidamente e inspecionou o documento comcuidado antes de fazer mais uma vez uma saudaçãocortês e destrancar a pesada porta de carvalho.

“Bem, MacPherson”, disse Churchillenquanto os dois entravam, “talvez nós possamosencontrar uma maneira de nos beneficiar dessasituação estranha.”

No minuto seguinte, eles estavam em umapequena antessala com isolamento acústico diantede um espelho falso na parede. Na cela que ficavado outro lado do espelho, um homem de cabelosescuros mancava de uma parede à outra apoiando-se em uma bengala. O cabelo ainda era totalmentepreto, raspado nas laterais, e as sobrancelhas,grossas, quase encostavam nos penetrantes olhosazuis. Rudolf Hess, vice-Führer do TerceiroReich.

O almirante MacPherson não conseguiuconter a estranha sensação de admiração diante dofato de o segundo homem mais poderoso daAlemanha nazista ter voado sozinho de seu país ànoite, descido de paraquedas na Escócia e agora

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estar aprisionado ali na Torre de Londres. De fato,era uma circunstância muito estranha. Aquelachegada inesperada havia chocado não só osingleses, mas, se a imprensa tinha algumacredibilidade, os alemães também.

Hess havia quebrado o tornozelo quandoaterrissara na Escócia, e agora estava engessado.Isso não parecia impedi-lo de andar de um lado aoutro e de lançar um olhar ocasional para oespelho com as sobrancelhas franzidas. O homemparecia imerso nos próprios pensamentos.

“Ele está louco?”, Churchill não pareciadisposto a perder tempo.

“Achamos que não”, respondeu MacPherson,que havia acabado de ler o relatório do últimointerrogatório para descobrir os motivos dadeserção de Hess.

“Bem, as ideias dele parecem bastanteabsurdas. Ele pode até ter desertado por nãoconcordar com a invasão de Hitler nos Bálcãs.Mas organizar uma trama para depor o Führer esalvar a própria vida? E essa garota ainda dariainício ao plano?”, Churchill balançou a cabeça em

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desaprovação.“Eu concordo, parece bastante irracional”,

MacPherson deu de ombros. “Mas está claro queele acreditou ser possível... com a nossa ajuda.”

“Bem, seja qual for o plano mirabolante que ohomem inventou, é irrelevante agora. Ele cavou aprópria cova e vai ter que se deitar nela. Enquantoisso, a única questão para nós é a criança”, oprimeiro-ministro fez uma pausa. “Almirante, osenhor acredita que a criança é mesmo quem elediz ser?”

MacPherson assentiu.“Acredito. Nós checamos os fatos com ele

diversas vezes. Além disso, Hess não tem por quementir.”

“Nesse caso, o valor dela é inestimável”,Churchill olhou para a porta. Ele tinha tomadouma decisão. “Venha, MacPherson, temostrabalho a fazer.”

Eles caminharam de volta até o Portão dosTraidores, onde um barco esperava para levar oprimeiro-ministro a Westminster.

“Estamos conseguindo manter o paradeiro de

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Herr Hess em segredo dos agentes deSchellenberg em Londres?”, perguntou Churchill.

“Estou certo disso, primeiro-ministro”,respondeu MacPherson. “Até onde o serviço desegurança alemão sabe, o vice-Führer foi levadodaqui para Windsor cinco dias atrás. Temos umbom dublê lá para manter os espiões ocupados.”

“Excelente trabalho, almirante.”“O senhor realmente acha que a garota pode

nos ajudar?”, perguntou o militar, quandochegaram até o barco.

Churchill olhou para os balões da barragemantes de responder.

“No mês passado, a Grécia sucumbiu, Cretasucumbiu, o Afrika Korps nos pôs para correr noDeserto Ocidental, então talvez o Egito e oscampos de petróleo da Arábia também caiam. OsU-Boats de Hitler estão afundando meio milhãode toneladas de embarcações toda semana noAtlântico, e os nossos aviões estão sendo atingidosno céu mais rápido do que conseguimos construí-los.”

Ele pegou um charuto, rolou-o entre os dedos

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e prosseguiu: “Não apenas isso, mas os americanosse recusam totalmente a declarar guerra àAlemanha, então estamos sozinhos. E estamosperdendo, não vamos nos enganar. Ter essa garotavai nos dar a vitória de que tanto precisamos, umavitória propagandística. Vai levantar o moral parao nosso lado, ganhar o coração e a mente daspessoas decentes na Alemanha e desferir um golpeno Führer que vai tocá-lo fundo”.

“Ele nunca vai deixá-la sair da Alemanha comvida se suspeitar das nossas intenções”, disseMacPherson.

“Então precisamos garantir que ele nemmesmo fareje os nossos planos, almirante. Essaquestão é mais do que superconfidencial, deveficar apenas entre nós. O tempo é curto. Eupresumo que você tenha agentes a postos paraentrar em ação imediatamente, certo?”

“Claro, primeiro-ministro”, ele respondeu,sério.

“Que bom. Eu sabia que podia confiar emvocê.”

Churchill bateu de leve no ombro do

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almirante e subiu pela prancha de embarque.MacPherson se despediu do primeiro-ministro,

com a mente já em plena atividade.Ele não tinha agentes a postos. Pelo menos não

do tipo de que precisavam. Agentes que falassemalemão eram no mínimo escassos, e os queexistiam já eram conhecidos pelo serviço desegurança de Hitler. Agora, ele tinha menos deduas semanas para encontrar e treinar agentes deprimeira linha que conseguissem entrar naAlemanha — e sair — com a carga mais preciosado Reich. Como isso seria possível?

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Rutlândia, Inglaterra — 2 dejunho de 1941

O garoto corria tão rápido pelo pátio da escolaquanto correra pelas areias crivadas de tiros em

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Dunquerque um ano antes.Ele chegou à entrada da torre da capela e

subiu a escada de pedra de três em três degraus.Não era fácil. Os degraus eram estreitos, gastos nomeio, e ele estava usando botas de críquete comtachas, que o faziam escorregar. Também vestia ouniforme branco, cujos joelhos estavam verdesgraças a uma defesa desajeitada naquela mesmatarde. O ar estava abafado, e ele transpirava decalor. O garoto alcançou a porta do telhado,acertou o ferrolho com a lateral da mão e ficousem fôlego diante da dor quando os nós de seusdedos, vermelhos e em carne viva, passaram peladura porta de madeira. Atrás dele, era possívelouvir os barulhos de outras botas de críquete.

O garoto cambaleou até o telhado da capela.Dali, podia ver a zona rural inglesa, os campos dejogo e o pitch de críquete longe, à esquerda. Eleouviu um grito e se virou. Quatro membros deseu time vinham em sua direção. O capitão,Catchpole, empunhava um taco de críquete.

“Dessa vez eu vou matar você!”, ele disse.“Me deixe em paz, Catchpole”, respondeu o

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garoto.Com o sotaque consideravelmente melhor

desde que fora tirado da água em Dunquerque,mais alto e mais magro, ele já era quase um rapaz.Ao chegar à Inglaterra, o garoto disse àsautoridades o nome do amigo inglês de seu pai,um professor de química em Cambridge que ocumprimentou com gentileza e o colocou em seulugar. O homem deve ter achado que estavasendo generoso.

“Por que eu deveria, seu nazista?”, desdenhouCatchpole.

Se havia um insulto que ele odiava mais doque todos, era ser xingado de “nazista”. E elessabiam disso. O garoto olhou em volta à procurade alguma arma, mas não havia nada à mão. Eralutar ou correr, e como não parecia haver paraonde fugir, o jeito era lutar, ainda que soubesseque ia perder. Ainda assim, ele ergueu os punhos eplantou os pés no chão, esperando o ataque. Eentão ele viu algo atrás dos garotos. Um novoandaime na lateral da torre, com uma cordapendurada. Quando os demais atacaram, o garoto

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se lançou para a direita e driblou seusperseguidores antes que pudessem se virar e correratrás dele. Alcançou a ponta da corda e sependurou no parapeito recortado. O andaimeestava a dois metros de distância; o chão láembaixo, muito mais longe. Ele ia conseguir. Ogaroto se atirou para atravessar o vão, caiuruidosamente nas tábuas e agarrou a corda. Ele sevirou. Catchpole estava em pé no parapeito,olhando para o vão. Ele não parecia estar compressa para saltar. O garoto segurou a corda commais força e se balançou. Ele voou pelos arescomo um pirata lançando-se de um navio para ooutro, caiu com um baque no telhado dorefeitório e avançou até o telhado da escola.Depois, virou-se e saiu correndo cegamente —sem se dar conta da claraboia aberta que havia nocaminho...

Com um grito de susto, ele caiu pelo buracosobre uma enorme mesa redonda e estatelou-se nochão, acompanhado por uma revoada de papéis.

Com o rosto marcado pela dor e tentandorespirar, ele olhou para a claraboia lá em cima.

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Catchpole o observava. O capitão de críquetedeslizou lentamente o dedo pela garganta edesapareceu.

“Que sorte você ter caído aqui”, disse oprofessor Maddox.

O garoto levantou rapidamente e ajeitou ocabelo enquanto a poei ra assentava. Ele realmenteestava encrencado agora.

“Sabe, seu comportamento continuadesafiando todos os padrões de decência inglesa”,continuou o diretor.

Enquanto o professor Maddox falava, o garotoreparou que havia mais alguém no recinto,sentado do outro lado. Um homem alto, magro,com olhos acinzentados e astutos. Ele usava umterno de verão leve e fumava um charuto.

“Peço desculpas, senhor.”“Endireite a postura quando falar comigo!”,

Maddox vociferou, enquanto seus olhos ficavammais escuros. “Este é o almirante MacPherson, daMarinha Real de Sua Majestade.”

O garoto assumiu a posição de sentido emoveu os olhos até o outro homem.

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MacPherson o observava com atenção. “Foiuma entrada e tanto”, disse ele.

Maddox levantou-se da cadeira. “Por incrívelque pareça, o almirante tem uma proposta paravocê.” O diretor não conseguia disfarçar seudesprezo. “Vou dizer mais uma vez, almirante, ogaroto é problema na certa”, ele acrescentou emtom ácido.

“É o tipo de que precisamos”, MacPhersonrespondeu.

“Sim”, disse o garoto. “A resposta é sim.”Os dois homens lançaram um olhar penetrante

para ele.“O quê?”, perguntou Maddox.“Para a proposta do almirante, senhor. Minha

resposta é sim.”“Você nem sabe o que ele vai propor, seu

garoto tolo!”, disse Maddox, irritado.“Isso vai me tirar daqui, senhor?”, perguntou

o garoto.MacPherson assentiu. “Sim.”“Então a resposta é sim.”“Eu disse que ele era meio abobado. Sinto em

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informar que sua viagem foi uma perda de tempo,almirante.”

Ignorando o diretor da escola, MacPhersonapagou o charuto em um cinzeiro. “Vá se limpare pegue suas coisas, rapaz. Meu carro está lá fora.”

“Vou fazer isso, senhor.”O garoto sorriu e olhou para o diretor,

esperando para ser dispensado.Maddox estava vermelho de raiva, mas não

havia nada que pudesse fazer.“Saia”, ele ordenou.Não foi preciso falar uma segunda vez.No dormitório, o garoto tirou o uniforme de

críquete e vestiu uma camisa cinza de mangascurtas, um paletó escuro, calça cinza e sapatospretos. E então se enfiou embaixo da cama demetal e levantou a tábua de madeira que haviasoltado para usar como esconderijo. Ele botou amão no buraco e retirou uma pequena lata.Dentro dela, havia uma nota de cinco libras,algumas moedas, o relógio de ouro de seu pai euma nova identidade britânica. O garoto olhoupara o relógio, os ponteiros estavam parados em

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três horas e vinte.O dormitório estava quente, abafado e

misericordiosamente silencioso. Ele pôs o relógiono bolso do paletó e todo o resto de seuspertences em uma sacola de lona, junto comalgumas poucas peças de roupa. Abandonou ali ouniforme da escola.

Quando voltou para o pátio, passou por umgrupo de colegas, que zombou dele fazendo asaudação nazista. O garoto os ignorou e continuouandando até chegar ao refeitório. Antes deatravessar pela porta principal, parou para escutar.Os dois times de críquete estavam lá dentrotomando chá. Ele pôde ouvir as vozes e as risadasfamiliares de seus algozes. Deu uma espiada ládentro.

“... E então aquele alemãozinho imundocomeçou a gritar e chamar a mamãe e o papai”,Catchpole estava aumentando a história paradeixá-la mais engraçada. “Mutti, Vati... ” Osdemais riram histericamente quando ele levantouda mesa e começou a dar passos de ganso de umlado para o outro, com dois dedos embaixo do

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nariz imitando o bigode de Hitler. “Vater,Vater...” Ele parou de repente quando viu ogaroto na porta. O silêncio tomou conta dorefeitório.

O garoto atravessou o recinto. “Vim medespedir, Catchpole.”

O garoto acertou um soco no rosto deCatchpole, bem no meio do nariz. Deu até paraouvir o som do osso se partindo. Em seguida, deumeia-volta e andou calmamente até a porta,enquanto os joelhos de Catchpole atingiam o chãode madeira e suas mãos cobriam o rosto paraconter o sangue que jorrava do septo quebrado.Os outros jogadores de críquete estavampetrificados.

Assim que chegou ao hall, o garoto saiucorrendo em direção à entrada da escola. Nominuto seguinte, um bramido de vozes furiosassurgiu de dentro do prédio. Se eles o pegassemagora, seria um homem morto.

O almirante MacPherson estava parado aolado de um Hudson estacionado na entrada.

Com os sapatos derrapando no cascalho, o

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garoto parou abruptamente ao lado do militar.“Estou pronto, senhor”, disse o garoto

tentando recuperar o fôlego.“Só mais um minuto”, respondeu

MacPherson, pousando a mão no ombro dele.“Não devemos nos precipitar.”

Atrás deles já dava para ouvir os gritos e urrosdos jogadores de críquete.

“De verdade, senhor, minha resposta é sim.Podemos ir?”

O garoto olhava ansiosamente para trás. Ogrupo enfurecido havia surgido na entrada daescola, a cerca de cinquenta metros dali. Elesuivavam como cães de caça sedentos por sangue.

“O que o governo britânico pede a você”,explicou o almirante, “é perigosíssimo. Naverdade, serei direto, envolve risco de morte.”

A multidão estava muito perto deles. Duassemanas na enfermaria era o mínimo que ele teriade enfrentar por quebrar o nariz de Catchpole. Equando saísse, sua vida seria um inferno.

“Eu entendo, senhor. Entendo mesmo.Podemos ir embora, por favor?”, o garoto estava

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quase implorando.“Tem certeza?”, perguntou MacPherson.A multidão estava a menos de dez metros de

distância.“Sim!”“Como quiser.”MacPherson abriu caminho, e o garoto se

atirou para dentro do carro. O almirante o seguiurapidamente e fechou a porta.

“Vá”, ele ordenou ao motorista.Os pneus do carro arrancaram pelo cascalho

quando a multidão os alcançou. O garoto se viroupara olhar pelo vidro traseiro. Seus algozesestavam parados, impotentes, cobertos da poeiralevantada pelos pneus. Ele levantou dois dedos, fezo famoso gesto da vitória de Churchill e seacomodou no banco de couro, saboreando por ummomento o acerto de contas e a fuga bem-sucedida.

“Uma despedida e tanto”, MacPhersoncomentou secamente.

O garoto levou a mão ao casaco e sentiu ovolume do relógio de seu pai. Ainda estava lá.

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“O senhor salvou minha vida”, disse ele, como coração disparado.

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4

Londres, Inglaterra — O diaseguinte

A garota se acomodou atrás do volante e girou achave. O motor deu a partida. Essa era arecompensa dela ao final da “corrida do sangue”.Judy permitiu que ela dirigisse os últimosquilômetros de volta para casa e agora, seis mesesdepois, ela já estava dirigindo muito bem, erapreciso admitir. Judy ficou olhando enquanto amenina engatou a primeira marcha e se afastou doponto de ônibus onde sempre trocavam de lugar.Ela rapidamente mudou para a segunda e terceira

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marchas, não sem alguma dificuldade. Quando viuo ponteiro do velocímetro chegar a oitentaquilômetros por hora, ela sorriu. A garota adoravaestar atrás do volante, dirigir a fazia se sentir tãoadulta; além disso, havia a emoção de estarfazendo algo ilegal. Não que alguém se importasse.Afinal, rapazes apenas alguns anos mais velhosmorriam a cada minuto.

“É isso, querida”, disse Judy, em tom deaprovação. “Está muito mais tranquilo hoje.”

O sol estava começando a se pôr quando agarota virou a esquina e pegou uma rua paraadentrar a região modesta e suburbana ondemorava. Ela não podia resistir ao impulso deacelerar nos últimos metros.

“Cuidado!”, gritou Judy. A garota teve depisar com força no freio para evitar uma colisãocom o carro estacionado em frente à sua casa. Ospneus fizeram barulho ao parar, e Judy foi jogadapara a frente.

“É praticamente o único carro na rua. Vocêprecisa fazer um exame de vista. É sério”, disseela, sorrindo.

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“Desculpe, Judy”, respondeu a garota. “Nosvemos na semana que vem.” Ela desceu, e Judyvoltou para o assento do motorista.

A garota ficou observando o carro partir e sóentão prestou atenção ao Hudson azul parado dolado de fora de sua casa. A essa altura, ela jáconhecia todos os modelos de carro de Londres.Os Hudson eram carros americanos grandes, ospreferidos dos militares. Aquele tinha uma flâmulada Marinha em uma das laterais.

A garota correu pelo pequeno caminho até aporta de entrada. Aquele sobrado modesto —com uma entrada coberta de plantas e um abrigoantiaéreo que abrigava uma banheira de zinco euma calandra de ferro — era muito diferente desua elegante casa de campo em Viena. Ali nãohavia babás nem empregadas. Mas era seu laragora. O lar de sua família.

No momento em que abriu a porta, as duasirmãs da garota, Zelda e Ruth, de dezesseis edezoito anos, a puxaram para dentro e fecharamsutilmente a porta, fazendo sinal de silêncio com amão.

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“O que está acontecendo?”As duas estavam com os olhos arregalados de

empolgação.“Es ist ein almirante da Marinha Real in der

Küche”, sussurrou a segunda irmã, Ruth,misturando as línguas enquanto apontava para ocômodo atrás das escadas. Elas haviam combinadode falar inglês em casa, mas Ruth era a que tinhamais dificuldade em seguir a regra.

“Tem certeza?”, perguntou a garota. Pareciabastante improvável, mas de fato havia um carro láfora.

“Certeza. E ele está aqui para falar comvocê!”, disse Zelda. “Ele está conversando comMutti há mais de uma hora.”

“Comigo?”, duvidou a garota. Ela estavasurpresa.

“Bom, vai lá ver”, disse Ruth, empurrando-aem direção à cozinha.

“O.k.”, ela respondeu. Mas a garota não semoveu. Ela não conseguia imaginar por que umalmirante iria querer falar com uma refugiadaaustríaca de catorze anos em Mill Hill. Nada

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emocionante havia acontecido com elas nosúltimos três anos, desde que chegaram a Londres.Bem, com exceção da Blitz, claro. Mas aquilohavia sido mais assustador que emocionante.

“Você está parada”, disse Zelda.“Pare de me dar ordens, já estou indo.”Ela atravessou o corredor e bateu na porta da

cozinha. Mutti abriu quase imediatamente eencarou a filha com uma expressão séria no rosto.A garota, que já era mais alta que a mãe, olhoupor cima dela. Um homem alto e magro estavaparado diante do pequeno fogão da cozinha.Vestindo um terno escuro, com a corrente de umrelógio de ouro dando duas voltas perfeitas nocolete, ele sorriu amigavelmente, mas seus olhoscinza eram afiados.

“Este é o almirante MacPherson”, explicouMutti, fechando a porta para Ruth e Zelda nãoouvirem. “Ele está aqui para perguntar uma coisaa você.” A garota se sentou à mesa no lugar desempre, com os dedos fortemente entrelaçados eos lábios fechados. Ela estava agitada. Levantou-se,foi até a pia e ficou de pé.

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“Você está fazendo um trabalho muito valiosopara o Serviço de Transfusão de Sangue, minhajovem”, disse MacPherson. “E seu boletim dizque você é a primeira da classe. Ótima aluna, boaem línguas e também a melhor corredora, peloque vejo.” Ela notou que o homem segurava umapequena pasta cinza.

“Obrigada, senhor”, respondeu a garota,tentando imaginar o que mais havia na pasta. “Eugosto do trabalho com o sangue. Quero dizer...fico feliz em ajudar depois de tudo o que a Grã-Bretanha fez por nós.”

“Que bom, precisamos de toda ajuda com quepudermos contar agora. Este é o motivo de minhavisita. Gostaríamos que você fizesse algo aindamais importante por nós.”

“Importante, mas perigoso. Ela só tem catorzeanos, almirante”, disse a mãe, suspirandoprofundamente.

“Como você pode imaginar, sua mãe é contrao seu consentimento com relação ao que eu vimaqui lhe propor. No entanto, ela aceitou que euperguntasse a você. Então, você gostaria de

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ajudar?”“Ajudar com o quê?”, a garota quis saber.MacPherson sorriu. “Gosto da sua

assertividade. Mas para que eu possa te explicarmelhor, preciso que sua mãe nos deixe a sós.”

“O quê?!”, exclamou a mãe da garota, irritada.“No momento, esse assunto só é conhecido

por mim, pelo primeiro-ministro, e por umpequeno grupo de indivíduos altamente confáveis.Só posso falar sobre isso a sós com sua filha, deacordo com a Lei de Segredos de Estado inglesa.”

Mutti corou. “Sinto muito. Eu cometi um erroao permitir que o senhor falasse com ela. Ela éjovem demais para essas coisas. Jovem demais!”

Mas a garota estava intrigada. “Tudo bem,Mutti. Me deixe apenas ouvir o que o almiranteMacPherson tem a dizer.”

A mãe balançou a cabeça em tom dedesaprovação, mas mesmo assim levantou e saiu dacozinha.

No momento em que ficaram a sós,MacPherson não perdeu tempo.

“Queremos que você vá para a Alemanha,

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para o sul da Alemanha, e traga algo para aInglaterra. Você acha que consegue fazer isso?”

“Ir para a Alemanha?”, disse a garota,encarando o almirante.

“Apenas por alguns dias. Seria uma ajudainestimável para o fim da guerra”, acrescentouMacPherson. “Além de também ajudar seu pai eseus irmãos, e todas as pessoas que ficaram paratrás.”

A garota se virou para a pia e encontrou umcopo no escorredor. Ela abriu a torneira, encheu ocopo e bebeu a água de uma vez só. Isso a fezganhar um pouco de tempo.

Fazia pouco mais de três anos que o navio,vindo de Copenhague, aportara em Tilbury. Trêsanos que ela vira o pai e os irmãos pela últimavez. Despedir-se dele, na fronteira entre a Áustriae a Tchecoslováquia, naquela fatídica noite de1938, tinha sido a coisa mais difícil que ela jáfizera. O plano era que eles fossem encontrá-las naInglaterra, mas ninguém teve notícias deles desdeaquele dia.

A garota sentiu seu coração disparar. “O

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quê?”, ela perguntou.MacPherson a observou, como se tivesse de

tomar uma decisão. “Uma criança”, disse ele,finalmente.

A garota tentou não parecer surpresa com aresposta. Uma criança? Uma criança que eramuito importante para a guerra? Agora ela estavaainda mais intrigada. “Eu iria sozinha?”

“Não, você iria com um garoto, um garotoalemão. E fique tranquila, você vai ser treinada epreparada para isso.”

A garota mal conseguia pensar. Aquilo tudoera tão inesperado.

“Pronto, agora você sabe do que se trata aoperação”, disse o almirante. “Não queropressioná-la, mas tenho outros dois candidatos paravisitar hoje à noite.” Ele sorriu discretamente paraa garota.

É exatamente o que ele pretendia fazer: mepressionar, pensou ela. “Outros dois candidatos?”

MacPherson assentiu. “Você tem as qualidadesnecessárias para a missão: você fala alemão, tem apersonalidade assertiva de que precisamos, bem

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como a aptidão atlética e acadêmica. Mas eu seriaum tolo se colocasse todas as minhas fichas em umsó lugar, se é que você conhece essa linguagem deapostas.”

A garota se perguntou se ele teria captado seublefe e encarou o almirante, tentando entender asituação.

MacPherson olhou nos olhos dela com firmezae depois olhou para o relógio. “Bem, acho quepreciso ir”, disse ele.

“Mutti”, ela chamou.Houve uma pausa, e então a mãe retornou à

cozinha, o rosto marcado pela preocupação.“Decidi que vou ajudar o almirante, Mutti.”MacPherson sorriu.“Quero fazer algo importante para o papai e

os meninos.”

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5

Os Fischer de Salzburgo

Era pouco mais de sete da manhã, e a garotaestava acordada havia duas horas. Ela chegara napropriedade de Wanborough Manor no diaanterior. Era uma bela construção antiga, próximaàs Colinas do Norte, numa região chamada Hog’sBack. MacPherson contou a ela que a casa haviasido solicitada pelo Ministério de Defesa no inícioda guerra e agora era um dos principais locais detreinamento das Operações Especiais.

Operações Especiais. A garota mal podiaacreditar que fazia parte daquilo. Ainda não.

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O quarto dela ficava no alto, perto do beiral.Ela tinha perdido o dia anterior inteiro tentando sesituar entre os cômodos desconexos e as escadas.A garota não havia visto praticamente ninguém,com exce-ção de dois fuzileiros navais da MarinhaReal, que não deram atenção a ela. Uma mulher,que fazia parte do Serviço Feminino da MarinhaReal Britânica — ou WREN, como era conhecido—, estivera lá para recebê-la e acomodá-la; masela também desapareceu logo após a ceia. Talveza s WREN e os fuzileiros navais fossem treiná-la?Desde que chegara, MacPherson não havia dadonenhum sinal de vida.

De repente, a porta se abriu e um garotoentrou. Ele era alto, bem magro e tinha olhoscastanhos. O cabelo dele estava molhado ebagunçado, como se tivesse lavado a cabeçacorrendo. Logo que a viu, ele parou e ficou comas bochechas levemente ruborizadas. Passou a mãopelo cabelo.

“Olá”, disse ele.“Olá”, respondeu ela.“Quem é você?”, ele perguntou.

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“Sou sua irmã.” Leni sorriu diante do olharconfuso e surpreso dele.

“De que diabos você está falando?”, quis sabero garoto.

O inglês dele era muito bom, quase não haviavestígios do sotaque alemão.

“Sou Leni, sua irmã. E você é Otto.”“Otto? Quem disse a você que meu nome é

Otto?” A garota notou que ele estava começandoa ficar agitado.

“Eu disse.” MacPherson estava parado naentrada.

“De agora em diante vocês são a famíliaFischer, de Salzburgo.” Ele entregou a cada umdos dois um arquivo amarelo e pegou uma torradada prateleira. “Eu sei que isso coloca vocês emuma situação complicada, mas o tempo é curto.Vocês vão encontrar passaportes do Reich eoutras formas de identificação dentro das pastas.”

A garota olhou para o arquivo que continhaseu novo nome, Leni Fischer, sabendo que teriade se acostumar a ele. Ela abriu a pasta, pegou opassaporte cinza e viu a fotografia. Uma boa

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alemã, uma nazista. E quase nove meses maisvelha que sua idade real. Finalmente, quinze anos.A águia do Reich estava estampada na foto, comas garras segurando a suástica.

Ela sentiu uma onda familiar de medo. Dealguma maneira, viver na Inglaterra nos últimostrês anos havia atenuado a sensação que ela tinhatoda vez que via aquela insígnia detestável. Agoraa mente da garota estava de volta a Viena, à suacasa, aos nazistas desfilando pela rua à noite,cantando, levantando tochas e bandeirasestampadas com a suástica. Ela fechou o passaportee largou-o na mesa.

“Parece real”, disse.“É porque é real”, disse MacPherson,

ignorando o olhar de repulsa dela. “Nósconseguimos uma fonte em Berlim que fornecetudo de que precisamos em termos deidentificação. Todas as tintas e os carimbosnecessários, passaportes em branco, tudo. Olhe oresto das coisas.”

Com relutância, Leni pegou uma série dedocumentos da pasta: um cartão de membro do

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Bund Deutscher Mädel — a Liga das GarotasAlemãs — e certificados de atletismo e costura,todos em nome de Leni Fischer, com a foto dela.D e Jude a membro da raça suprema. Ela olhoupara o garoto, seu suposto irmão, que olhava paraos documentos atentamente com uma expressãoindecifrável.

“O pai de vocês, Kurt Fischer, era capitão doAfrika Korps sob o comando do general Rommelna Líbia. Morto em combate, infelizmente”,explicou MacPherson.

“Morto em combate?”, perguntou Leni.“Morto em combate. Sua mãe está em casa,

em Salzburgo, sofrendo com o luto. O nome delaé Greta. Ela mandou vocês para ficarem umtempo com a avó, enquanto lida com a dor.Todos os detalhes estão nesses arquivos, e eu peçoque vocês os estudem com atenção e os gravemna memória.”

“Essas pessoas existem de verdade?”, o garotoperguntou.

“Fisicamente, não, Otto”, respondeuMacPherson. “Oficialmente, sim. Mais uma vez,

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com uma pequena ajuda de Berlim, vocês vãoencontrar certidões de nascimento, filiação aopartido nazista, cartões de registro da Gestapo,tudo o que estabelece a existência da famíliaFischer sem deixar nenhuma dúvida.” Eleobservou enquanto os garotos olhavam os outrosdocumentos. “Entendo como deve ser estranhotornar-se essas pessoas de repente.”

“Ser nazistas perfeitos, você quer dizer.” Elapodia sentir o rosto queimando.

“Você vai se acostumar”, disse MacPherson.“Eu nunca vou me acostumar, obrigada.” Ela

sabia que tinha levantado a voz e estava à beira daslágrimas.

“Sinto muito, não foi o que eu quis dizer”,MacPherson parecia surpreso.

Houve um silêncio desconfortável.“Bem, então, Leni e Otto Fischer, terminem

seu café da manhã. Vamos nos encontrar na salade estar às nove. As instruções continuarão lá.”MacPherson engoliu o resto da torrada com umgrande gole de chá e deixou o recinto.

“Você está bem?”

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Leni olhou para cima. O garoto a olhava comalgo que parecia preocupação. Ela enfiou osdocumentos de volta no envelope amarelo.

“Estou bem”, respondeu, mas ela estava commedo e raiva. Não estava nada bem.

“A segunda ilha no lago é conhecida comoFraueninsel, e nela fica um convento beneditino.A criança está lá”, disse MacPherson.

Estavam na sala de estar. As cortinas haviamsido fechadas e uma enorme tela tinha sidocolocada diante da lareira de mármore. Havia umprojetor no fundo da sala. Leni e Otto estavamsentados, lado a lado, em um sofá de couro,olhando para uma imagem em preto e brancogranulada. O sofá antigo afundava no meio,juntando os dois sem que fosse sua intenção. Lenipodia sentir a perna de Otto pressionandolevemente a sua. Ela se concentrou na foto. Oconvento era uma construção antiquíssima feita depedra com um campanário em forma de cebola.

“O quarto dela fica na ala oeste do prédio

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principal, no quarto andar.” MacPherson fez umapausa. “Alguma pergunta?”

A reunião havia começado logo depois do caféda manhã, e já passava das dez. Teoricamente, amissão deles era simples. Eles seriam transportadosde paraquedas até a região sul da Baviera pararesgatar uma menina de nove anos do conventoonde está sendo mantida. Devem levar a garota omais rápido possível a um ponto de encontro noBodensee — ou lago de Constança — na fronteirasuíça. Lá, o almirante estará esperando com umavião para levá-los de volta à Inglaterra.

Havia uma pergunta que ela queria fazer.“Tenho uma pergunta, senhor”, disse Otto,

quando Leni estava prestes a falar.“Sim, Otto?” MacPherson os chamava pelo

nome falso sempre que podia. Era fundamental,ele dizia, que incorporassem a nova identidade omais depressa possível.

“Por que eu, quero dizer...”, Otto olhou paraLeni, “por que nós? Nós não fomos...”, elehesitou, procurando a palavra certa, “treinadospara isso.”

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“Boa pergunta”, disse MacPherson. “No cursonatural dos eventos, nós mandaríamos dois agentesadultos, idealmente um homem e uma mulher.Quando resgatassem a garota, eles poderiam sepassar por uma família viajando. Mas esse, nósacreditamos, seria um disfarce óbvio. Nossaopinião é de que, no caso de as autoridadesprocurarem a garota, três crianças viajando vãoatrair menos atenção e suspeita. Além disso, apesarde termos diversos agentes franceses, famengos eaté holandeses atuando — e nós os estamosenviando para esses países neste exato momento—, a verdade é que nós simplesmente temospouquíssimos agentes alemães adequados. O Reichtem agentes aqui cujo trabalho é relatar qualqueralemão e austríaco que encontram. Achamos quevocês dois escaparam dessa rede.”

Leni assentiu. Agora fazia sentido para ela. Maso coração da garota quase deu um salto diante damenção de uma caça realizada pelas“autoridades”.

“No entanto”, continuou MacPherson,olhando para os dois, “uma coisa precisa estar

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clara: nós também acreditamos que vocês dois têmos atributos necessários para realizar essa missão.Se não achássemos isso, vocês não estariam aqui.Simples assim.”

Leni sorriu timidamente, um poucoconstrangida pelo elogio inesperado. Ela olhoupara Otto, mas ele olhava para a frente, para atela, com o cenho franzido, imerso nos própriospensamentos. “Certo, vamos em frente, próximoslide, por favor”, disse MacPherson. Uma cidadeda Baviera à beira do lago apareceu na tela. “Seudisfarce durante a viagem

é: vocês estão indo para um acampamento dajuventude de hitlerista — Hitler-Jugend — novilarejo de Stock, que fica no lado ocidental domar Bávaro, ou o Chiemsee, como o lago éconhecido lá. O acampamento acontece duranteos meses do verão para filhos de oficiais que estãoservindo nos Bálcãs e no norte da África.Ninguém vai questionar a presença de vocês —mais um motivo para escolher pessoas da suaidade. Na maior parte do tempo pratica-senatação e navegação.”

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“E canto”, acrescentou Otto.“Claro, você já foi um membro”, disse

MacPherson.“Não da Hitler-Jugend, senhor, fui membro

da Jungvolk.”Leni se mexeu no sofá, afastando-se dele. A

Jungvolk era a ala jovem do Partido Nazista, paracrianças de dez a treze anos.

“Eu não tive escolha”, ele disse, defendendo-se.

MacPherson interveio. “Quando resgatarem acriança da ilha, vocês vão seguir uma rota de fugapredeterminada que vai levá-los ao sul, emdireção à fronteira. O principal meio de transportede vocês vai ser o trem. O disfarce durante essaparte da missão será uma visita à avó de vocês emBregenz.” Um mapa da Baviera e de Tirol estavana tela, e MacPherson apontou para a cidadeaustríaca na costa do Bodensee. “Sua missão nãodeve durar mais de três dias. Vamos esperar noponto de encontro pelo tempo que fornecessário.” A implicação na última frase deMacPherson pairava no ar.

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“Quando partimos?”, perguntou Otto.“Em pouco mais de duas semanas, no dia 14

de junho”, disse Mac-Pherson.Otto e Leni olharam um para o outro, e Leni

falou pelos dois. “Nós nunca vamos estarprontos.”

“Meu trabalho é garantir que estejam”,afirmou o almirante. “Não teremos essaoportunidade de novo e precisamos aproveitá-la.”

Um silêncio inundou a sala enquanto cada umdeles pensava no que estava por vir.

“Agora que vocês já sabem de tudo, é justoque eu pergunte uma última vez. Especialmente avocê, Otto, que não sabia no que estava semetendo quando eu o tirei da escola.”MacPherson falava com tranquilidade, com vozcalma, controlada de um juiz declarando umasentença. “Se quiserem se retirar dessa missão, porfavor, façam-no agora.”

Mais uma vez o silêncio. Leni não se atreveu aolhar para Otto. Será que ele ia desistir? Sedesistisse, ela provavelmente faria o mesmo. Eentão ela falou com firmeza.

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“Quem é a criança?”, perguntou.MacPherson apertou os lábios e levantou as

mãos. “Eu não sei, Leni. Não fui informado acercade sua identidade.”

Leni observou o almirante. Será que osalmirantes mentem? Ela supôs que sim; supôs que,às vezes, mentiras são necessárias. Mas, se eleestava mesmo mentindo, por quê?

“Mas eu posso dizer o seguinte”, MacPhersoncontinuou. “O nome dela é Angelika. E se vocêstiverem sucesso na missão, terão prestado umgrande serviço para este país, seu país de adoção, epara a guerra.”

Naquele momento o projecionista abriu ascortinas, e um feixe de luz do sol atravessou aescuridão. Otto e Leni protegeram os olhos daclaridade.

Talvez ele soubesse quem era a garota, talveznão, pensou Leni, mas uma coisa estava clara namente dela: ela iria descobrir.

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6

Treinamento

O treinamento começou de verdade após oalmoço. MacPherson estava mesmo falando sérioquando disse que tinham pouco tempo.

Eles foram levados para uma longa corridacom mochilas cheias de pedras antes de seremtestados em suas habilidades em combate. Duasvezes. Agora, estavam quase no fim.

Otto encontrou forças para escalar o próximoobstáculo, uma pa rede de quatro metros e meio.Alçou-se pela corda e sentou-se no alto da paredepara recuperar o fôlego. Ele olhou para baixo.

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Leni estava se esforçando para alcançá-lo. Durantea corrida, ela tinha mantido o ritmo comfacilidade, mas agora parecia ter ficado mais difícil.O rosto dela estava vermelho, mas os lábios,estranhamente, estavam sem cor. O instrutor, umrobusto sargento da Marinha Real, gritou para queos dois não parassem.

“Segure a minha mão”, disse Otto, esticando obraço. Ele estava, conforme as instruções doalmirante MacPherson, falando com Leni emalemão.

“Eu consigo”, Leni respondeu, ofegante.Ela finalmente conseguiu se lançar ao topo da

parede, e deitar nela, enquanto recuperava ofôlego.

“Você devia ter me deixado ajudar”, disseOtto.

Ele podia ver que a garota estava exausta, masnão ia desistir.

“O que vocês estão esperando? Chá combiscoitos?”, gritou o instrutor.

Eles olharam para o último obstáculo: umenorme fosso cheio de lama aguada sobre o qual

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uma grade de arame farpado havia sido colocada.Leni agarrou a corda para deslizar. Mas seus braçoscederam, e ela escorregou e caiu, fazendo barulhoquando atingiu o chão. Assim como a garota, aosegurar a corda, Otto escorregou e caiu. Eleestendeu o braço para ajudá-la a levantar, masLeni o afastou e se levantou cambaleando.

“Me deixe em paz”, ela arquejou e começoua se mover pela lama.

Otto a seguiu. Ele se lembrou de Dunquerque,de ir até o barco, da corda encharcada em suamão, da água encobrindo sua cabeça. Perdeu oequilíbrio e tropeçou para a frente, mergulhandode cabeça. A lama pareceu sugá-lo, puxando-opara baixo, e, por um momento, ele ficou cegopor causa do pânico e do terror. O arame farpadoarranhou o topo de sua cabeça. Otto gritou de dore afundou de novo.

“Mexa-se, seu idiota!”Mais adiante, Leni, que havia se arrastado para

fora da lama, esperava por ele.“Você está bem?”Otto assentiu. Os dois estavam cobertos de

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barro malcheiroso da cabeça aos pés.“Certo! Hora de nadar um pouco”, gritou o

instrutor, apontando para o lago no limite dobosque. “Rápido!”

Otto olhou para a água escura do lago cercadode bambu. Estava lutando contra o pânico e sabiaque não ia conseguir. Ele teria de fingir que estavamachucado, como fazia na escola quando estavasendo punido no ginásio.

Tentando fazer aquilo parecer real, eletropeçou e caiu no chão, gritando de dor eapertando o tornozelo.

Reclamando, o instrutor correu até ele,ajoelhou e examinou o tornozelo de Otto.

“Acho que está quebrado”, gemeu o garoto.“É apenas uma torção, se muito!”O homem olhou para Otto, franzido o cenho,

tentando decifrar se ele estava fingindo ou não.“Certo, seu idiota, vamos encerrar por hoje.Subam no jipe. Vocês dois.”

Leni caiu de joelhos, com lágrimas de alívioescorrendo pelas bochechas sujas de lama. Otto selevantou lentamente. Ele teria de fingir que estava

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mancando antes que eles voltassem ao casarão,mas tinha valido a pena.

Naquela noite, após o jantar, em queMacPherson não parou um minuto de testá-lossobre a família falsa, Otto e Leni subiram lenta epesadamente para seus respectivos quartos noandar superior da mansão. Eles estavam cansadosdemais até para conversar quando chegaram àporta dos quartos.

“Você não está mais mancando”, comentouLeni.

“Hum... não”, respondeu Otto. “Está muitomelhor.”

Ela balançou a cabeça. “Você não precisavafingir que estava desistindo por minha causa. Euteria conseguido nadar naquele lago.”

“Eu não estava fingindo, eu torci o tornozelo”,mentiu Otto, para depois acrescentar, “não sepreocupe, não teve nada a ver com você.”

Leni deu de ombros. “Bem, o.k. Se quer falara verdade, você me ajudou muito. Eu iria tentar

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atravessar o lago a nado, mas acho que teriamorrido.”

Otto sorriu. Ela devolveu o sorriso e abriu aporta de seu quarto. Ele viu um corte em carneviva na palma da mão de Leni, onde a corda ahavia queimado.

“Está doendo muito?”, ele perguntou.Leni escondeu a mão. “Está tudo bem.”Mas o garoto sabia que ela estava sofrendo.

Leni nunca demonstrava fraqueza, tinha umaestrutura forte.

“Boa noite, Leni”, disse.Ele ficou ali parado do lado de fora da porta

dela por alguns instantes. Ficou imaginando quemera de fato essa garota e o que a havia feito aceitara proposta de MacPherson. A única coisa querealmente sabia sobre ela era que viera da Baviera,como ele, ou talvez de mais a oeste. Otto pensouter detectado um sotaque vienense.

No dia seguinte, eles passaram a manhã nolago. Não precisaram nadar, para alívio do garoto,

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mas aprenderam como pilotar uma lancha comum dos instrutores. Otto não estava gostando dobalanço do barco na água e descobriu que aportaruma lancha era bastante difícil. Ficou empolgadoquando, depois do almoço, os dois foram levadospara os campos de tiro em vez de voltar para aágua. Aquilo, sim, era a praia dele.

Ele apoiou a coronha de seu rifle contra oombro e tentou mirar nos alvos. Eram soldados depapel, em posição de ataque, a cem metros dedistância.

“Comecem a atirar!”, gritou o instrutor.Otto apertou o gatilho, e o rifle golpeou seu

ombro como se tivesse levado um soco forte.Ficou surpreso com o barulho, não poderiaimaginar que fosse tão alto. Ele o tirou do ombroe soltou o ferrolho, descartando o cartucho usadoe levando uma bala nova para a câmara. Emseguida, levantou a arma e disparou de novo.Tanto Otto quanto Leni mantiveram um ritmoregular até que os pentes estivessem vazios.

Eles foram ver os alvos. Dos onze tirosdisparados por cada um, o alvo de Otto tinha

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nove buracos no meio do peito.“Impressionante! Acho que estamos diante de

um ótimo atirador”, proclamou o instrutor.Otto não conseguiu parar de sorrir. Ele era

muito melhor naquilo do que em aportar o barco.Quando foram ver o alvo de Leni, foi outra

história. Apenas cinco acertos, e a maioria pertoda borda.

O instrutor balançou a cabeça.“Provavelmente seriam apenas ferimentos,

sem muita gravidade”, ele bufou. “Talvez vocêseja melhor com pistolas.”

Mas o resultado não mudou muito: as oitorodadas de tiro de Otto foram bem no alvo; já asde Leni, passaram longe.

“Vamos tentar com as granadas”, suspirou oinstrutor. “Não é nada de mais.”

“Você só precisa praticar mais”, disse Otto,enquanto eles corriam atrás do instrutor até ocampo de treino com granadas.

“Não é isso”, disse Leni, ríspida.“Eu entendo”, respondeu Otto, “você

simplesmente não gosta de armas.”

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“O quê?”, perguntou Leni. “É tão clichêachar que uma garota não gosta de armas. Não énada disso. É só que o alvo estava muito longe.”

Mas Otto não estava convencido. Talvez avisão de Leni não fosse boa.

A rotina quase não variava: treinamento físicode manhã, armas à tarde, treino de paraquedas,treino de vela e de como localizar determinadoponto com mapa e bússola. Eles tinham atétreinamento com veículos e motocicletas, e Ottoficou surpreso com a habilidade de Leni commáquinas. Eles conversavam pouco, as muitashoras de treinamento físico e as noites comMacPherson repassando os detalhes da missãoesgotavam toda a energia dos dois. Quando acabeça dos garotos encostava no travesseiro, jáestavam dormindo.

Quando chegou o dia da missão, se nãohaviam chegado a uma amizade, pelo menostinham se entendido.

Depois do último almoço, Otto encontrou

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Leni sentada na varanda do lado de fora dorefeitório. Um carro chegaria em uma hora paralevá-los ao campo de voo. Estava bem quente, eenxames de insetos zumbiam no ar. Leni estavasentada à sombra. Dava para ver que agora elatinha sardas no nariz, algumas delas que nãoestavam ali duas semanas antes.

Os dois ficaram olhando o gramado emsilêncio.

“Sabe, você não precisa fazer isso”, disse Otto.“Por que você está dizendo isso agora?”, ela

quis saber.Os dois falavam em alemão, como sempre

faziam quando estavam a sós.Otto olhou para ela. “Você é judia, não é? De

Viena, eu acho.”Por um instante, ela pareceu surpresa. Leni

colocou uma mecha de cabelo castanho atrás daorelha e encarou Otto com seus olhos azuis.

“É tão óbvio assim?”, ela perguntou.“De jeito nenhum”, respondeu ele, “mas você

disse que veio para a Inglaterra em 1938. Por quealguém deixaria a Áustria quando o ‘salvador’,

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Adolf Hitler, estava chegando?”“Muito esperto”, disse Leni.“Se formos capturados, e eles descobrirem

quem somos...” Otto parou. “Escute, é muitoperigoso.”

“A decisão é minha, Otto”, respondeu Leni.“E você? Você acha que receberá algum tipo detratamento especial?”

Otto deu de ombros. “Não sei”, elerespondeu, seco. Na verdade, ele havia passadometade da noite deitado na cama se perguntandoexatamente a mesma coisa. O lençol estavaensopado de suor quando Otto acordou de manhã.

“Então, por que você veio para cá?”, perguntoua garota.

Otto suspirou. “Meu pai era comunista —antes de eu nascer, quero dizer. Minha mãetambém. Foi assim que eles se conheceram.Quando os nazistas chegaram ao poder, eles setornaram clandestinos, tentaram esconder seupassado. Meu pai era professor de química, entãotinha utilidade para os nazistas. Mas alguém devetê-lo dedurado, a Gestapo veio e o levou embora.

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Minha mãe e o meu irmão também. Não sei ondeeles estão agora.” O garoto parou por ummomento e sentiu os olhos ardendo.

“Sabotar os esforços de guerra, foi isso que aGestapo disse quando prenderam meu pai.”

“Eu sinto muito”, disse Leni, com delicadeza.Naquele momento, MacPherson saiu pelas portasduplas entre o refeitório e a varanda.

“Bem, até onde sei, o tempo está bemcarregado no sul da Alemanha”, disse ele, comanimação.

Leni e Otto se encararam com ansiedade. Erafácil para o almirante estar de bom humor; não eraele que cairia de paraquedas em território inimigonaquela noite.

“Mas não se aflijam”, continuou MacPherson.“Eu mexi alguns pauzinhos e consegui um aviãode teste, que está vindo da fábrica esta tarde. Elese chama Mosquito e voa mais alto e mais rápidoque qualquer outra máquina que temos nomomento. Tem motores Rolls-Royce. O aviãovai levá-los até lá com total segurança. Agora,venham comigo.”

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Leni se levantou. “Eu gostaria de escreveruma carta, será que ainda daria tempo?”, elaperguntou.

“Claro. Só vamos levantar voo em meia hora,fique tranquila.”

Quando Otto ficou de pé para acompanharLeni, MacPherson tocou-o no ombro.

“Otto, uma palavrinha, se você não seimportar.”

Leni olhou com curiosidade enquanto deixavaa varanda.

O garoto se sentou de novo.“Ela é uma ótima garota, não é?”, comentou

MacPherson, observando-a.“É, sim”, disse Otto.“Não há nada que ela não consiga fazer, não

é?”, continuou o almirante.Otto começou a desconfiar. “Eu diria que

não.”“Mas a questão é, Otto, no fim das contas, ela

ainda é uma garota, e, bom, garotas, mulheres, sejao que for, às vezes lidam com as coisas de maneiraemocional. Acho que você concorda com isso,

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não é?”Otto não queria concordar. Afinal, foi ele

quem entrou em pânico na água. E além disso, oque tinha de errado em ser emocional quandoalguma coisa é importante?

“Acho que sim”, disse ele.“Exatamente.” Agora, MacPherson olhava-o

fixamente. “Então, é por isso que preciso falarcom você sobre uma última coisa, só entre nós,homens... sem Leni. Tudo bem?”

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7

Noite adentro

A adrenalina fazia o coração de Leni bater forte.Enfiada em um traje de voo grosso e usando umcapacete de couro, ela estava deitada diante daporta do compartimento de bombas do Mosquito.Otto estava bem ao lado. Os fios que abririam seusparaquedas estavam presos a ganchos acima deles,ao lado de uma luz vermelha. Enquanto mexia osdedos dos pés tentando conter o formigamento,Leni olhava fixamente a luz. Quando estivessemperto do local determinado, a luz vermelhacomeçaria a piscar e ficaria verde na hora do

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lançamento. Quando o momento chegasse, asportas se abririam e a gravidade e a corrente de arproduzida pela hélice os sugariam para fora,puxando o cordão de abertura dos paraquedas.Todo o processo não levaria mais que algunssegundos.

O coração de Leni continuava disparado.Estava escuro dentro do compartimento, e obarulho dos motores era ensurdecedor. Mas nãoera por isso que ela estava com medo. Era porqueela e Otto nunca haviam utilizado esse método desalto. Todo o seu treinamento nas últimas duassemanas havia sido pela lateral de um avião detransporte convencional. Quando a luz verdeacender, posicione-se diante da porta, sinta a corrente dear, cruze as mãos no peito e pule! Esse havia sido otreino, e tanto Leni quanto Otto já estavambastante acostumados a ele. Mas aquele não eraum avião de transporte convencional, então osdois tiveram de ser presos ao Mosquito,literalmente como bombas, para serem lançadosda parte inferior.

Leni sentiu a aeronave entrar em outra zona

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de turbulência, e seu estômago pareceu subir até agarganta quando o avião caiu como uma rocha poralguns segundos assustadores, antes de ser alçado aum trampolim de nuvens e arremessadonovamente para o alto.

