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SobreParaentenderOcapitalMarcioPochmann

Umparadoxorondaoconjuntodeinterpretaçõesacercadocapitalismo.Omododeproduçãodo

capital dá sinais de complexificação desde a década de 1970, com a predominância da fase da

financeirizaçãoda riqueza e a transiçãohegemônicado trabalhomaterialparao imaterial, e,nesse

contextoemqueeramnecessáriasnovasanálisesdofuncionamentodocapitalismoedasalternativas

desuasuperação,perdeuforçaevigoropensamentomarxista.

Não faltaram motivos. Do lado da produção acadêmica, houve um ataque articulado do

pensamentoneoliberal,coerenteehegemônicoemquasetodososfórunsnacionaise internacionais

dedebates;universidadeselevaramaolimiteaespecializaçãodoconhecimentomotivadopelasregras

de produtividade do trabalho, copiadas das Ciências Exatas pelas Humanidades. Ademais, a

estratégiaconservadoradeesvaziaroconteúdodoscursosdeCiênciasSociaisterminouporcolocar

disciplinas,professoresepesquisadoresdopensamentomarxistaquasenacondiçãodegueto.

Do lado intelectual das lutas sociais e departidospolíticosde esquerda, o enfraquecimentoda

baseteóricamarxistaocorreusimultaneamentecomacrisedochamadosocialismoreal,comaqueda

do muro de Berlim e com o fim da Guerra Fria. Desvios oportunistas e chicanas de elitismos

favoreceram reflexões cada vez mais pontuais e segmentadas, que passaram a orientar práticas

políticascurtoprazistasecadavezmaispragmáticas.

Tudo isso contribuiu para que certa orfandade ganhasse dimensão na formação das novas

gerações em termos de acesso e identidade com o pensamento marxista. O empobrecimento das

análises sobre o funcionamentodo capitalismo atual e a proliferaçãomultifacetadadopensamento

crítico tornaram quase irrelevante para as grandes massas a possibilidade de conhecer e produzir

alternativasàhegemoniadocapital.

Do mesmo modo que a agudeza da crise global do capitalismo colocou a necessidade de se

recuperaracontribuiçãomarxistaaoentendimentodessemododeprodução,ofimdagrandenoite

doobscurantismoneoliberalterminouporlibertarnovasforçassociaisepolíticasdispostasarefletir,

emnovasbases,alternativascríticasaomodohegemônicodocapital.Énessesentidoqueotrabalho

disciplinado, incansável e pertinente do consagradoDavidHarvey sobre o primeiro volume deO

capitalsetorna,emsualeiturafácileesclarecedora,umguiaparaentenderedesenvolveranecessária

contribuiçãodaeconomiapolíticadeKarlMarx.

Sobreoautor

DavidHarveyégeógrafobritânico,professordeantropologianapós-graduaçãodaUniversidade

daCidadedeNovaYork(TheCityUniversityofNewYork–Cuny)eex-professordegeografianas

universidadesJohnsHopkinseOxford.SeucursosobreOcapitaldeMarxjáfoiacessadopormaisde

300milpessoasdesdequefoidisponibilizadonositedaCuny,em2008.Autordediversoslivros,pela

Boitempolançouem2011OenigmadocapitaleteráembrevepublicadoOslimitesdocapital.

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Sumário

Prefácio

Introdução

OCAPITAL–SeçãoI

1.Mercadoriasetroca

2.Dinheiro

OCAPITAL–SeçãoII

3.Docapitalàforçadetrabalho

OCAPITAL–SeçãoIII

4.Oprocessodetrabalhoeaproduçãodemais-valor

5.Ajornadadetrabalho

OCAPITAL–SeçãoIV

6.Omais-valorrelativo

7.Oqueatecnologiarevela

8.Maquinariaegrandeindústria

OCAPITAL–SeçãoV

9.Domais-valorabsolutoerelativoàacumulaçãodocapital

10.Aacumulaçãocapitalista

11.Osegredodaacumulaçãoprimitiva

Reflexõeseprognósticos

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Índice

E-booksdaBoitempoEditorial

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Prefácio

QuandosetornoupúblicoqueocursoquelecionoanualmentesobreOcapitaldeMarx(LivroI)seria

oferecidoon-linenuma série de vídeos, fui procuradopela editoraVerso, quemeperguntou se eu

teriainteresseemprepararumaversãoescrita.Porumasériederazões,concordeicomaideia.

Paracomeçar,aeconomiaemdeclínioeoiníciodaquiloqueameaçaserumacriseglobalséria–

se não uma recessão – geraram um grande interesse pela análise de Marx, cujo intuito é tentar

compreendermelhorasorigensdenossosproblemasatuais.Aquestão,noentanto,équeosúltimos

trinta anos,mais particularmente desde a queda doMuro de Berlim e o fim daGuerra Fria, não

foramumperíodomuitofavoráveloufértilparaopensamentomarxianoemenosainda,decerto,para

apolíticarevolucionáriamarxiana.Consequentemente,todaumageraçãomaisjovemcresceuprivada

defamiliaridade–paranãofalardetreinamento–comaeconomiapolíticamarxiana.Demodoque

este é ummomento oportuno para que um guia d’O capital ajude a abrir as portas para que essa

geraçãoexploreporsuaprópriacontaaquiloqueMarxpodeser.

OmomentoparaareavaliaçãoconstrutivadaobradeMarxéoportunoemoutrosentidotambém.

Decertaforma,asoposiçõesferozeseosinúmeroscismasnointeriordomovimentomarxista,quese

alastraramnadécadade1970eafetaramnãoapenasaspráticaspolíticas,mastambémasorientações

teóricas,perderamtantoaforçaquantooapetitepeloacademicismopuro,que,seajudouamanter

vivo o interesse porMarx em tempos difíceis, cobrou por isso o preço de reflexões e argumentos

incompreensíveisecomfrequênciaaltamenteabstratos.Oquevejoéqueaquelesquehojedesejam

lerMarx estão muito mais interessados em engajamentos práticos; isso não significa que tenham

medodeabstrações,masqueconsideramoacademicismotediosoeirrelevante.Hámuitosestudantes

eativistasqueanseiamporumafortebaseteóricaparaapreendermelhorcomoumacoisaserelaciona

comoutra,afimdesituarecontextualizarseusprópriosinteresseseseuagirpolítico.Esperoqueesta

apresentaçãodosfundamentosdateoriamarxianapossaauxiliá-losnessatarefa.

Para escrever este texto, trabalhei com base nas transcrições que Katharina Bodirsky (a quem

agradeçomuito)fezdasgravaçõesdeáudiodasaulasdadasnaprimaverade2007.Asaulasemvídeo

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(verdavidharvey.org),organizadasporChrisCaruso(quetambémconcebeuowebsite)efilmadaspela

Media College da University of the Poor, em Nova York, e pela Media Mobilizing Project, na

Filadélfia,foramdadasnooutonode2007.GostariadeagradeceraChriseatodosquetrabalharam

voluntariamentenoprojeto.

Há, no entanto, diferenças significativas entre as versões em áudio e vídeo. Tais diferenças se

devem sobretudo ao fato de que leciono sempre de maneira ex tempore, concentrando-me em

diferentes aspectos do texto, dependendo dos acontecimentos políticos e econômicos atuais, bem

como de meus próprios interesses (e até mesmo caprichos) de momento. As discussões em classe

também se direcionam frequentemente para caminhos imprevistos. Infelizmente, o espaço não

permitiria a inclusão dessas discussões,mas, quando pareceu apropriado, incorporei vários de seus

elementosaotexto.Emboraeutenhatrabalhadosobretudocombasenaversãoemáudio,aproveitei

elementosdomaterialemvídeo.Obviamente,aediçãodas transcrições tevede serdraconiana,em

parteporcausadoespaço,emparteporquea traduçãodapalavraoralparaaescrita semprerequer

modificações significativas e, em alguns casos, bastante drásticas. Aproveitei a oportunidade para

esclarecer algumasquestõesnão abordadasnas aulas e acrescentarnovospensamentos aqui e ali.A

ediçãod’OcapitalqueutilizeinocursoéatraduçãodeBenFowkes,publicadaprimeiropelaPelican

BooksepelaNewLeftReview em1976, republicadapelaeditoraVintageem1977eposteriormente

pelaPenguinClassicsem1992.Asreferênciasseguemapaginaçãodessasedições

[a]

.

Minhaesperançaéqueeste“guia”–erealmentepensonelecomoumguiadeviagem,maisdo

que como uma introdução ou interpretação – seja útil numa primeira exploração da economia

políticadeMarxparatodosquedesejemtrilharessecaminho.Procureimanteraapresentaçãonum

nível introdutório, sem cair, espero, numa simplificação excessiva. Além disso, não considerei em

detalhesasmuitascontrovérsiasquegiramemtornodasdiversasinterpretaçõesdotexto.Aomesmo

tempo,oleitordevecompreenderqueoqueapresentoaquiénãoumainterpretaçãoneutra,masuma

leituraaquechegueidepoisdeensinaressetextodurantequasequarentaanos,parapessoasdetodas

asorigens(àsquaissoudevedor,poismeensinarammuito),enquantoeutentavausaropensamento

deMarxdemodoconstrutivoemminhaprópriapesquisaacadêmicaemrelaçãoàaçãopolítica.Não

tenhoaintençãodepersuadiraspessoasaadotarmeupontodevista.Minhaambiçãoéusá-locomo

viade acessoparaoutrosque anseiemconstruir interpretaçõesque sejam,para eles,maximamente

significativas e úteis nas circunstâncias particulares de sua própria vida. Se conseguir atingir esse

objetivo,aindaqueapenasemparte,estareiabsolutamentesatisfeito.

[a]Aediçãobrasileirabaseou-senatraduçãodeRubensEnderleparaoLivroId’Ocapital,publicadaem2013pelaBoitempoEditorial.(N.

E.)

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Introdução

Meuobjetivoélevarvocê,leitor,alerumlivrodeKarlMarxchamadoOcapital,LivroI

[a]

,ea lê-lo

nospróprios termosdeMarx. Issopodeparecerumpoucoridículo, jáque, sevocêaindanão leuo

livro,nãopodesaberquaissãoostermosdeMarx;masumdessestermos,eulheasseguro,équeoleia

–ecuidadosamente.Oaprendizadorealsempreimplicaumalutaparacompreenderodesconhecido.

Minhasprópriasleiturasd’Ocapital,reunidasnopresentevolume,serãomuitomaisesclarecedorasse

você tiver lido antes os capítulos emquestão.É seu encontropessoal como textodeMarxque eu

pretendo encorajar, e, na luta direta com ele, você poderá começar a formar uma compreensão

própriadopensamentomarxiano.

Issoimplica,desdejá,umadificuldade.TodomundojáouviufalardeKarlMarx,determoscomo

“marxismo”e“marxista”,eummundodeconotaçõesacompanhaessaspalavras,demodoquevocê

está preso desde o início a preconcepções e preconceitos, favoráveis ou não.Mas eu lhe peço que

procuredeixardelado,omelhorquepuder,tudoaquiloquevocêachaquesabesobreMarx,poissó

assimpoderácaptaroqueelerealmentetemadizer.

