PAra Desligar o Circuito Do Vivio

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Especial Para desligar o circuito do vício Anna Paula Buchalla Por trinta anos, o empresário paulista Nelson Augusto Martos, de 45 anos, fumou de dois a três maços de cigarro por dia. Na última década, por diversas vezes, ele tentou abandonar o vício. Sem sucesso. Martos experimentou de tudo – de antidepressivos e adesivos de nicotina a vitamina C diluída em água e simpatias. O máximo a que o empresário chegou foi manter-se longe do cigarro por trinta dias. Agora, depois de tantos fracassos, pela primeira vez, ele está confiante. Em sua mais recente investida contra o tabagismo, ele não dá uma única tragada há três meses. Martos é um dos primeiros brasileiros a se tratar com comprimidos de vareniclina, vendidos nos Estados Unidos pela Pfizer como Chantix e na Europa como Champix, o mesmo nome adotado no Brasil. A vareniclina acaba de chegar ao Brasil. Essa nova arma contra o vício químico atua nos mecanismos cerebrais da dependência, bloqueando a sensação de prazer proporcionada, por exemplo, pela nicotina. A idéia é tornar a absorção de nicotina tão sem sentido quanto a fumaça de um cigarro de chuchu. Em uma possível recaída, as baforadas vão ter efeito nulo sobre os centros de prazer do paciente e a tendência é que ele consiga se manter longe do cigarro. Divulgação VEJA TAMBÉM Nesta reportagem Quadro: O arsenal químico contra o vício Quadro: Os brasileiros e o cigarro Teste: Calcule o seu risco Exclusivo on-line Em Profundidade: Qualidade de Vida

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Especial Para desligar o circuito do vcio

Anna Paula Buchalla VEJA TAMBMNesta reportagem Quadro: O arsenal qumico contra o vcio Quadro: Os brasileiros e o cigarro Teste: Calcule o seu risco

Exclusivo on-line Em Profundidade: Qualidade de Vida

Por trinta anos, o empresrio paulista Nelson Augusto Martos, de 45 anos, fumou de dois a trs maos de cigarro por dia. Na ltima dcada, por diversas vezes, ele tentou abandonar o vcio. Sem sucesso. Martos experimentou de tudo de antidepressivos e adesivos de nicotina a vitamina C diluda em gua e simpatias. O mximo a que o empresrio chegou foi manter-se longe do cigarro por trinta dias. Agora, depois de tantos fracassos, pela primeira vez, ele est confiante. Em sua mais recente investida contra o tabagismo, ele no d uma nica tragada h trs meses. Martos um dos primeiros brasileiros a se tratar com comprimidos de vareniclina, vendidos nos Estados Unidos pela Pfizer como Chantix e na Europa como Champix, o mesmo nome adotado no Brasil. A vareniclina acaba de chegar ao Brasil. Essa nova arma contra o vcio qumico atua nos mecanismos cerebrais da dependncia, bloqueando a sensao de prazer proporcionada, por exemplo, pela nicotina. A idia tornar a absoro de nicotina to sem sentido quanto a fumaa de um cigarro de chuchu. Em uma possvel recada, as baforadas vo ter efeito nulo sobre os centros de prazer do paciente e a tendncia que ele consiga se manter longe do cigarro. Divulgao

Imagem da campanha antifumo patrocinada pelo governo ingls: "No se deixe fisgar" o slogan