Eles estavam naquele avião não pressurizado econgelante fazia horas, pelo menos três peloscálculos de Leni. Talvez estejamos sobre os Alpes ,pensou. O piloto aumentou a aceleração, osmotores rugiram, fazendo o corpo de Leni vibrarpor inteiro. Ela tentou olhar para Otto, que estavaà esquerda. Com uma mochila pesada e umparaquedas nas costas, ele parecia estar se sentindoda mesma maneira: um inseto num casulo,esperando para chocar.

O avião tremeu e arremeteu de novo. Elasentiu o gosto amargo de vômito no fundo dagarganta, mas se recusou a deixá-lo subir e sujartoda a máscara. Os dois tinham tomado umremédio que cortaria o enjoo antes da decolagem.Mas não havia remédio para o medo. Ela olhoupara os painéis de metal sobre sua cabeça ecomeçou a contar os rebites, querendo que o

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tempo passasse.Como se fosse um sinal, um pequeno

compartimento se abriu sobre a cabeça da garota,e o rosto do navegador surgiu, com a máscara deoxigênio pendurada de um dos lados. Ele pareciaser um pouco mais velho que Leni, absurdamentejovem para estar pilotando um avião.

Leni, Leni, Leni. O novo nome ecoava nacabeça dela no mesmo compasso dos motores.

“Vocês conseguem me ouvir?”, gritou opiloto.

Leni assentiu e levantou a mão, coberta pelaluva, fazendo um sinal positivo. Com o canto doolho, ela viu Otto responder da mesma forma.Desejou que ele estivesse bem.

“Cinco minutos até a zona de lançamento.Entendido?”

Polegares levantados de novo. O avião deuuma guinada súbita para a esquerda.

“Peço desculpas pelos solavancos!”, o pilotocontinuou, amigavelmente. “Uma pequenatempestade nos colocou ao sul da zonadeterminada para o salto de vocês. Mas logo, logo

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vamos nos posicionar no local correto. Boa sorte!”Ele lançou para os dois um olhar de pena, na

interpretação de Leni. Então fechou com força acomporta que o separava dos dois.

A garota se concentrou na luz vermelha. Elasentia que seu estômago estava em estado líquido.

A luz começou a piscar. Os dedos dos pés delase encolheram dentro das botas.

E então a luz ficou verde.Ela respirou fundo. Antes que se desse conta,

estava totalmente leve. Caindo. Noite adentro.

Estava tão escuro que, quando o chãoapareceu embaixo deles, Leni só conseguiupercebê-lo pouco antes de tocá-lo. Ela aterrissoucom os pés juntos, como havia aprendido,colocando os joelhos no chão e rolando para olado. Aquilo doeu muito e Leni ficou sem ar. Eracomo ser arremessada por um canhão de circo ebater contra uma parede de tijolos, só que com ospés, pensou. Leni ficou deitada sem se mexer porum minuto, tentando respirar, e então se levantou

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com esforço e começou a recolher o paraquedas.Ela rezou para que Otto também tivesseaterrissado em segurança. Estava escuro demaispara vê-lo, e ela havia se concentrado na própriaaterrissagem.

Leni tentou deixar para trás aquelas últimashoras aterrorizantes. Desde o momento em que aprenderam ao compartimento de bombas doMosquito, e as portas se fecharam, ela estavaconvencida de que ia morrer. Mas não morreu eagora estava ali, em uma estrada. Esse fato atrouxe de volta ao presente. Leni franziu o cenho.Não deveria haver nenhuma estrada perto da zonade aterrissagem. Ela olhou em volta, tentando seorientar enquanto seus olhos gradualmente seacostumavam à escuridão. Logo, ela viu ocontorno de um bosque à esquerda. Ouviu oestrondo de um trovão, mas a tempestade haviapassado. Ela terminou de recolher o paraquedas,abriu o traje de voo e saiu dele. A primeira coisa afazer era encontrar um lugar onde se esconder. Ofosso à beira da estrada era a opção mais óbvia.

Ainda estava muito escuro, e a lua estava

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coberta pela última das nuvens da tempestade, masLeni conseguiu rastejar até o fosso. Ela enfiou oparaquedas e a armadura lá dentro, onde ficaramescondidos. Em seguida, tirou o pesado traje devoo, as luvas e o capacete e também os enfiou ali.Então, tirou o uniforme da mochila e vestiurapidamente a longa saia azul-escura, a blusabranca de mangas curtas e o lenço preto. Quandoterminou, ficou sentada no fosso descansandoalguns minutos. De repente, o suor esfriou suapele, e a garota sentiu frio. Tirou da mochila osuéter de lã que também havia recebido comoparte do uniforme e vestiu-o. Com exceção dobarulho de sua própria respiração, ainda ofegante,o lugar era um silêncio completo. Nenhumbarulho. E também nada de Otto. Há quanto tempoestou aqui?, ela se perguntou. Meia hora? Ele tem deestar por perto, com certeza . Leni olhou os ponteirosluminosos de seu relógio de pulso. Um belorelógio alemão infantil. Da marca Glashütte. Bemcaro. Um presente de sua avó, frau Varbinner.

A avó que eles visitariam em Bregenz empoucos dias, de acordo com o plano. Eram quinze

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para as três. Duas horas até o sol nascer.Leni não ousaria gritar o nome de Otto. Não

havia como saber quem poderia estar ali naescuridão. Talvez Otto estivesse morto.

Por favor, não esteja morto, ela pensou.

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8

19 de junho de 1941 — Dia um

Otto estava pensando exatamente a mesma coisa.Se Leni estivesse morta, ou muito ferida, a

missão estaria praticamente acabada. E eletambém. O garoto havia aterrissado em umaárvore e estava suspenso, quinze metros acima dosolo, com a cobertura do paraquedas totalmenteemaranhada nos galhos mais altos. Se ela nãoaparecesse logo, Otto teria de cortar os fios para sesoltar. Mas ele estava preso de cabeça para baixo,com uma mochila cheia nas costas. Ao passar pelosgalhos até o chão lá embaixo, correria o risco de

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quebrar o tornozelo ou algo pior. Ele sussurrou onome de Leni mais uma vez, com medo de gritar.Ela podia estar em qualquer lugar. Aliás, diabos,onde estava ele? Otto lembrava-se do planooriginal, de onde deveria aterrissar: em vastoscampos de lúpulo na zona rural, quarentaquilômetros a sudeste de Munique. Mas ele estavacom uma sensação ruim, de que não estava nemperto da zona planejada para a chegada deles.Quando saltou de paraquedas, o garoto sentiu ovento forte e, por um momento, morreu de medode que o paraquedas fosse destruído. A chuvahavia castigado seu rosto, e ele se agarrou aos fioscomo se sua vida dependesse disso. Mesmo queestivesse naquele bosque miserável, ele haviachegado ao solo são e salvo.

Estava começando a clarear, e feixes de luzatravessavam as árvores. Ele procurou o relógio depulso de seu pai, que MacPherson haviaconsertado, e ficou feliz por tê-lo trazido. Umamuleto da sorte, pensou. Mas a missão não haviacomeçado exatamente bem. Eram pouco mais dequatro da manhã. Ele estava pendurado ali havia

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mais de uma hora. As pernas de Otto estavamdormentes, e o traje de voo apertavadolorosamente sua virilha.

“Leni.” Ele sussurrou o nome dela mais umavez.

Nada. E então, ele ouviu o barulho de galhosse partindo lá embaixo. Alguém estava seaproximando.

Otto conseguiu pegar a pistola que levava nocoldre em seu ombro e apontou-a para o chão dasombria floresta.

“Não se mexa ou eu atiro”, ele ordenou emalemão.

Mais um barulho agudo de galhos sequebrando.

“Estou falando sério”, disse ele. Otto girou otambor da pistola, tentando localizar o alvo, cadamilímetro de seu corpo estava tenso. O dedosegurou firme o gatilho. E então ele viu. Umaraposa olhava fixamente para ele, intrigada. Ele fezbarulho para espantá-la, e o animal desapareceu.

Guardou a pistola, ofegante. Atirar emsilhuetas de papel era uma coisa, preparar-se para

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atirar de verdade tinha deixado sua cabeçalatejando de dor. Eu teria realmente puxado o gatilhose fosse uma pessoa?, ele se perguntou. Talvez oinstinto assuma o controle, e você simplesmente o façaquando for necessário.

“Otto?”O coração do garoto deu um salto, e o alívio o

invadiu.Leni. Ele se revirou para olhar para baixo. Lá

estava ela, em pé debaixo dele, esticando opescoço para vê-lo na escuridão.

“Leni, graças a Deus, você me ouviu.”“Provavelmente metade da Baviera ouviu

você, Otto. Você está preso?”“Não, não... Estou só apreciando a vista”, ele

sorriu. Otto estava tão feliz por Leni estar viva.“O que você quer que eu faça?”, ela

perguntou, balançando a cabeça de um lado para ooutro diante do comentário bobo.

Otto a olhou lá embaixo. “Você pode me daruma mão?”

Leni assentiu e mediu a árvore com os olhos.Ela prendeu a saia no elástico da cintura, cuspiu

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nas mãos, esfregou uma na outra, agarrou o galhomais próximo e lentamente subiu pela lateral daárvore até chegar ao galho acima de Otto. Davapara ver que o treinamento na propriedadeWanborough Manor havia aprimorado suaagilidade natural. Ela pegou os fios retorcidos doparaquedas que estavam acima de sua cabeça,puxou-os e fez uma espécie de balanço em formade pêndulo até que Otto conseguiu agarrar ogalho em que Leni estava sentada e segurar-secom os braços e as pernas.

“Agora corte os fios”, disse ele, segurando-se,afobado.

Leni pegou um canivete pequeno dentro deum estojo preso à coxa. Otto ficou observando-aagir, concentrada na tarefa, as pernas presas aogalho.

“Você está bem?”, ela perguntou, cortando oprimeiro cordão de nylon.

“Estou bem”, ele mentiu, apesar de estarpingando de suor e com a pele em chamas.

Finalmente, Leni cortou todos os fios. Elaguardou a faca, colocou as mãos no galho e

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balançou as pernas habilmente como uma ginastanas barras assimétricas.

Otto não aguentava mais. Suas mãosescorregaram e ele começou a cair. Quandoatingiu o chão cheio de musgo, ficou lá gemendo.

“Não se mexa”, Leni sussurrou da árvore.“Estou chegando.”

Otto abriu um sorriso fraco. “Ei, está tudobem. Eu só decidi descer da maneira mais rápida.”

Dez minutos mais tarde, depois que Ottotrocou de roupa e vestiu seu uniforme da Hitler-Jugend, eles atearam fogo ao traje de voo dele eforam até a margem do bosque.

“Venha comigo”, disse Leni, correndo emdireção a um caminho que dava em uma fazenda.

“Espere”, sussurrou Otto, segurando-a pelobraço e puxando-a para baixo. “Você precisa termais cuidado.”

Ele pegou um par de binóculos da mochila eexaminou a área. Na luz do amanhecer, conseguiuver que eles haviam aterrissado em uma regiãoagrícola: ao seu redor havia campinas e plantaçõesde grãos, cercadas por colinas cobertas de árvores.

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A mais ou menos dois quilômetros dali,conseguiram avistar um povoado.

“Não tem ninguém por aqui, Otto”, Lenidisse baixinho. “Não são nem cinco da manhã.”

Otto a ignorou e examinou a região umasegunda vez antes de guardar os binóculos.“Certo”, disse ele, “onde você acha queestamos?”

“Baviera?”, respondeu a garota.Otto riu antes de conseguir se conter. E então

encontrou um mapa no bolso da camisa e sedebruçou sobre ele. Era feito de seda e lindamentedetalhado. Mas não ajudava muito: a luz estavamuito fraca e não tinham pontos de referência emque se basear. Eles teriam de pegar a trilha até afazenda e procurar algum tipo de característica aolongo do caminho.

Leni abriu uma barra de chocolate. “Quer umpedaço?”, ela perguntou, oferecendo um pedaço aele.

Otto aceitou e colocou-o na boca. Era aprimeira coisa que ele comia em seis horas, e osabor era delicioso. Delicioso demais, na verdade.

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Ele olhou para a embalagem: Fry’s.“Você está louca?” Ele se virou para Leni.

“Você trouxe um chocolate inglês? Como vaiexplicar isso caso alguém nos pare, nos reviste?”

Leni corou. “Era só essa barra!” Ela pegou aembalagem e amassou-a, fazendo uma pequenabola. Depois, jogou-a no bosque. “Está satisfeito?”,ela perguntou.

“Vamos torcer para ninguém encontrar isso”,comentou Otto, emburrado. Ele pegou sua bússolae esperou a agulha parar.

“Acho que devemos ir para o leste”, disse ele.“Tudo bem”, respondeu Leni, claramente

irritada por causa do chocolate.Otto sabia que os dois só estavam bravos um

com o outro porque estavam com medo e nãofaziam ideia de onde estavam, mas precisavamfazer o melhor possível. Não havia retorno agora.

“Desculpe, tá? Posso comer outro pedaço?”Leni entregou o resto do chocolate a Otto,

que o devorou rapidamente. Em seguida, ele selevantou e ajustou o uniforme, puxando as longasmeias cáqui e ajustando o cinto marrom que

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prendia as calças curtas pretas, ou Lederhosen. Ouniforme da Hitler-Jugend estava impecável emtodos os detalhes, até os distintivos de proficiênciaem natação e navegação estavam no bolso dacamisa.

De súbito, Otto se lembrou de como seus paishaviam ficado tristes quando finalmente ficoudecidido que ele e o irmão teriam de se tornarmembros da juventude hitlerista. Não fazê-losignificaria um risco de prisão para os pais eorfanato para os filhos. Não que fizesse diferença alongo prazo, mas naquele momento ele desejavapoder explicar isso a Leni.

“Como eu estou?”, Otto perguntou, quandocolocou sua adaga com a suástica no cabo nabainha do cinto.

“Horrível”, ela respondeu.Otto concordou. “Você também.”Juntos, eles pegaram as mochilas e seguiram a

caminho da fazenda.

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9

A estrada para Prien

Leni e Otto chegaram ao povoado que tinhamavistado do bosque bem antes das seis da manhã.Eles ficaram em silêncio para evitar que algummorador os escutasse. Fazendeiros costumamacordar logo que o dia começa a clarear. Depoisde passar pelo povoado, Otto e Leni olharam omapa de novo e ficaram surpresos ao descobrirque o vilarejo devia ser Winkl. Isso significava quepelo menos haviam pousado a oeste do rio Inn, oque já era alguma coisa. Juntos, planejaram umarota simples que os levaria ao leste e depois ao

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norte, para a cidade de Prien. De lá, pegariam otrem local para o porto de Stock, em Chiemsee.

O dia prometia ser quente, e os dois jáestavam suando por conta de suas mochilaspesadas. Otto pegou a garrafa d’água e deu umgrande gole antes de passá-la para Leni. Ela olhouem volta e bebeu a água, observando aexuberância verde daquela região agrícola. Elesestavam quase no sopé das colinas dos Alpes, comas montanhas se levantando ao sul. Alguns doscumes mais altos ainda estavam cobertos de neve.Ela havia passado as férias de verão nos Alpes.

Leni devolveu a garrafa d’água para Otto. “Porque você está sorrindo assim?”

“Assim como?” Ele a guardou.“Não sei...”, disse a garota. “Como se você

estivesse em casa ou algo assim...” Ela fez umapausa e ficou olhando para Otto. “Claro. Você édaqui, não é?” Ele tinha um sotaque bávaro, masaté aquele momento havia se recusado a dizerexatamente qual era sua cidade natal. Deve ser maisum motivo por que MacPherson queria Otto naquelamissão, pensou ela.

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Ele parecia estar pensando no que dizer. Elesnão deviam contar coisas demais sobre sua vidapregressa. Agora que estava na Alemanha de novo,era fundamental que mantivessem seus disfarces.Precisavam pensar em si mesmos como Otto eLeni Fischer, de Salzburgo.

“Desculpe, eu sei que nós não devemos contarcoisas”, disse Leni, e continuou andando.

“Você tem razão”, disse Otto, logo atrás dela.“Eu morava perto daqui, mais ao norte.” Eleparecia tão triste.

Leni decidiu não fazer mais perguntas, e osdois caminharam em silêncio por mais meia horaaté chegarem a uma enorme estrada. Eles pararame ficaram olhando, impressionados. Diante delesestava uma das novas e famosas Autobahns de queo Reich tanto se orgulhava, estradas de seis pistasque o Führer havia construído em toda aAlemanha. Essa devia ser a nova rota entreMunique e Innsbruck. Teriam de atravessá-la paraseguir caminho rumo a leste e percorrer o campo.A estrada estava vazia, mas do sul dava para ouvirum barulho baixo de veículos.

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Leni segurou o braço de Otto. “Nósprecisamos nos esconder?”

Otto balançou a cabeça, e Leni concordou.Mas já era tarde demais.

Um comboio de veículos militares estavavindo na direção deles. Graças às aulas deMacPherson, Leni sabia quem eram eles.Primeiro, passou por eles uma dúzia deKübelwagen, o veículo militar padrão alemão.Depois, passaram cerca de trinta caminhões Opel,feitos para transportar tropas, e ainda maistransportadores de tanques. Otto puxou a mangade Leni, que olhou e viu que ele estava com obraço levantado, fazendo a saudação nazista.Rapidamente, ela fez o mesmo.

Mas a imagem intimidava, e um arrepiopercorreu seu corpo quando ela fez a saudaçãoque jamais imaginou fazer na vida. Ela se odioupelo gesto. Andando pelo campo em uma manhãensolarada, Leni quase havia se esquecido daguerra. Mas ao ver aqueles tanques, com as cruzespretas e brancas nas torres, ela se lembroubruscamente da terrível batalha que estava

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ocorrendo no mundo todo.Quando o último veículo passou, e o estrondo

dos motores começou a diminuir, Otto e Lenidecidiram atravessar a Autobahn. Quando estavamprestes a fazê-lo, um Daimler velho e malcuidadopassou lentamente.

“Vamos pedir carona”, sugeriu Leni.“É muito arriscado”, disse Otto. Ele parecia

tenso. “Você se lembra do que MacPherson nosdisse? Evitem qualquer contato desnecessário comestranhos. Ele falou isso mil vezes.”

“Mas também nos disse para ter iniciativa — emeus pés já estão me matando.”

“Não.”“Vamos, Otto, em algum momento nós vamos

ter de falar com alguém, e o motorista é umvelhinho. Ele parece tranquilo.”

Antes que ele pudesse protestar de novo, Lenifoi até a estrada e acenou com entusiasmo. Ocarro diminuiu a velocidade até parar.

“Só não diga nada além do estritamentenecessário, o.k.?”, disse Otto, ainda relutante.

“Bom dia, senhor. Por acaso, está indo para o

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leste?” Leni sorriu educadamente para o senhorgrisalho.

“Norte, na direção de Rosenheim, mas apenaspor alguns quilômetros. Isso ajuda vocês?”,respondeu o motorista.

“Seria perfeito”, disse Leni, fazendo a voz maisdoce que sabia.

“Então entrem. Desde que não se importemem dividir espaço com Gunter.” O homemapontou para o banco de trás. Um enorme porcomalhado estava deitado confortavelmente, cheiode si.

“Ah, claro que não nos importamos”, disse agarota, abrindo rapidamente a porta do passageiroe sentando-se ao lado do motorista.

Otto fez uma careta e se sentou atrás. O porcopareceu gostar da companhia e soltou um pumbem alto de boas-vindas.

“Ele está feliz, está indo visitar a namorada emRosenheim. Vai fazer alguns porquinhos paramim.” O fazendeiro riu e deu a partida. ODaimler acelerou estrada afora.

“Que comboio grande”, disse Otto.

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O motorista deu um suspiro. “Tem sido assimhá um mês ou mais. Todos estão voltando da Itáliae sei lá mais de onde, rumo ao leste. Se quersaber, acho que algo grande está para acontecer.Aonde vocês dois estão indo?”

“Leste”, disse Otto, de maneira sucinta.“Bom, não parece boa ideia, não é?” O

fazendeiro riu.Leni estava inclinada a concordar.

Meia hora depois, o carro parou à beira daestrada. À esquerda, uma trilha levava para umacasa de fazenda feita de madeira bávara. Umamulher robusta de saia preta e blusa vermelhaestava tocando o gado de um pasto para um curralde ordenha.

“Bem, meninos, Gunter desce aqui.”Leni olhou para trás. Otto dormia

profundamente, com a cabeça apoiada no traseirodo animal. Ela riu. O fazendeiro assobiou alto, etanto o garoto quanto o porco acordaram numpulo.

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Leni e Otto desceram e ficaram olhando ocarro sacolejar até a fazenda onde a namorada deGunter o esperava. E então seguiram por umaestrada de terra em direção a Prien. Elescaminharam em silêncio por uns bons dezminutos, imersos nos próprios pensamentos, tendocomo único barulho o som dos pássaros nas cercasvivas e o som dos gafanhotos pelo caminho.

“De que MacPherson estava falando?”, elaperguntou de repente.

“Do que você está falando?”“Ontem, antes de partirmos. Quando eu fui

para meu quarto, ele segurou você. O que eledisse?”

“Nada”, respondeu Otto.“Bom, ele deve ter dito alguma coisa.”Otto deu de ombros. Mas Leni podia ver que

ele estava corando.“Ele só estava repassando alguns detalhes sobre

nossa família.”“Só isso?” Leni não estava convencida. Otto

podia ser bom atirador, mas era péssimomentiroso.

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“Só isso.”Eles continuaram andando. “Nós precisamos

confiar um no outro, Otto”, ela disse, depois deum tempo.

“Eu sei, e o que ele me disse não eraimportante, eu juro.” Mas ele estava olhando paraa frente, não para ela. Leni decidiu não insistirmais. Mas, fosse o que fosse, ela o faria falar nofinal.

“Tudo bem, vamos falar de outra coisa”, disseela.

Otto sorriu. Ele parecia aliviado. “Certo,vamos praticar. O que gostamos de fazer domingoà tarde, depois do almoço?”

Leni pensou por um instante. “Ah, os Fischersão criaturas de hábito. Nós não costumamos sairde Salzburgo. No verão, vamos ao parque assistir aconcertos nos jardins Mirabel.”

“E no inverno?”“Nós patinamos. Vamos patinar no

Hellbrunn.”“Eu amo andar de patins”, disse Otto. Ele

soou nostálgico, como se fosse verdade. “Sua

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vez.”“Certo, qual é o nome da garota de quem

você gosta na nossa rua?”“O quê? Eu não gosto de nenhuma garota”,

disse Otto, franzido o cenho.Leni sorriu. “Bom”, disse ela.

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10

Garotos voadores

Seguindo as estradas, Otto e Leni chegaram aPrien por volta de meio-dia. Atravessaram terrasagrícolas, viram muitas pessoas trabalhando etocando a vida cotidiana nos pequenos povoados.Ninguém os havia parado ou questionado, a nãoser para desejar “Guten Tag ”. Agora, os doisesperavam o trem na agradável praça principal dePrien. O trem os levaria até o porto no lago deStock. Uma fanfarra tocava músicas militares.

MacPherson os havia instruído sobre a área —sobre o lago em especial —, mas Otto já sabia que

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o Chiemsee era o maior lago da Baviera e tinhapelo menos quarenta quilômetros de comprimentoe dez de largura. Também era fundo, repleto depeixes, e tinha três ilhas. A maior delas era aHerreninsel, e a menor, a desabitada Krautinsel.

Mas MacPherson havia dito a eles que era nailha do meio, a Fraueninsel, que a criança estavasendo mantida. Otto e Leni iam pegar um barcode passeio para visitar o palácio de verão do reiLudwig na Her-reninsel à tarde e, de lá,chegariam até a segunda ilha ao cair da noite.

Depois de um ano fora da Alemanha, Otto sesentiu estranhamente deslocado ali naquela praça.Ele não se sentia mais parte do país. Talvez,pensou, fosse porque estava com uma identidadefalsa. Metade das pessoas parecia estar usandoalgum tipo de uniforme, e a maior parte dosedifícios estava coberta com bandeiras nazistas. Jáera assim antes de ele fugir? Talvez só estivessemais atento a isso agora. Otto ouviu a fanfarra etentou pensar em outra coisa.

“Talvez nós devêssemos ir a pé até Stock. Sãosó alguns quilômetros”, ele sugeriu.

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Leni estava sentada descalça na fonte de pedrano centro da praça. Ela levantou o pé esquerdopara examinar a bolha ao lado do dedão. “Meuspés estão pegando fogo. Não vou andar a lugarnenhum além da estação.”

“Não estou gostando de ficar aqui”, Ottomurmurou.

Leni pegou uma pequena programação e aconsultou. “O trem chega em vinte minutos, eninguém está prestando a menor atenção em nós.”Ela mergulhou o pé de volta na água. “Você nãopode, pelo menos, comprar uma limonada?”

“Está bem. Espere aqui. Eu volto em umminuto.”

Otto atravessou a praça até uma pequenavenda. Era uma lojinha familiar tradicional, comlongas peças de salame cobertas com grãos depimenta penduradas acima do balcão. No fundo,havia um pequeno vaso cheio de gelo, água,garrafas de cerveja e limonada. Otto pegou duaslimonadas e voltou para a frente da loja. Haviauma fila, e a mulher que estava na frente demorouo que pareceu uma eternidade para fazer as

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compras da semana — um pouco disso e umpouco daquilo, tudo intercalado com um longobate-papo sobre os últimos acontecimentos locais.Otto se apoiava alternadamente em um pé e nooutro, ansioso para não ficar tempo demaisseparado de Leni. Cinco minutos depois, ele saiuda loja e imediatamente percebeu que algumacoisa estava errada.

Um caminhão que levava um planador em umreboque havia chegado à praça, e por ummomento Otto não conseguiu ver onde estavaLeni. Então ele a viu perto do caminhão, cercadade adolescentes. Leni olhava em voltanervosamente, tentando localizá-lo. Otto correuaté lá, tentando conter o pânico que crescia emseu peito. Havia uma logomarca no caminhão emvolta das iniciais NSFK: um homem alado, Ícaro,com a suástica nos pés. Otto reconheceu oemblema do aeroclube nacional de voos emaeroplanos. Os garotos em volta de Leni eramaltos e tinham ombros largos, a maioria loiros oude cabelo claro. Eles pareciam em forma, erambonitos e fortes. Problema à vista.

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Quando Otto alcançou Leni, viu que ela haviarecolocado os sapatos.

“Venha, vamos para a estação”, ele disse.Ela pegou a mochila. “Bem, foi um prazer

conhecer vocês”, ela disse aos três garotos queestavam mais próximos. E então começou a seafastar com Otto.

Ele viu que ela estava pronta para correr.“Não tenha pressa”, ele sussurrou. “Eles vãodesconfiar.”

“Por que você demorou tanto?”, ela sussurroude volta.

“Ei, vocês!”, gritou um.“Continue andando!”, disse Otto, de maneira

cortante. Não cheirava boa coisa. Ele ouviu obarulho de passos atrás deles. E então uma mão osegurou pelo ombro, forçando-o a parar. Ele sevirou. Um garoto forte, que parecia ter unsdezesseis anos, estava parado diante dele, com asmãos na cintura. Outros dois pararam ao lado.Todos tinham o distintivo com o Ícaro na camisa.

“Isso não foi muito educado, não é?”Otto tentou manter a tranquilidade e a voz

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calma.“Desculpem, estamos com pressa.”“Na verdade, precisamos tomar o trem”, disse

Leni.O garoto olhou para a estação. Otto e Leni

fizeram o mesmo. O trem se aproximava.“Peguem o próximo”, disse o garoto,

displicente.“O que vocês querem conosco?”, perguntou

Otto.O garoto sorriu, revelando dentes brancos e

perfeitos. “Bem, sua namorada é muito bonita...”“Ela não é minha namorada”, disse Otto.“É mesmo? Então você não vai se importar se

eu a convidá-la para um sorvete.”“Na verdade, ele é meu irmão e vai se

importar, sim”, disse Leni.Os três garotos olharam para Otto.“Seu irmão?” Eles não pareciam nada

convencidos.“Sim, e ela está certa, eu me importo. Por

favor, nos deixem em paz.”“Vou dizer uma coisa”, disse o garoto, “vou

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ignorar seu conselho, rapaz, e convidar sua irmãpara tomar um sorvete mesmo assim.”

Ele levou o punho até o plexo solar de Otto,fazendo-o cair no chão, arquejando, sem nenhumar nos pulmões.

“Não!”, gritou Leni, abaixando-se para ajudá-lo.

O garoto a agarrou pelo braço e a puxou paracima. “Você não precisa ser mal-educada.” Elepuxou Leni para si, sorrindo para Otto o tempotodo. “Especialmente porque você é tão bonita.Meu nome é Rudi. Qual é o seu?”

“Deixe ela ir.” Otto havia se levantado, masRudi era maior, mais forte, e de jeito nenhumcomprar briga com os três acabaria bem.

“E se eu não quiser? O que você vai fazer?”,perguntou Rudi, rindo. Os outros se juntaram aele.

Por um instante, Otto pensou na pistola queestava dentro da mochila, mas logo afastou opensamento da mente.

“Eu vou brigar com você”, ele disse,aproximando-se.

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“Como quiser”, riu Rudi e se virou para Leni.“Isso não vai demorar, linda, então você vaiganhar um sorvete, e eu vou ganhar um beijo,imagino.” Ele a soltou. Assim que o fez, Otto viuo brilho de uma faca na mão da garota.

O apito do trem soou mais uma vez, mais alto.“Talvez um pedido de desculpas seja melhor.”

A voz dela estava gélida.“O que é isso?” O rapaz olhou para a faca.“É um pedido de desculpas seu para meu

irmão”, respondeu ela, aproximando-se epressionando a lâmina contra as costelas do garoto.

Rudi a olhou nos olhos. “Você não seatreveria.”

“Experimente.” Leni devolveu o olhar epressionou a ponta da faca com mais força nalateral do corpo dele. O garoto hesitou.

“Diga.”“Nunca.” Ele cuspiu as palavras, e uma gota

de saliva a atingiu no rosto.“Como quiser”, Leni repetiu, e então a mão

dela se moveu, e o garoto olhou para baixo e viua mancha vermelha que surgiu de repente em sua

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camisa. Leni havia cortado o algodão e a pele delebem abaixo das costelas. O corte não havia sidoprofundo o bastante para fazer nenhum danograve, mas foi suficiente para ferir o orgulho dogaroto. Além de doer muito.

“Corra”, ela disse a Otto.Ele não precisou ouvir uma segunda vez.

Juntos, eles dispararam na direção da estação e seenfiaram no último vagão quando o trem estavacomeçando a andar. Assim que soltaram asmochilas, Rudi apareceu do lado de fora da janela,batendo no vidro do vagão, que corria pelaplataforma.

“Vocês estão mortos!”, ele gritou para os dois.“Estão me ouvindo? Mortos!”

E então o trem deixou a plataforma, e ogaroto desapareceu.

Otto sentou. De repente, ele se deu conta dosdemais passageiros no vagão olhando para eles.“Meu Deus, Leni”, ele sussurrou, “você precisavafazer aquilo?”

Leni arrumou a blusa e colocou uma mechade cabelo atrás da orelha. “Ele não vai contar para

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ninguém. Pense bem, se começarem a espalharque uma garota mais nova cortou ele, aquelegaroto vai virar motivo de piada.” Ela olhou paraOtto. “Você está bem?”

“Sim, estou bem. Eu podia ter batido nele.Ele só me pegou de surpresa, só isso.”

“Claro”, Leni concordou, mas Otto podia verque ela escondia um sorriso irônico.

“Bom, talvez um agradecimento sejanecessário.” Otto fechou os olhos e suspirou.“Mas, por favor, não faça isso de novo.”

Depois de um tempo, Otto abriu os olhos eadmirou a vista. O trem estava acompanhando amargem do Chiemsee, e diversos barcosflutuavam nas águas borbulhantes. O coração delecomeçou a bater com mais calma. Mas Otto nãotinha certeza do que o havia alarmado mais: oconfronto com o rapaz, ou o fato de que Leni serevelou tão forte quanto destemida. Agora, sóconseguia pensar numa coisa: ela os salvaria — ouos colocaria de vez em perigo.

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11

Ladrões de bicicleta

Leni flagrou Otto observando-a durante a viagemde trem e sentiu seu rosto queimando diantedaquele olhar fixo. Quanto mais pensava noassunto, menos podia acreditar no que havia feitocom aquela faca. Havia simplesmente acontecido,como se estivesse fora de seu controle. Quando orapaz enfrentou, intimidou e então agrediu Otto,algo surgiu dentro dela, como se uma lâmpadativesse acendido, e ela se viu com a faca na mão.Mas estava satisfeita consigo mesma, mesmo queaquilo trouxesse problemas depois. Foi como

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quando viu o irmão mais novo sendo provocadopor garotos mais velhos, com os shorts na alturados tornozelos. Sem pensar, ela avançou nadireção deles, punhos no ar, chutando, até que osgarotos fugiram, com o nariz sangrando e as pernasroxas. O pai recebeu diversas reclamações, elasabia, mas ele a beijou na testa e disse quãoorgulhoso estava.

O trem diminuiu a velocidade, e Leni seconcentrou mais uma vez no presente. Eles selevantaram ao mesmo tempo para pegar asmochilas assim que o trem freou bruscamente. Elafoi lançada para a frente, indo de encontro a Otto,que a segurou. Os dois ficaram naquela posiçãopor um ou dois segundos, petrificados. Então Ottorecuou, soltando-a como se tivesse se queimado.

“Eu pego a sua mochila”, ele disse, sem olhá-la nos olhos.

“Obrigada”, Leni respondeu formalmente,enquanto ele pegava as mochilas.

Eles deixaram a estação em Stock e passearampelas calçadas, examinando com cuidado as lojas ecomércios antes de chegarem ao local onde as

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balsas turísticas atracavam. Pouco adiante, nolimite da cidade, era possível ver doze ou maistendas grandes erguidas em um campo, com umapequena frota de barcos a vela e canoas amarradosna margem mais próxima. Um grande grupo deadolescentes parecia estar se aprontando parapassar uma tarde velejando no lago. Era oacampamento de navegação da Hitler-Jugend.Otto e Leni haviam recebido documentos parausar se fosse necessário, mostrando sua inscriçãotardia no acampamento. Se alguém osquestionasse, a missão podia ser comprometidaantes mesmo de começar.

“Só fique longe dos garotos que te oferecemsorvete”, disse Otto quando pararam. Leni seperguntou se não havia um toque de ciúmenaquele tom.

“Eu sei me cuidar”, ela respondeu, ácida.“Essa é a minha preocupação”, disse Otto.Leni abriu um pequeno sorriso. “É melhor

sincronizarmos nossos relógios. O meu estámarcando duas e dez... agora.”

Otto olhou o relógio de ouro do pai e o

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ajustou. “Perfeito”, disse ele. “Vejo você em umahora. Boa caçada.”

“Pra você também”, respondeu Leni.Cada um tinha a tarefa de roubar uma

bicicleta para usar na fuga da cidade nas primeirashoras da manhã seguinte. Claro, isso se tudocorresse de acordo com o plano. O ponto deencontro era atrás de um estaleiro abandonadoque haviam identificado enquanto andavam pelacidade.

Felizmente, agora era pouco depois de duashoras, e as pessoas estavam desfrutando de umalmoço tardio nos diversos cafés ao longo dopasseio. Só levaria alguns minutos para Leniencontrar uma bicicleta apropriada e se assegurarde que era seguro roubá-la. Pouco tempo depois,ela a estava guiando até o estaleiro, que aindaestava deserto. Leni escondeu a bicicleta no fundo,sob um grande pedaço de lona, e então saiu semser vista, ansiosa por concluir a outra tarefa quehavia recebido.

Ela andou pelas numerosas lojas e acabouencontrando uma loja de velas. Ela entrou, e o

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dono fez um aceno de cabeça em sinal decumprimento enquanto terminava de atenderoutro cliente. Isso deu a Leni tempo paraselecionar o tipo de corda de que eles precisariammais tarde. Cordas de diferentes espessuras emateriais estavam em rolos perto da vitrine. Elafez sua escolha e foi até o vendedor quando ooutro cliente deixou a loja.

“Eu gostaria de vinte metros dessa aqui, porfavor”, ela disse, indicando a corda que queria.

“Vinte metros, minha jovem?” O lojista nãoparecia exatamente desconfiado, mas estavacurioso. Ele olhou para o uniforme da BMD.“Você está com o clube de regata?”

“Sim, isso mesmo.”O homem assentiu. “Eu nunca vi você antes.”“Não, é meu primeiro ano.” Leni tentou

manter a voz tranquila.O homem fez que sim com a cabeça e pegou

a corda que ela havia indicado, contando osmetros com uma vara.

“Você está se divertindo, minha jovem?”, eleperguntou.

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“Ah, sim, é muito divertido. Estouaprendendo muito.”

“Que bom. Aqui está.” O homem enrolouhabilmente a corda no braço e a prendeufirmemente no meio. Ele voltou para o balcão efez um recibo.

“Quanto é?” Leni pegou a carteira.O homem franziu a testa. “O clube tem uma

conta.”“Ah, sim, é verdade. Eu esqueci. Eles me

disseram. Eu não estava pensando. Primeira vez...”Pare de falar agora!, Gritou uma voz dentro da

cabeça dela.O homem a olhou de novo e então entregou a

corda sem pressa.“Não se esqueça de dizer à frau Farbiner que

eu dei vinte por cento de desconto para você.”“Claro, vou dizer, vou dizer.”Quem diabos é frau Farbiner?, pensou Leni,

enquanto saía da loja e ia na direção das tendas doclube de navegação, virando-se de vez em quandopara ver se o homem estava olhando. Ele estava.Ela continuou andando e então fingiu parar diante

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de uma vitrine. O homem ainda estava lá, mas umcliente entrou na loja, e ele desapareceu. Leni deuum suspiro de alívio e voltou o mais rápido quepôde para o estaleiro. Ela se escondeu no fundo eesperou.

Otto apareceu pouco depois, trazendo nãouma, mas duas bicicletas, a segunda própria parauma criança menor.

“Você acredita?”, ele riu. “É perfeito.”Leni levantou a lona e o ajudou a colocar as

bicicletas perto da dela.“Elas pertencem a uma mãe e uma filha. Eu as

vi entrar em um café para tomar sorvete. Quandosaírem, terão uma péssima surpresa.” Ele riu.

“Não seja tão terrível”, censurou Leni.Otto deu de ombros. “Desculpe, eu não quis

dizer isso.”“Típico garoto insensível”, disse ela.Otto ignorou o comentário. “E a corda?”, ele

perguntou.Leni a mostrou.“Por que você não pediu para o homem

embrulhá-la? Ela vai chamar atenção na balsa.”

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“Ele estava fazendo muitas perguntas. Euprecisava sair de lá rápido. Tudo bem?”, explicouLeni, na defensiva. “E a igreja?”

“Funciona para o que precisamos”, confirmouOtto.

Era hora de tomar a balsa para Herreninsel. Osdois foram até o ponto de embarque e subiram, abalsa levantou a âncora, e as chaminés soltaramfumaça preta quando os motores deram a partidalá embaixo.

Em pouco tempo, o barco estava no meio dolago, e Leni estava encostada no parapeito dodeque, aproveitando a brisa fresca da água. Ottopreferiu sentar em um dos bancos de tábua presosao centro do deque. Ele guardou as mochilasembaixo do banco e escondeu a corda. Além deuns poucos soldados uniformizados passeando comas namoradas, não havia nenhum indício de umaguerra mundial. Parecia que nenhum lugar podiaser mais pacífico e agradável que aquela tardeensolarada na Baviera.

Quando chegaram à ilha, os dois se juntaram aum grupo de turistas que andavam em fila do píer

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até o palácio do rei Ludwig. Mas quando o grupofoi para a entrada, Otto e Leni escaparam sem servistos até a lateral da construção histórica.

Eles se sentaram atrás das árvores, e Otto abriuum mapa de seda mais detalhado das duas ilhasprincipais, mostrando as trilhas entre as árvores,além das construções e outras estruturas. Eles oestudaram com atenção e então seguiram rumo aooeste da ilha. À margem do rio, encontraram opequeno píer de pesca indicado no mapa. Haviabarcos sem dono flutuando na água, comoimaginavam. Os dois concordaram que um deles,um pequeno bote com uma vela de cor vermelhovivo, era exatamente do que precisavam.

fraueninsel ficava a uns dois quilômetros dedistância, mas a abóbada de metal em forma decebola do convento aparecia claramente acima dasárvores. Até mesmo Leni, com sua visão ruim,podia enxergá-la.

“Vamos!”, ela disse e subiu no barco.“Não! Nós precisamos esperar até o pôr do

sol, lembra? Menos chance de alguém nosincomodar.”

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Leni olhou para ele. “Você acha isso uma boaideia? E se tivermos um problema com o barco noescuro? Ou começar a chover? Ou vier umaventania? Além disso, há poucos barcos de pesca.Os pescadores vão pensar que somos do clube deregata. Não vão nem reparar em nós.” Ela estavaansiosa para continuar.

Otto coçou o queixo com o polegar. “Achoque vai nos dar tempo para mapear a ilha antes deescurecer.” Mas ele não parecia nada feliz queLeni tivesse assumido a liderança.

“Como você preferir”, disse Leni, tentandonão sorrir.

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12

O Amerika

Enquanto Otto e Leni olhavam para Fraueninsel,o trem expresso de Hitler, o Führersonderzug,também conhecido como Amerika, passava pelosul da Áustria, indo, se não diretamente até eles,na mesma direção. Os vagões blindados faziambarulho enquanto o trem passava pelas paradas nocampo, o apito enviando um aviso.

Martin Bormann, um homem robusto comtraços largos e pesados e cabelo escuro engomadopenteado para trás, andava pelos vagões. Ele usavaum terno cinza com uma pequena suástica na casa

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do botão do paletó — um presente pessoalrecente do Führer. Desde a ida de Rudolf Hesspara a Escócia, Bormann havia aproveitado aoportunidade e substituído seu antigo chefe comosecretário pessoal de Hitler e chefe da estruturapolítica do Partido Nazista. De repente, ele haviaassumido a papelada, os compromissos e a enorme— e secreta — fortuna pessoal de Hitler. Daquelemomento em diante, todos os demais membros doPartido teriam de responder a ele se quisessem teracesso ao Führer.

Alerta, um sentinela da SS abriu a porta dovagão do Führer com uma mão envolta por umaluva branca. Hitler estava sentado sozinho novagão com folhas de madeira, que ficavaexatamente no meio do trem. A mobília erasimples, como o apartamento dele em Munique:mesas de madeira escura, cadeiras revestidas decouro e um retrato dele mesmo sobre a cornija.Quando Bormann entrou, ele espalhou uma sériede fotos que estava observando sobre os joelhos ejuntou as mãos. Uma delas parecia tremerlevemente.

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“Quais são as notícias de Londres?”“Nada boas, Führer. Nossos agentes não

conseguem nos dizer onde os ingleses estãoescondendo o vice-Führer.”

“Ele não é mais o vice-Führer! Nunca mais ochame disso! Nunca!” De repente, Hitler estavavociferando as palavras, com o rosto contorcidode raiva.

“Claro.” Bormann abaixou a cabeça em sinalde pesar.

Hitler ficou sentado em silêncio por algunsinstantes, aparentemente calmo. Ele olhou pelajanela. As pessoas em um cruzamento saíram deseus veículos em guarda, o braço levantado emsaudação quando o trem passou fazendo barulho.Ele devolveu o cumprimento.

“Talvez o senhor queira repassar seuscompromissos para as próximas vinte e quatrohoras?”, Bormann sugeriu. “Eu trouxe a agenda.”

Hitler fez um gesto de dispensa. Bormannlimpou a garganta e tentou outro caminho.

“Führer, Hess está louco. Na verdade, oReichsminister de Informação está neste exato

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momento preparando mais uma transmissão...”“Você não sabe nada, nada, do que está

falando!” De repente, Hitler estava furioso denovo. “Nas últimas semanas eu lutei contra essatraição, imaginando o propósito. Que espada elepode empunhar para me atacar? Apenas agora euvejo que arma é essa. E devo agir com rapidezpara desviar dela.”

“Perdoeme, Führer.” Mais uma vez, Bormannolhou para o chão.

“Leve Heydrich para Berghof imediatamente.Sem demora, você está ouvindo? Tenho umamissão que apenas ele pode executar. Vocêentendeu?”

“Sim, Führer, zu Befehl. Imediatamente.”Bormann deixou o vagão, com a ordem

ecoando nos ouvidos.

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13

A torre do sino

Angelika achava que podia enxergar por dezenasde quilômetros do alto da torre do sino doconvento, que tinha janelas estreitas nos quatropontos cardeais. Olhando através delas, a meninapodia distinguir as cidades, os povoados e asmontanhas ao sul, e as estradas ao redor da costado enorme lago. Era maravilhoso olhar aquilotudo, mas, ao mesmo tempo, ela ficava triste desaber que nunca poderia andar de pedalinho nolago, muito menos visitar o continente.

Em silêncio, ela andou sobre as tábuas até a

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próxima janela e deu a volta no enorme sino debronze pendurado no meio da torre. Eramnecessárias três freiras para fazê-lo soar, e haviamdito a ela que era possível ouvilo em todo o lago.O tempo estava abafado e, mesmo com os shortsbrancos e a camiseta de algodão que usava sob ohábito de noviça feito de lã, ela estava morrendode calor e sede. Mas não se importava. Ficar alisozinha, mesmo que por uma ou duas horas, erasua atividade preferida.

A segunda coisa de que mais gostava era subirnos pinheiros do lado de fora dos muros doconvento. Era mais divertido do que subir natorre do sino, mas se a irmã Margareta a pegasseali, ficaria furiosa e, de todo jeito, não era possívelver tão longe. A irmã Margareta andava nervosanos últimos tempos, sempre de olho em Angelika,então a garota havia decidido não dar sua escapadanaquele dia. Aliás, ela se sentia vigiada por todas asfreiras, até mesmo pelas noviças, a maior parte dotempo, e sabia que as irmãs falavam dela porquemuitas ficavam em silêncio quando ela seaproximava. Por outro lado, a menina não se

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sentia incentivada a conversar com ninguém,então, ao longo dos anos, ela havia aprendido aficar feliz em passar a maior parte do temposozinha.

Sua terceira coisa favorita era visitar abiblioteca do convento. Quase todos os domingos,depois do serviço matinal e do passeio que faziapelos jardins com a madre superiora, ela tinha umaou duas horas antes do almoço para explorar asfileiras de livros nas enormes prateleiras decarvalho. Ela se debruçava sobre os atlas eenciclopédias e aprendia sobre as maravilhas queficavam fora das paredes caiadas de seu quartonaquela pequena ilha. Em especial, Angelikaadorava ler sobre as montanhas dos Alpes, queconseguia avistar da torre.

Pelo menos naquela tarde ela tinha tido sorte.A costa estava limpa, então conseguiu chegar àtorre sem ser notada. Angelika havia terminado decapinar o jardim da cozinha às três, o quesignificava que tinha uma hora antes que tivesse dese lavar e aprontar para o jantar — apenas pão eleite de cabra — e depois para as orações

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vespertinas. Ela olhou mais uma vez para asmontanhas. Só queria conhecê-las — ainda queapenas por um dia. Aquele seria o melhorpresente de aniversário que alguém poderia lhedar, pensou.

Ela faria aniversário na segunda-feira e estavaansiosa. Claro, nem as freiras nem a madresuperiora fariam nada, mas todos os anos desdeque havia chegado ao convento um homem defora vinha vê-la. Era um homem gentil quesempre trazia uma câmera, um lindo vestido euma enorme caixa de chocolates. Depois, elesempre tirava uma foto dela usando o vestido. Elenunca disse seu nome para Angelika, mas ela sabiaque os chocolates eram de Munique. Era o quedizia a caixa.

Esse seria seu quinto aniversário no convento.Cinco anos presa naquela pequena ilha. Pelomenos era verão. No inverno, o frio, a chuva e aneblina a faziam se sentir ainda mais confinada,quase como uma criminosa na prisão. Desde oinício da guerra, o clima no convento haviamudado. As freiras estavam preocupadas, e ela

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estava ainda mais infeliz. Talvez a madre superiorativesse notado, e por isso a levasse para passeartoda semana e falasse calmamente sobre opropósito de Deus para ela, sobre como eraespecial e importante, e como devia ser paciente econfiar em Deus. A garota se sentia melhor depoisdessas conversas. Os chocolates que a madresuperiora oferecia também ajudavam, mas aindaassim, em um dia como aquele, quando olhavapara o mundo lá fora como um pássaro em umagaiola, a garota desejava poder abrir as asas e voar.

Ela foi até a última janela, que dava paraHerreninsel. No fim do dia, o lago ainda estavacheio de barcos. A balsa já estava a caminho deStock; o deque, cheio de turistas com roupasclaras de verão, pequenos pontinhos de cor. Maispróximo dela, havia barcos de pesca, e um barco avela estava na metade do caminho entre as duasilhas. Ele tinha uma vela vermelho vivo e vinhanaquela direção. Angelika podia distinguir duasfiguras: uma abaixada na frente, e outra segurandoo leme e a corda da vela principal. Deve sermaravilhoso estar lá fora na água desse jeito, ela

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pensou. E então ela se levantou e verificou aposição do sol. Como não tinha relógio, haviaaprendido a dizer as horas com tanta exatidãoquanto um relógio de sol. Eram quase quatro.Hora de ir, ou corria o risco de ser descoberta.

A garota vestiu rapidamente o robe pelacabeça, colocou as sandálias de couro e desceucorrendo os degraus de pedra. Um dia, ela pensou.Um dia eu serei livre.

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14

Na água

O pequeno veleiro de Otto e Leni deslizava comagilidade pelas ondas delicadas. Ao sul havia umaaglomeração de barcos de pesca, homens puxandosuas redes. Fora isso, não havia nada na água pertodeles. Os dois estavam se movimentando commuita rapidez, e a costa de fraueninsel estava aapenas algumas centenas de metros de distância.

Otto estava sentado na popa, segurando oleme, com Leni espremida mais à frente, abombordo. Ela havia deixado as mochilasguardadas junto com a corda. Uma leve brisa

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enchia a vela, e o casco do barco estava empinadoe levemente inclinado.

Diante deles havia uma pequena enseada, apraia coberta com grandes pedras planas. Quase lá,pensou Otto. Ele sentiu alívio diante daperspectiva de atracarem em terra firme.

De repente, ouviram o barulho de umaaeronave. O zumbido de um monomotor, queficou mais alto. Otto e Leni protegeram os olhos,olhando para o céu azul desbotado quando o somficou mais alto e mais agudo, à medida que seaproximava. De repente, um avião de combateencheu o campo de visão de Otto, o bico pintadode escarlate vivo. O garoto jamais vira umdaqueles antes, e estava indo na exata direçãodeles, a menos de trinta metros acima da água. Eleviu o piloto com um capacete de voo e luvas decouro brancas, a boca aberta, os dentes à mostra.O piloto levantou a mão e acenou, assim que acorrente descendente atingiu a vela e balançou obarco de um lado para outro.