Háaindaoutrosobstáculosparachegaraessetipodecontatodireto.Somoslevados,porexemplo,

aabordarumtextodessetipoapartirdenossasprópriasformaçõesintelectuaiseexperiências.Para

muitos estudantes, essas formações intelectuais são afetadas, quando não governadas, por

consideraçõesepreocupaçõesacadêmicas;háumatendêncianaturalalerMarxdopontodevistade

umadisciplinaparticulareexclusivista.OpróprioMarxjamaisocupouumacadeirauniversitária,em

nenhuma disciplina, emesmo hoje amaioria dos aparatos departamentais dificilmente o aceitaria

como um dos seus. Portanto, se você é um estudante de graduação e quer lê-lo corretamente, é

melhornãopensarnoqueganharácomissoemsuaáreaespecífica–nãoemlongoprazo,éclaro,mas

aomenosnopropósitodelerMarx.Emsuma,vocêterádelutarcomcoragemparadeterminaroque

ele está dizendo além daquilo que você pode entender facilmente com seu aparato disciplinar

particular,suaformaçãointelectuale,maisimportante,suaprópriahistóriadevida(sejacomolíder

trabalhistaoucomunitário,sejacomoempreendedorcapitalista).

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Uma importante razãopara assumirumapostura aberta emrelaçãoa essa leitura éo fatodeO

capital ser um livro extremamente rico. Shakespeare, os gregos, Fausto, Balzac, Shelley, contos de

fadas, lobisomens, vampiros epoesia, encontramos tudo isso em suaspáginas, ao ladode inúmeros

economistas políticos, filósofos, antropólogos, jornalistas e cientistas políticos. Marx trabalha com

uma imensa gama de fontes, e pode ser instrutivo – e divertido – refazer seu caminho até elas.

Algumasdessasreferênciaspodemseralusivas,jáquemuitasvezeselenãoasindicadiretamente;até

hoje, àmedida que ensinoOcapital, continuo a encontrar novas conexões.Quando comecei, não

tinha lido muito Balzac, por exemplo. Mais tarde, ao ler seus romances, peguei-me muitas vezes

dizendo:“Ah,foidaquiqueMarxtiroutalcoisa!”.Segundoconsta,Marxleuextensivamenteaobra

deBalzaceambicionavaescreverumestudocompletosobreAcomédiahumana,depoisdeterminarO

capital.LeraomesmotempoBalzaceOcapitalajudaaentenderporquê.

O capital é, portanto, um texto rico e multidimensional. Ele se move num vasto mundo de

experiências,conceitualizadonumagrandediversidadedeliteraturasescritasemmuitaslínguas,em

diferentes lugares e épocas.Não estou dizendo, apresso-me a explicar, que você não será capaz de

compreenderMarxsenãoentendertodasasreferências.Masoquemeinspira,eesperoqueinspire

você,éaideiadequehánelasumaimensagamaderecursosquepodemesclarecerporquevivemosa

vida domodo como a vivemos.Damesma forma que elas foram a água quemoveu omoinho da

compreensãomarxiana,podemosfazerdelasaáguaparamoveronossoprópriomoinho.

Você verá também queO capital é um livro impressionante enquanto tal, isto é, como livro.

Quando é lido como um todo,mostra-se uma construção literária enormemente gratificante.Mas

aquiencontramosoutrasbarreiraspotenciaisasuacompreensão,poismuitosleitores,nodecorrerde

suaformação,devemtersedeparadocomMarxelidoalgunsdeseustrechos.Talveztenhamlidoo

ManifestoComunistanoEnsinoMédio.Outalveztenhamcursadoumadaquelasdisciplinasdeteoria

social em que se gastam duas semanas com Marx, duas com Weber, algumas com Durkheim,

Foucault e uma série de outras figuras importantes. Talvez tenham lido excertos d’O capital ou

alguma exposição teórica das crenças políticas deMarx, por exemplo.No entanto, ler excertos ou

resumosétotalmentediferentedelerOcapitalcomoumtextointegral.Vocêcomeçaaverospedaços

easpeças sobuma luzradicalmentenova,nocontextodeumanarrativamuitomaisampla.Évital

quevocêprestemuitaatençãoàgrandenarrativaeestejapreparadoparamudarsuacompreensãodos

pedaçosedaspeças,assimcomodosresumosqueleuanteriormente.Marxcertamentedesejariaque

suaobrafosselidacomoumtodo.Objetariaferozmenteàideiadequepudessesercompreendidode

maneiraadequadapormeiodeexcertos,nãoimportaquãoestrategicamenteescolhidos.Certamente

nãogostariade ser estudadopor apenasduas semanasnumcurso introdutóriode teoria social, do

mesmomodo como teria se dedicadomais do que apenas duas semanas à leitura deAdamSmith.

LendoOcapitalcomoumtodo,équasecertoquevocêchegaráaumaconcepçãobastantediferente

dopensamentodeMarx.Masissosignificaquevocêterádelerolivrointeirocomoumlivro–eé

nissoquepretendoajudá-lo.

Existeummododeleituraemqueasformaçõesintelectuaiseospontosdevistadisciplinaresnão

apenassãoimportantes,comofornecemperspectivasúteissobreOcapital.Obviamente,soucontrao

tipo de leitura exclusivista em torno da qual os estudantes quase invariavelmente organizam suas

análises,masaprendi,aolongodosanos,queperspectivasdisciplinarespodemserinstrutivas.Ensino

Ocapitalquasetodososanos,desde1971,àsvezesduasouatémesmotrêsvezesporano,paragrupos

detodosostipos.Numano,comotodooDepartamentodeFilosofia–atécertopontohegeliano–

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do então chamadoMorgan State College, em Baltimore; noutro ano, com todos os estudantes de

graduação do curso de inglês daUniversidade JohnsHopkins; e, no outro,majoritariamente com

economistas.Ofascinanteeraquecadagrupoviacoisasdiferentesn’Ocapital.Aprendicadavezmais

sobreeleaotrabalharcompessoasdedisciplinasdiferentes.

Mashouvemomentosemqueessaexperiênciadidáticasetornouirritante,eatémesmodolorosa,

porqueumgrupoemparticularserecusavaaverascoisasameumodoouinsistiaemquestõesque

me pareciam irrelevantes. Certa vez, tentei lerO capital com um grupo do Programa de Línguas

RomânicasdaUniversidade JohnsHopkins.Paraminha enorme frustração, gastamosquase todoo

semestrecomocapítulo1.Eudizia“Olhem,precisamosiremfrenteechegar,nomínimo,naparte

dapolíticadajornadadetrabalho”,eelesdiziam“Não,não,precisamosentenderissomelhor.Oque

évalor?Oqueeleentendepordinheiro-mercadoria?Oqueéfetiche?”,eassimpordiante.Chegaram

atéalevarparaasaulasumaediçãoalemãparachecarastraduções.Descobriqueestavamseguindoa

tradiçãodealguémque,naépoca,eudesconheciacompletamente,alguémque, imaginei,deviaser

umidiotapolítico,senãoumidiotaintelectual,paradifundiressetipodeabordagem.Essapessoaera

JacquesDerrida,quehaviapassadoumatemporadanaUniversidadeJohnsHopkinsnofimdosanos

1960einíciodosanos1970.Maistarde,refletindosobreessaexperiência,percebiqueaquelegrupo,

apenasporinsistirempassarapentefinotodoocapítulo1,haviameensinadoaimportânciavitalde

prestarmuitaatençãoà linguagemdeMarx–oqueelediz,comodize tambémoque tomacomo

pressuposto.

Masnãosepreocupe:nãotenhoaintensãodefazerissonestaleitura,enãosóporquepretendo

tratardadiscussãomarxianasobreajornadadetrabalho,masporquequeroquevocêchegueaofim

destevolume.Aquestãoésimplesmentequediferentesperspectivasdisciplinarespodemserúteispara

descortinarasmúltiplasdimensõesdopensamentomarxiano,e justamenteporqueeleescreveuesse

texto segundouma tradiçãodepensamentocríticoextremamente rica ediversificada.Sougratoàs

muitas pessoas e grupos com que li esse livro ao longo de tantos anos, precisamente porque me

ensinaramtantosobreaspectosdaobradeMarxqueeujamaisterianotadoporcontaprópria.Para

mim,essaformaçãojamaistermina.

Três grandes tradições intelectuais e políticas inspiram a análise realizada n’O capital, e todas

receberamdeMarx,queeraprofundamentecomprometidocomateoriacrítica,umaanálisecrítica.

Quandorelativamentejovem,eleescreveuparaumdeseuscolegasredatoresumpequenotexto,cujo

títuloera“Paraumacríticaimpiedosadetudooqueexiste”

[b]

.Éóbvioqueeleestavasendomodesto

– e sugiro que você leia esse texto, porque é fascinante.Ele não diz: “Todos são estúpidos e eu, o

grandeMarx,voucriticá-losdeumpontodevistaexternoàexistência”.Aocontrário,eleargumenta

queumgrandenúmerodepessoassériasdedicou-sebravamenteapensararespeitodomundoeviu

certas coisas que deviam ser respeitadas, não importa quão unilaterais ou desvirtuadas fossem. O

método crítico toma o que outros disseram e vislumbraram e trabalha com essematerial a fim de

transformar o pensamento – e o mundo que ele descreve – em algo novo. Para Marx, um

conhecimentonovo surgedoatode tomarblocosconceituais radicalmentediferentes, friccioná-los

uns contra os outros e fazer arder o fogo revolucionário. E é o que ele faz n’O capital: combina

tradiçõesintelectuaisdivergentesparacriarumaestruturacompletamentenovaerevolucionáriapara

oconhecimento.

Hátrêsgrandesestruturasconceituaisconvergentesn’Ocapital.Aprimeiraéaeconomiapolítica

clássica– a economiapolíticado séculoXVII atémeadosdo séculoXIX; essa tradição é sobretudo

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britânica,masnãoexclusivamente,evaideWilliamPetty,Locke,HobbeseHumeatéograndetrio

formadoporAdamSmith,MalthuseRicardo,entreoutros(JamesSteuart,porexemplo).Atradição

francesa da economia política (fisiocratas como Quesnay, Turgot e, mais tarde, Sismondi e Say),

assimcomoitalianosenorte-americanos(comoCarey),tambémforneceumaterialcríticoadicionala

Marx.Ele submeteu todosessesautoresaumaprofundacríticanos trêsvolumesdenotasquehoje

chamamos deTeorias do mais-valor. Como não tinha fotocopiadora nem internet à disposição, ele

copiavalaboriosamentelongaspassagensdeAdamSmitheentãoescreviaumcomentáriosobreelas,

depoiscopiavalongaspassagensdeJamesSteuarteentãoescreviaumcomentáriosobreelas,eassim

pordiante.Naverdade,Marxpraticavaoquehojechamamosdedesconstruçãoe,comele,aprendi

comodesconstruirargumentos.QuandotratadeAdamSmith,porexemplo,aceitamuitodoqueele

diz,masentãoprocuralacunasoucontradiçõesque,quandocorrigidas,transformamradicalmenteo

argumento.Esse tipode argumentação aparece ao longode todoOcapital, porque, como indica o

subtítulo,eleseestruturaemtornode“umacríticadaeconomiapolítica”.