A vareniclina apenas parte do arsenal contra o vcio qumico que j est disposio dos mdicos. Muitos outros remdios encontram-se em testes. S nos Estados Unidos, esto em estudo duas centenas de novas medicaes contra os mais diversos vcios qumicos. Da nicotina ao lcool e drogas pesadas e at exageros comportamentais compulsivos que, em sua essncia, podem ser explicados pela dependncia neuronal a certas substncias prazerosas lanadas na corrente sangunea pelo jogo compulsivo, pelas compras, pelo sexo e pela comida. Espera-se que, nos prximos dois anos, passem a ser comercializadas duas vacinas uma contra a dependncia de nicotina e outra para deter o uso da cocana. Tambm est em fase avanada de testes clnicos um remdio para o tratamento do vcio em lcool e metanfetaminas, classe de drogas cujo representante mais conhecido o ecstasy. O medicamento age sobre o neurotransmissor GABA, otimizando a sua ao no organismo. Essa substncia, produzida no crebro, pode funcionar como um interruptor nos processos de compulso. Em cinco ou dez anos, afirmam os especialistas, a medicina viver uma revoluo no tratamento de todo e qualquer tipo de vcio. A chave desse avano est na compreenso dos caminhos percorridos pela dopamina no crebro. A dopamina o neurotransmissor da dependncia. Ela que dispara a sensao de prazer seja a advinda da ingesto de um prato saboroso, seja a causada pelo uso de um entorpecente. Ao inalar cocana, por exemplo, o usurio tem seu crebro inundado de dopamina da a sensao de euforia que, em geral, a droga produz. At pouqussimo tempo atrs, acreditava-se que o vcio era processado exclusivamente nas pores cerebrais associadas ao sistema de prazer e recompensa, ativado em especial pela dopamina. A grande novidade a descoberta de que h outros circuitos envolvidos nesse mecanismo, e de que a dopamina tambm os integra. "Graas ao aperfeioamento dos exames de neuroimagem, constatamos que os efeitos neurobiolgicos das drogas ultrapassam os centros de prazer e recompensa do crebro e se estendem ao crtex pr-frontal, regio associada analise dos riscos e benefcios, na qual se concentram as tomadas de deciso", diz a psiquiatra Nora Volkow, diretora do Instituto Nacional de Abuso de Drogas, dos Estados Unidos, e uma das principais autoridades mundiais no assunto. E o que isso muda na compreenso do vcio? Simples: preciso tambm alterar a qumica envolvida nos processos decisrios e mnemnicos. Sem isso, apenas parte do mecanismo do vcio combatida. Em outras palavras, necessrio "apagar" o impulso e a memria que levam ao consumo da droga. O poder das lembranas associadas s drogas poderosssimo. Essa memria vem tona sempre que um usurio v um objeto ou uma pessoa relacionados s suas experincias com o vcio. Um estudo publicado no ano passado na revista cientfica The Journal of Neuroscience fornece a dimenso exata do que acontece no crebro dos dependentes nesses momentos. Pesquisadores americanos dividiram dezoito cocainmanos em dois grupos. O primeiro assistiu a filmes com cenas de natureza. O segundo, a imagens de outras pessoas usando cocana. Por intermdio de tomografias computadorizadas, os especialistas notaram que os participantes do segundo grupo registraram um aumento na sntese de dopamina. A conseqncia: uma enorme "fissura" por consumir a droga por parte desses participantes. Com base em descobertas nesse sentido, as pesquisas passaram a dar menos nfase ao sistema de recompensa e mais aos processos de formao e consolidao da memria do uso de substncias psicoativas. H um remdio contra a cocana em fase adiantada de estudos que atua nesse processo cujos resultados at agora so bastante promissores. Ao agir sobre os nveis de dopamina, ele corta a relao entre lembrana e vontade de usar a droga. Um enorme salto na busca pelo tratamento da dependncia foi dado a partir do momento em que o vcio deixou de ser visto como uma doena da alma uma fraqueza de carter que impinge a suas vtimas comportamentos autodestrutivos e comeou a ser encarado como um distrbio cerebral. Ele decorre de um desequilbrio qumico e altera os circuitos de recompensa e prazer, tomada de decises, controle inibitrio e aprendizado. Trata-se, como se v, de um problema bastante intricado. Explica-se, assim, por que a luta contra o vcio costuma ser marcada por recadas e fracassos. Algum que decida parar de fumar, por exemplo, faz, em mdia, oito tentativas at largar de vez o cigarro. Na lista das substncias que mais viciam, a nicotina est frente da maconha e do ecstasy (veja quadro abaixo). Essa caracterstica foi traduzida em imagens por uma campanha antitabaco deflagrada pelo governo ingls, que apresenta jovens fumantes sendo fisgados pela boca por anzis. "No se deixe fisgar", diz o slogan. Com quase 30 milhes de dependentes no Brasil, o cigarro mata 200 000 pessoas por ano. uma morte a cada oito segundos no mundo. A vareniclina est longe de ser a soluo mgica contra o problema, mas representa um avano espetacular. Se associada terapia cognitivo-comportamental, sua taxa de sucesso chega a dobrar. A combinao com terapias psicolgicas essencial para ajudar o dependente a reprogramar o crebro para a nova vida, longe do vcio. Veja-se o caso do grupo Alcolicos Annimos (AA). H mais de setenta anos, muito tempo antes de a cincia comear a desvendar os mecanismos do vcio, o AA j ajudava muita gente a se livrar da bebida. Ainda assim, o ndice de sucesso de terapias como a do AA segue a mdia internacional de recuperao