Por um momento, Otto teve um déjà-vu:estava mais uma vez na praia em Dunquerque

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sendo perseguido por balas que atingiam a areia eo mar. Ele entrou em pânico.

“Otto, não!”, gritou Leni.Mas ele já estava na lateral do barco, pronto

para mergulhar no lago. O choque da água geladaesvaziou de ar o peito do garoto. Ele bateu os péspara voltar à superfície e viu que o barco já estavaa dez metros de distância. Otto começou a nadaratrás dele, mas o bote estava indo rápido demais.O vento soprava a vela. Ele podia ver que Lenihavia ido para a popa e estava agarrando o leme.Mas ela obviamente estava com medo. Tardedemais, Otto lembrou que ela não havia se saídomuito bem nas aulas de navegação.

“Puxe o leme para você até que o barco vácontra o vento”, ele gritou, forçando-se a nadarainda mais rápido.

Para alívio dele, Leni seguiu as instruções. Aproa virou, a vela foi esvaziada e começou a seagitar. Leni se sentou, esperando Otto alcançar obarco. Assim que chegou, ele agarrou a lateral ecomeçou a se lançar para dentro. Infelizmente, foinaquele momento que Leni se levantou para

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ajudá-lo, debruçando-se para pegar o braço dele.O barco virou, jogando-a na água ao lado deOtto. O mastro e a vela afundaram, e o cascovirou.

Leni tossiu e se debateu. “As mochilas!”, elagritou.

Otto inspirou profundamente e mergulhou.Dava para ver as mochilas lá embaixo, afundandoaos poucos. Era um lago bem fundo, o garoto derepente se lembrou. E tentou não pensar emDunquerque nem na sensação da corda escapandode sua mão. Ele mergulhou e pegou a mochilamais próxima. Por um momento, Otto sentiu queestava sendo puxado para baixo como uma âncora,e então bateu os pés com toda força na direção dasuperfície, puxando a mochila junto, até que suamão livre encontrou a lateral do barco. Suacabeça emergiu, e ele respirou fundo. E entãoLeni surgiu ao lado dele, fazendo-o gritar de susto.

“Peguei a outra mochila”, ela disse, ofegante.“Você consegue nadar até a praia?”

Otto assentiu. Com a mochila em um braço,ele começou a bater os pés na direção da costa.

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Poucos minutos depois, os dois estavamlutando para chegar à praia, puxando as mochilascheias d’água pela terra escura e siltosa até aspedras maiores.

“Desculpe, Leni.”O barco virado havia flutuado atrás deles e

estava batendo contra as rochas na parte rasa.“Eu não entendo. Por que você pulou do

barco daquele jeito?” Leni olhava para ele,preocupada.

“É só que... bom, o avião me fez lembrar...uma coisa que aconteceu comigo.”

Leni assentiu, parecendo entender que ele nãoqueria falar sobre aquilo. “Bem, o piloto eratotalmente louco. Você consegue acreditar queele realmente acenou e sorriu?”

Otto ficou de pé. “É melhor não ficarmos aquià vista”, ele disse. A ilha era pequena e tinha tãopoucas árvores quanto Herreninsel. Era possívelver o contorno dos prédios principais doconvento.

Leni pegou sua mochila. “Você tem razão.Precisamos nos esconder até a noite. Vamos até as

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árvores. Acho que ainda temos um tempo de luzpara secar as coisas.” E então ela parou. “Não!”,ela disse, desapontada. “A corda, perdemos acorda!”

“Tudo bem”, disse Otto.“Não está, não! Se você não tivesse pulado

daquele jeito não estaríamos nessa situação!”“Escute, eu já pedi desculpas. Vou pensar em

alguma coisa, tá? Vá para o bosque.”“Por quê? O que você vai fazer?”, ela

perguntou, ainda brava.“Vou me livrar do barco.”Ele pegou a maior rocha que conseguiu

segurar, foi até o barco, levantou-a acima dacabeça e a soltou. A rocha rompeu a madeira docasco, fazendo um grande buraco. Otto caminhouna água, empurrando o barco e ficou observandoenquanto ele afundava lentamente.

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15

Aeródromo Schleissheim, Munique

Antes que as pás da hélice parassem de girar,Reinhard Heydrich se soltou e pulou para fora dacabine do piloto. Ele deslizou pela asa com seumacacão de voo impecavelmente branco para serrecebido pelo comandante da esquadra de vooexperimental da Luftwaffe.

“O que você acha?”“Incrível, major. Simplesmente incrível.

Pilotar esse avião é tudo o que o senhor prometeuque seria, e mais.” Heydrich ofegava deentusiasmo. “Eu agradeço muito a honra.”

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“A honra é da Luftwaffe que o senhor seja oprimeiro homem a pilotar um 190.”

“Quantos temos agora?”“Os seis primeiros foram entregues esta

semana. Mais doze até o fim do mês. Quando nósos tivermos avaliado, a produção terá início comforça total.”

“Quanto antes, melhor.”Heydrich tirou o capacete e passou a mão pelo

cabelo curto. Ele tinha quase dois metros, lábioscarnudos e olhos acinzentados e frios. Beirando ostrinta e sete anos, ele já era chefe do RSD — oServiço de Segurança do Reich — e o homemmais temido da Alemanha. E tinha o poder defazer qualquer pessoa desaparecer sem deixarvestígios. Heydrich tomou um grande gole d’águado cantil de metal que o major lhe entregou.

“Há mais uma coisa que eu gostaria de lhemostrar, se o senhor tiver tempo. Parece quenossas fábricas têm algo novo e interessante paratestarmos praticamente toda semana.”

Heyrich assentiu. “Eu sempre tenho tempoquando se trata de novos aviões.”

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Eles caminharam pelo aeródromo até a linhados hangares camufla-dos, mas assim quechegaram ao primeiro, o carro de Heyrich, umalimusine preta da Mercedes, veio na direção deles.O carro parou abruptamente, e o motorista saltoudo veículo e correu na direção deles, deixando omotor ligado.

“Mensagem urgente do Führer para osenhor.”

Heydrich abriu a mensagem e leu o conteúdo.Ele franziu a testa. “O senhor vai ter de me darlicença, major. Estou sendo chamadoimediatamente em Berghof.”

“Entendo. Talvez eu possa ajudar. Por favor,venha comigo.”

Heydrich dispensou o motorista com um gestoe seguiu o major até o hangar mais próximo. Nocentro, havia um helicóptero.

“É um Flettner Kolibri”, disse o major,visivelmente orgulhoso. “É o modelo mais novodo Hummingbird, senhor. Nós o estamos testandopara o Kriegsmarine. É dez vezes mais manobráveldo que qualquer um dos nossos aviões e consegue

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pousar em uma Reichmark.”Heydrich olhou para a máquina. Com ela,

poderia estar na casa de campo de Hitler emmenos de trinta minutos. Aquilo certamente oimpressionaria. O Führer manda chamá-lo, e eleaparece quase imediatamente, como uma águiavoando no céu.

“Peça a seus homens para ligarem para ocontrole de segurança do Führer em Berghof.Diga a eles para nos esperar. Não seria bom quenos derrubassem, seria?”

Dez minutos depois, Heydrich estava sentadona cabine aberta ao lado do piloto, os rotoresgirando acima deles. O helicóptero levantou voo,ganhando os ares imediatamente. Ele pairou porum instante, como o pássaro que lhe deu nome, eentão revoluteou e seguiu para o sul, ganhandoaltura lentamente.

Heydrich olhou para Munique lá embaixo.Pelos binóculos mal dava para ver, ao norte dacidade, o campo de concentração que a SS haviaconstruído perto da cidade de Dachau. E então aconstrução desapareceu, e ele pôde ver as novas

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Autobahns ao sul, laços cinzentos que iam em todasas direções. Realmente, pensou, não havia nadaque o Reich não pudesse fazer.

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16

O início

Estava escuro quando Leni terminou de secar,conferir e guardar tudo o que havia nas mochilas.O único prejuízo eram alguns mantimentos. Ela osjogou fora e decidiu preparar uma sopa comalguns tabletes de caldo concentrado Erbswurst,misturando-o com uma lata de carne com molho.Misturou tudo na panela. Até que o cheiro nãoestava tão ruim.

O estalo agudo e repentino de um galho deárvore caindo a fez se afastar da pequena fogueirae pegar a pistola na lateral de sua mochila. Ela

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ficou paralisada e deu um assobio de uma únicanota. Um instante depois veio a resposta em trêsnotas. Otto estava de volta.

Quando Leni serviu a sopa nas canecasesmaltadas, o garoto estava agachado ao lado dela,com suor escorrendo pelo rosto por causa do arquente e úmido daquela noite de verão. Ela lheentregou uma caneca.

“O cheiro está muito bom”, ele comentou,aproximando o nariz.

“Sim. Bom, você pode cozinhar da próximavez”, disse Leni. Otto já estava levando a sopa àboca. “Então, o que você encontrou?”

O garoto parou por um instante. “Boasnotícias. Os muros são baixos, e as freiras forampara a cama.” MacPherson havia dado aos doisinstruções precisas sobre a rotina do convento, eparecia que as freiras a seguiam à risca. “É apenasuma corrida curta do prédio principal até o píer.É muito fácil se localizar no escuro.”

Leni assentiu, aliviada. “E as outras pessoas nailha?”

“Há algumas casas de campo e um pequeno

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hotel mais adiante, exatamente como MacPhersondisse, mas não vi ninguém por aí.”

Otto terminou de tomar a sopa e estendeu acaneca para repetir.

“O único problema é a corda.”“Você acha que tudo o que eu estava fazendo

era lavar roupa e cozinhar enquanto você iabisbilhotar por aí?”

“Você pensou em alguma coisa?”“Claro que pensei”, respondeu Leni, um

pouco irritada. Ela abriu o mapa do convento quepertencia a MacPherson, e as chamas da pequenafogueira forneceram luz suficiente para que elespudessem estudá-lo.

“Aqui fica a lavanderia. Se eu conseguir pegardois ou três lençóis lá, posso cortá-los e fazer umacorda.”

“Boa ideia”, reconheceu Otto. “Eu estavapensando em algo parecido.”

“É mesmo?”, disse Leni, levantando umasobrancelha.

“Sim, mas talvez seja arriscado ficar tempodemais lá, no térreo.”

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“É por isso que vou fazer a corda aqui, nessapequena despensa que fica no mesmo andar que agarota.” Leni apontou no mapa.

“Vai levar um tempo”, disse Otto, olhandopara o relógio. “Acho que devemos ir agora.”

Leni sabia que ele estava certo e tambémolhou o relógio. Já eram mais de dez horas. A luacrescente, que estava subindo, fornecia luzsuficiente e poupava-os de acender tochas.

Os dois rapidamente atravessaram as árvoresaté a horta murada ao norte do convento. Lenipegou a mochila.

“Pronta?”, perguntou Otto.Leni assentiu, engolindo. “Estou enjoada”,

disse ela.“Eu também”, comentou Otto. “Acho que é

a sua comida.”Leni sorriu um pouco sem graça e respirou

fundo algumas vezes.“Vou esperar no píer”, Otto continuou.

“Precisamos sair da ilha no máximo às três.Começa a clarear às quatro.” Ele olhou para osponteiros fluorescentes do relógio. “Aqui está

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marcando dez e sete.”Leni olhou para o próprio relógio. “Confere.”

Ela ficou parada em pé por um instante. “Escute,se houver um problema, eu não quero que você...venha me buscar. Apenas fuja.”

“Não vai haver um problema”, disse Ottocom firmeza.

“Mas se houver...”Otto aproximou-se dela. Por um instante, Leni

achou que ele fosse abraçá-la, mas o garoto apenasentrelaçou os dedos, formando uma concha comas mãos para fazer uma alavanca para ela.

“Você vai ficar bem”, disse ele.Ela subiu nas mãos de Otto, e ele a

impulsionou para cima do muro. Ela conseguiupular e caiu pesadamente do outro lado,agradecendo pelas horas de prática naquela paredeterrível em Wanborough. A mochila caiu bem aolado, fazendo barulho.

“Três horas”, ela ouviu Otto sussurrar.

Otto ficou ouvindo o barulho dos passos de

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Leni diminuir no cascalho à medida que ela seafastava.

Quando não conseguiu mais ouvi-la, ele seguiua trilha pelo muro da horta. E então deu a voltanos muros baixos do prédio principal e passoupelos portões, que estavam fechados mas nãotrancados. A posição isolada da ilha claramenteoferecia bastante segurança aos moradores — oupelo menos era o que as freiras achavam. Umcaminho pavimentado largo o bastante para umacarroça desenhava uma linha reta até o píer.

Não havia ninguém por perto, apenas obarulho dos grilos e um morcego voando de vezem quando. Em algum lugar, um cão latiu. O píersurgiu diante dele, estendendo-se até o lago.Barcos de pesca e lanchas estavam amarrados emambos os lados. Eles esbarravam sutilmente unsnos outros, as defensas fazendo barulho. O hotel nabeira do lago estava cheio de luzes e música, masficava relativamente longe do píer.

Otto ouviu as palavras do almiranteMacPherson em seus ouvidos enquanto avançava,checando todos os barcos. Você não tem como não

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ver, Otto, é uma lancha de vinte e cinco pés, casco azule estrutura branca. Dá conta de trinta milhas náuticas, sevocê voltar para Stock em vinte minutos.

Lá estava ela. Um pequeno estandarte com osímbolo beneditino flamulava em um mastro curtona popa.

Otto pulou a bordo e foi até a cabine coberta.Havia um leme de madeira e, ao lado dele, obotão de ignição vermelho, junto com a alavancade aceleração e a alavanca de câmbio. Ele passouos dedos pelos indicadores de combustível,temperatura e pressão cromados. Apenas a chaveda ignição estava faltando.

Otto soltou a mochila, procurou alguma coisaaté que achou um pequeno estojo de couro. Ele oabriu, pegou uma chave mestra de doze tipos etentou dar partida, mas não deu certo. Entãopegou outra e tentou de novo. Pelo menos ficartentando fazer a ignição funcionar daria a ele algopara fazer enquanto esperava.

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17

Leni dentro do convento

Leni conseguiu entrar no prédio principal emquestão de minutos e ficou agachada nas sombras,recuperando o fôlego, esperando o coraçãodesacelerar e prestando atenção. Não havianenhum barulho.

Ela avançou pela ala oeste do convento atélocalizar a janela do quarto da garota no quartoandar. Leni abriu a mochila e pegou um saco delona que havia preparado mais cedo. O sacocontinha todo o equipamento de que precisaria. Eentão ela pegou o hábito cinza de noviça e o

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colocou sobre as próprias roupas. Estava umpouco úmido e cheirava a fumaça de lenha. Ela oprendeu na cintura com um cordão grosso etentou imaginar como alguém conseguia usaraquilo o dia inteiro no verão.

Em seguida, fechou a mochila e a escondeubem embaixo da janela da garota. Depois, voltoupelo mesmo caminho, mantendo-se perto daparede, com a visão agora bem ajustada àescuridão. Quando chegou à parte nordeste doprédio, descobriu que a porta da cozinha estavatrancada. Ela teria de entrar pela porta principalda capela, que, até onde sabia, nunca era trancada.Foi naquele momento que Leni viu a pequenajanela da despensa aberta. Havia uma pequena telacobrindo-a para manter as moscas e demais insetosdo lado de fora. Leni pegou sua faca e fez umcorte preciso na tela. E então ergueu-se e passoupor ali.

Assim que entrou, ela correu para a cozinha.O local estava quieto e impecavelmentearrumado. Fileiras de panelas e frigideiras estavampenduradas em ganchos nas paredes, e a longa

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mesa de carvalho estava limpa.Um pequeno corredor de pedra levava até a

lavanderia. Lá, Leni rapidamente encontrou umapilha de lençóis recém-lavados, dobrados, masesperando para serem passados e engomados.Pegou quatro.

Dez minutos depois, estava andando de meiasem silêncio por outro corredor de pedra noterceiro andar do edifício. Estava com os sapatosem uma mão, o pequeno saco de lona na outra, eos lençóis presos no mesmo braço. Ela parou aofinal do corredor, como havia feito nos primeirosdois andares, e prestou atenção. Nada. Ela subiu aescada pelo lado direito. O convento era comouma toca de coelhos. Por um ou dois segundos elase perguntou se estava indo na direção certa,sentiu uma onda de pânico e então obrigou-se anão pensar naquilo e continuou. Ela sentia o chãode pedra frio pelas meias. Quando chegou ao topoda escada, uma luz branca e ofuscante foi acesa.

“Quem é? E por que você não está no seuquarto?”

A voz da mulher era dura, indignada, o feixe

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de luz brilhava pelas paredes e pelo chão,procurando-a.

Leni deu meia-volta e desceu correndo asescadas. Ela ouviu o barulho dos sapatos naspedras.

“Volte imediatamente!”, ordenou a mulher.Leni chegou à base da escada e olhou em volta

agitadamente. No escuro, podia distinguir umaporta de madeira na parede oposta. Leni saiucorrendo e a abriu. Era um pequeno armário,cheio de baldes e esfregões. No momento em quea luz cortou a escuridão atrás dela, Leni conseguiuse enfiar no armário e fechá-lo. Por uma aberturanos painéis da porta ela viu a luz subindo edescendo pelo corredor vazio. Leni prendeu arespiração, colocou os sapatos embaixo do braçoesquerdo e usou a mão direita para pegar a facapresa à sua perna. Sua mão tremia tanto que foidifícil segurar o objeto. Ela inspirou e prendeu oar. Será que realmente mataria uma freira? Ouqualquer um? Leni se esforçou para conter umgrito que ameaçou escapar de sua boca. E então ospassos recuaram pelo corredor, e ela se lembrou

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de respirar de novo, já sem ar.Ela ficou sentada dentro do armário por cinco

minutos inteiros, e então, com cuidado, abriu aporta e saiu. O chão gelado agora estavaagradavelmente fresco. Seu corpo inteiro ardia, eo suor escorria pelas suas costas. Leni correuescada acima, quieta como um fantasma.

Ela encontrou a despensa no quarto andarexatamente onde o mapa indicava e entrou nopequeno quarto sem janelas. Pelos vinte minutosseguintes, usando a faca, cortou cuidadosamente oslençóis em longas tiras, atando-as em seguida.Quando terminou, depois do que pareceu umaeternidade, estava transpirando ainda mais. Masquando o relógio do convento deu meia-noite, elaestava pronta. Leni colocou a corda improvisadasobre o ombro e foi para o corredor. Quandopassava por cada porta, verificava a pequena placaao lado, em que estava escrito, em letras góticassimples, o nome da ocupante: irmã Ellen, irmãAgnes, irmã Rosa... Finalmente, ela encontrou oque procurava.

Do lado de fora da última porta, a placa estava

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vazia. A garota sem nome.Leni encostou a orelha na porta e tentou

ouvir. Não dava para escutar nada pelos cincocentímetros de carvalho. Talvez não houvesseninguém dentro. Talvez a coisa toda fosse umabusca absurda. Talvez ela pudesse parar agora eapenas correr de volta para Otto e voltar paracasa.

Mas ela sabia que essas não eram opçõesválidas. E moveu a maçaneta no sentido anti-horário até sentir o ferrolho abrir do lado dedentro. Leni entrou.

Era uma cela pequena e estreita. Havia umajanela com barras no fundo, uma mesa e umacadeira. Um pequeno guarda-roupa ficava àdireita, e uma cama estreita, à esquerda.Dormindo na cama estava a garota. Angelika. Elaestava deitada de costas, com o cabelo castanhoespalhado no travesseiro. Os traços dela eramlargos e comuns, e as bochechas, bem redondas.Leni sabia que a garota tinha nove anos, masparecia mais nova dormindo.

Leni sentiu um arrepio. O suor estava agora

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úmido sob as roupas dela. Mas não era só isso, elapercebeu. Era aquele quarto, tão frio e espartano,que a fazia tremer. Não havia nada que sugerisseque era o quarto de uma criança — sem ursinhosde pelúcia, bonecas, brinquedos nem desenhoscoloridos na parede, como no antigo quarto deLeni em Viena. Ela tinha até seu própriogramofone, além de alguns livros de oração sobrea mesa.

Leni estava prestes a acordar gentilmente agarota quando ouviu passos no corredor. Ela ficoutotalmente imóvel, prestando atenção. Os passosestavam cada vez mais próximos e então pararam.Bem do lado de fora do quarto.

Leni se jogou embaixo da cama, empurrandoum penico, assim que a porta se abriu e o feixe deluz cortou a escuridão. Leni se espremeu contra aparede sob a cama e ficou observando um par desapatos pretos atravessar o quarto e parar bemdiante de seu rosto. As molas da cama rangeramquando a freira chacoalhou bruscamente a garotadormindo.

“Você pode enganar as outras, menina, mas

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não me engana, eu sei que você não estavadormindo!” Era a mesma freira que a haviaperseguido, a mesma voz severa e brava.

A garota se sentou, sonolenta. “Eu não estouentendendo, irmã Margareta.” Ela falava com umleve sotaque bávaro. “Do que a senhora estáfalando?”

“Estou falando de garotinhas escapando depoisque as luzes se apagam. Você estava na cozinha denovo, não é, sua porquinha gulosa!?”

“Não, eu não estava, juro por Deus.”“Como você ousa dizer o nome do Senhor

em vão? Uma garrafa de leite vazia, num piscar deolhos.” A freira estava indignada.

A mente de Leni estava em ebulição, à beirado pânico. Ela precisava fazer alguma coisa erápido. Antes que a irmã Margareta estragassetudo.

“Acho que a madre superiora precisa saberdisso...”

Oh, não... ela não ia descer agora, ia?“Por favor, eu não fiz nada de errado.” A

garota implorava.

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“Oh, poupe-me das suas mentiras! E nada decafé da manhã para você. Nada de café da manhãpara ladras. Você está ouvindo?”

Da maneira mais silenciosa possível, Lenilevou a mão ao saco de lona, pegou um frasco demetal, abriu a tampa e, com cuidado, despejou umpouco do conteúdo claro em uma compressa degaze. Era éter misturado com clorofórmio.

“Que Deus a perdoe por sua maldade. Venhaagora!” De repente, os pés da freira pararam de semover. “O que é esse cheiro estranho?”

Leni atacou, deslizando de baixo da cama comum único movimento.

A irmã Margareta ficou olhando para ela emcompleto choque.

“Que brincadeira de mau gosto é essa?”, elaperguntou, ofegante.

Leni ficou de pé e se jogou sobre a freira,pressionando-a contra a parede. Ao mesmotempo, colocou a compressa sobre o nariz damulher.

A irmã Margareta era baixa e miúda, poucomais alta que Leni, e certamente menos forte. A

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freira lutou, tentando afastar a gaze, mas em vintesegundos deslizou até o chão inconsciente. Lenicorreu até a porta, fechando-a com cuidado. Eentão apagou a lamparina da irmã Margareta. Oquarto mergulhou de novo na escuridão.

Angelika estava encolhida no canto da cama,abraçando os joelhos. Ela estava muito pálida ecom a respiração ofegante. Mas não havia gritado.Isso era bom. Leni levou o dedo aos lábios, e agarota assentiu.

“Por favor, não grite, Angelika”, Lenisussurrou.

A garota a encarou. “Como você sabe meunome?”

“Vou explicar tudo em um minuto, masprimeiro preciso cuidar da irmã Margareta.”

Leni parou para pensar por um instante. Tudoo que estava fazendo era novo, e nenhumtreinamento poderia ajudar. Ela fez uma pequenalista mental: freira, corda, fuga . E então pegou afaca, levantou a corda improvisada acima dacabeça e a deixou cair no chão. Ela encontrouuma ponta e cortou alguns pedaços curtos.

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“Você pode me ajudar?”, ela pediu à garota.Angelika olhou para Leni em dúvida e depois

olhou para baixo, para sua algoz caída no chão depedra. Levantou da cama.

“O que você quer que eu faça?”, elaperguntou.

“Levante os pés dela, por favor.”A garota menor hesitou e em seguida levantou

os pés da irmã Margareta do chão. Lenirapidamente juntou e amarrou os calcanhares dafreira e a virou para que ficasse deitada de bruços.Ela levou os braços da mulher às costas e osamarrou também. E então as duas a deitaram decostas de novo, e Leni fez uma mordaça com umatira de lençol.

Angelika ficou observando enquanto Leni agia.“Estamos muito encrencadas”, disse ela.

“Não, vai ficar tudo bem”, Leni a acalmou.“Você me ajuda a colocá-la na cama, Angelika?”

Fazendo um esforço supremo, elasconseguiram levantar a freira, e — meioarrastando, meio levantando — puseram a mulherna cama.

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Leni puxou o cobertor até a cabeça da freira.“Você é forte”, ela comentou, e viu a garota

sorrir em meio à escuridão.“Quem é você?”, perguntou Angelika.“Meu nome é Leni, Leni Fischer.”“Oh”, exclamou Angelika, que percebeu

naquele momento que tinha feito uma perguntaboba. “O que você está fazendo aqui?” Essa eramelhor.

Leni subiu na mesa, se inclinou e abriu ajanela. Elas estavam a uns bons vinte metros dochão. Torcendo para ter corda suficiente, elaolhou para a garota, que a observava.

“O que parece? Eu vim resgatar você.”“Me resgatar?”Leni fez um laço em uma das pontas da corda

e, com cuidado, prendeu-o ao trinco de ferro dajanela. Depois, jogou o resto lá embaixo e deu umpuxão no laço para garantir que estava bem preso.

“Isso mesmo. Quer dizer, não vim exatamenteresgatá-la, vim tirá-la daqui. Vou levar você paraa Suíça.”

“Por quê?”, quis saber Angelika. Ela parecia

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confusa, como era de se esperar.“Bem....” Leni não queria se perder em

explicações. A qualquer momento, a porta poderiase abrir, e elas seriam capturadas. E asconsequências disso eram impensáveis. “Escute,por favor, confie em mim. É para o seu bem, eujuro.”

A garota estava com o cenho franzido. Lenisentiu um pânico terrível aumentar no peito.

“Eu sei que tudo parece estranho e chocante,mas, de verdade, eu estou aqui para ajudar você.Por favor, diga que você vai vir comigo.”

Os segundos estavam se tornando minutos, e otempo estava acabando. Leni tentou manter a vozcalma.

“Eu prometo explicar tudo melhor, mas agoranós precisamos ir.”

Angelika enfim reagiu à urgência na voz deLeni e olhou para a porta, claramente pensandonas freiras bravas.

“Agora. Temos um barco à nossa espera.”Leni podia ver que a garota estava sofrendo

para tomar uma decisão. Ela pensou na gaze

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embebida em anestésico que ainda estava em suamão. Se ela não respondesse logo, Leni teria dedrogar a garota e tentar descê-la pela corda. Seriaum inferno.

Angelika olhou para Leni, depois para a irmãMargareta deitada na cama e, finalmente, para ochão de pedra e as paredes nuas. “Eu não queroficar aqui. Eu odeio este lugar”, ela disse.

“Pegue a minha mão, Angelika, agora.”Angelika estendeu a mão, e Leni a puxou para

a mesa. A menina mais nova segurou a corda comforça.

“Você acha que consegue descer?”Angelika passou as pernas pela borda da janela.“Subir em árvores é tudo o que eu consigo

fazer por aqui. Fiquei três dias em detenção porcausa disso no mês passado”, ela contou, descendopela janela em seguida. Leni olhou para a gaze emsua mão, hesitou por um momento, e então foirapidamente até a freira. Ela tirou o cobertor dorosto dela e colocou a gaze sobre o nariz e a bocada irmã Margareta. Isso definitivamente a manteriadesacordada até o dia seguinte. Depois, correu

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para a janela.Lá fora, no chão, Angelika esperava por Leni,

que descia os últimos metros. Leni pegou a cordae fez um movimento esquisito que balançou-a porinteiro. Depois de mais ou menos um minuto,sentiu a corda se soltar da janela e cair, formandoum amontoado de lençol a seu lado. Ela arecolheu, enrolou e passou pela cabeça. Tudopronto.

“Aposto que você conhece esse lugar como sefosse a palma de sua própria mão”, ela disse àgarota.

Angelika sorriu sob a luz da lua.“Especialmente à noite”, ela murmurou. “Quandoestou com sede.”

“Mas você não tomou aquele leite”, disseLeni.

“Não, dessa vez não”, disse Angelika, e entãofranziu a testa. “Mas como você sabe?”

“Porque fui eu!”, disse Leni.Angelika abriu ainda mais o sorriso e pegou a

mão de Leni.

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18

20 de junho de 1941 — Dia dois

Assim que viu a luz da lamparina piscar três vezes,Otto sentiu que podia respirar de novo. Leni tinhaconseguido.

Ela estava com Angelika e as duas estavam acaminho do píer. Ele respondeu piscando quatrovezes e quase imediatamente Leni piscou maisduas vezes de volta. Essa era a sequência que osdois haviam combinado durante o jantar. Sealguém a pegasse, Leni teria piscado quatro vezes,e Otto não saberia o que fazer. Fugir ou tentarresgatá-la? Ele gostava de pensar que teria tentado

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resgatá-la, mas... Bem, não era preciso pensar nissoagora. Era pouco mais de meia-noite, de acordocom o relógio do convento e seu relógio de pulso.Eles estavam adiantados.

Cinco minutos depois ele conseguiu distinguirLeni e a figura de uma garotinha correndo pelopíer, seus pés faziam barulho nas tábuas. Elecorreu até a popa do barco. Elas estavamofegantes, mas estavam lá. Era só o que importava.

“Nós viemos correndo”, disse Leni, ofegante.Otto sentiu que ela tremia quando a ajudou a

embarcar.E então estendeu a mão para a garota menor

quando ela embarcou. Então essa era a criança.Ela era menor do que Otto imaginava, com ocabelo castanho balançando sobre os ombros.Parecia uma típica garota do interior da Baviera.Por que ela era tão importante? Ele se esqueceuda questão por um minuto. O importante era quehavia uma tarefa a cumprir. E a tarefa era entregaressa garota para MacPherson na Suíça o maisrápido possível.

“Eu sou Otto, a propósito”, ele disse.

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“Angelika. Muito prazer.” Ela fez umapequena reverência.

Ele riu. Otto imaginou que ela tivesseaprendido a cumprimentar as pessoas dessamaneira com as freiras. “O prazer é meu”, disseele, fazendo uma reverência ainda mais formal.“Sente-se. Fique à vontade no nosso luxuosoiate.” Otto sorriu para a garota e então olhou paraLeni. “Eu estava ficando preocupado”, elesussurrou. “Você sumiu por muito tempo. Deutudo certo?”

Leni assentiu, recuperando o fôlego. “Sim...mais ou menos... a maior parte.” Ela tirou amochila e a colocou no deque do barco.

“Ela derrubou a irmã Margareta”, contouAngelika, ofegante, olhando para Leni com umtoque de admiração.

“O quê?”, perguntou Otto.“Eu sei!”, respondeu Angelika. “Você

acredita?”“Não foi nada...” A respiração de Leni ainda

estava irregular.“Ela a amarrou e colocou na cama.” Angelika

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ria nervosamente. “Foi...”, ela procurou a palavracerta, “espetacular!”

“Parece que sim”, murmurou Otto.“Podemos ir embora daqui?”, perguntou Leni.Otto assentiu e desamarrou a corda da popa.O barco flutuou livremente no ancoradouro.

Otto não tinha certeza da direção em que acorrenteza do lago os levaria, mas, por sorte, elescomeçaram a ir para o norte, afastando-se da ilhaonde haviam embarcado. Os três ficaram sentadosquietos por alguns minutos até que o garoto viu ocontorno do campanário do convento contra océu noturno e imaginou que eles estavam aalgumas centenas de metros dali. Então, deu apartida com a chave mestra, prestou atenção porum instante nas bombas de combustível roncando,e afundou o dedo no botão da ignição. Os motoresderam a partida. O barulho parecia um disparo nosilêncio da noite.

Ele empurrou a alavanca de aceleração para afrente, e a lancha se afastou da ilha, rumo a Stock.A proa cortava a água, o casco azul brilhava noescuro, e um espesso rasto branco se abria atrás

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deles.Leni se inclinou para a frente e tirou a corda

feita de tiras de lençóis que estava atravessada emseu peito. Ela levantou, se equilibrou e a atiroupara fora do barco. Em seguida, se sentou de novoe colocou o braço em volta de Angelika. De vezem quando um pouco de água espirrava no rostodelas.

“Você está bem?”, Leni perguntou à garota.Angelika olhou para Leni e sorriu. “Acho que

sim”, ela respondeu e apertou a mão da garotamais velha. “Eu me sinto como se estivesse numsonho.”

“Eu sei”, disse Leni.Otto rezou para que não se transformasse em

um pesadelo. Ele diminuiu a potência dos motorespara marcha lenta a algumas centenas de metrosdo píer principal de Stock e avistou um barco avapor atracado ali. Quando estavam a cinquentametros, desligou o motor completamente,deixando o barco deles à deriva. Otto não podiaacreditar. Ele finalmente tinha conseguido atracarbem um barco. Se o instrutor deles pudesse ver!

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Ele deixou as garotas desembarcarem e entãosaltou no píer e soltou a corda. Agora, sóprecisavam que a correnteza escondesse seusvestígios levando o barco.

Ainda teriam de encarar umas boas horas deescuridão, e o povoado estava deserto. Eles foramaté a pequena igreja de pedra que Otto havianotado no dia anterior. Era a única construção quecom certeza estaria destrancada e vazia àquelahora da noite.

Quando os três entraram na igreja, Otto aslevou até a sacristia na lateral do altar. Ele fechouo ferrolho, riscou um fósforo e acendeu a arandela.Leni tirou o hábito de noviça e sinalizou para queAngelika fizesse o mesmo.

“O que você está fazendo?”, Angelikaperguntou, enquanto Otto revirava uma dasmochilas antes de pegar roupas menores.

“São para você, devem servir”, disse ele.Leni começou a ajudar Angelika a se vestir.

Como tinha só nove anos, devia usar o uniformede verão da Bund Deutscher Mädel, a Liga deMeninas Alemãs.

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Otto se aproximou dela com um tubo queparecia conter algo como tinta a óleo. “Tambémprecisamos tingir seu cabelo de uma cor diferente,Angelika.”

“Por quê?”, Angelika franziu a testa.“Vai nos ajudar a chegar à Suíça mais rápido.

Fique parada, por favor.” Ele apertou o conteúdodo tubo e começou a passá-lo no cabelo da garota.Leni terminou de abotoar o vestido e assumiu atarefa dele. Otto passou um pouco de tinta nopróprio cabelo.

“É uma espécie de disfarce?”, perguntouAngelika. “Como se fantasiar?”

“Isso mesmo”, respondeu Leni. “Vamos fingirque somos uma família, viajando junta pelaBaviera.”

“Uma família?”, Angelika olhou para eles.“Você quer dizer, como se vocês fossem meuirmão e minha irmã?”

“Sim, seu irmão e sua irmã mais velhos”, disseOtto, acrescentando, “então precisamos ficarparecidos. Se você não se incomodar com isso.”

Angelika franziu o cenho. “Mas como nos

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chamamos?”“Nós somos os Fischer, de Salzburgo. Vamos

explicar tudo assim que estivermos na estrada.”Leni terminou de passar a tintura em Angelika

e rapidamente começou a tingir o próprio cabelo.“Eu sempre quis ter um irmão e uma irmã.”“Bem, agora você tem.”Eles esperaram vinte longos minutos até que a

tinta fizesse efeito e então lavaram o cabelo na piao melhor que puderam. A água estava gelada, eLeni deu um grito por causa do choque. Ela secouo cabelo de Angelika com o hábito de noviça efez o mesmo com o próprio cabelo antes depentear as duas. Otto penteou o próprio cabelocom os dedos. Os três agora estavam loiros.Juntos, uniformizados, eles pareciam garotospropaganda do Terceiro Reich.

A voz de Leni estava baixa, mas era impossívelnão notar a raiva. “Eu detesto essas roupasidiotas.”

“Eu também.” Otto tocou o braço dela. “Masvamos tentar não pensar nisso.” Ele entregou aAngelika um par de óculos com armação de

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tartaruga. “As lentes são de vidro.”Hesitante, Angelika pegou os óculos e os

experimentou. Parecendo uma coruja, ela piscou.“Eu adorei! As freiras da biblioteca usam óculos.Eu pareço uma bibliotecária?”

Leni fez que sim com a cabeça. Atransformação era impressionante.

“Ninguém vai reconhecer você agora,irmãzinha”, disse ela.

Angelika franziu a testa de novo. Era muitacoisa para absorver, mas ela estava reagindoincrivelmente bem até aquele momento. “Por queas pessoas não podem me reconhecer? Alguém vaivir nos procurar?”, ela quis saber.

“As freiras. Só as freiras”, respondeu Leni,rapidamente.

“Vamos indo? Quanto antes partirmos, maiscedo chegaremos à Suíça.” Ansioso por não deixá-la mais apreensiva, Otto se aproximou da menina.

Ela se afastou. “Mas o que tem na Suíça? Porque estamos indo para lá, de verdade?” Angelikalevantou o queixo. Agora que estavam longe doconvento, e ela estava em um novo lugar com

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pessoas novas, parecia estar se dando conta do quehavia feito.

Leni olhou para Otto: eles precisavam dizeralgo para a menina. Aquele era o momento decontar à garota a história de MacPherson.

Leni pegou a mão dela. “Porque os seus paisestão na Suíça, Angelika.”

A garota arregalou os olhos. “Meus pais?Mas... não é possível! Eu não sei nada sobre osmeus pais...”

Leni colocou o outro braço em volta damenina. “Bem, estamos aqui para ajudá-la aencontrá-los. Você é uma criança muito especial,e as pessoas que colocaram você naquele lugar nãoqueriam que você soubesse a verdade.”

“Mas por quê?”, ela quis saber. Angelikaestava começando a parecer confusa e, pior ainda,os olhos dela estavam cheios de lágrimas.

“Nós não sabemos”, disse Otto. “Nossotrabalho é levar você até o outro lado da fronteiranas próximas vinte e quatro horas antes que elespercebam o que aconteceu e tentem recapturá-la.”

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“Me recapturar?”Otto viu que ela estava realmente alarmada

agora. E amaldiçoou as palavras que escolheu.“Não recapturar você, por assim dizer. Mas as

freiras vão ficar preocupadas, naturalmente. Elasvão querer encontrá-la, garantir que você esteja asalvo.” Ele sorriu para confortá-la o máximopossível.

“Sinto muito. Eu sei que é um choqueterrível”, Leni acrescentou.

Os três ficaram parados em silêncio. Leni seabaixou e amarrou os sapatos de Angelika com umlaço duplo. E então ela se levantou e colocou asmãos nos ombros da menina.

“Quanto tempo você ficou na ilha?”, elaperguntou.

“Quatro anos, trezentos e sessenta e dois dias eaproximadamente trinta minutos. Eu tinha cincoanos quando cheguei. E segunda-feira”, elaacrescentou, com um quê de orgulho, “é meuaniversário. Vou fazer dez anos.”

O almirante MacPherson não havia dito que oaniversário dela estava chegando. Talvez não fosse

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relevante, pensou Otto. Mas ele se perguntou oque mais não havia sido dito.

“Bem, você vai poder ter a festa maismaravilhosa do mundo com seus pais, não é?”,Leni disse, alegre.

“Você acha?”, Angelika perguntou. “Eu nuncaos conheci. Ninguém nunca me disse nada sobreeles.”

“Temos certeza, não temos, Otto?” TantoLeni quanto Angelika olharam para ele.

Otto concordou com o máximo desinceridade que pôde. Mas tudo de que ele tinhacerteza naquele momento era de que precisavamse afastar daquela cidade o mais rápido quepudessem. Ainda não havia luz no céu, mas oamanhecer chegaria logo.

“Mas, escute”, disse Leni, “se você não quiservir conosco, tudo bem.”

Otto olhou para Leni. O que ela estavafazendo?

“Nós podemos deixá-la na doca”, Lenicontinuou, “e você pode explicar tudo à madresuperiora pela manhã.”

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“Leni, o quê...”, Otto começou a perguntar.“Mas se decidir vir conosco, nós prometemos

fazer tudo o que pudermos para mantê-la a salvo elevá-la para a Suíça.”

“E os meus pais estarão mesmo lá?” Angelikaolhou para Leni. “Eu vou poder descobrir quemeles são?” A esperança nos olhos da menina eraquase dolorosa de se ver.

Otto se perguntou o que Leni diria. Ela seriacapaz de dizer a essa garota uma mentira tãoterrível?

“Sim”, disse Leni, com firmeza.De repente, o relógio da igreja soou,

assustando-os. Aquilo fez com que a garotatomasse uma decisão.

“Eu sinto muito”, disse Angelika. “Eu ficograta que vocês tenham me ajudado a sair daquelelugar. De verdade. É só que...” Ela hesitou. “Euvou com vocês.”

Leni se inclinou para a frente e a abraçou.Otto rapidamente recolheu todas as evidências

de que eles haviam passado por ali e colocou tudonos hábitos que Leni e Angelika retiraram. E

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então enrolou-os até formar uma bola.“O que você vai fazer?”, perguntou Leni.“Vamos jogar fora no caminho.” Ele olhou

rapidamente em volta para garantir que não tinhaesquecido nada. “Prontas?”

As três bicicletas ainda estavam onde haviamsido escondidas, embaixo de uma lona no fundodo estaleiro.

“São umas duas horas até Rosenheim”, disseOtto, levando sua bicicleta até a rua. Ele olhoupara trás. Angelika estava parada, segurando abicicleta pelo guidão. “O que foi, Angelika?”

Os olhos da menina finalmente se encheramde lágrimas. “Eu não sei andar de bicicleta.”

Leni e Otto se entreolharam horrorizados. Elesnão haviam pensado nisso. Os dois haviampresumido que toda criança sabia andar debicicleta.

“Eu pedi para as freiras uma vez”, Angelikacontinuou, “mas a madre superiora se recusou. Eladisse que não queria que eu me machucasse. Elasempre dizia isso, me impedindo de fazer qualquercoisa divertida, como correr, pular ou subir em

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árvores.”Otto olhou para ela. “Está tudo bem, você

pode vir na minha garupa.” A bicicleta dele eraum modelo de adulto, com uma garupa de açosobre a roda traseira. Ele ajudou Angelika a subir,e então levou a bicicleta até a rua. Isso os faria irmais devagar. Mas só restava desejar que não osatrasasse demais.

Otto chutou o pedal e encaixou o pé, comuma sensação de urgência tomando conta dele.

“Segure-se!”, ele disse, olhando para trás, paraAngelika.

“Pode deixar”, ela respondeu baixinho.Ele pisou com força no pedal, tentando não

cambalear enquanto se ajustava ao peso extra naroda traseira, e logo conseguiu ganhar velocidade.E então Leni estava ao lado dele.

Eles se entreolharam rapidamente. Umamistura de alívio e incredulidade. Eles tinhamconseguido resgatar a garota, mas em que enroscotinham se metido?

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19

Uma surpresa desagradável

O barco da polícia já esperava no cais quando umOpel sedan não identificado chegou ao porto deStock. Era bem cedo.

Heydrich havia passado a noite em Berghof eido para Chiems-ee pouco depois das sete. Aviagem havia levado cerca de quarenta minutos.Ele escolhera o carro mais simples que encontrouem Berghof e tinha ordenado que não houvessenenhuma flâmula identificando-o como SS. Elequeria que a visita passasse despercebida e haviatrocado seu uniforme e boina da Totenkopf — a

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cabeça da morte — por um terno de verão cremee chapéu-panamá.

No entanto, assim que pisou no píer para ir atéo barco, todos em volta, comerciantes epescadores, olharam para ele atentamente. Alguns,claro, o reconheceram. Sabiam se tratar demembros importantes do partido. E ele eraclaramente muito importante. Não apenas isso,mas o chefe da polícia local, pálido de ansiedade,o saudou com polidez antes que Heydrich pudesseimpedi-lo.

Heydrich embarcou carrancudo. O barco seafastou do porto e seguiu para Fraueninsel. Nãohavia nada que pudesse retardar a viagem. Umaleve correnteza fazia a proa balançar um pouco.Heydrich havia sobrevoado o lago no dia anteriorpor diversão, mas agora estava ali por outromotivo.

Ele dispensou o insistente chefe de polícia e seacomodou na cabine, colocando um envelope depapel pardo sobre a mesa de teca polida que haviadiante dele. O Führer só havia conseguido falarcom ele por poucos minutos na noite anterior,

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numa audiência particular na sala de estar dopróprio Hitler. Ele havia pego a mão de Heydriche a apertado com firmeza, olhando-o nos olhos.“Tenho uma tarefa especial que desejo colocar emsuas mãos.”

Heydrich havia ficado profundamente honradopela confiança depositada. Com calma, o Führerhavia contado a ele sobre uma criança, umamenina, vivendo em Fraueninsel, e comoacreditava que o traidor Rudolf Hess poderia terrevelado a existência dela para os ingleses.Portanto, era de máxima importância para ele epara a pátria que a garota fosse levada para umnovo local de segurança, que não fosse permitidoque ela deixasse o Reich em hipótese nenhuma.

Heydrich assegurou ao Führer que colocaria aprópria vida a serviço da tarefa.

O motor vibrou abaixo dele quando Heydrichrompeu o selo do envelope e retirou a única folhade papel em que as ordens específicas haviam sidodatilografadas. Ele notou que a assinatura na parteinferior era de Hitler.

Ele rapidamente passou os olhos pelo

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documento. Então, deveria levar a criança deavião para Schloss Fürstenstein. Ele conhecia bemo castelo. Falava-se sobre o local se tornar aresidência oficial de Hitler quando a guerraestivesse ganha. Uma vez lá, ele a entregaria aoscuidados da equipe de segurança. Não deveriahaver absolutamente nenhum registro dessaordem.

Heydrich pegou o isqueiro e o acendeu. Eledeixou que a chama amarela tocasse o canto dapágina e ficou vendo o papel se transformar emcinzas e sair voando.

Logo, os motores diminuíram a velocidade, eele viu o longo píer de madeira do conventoentrando em seu campo de visão. Minutos depois,ele desembarcou, com o chefe de políciasaudando-o com elegância.

“Espere aqui”, disse Heydrich, que parou emseguida quando um homem de meia-idade emroupas de navegação gastas veio correndo até ele.

“Chef der Polizei! “,gritou o homem. “Quesorte! Estávamos mandando uma mensagem para osenhor. O barco do convento foi roubado. Na

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noite passada. É muito estranho.” Ele olhou paraHeydrich, mas não o reconheceu.

O chefe de polícia estava visivelmenteenvergonhado que um crime tivesse sidocometido em sua jurisdição e relatado na presençade um visitante do alto escalão. “Tenho certezade que há uma explicação simples, Klaus”, eledisse ao homem, levando-o para o lado. “Vamosaveriguar.”

Heydrich os deixou falando sobre o assunto emarchou rapidamente até o convento, ondedeixou uma jovem freira já afobada em pânicoquando ordenou a interrupção das oraçõesmatinais da madre superiora e que ela fosse buscarAngelika imediatamente.

Dez minutos depois, estava andando lado alado com a madre superiora até o quarto damenina. Angelika não havia aparecido para o caféda manhã nem para a missa. A madre superioraparecia preocupada — o que o deixoudesconfortável.

“Eu imagino que ela ainda esteja em seuquarto”, disse a freira. “É difícil dormir nessas

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noites tão quentes de verão, e às vezes osmembros mais jovens da nossa comunidadetendem a se demorar na cama. E, claro, nãoestávamos preparados para a sua visita. Nósesperamos um visitante para Angelika noaniversário dela todo ano — Herr Hess...”

Ela parou, com o rosto vermelho, como senão tivesse certeza de que esse nome aindapudesse ser mencionado, e então prosseguiu. “Masisso só vai acontecer na segunda que vem, diavinte de dois. Eu faço uma anotação em vermelhono meu diário.”

“Sei”, disse Heydrich, com delicadeza,lentamente virando o brim

do chapéu que tinha nas mãos quando pararamdo lado de fora do quarto com a placa sem nome.

“Bem, aqui estamos.” Ela virou o trinco eabriu a porta. Heydrich viu o corpo da mulherarquear de alívio.

Angelika parecia dormir profundamente,totalmente coberta pelo lençol. Aliás, ela estavaroncando bem alto.

“Vamos, menina boba.” A madre superiora

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batia palmas enquanto se aproximava da cama parapuxar as cobertas. Ela ficou paralisada.

Em vez de uma menina de nove anos, haviaali uma freira, com as mãos e os pés amarrados,claramente inconsciente. A janela estavaescancarada.

“A senhora tem uma explicação para isso,madre superiora?”, disse Heydrich em voz baixa egrave.

“Eu... não entendo. A garota deve estar forade si. Sabe, quem faria algo assim?”

Heydrich assentiu. “De fato, quem?” Ele seinclinou para a frente e retirou a gaze embebidaem anestésico do rosto da freira. Ele a cheirou.“Clorofórmio.”

A madre superiora arregalou os olhos. “Não sepreocupe, ela será encontrada. Todos irãoprocurá-la imediatamente.”

“A senhora está ciente de que a lancha doconvento foi roubada ontem à noite?”, eleperguntou.

O rosto da mulher ganhou uma coloraçãoacinzentada. “Talvez a senhora queira me

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acompanhar à sua sala, reverenda madre? Precisodar um telefonema.”

“Infelizmente, nós não temos telefone.”“Que pena. Ainda assim, existem questões que

precisam ser discutidas. Questões sérias.”“Claro.” A madre superiora parecia ainda mais

pálida quando deixou o quarto e começou adescer o corredor.

O escritório dela ficava num cômodo grande,coberto com painéis de carvalho. As paredesestavam repletas de imagens de santos. As janelascom grades davam para o outro lado do lago.

A freira andou com rigidez até a mesa e sesentou.

Heydrich fechou a porta, mas permaneceu depé. “Tenho certeza de que a senhora entende agravidade da situação, reverenda madre.”

Ela parecia totalmente aturdida. “Não façoideia de por que ela fugiria...”

Heydrich balançou a cabeça lentamente. “Elanão fugiu, e a senhora sabe.” A voz dele era ummonocórdio, a raiva disfarçada por umdistanciamento profissional. “Sua única

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responsabilidade era mantê-la a salvo, e a senhorasimplesmente falhou nessa missão.”

A madre superiora assentiu. Era tudo o quepodia fazer.

“Não vou segurá-la mais. Como a senhorapode imaginar, cada segundo é precioso. Háapenas um documento de que vou precisar.” Elelevou a mão ao bolso e pegou uma caneta-tinteiro. “A senhora tem uma folha de papel?”

Ela abriu a gaveta do meio e tirou uma folhapautada.

“A senhora vai escrever o seguinte: ‘Venhopor meio desta expressar meu profundoarrependimento e vergonha...’.” Ele fez uma pausaenquanto a madre superiora começava a escrever.“‘por meu completo e absoluto fracasso em cuidardo bem-estar de uma criança inocente. Ao fazê-lo, desgracei a mim mesma, ao meu Führer, aomeu país e...’” Heydrich obteve um prazerespecial na frase a seguir, “‘e a minha igreja. Violeicriminalmente o dever sagrado que me foiconfiado. Não é sem pesar que devo tomar aseguinte atitude’.”