O segundo bloco conceitual que compõe a teorização marxiana é a reflexão e a investigação

filosófica,que,paraMarx,originaram-secomosgregos.Marxescreveuumatesededoutoradosobre

Epicuro e tinha familiaridade com o pensamento grego. Aristóteles, como você verá, serve

frequentemente como uma âncora para seus argumentos. Marx também dominava plenamente o

modo como o pensamento grego foi introduzido na principal tradição crítico-filosófica alemã –

Espinosa,Leibnize,éclaro,Hegel,assimcomoKantemuitosoutros.Marxfazumaconexãoentre

essatradiçãocrítico-filosóficaalemãeatradiçãopolítico-econômicainglesaefrancesa,embora,mais

umavez,sejaerradoentenderissoapenasemtermosdetradiçõesnacionais(afinaldecontas,Hume

eratantofilósofo–sebemqueempirista–quantoeconomistapolítico,eainfluênciadeDescartese

RousseausobreMarxéconsiderável).Masatradiçãocrítico-filosóficaalemãfoiaquetevemaispeso

sobreMarx, porque foi nela que ele foi treinado.E o clima crítico provocadopelo grupoquemais

tarde seria conhecido como os “jovens hegelianos”, nas décadas de 1830 e 1840, influenciou-o

enormemente.

A terceira tradição a queMarx recorre é a do socialismo utópico.Na época, essa tradição era

fundamentalmente francesa, embora o papel de fundador da tradiçãomoderna – que, no entanto,

tambémremontaaosgregos–sejacreditadoemgeralauminglês,ThomasMore,assimcomoaoutro

inglês,RobertOwen,quenãoapenasescreveulongostratadosutópicos,comotentoupôremprática

muitasdesuasideiasquandoMarxaindaeravivo.MasfoinaFrançaqueocorreu,nosanos1830e

1840, a grande explosão do pensamento utópico, largamente inspirado nos primeiros escritos de

Saint-Simon, Fourier e Babeuf. Tivemos, por exemplo, Étienne Cabet (fundador de um grupo, os

“icarianos”, que se instalounosEstadosUnidos após 1848);Proudhon e os proudhonianos;August

Blanqui(quecunhouaexpressão“ditaduradoproletariado”)emuitosque,assimcomoele,aderiram

à tradição jacobina (comoBabeuf); omovimento saint-simoniano;os fourieristas (assimcomoàde

VictorConsiderant);easfeministassocialistas(comoFloraTristan).EfoinaFrança,nosanos1840,

quemuitos radicais resolveramchamara simesmosdecomunistas, emboranão tivessemamínima

ideia do que isso significava.Marx estava bem familiarizado com essa tradição, oumesmo imerso

nela,especialmenteemParis,antesdeserexpulsoem1844,eacreditoqueextraiudelamaisdoque

admitia.Écompreensívelqueeleprocurassesedistanciardoutopismodosanos1830e1840,quepara

elefoioresponsável,emváriossentidos,pelofracassodarevoluçãode1848emParis.Elenãogostava

quandoosutópicos elaboravamuma sociedade ideal sem ternenhuma ideiade comopassardaqui

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para lá, oposição que ficou clara noManifesto Comunista. Por isso, em relação a essas ideias, ele

frequentementeprocedepormeiodanegação,emparticularcomrespeitoaopensamentodeFourier

eProudhon.

Essas são as três principais linhas conceituais que se conjugam emO capital. Seu objetivo era

transformar o projeto político radical do que ele considerava um socialismo utópico raso num

comunismo científico. Mas, para isso, ele não podia apenas confrontar os utópicos com os

economistas políticos. Ele tinha de recriar e reconfigurar o próprio método científico. Em linhas

gerais,podemosdizerqueessenovométodocientíficosefundanainterrogaçãodatradiçãobritânica

daeconomiapolíticaclássica,usaasferramentasdatradiçãoalemãdafilosofiacríticaeaplicatudo

issoparailuminaroimpulsoutópicofrancêseresponderàsseguintesperguntas:oqueéocomunismo

e como os comunistas deveriam pensar? Como podemos entender e criticar cientificamente o

capitalismo, demodo a preparar demaneira mais efetiva o caminho para a revolução comunista?

Comoveremos,Ocapitaltemmuitoadizersobreacompreensãocientíficadocapitalismo,masnão

sobre como construir uma revolução comunista. Também encontramos poucas informações sobre

comoseriaasociedadecomunista.

Jámencioneialgumasdasdificuldadesdaleiturad’OcapitalnostermosdeMarx.OpróprioMarx

tinhaconsciênciadessasdificuldadese,oqueéinteressante,fezcomentáriosarespeitodelasemseus

váriosprefácios.Noprefácioàediçãofrancesa,porexemplo,respondeàsugestãodedividiraedição

em fascículos. “Aplaudo vossa ideia de publicar a tradução d’Ocapital em fascículos”, escreveu em

1872.

Sob essa forma, o livro serámais acessível à classe trabalhadora e, paramim, essa consideração émais importantedoquequalquer

outra.

Esseéobeloladodevossamedalha,maseisseuladoreverso:ométododeanálisequeempreguei,equeaindanãohaviasidoaplicado

aos assuntos econômicos, torna bastante árdua a leitura dos primeiros capítulos, e é bem possível que o público francês, sempre

impacienteporchegaraumaconclusão,ávidoporconhecerarelaçãodosprincípiosgeraiscomasquestõesimediatasquedespertaram

suaspaixões,venhaasedesanimarpelofatodenãopoderavançarimediatamente.

Eisumadesvantagemcontra aqualnadaposso fazer, anão serprevenir epremuniros leitores ávidospelaverdade.Nãoexisteuma

estrada real para a ciência, e somente aqueles que não temem a fadiga de galgar suas trilhas escarpadas têm chance de atingir seus

cumesluminosos.(93)

Assim,tambémeutenhodecomeçaradvertindoosleitoresdeMarx,pormaisávidospelaverdade

que estejam, que, de fato, os primeiros capítulos d’O capital são particularmente difíceis.Há duas

razõesparaisso.UmadizrespeitoaométododeMarx,queexaminaremosbrevementemaisadiante.A

outratemavercomomodoparticularcomoeleconcebeuseuprojeto.

OobjetivodeMarxn’Ocapital é, pormeio de uma crítica da economia política, compreender

comoocapitalismofunciona.Elesabequeissoseráumaempreitadaenorme.Pararealizartalprojeto,

precisa desenvolver um aparato conceitual que o ajude a entender toda a complexidade do

capitalismoe,numadesuasintroduções,explicacomoplanejafazerisso.“Semdúvida”,escreveeleno

posfácioàsegundaedição,“omododeexposiçãotemdesedistinguir,segundosuaforma,domodo

deinvestigação”:

Ainvestigaçãotemdeseapropriardomaterial[Stoff]emseusdetalhes,analisarsuasdiferentesformasdedesenvolvimentoerastrear

seu nexo interno. Somente depois de consumado esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real. Se isso é

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realizadocomsucesso,eseavidadomaterial[istoé,domododeproduçãocapitalista]éagorarefletidaidealmente,oobservadorpode

teraimpressãodeseencontrardiantedeumaconstruçãoapriori.(90)

Ométodo de investigação deMarx começa com tudo o que existe – a realidade tal como é

experimentada,assimcomotodasasdescriçõesdisponíveisdessaexperiêncianaobradeeconomistas

políticos, filósofos, romancistas etc. Ele submete esse material a uma crítica rigorosa a fim de

descobrir conceitos simples,porémpoderosos,que iluminemomodocomoa realidade funciona.É

isso que ele chama de método de descenso – partimos da realidade imediata ao nosso redor e

buscamos, cada vez mais profundamente, os conceitos fundamentais dessa realidade. Uma vez

equipadoscomesses conceitos fundamentais,podemos fazerocaminhode retornoà superfície–o

método de ascenso – e descobrir quão enganador omundo das aparências pode ser. Essa posição

vantajosanospermiteinterpretaressemundoemtermosradicalmentediferentes.

Emgeral,Marxpartedaaparênciasuperficialpara,então,encontrarosconceitosprofundos.N’O

capital,porém,elecomeçaapresentandoosconceitosfundamentais,asconclusõesaquechegoucom

a aplicação de seu método de investigação. Ele simplesmente expõe seus conceitos nos primeiros

capítulos, diretamente e em rápida sucessão, de uma forma que, de fato, faz com que pareçam

construçõesapriorieatémesmoarbitrárias.Assim,numaprimeiraleitura,nãoéraroqueoleitorse

pergunte: de onde saíram todas essas ideias e conceitos? Por que ele os usa assim?Namaioria das

vezes, você não tem ideia do que ele está falando.Mas, àmedida que você avança, torna-se claro

comoessesconceitos iluminamnossomundo.Empouco tempo,conceitoscomovalore fetichismo

adquiremsentido.

Contudo,sóentendemosplenamentecomoessesconceitosfuncionamnofimdolivro!Ora,essaé

umaestratégiaincomum,atémesmopeculiar.Estamosmuitomaisfamiliarizadoscomprocedimentos

queconstroemoargumentotijoloportijolo.EmMarx,oargumentoseparecemaiscomumacebola.

Talvezessametáforasejainfeliz,porque,comoalguémmeadvertiucertavez,quandocortamosuma

cebola, ela nos faz chorar. Marx parte do exterior da cebola, removendo as camadas externas da

realidadeatéatingirocentro,onúcleoconceitual.Emseguida,encaminhaaargumentaçãoparafora,

retornandoàsuperfícieatravésdeváriascamadasdeteoria.Overdadeiropoderdoargumentosóse

torna claro quando, tendo retornado ao reino da experiência, vemos que possuímos um arcabouço

inteiramente novo de conhecimento para a compreender e interpretar essa experiência.Na época,

Marxrevelouumagrandecompreensãodaquiloquefazocapitalismocrescerdomodocomocresce.

Assim, conceitos que à primeira vista parecem abstratos e apriori tornam-se cada vezmais ricos e

plenosdesentido;àmedidaqueavança,Marxexpandeaabrangênciadeseusconceitos.

Esseprocedimentoédiferentedaargumentaçãoconstruídatijoloportijolo,enãoéfáciladaptar-

seaele.Naprática,issosignificaquevocêtemdeperseverarcomoumlouco,emparticularnostrês

primeiroscapítulos,emquenãosabemuitobemoqueestáacontecendo,atéterumanoçãomaisclara

dascoisas,àmedidaqueavança.Sóentãovocêcomeçaráapercebercomoessesconceitosfuncionam.

OpontodepartidadeMarxéoconceitodemercadoria.Àprimeiravista,pareceumaquestãoum

tantoarbitrária, senãoestranha,para secomeçar.QuandopensamosemMarx,vêmanossamente

frases como“toda aHistória tem sido ahistóriada lutade classes”,doManifestoComunista

[c]

. Se é

assim,porqueOcapitalnãocomeçacomalutadeclasses?Temosdelerquasetrezentaspáginasaté

conseguirmaisdoqueumasimplespistasobreoassunto,oquepodefrustraraquelesqueprocuram

um guia rápido de ação. Por que Marx não começa com o dinheiro? Na verdade, em suas

investigaçõespreparatórias,elepretendiapartirdaí,mas,depoisdeestudossuplementares,concluiu

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queodinheiro,maisdoquepresumido,tinhadeserexplicado.Porqueelenãocomeçaentãocomo

trabalho,outroconceitocomqueestáprofundamenteassociado?Porquecomeçarcomamercadoria?