de alcolatras que, independentemente do mtodo utilizado, tende a ficar em torno de 20% ao fim de um ano. Com a ajuda de um remdio contra o alcoolismo como o acamprosato, no entanto, esse ndice pode chegar a 45%. "Tratar a dependncia sem a ajuda de remdio como cuidar de um canal dentrio sem anestesia", diz a cardiologista Jaqueline Scholz Issa, diretora do ambulatrio de tabagismo do Instituto do Corao, de So Paulo. O vcio fruto, em grande parte, de propenso gentica. "Assim como h pessoas mais predispostas a desenvolver depresso, hipertenso e cncer, existem aquelas mais suscetveis dependncia qumica", diz o psiquiatra Danilo Baltieri, coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de lcool e Drogas (Grea), da Universidade de So Paulo. No fosse assim, todos que algum dia experimentaram algum tipo de droga do lcool herona se tornariam dependentes. a gentica, ainda, que estabelece o tipo de dependncia e a sua intensidade. Estima-se que os fatores genticos respondam por algo entre 40% e 60% da vulnerabilidade ao vcio. Existe um gene especfico associado sntese da enzima monoaminoxidase A, uma das substncias responsveis pelo equilbrio de dopamina no crebro. Quando h mutaes nesse gene, a pessoa torna-se mais ou menos vulnervel ao vcio. A gentica explica tambm por que existem pessoas com baixos nveis de receptores de dopamina o que as faz mais suscetveis ao vcio e a achar mais prazerosa a experincia com drogas. H dois grupos de pessoas bastante vulnerveis ao vcio os adolescentes e os portadores de distrbios psiquitricos, como esquizofrenia, depresso e ansiedade. Durante a adolescncia, o crebro sofre mudanas dramticas. Uma das reas ainda em maturao o crtex pr-frontal, associado tomada de decises e responsvel pelo controle dos desejos e emoes. O fato de essa regio do crebro ainda estar em desenvolvimento nos adolescentes os coloca sob risco maior de optar por decises erradas, como experimentar drogas e continuar a abusar delas. Alm disso, o uso de substncias qumicas nesse momento de desenvolvimento tende a ter um impacto mais profundo e duradouro no funcionamento cerebral. "No queremos deixar os pais em pnico, mas importante que eles saibam que a adolescncia uma fase de extrema vulnerabilidade", alerta Nora Volkow. A maior parte dos dependentes qumicos se iniciou no vcio qualquer um deles na juventude. Entre os usurios de drogas, isso ocorre, em geral, antes dos 21 anos. Quanto aos alcolatras, antes dos 15. " fundamental que os pais fiquem atentos a essa realidade e ao comportamento dos filhos adolescentes", enfatiza o psiquiatra Andr Malbergier, do Grea. O uso repetido de drogas muda a forma como o usurio se relaciona com o mundo. Alm de alterar as emoes, compromete a capacidade de cognio e os reflexos motores. A boa notcia que o crebro tem uma capacidade extraordinria de se recuperar dos danos causados pelo vcio. Quanto antes uma pessoa inicia o tratamento, melhor. mais difcil tratar algum que foi dependente de cocana por trinta anos do que quem usa a droga h trs. O mesmo vale para outras drogas, como nicotina e lcool. Os especialistas so unnimes em dizer que no existem tratamentos eficazes que durem menos de noventa dias. Os exames de neuroimagem mostram que esse o perodo de maior propenso a recadas, porque o crebro permanece mais vulnervel ao longo dos trs meses seguintes ltima vez em que se utilizou a droga. Uma equipe de antroplogos da Universidade da Califrnia defende a tese de que o uso de substncias psicoativas teria ajudado a humanidade a suportar a vida nos ambientes mais hostis. H quem acredite que o tdio e a solido, dois dos males da modernidade, tendem a reforar a manifestao dessa tendncia ancestral. Tal convico baseia-se em experimentos como o levado a cabo, no fim dos anos 70, pelo pesquisador americano Bruce Alexander. Ele pegou um grupo de ratos de laboratrio e os colocou numa jaula com muito espao livre, cheio de bolas coloridas e brinquedinhos uma espcie de Disneylndia dos ratos. A esses animais eram oferecidos gua e um coquetel adocicado, base de morfina. O mesmo foi dado a outros ratos, isolados uns dos outros, em jaulas escuras e diminutas. Resultado: os ratinhos do parque de diverses mal tocaram na soluo de morfina, preferiram a gua. Os animais isolados, por sua vez, se entupiram de morfina. Consumiram o coquetel numa quantidade dez vezes superior dos ratinhos contentes. Se parece impossvel erradicar a tendncia ao vcio e as suas causas, genticas e ambientais, que pelo menos se consiga desligar os circuitos que levam autodestruio. D PARA VIVER SEM FUMAR Carol Carguejeiro

"Comecei a fumar aos 13 anos e fumava de um mao a um mao e meio por dia. Mas, como tenho uma doena cardaca grave e j fui operada trs vezes, no poderia fumar jamais. Tentei parar algumas vezes, mas nunca consegui. Em maro, tive uma embolia pulmonar e minha mdica disse: 'Ou voc pra, ou voc morre'. A ltima cartada era o novo remdio. At agora, est dando certo. Se dependesse de mim, eu continuaria fumando. Gosto da fumaa, do cheiro, da sensao... A diferena que, em comparao s outras vezes em que tentei parar, no tenho mais vontade de fumar, apesar da saudade do hbito. Sinto falta especialmente naquelas situaes em que certamente estaria com o cigarro nas mos, como quando saio noite. Sem o cigarro, estou mais ansiosa e comendo mais. Por causa do remdio, sinto enjos. Mas d para viver sem fumar." Gabriella Jorge de Moraes, 26 anos, estudante de psicologia