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Heydrich fez uma pausa e deu a volta na mesa.Ele ficou parado ao lado da freira, olhando decima a bela caligrafia gótica no papel.

“Sim, isso é suficiente. Assine para mim.”A madre superiora franziu o cenho. “A carta

está terminada?”“Está, sim. Assine.”A madre superiora acrescentou seu nome e

cargo. Ela baixou a caneta e esperou. “Eu nãoentendo”, ela disse após um segundo. “Queatitude o senhor quer que eu tome?”

“Esta”, disse Heydrich, colocando o cano desua pistola de serviço na têmpora direita damulher e puxando o gatilho.

Ele soltou a arma na mesa, com o sangue jáescorrendo e se espalhando, e então abaixou epegou a mão sem vida da freira. Ele a colocousobre a pistola. Suicídio, um pecado capital. Demaneira nenhuma ela receberia um funeral cristão.Um destino terrível para quem acreditavanaquelas bobagens.

Heydrich saiu para o corredor de pedra. Asfreiras já corriam na direção dele, enquanto o

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barulho do disparo, ainda levemente audível,ecoava pelo convento. Ele passou por elas. Haviamuito a fazer.

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20

O plano de Otto

Angelika não reclamou nenhuma vez enquantoeles percorriam as estradas do interior, passandopor buracos na escuridão. Leni estavaimpressionada. Ela esperava uma garotinhamimada e reclamona, mas Angelika ficou sentadaquieta na garupa de metal, cantarolando umamúsica que só ela conhecia. Talvez a meninaestivesse apenas feliz por estar viajando para algumlugar, qualquer lugar, depois de cinco anosconfinada. Ela havia sido corajosa no conventotambém, Leni pensou, e sentiu uma ponta de

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curiosidade para conhecê-la melhor. Então, ela selembrou de MacPherson dizendo aos dois para nãoficarem amigos da menina. Ele sempre se referia aela simplesmente como a “carga”, como se elafosse uma coisa que se envia pelo correio.

Já estava amanhecendo quando eles chegaramao porto de Rosen heim. Fios vermelhos ealaranjados riscavam o céu azul-escuro da noite, equando chegaram à estação de trem, estava claro.Os três deixaram as bicicletas a uma distânciacurta da estação, e Otto foi procurar algo paracomer. Leni e Angelika se esconderam em umapassagem perto da bilheteria, de onde tinham umaboa visão das pessoas que iam e vinham.

Leni estava começando a se perguntar ondeOtto estava quando ele voltou com doces e ocantil cheio de leite morno. A cidade estavaacordando, e as ruas estavam se enchendo degente. Os bancos em frente à estação estavambanhados pela luz do sol do começo da manhã.

“Venham, vamos sentar em um dos bancos.”Leni pegou Angelika pela mão.

“Nós devíamos ficar aqui, escondidos”, disse

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Otto, mas as garotas o ignoraram e seacomodaram sob o sol. Otto as seguiu, suspirando,enquanto distribuía a comida. Era tão cedo queele tinha sido o primeiro cliente na padaria econseguira comprar três rosquinhas cheias degeleia de ameixa. Angelika olhou maravilhada paraa iguaria desconhecida.

“O que foi?”, perguntou Otto enquantodevorava a sua rosquinha.

“Nada, não foi nada. É só que...” Faltarampalavras à garota, e ela mordeu a borda,saboreando-a antes de dar uma mordida grandeque fez a geleia escorrer por seu rosto.

“Não coma tão rápido”, repreendeu Leni.“Você vai ficar com dor de barriga.”

A menina se deu conta de que estava falandocomo a mãe, e por um instante sentiu um apertode saudade. As irmãs dela provavelmente estavamindo a pé para a escola naquele momento, com asbolsas de couro penduradas no ombro.

“Eu não me importo”, disse Angelika,enfiando o último pedaço de massa morna naboca. “É tão gostoso!”

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“Eu sei”, disse Otto. “Muito melhor que acomida inglesa.”

Leni olhou para ele. Que idiota!, ela pensou.Otto balançou a cabeça, desculpando-se.Felizmente, Angelika estava engolindo o leite enão parecia ter prestado atenção ao que ele disse.

“Certo, o trem para Innsbruck parte em seteminutos”, disse ele, rapidamente mudando deassunto. Otto vasculhou o bolso da calça e pegouas passagens, entregando duas a Leni. “Eu sugiroque a gente embarque separados no trem: você eAngelika primeiro, depois eu. Vamos nos sentarseparadamente também. O que você acha?”

“Você está pedindo a minha opinião?”, quissaber Leni, dando-se conta de que ele estava sesentindo mal por seu erro.

“Estou.”“Certo, eu acho que você deveria ir primeiro,

e nós vamos atrás. Assim, se houver alguma coisade errado, você pode nos avisar.”

“Como assim? O que haveria de errado?”Angelika estava prestando atenção agora.

“Com os detalhes, os assentos, só isso”,

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explicou Leni.“Combinado”, disse Otto. Foi a vez dele de

lançar um olhar de repreensão para Leni.Ele se levantou do banco e foi andando cheio

de confiança até a estação, que já estava ficandobastante movimentada, o que Leni achou bom.

Os três embarcaram no trem sem hesitar. Elesencontraram assentos no mesmo vagão, mas emextremidades opostas, e se sentaram quietosenquanto o resto do trem se enchia de passageiros.E então, quando o trem estava prestes a partir,Otto se levantou e foi até Leni e Angelika.

“Rápido, venham comigo”, ele sussurrou pelocanto da boca.

Leni olhou para ele, assustada.“Venham!”O que havia acontecido? As duas correram

atrás dele. Otto parou na passagem entre doisvagões.

“Vamos sair daqui.”“O quê?”, exclamou Leni.Otto abriu a porta do vagão. Havia um vão de

cerca de dois metros até o chão. Eles ouviram o

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som agudo do apito do guarda da plataforma.“Não dá tempo de explicar. Venha, eu

ajudo...” Ele pegou a mão de Angelika e a ajudoua pular. Ela caiu e sumiu de vista. Leni foi emseguida, e então Otto entregou as mochilas a elaantes de pular. Ele levantou o braço e fechou aporta do vagão. O trem estava começando aandar, as rodas rangendo e tinindo, e o motor dotrem roncando.

“Venham comigo...”Ele correu ao lado do trem, encolhido para

não ser visto pelos passageiros. No trilho paralelohavia um longo comboio de mercadorias. Osvagões estavam com a parte de cima aberta,cobertos com uma lona cinza.

Quando o trem que partia para Innsbruck sefoi, Otto atravessou os trilhos até o comboio decarga e subiu a pequena escada presa ao final dovagão mais próximo. “Tudo certo, venhamaqui...” Ele sentou atravessado na borda do vagãoe ajudou as duas meninas. E então pulou paradentro e puxou a lona sobre eles. No escuro, Lenipodia ver que o vagão estava cheio de caixas de

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madeira.Ela segurou o braço dele. “Que diabos foi

isso?”Houve um novo assobio do apito.“Eu nunca tinha andado de trem”, disse

Angelika, animada. “E até agora já entrei emdois!”

“E vai ser uma aventura”, disse Leni para agarota, acalmando-a, e então levantou assobrancelhas para Otto, esperando por umaexplicação.

De repente, o vagão foi desviado, fazendo-osperder o equilíbrio. Os garotos se sentaram nascaixas de madeira.

“Me desculpem pelo susto, mas quando eu mesentei no outro trem, vi este aqui e me lembrei doque nos disseram para fazer.”

“Hum, que seria: entrar no trem paraInnsbruck?”, disse Leni.

“Não. Foi: acredite no seu instinto.”Angelika franziu a testa. “O que isso significa?”Leni a ignorou. “É isso que estamos fazendo?

Seguindo seu instinto?” Ela estava assustava e

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contrariada.“Isso mesmo, você não entende? Assim que se

derem conta de que ela desapareceu, qual vai serum dos primeiros lugares onde vão procurar?”

“Onde?” Leni estava se sentindo menos segurade si.

“Bem, as estradas, obviamente, mas os trenstambém. E o primeiro trem a sair de Rosenheimé o que vai para Innsbruck. Eles vão procurar lá,mas não vão pensar em trens de carga.”

“Talvez não, mas nós não sabemos aonde estetrem está indo.”

“Deve ser Munique. Vai para o norte, e essa éa primeira cidade da linha. Ele deve parar lá.”

Ele pegou o mapa de seda da área e o abriusobre uma das caixas de madeira.

Leni se inclinou para olhar. “Mas vamosadentrar ainda mais a Alemanha.”

“Só um pouco. Além disso, eles nãoesperariam que fizéssemos isso, certo? Podemostrocar de trem em Munique e tomar um que vápara o oeste, para Kempten. Com um pouco desorte, vamos chegar à fronteira mais rápido, ao

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cair da noite.”Leni acompanhou o dedo de Otto enquanto

ele desenhava o trajeto a partir de Munique atéparar em Bodensee. Tudo parecia tão direto, tãosimples quando um dedo traça um caminho emum mapa. Leni não sabia o que dizer. Havia lógicano que Otto estava sugerindo, e talvez fosse acoisa mais inteligente a fazer, mas não pareciacerto. Ela só não sabia dizer por quê. Outroassobio de apito soou, e o vagão deu um trancopara a frente e se prendeu ao próximo. Outrotranco, e ele lentamente começou a se mover.

Era tarde demais para fazer qualquer objeçãoagora.

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Manhã em Munique

Otto acordou quando o trem freou abruptamente.Ele ficou feliz em acordar. Estava no meio de umpesadelo terrível e recorrente que vinha tendodesde que chegara à Inglaterra. Nele, Otto estavanadando em mar aberto à noite. Não havia estrelasno céu, e a água também estava preta. As ondasquebravam acima de sua cabeça, e a água faziaseus olhos arderem. Ele estava com a família — opai, a mãe e Karl —, mas então, um por um, elesdesapareceram, sumiram, até que ele ficousozinho, nadando e chamando-os. Otto tinha

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aquele pesadelo mais ou menos uma vez porsemana, e ele sempre o acompanhava pelo restodo dia.

O garoto se levantou e bateu a cabeça na lona.Eles estavam parando na cidade. Munique. Talvezestar ali tivesse feito o sonho voltar. Ele procurouo relógio de seu pai. Eram quase oito. A jornadahavia levado pouco menos de duas horas.

Ele abaixou dentro do vagão e acordou Leni,que, por sua vez, despertou Angelika.

“Precisamos sair antes que o trem chegue aodesvio”, disse Otto. O trem havia diminuído avelocidade e estava quase parando.

As garotas concordaram. Otto ajudou-as asubir pela lateral e passar as pernas pela borda, atéencontrar a escada. Os três desceram e pularam nochão de pedras ao lado dos trilhos. Otto jogou amochila de Leni e desceu com a própria mochilana mão. Acabou perdendo o equilíbrio e caiu, masse levantou rapidamente.

“Estou bem, estou bem”, disse ele,envergonhado.

Leni olhou em volta. “Então, qual é o plano?”

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“Venham comigo”, disse Otto, autoritário.Os três atravessaram os trilhos e correram por

um pátio ferroviário cheio de vagões e carrosvazios. Ouvia-se o barulho de motoresmanobrando. No entanto, não encontraramninguém e rapidamente chegaram a uma escada naparede de tijolos. Eles subiram os degraus e foramparar em uma rua de Munique.

“De acordo com isso”, Otto estavaobservando o quadro da ferroviária, “há um tremque sai ao meio-dia para Kempten. Podemostrocar de trem ali e pegar uma linha local atéImmenstadt e, de lá, até Bregenz.”

“Você quer dizer que vamos ter de ficar emMunique até o meio-dia?” Leni franziu a testa, eOtto podia ver que ela não estava gostando daideia. “Nós não devíamos nos mexer?”

“É um trem expresso para Kempten. Qual é aoutra opção? Tomar um trem mais cedo e ter detrocar algumas vezes, tomar um ônibus, quedemora horas. Ainda é cedo, e se eu estiver certo,este é o último lugar onde vão nos procurar.”

Otto estava convicto de seu plano. Leni deu

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de ombros, assentindo, mas não estava feliz.Eles andaram pelas ruas, passando por lojas que

tinham acabado de abrir.“Podemos ir ao Museu Nacional?” Angelika

puxou a manga de Otto. “Eu o vi em um livro noconvento.”

“É uma ótima ideia”, disse Otto, “ou talvezum dos grandes parques. Há muita coisa para verem Munique.” Por um momento, ele ficourealmente entusiasmado, e então olhou para Leni.Ela estava ainda mais irritada.

“É o melhor plano, de verdade, você vai ver.”Eles chegaram a uma esquina. Otto olhou emvolta.

“Imagino que você saiba onde estamos”, disseLeni, com um pouco de sarcasmo.

“Para falar a verdade, eu sei mesmo”, disseele, conseguindo abrir um pequeno sorriso. Ottose perguntou se deveria dizer a ela que Muniqueera de fato um lugar que ele conhecia muito bem,que de fato era sua cidade natal. Parte dele sesentia segura por estar de volta a um lugar tãofamiliar, mas tinha um pouco de medo e receio.

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Fazia apenas um ano que ele havia escapado daGestapo ali.

Dez minutos depois, eles haviam colocado asmochilas em armários na estação principal ecomprado passagens para Bregenz.

Agora, tinham algumas horas para matar. Elestomaram um bonde e passaram por Neuhauser eKaufinger Strasse, pela Academia de Ciências, aAkademie der Wissenschaften.

Otto olhava para os prédios conformepassavam, e então percebeu que Leni o observava.E olhou para o chão do bonde.

O pai de Otto dava aulas de química naAkademie. Ele conhecia o lugar de cor. Muitasvezes eles tinham ido encontrar o pai depois dasaulas. Eles subiam cinco lances de escada até opequeno laboratório no topo do prédio, e o paimostrava a ele seus últimos experimentos. Ottonão conseguia entendê-los muito bem, masadorava todo o equipamento, as centrífugas e asestranhas substâncias químicas, como o tório. Ottoachava que talvez um dia ele também pudesse setornar professor de química em Munique. Mas

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agora não mais.O sino do bonde tocou. Eles haviam chegado

a Marienplatz.Os três rapidamente mudaram de linha e

tomaram outro bonde até Ludwigstrasse. Eraquase como se ele nunca tivesse ido embora.Tanta coisa parecia igual. As lojas ainda estavamcheias de produtos, as pessoas nas ruas aindaestavam bem-vestidas, e a cidade ainda cheirava apão fresco, café, chaminés e a um cheiro acre edenso que Otto sempre atribuía ao chucrute.

Mas aqui e ali havia comércios fechados comestrelas de Davi apagadas das tábuas, e muitossacos de areia com suásticas. Otto se lembroudaquela terrível noite de novembro, três anosatrás. Todos os simpatizantes nazistas haviam saídoàs ruas tarde da noite.

Gangues armadas com tijolos e pedaços de pauhaviam estilhaçado todas as vitrines das lojas eestabelecimentos judeus, os donos haviam sidoarrastados para fora, alguns de pijama, eespancados no pavimento. E então foram jogadosem caminhões nazistas e levados. As pessoas

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haviam chamado aquilo de Kristallnacht — a noitedo Vidro Quebrado — porque havia vidroquebrado por todo canto no dia seguinte. A mãedele havia chorado, Otto se lembrava dissotambém, e então tudo mudou. As pessoas ficaramcom medo. Ele olhou para Leni, que tinha tidotanta sorte de escapar. E sido tão corajosa, pensou,de voltar. Eles desceram perto de Hofgarten.

“Agora podemos tomar sorvete?”, perguntouAngelika.

“Só um minuto”, disse Leni, e Otto viu queela o observava atentamente. “Posso falar comvocê?”

“Sobre o quê?”Leni o pegou pelo braço e o levou para um

canto. “O que está acontecendo, Otto?”“Como assim?” Otto decidiu que precisaria

disfarçar.“Não me trate como boba. Essa é a sua

cidade, não é?” Os olhos azuis de Leni odesafaram a negar.

Otto ficou tentado, mas não queria mentirpara ela. “E se for?”, ele admitiu, na defensiva.

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Leni balançou a cabeça. “É por isso queestamos aqui.” Ela começou a andar de um ladoao outro. “Eu sabia que tomar aquele trem nãoestava certo. O que você fez?” Ela verificou seeles ainda estavam a uma distância que Angelikanão pudesse ouvir.

“Escute, sim, eu admito que sou deMunique”, Otto disse um pouco contrariado.“Mas isso não tem nada a ver com estarmos aqui.”Ele estava mentindo. Mas não podia voltar atrás.“Foi a coisa certa.” Aquilo era verdade.

Ele podia ver que Angelika estava tentandoouvir a conversa.

“Então por que você está tentando se livrar denós até tomarmos o trem?” Leni colocou as mãosna cintura. Ela percebia tudo. Era irritante.

Ele fez uma pausa, se perguntando se deviaconfiar nela. E decidiu não fazê-lo. “É só... umacoisa que eu preciso fazer. Vai ser o mais rápidopossível. Não há com que se preocupar, eu juro.Me encontrem na estação do bonde noPromenadeplatz em duas horas. Aí nós três vamospara a estação de trem juntos.”

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Leni olhou para ele, com um olhar sério.“Estou confiando em você, Otto. Não medecepcione nem faça nada idiota.”

“Não se preocupe, não vou.”Mas aquilo também era mentira.

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A caçada

Assim que o barco da polícia voltou a Stock,Heydrich ordenou que cada casa, prédio econstrução na cidade fosse revistada de cima abaixo. Nada. Então, ele pegou seu Opel e foidirigindo até Prien para coordenar a operaçãoinicial de resgate e emitir ordens gerais paraMunique sobre a segurança da fronteira emovimentação das tropas. Estava claro que agarota havia sido levada por agentes estrangeiros.Também era lógico, como o Führer havia dito,que a questão estava relacionada à recente traição

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de Hess e sua fuga para a Escócia. Portanto, essesagentes estrangeiros eram certamente britânicos outreinados por britânicos.

Em Prien, seu motorista e assistente havialevado para ele a Mercedes de seis rodas e objetospessoais. Ele rapidamente vestiu o uniforme da SS,embainhou outra pistola Walther e entrou nalimusine. Sua primeira tarefa era informar oFührer, pessoalmente, em Berghof.

Enquanto o carro percorria as estradas, com asirene gritando, Heydrich ponderava as potenciaisrotas de fuga abertas aos raptores. A fronteira coma Suíça ficava a 260 quilômetros em linha reta.Levaria menos de um dia de carro ou trem parachegar lá, mas atravessá-la seria mais difícil. Quemquer que tivesse levado a criança estava emmovimento desde as primeiras horas do dia. Eraessencial fazer bloqueios nas estradas em todas asrotas a trinta quilômetros ou mais da fronteira.Heydrich presumiu que eles viajariam de carro.Provavelmente são um homem e uma mulher, pensou.

O rádio do carro tocou, ele atendeu.“Heydrich falando.”

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“Há relatos no povoado de que um barco amotor foi ouvido por volta de três da manhã.” Erao chefe de polícia de Stock. Ele ainda soavaansioso, louco para agradar. “E a lancha doconvento foi encontrada à deriva no lado leste dolago, sem combustível.”

“Eles devem tê-la abandonado. Algum relatode motor de carro?”

“Não. No entanto, uma bicicleta infantil foiencontrada no fundo da igreja. Ela havia sido dadacomo roubada ontem à tarde junto com duasbicicletas adultas.”

“Só isso?”“Por enquanto, senhor.”Heydrich desligou e ficou pensando. Eles

devem ter fugido de bicicleta. Para Rosenheim,muito provavelmente. Deviam ter um carroesperando lá, ou então usaram a linha ferroviáriaprincipal. Dali, o caminho mais rápido até afronteira era pelo sul, por Innsbruck. Ele precisavachegar antes dos agentes, ir ao encontro deles.Heydrich pegou o telefone em Munique.

“Aqui é Heydrich. Quero falar com o general

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Müller.”Ele esperou para ser conectado com o chefe

da Gestapo. Sabia que podia confiar nele paraexecutar ordens de forma discreta e efetiva. Alémdisso, não havia mais como essa operação sermantida confidencial. Finalmente, a voz de Müllersurgiu do outro lado da linha.

“Müller, mande três companhias de tropas demontanha da SS para cá, junto com as quatro quevão para o sul. E mande revistar a estação de tremem Rosenheim, e interrogar o pessoal. Estouprocurando três pessoas — dois adultos e umacriança.” Ele teve uma última ideia. “Ligue para ocomandante no aeródromo Schlessheim. Diga aele que vou precisar do helicóptero Flettner emBerghof imediatamente.”

Heydrich bateu o telefone. Ele se sentia umpouco melhor sabendo que uma rede de resgateestava se movimentando em todo o país. Custasseo que custasse, ele recuperaria a garota. Mas,primeiro, precisava ir a Berghof dar ao Führer asterríveis notícias. Não apenas isso. Hitler haviadito que a criança não devia deixar o Reich em

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hipótese alguma. Heydrich precisava se certificardo que aquilo realmente significava. Ele seinclinou para a frente no assento.

“Mais rápido! Vá mais rápido!”, ele gritou parao motorista.

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O Ministério da Marinha

Sentado em sua mesa no Ministério da Marinha,MacPherson olhou pela milésima vez para orelógio na parede. Fazia quase vinte e sete horasque tinha parado diante do gramado úmido nabeira da pista vendo o Mosquito voltar daAlemanha. Desde então, um silêncio longo eterrível. A ausência de notícias o estava deixandoirritadiço com todos. Ele se levantou da cadeira eolhou pela janela. O parque St. James estavacoberto de baterias de ataque antiaéreo com sacosde areia, que disputavam espaço com fileiras de

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espreguiçadeiras. À esquerda, ficava a entrada dobunker recém-construído que funcionava comosede de comando do primeiro-ministro, bemabaixo do nível da rua. Nem mesmo umesquadrão de bombardeiros despejando toda suacarga penetraria naquela fortaleza. Sem dúvida, oprimeiro-ministro telefonaria logo para ter asúltimas notícias. Infelizmente, não parecia quehaveria nada a ser relatado.

Claro, MacPherson entendia que seria muitodifícil receber relatórios parciais nesse tipo demissão. Desde o início havia sido acordado que ascrianças não deviam tentar fazer contato comLondres por conta própria. Não era seguro nemprático para eles carregar equipamento de rádio e,de todo jeito, não haveria tempo para treiná-los.Enviar telegramas para endereços seguros na Suíçatambém estava fora de questão, uma vez que aessência da missão era rapidez e sigilo. Além disso,qualquer chefe dos correios no Reich ficariadesconfiado de um jovem escrevendo cartas para aInglaterra e com quase toda certeza a Gestapo liatodo documento desse tipo.

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MacPherson se sentou de novo, ainda ansioso,e contemplou uma pequena imagem de bronzesobre a mesa. Era um fauno dançante, o emblemad a LCS — a Seção de Controle de Londres —,que simbolizava as condutas secretas e adesinformação. Alguém bateu na porta, e umajovem usando uniforme da WREN — o serviçofeminino da Marinha Real Britânica — trouxe ocafé da manhã em uma bandeja de prata.

“Salmão defumado com torrada, senhor.” Elaabriu espaço na mesa e serviu os pratos. Havia cháfervendo em uma caneca esmaltada.

“Obrigado.” Ele se deu conta de que estavafaminto.

E então ela entregou um telegrama aoalmirante. Vinha de Ble-tch-ley Park.

MacPherson esperou que a mulher deixasse asala e fechasse a porta antes de abrir o envelope.

Os rapazes em Bletchey haviam interceptado edecodificado uma ordem da Gestapo para checartodas as unidades da SS nas fronteiras com a Suíçae na Áustria. As fronteiras deveriam ser fechadasimediatamente e todos os postos do correio e

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pontos de passagem deveriam ser colocados emalerta total. Unidades extras da Waffen-SStambém estavam sendo posicionadas.

Otto e Leni haviam conseguido pegar a garota.Eles conseguiram. MacPherson bateu com opunho na mesa, e a bandeja de café da manhã deuum salto.

Ele pegou o telefone. “Tragam o carro. Epeça que a Signals envie uma mensagem paranosso contato em Genebra. A mensagem é: ‘Águiachega hoje à noite. Falcões em voo’.”

Quatro horas depois, o Hudson azul corriapela estrada do porto que rodeava os estaleirosnavais em Plymouth. Os cascos de ardósia cinzados navios de guerra reluziam, com as pranchascheias de marinheiros embarcando.

Os guindastes da doca balançavam de um ladoa outro, cheios de provisões e munição. Haviamuitos outros navios ancorados no porto. No céu,fileiras de balões de barragem cinza e prateados, aprimeira linha de defesa contra os bombardeirosde mergulho alemães.

O Hudson parou fora de um grande hangar

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onde havia uma rampa que levava até a água.MacPherson saiu do carro num pulo e correu atélá. Foi recebido por um jovem oficial do serviçoda Marinha das Forças Aéreas. Ele exibia um belobigode e fumava cachimbo, o que Mac-Phersoninterpretou como um sinal para pegar seu própriocachimbo.

“Ordem expressa de não fumar, mas ocomandante parece não se importar.” O pilotosorriu e estendeu a mão.

“Comandante Bracken. Acredito que serei seuchofer esta noite.”

MacPherson apertou a mão do oficial eobservou o hidroavião que ia levá-los para a Suíça.Como um homem da Marinha, ele preferia viajarpor mar, mas seria impossível naquela ocasião. Oavião parecia robusto e bem-feito, com um motorforte e uma cabine dupla coberta por uma capotadeslizante. Uma comporta na parte traseira davapara uma cabine de passageiros que ficava dentrodo enorme flutuador central do avião. Nos EstadosUnidos, a aeronave era usada como táxi executivopara almirantes. MacPherson havia persuadido o

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primeiro-ministro a mandar trazer uma daquelasdos Estados Unidos esta noite. Era perfeita para atarefa. A cabine interna teria espaço suficiente paraOtto, Leni e a garota.

Uma dúzia de técnicos ainda estavatrabalhando no avião. Alguns estavam ajustandotanques de combustível extra, enquanto outrosrepintavam a fuselagem e as asas, mudando a corde cinza claro para preto fosco, como a noite. Oavião não teria sinais distintivos.

“Grumman Duck. Nada mal. Mas um tantolento. Uma pena”, o comandante Bracken tirou ocachimbo da boca. “Também é conhecido como‘Pato Sentado’.” Despreocupadamente, ele bateuo fornilho do cachimbo na ponta da asa. “Mas nãovamos deixar isso nos preocupar, senhor.”

“Não, não vamos”, disse MacPhersonrispidamente.

“Alguma ideia de aonde vamos, senhor?”MacPherson franziu o cenho para o piloto.

“Tudo tem sua hora, comandante. Lembre-se: ‘opeixe morre pela boca’. E aviões ‘um tanto lentos’também.”

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24

Jaegerstrasse

Parado no topo da escada no terceiro andar doprédio, Otto estava atormentado pela indecisão.

O garoto já havia passado uma hora sentadoem um banco do lado oposto da rua, debatendo seentraria ou não, revivendo o dia terrível, poucomais de um ano antes, quando voltou mais cedoda escola reclamando de dor de estômago. Seu paitambém havia voltado cedo — muito por acaso,uma reunião cancelada —, mas sua mãe e Karlnão estavam lá. O pai sugeriu uma partida dexadrez. Assim que Otto o colocou em xeque,

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alguém bateu com força na porta.“Quem é?”, o pai gritou, levantando-se.“Gestapo. Abram!”“Um minuto!” O pai segurou Otto e o fez

levantar.“Abra a porta!” Um punho esmurrou de novo

na porta.“Eu não estou vestido, um instante”, o pai

gritou em resposta, sabendo que isso não conteriaos homens. Ele falava rápido enquanto empurravaOtto até o escritório, ouvindo o barulho das botaschutando a porta.

“Chegou a hora, Otto.”“Não...”“Nós conversamos sobre isso... você sabe o

que precisa fazer... você tem tudo de queprecisa.”

O pai abriu a primeira gaveta da escrivaninhae enfiou um envelope nas mãos do garoto.

“Passaportes, Reichmarks e francos, o suficientepara todos vocês. Você está com a suaidentidade?”

Otto meneou a cabeça, e o pai o abraçou forte

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por um instante, beijando-o nos dois lados dorosto. As batidas na porta ficaram mais altas.

“Estou indo!”, ele gritou e olhou para Otto.“Espere cinco minutos e vá.”Calmamente, o pai fechou a porta do

escritório, foi até a porta e a abriu. “Do que setrata?”

Por uma fresta na porta do escritório, Otto viutrês homens entrando no hall, o primeiro deterno, os demais vestindo o uniforme preto daGestapo.

“Herr doutor, o senhor está preso por sabotaros esforços de guerra.”

Quando ouviu aquelas palavras um solavancode medo percorreu Otto. Ele havia lido em algumlugar que “sabotar os esforços de guerra” eraconsiderado crime capital. E, então, seu pai foilevado embora. Os homens nem se deram aotrabalho de revistar o apartamento. Talvezachassem que Otto ainda estava na escola.

Depois que foram embora, o menino esperoucinco minutos, como o pai pedira, em um estadode pânico cego. E então saiu correndo do prédio e

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atravessou a rua até o banco. Ele ficou um tempoali, tentando decidir o que fazer, antes de pegar obonde até a escola. Chegando lá, soube que suamãe havia ido buscar Karl meia hora antes. Elecorreu desesperadamente pela cidade, refazendoseu caminho habitual para casa, mas eles nãoestavam em lugar nenhum. Otto voltou ao bancoe esperou por eles, o tempo todo com lágrimasnos olhos.

Um táxi parou, e a mãe e o irmãodesembarcaram com uma série de sacolas de umaloja de departamento. Num pulo, Otto ficou depé e estava prestes a gritar quando quatro homensda Gestapo saíram de um carro preto comumestacionado perto da entrada. Otto ficou olhandoestupefato enquanto os homens rapidamentecercaram sua mãe e seu irmão, arrancaram-lhe ospacotes, agarraram-nos pelos braços e oscolocaram na parte de trás do carro. Karl estavachorando. Otto ficou parado na rua, vendo aGestapo desaparecer com sua família.

E agora, mais uma vez, estava parado diante daporta da frente. Ele percorreu o corredor com os

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olhos uma última vez. Havia três apartamentos noterceiro andar, todos com a porta bem fechada.Estava muito silencioso. Ele inspirou pela últimavez, para criar coragem. Tinha chegado até aqui,disse a si mesmo. Precisava continuar, aproveitar aoportunidade. Otto tirou as pesadas botas e seajoelhou, puxando em sua direção o rodapé queencostava no batente da porta. Lá estava a chave,como sempre. Ele se levantou e a colocou nafechadura, se perguntando se funcionaria.Funcionou. Com as botas na mão, ele respiroufundo e abriu a porta com cuidado.

Um homem alto e belo de cabelo grisalhoestava parado diante dele. Ele vestia uma calça deterno e colete verdes, a gravata afrouxada. Eleabriu os braços. Papai!

Por um segundo, Otto se deixou fantasiar. Masnão havia ninguém para recebê-lo. A entradaestava vazia.

Ele fechou a porta discretamente e parou paraouvir.

“Olá...”, ele disse, em voz baixa, e depois umpouco mais alto.

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Nada.Tudo parecia estar exatamente igual ao dia de

sua fuga. Mas não estava. Os casacos penduradosno armário não eram de sua mãe nem de seu pai.Na cozinha, o cheiro de café da manhã enchia oar. A mesa e as cadeiras eram diferentes. Assimcomo a louça empilhada na pia e as fotos nasparedes. Outra família vivia ali agora. Otto sentiuo coração acelerar levemente. Ele era um invasor.

Ele correu para ver os outros cômodos. Oantigo sofá e as poltronas haviam desaparecido,mas a cama de seus pais ainda estava lá. Em seuantigo quarto, as duas camas haviam sidoencostadas na parede para abrir espaço para umberço. Na sala de jantar, a longa mesa e as cadeirasque pertenceram ao avô ainda estavam em uso,mas a aquarela pintada por sua mãe havia sidosubstituída por um grande retrato de Hitler. Haviauma cristaleira cheia de troféus esportivos debronze e prata.

Otto parou para olhar e sentiu um aperto nopeito, uma vontade incontrolável de arrancar afoto de Hitler, de destruir a cristaleira, de atirar os

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pertences desses intrusos pela janela. Ele sentiu aslágrimas se formando nos olhos. Otto sabia que seupai não estaria lá. Mas, em algum canto de seucoração, esperava que de alguma maneira sua mãee seu irmão estivessem. Ele os teria abraçado econtado o que estava fazendo.

Ele secou os olhos, limpou o nariz e serecompôs. Não era mais a casa dele. Não eranada.

O telefone tocou na entrada, e Otto deu umsalto. Foi como um alarme disparando em seucérebro. Ele devia estar louco de voltar ali. Saia,saia agora!, pensou.

O telefone continuou a tocar enquanto Ottocorreu para a porta, abaixando-se para pegar asbotas. Quando esticou o braço para abrir amaçaneta, o barulho parou. No breve instante desilêncio que se seguiu, ele ouviu passos nas escadase vozes do lado de fora. Ele deu meia-volta,correu pelo corredor até a sala de jantar e se jogouembaixo da mesa. A barra decorada da toalhaacabava alguns centímetros antes do chão.

Ele ouviu a fechadura girando, e a porta da

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frente se abrindo. Algo com rodas foi empurradopela entrada. A porta se fechou.

“Se for importante, vão ligar de novo, Heinz.”“Sim, sim.”O homem entrou na sala de jantar. Otto podia

ver os sapatos marrons engraxados e brilhantes.Isso não era bom, pensou enquanto escutava ohomem virar as páginas do jornal que estava sobrea mesa. Nada bom. Ele se concentrava paramanter a calma. A porta da frente ficava a apenasalguns metros. Só precisava aguentar firme.

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25

Procura-se

Otto não era o único que estava vivendo umpesadelo. De alguma maneira, Leni haviaconseguido perder Angelika. Fazia apenas meiahora, mas parecia uma eternidade.

Tudo estava correndo bem até então. As duastinham seguido o conselho de Otto e caminhadoaté o Englischer Garten, e Angelika finalmenterealizou seu desejo de tomar um sorvete. A garotahavia dito que nunca tinha experimentado um,mas na verdade, ela completou, talvez só não selembrasse.

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Depois disso, elas tomaram o bonde epercorreram a Prinzregentenstrasse até o MuseuNacional. Cada vez mais preocupada em nãochamar atenção, Leni havia decidido que as duasse misturariam com os demais estudantes queestavam visitando o museu. E se deu conta de queestava ansiosa não só por causa de Angelika, maspor si mesma. Ela estava esperando alguémapontar e gritar “Judia!” a qualquer minuto. Mas,de alguma maneira, conseguiu manter um sorrisono rosto enquanto tentava responder às perguntasde Angelika sobre a cidade, as lojas, as fontes e asestátuas.

Angelika estava interessada nas exposições domuseu, mas também um pouco distraída, Lenipercebeu. Ela achava que o motivo eram todas ascoisas novas que estava vendo. Era muito parauma menina tão reclusa absorver. As duas haviamse juntado discretamente a outro grupo de criançasenquanto Leni ficava de olho na hora e seperguntava o que Otto podia estar fazendo. Tudoparecia bem até que Leni virou as costas paraAngelika por um minuto. Quando olhou de novo,

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a garota havia desaparecido. Seu estômago serevirou.

Leni procurou rápido pelas próximas galeriasno caso de Angelika ter ido na frente, mas nãoconseguiu encontrá-la. Voltou para as anteriores:nem sinal. Não apenas isso, ela percebeu que ia serimpossível reconhecer Angelika à distância. Pelaprimeira vez, Leni amaldiçoou sua miopia.

Ela correu para os banheiros, esperando queAngelika tivesse ido para lá, mas não havianenhuma menina de nove anos nas cabines.Vasculhar o museu inteiro levaria horas, e ela nãose arriscaria a pedir ajuda a nenhum funcionário, oque daria início a uma busca. As perguntas queseriam feitas — nome, endereço, pais. Não, elateria de encontrar a menina sozinha, e rápido.Leni fez força para enxergar, tentando melhorar avisão, mas Angelika não estava em lugar nenhum.

Leni voltou à entrada principal, esperando quea garota também a estivesse procurando e quetambém fosse até lá. E sentiu as lágrimas seformando, mas lutou para impedi-las de escorrer.Mais uma vez, isso só atrairia atenção. Enquanto

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estava ali parada, com a mente fervendo, elatentou imaginar o que Angelika estaria fazendo,por que teria ido embora. Elas estavam se dandobem, estavam se divertindo muito. Será queAngelika havia ficado nervosa com a fuga e seentregado às autoridades? Era uma possibilidade enesse caso uma viatura de polícia com a sireneligada chegaria ao museu a qualquer momento.

E então outra coisa lhe veio à mente. Naviagem de bonde pela Prinzregentenstrasse, elashaviam passado por um prédio coberto combandeiras nazistas nas janelas. Angelika haviaolhado atentamente para elas. “Eu conheço aquelelugar...”, havia murmurado. Leni não havia dadoatenção, mas agora...

Ela correu rua abaixo o mais rápido que pôde.Daria para chegar até o prédio e voltar ao museuem poucos minutos se fosse muito rápida. Assimque chegou à Prinzregentenstrasse, ofegante, olhoudesesperadamente em volta. As calçadas estavamcheias de ambulantes e pedestres passeando numamanhã de sábado, e Leni teve de desviar e andarem zigue-zague. Ela olhou em volta, apertando os

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olhos com toda força. Quando estava prestes adesistir e voltar ao museu, viu de relance umcabelo loiro no outro lado da rua. Ela atravessoucorrendo. Um carro desviou, buzinando em sinalde indignação.

Era Angelika! Ela estava parada diante doprédio com as bandeiras nazistas, olhando. Leniquase desmaiou de alívio.

“Angelika!” Ela não conseguiu conter o grito.Queria ficar ali, bem ali, presa àquele lugar.

A garota acenou. “Leni!”Agora, Leni estava ao lado dela. E queria dar

uma bronca na menina, mas sabia que não era boaideia fazer uma cena ou deixá-la chateada.Especialmente do lado de fora de um prédiocoberto de suásticas... Por um instante, ela seperguntou o que era aquele prédio, e o que osnazistas lá dentro pensariam se descobrissem queuma agente britânica e essa menina tão importanteestavam exatamente do lado de fora. “O que vocêestá fazendo aqui? Você me deu um sustoenorme...”

Angelika olhou para ela, viu como o rosto de

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Leni estava vermelho. “Desculpe, eu não pensei.Eu só queria voltar e olhar esse prédio.”

“Por quê?”, perguntou Leni. Ela pegou a mãoda menina e começou a andar.

“Eu não tenho certeza.”“Nunca mais faça algo assim”, disse Leni.

“Prometa.”“Ai!”, exclamou Angelika. “Você está

machucando minha mão.”Leni percebeu que a estava segurando com

força e relaxou.“Desculpe”, disse. “Eu estava preocupada.”Angelika assentiu. “Eu também peço

desculpas.”Leni olhou o relógio. Era tarde. As duas

precisavam ir para a estação. “Vamos tomar umtáxi”, disse. Não ia mais deixar a menina escaparde sua vista. Leni conseguiu chamar um táxi eajudou Angelika a entrar. Quando o carro partiu,a garota olhou pelo vidro traseiro.

“No Natal, muito tempo atrás, eu estive ali,tenho certeza. Era uma festa”, ela disse. “Será quemeus pais também estiveram ali? Eu gostaria de

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lembrar.”Leni olhou para a menina, e então para o

prédio, coberto de suásticas. A maldita questãoque não saía de sua cabeça veio à tona mais umavez. Quem era essa menina?

Mas rapidamente essa questão foi substituídapor outra: onde diabos estava Otto?

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26

Fuga

Otto não havia movido um centímetro ou ummúsculo nos últimos dez minutos. Os sapatosmarrons também não haviam se movido, uma vezque o homem continuava virando as páginas dojornal sobre a mesa. Então, quando o garoto estavacomeçando a se desesperar, o telefone tocou denovo, e o barulho estridente fez o coração deledar um salto. O homem saiu correndo da sala dejantar para atendê-lo. Otto se preparou para sairem disparada em direção à porta. E então umapequena mão ergueu a borda da toalha de mesa,

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levantando-a levemente.Uma bebezinha bochechuda, de dois anos,

com cabelo loiro e cacheado, o olhou comcuriosidade. Otto levou o dedo indicador aoslábios.

“Mutti!”, gritou a menina. Ela tinha uma vozalta para uma pessoa tão pequena.

Otto se preparou para o pior. A mochila deleestava na estação, e sem a faca ou a pistola, asituação poderia ser insolúvel.

“O que você está fazendo, Liebchen?” Sapatosfemininos apareceram ao lado do bebê.

“Mutti...” O bebê soltou o tecido e deu umpasso na direção de Otto.

“Não, não, nada de entrar aí embaixo.” Amãe se abaixou e pegou a menina no colo.

“Era do escritório. Algo importanteaconteceu.” Os sapatos marrons haviam voltadopara a sala. “Todos os funcionários foramchamados a se apresentar imediatamente.”

“Mas, Heinz, hoje é sábado.”“Veio de cima, do próprio Heydrich. Pegue

uma camisa limpa para mim e veja se minhas

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botas estão engraxadas. Vamos, Helga, rápido.”Otto balançou a cabeça. De todas as pessoas

que poderiam ter ido morar naquela casa, tinha deser um oficial da Gestapo?

Os três deixaram a sala de jantar, e Otto osouviu passarem pelo corredor até os quartos. Erasua chance. Ele segurou firme as botas e foi. Empoucos passos estaria na porta da frente. O casalestava conversando no quarto.

Otto abriu a porta com cuidado e foi até ocorredor, deslizando com as meias pelo piso delinóleo. Ele deixou a porta entreaberta, nãoquerendo correr o risco de fazer barulho ao fechá-la. Ele calçou as botas, amarrando-as o mais rápidoque pôde. Só levou doze segundos.

“Mutti!”Otto olhou. A menininha estava parada na

porta da frente, olhando diretamente para ele. Eentão a mãe apareceu, e a boca dela se abriu como choque.

“Heinz!”, ela gritou.Não querendo se deparar com Heinz, Otto

correu para as escadas e desceu, três degraus por

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vez. Quando chegou ao primeiro andar, o segundogrito da moça atravessou as escadas e ele perdeu oequilíbrio no chão de pedra polida, caindo decabeça para baixo e rolando até o próximo lancede escadas interromper a queda. Ele ficou ali,momentaneamente atordoado. E então a cabeçado homem apareceu no topo da escada, olhandopara baixo. Medo. Ele se levantou e começou adescer correndo de novo, ignorando a dor notornozelo.

“Ei, você, halt !”Otto não olhou para trás, apesar de ouvir os

passos das botas do homem, e então chegou àentrada do prédio, com a cabeça baixa, rezandopara que ninguém estivesse entrando ou saindonaquele momento.

A sorte não estava do lado dele. Um homemgrande de guarda-pó cinza estava parado na portada frente, conversando com o carteiro. EraGünter, o zelador do prédio, um homem simplesque havia sofrido muito na Primeira Guerra.

“Halt! “ A voz do homem ecoou nas escadas.Günter olhou para trás na direção de Otto.

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Ele provavelmente ia reconhecê-lo. Elescostumavam trocar fgurinhas. Mas Otto não podiaesperar que Günter fosse gentil agora. E só haviauma possibilidade. Otto desviou da porta dafrente, entrou no apartamento de Günter e passouo trinco na porta.

Imediatamente, Otto viu que nada haviamudado no apartamento de dois cômodosparcamente mobiliado, além do inevitávelacréscimo do retrato de Hitler à parede. Eleforçou a pequena janela acima do lavatório epassou por ela. Então foi parar no beco na lateraldo prédio, correndo na direção da Jaegerstrasse àfrente. Ao final dela, virou à esquerda naFürstenstrasse.

Felizmente, as ruas estavam cheias decompradores matutinos e de funcionários dogoverno de folga. Otto se escondeu entre eles,tentando se misturar à multidão. Certamente ohomem não o perseguiria até ali, certo?

Infelizmente, o homem era da Gestapo e nãoera do tipo que desiste fácil. Com metade douniforme, calças pretas, botas e uma camisa sem

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colarinho branca, ele corria atrás de Otto. Ogaroto pegou a Ludwigstrasse. Um ônibus e umcarro buzinaram para ele. No fim da rua, olhoupara trás de novo. O homem não tinha nenhumaintenção e desistir e, aliás, estava avançando. Ottocorreu para a Maffeistrasse e depois para aPromenadeplatz. Mas qualquer esperança dedespistar o oficial na praça foi destruída pelapresença de soldados sentados do lado de fora dosbares bebendo grandes canecas de cerveja. Otto sedestacaria muito. Sua única opção era entrar emum dos becos laterais dos bares e se esconder atrásdos engradados e barris de cerveja. Depois depassar correndo pelos dois primeiros, eleencontrou um beco perfeito e se escondeu ali.

O garoto foi até o final, onde todas as garrafasusadas e os barris eram deixados, e conseguiusumir de vista. Ele ficou agachado, tentandodesesperadamente recuperar o fôlego, sentindo ocalcanhar em chamas. Otto olhou para o relógio,ele devia encontrar Leni e Angelika naqueleinstante.

E então veio o barulho de madeira rachando e

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vidro sendo quebrado. Otto olhou de seuesconderijo de onde viu o oficial da Gestapoandando lentamente, empurrando engradados demadeira, quebrando as garrafas. Otto podia sentiro cheiro maltado dos resíduos.

“Acho que é melhor você se render agora,sem mais resistência, rapaz.”

Agora, a voz do homem estava fria e muitomais ameaçadora.

Otto amaldiçoou mais uma vez o fato de suasarmas estarem na estação. Com as mãos tremendo,ele discretamente pegou uma garrafa vazia de umengradado e a segurou com força pelo gargalo. Eentão se levantou e saiu do esconderijo.

O homem estava a uma distância de dezmetros, com as pernas afastadas e os pés plantadosno chão. “Eu sou um inspetor da Gestapo, e você,rapaz, está preso.”

Suor escorria pelo rosto de Otto. Ele bateu abase da garrafa na parede de tijolos, deixando umcaco com pontas na mão.

O oficial da Gestapo balançou a cabeça.“Você percebe que sua vida acabou?”

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Otto percebia muito bem. “Pare aí”, ele disse.“Eu me cansei disso.” O homem foi até ele. Ottoesperou que ele estivesse a um braço de distância,e então deu um passo para a direita e golpeou olado esquerdo do homem com a garrafa quebrada.

“Seu...!” O homem olhou furioso para amanga de sua camisa, cortada abaixo do cotovelo,com sangue se espalhando no algodão branco.

Otto desferiu outro golpe, mas dessa vez nãoteve tanta sorte. O homem agarrou o pulso deOtto e bateu a mão do garoto contra umengradado. A garrafa escorregou de seus dedos. Ohomem segurou o garoto pelo colarinho da camisacom tanta força que podia levantá-lo do chão.

“Vamos fazer de você um belo exemplo”, eledisse, com um leve sorriso.

E então Otto viu um borrão marrom atrás deseu captor, ouviu o estrondo do impacto e viuuma garrafa de cerveja explodindo na parte de trásda cabeça do homem. O oficial ficou com osolhos vazios e o soltou. Ele deu um passo para tráse caiu de joelhos, antes de desabar no chão.

Leni estava bem atrás dele, ainda segurando o

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gargalo da garrafa. Otto olhou para ela, incrédulo.“Como...?”“Nós estávamos num táxi a caminho da

estação, quando vimos você descer a ruacorrendo...” Leni fez um esforço para falar. Ottoassentiu, o coração ainda disparado, comdificuldade para recuperar o fôlego.

Angelika estava alguns metros atrás dela comos olhos arregalados. Otto acenou e abriu umsorriso fraco. “Está tudo bem, Angelika. Ele eraum homem mau, só isso.”

Lentamente, a garotinha avançou e ficouolhando. Otto nem imaginava o que ela estavapensando, se estava com medo ou triste. Angelikaparecia distante.

“Ele está morto?”, ela perguntou.Otto balançou a cabeça. “Não, não. Ele vai

ficar bem.”“Você está bem?”, ela perguntou de novo.“Eu também estou bem. Não se preocupe.”

Com, dificuldade, ele ficou de pé.“Eu não gosto desse lugar”, comentou

Angelika.

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“Eu também não”, disse Otto. “Vamosembora.” E pegou a mão dela, que estava quentee suada.

Ele queria se virar para Leni, mas, naquelemomento, sentiu que não conseguiria olhá-la nosolhos.

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27

Expresso Kempten

Os três tinham apenas alguns minutos para pegaras mochilas. Quando o guarda da plataformaapitou, e o trem chegou à estação, os garotosembarcaram. Eles conseguiram encontrar umacabine com seis assentos e, menos de cincominutos após a partida, o fiscal chegou para furaros bilhetes. Agora podiam sentar e relaxar — pelomenos por uma hora. Não que Leni estivesse debom humor. Ela estava sentada de frente paraOtto, encarando-o.

“Quantas vezes mais você quer que eu me

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desculpe?”, Otto resmungou. Ele fechou aspersianas das janelas laterais e da porta, esperandoque isso impedisse que mais alguém entrassenaquela cabine.

“Mais algumas vezes”, respondeu Leni, comacidez.

“Tudo bem, desculpe. Eu não sei o que deuem mim. É só que... nós estávamos em Munique,e eu pensei...”

“Não, Otto, você não pensou. Você sódecidiu fazer o que quis, sem pensar nos riscos.”Leni sabia que ele estava aprontando alguma coisa,mas nunca teria acreditado que ele pudesse fazeralgo tão idiota e perigoso.

“O que Otto fez de errado, Leni?” Angelikaestava chupando uma bala.

“Ele não fez nada de errado”, respondeu Leni.Angelika parecia confusa. “Então por que

você está brava com ele?”“Bom, ele fez uma coisa boba... Parecida com

o que você fez, quando me deixou sozinha nomuseu.”

“Ah”, disse a menina. E olhou para Otto.

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“Então nós dois estamos encrencados.”“Do que vocês estão falando?”, quis saber

Otto.“Não mude de assunto”, devolveu Leni.“Quem está mudando de assunto? O que

aconteceu no museu, Leni?”“Certo, Angelika sumiu por um minuto, mas

ficou tudo bem. Então nem tente comparar issocom o que você fez.”

“Eu não pretendia.” Otto cruzou os braços eolhou pela janela.

Soltando bastante fumaça, o trem já haviaadentrado as áreas residenciais da cidade e estavaavançando por campos cheios de milho, pomarese pequenas propriedades que começavam a seencher com os grãos da estação, tomates,pimentão e abobrinhas. Mais adiante, campos delúpulo e vinícolas estavam começando a se encherde folhas. Apenas os caminhões militaresrebocando canhões em longos comboiosestragavam a paisagem rural.

Angelika estava com a cabeça encostada noombro de Leni e os olhos fechados. As meninas

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estavam de pé desde as primeiras horas da manhã,com apenas alguns minutos de sono no trem decarga.