ÉsignificativoqueosescritospreparatóriosdeMarxindiquemumlongoperíodo,decercadevinte

outrintaanos,emqueele sedebateucomaquestãodeporondecomeçar.Ométodododescenso

levou-o ao conceito demercadoria,mas ele não tenta justificar essa escolha nem se incomoda em

defendersualegitimidade.Apenascomeçacomamercadoria,epontofinal.

É fundamental entender que ele constrói uma argumentação com base numa conclusão já

determinada.Issodáaseuargumentoumcomeçoenigmático,eoleitorficatentadoasedesmotivar

ou irritar com tamanha arbitrariedade, a ponto de querer abandonar o livro no capítulo 3. Assim,

Marxtemtodaarazãoquandodizqueocomeçod’Ocapitaléparticularmentedifícil.Minhatarefa

inicial é, portanto, guiar o leitor através dos primeiros três capítulos, pelo menos. Isso tornará a

navegaçãoposteriorbemmaistranquila.

Sugerinoinício,entretanto,queoaparatoconceitualqueMarxconstróialiestárelacionadonão

apenascomoLivroI,mascomaanálised’Ocapitalcomoumtodo.E,éclaro,trêsvolumeschegaram

anós,demodoque,sevocêquerdefatoentenderomododeproduçãocapitalista,infelizmenteterá

delerostrês.OLivroIofereceapenasumaperspectiva.Masoqueépioraindaéqueostrêsvolumes

sãoapenasumoitavo(quandomuito)daquiloqueeletinhaemmente.Eisoqueeleescreveunum

texto preparatório, intituladoGrundrisse, em que esboça vários formatos paraO capital.Diz ele em

determinadopontoqueambicionatratardasseguintesquestões:

1)asdeterminaçõesuniversaisabstratas,que,poressarazão,correspondemmaisoumenosatodasasformasdesociedade[...].2)As

categorias que constituem a articulação interna da sociedade burguesa e sobre as quais se baseiam as classes fundamentais.Capital,

trabalhoassalariado,propriedadefundiária.Assuasrelaçõesrecíprocas.Cidadeecampo.Astrêsgrandesclassessociais.Atrocaentre

elas. Circulação. Sistema de crédito (privado). 3) Síntese da sociedade burguesa na forma do Estado. Considerada em relação a si

mesma. As classes “improdutivas”. Impostos. Dívida pública. Crédito público. A população. As colônias. Emigração. 4) Relação

internacionaldaprodução.Divisão internacionaldo trabalho.Troca internacional.Exportação e importação.Cursodo câmbio.5)O

mercadomundialeascrises.

[d]

Marx não chegou nem perto de concluir esse projeto.Na verdade, desenvolveu apenas alguns

poucosdessestópicosdeformasistemáticaoudetalhada.Emuitosdeles–comoosistemadecrédito

e o sistema financeiro, as atividades coloniais, o Estado, as relações internacionais, o mercado

mundial e suas crises – são absolutamente cruciais para a compreensão do capitalismo. Em seus

volumosos escritos, há indicações de como tratar esses tópicos, como entendermelhor oEstado, a

sociedadecivil, a imigração,o câmbiomonetário e coisasdogênero.E, comoprocureimostrar em

meu livroOs limitesdo capital

[e]

, épossível conjugaralgunsdos fragmentosqueMarxnosdeixoua

respeitodessestópicosparaformarumconjuntocompreensível.Maséimportantereconhecerqueo

aparatoconceitualapresentadonoiníciod’Ocapitalcarregaofardodeassentarasbasesdesseprojeto

tãoimportante,masincompleto.

OLivroI,comovocêverá,analisaomododeproduçãocapitalistadopontodevistadaprodução,

não do mercado nem do comércio global, mas exclusivamente da produção. O Livro II (nunca

concluído)tomaaperspectivadasrelaçõesdetroca.OLivroIII(tambémnãoconcluído)concentra-se

inicialmente na formação das crises como produto das contradições fundamentais do capitalismo;

tratatambémdequestõesrelativasadistribuiçãodoexcedentesobaformadojuro,retornodocapital

financeiro,rendadaterra,lucrodocapitalmercantil,tributoseoutrasquestõesdogênero.Assim,a

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análisedesenvolvidanoLivroItemmuitaslacunas,mascertamentehánelaobastanteparaentender

comoomododeproduçãocapitalistarealmentefunciona.

Isso nos leva de volta aométodo deMarx. Uma das coisasmais importantes a entender num

estudocuidadosodoLivroIécomoométododeMarxfunciona.Ameuver, issoétãoimportante

quantoasproposiçõesqueelededuzarespeitodofuncionamentodocapitalismo,pois,umavezque

seaprendaométodoe se tenhapráticaemsuaaplicaçãoeconfiançaemseupoder,pode-seusá-lo

para entender quase tudo. É claro que essemétodo deriva da dialética, que é, como dizMarx no

prefácio já citado, um método de investigação “que ainda não havia sido aplicado aos assuntos

econômicos”(93).Eletambémdiscuteessemétododialéticonoposfácioàsegundaedição.Embora

suas ideias derivem deHegel, ométodo dialético deMarx, “em seus fundamentos, não é apenas

diferentedométodohegeliano,masexatamenteseuoposto”(90).Vemdaíacélebreafirmaçãodeque

Marxinverteuadialéticahegelianaecolocou-anaposiçãocerta,istoé,depé.

Emcertosaspectos,comoveremos,issonãoéexatamenteverdade.Marxnãoselimitouainverter

ométododialético,eleorevolucionou.“Critiqueioladomistificadordadialéticahegelianahácerca

de trinta anos”, diz ele, referindo-se a suaCrítica da filosofia do direito deHegel

[f]

. Tal crítica foi o

momentofundamentalemqueMarxredefiniusuarelaçãocomadialéticahegeliana.Eledesaprovao

fatodequeaformamistificadadadialética,talcomodifundidaporHegel,tenhasetornadomodana

Alemanhanosanos1830e1840eempenha-seemcorrigi-la,afimdequeelapossadarcontade“toda

formahistoricamentedesenvolvida em seu estado fluido, emmovimento”.Marx teve, portanto, de

reconfigurar a dialética para que ela também pudesse apreender o “aspecto transiente” de uma

sociedade.Emsuma,adialéticatemdesercapazdeentendererepresentarprocessosemmovimento,

mudançaetransformação.Taldialética“nãosedeixaintimidarpornadaeé,poressência,críticae

revolucionária”(91),precisamenteporchegaraocernedastransformaçõessociais,tantoatuaiscomo

potenciais.

OqueMarxrevelaaquiésuaintençãodereinventarométododialéticoparaqueestedêconta

dasrelaçõesgraduaisedinâmicasentreoselementosquecompõemosistemacapitalista.Eletenciona

fazer isso para capturar a fluidez e o movimento, porque, como veremos, a mutabilidade e o

dinamismo do capitalismo o impressionammuito. Isso contradiz a reputação que invariavelmente

acompanhaMarx, descrito como um pensador estruturalista fixo e imóvel.O capital, no entanto,

revelaumMarxquefalacontinuamentedemovimentoemudança–osprocessos–dacirculaçãodo

capital, por exemplo.Portanto, lerMarx em seus próprios termos exige que você tenha sempre em

menteaquiloqueeleentendepor“dialética”.

Oproblema,porém,équeMarxnuncaescreveuumtratadosobredialéticaenuncaexplicouseu

método dialético (embora dê indicações aqui e ali, como veremos). Assim, temos um aparente

paradoxo:paraentenderométododialéticodeMarx,vocêtemdelerOcapital,porqueeleéafonte

desuapráticareal;mas,paraentenderOcapital,vocêtemdeentenderométododialéticodeMarx.

Umaleituracuidadosad’Ocapitaldaráumanoçãodecomofuncionaessemétodo;quantomaisoler,

melhorvocêentenderáOcapitalcomolivro.

Uma das coisas curiosas do nosso sistema de ensino, ameu ver, é que, quantomelhor for seu

treinamentonumadisciplina,menoshabituadoaométododialéticovocê será.De fato, as crianças

pequenassãomuitodialéticas,veemtudoemmovimento,emcontradiçãoetransformação.Temosde

fazer um esforço enorme para que elas deixem de pensar dialeticamente.O queMarx pretende é

recuperar o poder intuitivo do método dialético, que permite compreender que tudo está em

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processo,tudoestáemmovimento.Elenãofalasimplesmentedetrabalho,masdoprocessodetrabalho.

Ocapitalnãoéumacoisa,masumprocessoquesóexisteemmovimento.Quandoacirculaçãocessa,o

valordesapareceeosistemacomeçaadesmoronar.Vejaoqueaconteceudepoisdo11deSetembro

de2001,emNovaYork:tudoficouparalisado.Osaviõespararamdevoar,asponteseestradasforam

fechadas.Trêsdiasdepois,percebeu-sequeocapitalismodesmoronariaseascoisasnãovoltassemase

movimentar. Então, de repente, o prefeitoGiuliani e o presidente Bush pediram que a população

sacasseseuscartõesdecréditoefosseàscompras,voltasseàBroadway,lotasseosrestaurantes.Bush

chegouaaparecernumcomercialdaindústriaaeroviáriaparaencorajarosnorte-americanosavoltar

avoar.

Ocapitalismonãoénadasenãoestiveremmovimento.Marxadmiramuitoissoenãosecansade

evocar o dinamismo transformador do capital. Por isso é tão estranho que seja caracterizado com

tantafrequênciacomoumpensadorestático,quereduzocapitalismoaumaconfiguraçãoestrutural.

Não,oqueMarxprocuran’Ocapitaléumaparatoconceitual,umaestruturaprofundaqueexplique

comoomovimento sedesenvolve concretamenteno interiordeummododeprodução capitalista.

Consequentemente, muitos de seus conceitos são formulados mais como relações do que como

princípiosisolados;elessereferemaumaatividadetransformadora.

Assim,conhecereapreciarométododialéticod’OcapitaléessencialparacompreenderMarxem

seusprópriostermos.Muitaspessoas,inclusivemarxistas,discordariamdisso.Oschamadosmarxistas

analíticos–pensadorescomoG.A.Cohen,JohnRoemereRobertBrenner–desprezamadialética.

Gostam de se denominar “marxistas sem lorotas”. Preferem transformar a argumentação deMarx

numa série de proposições analíticas.Outros transformam seus argumentos nummodelo causal de

mundo. Há até uma interpretação positivista de Marx que permite testar sua teoria com dados

empíricos.Emtodosessescasos,porém,adialéticaédesconsiderada.Nãoestoudizendocomisso,em

princípio, que os marxistas analíticos estejam errados nem que aqueles que fazem de Marx um

construtor de modelos positivista estejam equivocados. Talvez estejam certos; mas insisto que os

termosprópriosdeMarxsãodialéticos,eissonosobriga,portanto,afazerumaleituradialéticad’O

capital.