“Bom, o que aconteceu?” Otto arqueou assobrancelhas na direção de Angelika.

“Não foi minha culpa”, disse Leni nadefensiva.

“Se você está dizendo.”“Ah, vamos esquecer a coisa toda”, disse Leni,

sentindo que ninguém ganharia nada com aqueladiscussão.

“Por mim tudo bem”, disse ele.Os três ficaram sentados em silêncio por um

tempo, o calor aumentando. Com Angelikaencostada em seu corpo, Leni a sentiu relaxar aospoucos e ficar com a cabeça mais pesada em seuombro. Quando teve certeza que a meninadormia, Leni sussurrou: “Você nos fez vir atéMunique só para ver se sua família ainda estavaaqui”.

Otto balançou a cabeça. “Claro que não. Virpara Munique era a coisa certa.”

Leni não disse nada, deixando-o lidar com as

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consequências de seus erros. Ela sabia que estavacerta.

“Se fosse Viena, você não iria querer visitarsua casa?”, comentou ele, depois de um tempo.

“Eu sabia”, disse Leni, em voz baixa.“Bom, você não ia querer? Aposto que sim.”“Não se atreva a me dizer isso. Eu não

correria nenhum risco que colocasse a minha vidaou a sua em perigo. E você deveria fazer omesmo. Se não, como vamos confiar um nooutro?”

O rosto de Otto estava em chamas, a testa,coberta de suor. Subitamente, Leni se deu contade que ele estava à beira das lágrimas.

“Você tem razão, Leni, eu fui um idiota, oque fiz foi egoísta e despropositado. Eles se foram,nunca mais vão voltar, e eu nunca mais vou...” Avoz falhou, e Otto parou de falar.

“Tudo bem, está tudo bem”, disse Leni,sentindo-se péssima. Ela não queria tê-lo chateadodaquela maneira.

Otto balançou a cabeça. A boca dele estavatensa. “Prometo que não vai acontecer de novo”,

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disse, tentando controlar a voz.Leni teria ido até lá pegar a mão dele, mas não

queria perturbar o sono de Angelika. “Eu sei, eusei.”

Otto expirou todo o ar das bochechas e olhoupela janela. Leni decidiu mudar de assunto o maisrápido possível. “Eu não contei a você por queAngelika fugiu.”

“Por quê?” Otto voltou a olhar para ela.“Ela viu um prédio no caminho até o museu e

voltou para olhá-lo de novo.”“Que tipo de prédio?”“Um edifício qualquer, mas estava coberto de

suásticas e bandeiras.”“Em que rua ficava?”“Prinzregentenstrasse.”“Era um prédio comercial? A sede da Gestapo

fica na Prinzregentenstrasse.” Otto pareciainteressado agora.

“Não, parecia um prédio de apartamentos.”Os olhos de Otto se arregalaram. “Então, é a

residência pessoal de Hitler em Munique. É oúnico lugar com alguma importância nessa rua.”

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Leni sentiu seu coração dar um salto. “Eladisse que já esteve lá dentro, quando era muitopequena, no Natal.”

“Você acreditou?”“Por que ela mentiria?”Os dois ficaram em silêncio por um momento.“Quem é ela?”, Leni perguntou depois de um

tempo.“Não sei e não quero saber. Nossa tarefa é

tirá-la daqui sã e salva o mais rápido possível, nãocomeçar a bancar os detetives.”

“Mas você deve estar curioso.”“Não. Curiosidade faz mal”, ele disse, mas

Leni podia ver que não era verdade.A porta da cabine se abriu. Uma mulher de

meia-idade vestindo um terno de lã escuro parouna entrada.

“Alguém está sentado aqui?” Ela apontou como guarda-chuva para o assento vazio ao lado deLeni.

“Não, está vago”, disse Otto, levantando-secomo um rapaz educado. “Posso ajudá-la comisso?”

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“Não, obrigada, sou perfeitamente capaz.” Amulher levantou uma pequena valise de couro atéo bagageiro acima do assento e se sentou ao ladode Leni.

Otto e Leni se entreolharam. Em volta dopescoço da mulher, em um pedaço de fita, haviauma Medalha de Mães. Uma pequena cruz azul ebranca esmaltada com a suástica no meio. Eraoferecida a mães em um dia especial de maio.Mas, o mais importante, até onde Otto e Lenisabiam, ela usava uma faixa azul-escuro na mangaesquerda. Dizia “Reichsfrauenschaft”, o que aidentificava como esposa de um membro doquadro nacional do partido nazista. Eles estavamcompartilhando a cabine com uma bisbilhoteiraprofissional.

A mulher se acomodou por um ou doisminutos e, então, lentamente, lançou um olharpara Otto, Leni e Angelika, que ainda dormia.

“Então, digam”, ela começou, “o que trêscrianças estão fazendo sozinhas em um trem?” Elanão esperou uma resposta. “Não digam, vocêsestão fugindo de casa.” E sorriu para eles, com um

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ar conspiratório.

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28

Descoberta

Do helicóptero, Heydrich podia ver o fazendeirosentado numa carroça de feno. Quase teve umataque cardíaco quando o Flettner desceu em seucampo. O local já estava cheio de veículos doexército, e soldados vestindo o uniforme preto daSS haviam se colocado em formação de busca,formando um leque.

Depois de aterrissar, Heydrich saltou para forado helicóptero e marchou até o homem, cujosolhos ainda estavam arregalados pelo choque.

“Onde está?”, disse ele.

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Cinco minutos depois, eles estavam nobosque, sob uma árvore, olhando para os fioscortados e a lona rasgada do paraquedas. Umoficial subalterno correu até ele, com o traje dovoo e o capacete de Otto. Heydrich os examinoucom cuidado. Feito nos Estados Unidos, masexpedidos pela Força Aérea Britânica. Como elehavia pensado, agentes britânicos.

“Dê ordens para que seus homens vasculhem aárea inteira.” Ele se voltou para o fazendeiro. “OReich agradece. Vou comunicar seu líder localpelos serviços prestados.”

O fazendeiro levantou o braço emcumprimento.

Heydrich saiu do bosque. Tanto o Mercedesquanto uma tropa especial para seu uso haviamchegado.

“Então, agora sabemos de onde eles vieram eonde aterrissaram”, ele disse aos subalternos queestavam reunidos à sua volta. “Eu suspeito queexista mais de um agente. A lógica sugeriria umhomem e uma mulher, para que possam viajarcomo uma família. A questão é: onde estão

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agora?”Nesse momento, um jovem tenente chegou

em uma motocicleta. Ele freou com umaderrapada ao lado do grupo e correu atéHeydrich.

“As impressões fotográficas que o senhorsolicitou de Berghof.”

Heydrich abriu o envelope e olhou para agrossa pilha de fotografias da garota. Eram todasiguais, a mais recente havia sido tirada no anoanterior, cinquenta cópias ainda úmidas darevelação. Era uma menina bonita, rosto redondoe sorridente, o cabelo preso em marias-chiquinhascomo o de sua filha. Ela usava um vestido bávarotradicional. A foto havia sido tirada contra umfundo branco simples, provavelmente os muros doconvento.

“Distribua entre os oficiais. Esta é a meninaque estamos procurando.”

“Senhor! General da SS Müller, deInnsbruck.” O motorista segurava o telefone dalimusine. Heydrich foi até ele e pegou o aparelho.

“Müller? Espero que você tenha boas

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notícias!”“O que estou prestes a dizer vai soar

inacreditável, mas vou pedir que você considerecom cuidado.” A voz de Müller estava calma econtida, revelando sua experiência na polícia. Alinha do rádio estava ruim, mas Heydrich estavadecidido a ouvir o que o investigador, bom comoum perdigueiro, tinha a dizer.

“Diga.”“Colhemos declarações de todas as pessoas

possíveis em Rosenheim, Prien e Stock. Sim,houve casais visitando Herreninsel ontem, masninguém chamou atenção. Além disso, nenhumapassagem foi emitida em nenhuma estaçãoadjacente por um casal com uma criança.”

“E então? Eles podem ter ido de carro, umasérie de carros.”

“E, ainda assim, nenhum carro foi dado comoroubado nas últimas vinte e quatro horas, eninguém se lembra de um casal desconhecidochegando a nenhum desses lugares.”

“Eles podem tê-lo escondido em uma viela ouestrada de terra?”

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“Talvez, mas existe outra possibilidade. Osfuncionários ferroviários em Prien se lembram dedois adolescentes, um menino e uma menina,comprando passagens ontem para Stock.Adolescentes desconhecidos. Houve algum tipo dedesentendimento com alguns rapazes de um clubelocal da NSFK. Então, em Stock, uma menina eum menino de descrição semelhante comprarambilhetes para visitar o palácio em Herreninsel. Foià tarde, a última visita do dia. Os empregados dabalsa não se lembram deles voltando. Há umacampamento de regata de verão da Hitler-Jugend em Stock, mas todas as crianças foramcontadas. No entanto, uma menina entrou nomercado e comprou vinte metros de corda.”

“Prossiga.” Heydrich ouvia atentamente,captando o toque de entusiasmo na vozentrecortada de Müller. Eles não encontraram acorda que foi usada para descer pela janela doconvento. Provavelmente está no fundo do lago,pensou.

“Esta manhã, o vendedor de passagens daestação de Rosenheim vendeu três passagens para

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Innsbruck para um rapaz de uns quinze anos, maisou menos. A primeira partida disponível damanhã.”

“E as descrições batem com as do diaanterior?”

“Mais ou menos, senhor.”Heydrich tamborilou os dedos no carro. “E o

que os funcionários da ferrovia em Innsbruckdisseram?”

“Parece que eles desceram antes de Innsbruck.O coletor de bilhetes aqui tem certeza de que trêsgarotos com essa descrição não passaram pelacancela.”

Heydrich podia sentir os cabelos em sua nucase arrepiando. No dia anterior, voando entre asduas ilhas, ele havia cumprimentado um pequenobote navegando. Tinha uma vela vermelha, elerecordou. E havia dois adolescentes, uma meninae um menino. Fim de tarde, começo da noite.Seriam eles?

“Herr ReichsFührer”, continuou Müller, “seique o que estou propondo parece improvável...”

“Quantas paradas o trem de Innsbruck fez?”,

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Heydrich o interrompeu.“Cerca de meia dúzia, senhor, era o trem

local.”“Interrogue cada pessoa nessas estações.

Alguém deve ter visto algo.”Heydrich passou o fone de volta para seu

operador de rádio e voltou até o grupo de oficiaisque o aguardava.

“Deixe-me ver o macacão de novo.”Um dos oficiais segurou o traje de voo de

Otto.“É meio pequeno, não acham?”, disse

Heydrich, pensativo.Parecia muito improvável. Mas quanto mais

pensava sobre o assunto, mais Heydrich acreditavahaver algo diabolicamente ardiloso na estratégia.Três crianças viajando juntas, quando a lógica diziaque dois adultos haviam levado a menina. AInglaterra tinha uma bela cota de crianças alemãsexpatriadas cujos pais ou haviam fugido com elesou os haviam mandado para fora da Alemanha.Era arriscado, perigoso, uma aposta de poucaschances por parte dos britânicos. E, ainda assim...

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por que não? Quando criança, Heydrich havia lidoSherlock Holmes. O famoso axioma do detetiveveio-lhe à mente: “Quando você elimina oimpossível, o que quer que sobre, por maisimprovável, pode ser a verdade”.

Ele olhou para os oficiais. Eles esperavamansiosamente. Sim, Hey-drich estava inclinado aacreditar em Müller.

“Avisem todas as unidades que estamosprocurando três crianças: dois adolescentes e umamenina.”

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29

Perguntas demais

“Sim, é isso mesmo, eu me lembro da sua escola”,a figura matronal na cabine do trem comentousatisfeita. “O diretor era Herr Schuler quando euestava lá. Você o conhece?”

Otto assentiu, ainda que não fizesse a maisvaga ideia de quem pudesse ser Herr Schuler. Amulher não havia parado de fazer perguntas desdeo momento em que se sentou. Ele trocou maisum olhar rápido com Leni. Ela também estavasendo submetida a muitas perguntas. A situaçãoparecia cada vez mais um interrogatório.

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A mulher havia começado perguntando aondeestavam indo, e ficou satisfeita com a históriasobre a visita à avó em Bregenz. Em seguida,perguntou de onde eram.

“Salzburgo”, respondeu Otto, confiante.“Salzburgo? Que interessante”, comentou a

mulher.Ela mesma havia passado uns dois anos na

cidade estudando para se tornar professora. Claro,ela havia deixado isso para trás e agora trabalhavapara o partido, mas tinha boas lembranças dacidade e se pôs a fazer muitas perguntas detalhadasa eles sobre o lugar. O conhecimento dela pareciaenciclopédico, mas até o momento, Otto e Lenipareciam estar se saindo bem. Por pouco.

“Agora, me contem”, ela continuou, olhandoprimeiro para Leni e então para Otto. “Eu melembro que havia duas padarias antigas e adoráveisperto da escola, Joseph’s e... como se chamava aoutra? Deixe-me pensar... Schekter’s, é isso.” Elasorriu. “Qual das duas é a sua favorita?”

Otto franziu a testa, fingindo estar pensando.“Bem, as duas são boas.”

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“Vamos lá, meu rapaz, você deve ter umapreferida.”

Otto fez um jogo de cara ou coroa mental.“Schekter’s.”

A mulher sorriu de novo. “Ah, sim, eurealmente acho que o strudl deles é o melhor.”

“Se a senhora nos dá licença, precisamosdesembarcar na próxima estação, meine Frau.”Otto olhou com firmeza para Leni. Ele estavaficando nervoso com essa mulher; algo nela o faziapensar em uma cobra.

“Sim, é verdade”, confirmou Leni,apressadamente, para corroborar o que Otto disse,e deu um leve chacoalhão em Angelika. Aindasonolenta, a menina abriu os olhos.

“Mas vocês estão indo para Bregenz. Nãoprecisam mudar de trem até Kempten”, dissemulher.

“É verdade, mas...” Otto revirou o cérebropara encontrar um motivo.

“Uma amiga da família mora na próximaparada”, Leni entrou na conversa.

“E temos um presente da nossa mãe para ela”,

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completou Otto.Agora totalmente desperta, Angelika estava

escutando a conversa, com a testa franzida.A mulher olhou para Leni. “Sabe, minha

jovem, tenho certeza de que você tem umsotaque vienense.”

“É mesmo? A senhora deve ter se enganado”,respondeu a menina. “Vamos”, ela disse aAngelika, “vamos descer.”

“E qual é o seu nome?”, a mulher perguntou àAngelika.

Leni e Otto trocaram um olhar ansioso.“Caroline”, disse Leni, quando a garota estava

prestes a abrir a boca. “O nome dela é Caroline.”Ela rezou para que Angelika não a contradissesse.

Otto levantou, pegou as mochilas do bagageiroe colocou a sua nos ombros. Ele podia sentir atensão aumentando.

“Rapaz, espere.”“Precisamos ir, senhora, por favor.”A mulher subitamente se levantou e se

colocou diante da porta da cabine, bloqueando apassagem. As três crianças ficaram paralisadas.

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“O que ela está fazendo?”, quis saberAngelika, confusa, virando-se para Otto e depoispara Leni.

“O que eu estou fazendo?” A voz da mulherera gélida. “Vou dizer o que estou fazendo. Estoumandando vocês se sentarem e ficarem sentadosenquanto eu chamo o guarda.”

Isso era ruim.“Eu não entendo”, disse Leni. Otto podia ver

que ela estava tentando controlar o pânico. “Oque fizemos de errado?”

“Você não entende?” Claramente, a mulherestava começando a gostar da situação. “Bem, eutambém não entendo. Eu não entendo como vocêpode preferir a padaria Schekter’s à Joseph’squando nenhuma das duas existe.” A mulhersorriu triunfante.

Houve um longo momento de silêncio. Eentão Otto se atirou para a frente, afastando amulher da porta com toda força. Ela foi pega desurpresa e caiu pesadamente no assento. Ottoabriu a porta, e Leni e Angelika saltaram depoisdele no corredor.

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“Como você se atreve a me tratar assim?!” Amulher estava se esforçando para levantar denovo. Ela alcançou o batente da porta para seapoiar.

Otto agarrou o trinco, bateu a porta nos dedosdela e ouviu o grito de dor enquanto corria atrásdas meninas. Ele as alcançou na divisória entreduas cabines. As placas de aço do chão deslizavamsob seus pés.

Otto olhou pela divisória. Lá estava a mulher!Cambaleante, ela estava indo atrás deles pelocorredor, segurando a mão machucada.

“Rapaz, pare imediatamente!”, ela gritou.“Guarda!”

“O que vamos fazer?”, perguntou Leni.“Pular”, respondeu Otto.“E ela?”Otto tirou a mochila dos ombros, enfiou a

mão dentro dela e retirou a pistola e o silenciador.“Pare!”, a mulher estava se aproximando.Ele começou a rosquear o silenciador na ponta

do cano, mas suas mãos tremiam demais.“Deixe que eu faço”, disse Leni. Ele entregou

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as peças, e a menina habilmente as montou. “Nãoolhe”, ela disse a Angelika, e então entregou aarma a Otto, que fez um breve meneio de cabeçaem resposta. Não havia tempo nem alternativas.Ele voltou ao corredor. A mulher estava a menosde dez metros de distância.

“Aí estão...” A voz dela sumiu quando Ottolevantou a pistola e apontou para o peito damulher, que ficou paralisada. O dedo do meninose fechou no gatilho, sentindo o aumento dapressão. E então o rosto da mulher ficou sem cor,os joelhos dela falharam, e ela caiu no chão.

“Ela desmaiou”, disse Otto. “Ela desmaiou.”E se virou para as meninas. “Ela desmaiou”, eledisse mais uma vez. Não foi necessário atirar.

“Então vamos!”, disse Leni, parecendo tãoaliviada quanto ele.

Imediatamente, Otto abriu a janela de correr esegurou a maçaneta pelo lado de fora. Ele a girou,e a porta se abriu, chocando-se contra a parte defora da cabine. O vento entrou. O trem pareciaestar se movendo mais rápido do que nunca.

Leni deu um passo para fora, atirou as

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mochilas e saltou. Sem perder nem um segundo,Otto agarrou Angelika pela cintura, balançou seucorpo e a soltou como um graveto atirado de umaponte. Por último, ele saltou.

Ele chegou ao chão do aterro com um sonorobaque. O exuberante gramado amenizou a queda,mas não a deteve, e ele começou a rolarincontrolavelmente pela encosta íngreme atéalcançar as outras no fundo, formando umamontoado. O trem passou ruidosamente. Eleesperou até que estivesse fora de vista, então selevantou e ajudou as meninas.

Angelika chorava delicadamente, e Leni estavaacariciando as costas da garotinha.

“Ela está bem?”“Só assustada, acho. Nada quebrado.”“Não é isso”, soluçou Angelika. “Tudo está

estragado agora, não está? Aquela mulher vaicontar para a polícia, e eles vão me levar de voltapara o convento, e nós nunca vamos chegar àSuíça, e eu nunca vou encontrar meus pais.”

Otto agachou ao lado da menina. “Você estáerrada, Angelika. Vai ficar tudo bem”, disse ele,

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gentil mas firme.“De verdade?” Angelika parecia em dúvida,

mas Otto podia ver que a menina queriadesesperadamente acreditar nele.

Otto assentiu enfaticamente. “Eu prometo.”Angelika se inclinou para a frente e o abraçou.Por um instante, ele ficou atônito, mas em

seguida a abraçou de volta.Sim, ele havia prometido. E cumpriria a

promessa.

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30

De carona para o sul

“Certo, prepare-se...” Leni gritou para Otto naestrada.

Ela e Angelika estavam agachadas atrás dacerca viva. Pela folhagem espessa era possíveldistinguir o caminhão civil se aproximando. Eraum Czechbuilt Skoda. Leni se pegou sorrindo,lembrando-se de quando seu irmão Jacob tinhaum caminhão vermelho de brinquedo feito delatão. O caminhão era o primeiro veículo queestava de fato indo na direção certa desde quehaviam começado a andar havia mais ou menos

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uma hora. Eles ainda estavam a trinta quilômetrosou mais a leste de Kempten.

Otto estava deitado na beira da estrada. Comoesperado, o caminhão parou, e um motorista deaparência dura desceu dele. “Mãe?”, ela ouviuOtto dizer. Leni sorriu. Ele era um bom ator!

“Eu não sou sua mãe.” O motorista deu umabatidinha nos quadris de Otto com a bota. “O quevocê tem, rapaz? Você está bêbado?”

“Não, não... eu devo ter desmaiado com ocalor. Andei a manhã toda.” Ele se levantou,trêmulo.

“Aonde você está indo?” O motorista deu ascostas para o caminhão e limpou a nuca com umlenço de aparência suja. Fazia muito calor.

“Agora!”, sussurrou Angelika, e juntas elascorreram até o veículo.

“Para o sul”, respondeu Otto.Posicionadas em segurança na parte de trás do

caminhão, Leni cruzou os dedos para que omotorista também estivesse indo para o sul.

“Certo. Entre. Eu também estou indo paralá.”

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Otto entrou na cabine, colocou a mochila ládentro e fechou a porta.

Finalmente, pensou Leni. Eles estavam emmovimento de novo, e indo na direção dafronteira.

O caminhão estava cheio de ferramentasagrícolas, incluindo uma dúzia de foices, presas emum embrulho grosso.

“Posso perguntar uma coisa, Leni?”, sussurrouAngelika, ainda que a chance de o motorista ouvi-la com o barulho do motor fosse quase zero.

Leni assentiu.“Eu vou realmente encontrar meus pais?”Leni olhou para a menina. De repente, ela

pareceu ainda mais nova e vulnerável que seusnove anos.

“Por que você está perguntando?”, ela quissaber, tentando desviar da questão. fosse qual fossea verdade, Leni não tinha intenção nenhuma de sedesviar do roteiro de MacPherson.

“Eu achei que não”, disse Angelika.“Eu não disse que não. Eu não os conheci

pessoalmente, mas me disseram que eles estão

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esperando por você na Suíça.”Aquilo era verdade.“É mesmo?” Angelika não conseguia disfarçar

a dúvida em sua voz.Leni assentiu da maneira mais convincente que

conseguiu.“Não acredito”, disse Angelika. “Eu

costumava desejar tanto que eles viessem me ver,que me levassem do convento, mas no finalcheguei à conclusão de que nunca viriam.Nunca.”

“Agora eu vou fazer uma pergunta”, disseLeni. “Aquele prédio em Munique, o que vocêconhecia. Aquele é o apartamento pessoal doFührer. Você tem certeza de que já esteve lá?”

“O Führer?” Angelika estava claramentesurpresa. “Sim, quero dizer, eu me lembro... deser levada para lá. Não sei quantos anos tinha. EraNatal, eu me lembro disso. Havia uma árvore,presentes e muitas outras crianças, todo mundocantou canções natalinas.”

“Quem levou você lá?”“Uma babá, eu acho. Eu não me lembro do

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nome dela. E o tio Rudi estava lá.”“Tio Rudi?” Leni sentiu que estavam

chegando a algum lugar.“Ele é o homem que me visita e traz

chocolates no meu aniversário.”“Como ele é?”“Adulto”, Angelika deu de ombros. “Ele tem

cabelo preto.”Assim como metade dos homens na Baviera,

pensou Leni.“Ele é muito gentil quando vem me visitar,

mas só fica uma hora. Ele nunca disse nada sobreos meus pais.”

“Você perguntou a ele?”Angelika balançou a cabeça. “Ele disse que eu

era uma menina especial, assim como a madresuperiora.”

“Você perguntou por que ele vinha vervocê?”

“Perguntei, mas o tio sorria, ria e dizia que eleera como o Papai Noel, fazendo uma visita parame levar um presente.”

As duas ficaram sentadas em silêncio no ar

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quente e abafado. O caminhão balançava echacoalhava.

“Onde estão seus pais?”, perguntou Angelika.“Ah, eles estão em Salzburgo”, Leni

respondeu com naturalidade.“Que bom”, disse Angelika após uma longa

pausa. “Às vezes, é difícil ficar sozinha.”Leni segurou a mão da menina. “Eu sei. E eu

prometo que, aconteça o que acontecer, você nãovai ficar sozinha. Você vai sempre ter Otto e eucomo amigos.”

“Promete?”Leni assentiu, e dessa vez era verdade.“Vocês são irmãos de verdade?”, perguntou a

menina.Leni ficou surpresa, mas a garota estava

olhando tão atentamente que ela soube que nãohavia por que mentir.

“Bem, não, na verdade, não somos. Mas vocêprecisa prometer guardar segredo.”

Angelika sorriu. “Claro que prometo, e...bom, eu nunca contei isso a ninguém, mas agoraque você é minha amiga, posso contar. Você

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também pode guardar um segredo, Leni?”Angelika se aproximou dela.

“Sim, claro.”“Você jura por Deus?” A menina foi solene.

Leni colocou a mão no coração e repetiu aspalavras.

“Sabe, eu pensei muito nisso, e talvez meuspais não existam.”

“Claro que eles existem.” Leni sorriu. “Todomundo tem pais, Angelika. Nós podemos nãosaber quem são ou onde estão às vezes, mas elesexistem. Se não, você não poderia existir, não é?”

“Não necessariamente”, respondeu Angelika.Leni olhou para a menina. “Eu não entendo.

O que você quer dizer?”“Estou dizendo que você não precisa ter pais.

Não se você for um anjo.” A garota falou baixo,mas totalmente a sério.

Leni achou que não tinha ouvido direito.“Como?”

Quase serena, Angelika a olhava comsinceridade.

“É verdade. Talvez eu seja um anjo. Todo

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domingo, eu faço uma caminhada com a madresuperiora, só nós duas, pela ilha. E ela diz que eusou especial, que preciso ser protegida do mundoexterno... acho que é por isso que a irmãMargareta não gosta de mim. Ela não gosta do fatode eu ser especial. A madre superiora disse queum dia tudo vai ser explicado, quando eu for maisvelha. Então é por isso que eu acho que sou umanjo. Porque eles são especiais, não são?”

Leni olhou para a menina. Naquele momento,ela sentiu um desejo tão grande de protegê-la, e àsua inocência. “Bem”, ela disse com delicadeza,“é uma possibilidade.”

“Então você acredita em mim?” O rosto deAngelika se iluminou.

“Eu gostaria de acreditar”, Leni disse apenas.Angelika abriu um sorriso largo. “Estou tão

feliz por ter contado a você. Eu achei que vocêfosse achar a ideia idiota.”

“Claro que não”, disse Leni. “Por que vocênão fala mais sobre isso?”

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31

Farejando

Heydrich tomou um gole de café e continuouestudando o mapa aberto sobre a mesa rústica. Elehavia parado em uma hospedaria a cerca de umahora de Munique. No meio do jardim atrás daconstrução, o helicóptero estava sendoreabastecido por um caminhão-tanque sob o olharcuidadoso do piloto.

O restante dos homens estava sentado pertodos veículos, almoçando. O motorista falava aorádio, acompanhando a caçada.

Enquanto estudava a quantidade infinita de

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estradas, vias e passagens pelas montanhas quelevavam à fronteira, ele se deu conta de queencontrar essas três crianças seria como encontraruma agulha num palheiro. Ele estava desesperadopara voltar à busca. Infelizmente, era precisoesperar. Bormann havia ligado uma hora antes deBerghof para relatar o desejo expresso de Hitlerde que outra pessoa fosse trazida para ajudar.

O cavalheiro em questão estava a caminho deBerlim para se juntar a eles. Ele se chamavaLudwig Straniak, era um místico e astrólogo efazia parte do Instituto de Questões Ocultas deGuerra. Aparentemente, ele era um especialistaem radioestesia. Isso significava que tinha ahabilidade de encontrar uma pessoa apenas com oauxílio de um mapa e um pêndulo. Heydrich eracético, mas se o Führer acreditava, então,naturalmente, seguiria suas ordens. Foi quando eleviu o operador de rádio tirar os fones, descer doMercedes e ir até ele.

“Algo inesperado surgiu, senhor. Talvez sejaimportante. O quartel-general acabou de receberum relatório do escritório da Gestapo em

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Kempten.”Heydrich analisou o mapa com cuidado antes

de apontar a locação com o dedo indicador, anoroeste de sua posição atual.

“Continue.”“Eles foram chamados por um policial local

para um povoado a leste. Uma parada na linhaferroviária. Uma mulher afirma ter sido agredidapor três crianças no trem de Munique paraKempten.”

Heydrich lançou um olhar penetrante.“Não apenas isso. A mulher está convencida

de que as crianças estavam mentindo sobre suaorigem. Eles disseram vir de Salzburgo, mas elatem certeza de que não é verdade.”

“Qual é a idade das crianças?”“Um garoto de catorze ou quinze anos, uma

garota um pouco mais nova e uma terceiramenina de nove ou dez.”

“Descrições?”“Cabelo loiro, todos eles. Vestindo uniformes

da Hitler-Jugend e da BMD.”Provavelmente tingiram o cabelo da menina.

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“Quais trens partiram de Rosenheim paraMunique hoje de manhã?”

O operador checou suas anotações. “Nenhumtrem de passageiros até dez da manhã, mas umtrem de carga passou na mesma hora que o tremde Innsbruck estava partindo.”

“A mulher viu fotos da menina?”“Ainda não, senhor, eu mandei um

mensageiro com uma foto. Ele deve chegar emmenos de uma hora.”

Heydrich estava andando para o helicóptero.Ele parou quando ouviu uma BMW correndopela estrada na direção deles, com dois batedoresda DD vindo na frente; as sirenes ligadas.

“Não espere o mensageiro chegar lá. Vamospresumir que são eles. Estão indo na direção dafronteira com a Suíça. Diga ao grupo de Innsbruckpara desviar para o sul na direção das montanhas ecobrir as estradas a sul e a oeste de, digamos,Oberstdorf. Diga para, de lá, seguirem para onorte. Com sorte, e com a ajuda da nossa armasecreta, eles estarão ao nosso alcance até o cair danoite.”

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“Arma secreta, senhor?”, perguntou ooperador.

A BMW freou ruidosamente formando umturbilhão de poeira ao lado de Heydrich. Nobanco de trás, parecendo um pouco abalado coma velocidade da jornada, estava um homem debarba e óculos vestindo um terno cinza de verão.Com o ar de um professor distraído e a gravatamanchada de sopa, ele desceu do carrocambaleando, apertando os olhos diante da luz dosol. O homem enfiou a mão no bolso do terno epegou um par de lentes de sol para prender nosóculos.

“Nossa arma secreta”, disse Heydrich, comescárnio. “Herr Straniak, do Instituto de QuestõesOcultas de Guerra.”

O operador de rádio olhou para Straniak comceticismo.

Heydrich se aproximou do homem,oferecendo a mão para cumprimentá-lo. “OFührer tem muita confiança em seus dons.”

Straniank assentiu. E então algo estranhoaconteceu. Algo que Heydrich só viria a se

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lembrar bem no final da vida. Quando as mãos dosdois se tocaram, o místico recuou, recolhendo asua, e ficou pálido.

“Está tudo bem?” Heydrich encarou ohomem, surpreso com a aparente grosseria.

“Sim, claro”, gaguejou Straniak. E então elepareceu se recuperar. “Peço desculpas, estou umpouco cansado da viagem.”

Heydrich assentiu, mas não estava convencidopela explicação. Ele claramente notou um olharde medo e choque nos olhos de Straniak. Haviarumores de que alguns desses místicos tinhampoderes psíquicos e eram capazes de prever ofuturo Heydrich procurou se esquecer da reaçãodo homem no momento do aperto de mão. “Euentendo. Mas sinto em dizer que precisamos partirde novo. Por favor...” Heydrich indicou ohelicóptero. “Eu explico tudo quando estivermosvoando para o norte.”

Straniak pareceu assustado. “Não vamos viajarnessa engenhoca, eu presumo.”

“Na verdade, vamos. Mas eu garanto que étotalmente segura. Vá para Kempten, o mais

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rápido possível!”, ele disse ao operador e, então,voltando-se para Straniak, “Pegue seus pertences.Não há tempo a perder.”

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32

Um breve respiro

Quando calculou que eles estavam a cerca detrinta quilômetros em linha reta da fronteira coma Suíça, Otto pediu ao motorista do caminhãopara deixá-lo descer em um cruzamento desertopara evitar ser visto ou ter contato com qualquerpessoa.

O motorista foi embora com um aceno pelajanela. Otto ficou parado sozinho por um instante,e então Leni e Angelika surgiram de uma vala nabeira da estrada para onde haviam saltado quandoo caminhão parou.

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Os três começaram a andar pela beira daestrada, sempre alertas ao barulho de veículos.Mas eles não encontraram ninguém pelo caminho,ainda era hora do almoço. Depois de mais oumenos meia hora, Ange-lika começou a andar nafrente dos dois. Isso deu a Leni a chance queesperava para conversar com Otto.

“O tio Rudi, o tio que a visitava todo ano noaniversário dela.”

“O que tem?”, disse Otto.“Quem você acha que pode ser?”Não querendo pensar nessas coisas, Otto deu

de ombros. Ele estava totalmente concentrado emfazê-los chegar vivos ao outro lado da fronteira.“Então, talvez nós devêssemos apenas...”, elecomeçou a falar.

“Bem, eu acho que é Hess, Rudolf Hess.”Otto olhou para ela. “Você acha?”“Bom, o nome, obviamente — Rudi, Rudolf

—, e Hess tem cabelo preto. Nós sabemos que elefugiu para a Inglaterra no mês passado. E então derepente nós fomos recrutados para vir para cá.Acho que está tudo ligado.”

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“Acho que é possível.” Mas aquilo pareciaimprovável.

Angelika virou e chamou os dois. A meninaestava parada em uma ponte de madeira.“Olhem!”, ela gritou. “Um rio!”

Otto e Leni a alcançaram e olharam parabaixo.

Eles estavam cansados, com calor e suados. Aágua borbulhante lá embaixo pareciaincrivelmente convidativa no sol sufocante datarde. Um peixe prateado saltou da margem.

“Podemos parar e nadar?” Os outros doisestavam pensando nisso, mas foi Angelika queperguntou em voz alta.

“Nós precisamos ir”, disse Otto, sem muitaconvicção. “A fronteira não está longe agora.”

“Só por dez minutos, Otto.” Leni pareciatensa e cansada.

“É perigoso, Leni. Vamos ficar expostos.” Masele estava começando a ceder.

“Não tem ninguém. Vamos!”, ela insistiu.Otto olhou em volta. De fato, tudo parecia

calmo. E eles estavam a uma distância segura da

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cidade. “Certo”, disse o garoto, “mas só dezminutos.”

Os três desceram deslizando pela lateral daribanceira e esconderam as mochilas embaixo daponte. Angelika gritava de prazer.

“Sem fazer barulho!”, repreendeu Otto,tirando as botas e as meias. Em segundos, Leni eAngelika estavam só com a roupa de baixo indopara o meio do rio estreito.

Quando se acostumaram ao choque da águagelada, foi delicioso. Nada parecido com o marem Dunquerque, o fosso lamacento da mansão ouo lago. Talvez o que tivesse acontecido noChiemsee o tivesse ajudado a superar o medo.Otto respirou fundo e então mergulhou e nadoupara o fundo, tocando uma das rochas no leito dorio antes de bater os pés e voltar à superfície. E riuao ver Leni e Angelika jogando água uma naoutra.

Depois de nadar mais um pouco, Otto subiuaté a grama da margem para se secar. Fechando osolhos, Otto sentiu o calor do sol em seu corpo edeitou-se ali, com o barulho das garotas jogando

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água e rindo, deixando sua mente vagar. Era tãobom simplesmente parar por alguns minutos,relaxar e ficar quieto. Ele colocou as mãos atrás dacabeça e olhou em volta.

Eles estavam quase no sopé da colina de Tirol.Se conseguissem dar a volta nas montanhas atéBodensee, que provavelmente ficava a umadistância de quarenta quilômetros dali, tudo o queteriam de fazer seria encontrar a lancha queMacPherson havia posicionado do lado alemãopara eles. Quando escurecesse, eles atravessariam oBodensee, até o ponto de encontro comMacPherson na parte suíça do lago. A sensação éde que estavam perto, mas muito longe ao mesmotempo.

“Você pode me ajudar?”, chamou Leni.Ele olhou. Ela estava perto da borda, com o

braço direito levantado. Otto levantou-se e foi atéela. O garoto pegou a mão de Leni e puxou-apara cima. Leni saiu da água em um movimentogracioso, e Otto notou que ela estava com ocorpo frio e molhado. Subitamente, ele quis beijá-la, do jeito certo, como nos filmes.

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E então Leni soltou a mão dele, agradeceu econtinuou andando. Otto ficou parado por uminstante, totalmente imóvel.

“E eu?” Angelika estava olhando para ele dedentro do rio.

Ele segurou a mão da menina e a puxou parafora da água.

Quando virou, Leni havia colocado a saia, acamisa e estava arrumando seu rabo de cavalo. Elao encarou e sorriu. Era um tipo de sorrisodiferente de qualquer outro que tivesse visto antes,pensou Otto.

Quando foi para debaixo da ponte pegar asmochilas, ele se pegou sorrindo também; até ouviro barulho de veículos se aproximando!

“Rápido! Aqui embaixo!”, gritou o garoto.Leni agarrou a mão de Angelika e correu para

se juntar a ele.Em menos de um minuto, o primeiro veículo

estava passando pela ponte. Os suportes demadeira rangeram e envergaram. Otto se inclinouo suficiente para ver um Kübelwagen cinza doexército, cheio de tropas da SS, com seus

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capacetes pretos característicos. E logo depoispassou outro caminhão levando mais uma tropa.

“Será que estão nos procurando?”, sussurrouLeni.

Ele sentiu o hálito quente da menina na orelhae gotas de água do rabo de cavalo pingando namanga de sua camisa.

“Sim”, Otto respondeu, virando-se para ela.O rosto, os lábios da garota estavam a apenas

um centímetro e meio dele. A boca de Leniestava levemente aberta; a respiração, rápida.

“Estamos muito encrencados”, Angelikasussurrou.

Vários tipos de encrenca, pensou Otto.

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33

Escondidos

Os três estavam andando fazia muitas horas eestavam exaustos. Tão exaustos que Leni eAngelika deitaram dentro do bosque, longe daestrada. Otto tinha ido na frente para exploraruma pequena vila e ver se havia um lugar ondepudessem descansar e se esconder até o anoitecer.Depois, os três correriam para atravessar afronteira e o lago onde, se Deus quisesse, estariamseguros.

Os garotos haviam decidido viajar a noite todaporque não estava escurecendo de fato antes das

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dez. Além disso, havia bloqueios nas estradas. Elesquase foram pegos no primeiro. Nele, estava umadas tropas que viram passar. O caminhão estavaestacionado atravessando o meio da estrada, comum Kübelwagen de cada lado. As tropas estavamparando e revistando todos os veículosminuciosamente. As pessoas eram removidas dosveículos, tinham suas boinas e botas inspecionadas,e a documentação do carro, verificada.Felizmente, Otto, Leni e Angelika conseguiramsair da estrada antes de serem vistos. Mas quandose depararam com outro bloqueio poucosquilômetros depois, decidiram sair completamenteda estrada principal e acompanhá-la por umbosque próximo. Ali, havia uma antiga estrada damontanha, conhecida como Alpenstrasse, que oslevaria até a fronteira em zigue-zague pelo sopédas colinas e pelos vales. A jornada era difícil. Ede repente as rotas acidentadas percorridas pelosmoradores da região acabaram, e os garotostiveram de passar por árvores caídas e montesespessos de feno espalhados. Toda vez queparavam para descansar, Leni e Otto

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esquadrinhavam a estrada principal com osbinóculos e, com certeza, havia mais bloqueios, ouveículos militares cheios de tropas indo para ooeste da fronteira. Os dois trocaram olharesansiosos, mas não disseram nada, cientes danecessidade de não assustar Angelika. Mas estavaclaro que aquilo era uma busca organizada. E quealguém sabia aonde estavam indo. Sem dúvida, amulher no trem havia alertado as autoridades, quehaviam somado dois mais dois.

Leni abriu os olhos e se sentou, sentindo-semelhor depois do descanso. Por que Otto nãoestava de volta? Era engraçado, os dois mal seconheciam, mas ela sentia muito a ausência dele.A maneira como Otto a havia segurado no rio, oolhar, o calor do hálito dele em seu rosto ahaviam feito sentir como se algo incrivelmenteemocionante estivesse prestes a acontecer. Leni seesforçou para não pensar naquilo. E desejou quepudesse conversar mais com Otto sobre Angelika,mas não teve chance. Talvez mais tarde. Mas umacoisa era certa: todas aquelas tropas correndo paraencontrá-los significavam que Angelika era alguém

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muito importante.Ela se inclinou e cutucou a menina para

acordá-la.Angelika abriu os olhos, se espreguiçou e

bocejou. “Estou com fome”, disse.“Aqui, beba um pouco de água.” Leni lhe

entregou o cantil. Ela queria manter o pouco decomida que ainda tinham para a noite.

“Otto não voltou?”, perguntou a garotinha.Leni balançou a cabeça.“Mas ele está bem, não está?”“Está tudo bem. Ele vai voltar logo.”“Se alguma coisa acontecer com ele, não sei o

que vou fazer.”“Você gosta dele, não é?”, Leni perguntou

com delicadeza.“Sim”, Angelika respondeu, assertiva. “Você

também.”Leni se sentiu corar. “Não gosto, não”, ela

protestou.“Bom, ele gosta de você”, disse Angelika.

“Você acha que ele gosta de mim?”Leni assentiu. “Claro que gosta.”

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“Ele falou isso para você?” Angelika olhavapara Leni, esperançosa.

“Bem, não com palavras, mas eu posso verque gosta. Ele é muito protetor.”

Angelika sorriu. “Ele é mesmo, não é?” Elaolhou para Leni. “Quero dizer, você também é.”

Mas não é a mesma coisa, né? , pensou Leni. Elacostumava desejar ter irmãos mais velhos, masagora não ligava mais. Tudo o que desejava eraque Isaac e Jacob estivessem seguros em algumlugar e que um dia pudesse vê-los de novo.

De repente, as duas ouviram o barulho depassos se aproximando, e Leni fez Angelikaabaixar. Ela pegou a pistola na mochila, levando odedo indicador aos lábios para pedir silêncio. Ospassos cessaram. E então veio um assobio de umaúnica nota. Leni sorriu aliviada e assobiou aresposta de três notas. Momentos depois, Ottoestava agachado ao lado das meninas.

“Precisamos ser rápidos. Há um celeiro a unssetecentos e cinquenta metros do vilarejo. Estávazio. Podemos nos aproximar pelo bosque semsermos vistos. E então podemos continuar

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andando.”Angelika suspirou. Ela parecia exaurida.

“Estou tão cansada. Não podemos esperar aqui?”Otto olhou para ela. “E se eu levar você de

cavalinho?”“De cavalinho?” A menina começou a sorrir.

“O que é isso?”“Você nunca ouviu falar em andar de

cavalinho?”, perguntou Otto.Angelika balançou a cabeça. “É simples, sua

boba, você sobe nas minhas costas...” Ele seajoelhou, tirou a mochila e a entregou a Leni.

“Muito obrigada”, ela disse em resposta. Lenihavia tirado o palito mais curto.

Angelika subiu nas costas dele.“Você é leve como uma pluma”, ele disse

quando começaram a andar. O celeiro realmenteparecia ideal. Ficava no alto de um campo quedava para o pequeno vilarejo. E, como as vacasestavam pastando nas montanhas nessa época doano, estava vazio.

O melhor de tudo era que ficava a mais oumenos cinquenta metros do bosque e tinha uma

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saída pelos fundos.Eles entraram com cuidado e fecharam bem os

portões usando um pedaço pesado de madeira.“Vamos subir até o palheiro”, disse Otto,

apontando para uma escada.Os três subiram, Otto retirou a escada, e então

eles se arrastaram pelos montes de feno até a parteda frente do celeiro. De lá, podiam ver o vilarejopelas rachaduras das persianas.

Angelika deitou no palheiro e fechou os olhos.Ela parecia ansiosa.

“Durma”, disse Leni, “Vamos ter uma longacaminhada à noite.” Ela esperou que a meninapegasse no sono rápido. Estava louca paraconversar com Otto, que estava encostado naspersianas, olhando para fora. Ela foi até lárastejando e se sentou ao lado dele.

“Pelas minhas contas, estamos a uns vinte ecinco quilômetros do Bodensee”, disse ele. “Sesairmos depois que escurecer, provavelmentevamos chegar daqui a sete horas.”

Leni fez uma conta mental. “E depois?Amanhã ficamos escondidos o dia inteiro?”

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“Sim, depois que localizarmos o barco. Eleestá atracado em uma baía ao sul de Bregenz.Podemos nos aproximar por cima, pelas colinas.Assim que escurecer, atravessamos o lago até oponto de encontro. É nossa melhor opção. Oalmirante MacPherson disse que esperaria pelotempo que fosse necessário.”

“Certo.” Leni abraçou os joelhos e encostou oqueixo neles.

“Eles estão se aproximando de nós, nãoestão?” O tempo, ela sentia, estava se esgotando.

“Se ficarmos longe das estradas, temos umaboa chance”, disse Otto, sem responder àpergunta.

Ele pegou os binóculos e olhou para o vilarejo.Havia cerca de seis casas em uma estrada, umapequena igreja em uma extremidade e umapequena hospedaria no centro. Uma estrada deterra ligava o vilarejo ao celeiro, atravessando umacampina.

“Acho que ela dormiu, e você?”, disse Leni.Otto olhou para Angelika e assentiu. “Por

quê? O que foi?”, ele quis saber.

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Leni se deu conta de que seu coração estavabatendo rápido. “Tenho pensado nela, em quemela pode ser. Se Hess é o ‘tio’ dela, quem é opai?”

Os dois olharam para a menina dormindo. Porum buraco no telhado, o sol do fim de tarde aestava banhando em um feixe repleto de poeira.Apesar de as bochechas de Angelika estaremcoradas por causa do calor, o rosto estavatranquilo, e a expressão, calma. Sua aparência eratão serena, quase etérea.

“Ah, não, você não está dizendo que...” Ottosoava incrédulo.

“Sim, estou. É exatamente o que estoudizendo.”

“Hitler?” Otto disse o nome com cuidado.“Sim. Eu acho que é por isso que todos os

alemães a querem tanto. É por isso que os inglesesa querem também.”

Otto olhou para ela, chocado, e então, bemdevagar, assentiu. Pela primeira vez, Leni viu queele estava com medo.

Ela continuou. “Angelika passou a metade da

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vida morando no convento, isolada do mundoexterno. Ela não tem pais. Pelo menos, não selembra deles. A madre superiora diz toda semanacomo ela é especial, como é preciso cuidar dela. Eo assessor de Hitler ia visitá-la todo ano noaniversário dela.”

“E ela se lembra de ter estado na casa deHitler em Munique. Ela deve ter sido mandadapara o convento antes que pudesse fazer perguntas— ou antes que começassem a fazer perguntassobre ela.”

Otto colocou a cabeça nas mãos.“Angelika tinha razão — nós realmente

estamos muito encrencados.”“Você acha que eu não sei disso?”“Eles nunca vão nos deixar em paz.” Otto

estava lutando para controlar o pânico.“Pare, Otto”, disse Leni com firmeza.“É a filha de Hitler, Leni. A filha dele. O que

vamos fazer?”“Eu não sei... estou pensando.”Eles ficaram sentados no calor sufocante, em

silêncio.

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“Parece que só temos duas opções”, ele disse,depois de um tempo.

“Que são...”“Nós a deixamos aqui com um bilhete para

que vá até o povoado e nós dois vamos emboraagora, rumo à fronteira. Podemos inventar umahistória para MacPherson.”

Leni balançou a cabeça. Era a maneira maisgarantida que os dois tinham de sobreviver, masela detestava a ideia — e sabia que Otto também.“Não. Como vamos saber o que os nazistas vãofazer com ela? Eles podem prendê-la para sempre,ou fazer algo pior.”

“Não é problema nosso.”“Não é?” Leni lançou um olhar duro para ele.

“Você realmente quer fazer isso? Fugir?”Otto olhou para Angelika, que se mexeu um

pouco enquanto dormia, fazendo uma mecha decabelo loiro cair sobre o rosto. Leni podia ver queele estava se debatendo por dentro, lutando contraaquilo tudo. Finalmente, Otto a encarou. “Entãonós concluímos a missão e a levamos para o outrolado da fronteira hoje à noite. E a entregamos a

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MacPherson”, disse ele.“E o que ele vai fazer com Angelika?”“Não sei e não me importo. Leni, essa são as

nossas ordens.” Otto tentou encerrar a discussão.“E ela? Vamos contar quem ela é?”Os dois olharam para a menina mais uma vez

e, em seguida, um para o outro.Ela não era mais apenas uma menina para os

dois. Era a irmãzinha deles agora. Uma lembrançados irmãos mais novos que ambos haviam perdido.

“Ela acha que vai encontrar os pais na Suíça”,Leni disse devagar, lembrando-se da esperança damenina. “Vamos deixar assim.”

Leni só podia imaginar a bomba que a verdadetraria para a menina. Angelika não havia pedidopara nascer nem para ser filha daquele homem.

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34

A premonição de Straniak

Eles estavam no helicóptero indo para o oestequando Straniak começou a gritar e gesticularloucamente para que o piloto pousasse. Desceramrapidamente e encontraram uma área plana nomeio de um vale onde dois rios convergiam emângulos quase retos.

Straniak saltou do veículo e correu na direçãodo encontro das águas. Saindo do chão havia umasérie de seixos, que sem dúvida haviam rolado dasmontanhas em algum momento. Um em especial,uma placa enorme de granito, havia chamado a

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atenção do homem. Ele ficou parado ao lado dapedra por uns trinta minutos e então correu atéuma árvore ali perto. Em seguida, quebrou umgalho baixo, fez um instrumento de radioestesiaem forma de Y e começou a andar em círculospequenos em volta da placa, segurando o galhocom a ponta dos dedos.

Heydrich ficou observando, cada vez maisirritado.

“Herr Straniak, eu não quero apressá-lo, mas aluz está acabando.”

“Temos mais três horas de luz hoje”,respondeu Straniak, e continuou a andar emcírculos.

“Não para voar com segurança.”Straniak fechou os olhos e suspirou

profundamente. “Serei o mais rápido que puder.”“Posso ajudá-lo?”, Heydrich perguntou.“O silêncio seria útil.”Heydrich queria bater naquele homenzinho

por sua arrogância, mas se conteve. Haveriatempo suficiente para ensiná-lo a ter respeitoquando a garota fosse encontrada. Ele mudou de

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posição e sentiu o suor escorrer pelas costas,encharcando sua camisa. Se Straniak gostava dopróprio pescoço, era melhor provar seu valor.

“Acho que você vai descobrir que minhapresença é valiosa na sua busca”, Straniakmurmurou.

Ele também lia mentes?Antes que Heydrich pudesse dizer mais

alguma coisa, o místico continuou. “Estamosexatamente sobre uma linha ley muito forte.”

“E isso é bom?” Heydrich só fazia uma vagaideia do que era uma linha ley. Pseudociênciamística, até onde ele sabia.

“Muito bom para rastrear energia.” Straniak seabaixou, abriu sua pasta marrom e retirou umasérie de objetos de dentro. Primeiro, ele abriu ummapa da região e jogou uma moeda dourada sobrea localização deles. Em seguida, colocou afotografia original da menina sobre o mapa. Porúltimo, pegou um pequeno pêndulo de bronzepreso a uma delicada fita de seda preta. Essa erasua grande especialidade, a razão por que aMarinha alemã havia dado a ele um departamento

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inteiro em Berlim: localizar navios de batalha ecruzadores aliados nos oceanos do mundo.

Com muita delicadeza, ele segurou o pêndulosobre a fotografia com o polegar e o indicador.Depois de alguns segundos, aparentemente porvontade própria, o pêndulo começou a se mover egirar lentamente, desenhando círculos que setornaram cada vez mais rápidos. O objeto setornou um borrão dourado, a luz do sol sendorefletida em pequenos raios ofuscantes.

Então Straniak começou a passar o pêndulopelo mapa desenhando uma grade perfeita egeométrica. Heydrich observava, petrificado.

No mínimo, era um truque impressionante. Opêndulo continuou se movendo para o oeste emdireção a Bodensee, passando pelo norte e o sulem grandes arcos.

De repente, o objeto parou de girar, se fincouem um ponto específico, com uma leve vibraçãoemanando dele.

“A criança está aqui”, disse Straniakcalmamente.

Heydrich moveu-se para a frente e ficou de

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joelhos para ler o nome do local no mapa. Era umpequeno povoado perto do vilarejo de Weiler. SeStraniak estivesse certo, ele realmente haviaencontrado uma agulha num palheiro.

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35

A chegada de Heydrich

Otto ficou olhando para a estranha máquinavoadora que surgiu acima do povoado fazendo umestrondo pesado e peculiar. Em vez de um aviãonormal com asas, a máquina parecia pairar no arcom algum tipo de hélice. Ele nunca tinha vistonada como aquilo antes. O garoto ficouobservando com um desconforto cada vez maiorenquanto a máquina sobrevoava o local formandoum amplo arco. Ele conseguiu distinguir trêspessoas na cabine aberta, todas de capacete eóculos e sentiu o coração disparar. E então, com a

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mesma velocidade que surgiu, a máquina disparou,e o som do motor desapareceu nas montanhas.

Otto acordou Leni e Angelika imediatamente.A garotinha reclamou ao ser despertada. Elaparecia muito cansada agora — havia olheirasprofundas sob seus olhos.

“O que foi, Otto?”, Leni murmurou.“Uma espécie de máquina voadora passou por

aqui. Acho que estava nos procurando.” Eletentou soar calmo.

“Como assim?” Leni se sentou, totalmentedesperta agora.

“Só se prepare para ir embora.” Otto mantevea voz contida, mas seu estômago estava agitadopelos nervos. “Talvez não seja nada.”

“Claro que não é nada. Como alguém saberiaque estamos aqui?” Leni também tentava soarcalma, mas Otto percebeu que ela sabia que asituação era séria.

Ele voltou para a persiana, deitou de bruços eficou observando o povoado pela rachadura comos binóculos. Dez minutos depois, não notara nadanovo.

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Talvez ele tivesse exagerado? E então seucoração deu um salto. Ali. No fundo do vilarejo.Movimentação. Ele moveu os binóculos. Lávinham eles de novo. Ele ficou sem ar. Era umsoldado, um soldado alpino em traje camuflado, opadrão recortado verde e marrom que semisturava com a paisagem com tanta eficiência. Emais um... e mais um. Eles estavam vindo peloscampos da parte mais distante do vilarejo. Montesdeles.

Otto desceu a escada correndo. As garotasestavam na porta dos fundos.

“Soldados! Vão!”, disse o garoto, o mais altoque conseguiu.

Ele levantou a barreira de madeira eempurrou a porta. Era uma linha reta até obosque.

“Venha conosco, Otto!” Leni o pegou pelobraço, com os dedos cravados na carne. Elaparecia assustada.

“Não, é o único jeito.” Ele se soltou. “Euposso segurá-los aqui. Vocês vão ter umavantagem. Fiquem no bosque o máximo que

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puderem. Vocês vão conseguir se localizar com omapa e a bússola, como no nosso treinamento. Evão chegar à fronteira, Leni.”

“E depois?”“Vão até o barco, como conversamos. Sigam

para o ponto de encontro. MacPherson vai estar lápara buscá-las.”

“Quem é MacPherson?”, quis saber Angelika.A pergunta da menina estava marcada pelopânico.

“Um amigo dos seus pais”, Otto mentiurapidamente. Ele queria se livrar das perguntasinúteis agora.

“Por que você está me olhando assim?”,perguntou Angelika.

“Olhando como?”, disparou Otto. Ele nãotinha tempo para aquilo.

“Como se você estivesse bravo comigo. Oque eu fiz?”

Angelika parecia estar prestes a chorar.“Desculpe”, disse Otto rapidamente. O que

ela havia feito? Nada. Não era culpa dela. Elehavia aceitado a missão sabendo que

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provavelmente perderia a vida. Ele não tinha odireito de ficar bravo com aquela menina. Ela nãofazia a mais vaga ideia de quem era. Era apenasuma garotinha perdida que havia depositado suaconfiança nele e em Leni. Otto subitamente sesentiu responsável por ela.

“Vocês precisam ir, Angelika, agora.” Ele seinclinou para a frente e a abraçou forte. Angelikadevolveu o abraço.

E então Leni pegou a mão de Angelika, e elaspartiram, correndo em direção às árvores.

Otto fechou a pesada porta, colocou abarreira, deu uma última olhada pelo vão e viu asmeninas chegando com segurança ao bosque. Deagora em diante, cada minuto contaria.

Em seguida, ele se deu conta de que não haviachecado a porta na entrada da construção. Epegou uma forquilha encostada na parede. Aquiloseria suficiente. Otto estava quase na porta quandoela foi escancarada.

Ele se jogou em uma das baias de ordenha eprendeu a respiração. A porta se fechou, e eleouviu passos, que pararam abruptamente. Otto

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encostou a forquilha na parede e, com umalentidão dolorosa, ficou de joelhos e se inclinoupara a frente para olhar por um vão.

Um soldado estava na baia mais próxima daporta. Os coturnos estavam visíveis, e então umacalça camuflada caiu até os joelhos, seguida dacueca. Otto recuou antes que o homem agachasse,mas sabia o que o soldado estava fazendo, e osbarulhos desagradáveis que se seguiramconfirmaram a suspeita. Acabe logo e saia, pensouOtto. Vá embora! Então veio o barulho da roupasendo recolocada e de passos. Otto esperou obarulho da porta, que não veio. Ele segurou aforquilha com mais força, encostou-se mais à portae mais uma vez prendeu a respiração. Os passos seaproximaram cada vez mais. E então pararam. Nosilêncio, Otto podia ouvir a respiração do soldado,que estava próximo. O peito do garoto queimava,a garganta estava se fechando, e ele não podia maissegurar a respiração. Com uma arfada, eleinspirou, e em um instante o soldado estava naentrada da baia.

Ele segurava uma metralhadora Schmeisser

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apontada diretamente para Otto. Os dois seolharam por um segundo, ambos aturdidos pelosurgimento do outro. O soldado não era muitomais velho que Otto. Ele abriu a boca, talvez parachamar seus companheiros ou dar uma ordem aomenino, mas a forquilha acertou o peito dosoldado antes que qualquer som pudesse sair. E elecaiu para trás.

Otto ficou parado, petrificado pelo choque; aenormidade do que havia feito ardia em sua bocae seu peito. Suas orelhas zumbiam. O soldado nãoestava se movendo, e Otto se deu conta em uminstante que um dos dentes da forquilha devia teratravessado o coração. Ele se aproximou earrancou a ferramenta, que saiu com umafacilidade terrível. Antes que se desse conta, estavainclinado, vomitando violentamente, um jorroespesso de um líquido amargo. Ele vomitou duas,três vezes mais, com os olhos lacrimejando. Emseguida, cuspiu para livrar-se dos resíduos. Evoltou-se para o corpo. Definitivamente, osoldado estava morto, e uma poça densa de sanguecomeçou a crescer nas costas do cadáver. “Me

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desculpe, me desculpe”, ele se pegou dizendo,como se aquilo de alguma maneira fosse ajudar.

E então, lentamente, o garoto se abaixou epegou a metralhadora, passando-a pela cabeça dosoldado. Foi preciso puxar com força, e Ottoachou que fosse vomitar de novo. As mãos deletremiam incontrolavelmente, mas conseguiu pegara arma. Era pesada e fria. Ele prendeu a trava e seabaixou de novo. E notou a insígnia com os raiosda SS no colarinho do homem, mas teve ocuidado de não olhar para o rosto. Ele soltou abandoleira de couro do cinto e pegou os pentes, asgranadas e guardou tudo dentro de sua camisa.Diferentes das granadas em formato de abacaxique ele e Leni haviam recebido, essas erampequenas latas de metal presas a uma pequenaalça. O sangue se acumulava atrás da cabeça dosoldado. Otto sentiu outra ânsia de vômito e seafastou cambaleando, tentando não passar mal denovo. Ele subiu no palheiro e puxou a escada, semconseguir parar de tremer. Ele queria chorar. Masseus olhos estavam secos. Assim como sua boca.Seu coração estava disparado, e havia um zumbido

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em sua cabeça. Ele tinha matado alguém. Mas nãoparecia real. Nada daquilo parecia real.

Ele jogou a metralhadora pela janela e pegouos binóculos, respirando rápido. Ele precisouencostar a extremidade das lentes na venezianapara conseguir mantê-los firmes.

Pensar em Leni e Angelika, bem dentro dobosque agora, o ajudou a se acalmar um pouco.Talvez elas estivessem do outro lado da fronteiraao amanhecer. Ele podia aguentar até lá.

O suor escorria em seu rosto, fazendo seusolhos arderem. Ele piscou e ficou vendo osacontecimentos se desenrolarem. As tropasestavam tomando conta do vilarejo. Os moradoresestavam sendo tirados de suas casas, enquantosoldados entravam para revistá-las. Haviacaminhões, Kübelwagen e motocicletas com assentolateral. E uma enorme limusine Mercedes de seisrodas estacionada no centro. Um soldado estavaprendendo um enorme alto-falante ao estribo.Momentos depois, uma estranha máquina voadoravoltou e desceu diretamente do lado direito dovilarejo. Otto ficou observando três homens

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descerem dela: o piloto, um homem comuniforme preto da SS e um terceiro vestindo umterno cinza. Eles foram conversar com os homensna limusine.

As mãos de Otto pararam de tremer. Elepegou a metralhadora, checou se estava carregadae abriu a trava, colocando uma bala em posição.Em seguida, olhou pela veneziana de novo. Meiadúzia de soldados estavam subindo a trilha nadireção do celeiro. Um estava chamando alguém:“Schmidt!”. Otto sabia que devia ser o soldadomorto, que talvez tivesse pedido permissão parafazer xixi ao sargento. Otto amaldiçoou sua másorte.

De repente, surgiu um barulho de microfonianum sistema de som público.

“Crianças, prestem atenção...”A voz atravessou o ar da noite. Otto pegou os

binóculos de novo. O oficial da SS do helicópteroestava parado ao lado da limusine, segurando ummicrofone. “Meu nome é Reinhard Heydrich.Sou o chefe do serviço de segurança do Reich.”

Heydrich! Otto sentiu outra onda de pânico e

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medo tomar conta. Todas as pessoas da Alemanhasabiam quem era Heydrich. Ele mal podiaacreditar que o mais temido dos líderes da SSestava naquele lugar procurando por ele.

“Eu sei que vocês estão aqui, meninos. O jogoacabou.”

Os soldados estavam a vinte metros do celeiro.Não havia o que fazer. Otto colocou a arma noautomático e apertou o gatilho. Ele mirou para oalto, sentiu a arma golpear e o invólucro das balasvoando perto de seu rosto, até que o pente ficouvazio.

Ele olhou para fora. Os soldados haviam seespalhado e estavam atirando cegamente, as balasatravessavam as paredes de madeira. Otto abaixou.

“Cessar fogo!”, gritou Heydrich no alto-falante, e os disparos pararam. Otto se sentou eficou olhando enquanto um holofote preso aoparabrisa da limusine foi ligado, e o feixe de luz,virado e apontado diretamente para o celeiro. Eletrocou o pente com rapidez.

“Foi uma atitude idiota. Agora nós sabemosexatamente onde vocês estão. A área está cercada.

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Vocês estão cercados. Não há o que fazer.”Otto pensou em atirar de novo, mas antes que

o fizesse, Heydrich continuou. “Agora, pelo quesei, vocês são apenas crianças agindo sob ordensdas autoridades britânicas, mas precisam parar comessa tolice imediatamente e se entregar.Entreguem-se, e serão tratados de maneira justa ecorreta, de acordo com as leis do Reich.”

Que leis são essas?, pensou Otto, numa onda defúria cega. As mesmas leis que arrastaram meu paipara fora de casa e levaram minha mãe e meu irmão?

Ele colocou o cano da metralhadora em umvão, atirou e continuou atirando até que o outropente estivesse vazio. E viu Heydrich e os demaisse abaixarem para se proteger enquanto as balasacertavam a lateral da limusine, uma delasexplodindo o holofote.

Otto ficou encolhido contra as persianas dopalheiro. Ele podia ver as tropas se espalhando ecercando o celeiro. Um veículo militar veio dopovoado e parou a cerca de cem metros. A pesadametralhadora, que atravessava o escudo de aço,lentamente girou e se elevou até apontar

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diretamente para Otto. O motor rugiudiscretamente. A máquina parecia ter vidaprópria.

Otto não conseguia tirar os olhos daquilo. Eratotalmente aterrorizante e fascinante ao mesmotempo. Ele flertou com a ideia de atirar noveículo, mas sabia que seria inútil, as balassimplesmente quicariam na armadura blindada.Então, sentiu a pistola em sua barriga, tirou-a dacintura e a colocou sobre o feno ao lado dametralhadora. O que eles estavam fazendo? Porque não tinham atacado? Ele se esforçou paramanter a compostura. Seu estômago queimava,mas Otto sabia que não conseguiria engolir nadapor medo de vomitar. Estava fican-do maisescuro.

Talvez fosse isso que estivessem esperando.Sim, provavelmente era isso. Ele segurou a armacom mais força, tentando impedir o medo detomar conta.

Veio a escuridão. E, com ela, mais motorespesados girando, e os gritos de ordens duras. Ottocontinuou a observar o vilarejo, mas agora não

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conseguia ver nada além das luzes dos veículos ealgumas poucas casas. Então o holofote foisubstituído, e feixes de luz atravessaram as diversasrachaduras e buracos no celeiro. Otto recuou,com medo que um atirador com olhos de águiatentasse um disparo.

“Tenho certeza de que podemos resolver essaquestão pacifica-mente.”

Heydrich estava falando com ele de novo peloalto-falante.

“Vamos atirar na garota!”, Otto gritou o maisalto que conseguiu.

Sua voz adolescente soou fraca e finacomparada à dura voz de autoridade de Heydrich.Ele quase esperava ouvir risos das tropas queestavam diante dele. Mas só se ouviu o silêncio.

“Eu juro, se vocês chegarem mais perto,tentarem qualquer coisa, nós vamos matar amenina!” Era sua última cartada, e Otto sabia quetudo o que ia conseguir era um pouco mais detempo. Mas cada segundo, cada minuto queganhava era um passo a mais de Leni e Angelika.

“Rapaz”, surgiu a voz de Heydrich mais uma

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vez, “eu sei que crianças são capazes de fazercoisas muito idiotas, mas, por favor, não façanenhuma tolice. Deixe-me ir sozinho falar comvocê pessoalmente.”

Otto ficou olhando Heydrich sair da luz ecomeçar a andar na direção do celeiro.

“Está vendo? Estou desarmado”, Heydrichgritou e levantou as mãos, com a palma para afrente. “Só quero conversar com você sobre essasituação toda.”

Otto sabia que estava sendo ludibriado, masnão podia não responder. “Nós não queremosconversar.”

“Vocês precisam entender que a situação sevoltou contra vocês agora. Precisamos encontraruma solução pacífica. Vocês não podem machucara menina.” Ele soava razoável, pensou Otto, tãocalmo.

Heydrich estava quase na entrada.“Pare aí”, a voz de Otto falhou.“Rapaz, por favor, seja racional. Você não vai

atirar em mim. Você não vai atirar em ninguém.”“Pare!” Otto gritou, sem convicção na voz.

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Ele apertou o gatilho antes mesmo de se darconta. A Schmeisser pulou em sua mão. Umacoluna de terra surgiu diante do pé direito deHeydrich, enchendo o rosto dele de cascalho fino.Otto pensou em gritar um pedido de desculpas,mas seria ridículo.

“Não atirem, ninguém atira!”, gritouHeydrich.

Otto olhou para baixo, para Heydrich, com ouniforme preto delineado na luz do holofote. Eleparecia o ceifador que vinha coletar a alma deOtto. Lentamente, Heydrich levantou o braço.Que diabos ele estava fazendo?, Otto se perguntou.Ele sentia tontura, confusão, enjoo e medo. Eracomo se o mundo todo estivesse desabando à suavolta. Ele só queria que tudo parasse...

Heydrich abaixou o braço. “Angreifen! ”Ataquem! Antes que Otto pudesse reagir,

houve uma explosão terrível, e a persiana demadeira atrás da qual estava se escondendo foiarrancada da parede, jogando-o do outro lado dopalheiro.

A fumaça começou a encher o ar — densa,

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branca, impenetrável — seguida de outra explosãoensurdecedora. Otto se levantou. Havia umzumbido em suas orelhas, e ele não conseguiaouvir mais nada. A fumaça encheu o local tãocompletamente que, além de surdo, ele tambémestava cego. Era como estar em uma nuvem. Ogaroto não conseguia distinguir alto de baixo, nemesquerda de direita. Ele tropeçou para a frente eduas mãos o seguraram. Um punho acertou seuestômago, ele se curvou, e algo duro o atingiu nalateral da cabeça. E o branco ficou preto.

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36

Interrogatório

Otto acordava e desmaiava enquanto estavadeitado em um chão frio de aço que se movia. Eledevia estar em um veículo. Algum tempo depois,que devem ter sido segundos, ele parou.

“Levem-no”, ele ouviu Heydrich ordenar.Otto foi arrastado e colocado de pé por uma

dupla de soldados. Não fazia diferença, suas pernasestavam sem força. Outros oficiais se juntaram aHeydrich. Deviam estar dizendo a ele que nãohavia sinal das garotas no celeiro.

“Mandem duas tropas para o bosque atrás do

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celeiro. Posicionem outra pelo lado esquerdo dasárvores para encontrá-las. Se precisarem de maistropas, mandem chamar. Mesmo que elas tenhampartido algumas horas atrás, não devem ter idomuito longe.”

“E o senhor?”, perguntou um oficial.“Deixem a Mercedes, seis homens e duas

motocicletas de mensageiros. Vai ser o suficientepara hoje à noite.”

Heydrich se virou para Otto, analisando-o porum instante.

“Levem o garoto para a estalagem e limpem-no. Assim que eu arrancar dele aonde as outrasestão indo, farei contato. Agora: mexam-se!”

O terceiro homem que estava na máquinavoadora veio correndo.

“Vou pedir que arrumem um quarto para osenhor na estalagem, Herr Straniak”, Otto ouviuHeydrich dizer. “Talvez o senhor possa me dizero paradeiro das outras crianças mais rápido que ogaroto. Mas eu duvido disso.”

Naquele momento, Otto se deu conta de queia ser interrogado pelo homem mais temido do

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Terceiro Reich.Os soldados o arrastaram até o que deveria ser

a estalagem, passando por um corredor, até umquarto nos fundos, e o jogaram em uma cadeiradura. Ele fechou os olhos diante de um brilhorepentino de luzes elétricas. Alguém prendeu ascostas dele à cadeira com uma corda. Ostornozelos foram presos de maneira semelhante.

“Bem, assim é melhor.”Lentamente, Otto levantou a cabeça.

Heydrich estava sentado na beirada de uma mesa,bem diante dele. O local estava vazio, comexceção de poucas mesas e cadeiras, e um bar queacompanhava uma parede. Nas paredes havia fotosde esquiadores, alpinistas e vacas premiadas.

Heydrich olhava para ele com malícia ecuriosidade.

“Você voltou a ter um pouco de cor no rosto.Eu estava preocupado.”

Otto notou que os olhos de Heydrich eramum pouco próximos demais para aquele rostolongo. Era enervante.

“Qual é o seu nome?” A voz de Heydrich

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também era um pouco mais aguda que o normal.Ele não havia notado pelo alto-falante.

“Otto Fischer”, disse Otto.“Otto?” A voz de Heydrich estava marcada

pelo sarcasmo. “Sabe, acho que nunca interrogueiuma criança antes”, ele disse casualmente.

Otto olhou diretamente nos olhos deHeydrich. “Eu não sou uma criança.”

“Não, é verdade. Você é quase um adulto, eeu devo tratá-lo como tal.”

Ele tamborilou o dedo no queixo umas duasvezes. “Então, Otto Fischer, talvez você queirame explicar o que está acontecendo.”

“Estou visitando minha avó em Bregenz.”Otto estava feliz que sua cabeça tivesse parado delatejar, mas sentia que sua língua estava enorme einchada.

“Sua avó.” Heydrich assentiu. “Deixe-meadivinhar, essa seria sua fada madrinha?”

Otto balançou a cabeça.“Ah, entendo. Ela é real, não é?”Otto assentiu outra vez.Heydrich desceu da mesa e levou uma cadeira

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até onde Otto estava. Ele a virou, sentou-se comuma perna de cada lado, e apoiou os braços noencosto.

“Você é um jovem interessante. O serviçosecreto britânico realmente teve sorte deencontrá-lo. E tão rápido. Estou interessado emdescobrir quem você e sua amiga realmente são.Mas espere...”

Ele levantou, como se tivesse se lembrado dealguma coisa, e andou até o bar menor. Haviauma adega de vinhos atrás dele e uma únicachopeira saindo do balcão.

“Você deve estar morrendo de sede.”Heydrich escolheu um copo alto e o colocou

sobre o balcão. Em seguida, pegou um bloco degelo do tamanho de uma caixa de sapatos na partede baixo do bar. Ele andou até o fundo eencontrou o objeto que estava procurando. Umpicador de gelo. Uma agulha de aço de quinzecentímetros, pontiaguda em uma extremidade ecom um cabo redondo na outra.

“Sabe, eu adorava essa bebida quando tinha asua idade.”

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Ele começou a golpear o bloco de gelo,quebrando pequenos cacos antes de juntá-los ecolocá-los no copo. Quando os fragmentos de gelochegaram à borda, ele acrescentou uma dosegenerosa de xarope de laranja.

“Agora, este é o segredo.” Heydrich olhoupara Otto e então tirou a tampa de porcelana deuma garrafa e encheu o copo. “Limonada, nãoágua com gás.”

Ele levou o copo até Otto e o colocou diantedo garoto.

Otto olhou para o copo à sua frente, o geloflutuando, as bolhas subindo até a superfície. Elenunca quis tanto uma bebida na vida.

“E então”, Heydrich continuou, “seria tãomais fácil e tranquilo para nós dois se você medissesse onde sua amiga e a menina estãoescondidas.”

Otto não disse nada.“Rápido, e você pode tomar a bebida. Pode

beber tudo o que quiser.”Otto apertou os lábios e continuou em

silêncio.

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“O gato comeu sua língua?” Heydrich deixouo silêncio se instalar entre eles. “Você é judeu?”

Otto hesitou. “Sim”, ele respondeu.Heydrich o encarou por um instante. E então

riu — uma risada curta, dura e sem humor. Elepegou o copo e deu um gole. “O sabor é muitobom.” Heydrich olhou para Otto. “Você não éjudeu. Você é alemão — um ariano bom e forte.Da Baviera, se não me engano. Munique,imagino?”

Otto assentiu. Não havia problema em admitirque era de Munique, ele pensou.

“Uma linda cidade. Bem, um belo rapazalemão como você devia estar servindo a pátria, enão a traindo. Por favor, eu quero saber, dealemão para alemão, pense em quais são as suasobrigações, a quem você deve lealdade. Ajude-me, ajude o Führer. Ajude a Alemanha.”

Otto olhou para os próprios pés. Tinhamlevado sua família, repetia para si mesmo. Eles nãoeram alemães. Eram nazistas. Nazistas, nazistas. Elenão viu o golpe se aproximando. Heydrich oacertou bem no meio do rosto. A dor explodiu

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pelo seu crânio. Otto gritou.“Chega. Eu tentei ser razoável. Onde estão as

duas meninas? Aonde elas estão indo?”Otto balançou a cabeça, com os olhos

lacrimejando de dor. E então se deu conta de queestava chorando. “Eu não sei.”

“Mentiroso.” Heydrich o acertou do outrolado com toda força. “Nós podemos fazer isso anoite toda.”

“Eu juro que não sei.” Mas Otto podia sentirsua força de vontade já cedendo. Se Heydrich ofizesse ceder, Leni e Angelika ainda teriam temposuficiente para chegar à fronteira?

Heydrich se inclinou para a frente e puxou acadeira de Otto até a lateral da mesa. Ele soltou acorda do pulso direito do garoto, pegou a mãodele e a bateu com força no tampo da mesa. Ecolocou o picador de gelo ao lado dela. “Últimachance antes de eu partir para uma abordagemmenos gentil. Onde elas vão atravessar a fronteiracom a Suíça?”

Otto fechou os olhos. Lágrimas escorriam pelorosto, que ardia por causa dos golpes de Heydrich.

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“Não faço ideia”, ele soluçou.Houve uma batida na porta.“O quê?”, perguntou Heydrich rispidamente,

ainda segurando a mão de Otto sobre a mesa.“Herr Straniak quer falar com o senhor.” Um

soldado estava parado na porta.“Estou indo imediatamente.” Heydrich

levantou. “No caso de você pensar em irembora...” Em um movimento rápido e súbito,ele golpeou a mão de Otto com o picador degelo, prendendo-a à mesa.

Otto soltou um grito de agonia. A dor eraagonizante e o fez enxergar estrelas brancas. Eleficou enjoado imediatamente.

Heydrich foi até o bar e pegou alguma coisa.Ele jogou o objeto, que caiu na mesa, girando atéparar ao lado de Otto. Era um saca-rolhas de aço.

“Você faz alguma ideia da sensação de ter umdesses enfiado em um cotovelo ou joelho?”, eleperguntou.

Sem ar, Otto não conseguiu responder.“Vou encarar isso como uma negativa”, disse

Heydrich. “Eu também não. Mas a menos que

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você responda às minhas perguntas, vai descobrir.”A porta foi fechada com força, e a chave foi

virada na fechadura.Otto sabia que estava em choque. Mas só

havia uma coisa a fazer. Sua outra mão aindaestava amarrada ao braço da cadeira. Ele seinclinou para a frente, e colocou os dentes emvolta do cabo do picador de gelo. Mas Heydrichhavia atravessado a ponta pela mão de Otto até amesa de carvalho. O garoto fechou os olhos dedor, soluçando de novo, tentando recuperar ofôlego. Ele sabia que não ia conseguir se conterquando Heydrich voltasse.

Então ouviu alguma coisa, abriu os olhos eolhou em volta. Alguém estava batendo na janelados fundos. E então surgiu um rosto. Enquantotentava distingui-lo, um punho envolto em umpedaço de pano quebrou o vidro e virou o trinco.

“Leni?” Otto sussurrou. Como a voz estavaentrecortada, ele achou que ia começar a chorarde novo, mas desta vez de alegria.

Leni passou pela janela estreita e atravessou ocômodo em poucos passos.

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“Não fale nada. Temos cerca de um minuto.”E então ela viu a mão presa e piscou. “MeuDeus.” Uma poça de sangue estava se formandoembaixo da mão do garoto.

“Arranque”, soluçou Otto.Ela respirou fundo. “Vai doer, mas você não

pode fazer nenhum barulho, entendeu?”Otto assentiu debilmente. Ela desenrolou o

pano da mão, balançou-o para garantir que nãohavia ficado nenhum caco de vidro e o enfiou naboca de Otto. E então colocou as duas mãos nopicador de gelo e puxou. Na segunda tentativa,deu certo. Leni tinha razão, era muito doloroso.Otto gritou, e as veias do seu pescoço saltaram,mas o pano abafou o som. Ela cortou as cordas nascostas de Otto, nos tornozelos e no outro pulso, eo ajudou a levantar.

“Leni... você voltou”, Otto começou a falarsem forças. Ele ainda estava em choque. “Vocêvoltou por minha causa.” Ele queria abraçá-la ebeijá-la em agradecimento.

“Não fale... precisamos nos mexer rápido.”Leni o ajudou a chegar à janela. Uma trilha de

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sangue marcava o caminho dos dois. “Você faria omesmo por mim. Além disso, é a última coisa queeles esperam. Agora, rápido!”

Otto enrolou o pano na mão machucada e,com a ajuda de Leni, conseguiu se lançar até ajanela e cair do outro lado.

Eles se encostaram na parede de trás daestalagem.

“Onde está Angelika?”, ele perguntou.“Bem aqui.” Angelika apareceu das sombras, o

rosto marcado de preocupação. Otto conseguiuesboçar um sorriso e abraçou a menina.

“Sua mão!”, ela disse com um susto. O sangueestava encharcando o pedaço de pano.

“Não se preocupe, Angelika, não está tãoruim”, Leni disse enquanto apertava o trapo edava um nó.

“Como você passou pelos soldados?”, ele quissaber.

“Não são muitos, há apenas cerca de meiadúzia de soldados lá fora, no máximo. É fácilchegar ao fundo da estalagem no escuro. Achoque é o único lugar onde podem manter você.”

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Leni estava falando rápido. Ela pegou algumasgranadas da mochila.

A mão de Otto latejava. Ele tentou esquecer ador.

“Qual é o plano?”, o garoto perguntou.“Precisamos sair daqui, claro.” Leni entregou

uma granada a ele. “Você consegue segurá-la?”Otto assentiu.“Certo, é isto que vamos fazer...”

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A fuga

Depois de deixar Otto, Heydrich marchou pelocorredor até a entrada da estalagem. Apavorado, odono lhe informou que Straniak estava em umquarto pequeno no primeiro andar, e Heydrichcorreu escada acima.

“Por favor, só um momento, estou confierindoa leitura. É estranho.”

Heydrich esperou enquanto o pêndulo deStraniak fazia seu trabalho.

Ele olhou para o relógio, tentando imaginaraté onde as outras duas crianças haviam chegado.

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“Eu consigo tirar essa informação do garoto maisrápido. Ele está pronto para ceder.”

“O garoto vai mentir, escreva o que estoudizendo.”

Como da outra vez, o pêndulo paroutotalmente.

“Então, onde elas estão?” Heydrich avançouapressadamente.

Sem saber ao certo, Straniak estava com orosto franzido. “Eu não entendo... deve ser umengano.”

“Como assim?”“A garota está aqui. Bem aqui, neste

povoado.”“O que você está dizendo...?” E então

Heydrich entendeu, saiu correndo do quarto emdireção às escadas, desceu para o térreo, voou pelocorredor, pegou a chave do quarto dos fundos,colocou-a na fechadura e abriu a porta. O garotohavia sumido. Manchas de sangue levavam àpequena janela, que estava aberta, com o vidroestilhaçado.

Heydrich pegou o copo de refresco de laranja

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e o atirou na parede. E então tirou a pistola docoldre.

“Guardas!”, ele rugiu e correu até a porta dafrente. “Guardas...”

De repente, uma explosão ensurdecedora.Uma onda de pressão fechou a porta e o levantoudo chão, jogando-o contra a parede. O chãoestava coberto de estilhaços de vidro, as cortinasestavam em chamas.

Heydrich se levantou cambaleante enquantoos disparos em staccato de uma metralhadoraatravessavam a noite. Mais explosões balançaram oprédio. Ele chegou à porta de entrada, a pistolaainda na mão. As orelhas dele estavam zumbindo.

Straniak estava descendo as escadas doprimeiro andar cambaleante com o narizsangrando, a armação de metal dos óculosquebrada.

“Me ajudem”, ele resmungou.Heydrich não ouviu o que ele dizia, e também

não se importava. Ele empurrou Straniak para olado e pisou na porta quebrada.

Na rua principal, chamas brilhavam na

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escuridão, lançando sombras nas casas de madeira.A Mercedes dele estava de cabeça para baixo,engolida pelas chamas. Uns dois soldados estavamdeitados na rua, mortos. Os soldados que haviamsobrevivido corriam de um lado para o outro,alguns tentando apagar o fogo em vão com baldesde água do poço do vilarejo.

“Encontrem as crianças!”, gritou Heydrich,com gotas de saliva voando da boca. De súbito otanque de combustível da Mercedes explodiu,criando uma enorme bola laranja, jogando trêssoldados pelos ares como se fossem bonecas depano. Heydrich foi tirado do chão mais uma vez ejogado contra as pedras frias do pavimento. Eleficou ali por um instante ou dois, sem nenhum ar,e uma dor aguda no peito toda vez que tentavarespirar.

E então veio o rugido de um veículo seaproximando. Era uma das motocicletas BMW 75com cabine lateral que ele havia deixado ali,vindo em sua direção a cinquenta quilômetros porhora. Heydrich tinha um segundo para rolar parafora do caminho antes que ela o atropelasse.

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Enquanto se movia, viu de relance umaadolescente, de não mais que catorze anos, sentadana motocicleta, com a cabeça entre o guidão. Eledeu dois tiros antes que ela desaparecesse naescuridão.

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Os resultados

Leni alcançou Otto e Angelika na saída dopovoado. Ela parou derrapando, mantendo omotor girando para a motocicleta não morrer.Angelika e Otto se jogaram no assento lateral, eLeni engatou a marcha. Eles fugiram correndo dovilarejo e de Heydrich rumo ao leste.

“Você está indo na direção errada!”, gritouOtto, tentando se fazer ouvir sobre o barulho domotor.

“Não! Precisamos ir por aqui”, ela gritou emresposta. “As patrulhas foram para o oeste. Vamos

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dar de cara com eles.”Leni manteve os olhos na estrada estreita. Eles

encontrariam a estrada principal emaproximadamente dois quilômetros. Atrás deles, osom de outra motocicleta. Leni olhou para trás. Láestava ela, a quinhentos metros.

“Mais rápido!”, gritou Otto, pegando ametralhadora fixada no carrinho com sua mão boa.Ele apontou a arma para trás. Leni tentou mantera motocicleta estável, para que ele pudesse alinharo visor da metralhadora com o farol dianteiro damoto que os perseguia.

Alguém na moto de trás teve a mesma ideia.Projéteis vieram na direção deles — gotas de

fogo fosforosas e implacáveis. Tentando ignorar ador na mão, Otto apertou o gatilho, e ametralhadora do carro lateral da moto disparou,com chamas saindo do cano. Mas as balas inimigascontinuavam vindo, e Leni decidiu tentar umaalternativa, dirigindo em zigue-zague, ainda queisso dificultasse as coisas para Otto. Ele disparou denovo. Atrás dos garotos, os faróis da motocicleta,que mudavam de direção violentamente, bateram

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na lateral da estrada. Segundos depois, o tanque decombustível pegou fogo, e uma bola amarela ebrilhante subiu para o céu.

“Isso!”, Otto gritou triunfante.“Belo disparo”, gritou Leni. Ela diminuiu a

velocidade da moto quando chegaram àbifurcação, pegando a direita na estrada principal.“Quanto tempo você acha que temos?”

“Não muito. Precisamos ir para longe daqui omais rápido possível, e depois nos livramos damoto.” Otto ajudou Angelika a se acomodar noassento lateral.

“Está tudo bem, Angelika, estamos segurosagora”, Leni gritou.

Angelika assentiu sem convicção, mas elaolhava para o lenço cheio de sangue em volta damão de Otto com os olhos repletos de medo.“Está doen do muito?”

“Não está tão ruim.” Mas agora que aadrenalina da perseguição estava diminuindo,estava bem dolorido. Ele se inclinou no assento efechou os olhos. Angelika encostou nele.

Leni olhou para os dois, ansiosa. Otto estava

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claramente com muita dor. E ela só podiaimaginar como Angelika se sentia naquelemomento, após os disparos e as explosões. Elavirou para a estrada principal e manteve avelocidade acelerada da motocicleta. O ventobatia em seu rosto, mas ela não sentia frio. Suamente estava ocupada com um dilema iminente.

Ela sabia que deveria continuar seguindo asordens da missão e entregar a garota aMacPherson. Ao mesmo tempo, tinha umasensação cada vez maior de que era a coisa erradaa fazer. Ela estava apreensiva sobre as intenções doalmirante. Não havia nada de bom à espera de

Angelika, com certeza. A infância, a vida delainteira seriam destruídas, e sua inocência,arrancada. Ela se tornaria uma moeda de troca,talvez, ou um instrumento de propaganda política.E para sempre seria conhecida como a filha deHitler. Não era um destino que Leni desejaria aalguém. fossem quais fossem as ordens, o coraçãode Leni dizia algo diferente.

Ela não conseguia se livrar desses pensamentos,até que chegaram a outra bifurcação da estrada.

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Nenhum dos três tinha visto nada diferente até ali.A sorte estava ao lado deles. Leni parou para ver omapa. Era o momento de começarem a seguirrumo ao oeste de novo, para a fronteira e oBodensee. Otto acordou com um sobressalto eolhou em volta com olhos turvos. Ou ele tinhadormido ou desmaiado. Angelika ainda estavaencolhida junto a ele.

“Está melhor?”, perguntou Leni, desligando omotor.

Ele conseguiu abrir um sorriso fraco. “Estoubem”, ele murmurou sem ser convincente, com avoz ainda rouca depois de tudo o que aconteceu.“Onde estamos?”

“Aqui.” Leni abriu o mapa na parte dianteirado carrinho e apontou.

Otto se inclinou para a frente e o estudou.“Certo”, disse ele. “Não está tão mau.”

“Por que você não vê as provisões que aindatemos?”

Ele assentiu. “Acorde, dorminhoca.” Elesacudiu Angelika levemente.

“Estamos chegando?”, ela perguntou,

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esfregando os olhos.“Quase.” Leni dobrou o mapa antes que ela

visse.Otto e Angelika desceram da moto e se

alongaram. “Vamos ver se conseguimos encontrarcomida”, disse Otto, abrindo um dos bagageirosdo assento lateral. Angelika mergulhou no outro.

“Veja!”, ela disse, segurando um pedaço depão e um pedaço grande de salame apimentado.

Muito melhor que as rações dadas pelo exército,pensou Leni, faminta. Nenhum deles comia nadafazia horas.

“Muito bem, Angelika”, ela disse, e começoua vasculhar a própria mochila. Mapas, tochas,lamparinas e o kit de primeiros socorros, além dafaca e da pistola PPK, ainda estavam lá. Tambémhavia uma última granada. Otto e Angelika sesentaram em silêncio no chão, mastigando osalame e o pão. Ele ofereceu um pedaço a Leni,mas a menina balançou a cabeça. A mochila deleobviamente tinha sido perdida, ou talvez estivessena estalagem.

Ela abriu o kit de primeiros socorros e pegou a

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mão de Otto com cuidado. Ele piscou e travou osdentes enquanto Leni removia a bandagemimprovisada. Ela abriu a tampa de um vidropequeno de iodo e, sem aviso, colocou um poucosobre a ferida na palma da mão dele. Otto gritoude dor.

“Sinto muito, mas é para o seu bem”, disseLeni, um pouco contrariada enquanto fazia umcurativo e o fechava com uma bandagem nova.

Otto expirou o ar em suas bochechas einspirou profundamente. “É o que minha mãecostumava dizer.”

“É o que todas as mães dizem”, comentouLeni. Ela terminou e voltou a olhar para o mapa.

“Será que a minha mãe vai dizer isso?”,indagou Angelika.

Otto e Leni se entreolharam e depoisdesviaram os olhos.

“Tenho certeza de que vai”, disse Leni, que sesentia mal por mentir. “Bem, que caminhodevemos tomar?”

“Vamos para o sul, para as montanhas.Quando chegarmos à entrada da floresta, nos

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desfazemos da moto e vamos andando rumo aooeste, para a fronteira com a Suíça.”

Leni considerou a sugestão de Otto. “Vamoschegar à floresta pela parte sul do Bodensee.”

“Exatamente. Ali pegamos um barco echegamos ao ponto de encontro por água atéamanhecer.”

O vento estava começando a ficar forte, egrandes nuvens estavam se formando no céunoturno. Mas o ar ainda estava pesado e úmido.

“Uma tempestade de verão vai vir do norte”,disse Otto, olhando para cima.

“Eu preciso ir...”, Angelika anunciou, ficandode pé.

“Certo, mas seja rápida. Tem uns arbustosali”, apontou Leni, e a garota saiu correndo.

Leni esperou um pouco. “Não podemosentregá-la a MacPherson”, ela disparou.

Otto lançou um olhar severo para Leni. “Porque não?”

“Eu não confio nele. Não confio no que vaifazer com ela.”

“A decisão não é nossa.” Otto manteve a voz

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baixa. “Nós recebemos ordens, nós concordamosem cumpri-las.”

“Eu não me importo. Por que não podemosdecidir?”, respondeu Leni.

“Porque não podemos, Leni. Pense em quemela é. Só pense um pouco.”

“É exatamente o que estou fazendo! E vocêtambém devia pensar. Todo mundo a quer porum motivo: para usá-la, explorá-la, prejudicá-la.Bom, esqueça quem é o pai dela e pense emquem ela é por um instante. Apenas uma meninade nove anos que não sabe de nada. Precisamosfazer o que é certo para ela. Precisamos protegê-lade todos.”

“Você faz parecer tão simples.”“Bom, talvez porque seja simples.”“Como você sabe o que é o certo?”, Otto

estava ficando incomodado, mas Leni eraigualmente teimosa.

“Então me diga que eu estou errada”, eladisse, invertendo o debate. “Me diga que ela vaificar bem com MacPherson. Que ele só quer obem de Angelika.” A garota esperou a negativa.

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Depois de um momento, Otto deu um longosuspiro. “Você não está errada, Leni.” Ele abaixoue tirou a bota direita. “Me dê a sua faca.”

Leni entregou a faca e ficou observando Ottotirar algo do salto da bota. “O que você estáfazendo?”

Algo caiu do salto oco na mão dele. Lenipodia ver sob o luar que era um pequeno vidrocontendo um líquido claro.

“O que é isso?”, ela perguntou rapidamente.“Cianeto. É uma ampola de cianeto. Mata em

menos de um minuto.”Leni olhou para o objeto, horrorizada. “Por

que você tem isso?”“Por que você acha?”“Para Angelika?”, Leni começou a se sentir

enjoada.“MacPherson me disse que eu devia dar isso a

ela se as coisas fcassem realmente ruins. Ele meentregou o veneno na tarde em que partimos,quando você subiu para escrever uma carta. Emnenhuma circunstância a menina deveria voltarpara mãos inimigas. Essas foram as palavras de

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MacPherson, e ele disse que eram uma ordemdireta do mais alto escalão.”

“Você quer dizer do primeiro-ministro?”“Não sei, acho que sim.”“Meu Deus”, exclamou Leni, com o rosto

muito pálido.Otto balançou a cabeça. “Eu queria contar

para você antes, mas ele me deu outra ordem.Que você não ficasse sabendo. Ele disse que vocêficaria muito emotiva, que cabia aos homenstomar decisões difíceis. Ou algo parecido.”

“E que decisão você tomou?” Leni olhou paraOtto atentamente, e para o vidro que ainda estavana mão dele.

Depois de um ou dois instantes, Otto fechou amão e atirou o obje to longe, na escuridão.

“A certa.”Leni sorriu aliviada e por um segundo quis

abraçá-lo.“Sim, tomou mesmo. Você vai ver, é melhor

assim.”“Talvez”, respondeu Otto, incerto.Leni se aproximou dele até que os dois

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estivessem quase se tocando. “Obrigada”, disse,com delicadeza.

Otto tocou o braço dela. “Eu deveria estaragradecendo a você, por voltar para me salvar.”

Angelika voltou saltitante, viu que os doisestavam bem próximos. “Está tudo bem?”,perguntou a menina.

“Claro”, respondeu Leni. “Mas Otto querdizer obrigado.” Ela se virou para ele. “FoiAngelika que insistiu que nós voltássemos parabuscar você.”

“Foi você?”, disse Otto, olhando para ela.Angelika deu de ombros, envergonhada, e

então assentiu.“Por que você fez isso?”Angelika olhou para Otto, pensativa. “Eu não

queria que você morresse.” A menina falou comcalma e firmeza.

Otto se aproximou e abraçou Angelika.“Obrigado, de todo coração.”

Leni achou que fosse chorar.

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Perdendo tempo

Heydrich andava de um lado para o outro nahospedaria do vilarejo, tentando manter a raiva e afrustração sob controle. Quase duas horas haviamse passado desde que as crianças tinham escapado,e ele ainda não havia conseguido se comunicarcom as outras unidades. A garota levara uma dasmotocicletas; a outra tinha sido abatida naperseguição, ao que parecia. E era impossível oFlettner voar à noite. O rádio de ondas curtasestava consideravelmente destruído, junto com suaestimada Mercedes, e a garota teve a cautela de

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cortar as linhas do único telefone do povoado, queficava na estalagem. Eles tinham sido bemtreinados, definitivamente. A única opção seriamandar um dos soldados em direção ao oeste,montado no cavalo do dono da hospedaria, parainformar às unidades da SS os últimosacontecimentos. Foi o que Heydrich fez.

Ele olhou para os soldados remanescentes,ainda apagando o fogo, antes de entrar naestalagem destruída e ir procurar Straniak.Enquanto andava até o quarto dos fundos, olhoupara o relógio pela quinta vez em questão deminutos. Cada segundo perdido tornaria seutrabalho mais difícil. Eles deviam estar perto dasmontanhas agora, e se saíssem das

estradas e entrassem na cordilheira, seria muitodifícil tirá-los de lá. O único consolo era que oFlettner não havia sido danificado, e Straniaktambém estava inteiro. Com certeza, não era ofim, Heydrich pensou.

Ele encontrou o místico escondido no cômododos fundos, sem nada grave além de um narizsangrando. Ele havia colocado gaze no nariz para

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parar o sangramento, e havia um esparadrapoprendendo seus óculos, que se quebraram com aexplosão. Ele segurava o pêndulo sobre o mapamais uma vez, mas o objeto parecia estarbalançando sem rumo.

Heydrich entrou no bar, pegou um copolimpo, se serviu de uma cerveja e a bebeu em umúnico gole. “Acredito que logo o senhor terá algopara mim”, disse.

Straniak parecia irritado. “É impossível!”, elereclamou.

“Há um zumbido terrível nos meus ouvidos,todos os meus sentidos estão prejudicados. Para tersucesso, meu trabalho requer calma etranquilidade absolutas.”

Heydrich foi até Straniak. Ele se abaixoulentamente, pegou a camisa do homem pela partede cima e levantou-o da cadeira.

“Eu entendo e quero que o senhor tambémentenda uma coisa”, ele sussurrou. O rosto domilitar estava a centímetros do rosto do místico.“Estamos conduzindo uma missão pessoal dopróprio Führer. Seu fracasso em me fornecer

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informações será considerado um ato de traição aoReich. E não é preciso explicar como lidamoscom traidores.”

Heydrich o soltou, e Straniak massageou opróprio pescoço.

“Perdoe-me”, ele disse com a voz rouca. “Aexplosão deve ter afetado meu discernimento.Estou honrado de poder ajudar o Führer e vouredobrar meus esforços.” Ele tirou os pedaços degaze do nariz e fez uma saudação rígida. “HeilHitler!”

Heydrich o deixou voltar ao trabalho e foi atéa entrada para esperar seus homens chegarem.Quando chegou à porta, notou o cachorro dodono da estalagem, um tipo de pastor-alemão,cheirando a mochila do garoto, que eles haviamtrazido do celeiro. Provavelmente havia comidanela, pensou Heydrich.

E então ele teve uma ideia. Uma boa ideia.

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21 de junho — Dia três

MacPherson se mexeu desconfortavelmente emseu assento. Apesar do barulho alto do motor doGrumman, ele conseguiu alguns minutos de sonoagitado aqui e ali. Mas estava totalmente despertoagora. Os meninos deviam estar se aproximandodo Bodensee. Ele olhou pela coberturatransparente da cabine, mas não conseguiu vernada na escuridão.

De repente, o avião se inclinou, e MacPhersonconseguiu ver o desenho do lago. O comandanteBracken endireitou o avião e desligou o motor.

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No silêncio que se seguiu, o almirante não ouviunada além do vento soprando e sentiu o aviãodescendo em um movimento longo e fluido.Assim, esperava, eles conseguiriam pousar na águasem disparar nenhum alarme das autoridadesalemãs nem suíças.

Minutos depois, o piloto ligou o flutuador nasuperfície do lago, formando uma grande onda. Aágua respingou na cobertura da cabine deMacPherson. Mas pelo menos haviam pousado emsegurança. Antes da decolagem, o almirante haviainstruído Bracken sobre onde pousar, e pareciaque ele havia conseguido fazê-lo com perfeição.Diante deles, havia uma enorme casa de campoem meio às árvores, com luzes brilhando no andartérreo e, o mais importante, uma lancha seaproximando vinda de uma grande doca na beirado lago.

MacPherson tirou o cinto de segurança edeslizou pela cabine ao mesmo tempo em que obarco parou ao lado do avião. Ele puxou apequena escada de metal até as velas ao lado dafuselagem e desceu. Os dois veículos balançavam

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gentilmente lado a lado. MacPherson subiu nobarco. Ele nunca tinha estado tão feliz de descerdos ares e estar na água. Uma jovem de cabeloloiro estava diante do volante da lancha. Ela usavacalças curtas e uma grossa camisa de lã. Sob o luar,MacPherson podia ver a coronha de uma pistolasaindo do coldre de pele de bezerro.

“Olá, almirante. Fez boa viagem?” A voz delaera baixa e confiante. A mulher acendeu umcigarro na escuridão.

“Sim. Obrigado por nos receber, Durand.”A mulher habilmente prendeu um cabo de

reboque ao gancho de aço na frente do avião. Eentão ligou os motores e o cabo foi esticado.

“Tem espaço suficiente para o avião nas docas.Ninguém vai imaginar que vocês estão aqui.”

“Bem, se tudo sair como planejado,partiremos em poucas horas”, disse MacPherson.

Passava pouco da meia-noite, e elesprecisavam partir antes das três. Caso contrário,haveria luz demais, e eles teriam de esperar até apróxima noite para voar. Ele estava desesperadopara colocar os olhos na menina e ainda mais

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desesperado para voltar para Londres. Que prêmioela seria!

Com o avião guardado em segurança e asportas das docas firme-mente trancadas,MacPherson e Durand tomaram seus lugares nalancha de novo. Bracken havia sido deixadodentro das docas, com alguns sanduíches e café.MacPherson deu a ele ordens estritas de entrar emcontato com o escritório a cada trinta minutospelo rádio, assim seriam informados das novidades.A doca tinha uma pequena lancha caso eleprecisasse ir até MacPherson por algum motivo.