Umaúltimaquestão:nossoobjetivoélerMarxemseusprópriostermos,mas,namedidaemque

estou guiando essa leitura, esses termos serão inevitavelmente afetados por meus interesses e

experiências.Dediqueigrandepartedeminhavidaacadêmicaaaplicarateoriamarxianaaoestudo

da urbanização sob o capitalismo, do desenvolvimento geográfico desigual e do imperialismo, e é

evidentequeessaexperiênciaafetouomodocomoleioOcapital.Paracomeçar,essaspreocupações

sãomaispráticasdoquefilosóficasouteórico-abstratas;minhaabordagemsemprefoiperguntaroque

O capital pode nos ensinar a respeito de como a vida cotidiana é vivida nas grandes cidades

produzidas pelo capitalismo. Durante os mais de trinta anos de contato que tive com esse texto,

acontecerammuitasmudançasgeográficas,históricasesociais.Naverdade,umadasrazõesporque

gostodeensinarOcapital todoanoéque sempre tenhodeperguntaramimmesmocomoele será

lido,quaisquestõesqueantespassavamdespercebidaschamarãominhaatenção.VoltoaMarxmenos

embuscadeumguiadoquedepotenciaisinsightsteóricossobremudançasgeográficas,históricase

populacionais.Éclaroque,nesseprocesso,minhacompreensãodotextomudou.Namedidaemqueo

climahistóricoeintelectualnoscolocadiantedequestõeseperigosaparentementesemprecedentes,

omodocomolemosOcapitaltambémtemdemudareseadaptar.

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Marx fala sobre esse processo de reformulação e reinterpretação necessárias. A teoria burguesa,

observaele,entendiaomundodedeterminadamaneiranoséculoXVIII,masamarchadahistória

tornou irrelevantes essa teoria e suas formulações teóricas (84-6). As ideias têm de mudar ou se

reconfigurar à medida que as circunstâncias mudam. Marx entendeu e representou o mundo

capitalistademodobrilhantenosanos1850e1860,masomundomudou,eissotrazmaisumaveza

pergunta:emquesentidoessetextopodeseraplicadoaonossoprópriotempo?Infelizmente,ameu

ver, a contrarrevolução neoliberal que dominou o capitalismo global nos últimos trinta anos

contribuiumuitopara reproduzirmundialmenteaquelasmesmascondiçõesqueMarxdesconstruiu

demaneira tão brilhante na Inglaterra dos anos 1850 e 1860.Por isso insiro nessas leituras alguns

comentários tanto sobre a relevância d’O capital para o mundo atual quanto sobre a leitura mais

adequadadotextoàsexigênciasdenossaépoca.

Mas,sobretudo,queroquevocêfaçasuapróprialeiturad’Ocapital.Emoutraspalavras,esperoque

vocêestabeleçaumarelaçãocomotextonostermosdesuaexperiênciapessoal–intelectual,social,

política – e aprenda com ele à sua maneira. Espero que tenha bons e esclarecedores momentos

conversandocomotexto,digamosassim,edeixandoqueeleconversedevoltacomvocê.Essetipode

diálogo é um excelente exercício para tentar entender o que parece quase impossível.Cabe a cada

leitortraduzir

Ocapitaldemodoquetenhasentidoparasuavida.Nãohá–enãopodehaver–umainterpretação

definitiva, precisamente porque o mundo está em contínua mudança. Como provavelmente diria

Marx,hicRhodus,hicsalta

[g]

!Abolaésua,chute!

[a]Napresenteedição,as citaçõeseanumeraçãodaspáginascorrespondentes referem-sea:KarlMarx,Ocapital,Livro I (trad.Rubens

Enderle,SãoPaulo,Boitempo,2013).Asfuturasreferênciasaessaobraserãocitadasapenascomindicaçãodaspáginasentreparênteses.

(N.E.)

[b]Oautorrefere-seà“CartadeMarxaArnoldRuge”desetembrode1843,publicadanosDeutsch-FranzösischeJahrbücher[AnaisFranco-

Alemães]emfevereirode1844.Cf.KarlMarx,Sobreaquestãojudaica(SãoPaulo,Boitempo,2010),p.70-3.(N.T.)

[c]KarlMarxeFriedrichEngels,ManifestoComunista(SãoPaulo,Boitempo,1998),p.74.(N.E.)

[d]KarlMarx,Grundrisse:manuscritoseconômicosde1857-1858–Esboçosdacríticadaeconomiapolítica(SãoPaulo,Boitempo,2011),p.61.

(N.E.)

[e]SãoPaulo,Boitempo,noprelo.(N.E.)

[f]2.ed.,SãoPaulo,Boitempo,2010.(N.E.)

[g]Referênciaa“HicRhodus,hic saltus” [AquiéRodes, saltaaquimesmo!], tradução latinadeumtrechoda fábulaOatletafanfarrão, de

Esopo.EmO18debrumáriodeLuísBonaparte(SãoPaulo,Boitempo,2011),Marxempregaacitaçãomodificada,emlatimeemalemão

(HicRodhus,hicsalta!HieristdieRose,hiertanze![Aquiestáarosa,dançaagora!]),emalusãoaousoqueHegelfazdaexpressãonoprefácio

daFilosofia do direito. No caso presente, embora não se trate de uma referência a Hegel, Marx mantém a mesma forma modificada

empregadaemO18debrumário.(N.T.)

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1.Mercadoriasetroca

CAPÍTULO1:AMERCADORIA

Item1:Osdoisfatoresdamercadoria:valordeusoevalor(substânciadovalor,grandezado

valor)

Vamoscomeçarcomumaanálisedetalhadadoprimeiro itemdocapítulo1.Procedoassim,em

parte,porqueMarxapresentaaquicategorias fundamentaisdemaneiraapriorística,decertomodo

enigmática,comargumentosdotipo take-it-or-leave-it [pegarou largar],quepoderiamsermaisbem

elaborados.Mas tambémqueroquevocê se familiarizeomais rápidopossível como tipode leitura

minuciosaqueOcapitalexige,casoqueiraentendê-lo.Nãosepreocupe,nãovoumanteressenívelde

intensidade!

AmercadoriaéopontodepartidaapriorideMarx.“Ariquezadassociedadesnasquaisreinao

mododeproduçãocapitalista”,dizele,“aparececomouma ‘enormecoleçãodemercadorias’

[1]

, ea

mercadoriaindividual,comosuaformaelementar.Nossainvestigaçãocomeça,porisso,comaanálise

damercadoria” (113).Maspreste atenção à linguagem.Apalavra “aparece” surgeduas vezesnessa

passageme,evidentemente,“aparece”nãoéomesmoque“é”.Aescolhadessapalavra–efiqueatento

aisso,porqueMarxfazumusoabundantedelaaolongod’Ocapital–indicaqueumacoisadiferente

aconteceportrásdaaparênciasuperficial.Somosimediatamenteconvidadosarefletirsobreoqueisso

podesignificar.Note tambémqueMarxestápreocupadoexclusivamentecomomododeprodução

capitalista. Ele não se ocupa com os modos antigos de produção, com os modos socialistas de

produçãooumesmocomosmodoshíbridos,apenascomomododeproduçãocapitalistaemforma

pura.Éimportantelembrardissodaquiemdiante.

Começar com as mercadorias se revela muito útil, porque qualquer pessoa tem contato e

experiências diárias com elas. Estamos constantemente cercados de mercadorias, gastamos tempo

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comprando, olhando, desejando ou recusando mercadorias. A forma-mercadoria é uma presença

universalno interiordomododeproduçãocapitalista.Marxescolheuodenominadorcomum,algo

familiar e comum a todos nós, sem distinção de classe, raça, gênero, religião, nacionalidade,

preferência sexual ou o que for.Tomamos conhecimento dasmercadorias demaneira cotidiana e,

alémdisso,elassãoessenciaisanossaexistência:temosdecomprá-lasparaviver.

Asmercadorias são negociadas nomercado, e isso leva imediatamente à pergunta: que tipo de

transaçãoeconômicaéessa?Amercadoriaéalgoquesatisfazumacarência,umanecessidadeouum

desejohumanos.Éalgoexternoanós,dequetomamospossee transformamosemnosso.Contudo,

Marx declara de imediato que não está interessado na “natureza dessas necessidades – se, por

exemplo,elasprovêmdoestômagooudaimaginação”.Seuúnicointeresseéosimplesfatodequeas

pessoascomprammercadorias,eesseéumatofundadordomodocomoaspessoasvivem.Existem,é

claro,milhõesdemercadoriasnomundo,etodassãodiferentesemtermosdequalidadematerialedo

modo como são descritas quantitativamente (quilos de farinha, pares de meias, quilowatts de

eletricidade,metrosdetecidoetc.).Marx,porém,desconsideratodaessaimensadiversidade,dizendo

queadescobertadas“múltiplasformasdeusodascoisaséumatohistórico”,assimcomotambémé

umatohistórico“encontrarasmedidassociaisparaaquantidadedascoisasúteis”.Maseleprecisa

encontrarumcaminhoparafalardamercadoriaemgeral.“Autilidadedeumacoisa”podesermais

bemconceituadacomoum“valordeuso”(113-4).Esseconceitodevalordeusoévitalparatudoque

vememseguida.

Notecomquerapidezeleabstraiaincríveldiversidadedecarências,necessidadesedesejos,assim

comoaimensavariedadedemercadorias,pesosemedidas,parafocaroconceitounitáriodevalorde

uso.Issoilustraumargumentoqueeleapresentanumdosprefácios,emquedizqueoproblemada

ciênciasocialéque,comela,nãopodemosisolareconduzirexperimentoscontroladosemlaboratório,

entãotemos,aocontrário,deusaropoderdaabstraçãoparachegaraformascientíficassimilaresde

compreensão(77-8).Nessapassageminicial,oprocessodeabstraçãoéapresentadopelaprimeiravez,

maselacertamentenãoseráaúnica.

Mas “na forma de sociedade que iremos analisar” (isto é, o capitalismo), as mercadorias

“constituem,aomesmotempo,ossuportesmateriais[...]dovalordetroca”.Devemostomarcuidado

comapalavra“suporte”,poisservirdesuporteparaalgumacoisanãoéomesmoqueseressacoisa.As

mercadoriassãosuportesdealgoqueaindaserádefinido.Comopodemossaber,então,oqueéaquilo

para que a mercadoria serve de suporte? Quando olhamos para os processos efetivos de troca no

mercado,testemunhamosumaimensavariedadedeproporçõesdetrocaentre,porexemplo,camisase

sapatos, maçãs e laranjas, e essas proporções de troca variam consideravelmente, mesmo entre os

mesmosprodutos, conformea época eo lugar.Assim, àprimeira vista, é como se asproporçõesde

trocafossem“algoacidentalepuramenterelativo”(noteapalavra“relativo”),demodoqueaideiade

um “valor de troca intrínseco, imanente à mercadoria (valeur intrinsèque)”, “aparece” como “uma

contradictio inadjecto [contradiçãonospróprios termos]” (114).Poroutro lado,qualquercoisaé,em

princípio,intercambiávelcomqualqueroutra.Asmercadoriaspodemcontinuarmudandodemãose

se movimentando num sistema de trocas. Há algo que faz com que todas as mercadorias sejam

comensuráveisnatroca.Segue-sedaí,“emprimeirolugar:queosvaloresválidosdetrocadasmesmas

mercadoriasexpressamumaigualdade.Emsegundolugar,porém:queovalordetrocanãopodeser

mais do que omodo de expressão, a ‘forma demanifestação’ de um conteúdo que dele pode ser

distinguido”.Não se pode dissecar umamercadoria e encontrar nela aquele elemento que a torna

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intercambiável.Oquea torna intercambiável temde seroutracoisa, eessaoutracoisa sópode ser

descobertaquandoamercadoriaestásendotrocada(eaquiaideiademovimentoeprocessocomeça

a surgir comoalgo fundamental).Quando amercadoria trocademãos, ela expressa, com isso,não

apenasalgoquediz respeitoa suasprópriasqualidades,masàsqualidadesde todasasmercadorias,

isto é, que elas são comensuráveis entre si. Por que elas são comensuráveis, e do que deriva essa

comensurabilidade? “Cada uma delas [as mercadorias], na medida em que é valor de troca, tem,

portanto,deserredutívelaessaterceira”(115).