“Certo, leve-me ao ponto de encontro”, disseMacPherson.

A mulher virou o volante e conduziu a lanchapela água. Como o lago era território neutro,havia barcos passando entre o Terceiro Reich e aSuíça. Eles cruzaram com alguns na escuridão,apenas com os faróis visíveis.

Estavam indo para um pequeno deque a algunsquilômetros de Bregenz. Durand havia escolhido olocal como o ponto de encontro ideal. Os doisviajaram em silêncio. MacPherson estava feliz de

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simplesmente fumar seu cachimbo e sentir o arfrio no rosto.

“Almirante”, disse a mulher, hesitante, “possoperguntar quem são essas crianças?”

“Não”, respondeu MacPherson com firmeza,“não pode.”

E o silêncio retornou.

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Recuperando o faro

Eram duas da manhã quando os garotos chegaramao fim da estrada. Literalmente. Leni haviapilotado a motocicleta por uma pequena trilha atéonde pôde. Felizmente, não haviam encontradonenhum bloqueio ou patrulha. Talvez as forçasalemãs ainda estivessem concentradas na fronteira,Otto pensou.

Com Otto e Angelika empurrando a moto deLeni, eles conseguiram levá-la por um pequenocanal, sem serem vistos. No caminho que levavade volta à estrada, quebraram alguns galhos baixosdos abetos. Até que Otto se abaixou para ver o

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mapa.“Parece que estamos mais ou menos aqui.”

Ele apontou para um ponto bem ao sul de Weiler,e também ao sul do Bodensee. “Se quisermoschegar ao ponto de encontro, precisamos ir para onorte.” Ele apontou de novo, dessa vez para umlocal na parte sudeste do lago. A fronteira estavaclaramente demarcada.

“Você está certo”, assentiu Leni, “mas não é oque devemos fazer, certo?”

Angelika, que ouvia com atenção quais eramos planos, perguntou: “Por que não?”.

Otto podia ver que Leni ainda estava com acabeça fixa na ideia de que eles deveriam decidiro destino da menina no lugar de MacPher-son.Ele não tinha certeza se desobedecer às ordensseria uma decisão sábia. Mas podiam ter essadiscussão quando tivessem atravessado a fronteirada Suíça. Agora, seguir direto para o oeste seriamuito mais rápido. E significaria que a fronteiraestaria pelo menos vinte quilômetros mais perto.

“Ei, eu fiz uma pergunta”, Angelika protestoude novo.

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“Por causa dessa fronteira aqui”, Leni marcouo local com o dedo, lendo a mente de Otto, “émuito mais próxima. Quando estivermos na Suíça,podemos chegar até onde temos de ir.”

Angelika assentiu, satisfeita com a lógica deLeni. Otto dobrou e guardou o maparapidamente. Eles começaram a andar pelo sopédas montanhas. A primeira luz do dia surgiria emcerca de duas horas, e até lá eles já teriamavançado bastante pela floresta.

Otto andou na frente das duas meninas,abrindo o caminho. Ele pensava em Angelika, noque Leni queria fazer. Com certeza ela tinharazão, ninguém no Reino Unido queria o bem dagarotinha. Ela seria usada impiedosamente paraganhar a guerra. Mas, como MacPherson haviadito, a tarefa deles era cumprir a missão e não sepreocupar com nada além disso. Será que isso eracerto? Como poderia estar certo? Se pensassedaquela maneira, ele não seria diferente dosnazistas que haviam levado sua família. Elesestavam apenas seguindo ordens, mas o queestavam fazendo era errado. Totalmente errado. O

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que resolveu a questão de vez para Otto foiAngelika. Ela havia feito Leni voltar para resgatá-lo. Ele devia a vida à menina. E faria tudo o quepudesse para protegê-la. Otto olhou para trás, paraLeni e Angelika.

“Vamos, vamos ver se conseguimos andar umpouco mais rápido”, ele disse, quase animado.

“Posso ir de cavalinho?”, perguntou Angelika.“Claro!”Ele sentiu Angelika pular em suas costas,

colocar os braços em volta de seu pescoço e aspernas em volta de sua cintura. O sol nasceu, amanhã estava fria. Grandes nuvens passavam pelocume das montanhas, e o vento vindo do norteestava cada vez mais forte. Era um vento gelado,que esfriava cada vez mais conforme subiam. Ajornada estava se tornando mais difícil. Otto tevede pedir para Angelika andar com os próprios pés,ajudando-a a passar pelos troncos e pedras nochão. A menina segurou a mão dele com força,cantarolando uma música. Depois de algunsminutos, Otto a reconheceu.

“É ‘Blood Red Roses’, não é?” Era uma

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canção romântica muito conhecida, que sempretocava no rádio.

Angelika deu de ombros. “Ah, é?”“Onde você a ouviu?”, ele perguntou. “No

convento?”Angelika balançou a cabeça. “Não, ela não sai

da minha cabeça.” A menina pensou por uminstante. “Talvez minha mãe cantasse para mimquando eu era bebê.”

Otto podia ver que a perspectiva de realmenteencontrar os pais estava se tornando mais real paraAngelika. Ele se sentiu mal por saber que isso nãoaconteceria.

Eles andaram por mais meia hora antes defazerem uma pausa. Foi nesse momento queouviram barulhos distantes. O latido de cães.

Otto vasculhou o vale com os binóculos. Umaenorme matilha de cães de caça vinha na direçãodeles, com soldados correndo para acompanhá-los.Atrás deles, havia jipes especiais, com as rodastraseiras convertidas em esteiras de tração. Ottoreconheceu imediatamente Heydrich no veículoda frente. De alguma forma, ele havia conseguido

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localizá-los.“Parece que eles sabem onde estamos”, disse

Leni, em pânico.Otto sentiu o estômago contrair enquanto

ligava os pontos. “Minha mochila ficou novilarejo. Eles farejaram meu cheiro.”

Agora eles não podiam mais descansar.Precisavam andar rápido se quisessem chegar asalvo na fronteira.

Leni encheu o cantil em uma fonte, pegou osúltimos doces na mochila e os repartiu em três.Eles precisavam de toda energia de que pudessemdispor.

Otto apertou os olhos para ver pelos binóculosde novo e enxergou Heydrich olhando para cima,quase diretamente para ele. Ele calculou adistância em não mais que quinze quilômetros. Esentiu o medo tomar conta. Parte dele tinhacomeçado a acreditar que eles tinham escapado,mas agora o cerco estava se fechando de novo.Otto olhou para as meninas. As duas pareciamexaustas.

“Precisamos ir.” Ele colocou os binóculos na

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mochila.“Eles terão de seguir a pé no final, e teremos

uma boa vantagem”, disse Leni, que estava com orosto branco. Ela também devia ter se dado contade que a situação deles era quase irremediáveldiante de um inimigo tão determinado.

Uma raposa pode até começar com vantagem, masno final acaba sendo devorada pelos cachorros, pensouOtto.

Angelika, que parecia aterrorizada, soluçoualgumas vezes. “Eles não vão nos alcançar, vão?”

Leni a segurou e chacoalhou. “Escute,Angelika, ninguém vai nos pegar.” A firmeza navoz dela fez Angelika parar de chorar.

“Leni está certa. Nós somos rápidos,inteligentes e temos você, Angelika, para nosajudar.” Otto olhou para ela com seriedade.“Agora, vamos!”

“Você acha mesmo?”, perguntou a menina.“Claro que sim”, respondeu Leni.“Segure a minha mão.” Otto estendeu a mão

que não estava machucada para Angelika, e juntoseles começaram a andar, escalando as montanhas o

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mais rápido que conseguiam.Dez minutos depois os três estavam ofegantes.

Leni olhou para o vale. Os cachorros e os veículosainda estavam indo na direção deles.

“Eles estão nos alcançando”, ela dissefriamente.

“Quieta”, disse Otto, que de repente se jogouno chão. As duas o imitaram e se aproximaram deonde ele estava.

“Olhem!”, disse o garoto.Cerca de trezentos metros adiante, e um

pouco abaixo deles, havia uma grande clareira. Opasto das montanhas levava até o vale. Um círculode barracas estava armado no centro da clareiraem volta de uma enorme fogueira. Uma bandeiraestava hasteada em um mastro feito à mão. Nelahavia uma figura masculina, Ícaro, com umasuástica nos pés: o emblema do NSFK, igual ao queestava pintado na lateral do caminhão em Prien. Elogo ali, acima das barracas, havia um planador.Estava preso no alto da clareira, pronto para passarpela colina e subir ao céu.

“É o clube de aviação, como o que

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encontramos em Prien”, disse Otto. “Há muitosdeles nas montanhas nessa época do ano.”

Leni olhou na mesma direção. “Nós nãopodemos. Quero dizer...”, ela começou.

“Olhe lá embaixo.” Otto apontou para oscachorros e os veículos avançado implacavelmentena direção deles. “O que você sugere?”

“Mas nós não sabemos voar.”“Eu sei, quero dizer, eu li um livro uma vez

na escola.”“Você leu um livro?”, Leni olhava para ele

com ceticismo.“Nós poderíamos chegar à fronteira em dez

minutos — talvez menos. Vamos lá, Leni,acabaram as nossas opções, e você sabe disso.”

O latido dos cachorros estava mais alto, assimcomo o barulho dos veículos. O local todoacordaria nos próximos minutos. Era agora oununca. Otto olhou para o acampamento, queainda estava quieto. Mas aquilo mudaria em uminstante. Angelika se enfiou entre os dois.

“Você quer fugir daqui voando, Angelika?”,perguntou Leni.

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Angelika olhou para Otto, com os olhosarregalados de surpresa.

“De verdade?”, ela perguntou.Otto olhou para a menina por um instante.

Será que ele estava ficando louco de levar umamenina tão nova em um planador tão frágil? Émelhor um voo absurdo terminar em desastre do queuma fuga terminar em uma bala na nuca, ele pensou.

Leni começou a esvaziar a mochila. Otto deua granada e sua arma com dois pentes extras demunição. Ele colocou a bússola e o mapa nosbolsos e pendurou os binóculos no pescoço.Entregou o cantil e um apito preso a um fio pretoresistente para Angelika. Ela sorriu e pendurou ocantil e o apito no pescoço. Ele podia ouvir obarulho dos cachorros aumentando. A qualquerminuto eles acordariam as pessoas noacampamento.

“Levante rápido. Não temos tempo. Me dê asua faca, Leni.”

Ela entregou-a a Otto, que correu na direçãodo planador. Ele tinha dois assentos atrás da cabinedo piloto, que estava aberta. Havia uma corda que

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estava prendendo o trilho na parte de trás do aviãoa um suporte no chão. O planador em si estavasobre uma carroça de lançamento de quatro rodas,que apontava colina abaixo.

Otto começou a cortar a corda com a faca. Derepente, eles ouviram o primeiro disparo. Era umtiro de pistola. Um buraco perfeito apareceu nalona da asa bem acima da cabeça de Otto.

Por sorte, a borda da cabine ficava na altura dacintura. As garotas subiram, Angelika ficou entreas pernas de Leni.

O disparo seguinte veio de uma metralhadorasemiautomática. tufos do gramado se levantaramem volta de Otto, que ainda tentava romper acorda. Ele continuou cortando. Confusos esurpresos, alunos de voo com planador saíam desuas barracas usando suéteres e shorts. Os carrosalemães em busca de Angelika estavam a cerca deum quilômetro, e os motores gritavam enquantosacolejavam no chão acidentado. Os cachorrosestavam progredindo, avançando aos saltos,sentindo que a presa estava próxima.

Com um último golpe desesperado, Otto

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cortou a corda. Ele saltou na cabine, colocou amão na lateral e empurrou o mais forte queconseguiu. Imediatamente, o planador começou adeslizar no carro de lançamento, e Otto tevedificuldade de entrar. Ele se enfiou no assento delona ao lado de Leni. O planador passou pelasbarracas, a ponta da asa levantou uma, arrastando-a antes de soltá-la quando o planador ganhouvelocidade.

Do canto do olho, Otto viu um garoto pularem uma bicicleta e ir atrás deles. O planadorestava ganhando velocidade depressa, mas o garotoestava claramente determinado a fazê-lo parar.

Quando alcançou a cabine de pilotagem, Ottoo encarou chocado.

“Ele!”, o rapaz gritou. “É ele!”O garoto de Prien, Rudi, olhava para ele

igualmente chocado. Leni moveu Angelika para afrente, virou o corpo e apontou a pistola para acabeça do garoto.

“Bang!”, ela gritou o mais alto que pôde.Rudi arregalou os olhos de medo. E então a rodadianteira da bicicleta dele bateu em um toco, e

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ele foi lançado por cima do guidão, rolando colinaabaixo, seguido da bicicleta.

Angelika soltou um grito agudo de aviso, eOtto olhou para trás. Um dos cachorros os haviaalcançado. O animal corria ao lado da cabine esaltava no ar, com os dentes à mostra. Otto sentiuuma onda de medo quando uma bala passou pertode seu rosto e acertou o cachorro direto namandíbula. O cão pastor voou para trás, jorrandosangue. Otto olhou para Leni em choque. O canoda pistola soltava fumaça. Ela parecia surpresa como que havia acabado de fazer.

“Você está bem?”, ele gritou. Leni nãorespondeu.

O planador agora se movia com muita rapidez,assim como os jipes do exército. Eles estavamprestes a colidirem frontalmente. Otto podia verHeydrich claramente no primeiro veículo,apontando sua Schmeisser para eles. Otto moveuo controle para trás quando a metralhadoradisparou. O planador levantou voo, e a parte detrás do trilho de metal se chocou direto contra oparabrisa do jipe de Heydrich. Balas pareciam

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encher o ar, mas o planador estava ganhandoaltura rapidamente. Otto olhou para trás e viuHeydrich com a submetralhadora apoiada nosbraços disparando ferozmente contra eles. Umafila de buracos de bala destruiu a asa bem dianteda cabeça de Otto.

Leni segurava a granada e estava pronta paralançá-la, mas Otto gritou: “Não, guarde, guarde agranada!”. A garota assentiu.

Uma corrente de vento pegou a aeronave e alançou para cima como um dardo, fazendo-a subirainda mais no céu da manhã. Os três gritaram.

Otto sentiu o estômago se mover em direçãoaos pés. Subindo cada vez mais, e mais, até queLeni gritou alguma coisa e puxou o braço dele. Àesquerda, estava a imensidão cinza azulada doBodensee. Em algum lugar da parte sul do lago,MacPherson devia estar sentado em um barco,esperando pacientemente por eles. Por ummomento, o sol reluziu na superfície, fazendo-abrilhar como prata, e então uma nuvem escurasurgiu.

“Estamos realmente voando”, gritou Angelika.

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Otto olhou para os instrumentos no painel.Altímetro, bússola e velocímetro. Ele tentou selembrar do que havia lido no livro. Com cuidado,pisou nos pedais do leme, e o planador começou ase inclinar para a esquerda. Mas o ventocontinuava levando-os para o sul.

Não faz mal, pensou Otto, com uma imagemmental do mapa na cabeça. Eles podiam acabaratravessando a fronteira perto de Davos, que eralonge do lago, mas ainda ficava na Suíça. Então,tudo com que tinham de se preocupar era aaterrissagem. E o que fazer com Angelika.

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42

Interceptados

Os garotos estavam totalmente perdidos. Era aúnica coisa de que Otto tinha certeza. Desde adecolagem, o vento havia ficado mais forte; asnuvens, mais escuras; e o planador subia cada vezmais. O altímetro marcava três mil metros, e ostrês tremiam de frio. A aeronave estava sendoaçoitada por ventos de diferentes direções, e Ottoprecisava lutar o tempo todo para tentar mantê-losno ar. Por sorte, eles haviam conseguido afivelar ocinto de segurança e, como eram três, estavamapertados na cabine aberta. Mas aquilo era um

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pequeno conforto.O que tornava a viagem realmente assustadora

era estar nas nuvens. Os três estavam imersos emuma névoa densa e congelante e completamentesem visão. Leni gritava algo para Otto, mas obarulho do vento tornava impossível escutar. Elesegurava o controle, estava com os pés nos pedaise voava por instinto. O garoto sabia que aqualquer momento eles podiam ir de encontro auma rocha e serem esmagados nela. Angelika,apertada diante de Leni, havia colocado a cabeçaentre os joelhos.

Leni continuava gritando acima do uivoproduzido pelo ar movimentado pelo planador.Otto finalmente distinguiu as palavras dela.“Precisamos pousar!”

“Você acha que eu não sei?”, ele gritou emresposta.

De repente, outra corrente de ar os mandoupara o alto e eles atravessaram a cobertura denuvens e chegaram ao ofuscante céu azul. Eracomo ir da noite para o dia. O planador passou aossolavancos pelas nuvens como uma lancha em um

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mar agitado. Por um momento, tudo pareceuperfeito. O planador estava recortando o ar, oúnico som era um assobio por entre a fuselagemda aeronave. E então Otto olhou para a frente. Ocume de uma montanha estava bem diante deles ese aproximando rápido.

Angelika gritou: “É a Piz Buin!”.“Do que você está falando?”, Leni gritou de

volta.“Fica nos alpes Silvretta, a mais de três mil e

trezentos metros de altura com uma geleira nolado sul”, a menina recitou o mais alto que pôde,como uma enciclopédia falante.

“E daí?”, gritou Otto, sem conseguir entenderpor que ela estava tão empolgada.

“A cruz no alto, olhem!”Leni e Otto olharam para o topo da montanha.Havia uma cruz pouco visível cravada na

rocha.“Ela marca a fronteira! Quando se chega ao

outro lado...”“Estamos quase livres!”, Leni interrompeu. Ela

gritou de empolgação.

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“Tem certeza?”, quis saber Otto, de repentetomado pela incerteza.

Pedras acinzentadas e acidentadas marcavam opico coberto de neve.

“Sim! É o meu livro favorito na biblioteca. Ésobre os Alpes. Eu sei reconhecer todas asmontanhas, eu juro.”

Otto olhou na direção de Leni. Talvez fosse ovento, mas os olhos dela estavam lacrimejando.

Ele viu o pico se aproximar, ciente de que dealguma forma teriam de ultrapassá-lo e aterrissarno lado sul. Ele não fazia nenhuma ideia de comofazer isso. Talvez a montanha fosse gentil, pensou,e então se deu conta de como aquilo soava bobo.Otto se inclinou para a frente para verificar osinstrumentos. Ainda estavam indo rumo ao sul. Seconseguisse manter o planador constante, apenasmanter o controle. Ele olhou para a esquerda.Ouviu alguma coisa. Um motor, possivelmente.Com certeza não. E olhou em volta.

“Vocês ouviram isso?”, Otto gritou.“Ali!”, gritou Angelika, mas dessa vez a

menina não estava apontando para as montanhas.

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A ponta de uma asa surgiu através de umanuvem à esquerda. Por um momento, Ottodesejou que todos eles estivessem imaginandocoisas, e então apareceu de novo. A parte de cimaera branca, a de baixo, azul-claro. De ambos oslados havia cruzes pretas e brancas da Luftwaffe.Otto teve uma sensação terrível na barriga. Nãopodia ser...

O avião irrompeu pelas nuvens. Leni eAngelika berraram. Otto gritou tão alto quanto asmeninas. O avião era um Fieseler Stork, um aviãoleve e incrivelmente ágil, ideal para sobrevoar asmontanhas.

Otto se forçou a olhar para a cabine.Exatamente como temia, Heydrich o estavaencarando do assento do piloto. Atrás dele,estavam o homem de óculos que havia visto naestalagem e um oficial da SS, que apontava umasubmetralhadora para eles. O planador já estavacheio de buracos; um disparo curto, e a aeronavese transformaria em um escorredor de macarrãovoador. A metralhadora começou a trabalhar, masas balas passaram por cima deles.

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Heydrich fez um movimento com o polegar,indicando que eles descessem.

“É um tiro de alerta!”, gritou Otto. “Ele querque a gente desça.”

“Bom, ele pode esquecer.” Leni tirou a pistolada cintura, se debruçou sobre Otto e disparou seisvezes. Com a visão que tinha, ela dificilmenteacertaria alguma coisa.

“Você está louca?”, Otto gritou.O cano da submetralhadora do oficial soltou

fogo no mesmo momento em que Otto colocou ocontrole para a frente e os três garotos desceramaté a altura das nuvens, como um elevador com oscabos cortados.

Quando eles atravessaram a cama de nuvens,Otto tinha cinco segundos para reagir.

A primeira coisa que ele viu foi que oplanador estava indo direto para uma parede sólidade gelo. Mas à direita, havia uma abertura em Uentre a Piz Buin e o pico ao lado. Depois daquilo,a Suíça.

Ele pisou fundo nos pedais e puxou a alavancade comando para a direita. Leni colocou os braços

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em volta de Angelika e se inclinou para a frente,preparando-se para o impacto fatal. O planadorestava de lado, perdendo altitude rapidamente,tentando se posicionar para atravessar a abertura.

“Não vamos conseguir”, gritou Leni, e tentousegurar a alavanca.

Otto a empurrou de volta ao assento emanteve o pulso. A asa do planador estavapraticamente vertical em relação ao solo agora.No último instante possível, com a aeronave quasetocando a neve congelada, eles passaram pelaabertura, e Otto puxou a alavanca para trás,nivelando o planador e descendo para a parte sulda montanha. Havia uma geleira cerca de trintametros abaixo deles, e Otto decidiu arriscar,abaixando o bico ainda mais, até que estivessemmergulhando em direção à neve.

“Aqui vamos nós, aqui vamos nós!”, elegritava para as garotas, e Leni se curvou ainda maisem volta de Angelika.

Segundos depois, eles quicaram na geleira,arremeteram brevemente e então voltaram para ochão. A asa esquerda do planador virou para

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baixo, e a borda raspou no gelo. Com um barulhoterrível de algo se rachando, ela foi arrancada, e oplanador começou a girar para baixo pela lateralda montanha. Alguns giros vertiginosos depois, aasa direita bateu em uma formação rochosa etambém foi arrancada. Agora, eles estavam indodireto para baixo, ganhando velocidade, deslizandocomo se estivessem em um trenó. Os três seseguraram com todas as forças. Quando acharamque seriam jogados para o ar de novo, mas agorasem asas, o declive íngreme se transformou emum platô, e os vestígios do planador pararambruscamente.

Os três ficaram parados em silêncio, o cabelo eas sobrancelhas cheios de neve. Lentamente,Angelika se inclinou sobre Leni e pegou umpunhado de neve na lateral do planador.

“Neve”, disse ela, e enfiou tudo na boca comvontade. Ela mastigou e deixou que um pouco daágua derretida escorresse. “Deliciosa!”, exclamoua menina, e riu.

Leni riu também, e soltou o cinto desegurança. “Viu? Você pode voar”, ela disse,

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dando uma cotovelada em Otto.O garoto ainda estava sentado em choque, a

mão colada à alavanca de comando. “Nósconseguimos, nós conseguimos”, disse.

Leni ajudou Angelika a sair da cabine. Atrásdelas, o cume da Piz Buin estava agora envoltoem nuvens. Eles haviam pousado no lado sul eestavam virados para o oeste, de costas para o sol.Um longo campo de neve, salpicado decordilheiras e ravinas, dava em um bosque. Alémdaquele cenário, a talvez dez quilômetros dedistância, Leni podia distinguir dois vilarejos. SeAngelika estivesse mesmo certa, eles estavam emsegurança.

“Estamos na Suíça!” Ela gritava o mais altoque conseguia, e a palavra “Suíça” ecoava pelamontanha. “Nós conseguimos!”

O eco do Stork de Heydrich surgiu acimadeles. Otto saiu da cabine. “Rápido, aqui”, elegritou.

Havia uma formação rochosa à esquerda doplanador, e os três se abaixaram atrás dela. Lenilevantou a pistola, mas Otto segurou o pulso dela.

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“Não desperdice munição.”O avião desceu, e os garotos esperaram que

Heydrich abrisse fogo. Eles se encolheram, masnada aconteceu.

“Por que eles não estão atirando?”, perguntouAngelika.

Otto colocou a cabeça para fora, e o Storkmergulhou acima de onde os três estavam. Ele seescondeu de novo, instintivamente.

Momentos depois, primeiro uma, duas e entãotrês latas cinza, do tamanho de latas de feijão,caíram na neve em volta deles. Fumaça vermelhacomeçou a subir. “Ele está marcando nossaposição”, disse Otto.

“Para quê?”, quis saber Angelika.“Não sei”, respondeu Leni.O Stork voou direto pelas montanhas em

direção ao vale. E então, acima deles, veio obarulho forte de uma aeronave mais pesada. Anuvem estava se abrindo, e quando olharam paracima, um avião de transporte passou pelo cume.

“É por isso, Angelika”, disse Otto.Os três ficaram olhando pequenas figuras

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brancas começarem a sair da porta traseira doavião, com fios presos ao corpo. Em menos de umminuto, havia uns trinta paraquedas flutuando nadireção deles. Soldados.

“O que fazemos agora?”, perguntou Angelika.Só havia uma opção.“Corram!”, gritou Otto.

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Do outro lado da fronteira —Suíça

Heydrich manteve o avião em uma descida direta.Sua coxa direita estava começando a doer de tantopressionar os pedais pesados. Ele olhou para baixo,para o ferimento à bala. Era superficial, um corteleve na parte superior do músculo, mas estavaensopado de sangue, e o ar frio da montanha ofazia doer. Ou a menina era excelente atiradora,ou tinha tido muita sorte. De repente, a lateral damontanha surgiu diante dele, e Heydrich puxou aalavanca, aumentando a aceleração. O avião subiu

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abruptamente. Concentre-se!, disse a si mesmo.Ele olhou para a frente, inclinou o avião,

procurando um local apropriado para pousar. Umpouco depois do bosque, o declive dava em umvale, por onde passava um rio; árvores cresciamnas margens. Ele decidiu que ali havia espaçosuficiente e posicionou o avião.

A longa engrenagem de pouso — que pareciauma cegonha e dava nome ao avião, Stork —absorveu o impacto, e a aeronave parou. Hey-drich soltou o cinto de segurança e saltou parafora. “Quero um rádio e um curativo.”

O general Müller assentiu e entregou o fonedo rádio a seu superior. Heydrich havia tido aprecaução de trazer Müller, seu subordinado deconfiança, o chefe da Gestapo. Se alguém podiaajudá-lo e concluir o trabalho, era ele. Müller eraum homem gordo, de cabelo preto, olhos escurose lábios finos e duros.

Enquanto o general obedecia às ordens deHeydrich e também descarregava as armas, oterceiro passageiro do avião desembarcou comcuidado. Era Straniak, que agora parecia mais

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enjoado e temeroso. Ele se apoiou na fuselagemdo avião e respirou lenta e longamente.

Em minutos, Heydrich estava confirmandoque os paraquedistas alpinos estavam alocados namontanha. Ele considerou contatar o Führer emBerghof, mas decidiu não fazê-lo. Era melhoresperar até que tivessem concluído a missão doque alimentar falsas esperanças.

Müller entregou a ele o curativo, e Heydrich,com rapidez e habilidade, aplicou a bandagem noferimento acima do joelho, interrompendo osangramento; a dor latejante funcionava como umestímulo.

“Me passe os binóculos”, ele disse a Müller,que lhe entregou os binóculos de longa distância.Bem diante dele havia um pasto e uma trilha namontanha que dava em uma ravina. Ele conseguiadistinguir a trilha sinuosa por entre as rochas até asárvores. Acima delas, surgia a montanha.

Se ele escalasse rápido, não levaria mais doque duas horas para chegar ao campo de neve, atélá os paraquedistas teriam capturado as presas paraele. Müller estava com as submetralhadoras nos

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braços. Diversas granadas faziam volume na parteda frente de sua túnica. Ele passou umasubmetralhadora para Heydrich, que a destravou.

“Talvez o senhor não precise mais de mim?”,Straniak perguntou debilmente.

“Bobagem sua, Herr Straniak, essas criançassão como mercúrio. Até que minha bota estejasobre a garganta delas, não vou acreditar em nossosucesso.”

Herr Straniak pareceu ter esvaziado.“Lembre-se, Herr Straniak, não existe honra

maior do que servir o Führer. Agora, vamosconcluir esta missão.”

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Más notícias

Desde que o sol havia nascido sobre o Bodensee,MacPherson havia se posicionado paraesquadrinhar a costa a cada quinze minutos, maisou menos, com um par de poderosos binóculosnavais. Eles ainda estavam ancorados no pontão denado, e Durand havia colocado duas varas na popada lancha. As crianças não haviam aparecido,como esperava, e ele estava cada vez maisnervoso. Diversas lanchas policiais alemãspatrulhavam o local desde a primeira luz do dia,mas eles haviam voltado para a margem algum

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tempo antes. Foi quando MacPherson teve ummau pressentimento.

Quando soltou os binóculos e pegou ocachimbo, ele ouviu o barulho de motor de umalancha vindo em sua direção.

Ao se virar, ele distinguiu imediatamente alancha da doca.

“É o seu piloto!”, exclamou Durand, querapidamente jogou seu café fora e correu nadireção da corda na popa que os amarrava aopontão.

Bracken veio correndo, colocando a lanchaem marcha a ré bruscamente para evitar umacolisão.

“Informação urgente de Londres, senhor,mensagem de rádio interceptada de Berlim para asautoridades suíças.” Ele estava sem fôlego.

“Bem, vá em frente, desembuche, homem!”,gritou MacPherson.

“O Ministro do Exterior Ribbentropinformou ao governo suíço que paraquedistasalemães atravessaram a fronteira em Engadin. Elesestão fazendo operações de busca e resgate, e

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qualquer tentativa de resistência ou interferênciavai resultar nas mais graves consequências para aFederação.”

“Em Engadin?”, Durand franziu o cenho.“Fica a quilômetros daqui.”

MacPherson sabia que a mensagem certamentetinha a ver com as crianças. Mas por que elashaviam atravessado a fronteira tão longe do pontode encontro?

“Você tem um carro na propriedade?”, eleperguntou a Durand.

“Vários”, ela respondeu. A lancha já flutuavalivremente afastando-se do pontão, quando ela deua partida.

“Então vamos nos mexer”, esbravejouMacPherson.

Durand engatou a marcha da lancha eaumentou a velocidade. A lancha empinou edisparou pelo lago, com Bracken logo atrás.

Assim que o barco encostou no píer,MacPherson desembarcou e correu pelo gramadoaté a casa. Durand estava bem atrás dele, deixandoBracken para ancorar as duas lanchas.

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Os pulmões de MacPherson queimavamquando eles chegaram à garagem. Uma série decarros elegantes estava alinhada lá dentro.

“Vamos pegar o Rolls-Royce”, disse Durand.“É rápido e forte.”

“Armas?”, a pistola Webley estava presa aopeito de MacPherson.

A mulher abriu o porta-malas do Rolls-RoycePhantom III vermelho. Ao lado de uma cesta depiquenique de vime e de uma garrafa térmica deestampa xadrez havia duas submetralhadorasThompson com uma dúzia de cartuchos decinquenta tiros e uma pistola de cano cortado.

“Boa menina”, disse MacPherson comdelicadeza, e entrou no carro. Durand assumiu ovolante e saiu da garagem em marcha a ré em altavelocidade, cantando pneus no concreto. Emseguida, ela girou o volante, fazendo uma manobrade cento e oitenta graus, e atravessou a entrada,levantando o cascalho.

MacPherson entendeu totalmente a mensagemde Ribbentrop. Busca e resgate era uma maneirade colocar a coisa; caçar e matar era outra.

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“Em quanto tempo podemos chegar aEngadin?”, ele perguntou a Durand.

“Talvez uma hora, se não houver trânsito.”Uma hora.Ele rezou para que fosse suficiente.

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A explosão

Leni perdeu a conta de quantas vezes os trêscaíram de cara no chão. Cada vez eles tinham dese desvencilhar da neve profunda, levantar econtinuar lutando para descer a montanha. Era tãodifícil. Havia uma camada de gelo, mas compartes frágeis, e de repente ela se quebrava e elesafundavam um metro na neve. Toda hora alguémparava para ajudar o outro que tinha acabado decair.

Naquele momento, Otto estava fazendo o quepodia para ajudar Angelika. Leni estava um pouco

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a frente dos dois, mas, de novo, ela afundou até acintura na neve.

“Me ajudem”, ela gritou, batendo os dentes.“Me dê um minuto!”, Otto gritou em

resposta, enquanto puxava Angelika do buraco. Ostrês estavam terrivelmente mal agasalhados paraaquela temperatura. A menos que conseguissemdescer a montanha logo, não durariam muito.

O primeiro paraquedista havia pousado a cercade quinhentos metros acima deles, perto doplanador quebrado, e rapidamente conseguiurecolher o paraquedas. A cada segundo, outroschegavam à encosta da montanha. Algunscolocavam seus sapatos para neve, outros calçavamesquis. Eles os alcançariam em questão deminutos.

“Lá em cima, olhe!”, Otto gritou para Leni.Ele tentou avançar, deixando Angelika para trás ecorrendo para alcançar um longo cilindro cinzaque estava na neve. Era um tubo que havia sidojogado do avião para as tropas alemãs. Oparaquedas ainda estava preso a ele, ondulando nabrisa.

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Leni tentou correr na direção do cilindro,ajudando Angelika.

“Não desista”, ela a encorajou.“Estou tentando”, disse Angelika. Ela parecia

exausta e com muito frio.Quando Leni chegou até o cilindro, Otto

havia soltado o paraque-das. Acima deles, as tropasestavam se espalhando em semicírculo. Elecomeçou a tirar tudo de dentro o mais rápido quepôde: uma metralhadora leve, caixas de munição egranadas, suprimentos médicos, ração. Finalmente,ele encontrou o que procurava — um machadodobrável. Ele abriu a lâmina e a travou. E entãoentregou a Leni a metralhadora e uma caixa demunição.

“Mantenha as tropas ocupadas!”Leni se jogou no chão, destravando a base da

arma como havia aprendido em Wanborough. Elaabriu a parte superior da caixa de munição, pegouo começo da corrente e colocou-a na arma.Depois, mostrou a Angelika como manter apesada corrente de balas alinhada com a aberturada metralhadora para que ela não emperrasse. A

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garotinha parecia hesitante, mas fez o que foipedido.

Leni levantou a mira e a regulou paraquinhentos metros. Com sua visão, os soldadospareciam borrões na neve branca. Ela respirou,soltou o ar lentamente e apertou o gatilho. Asbalas dispararam, quase sem coice, a metralhadorapuxando as balas da caixa, e a corrente de metalpassando pelas mãos de Angelika como se tivessevida própria.

Atrás dela, Otto levantava o machado acimada cabeça e o enfiava com toda força no cilindrocaído na neve. O machado atravessou o aço. Elelevantou a ferramenta e fez mais um corte. Otubo em forma de charuto estava agora na metade.

“Estou sem munição!”, gritou Leni. Ela olhoupela fumaça que saía da arma. Diversos soldadosestavam caídos na neve. Outros corriam montanhaabaixo com seus sapatos especiais e seus esquis.

“Subam!”, gritou Otto, e ela se virou e o viuapontando para a parte superior do tubo.

Leni entendeu a ideia imediatamente.“Genial!”, disse.

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Ela entrou no tubo, pegou a mão de Angelikae a ajudou a fazer o mesmo.

O garoto estava revirando o equipamento denovo.

“Vamos”, gritou Leni. “Eles estão seaproximando.”

Otto segurava algum tipo de rifle automático euma granada de aparência estranha, que elecolocou em um suporte preso à extremidade docano. Um lançador de granada.

“Deixe isso!” Leni estava em pânico. Ossoldados estavam quase os alcançando. Balaspassavam perto das orelhas dos três.

“Espere, tive uma ideia”, disse Otto. “Peguealgumas granadas.”

Leni sabia que não havia tempo para discutir.Ela mergulhou na direção de uma caixa demunição.

Ele se ajoelhou, enfiou a ponta do disparadorna neve e apertou o gatilho. Com um estrondo, agranada foi longe e explodiu fazendo um barulhoalto entre os soldados; uma explosão profundaecoou pelas montanhas.

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Mais soldados agora estavam caídos na neve.“Recarregar!”, ele gritou.

Leni colocou outra granada em posição.Bum! “Não pare!”Uma bala acertou a lateral do tubo onde

estavam os garotos. Otto disparou a segundagranada. Depois vieram a terceira, a quarta e aquinta. Parecia uma tempestade.

“O que você está fazendo? Você está mirandoalto demais!” Leni apontou para a fumaça acimada linha de soldados.

“Não estou, não.” Otto atirou o disparadorlonge na neve quando uma explosão maior ecoouem volta deles. Uma explosão muito maior.

“Oh, meu Deus, você não...” Leni estavaolhando para a montanha aterrorizada.

“Rápido, vamos para o tubo!”, gritou Otto.Leni subiu no veículo improvisado com

Angelika entre as pernas.“Estou com t-a-a-a-a-anto frio”, foi tudo o

que a garotinha conseguiu dizer, com os dentesbatendo.

Veio outro estrondo enorme, como uma

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enorme pancada. Otto estava na parte de trás dotubo, empurrando com toda força. O tubodeslizou um pouco e emperrou.

“O que você fez, Otto?”, Leni gritou com ele.Ele ia matá-los.

“Pare de berrar!”, ele gritou, enquanto corriapara a frente, tirava a neve que segurava o tubo eo empurrava de volta para a superfície rígida. Ottovoltou para a parte de trás e começou a empurrarde novo.

Outra grande explosão pareceu balançar amontanha inteira.

“Avalanche!”, gritou Leni.Otto deu um último empurrão forte e então o

tubo deslizou livremente, e ele embarcou, com aspernas em volta da cintura de Leni. Acima deles,o cume de neve havia se deslocado da montanha eestava descendo, uma enorme onda branca queparecia crescer cada vez mais.

O tubo avançava rapidamente pela encosta,passando por um cume e se lançando pelo ar antesde voltar à neve e descer em alta velocidade.Atrás deles, os soldados tentavam

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desesperadamente escapar da enorme parede deneve que ganhava tamanho e velocidade. Eracomo uma criatura viva prestes a engolir todos.

“A avalanche vai nos alcançar”, gritou Leni.“Era nossa única chance”, Otto gritou no

ouvido dela.Ele a envolveu pela cintura e segurou firme.

Leni fez o mesmo com Angelika. O rugido daavalanche tinha se tornado ensurdecedor. Na parteda frente, uma nuvem de neve preenchia o ar emvolta deles.

“Nós vamos conseguir!”, ele gritou.“Só se chegarmos ao bosque a tempo!”, Leni

respondeu.Ela olhou para trás pela última vez e viu o

restante dos soldados sendo engolidos pela ondabranca que avançava, faminta por mais.

Aquilo era como um pequeno bote no sopé deuma onda enorme. Quando chegaram ao bosque,com o tubo se chocando nos pinheiros próximos,ouviram o estrondo das árvores sendo abocanhadase destruí das. A onda branca estava quase osalcançando quando o tubo passou por uma pedra e

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virou, jogando-os no chão. Leni virou até ficardeitada de costas e olhou para cima. Tudo o quepodia ver era branco, e então ela foi engolida etotalmente encoberta.

Finalmente, tudo ficou em silêncio.Ela ficou deitada na escuridão por um

segundo, sem ar, e então se deu conta de quepodia mover levemente os braços, sobre o peito.Primeiro, ela libertou o direito, depois, oesquerdo. Com o coração batendo rápido, ela nãoconseguia respirar, mas instintivamente começou aescavar a neve sobre seu corpo, cavando até ver aluz do dia e o ar fresco, que respirou avidamente.Em menos de um minuto, ela havia se libertado eestava fora da neve.

“Otto! Angelika!” Ela se levantou com aspernas trêmulas, olhou em volta e chamou denovo.

Uma mão surgiu na neve à direita.Ela abriu caminho até lá e começou a escavar

punhados de neve. Ela trabalhou fervorosa,incansavelmente, até que Otto surgiu de repente,tentando respirar, cuspindo neve. Leni o segurou e

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o ajudou a se levantar.“Onde está Angelika?”, ela perguntou.Juntos, eles chamaram a menina e esperaram,

tentando ouvir alguma coisa. Finalmente, após apausa mais demorada, eles ouviram um assobiofraco vindo de um monte de neve logo abaixodeles. Os dois correram, tropeçando e caindo, nadireção daquele som. O assobio ficou ainda maisfraco. Eles olharam em volta desesperadamente,tentando localizá-lo. E então o assobio parou.

“Não!”, gritou Leni.Otto avançou para a direita. “Aqui, acho que

veio daqui.”Juntos, eles começaram a cavar, tirando a neve

que estava entre as pernas como um cachorrodesenterrando um osso. Nada.

“Ali!”, disse Leni, apontando para outro local.Eles não tinham muito tempo. Leni estava fora desi, não se dava mais conta das dores e dosdesconfortos que atormentavam seu corpo. Elacontinuou cavando, furiosa e freneticamente, comOtto a seu lado.

“Encontrei”, ele gritou. “Encontrei o pé

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dela.”Sem dúvida, era o pé de Angelika. Os dois

trabalharam com ainda mais empenho, até queconseguiram tirá-la de sua tumba de neve. O rostoda menina era de um azul assustador.

“Me deixe tentar”, disse Leni, empurrandoOtto para o lado. Ela virou a menina de barrigapara baixo, colocou o rostinho de lado e entãocomeçou a aplicar pressão no peito com força. Eraa versão mais recente do método clássico deressuscitação, que haviam aprendido notreinamento.

Otto agachou ao lado dela, impotente. “Elanão pode morrer, não depois de tudo isso, não éjusto.” A voz dele estava sufocada pela emoção.

“Vamos, Angelika, fique conosco”, soluçouLeni.

Era difícil. E também não estava surtindoefeito. A menina continuava deitada, inerte. Lenicontinuou por mais um minuto, mas não fezdiferença. Ela parou e ajoelhou, com os olhos seenchendo de lágrimas.

“Eu sinto muito, Otto...” Ela se inclinou para

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a frente e virou a garota para deixá-la deitada debarriga para cima de novo.

“Não”, disse Otto. “Não...” Ele levantou seubraço saudável e, com força, golpeou o peito deAngelika com o punho.

“O que você está fazendo?”, gritou Leni.Ele fez de novo. Era uma tentativa instintiva

de fazê-la voltar à vida.E funcionou.Angelika tossiu violentamente e vomitou um

jato de neve e água. E então ela se sentou,tossindo, cuspindo e tentando respirar. Lenicolocou os braços em volta da menina e olhoupara Otto, com lágrimas escorrendo pelo rosto.

Após um instante, os garotos deitaram naneve, deixando os três corações desacelerarem.

“Você acha que todos os soldados estãomortos?”, perguntou Leni finalmente.

De repente, ela sentiu muito, muito cansaço.“Espero que sim”, disse Otto sem forças.Leni assentiu. Talvez cinquenta soldados

tivessem sido mortos atrás deles, mas tudo o quesentia era alívio.

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“Mas e aquele homem mau, o que machucouOtto?”, Angelika perguntou baixinho.

Leni olhou para a menina. Ela podia ver queAngelika também estava com medo de Heydrich.

“Eu não sei”, ela respondeu.Mas Leni sabia. Ele estava em algum lugar da

montanha, e estava atrás deles.

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Morte na montanha

“Ninguém pode ter sobrevivido.” Müller andavana frente de Heydrich e Straniak. Eles passarampela ravina e continuaram pela trilha. De lá, eleshaviam assistido à avalanche engolindo osprimeiros soldados e, em seguida, ao que parecia,as crianças.

“Eles parecem já ter sobrevivido a grandesprovações”, disse Heydrich, que não pretendiadeixar a montanha sem os garotos, vivos oumortos.

Ele virou os binóculos para a geleira acima

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deles, procurando uma última vez qualquer sinalde vida das tropas. Nada. Apenas alguns minutosantes, Heydrich havia visto com aqueles mesmosbinóculos o menino e a menina disparandogranadas montanha acima. Eles tinham agido demaneira implacável, acabando com umacompanhia inteira da Brigada de Montanha deElite da SS, recém-chegada da Grécia. Capturartrês crianças não deveria ser nada para eles. Pelaprimeira vez, Hey-drich considerou apossibilidade de manter os dois adolescentes vivosquando os capturasse. O talento deles comoagentes infiltrados poderia vir a ser útil ao Reiche, quando tivesse descoberto a identidadeverdadeira dos dois, Heydrich tinha certeza deque a pressão certa poderia ser feita para obtercooperação plena e leal das crianças.

Ele começou a andar de novo, mantendo oritmo rápido; o ferimento em carne viva em suacoxa tinha deixado de incomodar. A Schmeisserestava pendurada, mas solta, em seu pescoço ebalançava como um dos pêndulos de Straniak.Abaixo dele, no vale, o Fieseler Stork ainda era

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visível, as asas brancas despontando em meio aoverde da vegetação de verão. Straniak tentavaacompanhá-lo, limpando a sobrancelha com umgrande lenço manchado. Ele suava profusamenteapesar do ar frio e respirava com dificuldade.

Depois de algum tempo, os três homensatravessaram uma segunda ravina sobre a qual seestendia uma ponte feita de corda, que balançavasob o peso dos homens. Lá embaixo, uma torrenteviolenta de água proveniente do gelo derretido.Depois de atravessá-la, continuaram seguindo atrilha para a direita. Pouco antes de chegarem àsárvores, eles encontraram dois homens.

Eram fazendeiros agachados que vestiambermudas e camisas tradicionais, e levavam riflesde caça embaixo do braço. Um deles trazia umacabeça de cabra da montanha em volta dopescoço. O animal pingava sangue de umferimento no meio da testa.

Heydrich não diminuiu o passo, mas sua mãoenluvada apertou a coronha da Schmeisser.“Estamos procurando três crianças perdidas namontanha”, disse ele.

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“Vocês as viram?”Os homens balançaram a cabeça.“Houve uma avalanche”, disse um deles.“Eu sei.” Heydrich percebeu que eles não

teriam qualquer serventia.O mais alto dos dois agora franzia a testa. O

amigo lentamente levantou o rifle.“Vocês são da SS, acho. Vocês sabem onde

estão?”, perguntou o fazendeiro.“Acredito que sim, obrigado”, respondeu

Heydrich. “Deixe-nos passar. Estamos com muitapressa.”

O fazendeiro levantou o próprio rifle. “Não seaproximem.”

“Como quiserem.” Heydrich se colocoudiante deles.

“Este é território suíço. Meu irmão e euvamos escoltá-los até o chefe de polícia emKlosters.”

Heydrich interrompeu o homem. “Como euexpliquei, esta é uma missão de resgate de trêscrianças que estão nesta montanha, possivelmenteferidas.”

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Os homens olharam uns para os outros,incertos.

“Vocês podem contar sua história para o chefede polícia”, disse o fazendeiro, sem hesitar.

“Eu me explico para apenas uma pessoa...”Heydrich esvaziou as trinta e duas balas dos

cartuchos nos corpos dos homens em poucomenos de quatro segundos. Os dois giraram e secontorceram como se fossem marionetes, antes decaírem no chão. Heydrich recarregou a arma.

“E essa pessoa é Adolf Hitler.”

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Esconde-esconde

O barulho em staccato da submetralhadora ecooupela montanha, fazendo Otto e as meninasabaixarem para se proteger. Eles haviam chegadoao fim do bosque e estavam prestes e pegar umcaminho que parecia levar até o vale. Escondidosatrás de uma grande rocha, eles ficaram sentadostentando escutar alguma coisa. Depois de umtempo, Otto rastejou para a frente para dar umaolhada. Ele voltou em aproximadamente umminuto.

“São Heydrich e os outros dois. Cerca de

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quinhentos metros abaixo de nós, vindo para cá.”O rosto dele estava tão branco quanto a neve emvolta deles.

“E daí? Vamos descer à força.” Leni seguravaa pistola firmemente com uma mão.

“Sim”, disse Angelika. “Leni ainda tem umagranada.” Ela estava com o rosto vermelho. Ottosabia que ela devia estar com medo, mas a meninademonstrava uma coragem imensa. Ele balançou acabeça. Era melhor garantir que as garotasdescessem em segurança enquanto ele ficava namontanha e tirava Heydrich do caminho.

“Você é uma menina muito corajosa,Angelika, mas não.”

“Então o que vamos fazer?”, ela perguntou.“Precisamos ser espertos agora, usem a

cabeça.”Leni assentiu. “Otto tem razão.”“Então, vamos fazer o seguinte”, ele disse com

firmeza. “Vamos nos separar.”“Não!”, as duas falaram ao mesmo tempo.“Esperem, me escutem.” Otto podia ver que

teria de ser o mais persuasivo possível. Ele falou

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com calma, sério.“Nos separar é o único jeito. Eu vou atraí-los

para cima, para longe da trilha. Vocês esperameles irem e descem o mais rápido que puderematé o vilarejo mais próximo. Corram o tempotodo, se possível. Não deve levar mais de trintaminutos.”

Ele se inclinou para a frente e apontou para ovale lá embaixo. “Não parem, não olhem paratrás, sigam em frente. Lá está o vilarejo, estãovendo?”

“Eles vão matar você”, disse Leni, com a vozinflexível.

“Só se me alcançarem. E não vão conseguir,eu prometo.”

“E da última vez?”“Da última vez eu estava preso em um

celeiro. Desta vez, eu tenho a montanha inteirapara me esconder. Eu encontro vocês lá embaixopara o almoço. Vou comer um Bratwurst enorme etomar um refrigerante de laranja.” A voz deleestava calma. Otto olhou para Leni calmamente.

“Eu vou”, disse ela. “É a minha vez.”

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Otto balançou a cabeça vigorosamente. “Nãoimporta de quem é a vez, Leni, e você sabe. Oque importa é ela. Dar a Angelika a melhorchance possível. Eu achei que você tivessedeixado isso claro agora há pouco.”

Ele viu que suas últimas palavras surtiramefeito. “Estamos perdendo tempo. Você sabe quenão há outro jeito.”

Finalmente, Leni assentiu e pegou a mão deAngelika. “Ele tem razão.”

Parecia que Angelika ia chorar.“Fique com isso”, disse Leni. Ela tirou a

última granada do bolso.“Eu esperava que fosse um chocolate”, disse

Otto.“Infelizmente, não”, Leni sorriu para ele.

Aquele momento em que Otto deu uma broncanela por causa de uma embalagem de chocolateinglês parecia fazer tanto tempo.

“Fique com a arma e a granada. Só porprecaução.” Ele se inclinou para a frente eabraçou Angelika com força. “Angelika, precisodizer uma coisa para Leni em particular.”

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“Você quer dizer um segredo?”“Sim, algo assim.”Angelika assentiu e se afastou.Otto abaixou a voz até sussurrar. “Você

pensou para onde vai levá-la?” Ele não disse “seeu não conseguir me salvar”, mas sabia que Lenientendeu do que estava falando.

“Então estamos conversados. Não vamosentregá-la a MacPher-son.” Leni analisou o rostode Otto.

“Sim, estamos conversados.” Otto disse comfirmeza.

“Estive pensando, tenho uns parentes distantesna Suíça, em Berne. Não fica muito longe daqui.Primos do lado da minha mãe. Tenho certeza deque eles nos ajudariam.”