“Esse algo em comum”, argumenta Marx, “não pode ser uma propriedade geométrica, física,

química ou qualquer outra propriedade natural das mercadorias” (115). Isso leva a umamudança

significativa no argumento.Marx é descrito em geral como ummaterialista empedernido, se não

fundamentalista.Tudotemdesermaterialparaquesejavalidamenteconsideradoreal,maselenega

queamaterialidadedasmercadoriassejacapazdenosdizeralgumacoisasobreaquiloqueastorna

comensuráveis. “Como valores de uso, as mercadorias são, antes de tudo, de diferente qualidade;

comovaloresdetroca,elaspodemserapenasdequantidadediferente,semconter,portanto,nenhum

átomodevalordeuso.”Acomensurabilidadedasmercadoriasnãoéconstituídaporseusvaloresde

uso.“Prescindindodovalordeusodoscorposdasmercadorias,restanelasumaúnicapropriedade”–

eaquiMarxfazmaisumdaquelessaltosaprioripormeiodeumaasserção–“adeseremprodutosdo

trabalho”(116).Assim,todasasmercadoriassãoprodutodotrabalhohumano.Oqueasmercadorias

têmemcomuméquesãosuportedotrabalhohumanoincorporadoemsuaprodução.

Mas,eleperguntaemseguida,quetipodetrabalhohumanoéincorporadonasmercadorias?Não

pode ser o tempo efetivamentedespendidono trabalho– o que ele chamade trabalho concreto–,

porquenessecasoumamercadoriaseriatantomaisvaliosaquantomaistempodurassesuaprodução.

Ora, por que eu pagaria determinado preço por um artigo que alguém levou um bom tempo para

produzir,seeupudessepagarametadeaalguémqueoproduziunametadedotempo?Assim,conclui

ele, todas as mercadorias são “reduzid[a]s a trabalho humano igual, a trabalho humano abstrato”

(116).

Masemqueconsisteessetrabalhohumanoabstrato?Asmercadoriassãoresíduos“dosprodutosdo

trabalho. Deles não restou mais do que uma objetividade fantasmagórica, uma simples geleia de

trabalho humano indiferenciado [...]. Como cristais dessa substância que lhes é comum, elas são

valores–valoresdemercadorias”(116).

Que concisão e, no entanto, que riqueza de significado! Se o trabalho humano abstrato é uma

“objetividadefantasmagórica”,comopodemosvê-looumedi-lo?Quetipodematerialismoéesse?

Comovocêpodenotar,Marxnãoprecisoudemais doquequatropáginas, cheias de asserções

enigmáticas,paralançarosconceitosfundamentaiseconduziraargumentaçãodovalordeusoparao

valor de troca, para o trabalho humano abstrato e, por fim, para o valor como geleia de trabalho

humano indiferenciado. É seu valor que torna asmercadorias comensuráveis, e esse valor é tanto

ocultado como uma “objetividade fantasmagórica” quanto operante nos processos de troca de

mercadorias.Issolevaàpergunta:ovalorérealmenteuma“objetividadefantasmagórica”ouapenas

aparecedessaforma?

Comisso,podemosreinterpretarovalordetrocacomo“omodonecessáriodeexpressãoouforma

demanifestaçãodovalor”(116).Notemaisumavezapalavra“aparição”,masnessecasopodemosver

a relação pelo lado oposto, porque o mistério sobre o que torna as mercadorias intercambiáveis é

entendidoagoracomoummundodeapariçõesdessa“objetividadefantasmagórica”chamadavalor.

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Ovalorde trocaéumarepresentaçãonecessáriadotrabalhohumano incorporadonasmercadorias.

Quando vamos ao supermercado, podemos descobrir os valores de troca,mas não podemos ver ou

medirdiretamenteotrabalhohumanoincorporadonasmercadorias.Éessaincorporaçãodotrabalho

humanoqueestápresentefantasmagoricamentenasprateleiras.Pensenissodapróximavezqueforao

supermercadoeestivercercadodessesfantasmas!

Marxretorna,então,àquestãoarespeitodotipodetrabalhoqueestáenvolvidonaproduçãode

valor.Ovaloré“trabalhohumanoabstrato[...]objetivado[...]oumaterializado”namercadoria.Como

esse valor pode sermedido? Em primeiro lugar, isso claramente nos remete ao tempo de trabalho.

Contudo,comoobserveiaoestabeleceradiferençaentretrabalhoconcretoeabstrato,elenãopodeser

o tempo de trabalho efetivamente despendido na produção, pois, desse modo, “quanto mais

preguiçosoou inábil forumhomem, tantomaiorovalorde suamercadoria”.Portanto,o“trabalho

queconstituiasubstânciadosvaloresétrabalhohumanoigual,dispêndiodamesmaforçadetrabalho

humana”.Paracompreenderoquesignificaesse“dispêndiodamesmaforçadetrabalhohumana”,é

precisoolharpara“aforçadetrabalhoconjuntadasociedade,queseapresentanosvaloresdomundo

dasmercadorias”(117).

Essa asserção a priori tem enormes implicações.No entanto,Marx não trata delas aqui. Sendo

assim,devo fazer issopor ele, para que vocênão entendamal a teoria do valor. Falar de “forçade

trabalhoconjuntadasociedadeӎinvocartacitamenteummercadomundialquefoiintroduzidopelo

modode produção capitalista.Onde começa e onde termina essa “sociedade”, isto é, omundoda

trocacapitalistademercadorias?Nesteexatomomento,elaestápresentenaChina,noMéxico,no

Japão,naRússia,naÁfricadoSul–trata-sedeumconjuntoglobalderelações.Amedidadovaloré

derivada desse mundo inteiro de trabalho humano.Mas isso também valia, ainda que emmenor

escala,paraaépocadeMarx.NoManifestoComunista,háumadescriçãobrilhantedaquiloquehoje

chamamosdeglobalização:

Pelaexploraçãodomercadomundial,aburguesiaimprimeumcarátercosmopolitaàproduçãoeaoconsumoemtodosospaíses[...]

elarouboudaindústriasuabasenacional.Asvelhasindústriasnacionaisforamdestruídasecontinuamaserdestruídasdiariamente.São

suplantadaspornovas indústrias,cuja introduçãose tornaumaquestãovitalpara todasasnaçõescivilizadas– indústriasque jánão

empregammatérias-primasnacionais,massimmatérias-primasvindasdasregiõesmaisdistantes,ecujosprodutosseconsomemnão

somentenoprópriopaísmasemtodasaspartesdomundo.Aoinvésdasantigasnecessidades,satisfeitaspelosprodutosnacionais,

surgemnovasdemandas,quereclamamparasuasatisfaçãoosprodutosdasregiõesmaislongínquasedeclimasosmaisdiversos.No

lugar do antigo isolamento de regiões e nações autossuficientes, desenvolvem-se um intercâmbio universal e uma universal

interdependênciadasnações.

[a]

Énesseterrenoglobaldinâmicoderelaçõesdetrocaqueovalorédeterminadoeredeterminado

continuamente.Marxescreveunumcontextohistóricoemqueomundoseabriamuitorapidamente

paraomercadoglobalpelanavegaçãoavapor,pelasestradasdeferroepelotelégrafo.Eeleentendeu

muito bem que o valor não era determinado no nosso quintal, ou mesmo no interior de uma

economia nacional, mas surgia de um mundo inteiro de troca de mercadorias. E aqui ele usa

novamente o poder da abstração para chegar à ideia de unidades de trabalho homogêneo, emque

cadauma“éamesmaforçadetrabalhohumanaqueaoutra,namedidaemquepossuiocaráterde

uma força de trabalho socialmédia e atua como tal força de trabalho socialmédia”, como se essa

reduçãoàformadevalorocorresseefetivamentenocomérciomundial.

Issopermiteque ele formule adefiniçãocrucialdovalor como“tempode trabalho socialmente

necessário”, que “é aquele requerido para produzir um valor de uso qualquer sob as condições

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socialmentenormaisexistentesecomograusocialmédiodedestrezaeintensidadedotrabalho”.E

conclui:“apenasaquantidadedetrabalhosocialmentenecessárioouotemposocialmentenecessário

de trabalho para a produção de um valor de uso pode determinar a sua grandeza de valor” (117).

Temos aqui a definiçãoque você esperava.É, porém, apenas umadefinição contingente, porque é

interna ao conceito de “sociedade” –mas onde a sociedade começa ou termina?Ela é fechada ou

aberta?Seessasociedadeéomercadomundial,comoelacertamentedeveser,então...?

UmadasrazõesporqueMarxdispensouessaapresentaçãoenigmáticadovalordeuso,dovalorde

trocaedovaloréquequalquerumquetenhalidoRicardopoderiadizer:“IssoéRicardo!”.Eédefato

puro Ricardo, com exceção de um acréscimo. Ricardo enfatizou o conceito de tempo de trabalho

como valor. Marx usa o conceito de tempo de trabalho socialmente necessário. O que Marx fez foi

reproduziroaparatoconceitualricardianoe,aoqueparece,inseririnocentementeumamodificação.

Mas essa inserção, como veremos, faz uma enorme diferença. Somos imediatamente forçados a

perguntar:oqueésocialmentenecessário?Comoissoéestabelecido,eporquem?Marxnãodáuma

resposta imediata, mas esse é um tema que percorre de ponta a ponta O capital. Quais são as

necessidadessociaisembutidasnomododeproduçãocapitalista?

Essa continua sendo para nós a grande questão. Será verdade, como disse certa vezMargaret

Thatcher,que“nãoháalternativa”,oque,decertomodo,equivaleadizerqueasnecessidadessociais

quenosrodeiamsãoimpostastãoimplacavelmentequenãotemosescolhasenãonosconformar?Em

seu fundamento, isso remete à questão primordial sobre por quem e como os “valores” são

estabelecidos.Éclaroquegostamosdepensarque temosnossospróprios“valores”, eacadaeleição

nosEstadosUnidosháumadiscussãointerminávelsobreos“valores”doscandidatos.MasoqueMarx

diz é que há certo tipo e medida de valor que é determinado por um processo que não

compreendemos e que não depende necessariamente de uma escolha consciente, e omodo como

essesvaloressãoimpostosanóstemdeseranalisado.Sequeremosentenderquemsomosequaléo

nosso lugar nesse turbilhão de valores, temos de começar entendendo como os valores das

mercadoriassãocriadoseproduzidos,equaissãosuasconsequências–sociais,ambientais,políticas

etc. Quem acha que pode resolver uma questão tão séria como o aquecimento global sem ter de

enfrentarporquemecomoédeterminadaaestruturadevalorfundadoradanossasociedadeengana

a simesmo. Por issoMarx insiste que temos de entender o que são os valores damercadoria e as

necessidadessociaisqueosdeterminam.