Otto assentiu. “Parece uma boa ideia. Sim,parece mesmo.” Ele sorriu diante da ideia deAngelika vivendo com uma família judia.Ninguém pensaria em procurá-la ali. Talvez elesobrevivesse e pudesse até visitá-la. “Tenhamcuidado”, ele disse rapidamente. Em seguida,levantou e se afastou das garotas.

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“Espere”, disse Leni, mas ele já estava fora devista.

Angelika voltou correndo. “Ele não sedespediu”, ela reclamou.

“É porque ele vai nos encontrar mais tardepara almoçar, lembra?”

Angelika assentiu. E sorriu em seguida. “Eu seio segredo que ele contou para você.”

“É mesmo? E qual é?”“Ele disse que está apaixonado por você, não

é?”Leni olhou para Angelika, tão segura de que

sabia a verdade.“Algo parecido.”“Você está apaixonada por ele?”Leni colocou a granada no bolso.“Esse é o meu segredo, não é?”, ela respondeu.

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Articulações brancas

MacPherson desceu o mais rápido que pôde pelavia principal de Davos sem chamar atenção. Nummundo ideal, ele estaria correndo sem parar,fazendo todos saírem do caminho, até o Rolls-Royce que o esperava. Mas a parada tinha valido apena. Ele havia conseguido informações maisprecisas do contato em Berne. Os alemães haviammandado tropas para o lado sul de Piz Buin, umcume à direita da fronteira, relativamente próximoda cidade. Ele abriu a porta traseira da limusine eentrou.

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“Piz Buin? Quanto tempo?”, ele gritava.Durand já tinha dado a partida.

“Deixe comigo, senhor”, ela disse apenas, e ocarro avançou, deslizando pela rua.

Menos de trinta minutos depois, o automóvelhavia subido as colinas, e MacPherson estava maisenjoado que quando estivera nos mares maisbravos.

Eles chegaram a uma bifurcação. O Rolls-Royce cruzou uma ponte côncava e vooumajestosamente pelos ares por menos de vintemetros antes de cair de novo na via esburacada, ascalotas cromadas fazendo faíscas nas rodas.

“Aqui!”, esbravejou MacPherson, apontandopara o Stork parado no prado a cerca de umquilômetro. Ele havia reconhecido o aviãoimediatamente como um avião alemão.

Segundos depois, o carro havia derrubado umportão de cinco barras e estava inclinado noprado, escorregando e derrapando no orvalho damanhã. MacPherson segurava no apoio de tetoenquanto o carro chacoalhava sobre a grama, como motor roncando.

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Durand pisou no freio, e o enorme carro deuum giro e parou, arremessando MacPhersoncontra o painel de jacarandá uma última vez.

“Muito bem, Durand”, ele conseguiu dizer,enquanto uma nuvem fina de poeira envolvia oRolls-Royce. Um traço fino de fumaça saía doradiador com um chiado. MacPherson abriu aporta e cambaleou para fora, indo até o porta-malas do carro. Ele pegou uma das metralhadorasThompson antes de reunir alguns cartuchos. Apoeira em volta do carro começava a assentar.

“Parece que minha fonte estava certa.”MacPherson colocou um cartucho na arma e adestravou. O avião estava vazio.

“Parece que sim.” Durand havia acendido umcigarro e fumava.

MacPherson entregou uma Thompson a ela,que se desfez do cigarro, uma vez que o peso daarma requeria as duas mãos.

“Já atirei em muitos pássaros no meu tempo,mas nunca derrubei uma cegonha. Quer meacompanhar?” Ele olhou para a jovem. “A travafica deste lado, vire até o A.”

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Durand levantou as sobrancelhas. Não era aprimeira vez dela.

MacPherson assentiu com pesar. “Primeiro asdamas”, disse ele.

Durand apertou o gatilho. Uma língua dequinze centímetros de fogo disparou do cano,enquanto invólucros de latão jorravam da lateralda arma. MacPherson destravou a própria arma,acertando a capota, a cobertura do motor e então— pronto! — o tanque de combustível. Umaexplosão suficientemente grande envolveu o aviãoe o dividiu em dois, fazendo as asas virarem paradentro.

Em menos de dois minutos a coisa toda haviasido consumida pelas

chamas. Apenas o metal amassado datubulação sobrou. Uma coluna de fumaça preta eoleosa subiu pelo ar da manhã.

“Meu Deus”, disse Durand. “Parece quealguém vai ficar longe de casa.”

MacPherson olhou para a montanha acima.Estava na hora de ir atrás da garota.

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Enganado

Heydrich olhou pelos binóculos para o vale láembaixo. O avião havia se transformado em ummonte de destroços em chamas; duas pessoasarmadas subiam a montanha. Claramente, ocomitê de boas-vindas das crianças havia chegado.Isso podia dificultar um pouco as coisas se ele nãoas encontrasse logo.

“Quem são eles?”, perguntou Straniak,ansioso.

“Eu imaginaria que, dada a sua habilidade,Herr Straniak, o senhor me diria isso, não o

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contrário.”Heydrich estava cansado daquele homem.

Desde que localizara as crianças pela primeira vezno povoado, ele havia falhado em encontrá-las denovo com aquele pêndulo idiota.

Straniak protestou explicando que não podiafazer nada diante do fato de eles estarementerrados sob sete metros de neve, mas Heydrichnão estava convencido. O homem era uma fraudeque havia dado sorte uma vez. E, ainda assim, elehavia fagrado o místico encarando-o de maneiraestranha quando achava que Heydrich não estavaolhando. Quase como se soubesse algo sobre ele— sobre o que o futuro guardava. Ao se lembrarda estranha reação de Straniak ao apertar sua mãopela primeira vez, um arrepio percorreu o corpode Heydrich, como uma sombra sobre seutúmulo. Uma pequena avalanche caiu sobre eles.O oficial desviou das rochas, que passaram porcima de sua cabeça, e olhou para a montanha. Porum instante, ele vislumbrou uma camisa daHitler-Jugend. Tinha de ser o garoto. Pelo menosele estava vivo. Era inacreditável.

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“Lá em cima, à direita!”, ele gritou paraMüller, que abriu fogo, fazendo as balasricochetearem nas rochas.

“Vamos!” Heydrich recuperou o ânimo paravoltar à ação.

“Eles não podem ser mais rápidos que nós...”Heydrich voou trilha acima. Atrás dele,

Straniak parou. Ele continuou a subir, nãoprecisava mais do místico. Mas a perna feridaestava doendo muito agora. Também atrás dele,Müller, que estava mais acostumado com osescritórios da Gestapo de Berlim do que comAlpes, estava reclamando e ofegando com o arrarefeito. Rochas continuaram a rolar e cair nadireção deles. As crianças obviamente esperavamque uma os acertasse. Estava claro que era a únicaarma que tinham, mas estavam certas — um golpede até mesmo uma pedra pequena vinda de umaaltura razoável poderia ser mortal. Ele subiu pormais cinco minutos e então notou que as pedrastinham parado de cair. Heydrich parou paraprestar atenção. Nada. Espere, havia algo, bemfraco. Uma voz masculina. Straniak. Ele escalou

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uma rocha grande e olhou para baixo com osbinóculos. Sem dúvida, era Straniak acenandofreneticamente com seu lenço manchado egesticulando com o outro braço. Ele apontavapara baixo.

Heydrich falou palavrões quando se deu contade que havia sido enganado. E então viu a cabeçado garoto abaixo dele, apenas por um instante.

“Para baixo!”, ele gritou para Müller, queacabara de alcançá-lo, ofegante. “Vamos descer!”

“O quê?”, perguntou Müller.Heydrich começou a correr sobre as pedras

soltas, preocupado em não perder o equilíbrio ecair. Um tornozelo torcido acabaria definiti-vamente com a perseguição.

Em menos de dez minutos, ele voltou paraonde Straniak estava, com suor escorrendo pelorosto e gotículas de saliva nos cantos da boca.

“Tem certeza?”“O pêndulo não mente”, respondeu o místico.Heydrich balançou a cabeça, cansado do

pseudomisticismo do homem.“Bem, se mentir, vou deixá-lo nesta

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montanha.”Ele olhou para Müller, que ainda tropeçava

nas rochas e nos pedregulhos.“Vamos, Müller! Ainda podemos alcançá-los.”

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A ponte

“Por que você parou? Está machucada?”,perguntou Leni.

“Otto”, quis saber Angelika. “E o Otto?”Leni sentiu a pergunta como se fosse uma

facada no coração. Ambas tinham ouvido disparosde metralhadora na montanha. Elas encontraramos fazendeiros mortos na trilha. Leni tinha até tidoa presença de espírito de pegar um dos rifles. Esabia que se Heydrich as alcançasse, elas tambémestariam mortas.

“Angelika...”

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“Precisamos esperá-lo”, insistiu a menina.Elas haviam chegado à ponte feita de corda.

Era uma típica estrutura alpina de quatro cordasfortes trançadas, duas na parte de baixo paraamparar as tábuas e duas na parte de cima paraservir de corrimão. Cordas verticais estavampresas entre as de cima e as de baixo como eixos.A ponte parecia sólida na aparência, mas não davaessa sensação enquanto balançava sob o peso dasduas meninas. Angelika parou quando chegaramao outro lado.

“Não podemos, Angelika. Não desta vez.Precisamos garantir a sua segurança primeiro.Depois eu volto, prometo.”

“Vai ser tarde demais.”“Sinto muito, mas é o que Otto iria querer

que fizéssemos”, disse Leni.“Você não sabe. Você está só dizendo isso

para se sentir melhor.”Quanto mais tempo passamos juntas, mais essa

menina me conhece como a palma da mão, pensouLeni.

“Certo”, ela vociferou. “O que você sugere?”

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“Que tal isso?” Ela apontou para a granadapresa ao cinto de Leni. “Precisamos tentar, Leni.”

Leni sabia, em seu coração, que não poderiadeixar a montanha sem Otto. Não depois de tudoo que tinham passado juntos nas últimas quarenta eoito horas. Quarenta e oito horas. Parecia umaeternidade.

“Certo. Rápido.” Ela levou Angelika para forada trilha. Quando estavam fora de vista, Lenisoltou o rifle do fazendeiro, tirou um dos sapatos ea respectiva meia, que era feita de lã grossa. Elamordeu a ponta, rompeu a trama e, com cuidado,começou a puxar o fio. “Faça um novelo”, elapediu a Angelika, que pegou a ponta e começou aenrolar em si mesma.

Mais tiros foram disparados. Elas tinham decorrer. Leni olhou para a montanha e rezou paraque Otto ainda estivesse vivo.

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Fechando o cerco

Mais acima, na trilha, Otto estava tentando semanter à frente de seus perseguidores. Ele já haviacaído umas três ou quatro vezes, a cada tomboralando um joelho ou cotovelo. A mão queHeydrich havia perfurado ardia e estava inchada.A cabeça doía, a boca estava totalmente seca, eele achava que seu dedo mínimo, que estavadobrado em um ângulo estranho, pudesse estarquebrado. Era engraçado, porque Otto nãoconseguia lembrar como aquilo tinha acontecidode jeito nenhum. Pelo menos não era o dedo que

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usava para atirar.Encontrar os fazendeiros mortos tinha sido um

choque, mas, como Leni, ele pegou o rifle de caçaremanescente, que estava atravessado em suascostas enquanto corria e batia em suas omoplatas,acrescentando mais uma faceta de dor a todo osofrimento. Ao dobrar a última curva, ele sedeparou com a ponte.

Otto se lançou para a frente, tentando ganharmais velocidade para atravessá-la, antes queHeydrich e os outros o alcançassem. Disparos demetralhadora soavam atrás dele, balas passavampor cima de sua cabeça. A próxima levaprovavelmente o atingiria. Mas ele estavadeterminado a chegar à ponte.

Uma dor lancinante atravessou sua panturrilhaesquerda, fazendo-o perder o equilíbrio. Ele foi aochão com o ombro e saiu rolando. Havia umarocha de tamanho considerável à esquerda, e elese arrastou para se proteger atrás dela. Pegou orifle e arriscou olhar para a perna. Uma bala tinhaatravessado o músculo da panturrilha, e o sangueestava jorrando. Ele ignorou o ferimento por um

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momento, deixando o sangue escorrer para a bota,posicionou o cabo do rifle no ombro esquerdo eolhou pelo cano. A imagem de um uniformepreto surgiu, e ele disparou. Os tiros que vieramem retorno o fizeram se esconder. Seu corpointeiro doía.

Ele mexeu no ferrolho do rifle, livrando-se docartucho usado e colocando outro na abertura. Ogaroto teria de abandonar qualquer esperança deatravessar a ponte agora e precisava tentar mantê-los onde estavam pelo tempo que conseguisse. Elese perguntou quantas balas havia no cartucho. Nãomuitas, certamente. Então atirou de novo. Umaexplosão de disparos de metralhadora veio emtroco. Ele seria o primeiro a ficar sem munição edevia guardar a última bala para si mesmo. Eletirou o cartucho para confierir. Havia uma únicabala. Era isso. O sangue cobria sua bota, espesso eviscoso. Se tentasse correr com a perna assim, nãoavançaria cinco metros antes de ser derrubado.

“Abaixe a arma!” A voz de Heydrichatravessou o ar da montanha.

Otto balançou a cabeça. A questão era:

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melhor levar um tiro nas costas ou fazer o serviçopor conta própria? Ele virou o rifle e olhou para opequeno buraco preto. Podia sentir o cheiro dapólvora enquanto apoiava a testa direto na bocado cano. Ele se inclinou para a frente e colocou opolegar esquerdo no gatilho, a mão enfaixadasegurando o cano na cabeça. Não ia ser fácil.Cerca de um quilo de pressão no gatilho e o fim.Ele ouviu passos. Eles estavam próximos.

E então, antes que se desse conta do queestava fazendo, Otto se levantou, com o rifle delado, correndo e pulando pelo caminho até aponte. Atrás dele, tiros, mas nenhum golpeviolento nas costas, apenas o zumbido de balas quepassavam por sua cabeça. Otto forçou os braços omáximo que pôde. Ia conseguir. E então foijogado violentamente para a frente e caiu no chãoduro. Um segundo depois, uma bota estava emsua nuca, prendendo-o ao chão.

“É o mais longe que você vai chegar, garotode Munique”, disse Heydrich.

Otto limpou o sangue que escorria de seu olhoesquerdo e olhou para a frente. A ponte estava a

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apenas vinte metros. Ele sentiu vontade de chorar.E então percebeu que já estava chorando.

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Fim de jogo

Leni e Angelika estavam bem escondidas, masmesmo assim tinham uma visão clara do que haviaacontecido. Leni estava com o rifle atravessado noombro, a mira dançando sobre o uniforme pretode Hey-drich. Ele havia se abaixado e levantadoOtto. Pelo cabelo. Leni queria gritar, ainda maisquando viu o rosto e a perna do meninototalmente ensanguentados.

“Atire! Atire!”, instigava Angelika. “O quevocê está esperando?”

Leni inspirou, como havia aprendido, para

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estabilizar o rifle, e tentou manter a mira fixa notorso do homem, mas sua visão estava muitoembaçada. Era impossível dar um tiro certeiro. Oalcance estava muito além de duzentos metros, eOtto estava cambaleando na frente de Heydrich.Leni sabia que se atirasse tinha muita chance dearrancar a cabeça de Otto.

Heydrich o estava levando lentamente até aponte.

O que ele ia fazer?“Não posso atirar, Angelika, minha visão não é

boa o bastante.”“Deixe que eu atiro”, disse Angelika.Leni olhou para a menina. “Você sabe o que

está dizendo?”Angelika olhou de volta com seriedade e

assentiu.“Angelika...”“Me deixe atirar. Eu enxergo bem. Ele vai

matar Otto.”“Tem certeza?” Leni estava hesitante.“Não faz mal que seja uma coisa ruim. Salvar

Otto é tudo o que me importa.”

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Leni assentiu. Tudo parecia irreal agora. Só asobrevivência importava. “Tudo bem, mas vouajudar você.”

Ela ficou de joelhos e colocou o rifle noombro direito. Angelika ficou atrás dela e apertouo cabo contra o próprio ombro com toda força.

“Alinhe a mira, coloque o dedo no gatilho eaperte.”

Angelika olhou a ponta do cano. Leni podiaouvi-la respirando. Um momento se passou, entãoo rifle deu um golpe no ombro de Leni.

A bala atingiu a divisa de prata do boné depala de Heydrich e o arrancou da cabeça domilitar. Ele empurrou Otto para a face lateral deuma rocha, com o braço em volta de seu pescoçoe o cano da pistola na cabeça do garoto.

“Então vocês ainda estão aí!”, gritou.“Excelente.”

Leni colocou o rifle de lado e olhou paraAngelika.

“Você quase o acertou, muito bem”, disse,mas não conseguiu disfarçar a decepção. Era amelhor chance delas de salvar Otto. Angelika

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parecia desanimada.“O que vocês estão fazendo?”, Otto gritou,

com a voz entrecortada. Heydrich apertou aorelha do garoto com o cano da pistola. Ottogemeu.

“Seu amigo tem razão. Por que vocês estãoaqui? Espero que não seja uma lealdadedespropositada.”

Leni e Angelika não moveram um músculoenquanto Heydrich, agora com Otto bempróximo, como escudo, saiu de seu esconderijo ese aproximou da ponte. Ele empurrou Otto para oprimeiro degrau. A ponte balançou levemente.

“É o suficiente!”, gritou Leni.A cabeça de Heydrich se virou na direção

delas. “Como quiserem.”Ele destravou a pistola. “Estamos esperando.”

A voz dele estava quase cantada. “E não vamosesperar para sempre.”

Era o momento do plano B. Angelika meneoua cabeça. Leni sabia que não haveria comodissuadi-la.

“Certo! Você pode ficar com a garota com

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uma condição”, ela gritou.“Não!” Otto balançou a cabeça. Outro estalo

na cabeça o impediu de dizer mais.“A garota pelo garoto. Uma troca simples, é

isso?” Heydrich gritou de volta.“Isso mesmo”, respondeu Leni.“Por que vocês estão fazendo isso?” Heydrich

gritou de volta.As duas meninas se entreolharam. Leni não

sabia o que dizer, mas precisava dizer alguma coisaantes que Heydrich se desse conta de que estavasendo enganado.

“Ela está fazendo isso porque está apaixonadapor Otto”, gritou Angelika, cuja voz era aguda einfantil, mas atravessou a ponte feita de corda.

Otto pareceu confuso. Heydrich zombou.“Eu concordo.” A voz dele ressoou pela

ravina.“Vamos fazer isso rápido.”“Angelika vai andar até o meio da ponte”,

Leni gritou.Ela olhou para a menina. “Tem certeza?”Angelika assentiu. “Vai ficar tudo bem.”

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Ela levantou, saiu dos arbustos e voltou àtrilha.

“Quando ela estiver no meio da ponte, deixe-o ir. Quando ele passar por ela, Angelika irá atévocê.”

A voz de Leni estava ficando rouca.Eles haviam chegado ao fim do jogo.

Otto esperou tenso, com o antebraço deHeydrich preso ao pescoço. Ele estava tão cansadoe com tanta dor que não notou o cano encostado

à sua têmpora. Só queria que Heydrich odeixasse ir, aceitasse a troca, mesmo que nãoentendesse o que estava acontecendo. TalvezHeydrich também não entendesse. Talvez por issoestivesse hesitante, pensando se tudo aquilo nãoera um truque. Otto não acreditava na explicaçãode Angelika e sabia que Leni nunca sacrificaria amenina, nunca.

“Muito bem!”, gritou Heydrich, depois detomar uma decisão, com a voz ecoando nasorelhas de Otto. “Venha, menina!”

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Otto sentiu a pressão diminuir um poucoquando Angelika surgiu de um aglomerado densode arbustos à direita e andou lenta, masdecididamente, em direção aos dois. Ela pareciamuito calma e séria, quase serena. Otto ouviuHeydrich prender a respiração; em seguida vieramos passos atrás deles.

“Fiquem para trás!” Heydrich gritou paraMüller e Straniak.

Otto se deu conta de que não queria queninguém fizesse nada que pudesse assustar a garota.

Angelika chegou ao meio da ponte e parou. Aestrutura toda balançava lentamente de um ladoao outro. Ela se segurou na corda de apoio daesquerda com uma das mãos.

Heydrich se inclinou para a frente e levou aboca até a orelha ensanguentada de Otto. “Agoraacabou, garoto, vou descobrir quem você é deverdade, quem é a sua família.” A voz dele estavacalma. “E quando tiver descoberto, não vou sómatá-los, vou apagar qualquer registro daexistência deles. Depois de fazer isso, vou vir atrásde você. Vou garantir que você e sua família

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sejam eliminados da terra para sempre.” Eleempurrou Otto com a base da mão.

O garoto não olhou para trás. A ameaçaencheu seus olhos de lágrimas, e ele não queriadar àquele homem a satisfação de vê-lo chorar.Sua perna ardia, mas ele continuou mancando, atéchegar a Angelika.

“O que está acontecendo?”, ele sussurrou,enxugando os olhos.

Angelika sorriu animadamente. “Você vai ver.Só chegue ao outro lado o mais rápido quepuder.”

Otto olhou para baixo e viu que o dedomédio de Angelika estava bem enrolado em umpedaço de barbante que caía sobre a tábua aos pésdela. Ali, longe dos olhos de Heydrich, maisbarbante havia sido enrolado em volta da madeira.Otto franziu a testa. O que as duas estavamtramando?

“Vá, Otto, vá”, disse Angelika.Otto continuou em frente, pensativo.No instante em que o garoto passou por ela,

Heydrich pisou na ponte.

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“Venha, menina!”, ele ordenou.Mas Angelika ficou onde estava, olhando para

trás, para garantir que Otto havia chegado aooutro lado.

“Venha imediatamente!” Heydrich levantou avoz. Ele avançou, com a ponte balançando sob seupeso.

Otto se virou para ver o que estavaacontecendo. Angelika puxou o fio enrolado emseu dedo e correu na direção dele, afastando-se deHeydrich.

E então Otto se deu conta do que ela haviafeito. E se lembrou da última granada de Leni.

Cinco.“Pare!” Heydrich gritou, sem poder correr, a

ponte era muito instável. Ele caiu de joelhos etentou mirar a pistola.

Quatro.Angelika estava alcançando Otto. Heydrich

atirou, mas o balanço da ponte atrapalhou suamira.

Três.Heydrich teve de agarrar a corda para não

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cair.Dois.Heydrich se levantou de novo e cambaleou

para a frente.Um.Heydrich estava quase no meio da ponte,

Angelika, a uns dois passos do fim. Otto estava asalvo.

A granada de Leni explodiu, rompendo ascordas com tanta facilidade quanto uma faca demetal quente, cortando a ponte em duas. Cadametade voou até a rocha oposta. De um lado,Angelika estava se segurando nas tábuas a cerca decinco metros abaixo. E do outro estava Heydrich,na última tábua. O impacto havia arrancado apistola da mão dele, que havia soltado a corda quefuncionava como corrimão. Mas a perna direitaestava firmemente presa entre duas tábuas,pendurando-o de cabeça para baixo com os olhosem Angelika. Otto ouviu o barulho discreto daarma que caiu nas rochas lá embaixo.

Ele desceu pela ponte quebrada para resgatar amenina.

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“Atire! Atire na menina!” Heydrich tentava sebalançar desesperadamente para endireitar o corpoe poder subir pela ponte destruída.

Müller foi até a borda da parede rochosa,tentando ver a menina, mas ela estava abaixo dalinha de fogo. Um único disparo foi ouvido, eMüller cambaleou de volta, apoiando-se no braçoesquerdo. Um tiro de sorte. Leni havia usado bema última bala do rifle. Mas Müller não sabia disso.

“Fui atingido”, gritou o chefe da Gestapo. Elevirou para o lado e esvaziou o último pente nadireção da ponte.

“Rápido, Otto!”, gritou Leni, que saiu dosarbustos e correu até a ponte.

O garoto esticou a mão para Angelika nomomento em que a corda desfada e queimada derepente se rompeu. Ele conseguiu se jogar para olado, e sua mão saudável conseguiu segurar abeirada. Ele olhou para baixo, esperando o pior,mas de alguma maneira Angelika havia segurandoum toco de árvore que havia na rocha.

Do outro lado, Heydrich havia conseguidoendireitar o corpo e estava subindo pela corda.

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Otto se abaixou até que ele mesmo estivesseapoiado no toco. E esticou a mão de novo.

“Pegue a minha mão!”, disse ele. Angelikaestava se segurando na extremidade do toco comas duas mãos, balançando levemente sobre aravina. Lentamente, ela soltou a direita eencontrou a mão esquerda de Otto. Eles seseguraram pelo pulso.

“Eu puxo você para cima.”Houve um estalo terrível, e o toco cedeu.

Otto conseguiu segurar uma fenda na rocha com amão machucada. Ele gritou de dor, mas continuousegurando Angelika, que estava pendurava em seubraço esquerdo. A menina olhou para ele. “Eunão consigo mais segurar”, ela sussurrou.

Otto sentiu a força dela diminuir. “Consegue,sim!”, ele disse, mas sabia que sua mão enfaixadatambém estava cedendo. Sua força estavadiminuindo cada vez mais, e a mão boa, quesegurava o pulso da menina, estava suada. Era umaquestão de tempo.

“Você também não consegue segurar, não é?”,ela perguntou.

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“Consigo, sim, eu seguro você!”, elerespondeu, mas Angelika estava começando aescapar.

“Eu estou puxando você para baixo.”Angelika olhou para ele com olhos arregalados.

“Por favor, Angelika, por favor, segure-se...nós vamos conseguir”, ele implorou. Mas a mãoda menina estava escorregando pela dele, nãoimportava quanto ele tentasse segurar.

“Eu não consigo”, ela disse baixo, “Está tudobem, de verdade...”

E então ela se soltou e caiu.Otto fechou os olhos e, com sua mão boa

agora livre, automaticamente encontrou um apoiona rocha e se segurou. Ele não caiu junto porpouco.

Ele abriu os olhos e viu Heydrich, que olhavapara baixo. Ele se forçou a olhar também e viu opequeno corpo quebrado no fundo. Juntos, elesviram a água levá-la para uma cascata, antes que acorrenteza rápida a levasse embora pelas rochas. Eentão Otto sentiu uma mão em seu pulso,puxando-o para cima.

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Era Leni. “Vamos!”, ela gritou, e Otto seesforçou para subir.

“Müller!”, Heydrich gritava enquanto Otto sealçava para cima pela borda da ravina e levantava.Müller surgiu de seu esconderijo. Ele cambaleouaté Heydrich, pistola em mãos, o braço direitocoberto de sangue do tiro do rifle.

“Atire neles!”, gritou Heydrich.Müller apontou a pistola e disparou, mas a

arma estava descarregada. Ele se esforçou paramudar o pente com o braço ferido.

Otto levantou e olhou para Heydrich. Sesobrevivesse, faria tudo ao seu alcance paragarantir que aquele homem maligno morresse. Eentão o viu pegando a arma e o pente de Müller,ouviu o grito urgente de Leni para que elesfugissem, virou e correu como havia feito na areiaem Dunquerque, sem sentir a dor na perna ferida.Juntos, eles continuaram correndo, montanhaabaixo, ouvindo os últimos disparos diminuindo noar da manhã.

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53

Auf Wiedersehen

Quando Otto abriu os olhos, sentiu uma onda depânico momentânea. O sol brilhava em seus olhos,e por um momento breve, mas horrível, seperguntou se estava morto. Ele se sentourapidamente, tirando um tapete de debaixo docorpo, e descobriu que estava na parte de trás deuma enorme limusine. Estava sozinho, estavaabsurdamente quente, e sua camisa estavaensopada de suor. Mas não era a camisa da Hitler-Jugend, e sim uma camisa masculina de linho semcolarinho. Ele empurrou a alavanca da porta e saiu

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do carro com dificuldade.Três figuras estavam paradas em um matagal

na beira de um rio. Ele foi até lá, e uma dor agudasubiu por sua panturrilha direita. Otto olhou parabaixo, para o curativo novo. Uma gota de sanguehavia chegado à superfície. A mão dele latejava,mas também havia sido tratada. Enquanto andava,os eventos das últimas horas voltaram ecomeçaram a fazer sentido. Ele se lembrou decorrer desesperadamente, descer a trilha damontanha e encontrar MacPherson e uma lindamulher chamada Durand com uma metralhadora,depois disso lembrou-se de uma injeção no braço,e a dor desaparecendo.

Ele chegou ao matagal. Uma brisa leve veiodo rio. MacPherson e Leni observavam Durandcolocar uma série de pedras de rio chatas sobre aterra recém-cavada.

“Que Deus tenha piedade da alma dela”, disseMacPherson, concluindo o enterro improvisado.

Os olhos de Leni estavam vermelhos de tantochorar. Otto queria pegar muito a mão dela. Masnão o fez.

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MacPherson foi até ele e bateu levemente emsuas costas. “Você voltou a ter alguma cor nasbochechas, rapaz”, disse ele com tranquilidade.

“Como está se sentindo?”, perguntou Durand.Otto fez um meneio com a cabeça. “Estou

bem, de verdade”, foi tudo o que conseguiu dizerantes ficar com um nó na garganta.

MacPherson assentiu. “Muito bem. Muitobem, vocês dois.”

Mas Otto podia ver a decepção nos olhos doalmirante. Ele ficou observando MacPherson eDurand voltarem ao carro, e então olhou para otúmulo anônimo. Ele não podia acreditar queAngelika estivesse ali deitada, morta.Simplesmente.

“MacPherson disse quem ela era?”Leni balançou a cabeça. “Ele acha que nós não

sabemos.”Os dois ficaram parados, em silêncio, enquanto

se ouvia o barulho de gafanhotos.“Ele deve achar que somos idiotas”, disse

Otto. E começou a andar na direção deMacPherson.

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“Otto? O que você está fazendo?”, Lenicorreu para alcançá-lo. O garoto estava indo até oalmirante.

“Otto... não.”“Acho que é hora de ir embora”, disse

MacPherson, animado.“Nós sabemos quem ela é, quero dizer, quem

ela era”, disse Otto, corrigindo-se.“Bom, vocês podem achar que sabem, Otto”,

disse MacPherson, acalmando-o.“Não, nós sabemos. Não sabemos, Leni?”A garota, que agora estava ao lado dele,

assentiu.“Entendo. Bem, isso foi muito ousado da parte

de vocês dois, mas...”“O que o senhor ia fazer com ela?”, Leni

interrompeu.“Sinto muito, mas não posso dizer mais nada a

vocês. Eu também tenho minhas ordens.”“Vocês teriam arruinado, destruído a vida

dela.”“Minha jovem, você foi muito corajosa e

passou por muita coisa nas últimas quarenta e oito

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horas. Mas isso não significa que saiba o que écerto. Estamos em guerra, uma guerra mundial, ese perdermos — e é isso que está acontecendoneste minuto —, o mal vai prevalecer, e muitosmilhões de inocentes vão morrer. Então, se vocême perguntar se o sacrifício daquela criança, umacriança que poderia ter interrompido ouencurtado este terrível confito, é um preço quevale a pena pagar, sinto em dizer: sim.”

“O fim justifica os meios”, disse Otto.“Sim, justifica”, disse MacPherson.“Bem, deixe-me dizer uma coisa.” Otto

estava lutando para controlar a dor no fundo dagarganta, para manter a voz controlada. “Elasalvou minha vida, não uma, mas duas vezes, e sesacrificou para isso. Ela não era apenas a filha dealguém, uma ferramenta a ser utilizada por vocêsou pelos nazistas. Ela era uma boa pessoa, umapessoa de coragem.” Otto parou de falar. “Osenhor não entenderia.” Ele voltou ao túmulo,com Leni logo atrás.

“Deixe-me lembrá-los”, chamou MacPherson,“que vocês estão sujeitos ao Ato de Segredos

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Oficiais e...”, o almirante parou de falar.“O senhor está falando como um idiota”, disse

Durand. Ela estava encostada no Rolls-Royce,fumando.

“Você pode repetir?”“Um idiota presunçoso.”MacPherson olhou para ela e então assentiu

lentamente. “Eu estou, não é?” Ele pegou ocachimbo e o acendeu. “Eles têm razão, claro.Toda vida inocente é sagrada. E no minuto emque esquecemos isso, é uma descida escorregadiaaté o inferno.”

No matagal, Otto se ajoelhou, pegou uma daspedras e a chocou contra outra para quebrá-la empedaços. Com um dos pedaços, começou aescrever algo na pedra maior que cobria o túmulo.Quando terminou, deixou que Leni visse o quetinha escrito.

Era uma inscrição simples: “Angelika —1931-41 — Um anjo”.

Cuidadosamente, Leni colocou a pedra naparte superior do túmulo. Os dois se levantaram.

“Sabe, eu realmente acho que ela era”,

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comentou a garota, com a voz entrecortada.Era hora de ir embora.

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54

O momento da verdade

O sol ainda brilhava, milhares de metros acima dasárvores, mas estava muito frio para os três homensque se arrastavam pela montanha com seus trajesde verão.

Heydrich, Müller e Straniak estavamescalando a montanha havia sete horas desde odesastre na ponte, e finalmente haviam chegado aocume que marcava a fronteira entre a Suíça e oTerceiro Reich. Passava pouco das quatro datarde.

“Cinco minutos”, disse Heydrich, ordenando

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uma pausa.Os outros dois homens deitaram na neve para

descansar os braços e as pernas doloridos.Heydrich levantou os binóculos e olhou para ovale, que estava coberto de sombras. Não haviasinal de movimento.

Sem dúvida, não havia nenhuma unidade doexército suíço. Pouco depois do meio-dia, quandoeles haviam parado para descansar, ele viu pelosbinóculos o Rolls-Royce atravessando a campina.

Desde então, não tinha havido mais nenhumamovimentação. Claramente, quem quer quetivesse encontrado os dois sobreviventes não tinhatido a inclinação, ou talvez a possibilidade, deiniciar uma perseguição. Não com a pontedestruída. O segredo ficaria na montanha.

Müller foi até ele. “Vamos voltar até o cair danoite, senhor?”, ele perguntou. Com o ombroendurecido pelo sangue seco, o homem pareciaexausto.

“Claro”, respondeu Heydrich. “Não perca acoragem. O regimento da montanha já deve estarna metade da face norte a esta altura. Eles levarão

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vocês para baixo, se necessário.” Aquelas palavraslevaram alívio a Müller.

Straniak lutou para ficar de pé. “HerrHeydrich, posso falar com o senhor emparticular?”

“Como quiser, Herr Straniak. Müller, podecomeçar a descida.”

Müller não precisava ser persuadido erapidamente começou a descer o cume, de voltaao Reich alemão. Straniak esperou até que ele nãopudesse mais ouvir.

“Eu não sou mais tão jovem e talvez nãoconsiga descer a montanha”, ele começou.

“Que bobagem, Herr Straniak, é uma descidareta, e amanhã é o solstício de verão. Teremos luzaté dez da noite.”

Straniak fez um gesto para dispensar as palavrasde encorajamento.

“Ainda assim, se eu vier a sofrer um acidente,tem uma coisa que eu gostaria de falar com osenhor agora.”

“Então fale.”“Quando o Führer me pediu para ajudá-lo

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nessa questão, ele me informou da identidade dacriança em total segredo. Eu presumo que osenhor também tenha sido informado.”

Heydrich assentiu. “Claro.”“Bem, noite passada, na hospedaria, fiz um

exercício psíquico simples para confirmar aidentidade dela.” Uma rajada de vento fez umredemoinho de neve cercar os dois. “É um testesimples, mas à prova de falhas. Só são necessáriosum somático da garota e do pai.”

“Não conheço esse termo.”“Somático é o que é próprio do organismo

considerado fisicamente. Nesse caso, usei umafotografia, que está carregada da energia e doespírito da pessoa. Normalmente, quando opêndulo é colocado sobre a foto da criança, elecomeça a girar e para quando é colocado sobre afoto do pai.”

“Entendo”, disse Heydrich. Mas ele podiasentir que algo mais estava por vir. “O que osenhor quer dizer?”

“É bem simples. Quando o coloquei sobre afoto do Führer, o pêndulo não parou. Ele

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continuou girando.”Com a apreensão aumentando no fundo do

estômago, Heydrich franziu o cenho.“Sendo assim, podemos dizer com absoluta

certeza que o Führer não é o pai da menina.”Straniak estava olhando para Heydrich com o zeloe a convicção daquela profissão peculiar.

“Não é o pai?”, Heydrich estava processandoa informação. Aquela missão toda havia sido umaperseguição infundada?

“No entanto, existe uma exceção.”“Prossiga”, disse Heydrich, atento, sem se dar

conta do vento frio da montanha, que castigavaseu corpo.

Mas Straniak não disse mais nada. “A questãoagora está em suas mãos se o senhor quiserinvestigá-la.” Straniak passou por ele bruscamentee, agora ansioso por ter falado demais, começou adescida.

Heydrich ficou observando-o. Outro segredoque era melhor deixar na montanha? Claramente,quem quer Straniak estivesse sugerindo que fosse amãe da menina era perigoso ou escandaloso

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demais para que ele ousasse dizer em voz alta paraHeydrich. Ele subitamente sentiu uma novacuriosidade sobre aquele estranho homem elembrou que ainda havia uma coisa martelandoem sua cabeça desde que o havia conhecido.

“Herr Straniak”, Heydrich chamou-o.Straniak parou e virou para trás.“Quando o senhor apertou minha mão...”“O quê?”, perguntou o místico.“O senhor me olhou de uma maneira

estranha, como se...”, Hey-drich quase não podiaacreditar que estava dizendo aquilo, “como se...tivesse visto algo.”

Straniak olhou para trás por um longomomento. “Eu o vi em Praga, em um carro, demanhã cedo. Só isso.” Ele olhou para a frente eretomou a descida.

Praga? Praga? Heydrich balançou a cabeça. Eentão sentiu um calafrio no coração. Talvez, assimcomo já havia acontecido antes, houvesse algomais que Straniak não estava revelando.

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Já passava bastante da meia-noite quandoHeydrich foi convocado para uma audiência como Führer. Ele havia voltado o mais rápido quepôde a Berghof, mas outras questões mais urgenteshaviam aparentemente impedido o Führer deatendê-lo imediatamente.

Nas horas desde sua chegada, Heydrich haviatomado um banho quente, feito a barba e trocadoo uniforme rasgado e esfarrapado por um novo.Ele havia jantado muito bem, apesar de estar compouco apetite. E continuou em um estado deansiedade, ciente de seu fracasso. Agora, Hey-drich andava de um lado para o outro fora da salados mapas de Berghof, esperando. Apesar dohorário, as atividades estavam intensas à sua volta,com secretárias indo e vindo, e dúzias de oficiaisda Wehrmacht e da SS entrando e saindo da salaconstantemente. Ele acenou com a cabeça para osque conhecia, mas não conversou com ninguém.Não estava em seus planos despertar a curiosidadede ninguém com uma conversa educada.

Finalmente, pouco antes de duas da manhã,ele foi chamado. Hey-drich entrou e parou bem

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diante do Führer. Hitler estava de pé, estudandoum grande mapa iluminado por pequenos focos deluz.

Heydrich ficou em posição de sentido,saudou-o e disse: “Peço desculpas, Führer, mas eufalhei. Não espero que o senhor demonstrenenhuma clemência ou misericórdia sobre essaquestão e aceito quaisquer ações que o senhordeseje tomar em relação ao meu fracasso”. Elehavia passado a última hora ensaiando as palavrasque ia usar.

Hitler o encarou por um longo momento. Eleparecia cansado, vestia sua habitual camisa brancae uma fina gravata preta, mas pareciaestranhamente animado.

“Quero mostrar uma coisa”, ele disse, fazendoHeydrich se aproximar.

Heydrich foi até o Führer, parou e olhou parao mapa. Mostrava todo o continente ocidental:Europa, União Soviética, até a Sibéria, a Mongóliae a China. A fronteira atual entre a UniãoSoviética e o Terceiro Reich estava marcada poruma grossa linha vermelha. Atrás daquela linha, da

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costa do Báltico até o Cáucaso, havia diversosblocos de madeira, de diferentes formas e cores.Cada um representava um elemento diferente dasoberana máquina de guerra da Wehrmacht e daSS.

Os dois homens olharam o mapa em silêncio.Heydrich esperou.

“A ordem que acabei de dar vai mudar ocurso da história da humanidade para sempre.”

“Sim, Führer.” Heydrich ficou olhando aimensidão de terra que se estendia até a China.

“Cinco milhões de homens vão criar umanova pátria para nós que vai durar mil anos.”Hitler esquadrinhou o mapa. “Como Hess pôdeachar que trair seu país com o segredo de umacriança poderia mudar isso?”

Heydrich continuou em silêncio.“Hoje seria aniversário dela.” Hitler tirou os

óculos de leitura. “Diga, a morte dela foi rápida?”“Sim, Führer.”Ele voltou a olhar para o mapa e então olhou

distraidamente para Heydrich. “Obrigado,Reinhard, pelos seus serviços nessa questão.”

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“Mas, Führer...”, Heydrich começou a falar.Hitler levantou a mão. “A criança não deveria

existir. E seu verdadeiro trabalho começa agora.”Ele olhou para o relógio na parede. Eram 2h15.“A operação Barbarossa começou.”

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55

Indo para casa

Otto e Leni seguiram por um caminho de pedracalcária sob ciprestes altos até o píer. Os doisforam de carro das montanhas até a casa de campoà beira do lago, chegando pela manhã.Descansaram à tarde, enquanto Durand trocava oscurativos e preparava um jantar delicioso.MacPherson tinha esperança de levantar voo assimque escurecesse, mas uma densa neblina se formouna superfície do lago quando o sol se pôs, e sóagora, nas primeiras horas da manhã, havia sedissipado o suficiente para permitir uma

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decolagem. Otto, que tinha de usar uma bengalapara ajudar a perna ferida, mancava, e Leni osegurou pelo braço algumas vezes quando eletropeçou.

Logo, eles conseguiram ver a silhueta do aviãoancorado fora da doca. Um cabo de reboqueestava preso a uma lancha. Os dois pararam eesperaram que o almirante MacPherson e Durandos alcançasse. A pequena brasa de tabaco nofornilho do cachimbo de MacPherson brilhava naescuridão.

“Tudo pronto?”, perguntou MacPherson,rispidamente.

Leni e Otto assentiram.“Meu Deus, vocês dois merecem uma

medalha.” Durand esticou a mão e apertou a deLeni, depois a de Otto, antes de se inclinar ebeijá-lo no rosto. “E tão bonito.”

Otto sentiu o rosto em chamas contra o arfrio.

“Rápido”, ordenou MacPherson. Ele ajudouas crianças a subir pela escada na parte traseira dacabine. Elas embarcaram e passaram por um

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compartimento até o chão. Otto olhou para trás,e, na escuridão, parecia que MacPherson e amulher estavam se abraçando. Ele desviou osolhos e se apressou para seguir Leni escada abaixo.Estava escuro na cabine apertada, e uma pequenaluz passava pelas pequenas janelas.

Depois de um ou dois minutos, MacPhersoncolocou a cabeça pela escotilha. “O que vocêsacham? Mais confortável do que quando vierampara cá?” Ele estava tentando ser agradável, masOtto e Leni não sorriram.

Havia três estreitas camas de lona presas aochão, e diante deles, um grande armário continhajaquetas de voo e equipamento de liberação deoxigênio. Tanto Otto quanto Leni olharam para aterceira cama e pensaram na menina a quem ela sedestinava.

“Preparem-se”, disse MacPherson, antes dedesaparecer.

Leni e Otto deitaram e afivelaram o cinto desegurança no quadril. Um ou dois segundosdepois, o barulho do motor da lancha aumentou eo hidroplano estava sendo rebocado pelo lago.

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Cerca de cinco minutos depois, Otto e Lenisentiram o cabo ceder, e o avião deslizou atéparar. E então o motor deu a partida, e a hélicecomeçou a girar. A cabine foi preenchida por umsom latejante e grandioso enquanto as rotaçõesaumentavam, vibrando toda a estrutura, efinalmente o avião se moveu, ganhandovelocidade, saltando pelas ondas como umalancha, balançando as camas.

E então eles estavam no ar. Não havia maistremor. Apenas o ar, e o som do equipamento semovendo e deslizando enquanto o avião ganhavaaltitude com rapidez, afastando-se do lago. Emquestão de um segundo, ele se inclinou fortementepara a direita, e, por um instante, Otto viu asuperfície do Bodensee sob o luar, como umamassa trêmula de mercúrio.

Em algum lugar, bem acima dele, ao norte,havia seis Spitfires equipados com tanques longos,esperando para escoltá-los de volta à Inglaterra.Anjos de um outro tipo. Anjos da guarda. Equando — e se — chegassem, quem sabia o que ofuturo guardava?

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Otto e Leni estavam deitados na escuridão dacabine. Na mão esquerda do garoto estava orelógio de seu pai. Lentamente, ele esticou a mãocom o curativo novo e pegou a de Leni.

Gentilmente, eles entrelaçaram os dedos.“Rebecca”, ela disse baixinho.Otto sorriu na escuridão. “Prazer. Conrad.”

FIM

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Nota histórica

É importante separar os fatos da ficção. Apesar deser inspirada em eventos reais e personagenshistóricos, esta história é uma obra de ficção e nãopretende ser historicamente precisa nem retratareventos ou relacionamentos reais.

Não existem evidências que sustentem a ideiade que Adolf Hitler teve um flho, e Angelika éuma personagem inventada. Assim como Otto eLeni, apesar de, durante a Segunda GuerraMundial, ter havido milhares de criançasexpatriadas da Alemanha, Áustria,Tchecoslováquia e Polônia vivendo na Inglaterraseparadas de suas famílias.

O almirante MacPherson também é umpersonagem fictício, apesar de a Seção deControle de Londres, a LCS, ser uma organizaçãoreal, criada para desenvolver e coordenar planosmilitares secretos e ardilosos durante a SegundaGuerra Mundial.

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Winston Churchill governou a Grã-Bretanhade 1940 a 1945. Seu espírito “de buldogue inglês”parecia resumir o humor do povo britânico,mesmo durante os momentos difíceis, como oseventos em Dunquerque. Para muitos, sua teimosarecusa em admitir derrotas na Segunda GuerraMundial deu a ele uma reputação que poucosoutros políticos alcançaram. Ele morreu em 1965.

Rudolf Hess foi o secretário de Adolf Hitlerno Partido Nazista no início dos anos 1940. Navéspera da guerra com a União Soviética, elevoou sozinho até a Escócia em uma tentativa denegociar a paz com o Reino Unido, mas foicapturado e se tornou prisioneiro de guerra. Maistarde, foi sentenciado à prisão perpétua. Morreuem 1987.

Martin Bormann sucedeu Hess comosecretário e confidente de Hitler. Elescontinuaram juntos até o fim dentro do bunker do

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Führer, em Berlim. Bormann foi um dos últimos afugir após o suicídio de Hitler em 30 de abril de1945. Acredita-se que ele escapou para aArgentina.

Apesar da traição de Hess, Adolf Hitler inicioua operação Barba-rossa, a invasão da UniãoSoviética, com mais de 4,5 milhões de soldados.Foi a maior operação militar da história dahumanidade, mas seu subsequente fracasso marcoua virada na sorte do Terceiro Reich.

Reinhard Heydrich era tenente-general daSS e chefe de segurança do Reich. Ele foi atacadoem Praga em 27 de maio de 1942 por um grupode soldados tchecos e eslovacos treinados pelosingleses e enviados para matá-lo. Heydrichmorreu em decorrência dos ferimentos umasemana depois. Historiadores o consideram afigura mais obscura da elite nazista; até mesmoHitler o apelidou de “o homem de coração deferro”.

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Ludwig Straniak foi um místico alemão evidente que usava um pêndulo. Ele também eraarquiteto, astrólogo e foi muito demandado peloexército alemão por suas habilidades, nem semprede maneira voluntária.

Heinrich Müller continuou até o fim daguerra como chefe da Gestapo. Assim comoBormann, ele desapareceu após o suicídio deHitler e nunca foi encontrado.

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Agradecimentos

Eu não poderia ter escrito este livro sem o amor,a ajuda e o encorajamento de diversas pessoas.

Em primeiro lugar, meus pais, que sempre meapoiaram quando eu abri mão de um empregorespeitável como jovem advogado e peguei umavião para Hollywood para me tornar roteirista.

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Tenho certeza de que bem no fundo elesconsideraram a decisão imprudente, mas nuncademonstraram nada além de apoio incondicional.Ambos serviram na Segunda Guerra Mundial,meu pai no Exército Indiano, minha mãe, comomembro da WREN. Em 1941, quando se passaesta história, meu pai tinha vinte e três anos, eminha mãe, dezenove.

Também agradeço a meu irmão, Alec, e aminha irmã, Kate, pelas brincadeiras em que nosfantasiávamos de soldado e atirávamos uns nosoutros quando éramos crianças. Acho que foinaquele momento que meu interesse pela SegundaGuerra Mundial se estabeleceu.

Muito amor e gratidão a minha esposa, Debra,que eu tanto adoro e que está sempre pronta paradizer a verdade sobre o que eu escrevo, mesmoque doa; e a meus filhos, Constance, Dulcie,Edgar e Frank, que inspiraram este livro e a quemeu o dedico.

E, claro, a tantos outros que me ajudaram aolongo do caminho, em especial, Anita, Ivan,Virginia, Nelda e Guilio. Também preciso citar

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Foggy e Mistie, principalmente Foggy, cujosdesaparecimentos regulares por horas na florestade Hampstead Heath me proporcionaram otempo para parar e pensar na estrutura da história.

Em relação ao livro em si, preciso agradecer a:Judy, que me encorajou o tempo todo e leu aprimeira versão com o olhar mais aguçado;Michael Foster, estimado agente e velho amigo,que leu o manuscrito imediatamente e o defendeudesde o início; Rowan, meu outro estimadoagente, que de maneira calma e profissionalencontrou um lar para ele; meus editores, Imogene Rachel, que habilmente editaram e melhoraramo diamante bruto que receberam; e a todos naChicken House que abraçaram o livro e forammaravilhosos; e, finalmente, a Barry, o chefão, queo fez acontecer.

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GULLIVER MOORE WILLIAM OSBORNE nasceu na Inglaterra,em 1960. Enquanto muitos tentavam esquecera Segunda Guerra Mundial, ele sempre foifascinado pelos grandes filmes sobre o assuntoe continua gostando do tema até hoje. Jáescreveu inúmeros roteiros de filmes paraHollywood.

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Copyright © William Osborne, 2012

O selo Seguinte pertence à Editora Schwarcz S.A.

Grafa atualizada segundo o Acordo Ortográfico da LínguaPortuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

TÍTULO ORIGINAL Hitler’s Angel

CAPA kakofonia.com

PREPARAÇÃO Juliana Moreira

REVISÃO Larissa Lino Barbosa e Juliane Kaori

ISBN 978-85-8086-713-8

Todos os direitos desta edição reservados àEDITORA SCHWARCZ S.A.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 — São Paulo — SPTelefone (11) 3707-3500Fax (11) 3707-3501www.seguinte.com.brwww.facebook.com/[email protected]