Osvaloresdamercadorianãosãograndezasfixas.Elessãosensíveis,porexemplo,amudançasna

produtividade:

Após a introdução do tear a vapor na Inglaterra, por exemplo, passou a ser possível transformar uma dada quantidade de fio em

tecidoempregandocercadametadedotrabalhodeantes.Naverdade,otecelãomanualinglêscontinuavaaprecisardomesmotempo

de trabalho para essa produção,mas agora o produto de sua hora de trabalho individual representava apenasmetade da hora de

trabalhosociale,porisso,seuvalorcaiuparaametadedoanterior.(117)

Isso chamanossa atençãopara o fatode que o valor é sensível a revoluçõesna tecnologia e na

produtividade. Grande parte do Livro I é dedicada à discussão das origens e do impacto das

revoluçõesnaprodutividadeedasrevoluçõessubsequentesnasrelaçõesdevalor.Masnãosãoapenas

as revoluções na tecnologia que são importantes, porque o valor é determinado “por múltiplas

circunstâncias, dentre outras pelo grau médio de destreza dos trabalhadores, o grau de

desenvolvimentoda ciência ede sua aplicabilidade tecnológica”–Marx émuito cuidadoso como

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significado da tecnologia e da ciência para o capitalismo – “a organização social do processo de

produção, o volume e a eficácia dosmeios de produção e as condições naturais” (118).Um vasto

conjuntodeforçaspodeinterferirnosvalores.Astransformaçõesnoambientenaturalouamigração

paralugarescomcondiçõesnaturaismaisfavoráveis(recursosmaisbaratos)revolucionamosvalores.

Osvaloresdasmercadoriasestãosujeitos,emsuma,aumpoderosoconjuntodeforças.Marxnãofaz

uma categorização definitiva de todos eles; quer apenas nos alertar que aquilo que chamamos de

“valor”nãoéumaconstante,masestásujeitoaperpétuastransformaçõesrevolucionárias.

Ocorreentãoumaviradapeculiaremseuargumento.Exatamentenoúltimoparágrafodesseitem,

ele reintroduz a questão dos valores de uso. “Uma coisa pode ser valor de uso sem ser valor.”

Respiramosareatéhojenãoconseguimosengarrafá-loevendê-locomomercadoria,apesardeeuter

certezadequealguémjápensouemfazerisso.Domesmomodo,“umacoisapodeserútileproduto

do trabalho humano sem sermercadoria”. Planto tomates emmeu quintal para comê-los.De fato,

muitaspessoassobocapitalismofazemumasériedecoisasparaelasmesmas(emespecialcomcerta

ajuda de lojas do tipo “faça você mesmo”). Grande parte da atividade laboral (em particular na

economia doméstica) é realizada à margem da produção de mercadorias. Esta última requer a

produçãonão apenasde valoresdeuso,mas tambémde “valoresdeusoparaoutrem”.Não apenas

valoresdeusoparaosenhorfeudalouoarrendador,comofariaoservo,masvaloresdeusodestinados

aoutremporintermédiodomercado.Issoimplica,porém,que“nenhumacoisapodeservalorsemser

objetodeuso.Seelaéinútil,tambémoéotrabalhonelacontido,nãocontacomotrabalhoenãocria,

por isso, nenhum valor” (119). Algumas páginas antes,Marx parece ter dispensado e abstraído os

valoresdeusoparachegaraovalorde trocae,pormeiodeste, aovalor.Masaquieledizque, sea

mercadoria não satisfaz uma carência, um desejo ou uma necessidade humana, ela não tem valor

nenhum!Emsuma,vocêtemdepodervendê-laparaalguémemalgumlugar.

Vamos refletir um instante sobre a estrutura desse argumento. Começamos com o conceito

singular demercadoria e estabelecemos seu caráter duplo: ela tem um valor de uso e um valor de

troca.Osvaloresde troca sãoumarepresentaçãodealgo.Dequê?Umarepresentaçãodevalor,diz

Marx. E valor é tempo de trabalho socialmente necessário.Mas o valor não significa nada, se não

voltaraseconectarcomovalordeuso.Ovalordeusoésocialmentenecessárioparaovalor.Háum

padrãonesseargumento,eeleseparececomoseguinte:

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Vamosconsideraragoraasimplicaçõesdesseargumento.Vocêcompraumamercadoriachamada

casa.Vocêestámaisinteressadoemseuvalordeusoouemseuvalordetroca?Provavelmente,você

estáinteressadoemambos.Masháaquiumaoposiçãopotencial.Sevocêquiserrealizarplenamenteo

valor de troca da casa, terá de ceder o valor de uso a outrem. Se quiser o valor de uso, então

dificilmenteteráacessoaovalordetroca,amenosquefaçaumahipotecareversaouumempréstimo

garantidoporhipoteca.Incrementosnovalordeusodacasasignificamincrementosemseuvalorde

troca potencial? (Uma nova cozinha provavelmente sim; uma construção especial para um hobby

provavelmentenão.)Eoqueacontececomnossomundosocialquandoumacasaquefoiconcebida

sobretudo em termos de valor de uso é reconcebida comouma formade gerar poupança de longo

prazo(ummontantedecapital)paraumafamíliadaclassetrabalhadoraoumesmocomoumveículo

queserá“passadoadiante”porqualquerumque tenhaacessoacréditocomo intuitodeobterum

ganhoespeculativodecurtoprazo?Essadicotomiaentrevalordeusoevalordetrocaémuitoútil!

Vamosconsideraroargumentomaisdetalhadamente.Amercadoria,umconceito singular, tem

doisaspectos.Masnãopodemosdividiramercadoriaaomeioedizerqueumaparteéovalordetroca

e a outra é o valor de uso.Não, amercadoria é uma unidade.Mas dentro dessa unidade há um

aspectodual,eesseaspectodualnospermitedefiniralgochamadovalor–outroconceitounitário–

como tempo de trabalho socialmente necessário, e é a este último que o valor de uso de uma

mercadoriaservedesuporte.Mas,paratervalor,amercadoriatemdeserútil.Essarelaçãoentrevalor

evalordeusosuscitatodotipodequestãosobreaofertaeademanda.Seaofertaémuitogrande,o

valordetrocacai;seaofertaémuitopequena,ovalordetrocasobe–portanto,háaquiumelemento

deofertaedemandaenvolvidonos“aspectosacidentaiserelativos”dovalordetroca.Mas,portrás

dessas flutuações, o valor pode permanecer constante (desde que permaneçam constantes todas as

outrasforçasquedeterminamovalor,porexemploaprodutividade).Marxnãoestátãointeressado

narelaçãoentreofertaedemanda.Oqueelequersaberécomosedeveminterpretarasproporçõesde

trocaentremercadorias–comocamisasesapatos–quandoaofertaeademandaestãoemequilíbrio.

Nesse caso, precisamosdeum tipodiferente de análise que aponte para o valor comogeleia dessa

substância social chamada tempo de trabalho socialmente necessário. Até agora, desconsideramos

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tacitamente,semperceber,ascondiçõesdeofertaedemandanomercadoparafalardosvaloresdas

mercadorias(comofertaedemandaemequilíbrio)comotempodetrabalhosocialmentenecessário.

ComoométododialéticodeMarxfuncionaaqui?Podemosdizerqueosvaloresdetrocaoriginam

ovalor?Sãoos valoresde trocaqueoriginamo valordeuso, ouo inverso?Essanão éuma análise

causal.Eladizrespeitoarelações,arelaçõesdialéticas.Podemosfalardevalordetrocasemfalarde

valordeuso?Não,nãopodemos.Podemos falardevalor semfalardevalordeuso?Não.Emoutras

palavras,nãopodemosfalardenenhumdessesconceitossemfalardosoutros.Elessãomutuamente

dependentes,sãorelaçõesnumatotalidadededeterminadotipo.

Reconheçoqueusarapalavra“totalidade”édesfraldarumaenormebandeiravermelhaemcertos

círculosintelectuais.Marxnãotinhaamenorideiadoqueviriaaseroestruturalismoemenosainda

opós-estruturalismo.Devemostercuidadoaotratardopensamentomarxianoàluzdessascategorias

(ameu ver, ele não se encaixa nelas demodo nenhum). Contudo,Marx certamente ambicionava

entenderomodocapitalistadeproduçãocomoumatotalidade,demodoqueaúnicaquestãoqueé

importaéexatamentequeconceitodetotalidadeeletinhaemmente?Oqueficamossabendonesse

item é que essa totalidade pode ser mais bem apreendida por meio do triunvirato formado pelos

conceitosdevalordeuso,valordetrocaevalor,construídosemtornodamercadoria.Elereconheceu,

porém,queosvaloresdeusosãoincrivelmentediversos,osvaloresdetrocasãoacidentaiserelativose

o valor tem (ou parece ter) uma “objetividade fantasmagórica”, que está sujeita a perpétuas

revoluções impostas por mudanças tecnológicas e reviravoltas nas relações sociais e naturais. Essa

totalidade não é estática e fechada, mas fluida e aberta, portanto em perpétua transformação.

Seguramente,nãosetratadeumatotalidadehegeliana,masnãopodemosacrescentarmaisnadaaté

quetenhamosavançadonaleituradotexto.

Atéaqui,ahistóriapodeserresumidaassim:Marxdeclaraqueseuobjetivoédesvendarasregras

de operação de um modo de produção capitalista. Ele parte do conceito de mercadoria e

imediatamente estabelece seu caráter duplo: valor deuso e valor de troca.Comoos valores deuso

sempre estiveram a nossa volta, eles dizem pouco sobre a especificidade do capitalismo. Portanto,

Marxosdeixadeladoafimdeestudarosvaloresdetroca.Àprimeiravista,arazãodetrocaentreas

mercadoriaspareceacidental,masopróprioatodetrocapressupõequetodasasmercadoriastêmalgo

em comum, algo que as torna comparáveis e comensuráveis. Esse caráter comumdasmercadorias,

comoafirmaMarxenigmaticamente,éofatodeseremtodasprodutodotrabalhohumano.Comotal,

elas incorporam “valor”, definido de início como o trabalho (médio) socialmente necessário para

produzi-las em dadas condições de produtividade. Mas, para que o trabalho seja socialmente

necessário, é precisoque alguém, em algum lugar, queira, necessite oudeseje amercadoria, o que

significaqueovalordeusotemdeserreintroduzidonoargumento.

Naanálisequesesegue,estestrêsconceitos–valordeuso,valordetrocaevalor–sãomantidos

numarelaçãocontínuae, àsvezes, tensaentre si.Marx raramenteconsideraumdesses conceitos à

parte:oqueimportasãoasrelaçõesentreeles.Noentanto,comfrequência,eleexaminaarelaçãoentre

apenas dois deles, e deixa o terceiro tacitamente de lado. Ao estender-se sobre o caráter duplo do

trabalho incorporadonamercadoriano segundo item,Marx foca a relação entreovalordeusodo

trabalhoeovalorqueesse trabalhoútil incorpora (mantendoconstanteovalorde troca).No item

seguinte,eledeixadeladoovalordeusoeexaminaarelaçãoentrevalordetrocaevalorparaexplicar

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a origem e o papel do dinheiro. É importante perceber essas mudanças de foco à medida que o

argumentoédesenvolvido,porqueasafirmaçõesfeitasemcadaitemdependemsempredoconceito

quefoideixadodelado.

Há ainda outro modo de argumentação aqui que exige ser explicado para que possamos

prosseguir.Partindodovalordeusoedovalordetroca–umadicotomia–,Marxchegaaoconceito

unitário de valor, que tem a ver com o trabalho humano, entendido como “tempo de trabalho

socialmentenecessário”(117).Masquetipodetrabalhohumanoésocialmentenecessário?Aprocura

porumarespostarevelaoutradualidade,aquelaentretrabalhoconcreto(efetivo)etrabalhoabstrato

(socialmenterelevante).Essasduasformasdetrabalhoconvergemnovamentenoatounitáriodatroca

demercadorias.Noentanto,oexamedessemomentodatrocarevelaoutradualidade,destavezentre

as formas relativa e equivalente de valor. Esses doismodos de expressão do valor são reunidos no

surgimento de uma mercadoria – a mercadoria-dinheiro – que funciona como um equivalente

universal em relação a todas as outras. O que vemos aqui é um padrão na argumentação, um

desenvolvimentogradualdoargumentoquefuncionaporoposiçõesconvertidasemunidades(comoa

forma-dinheiro) que interiorizam uma contradição, a qual, por sua vez, gera outra dualidade (a

relaçãoentreprocessosecoisas,asrelaçõesmateriaisentrepessoaseasrelaçõessociaisentrecoisas).

EsseéométododialéticoqueMarxutilizanessaargumentaçãoe,comoveremos,emtodoOcapital.

Apresentamosabaixotalpadrãodeargumentaçãonumdiagramasimples:

Omapeamentodaargumentaçãofacilitamuitoacompreensãodoconjunto.Torna-semaisfácil

situar o conteúdo dos itens na linha geral do argumento. Isso não é lógica hegeliana em sentido

estrito,porquenãoháummomentofinaldesíntese,apenasummomentotemporáriodeunidadena

qual é interiorizada outra contradição – uma dualidade – que, para ser compreendida, exige um

desenvolvimento subsequente do argumento. É assim que o processo de representação deMarx se

desdobran’O capital – e trata-se de fatodeumdesdobramento, e nãodeumadedução lógica.Ele

constróiumaestruturaargumentativaemtornodaqualtodosostiposdequestõesconceituaispodem

ser acomodados, demodo que, àmedida que avançamos, temos uma compreensão cada vezmais

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ampladasrelaçõesinternasquemantêmocapitalismoemperpétuoestadodeunidadecontraditória

e,portanto,emperpétuomovimento.

Item2:Oduplocaráterdotrabalhorepresentadonasmercadorias

Marxiniciaesseitemcomamodestaafirmaçãodeque“essanaturezadupladotrabalhocontido

namercadoriafoicriticamentedemonstradapelaprimeiravezpormim.Comoessepontoéocentro

emtornodoqualgiraoentendimentodaeconomiapolítica,eledeveserexaminadomaisdeperto”

(119). Como no item 1, ele parte dos valores de uso. Estes são produtos físicos, produzidos por

trabalhoútil,“concreto”.Aenormeheterogeneidadedasformasdeprocessosdetrabalhoconcreto–

alfaiataria,sapataria,fiação,tecelagem,agriculturaetc.–éimportanteporque,semela,nãohaveria

base para nenhum ato de troca (pois obviamente ninguém quer trocar produtos similares) ou

nenhumadivisãosocialdotrabalho.

Valoresdeusonãopodem se confrontar comomercadorias senelesnão residem trabalhosúteis qualitativamentediferentes.Numa

sociedadecujosprodutosassumemgenericamenteaformadamercadoria,istoé,numasociedadedeprodutoresdemercadorias,essa

diferença qualitativa dos trabalhos úteis, executados separadamente uns dos outros como negócios privados de produtores

independentes,desenvolve-secomoumsistemacomplexo,umadivisãosocialdotrabalho.(120)

Marx introduz aqui um temametodológico que repercute em todos os capítulos: omovimento

quevaidasimplicidadeàmaiorcomplexidade,dossimplesaspectosmolecularesdeumaeconomiade

troca até uma compreensão mais sistêmica. Desse modo, ele se desvia da regra de olhar para as

relaçõesa fimdeexaminaraspropriedadesuniversaisdotrabalhoútil.Efaz issoporqueotrabalho,

“como criador de valores de uso, como trabalho útil [...] é, assim, uma condição de existência do

homem,independentedetodasasformassociais”.Otrabalhoútiléuma“eternanecessidadenatural

demediaçãodometabolismoentrehomemenaturezae,portanto,davidahumana”(120).

Essaideiade“metabolismo”,emqueotrabalhoservedemediadorentreaexistênciahumanaea

natureza, é central para o argumentomaterialista-histórico deMarx.Ele retornará a essa ideia em

diversos pontos d’O capital, embora nunca a desenvolva plenamente. Isso também é típico de seu

procedimento.Oqueeledizé:“Veja,háalgoimportanteaqui,vocêdeveriapensarsobreisso[nesse

caso,arelaçãocomanatureza].Nãoexaminareiessaquestãoemtodososseusdetalhes,mas,antesde

passar a outras matérias de interesse mais imediato, quero destacar que ela é significativa”. “Os

valores de uso”, diz ele, “são nexos de dois elementos: matéria natural e trabalho”. Por isso, “ao

produzir, o homem pode apenas proceder como a própria natureza” (120). Este é outro ponto

fundamental:tudoquefizermostemdeserconsistentecomaleinatural.

[Podemos]apenasalteraraformadasmatérias.Maisainda:nesseprópriotrabalhodeformaçãoeleéconstantementeamparadopelas

forçasdanatureza.Portanto,otrabalhonãoéaúnicafontedosvaloresdeusoqueeleproduz,aúnica fontedariquezamaterial.O

trabalhoéopaidariquezamaterial,comodizWilliamPetty,eaterraéamãe.(120-1)

Com a ajuda dessa metáfora geracional – que remonta, nomínimo, a Francis Bacon –,Marx

introduzumadistinçãocrucialentreriqueza(ototaldevaloresdeusosobocomandodealguém)e

valor(otemposocialmentenecessáriodetrabalhoqueessesvaloresdeusorepresentam).

Marxretorna,então,àquestãodosvaloresparacompararsuahomogeneidade(todossãoproduto

do trabalho humano) com a vasta heterogeneidade dos valores de uso e das formas concretas de

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trabalho.Dizele:

Alfaiatariaetecelagem,emboraatividadesprodutivasqualitativamentedistintas,sãoambasdispêndioprodutivodecérebro,músculos,

nervos,mãos etc. humanos e, nesse sentido, ambas são trabalho humano. Elas não sãomais do que duas formas diferentes de se

despenderforçahumanadetrabalho.Noentanto,aprópriaforçahumanadetrabalhotemdeestarmaisoumenosdesenvolvidapara

poder ser despendida desse ou daquele modo.Mas o valor da mercadoria representa unicamente trabalho humano, dispêndio de

trabalhohumano.(121-2)

Isso é o queMarx chamade trabalho “abstrato” (59-61).Esse tipo de generalidade do trabalho

contrastacomamiríadede trabalhosconcretosqueproduzemvaloresdeusoefetivos.Aocriaresse

conceitodetrabalhoabstrato,Marxafirmaqueestáapenasespelhandoumaabstraçãoproduzidapor

umintercâmbioextensivodemercadorias.

Assim,eleconceituaovaloremtermosdeunidadesdetrabalhoabstratosimples;essepadrãode

medida “varia, decerto, seu caráter em diferentes países e épocas culturais, porém é sempre dado

numasociedadeexistente”.Aquiencontramosmaisumavezumaestratégiaadotadacomfrequência

n’Ocapital.O padrão demedida é contingente no espaço e no tempo,mas, para os propósitos da

análise, é assumido como dado. Além disso, prossegueMarx, “trabalhomais complexo vale apenas

como trabalho simples potenciado ou, antes,multiplicado, de modo que uma quantidade menor de

trabalhocomplexoéigualaumaquantidademaiordetrabalhosimples”:

Queessa reduçãoocorraconstantementeéalgomostradopelaexperiência.Mesmoqueumamercadoria sejaoprodutodotrabalho

mais complexo, seu valor a equipara ao do produto do trabalhomais simples [...]. Para fins de simplificação, de agora em diante

consideraremos todo tipo de força de trabalho diretamente como força de trabalho simples, com o que apenas nos poupamos o

esforçoderedução.(122)

Marx jamais especificaqual “experiência” tememmente,oque torna essapassagemaltamente

controversa.Naliteraturaespecializada,elaéconhecidacomoo“problemadaredução”,poisnãofica

clarocomootrabalhoqualificadopodesereéreduzidoaotrabalhosimples,independentementedo

valor da mercadoria produzida. Tal como na proposição sobre o valor como tempo de trabalho

socialmentenecessário,aformulaçãodeMarxpareceenigmática,senãodisplicente.Elenãoexplica

como a redução é feita, simplesmente supõe, para os propósitos da análise, que isso é assim e

prosseguecomtalbase.Issosignificaqueasdiferençasqualitativasqueexperimentamosnotrabalho

concreto, útil, e a heterogeneidade deste são reduzidas aqui a algo puramente quantitativo e

homogêneo.

OqueMarxdefende,claro,équeosaspectosabstrato(homogêneo)econcreto(heterogêneo)do

trabalhosãounificadosnoatolaboralunitário.Nãoécomoseotrabalhoabstratoocorresseemuma

parte da fábrica e o trabalho concreto em outra. A dualidade reside no interior de um processo

singulardetrabalho,porexemplonafabricaçãodeumacamisa,queincorporaovalor.Issosignifica

quenãosónãopodehaver incorporaçãodevalorsemotrabalhoconcretodeconfeccionarcamisas,

comotambémnãopodemossaberoqueéovaloranãoserqueascamisassejamtrocadasporsapatos,

maçãs, laranjas e assimpordiante.Há,portanto,uma relaçãoentre trabalhoconcretoe abstrato.É

atravésdamultiplicidadedetrabalhosconcretosquesurgeopadrãodemedidadotrabalhoabstrato.

Todotrabalhoé,porumlado,dispêndiodeforçahumanadetrabalhoemsentidofisiológicoe,graçasaessapropriedadedetrabalho

humanoigualouabstrato,elegeraovalordasmercadorias.Poroutrolado,todotrabalhoédispêndiodeforçahumanadetrabalho

numaformaespecíficae,graçasaessapropriedadedetrabalhoconcretoeútil,eleproduzvaloresdeuso.(124)

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Notequeesseargumentorefleteodoprimeiroitem.Amercadoriasingularinteriorizavaloresde

uso,valoresdetrocaevalores.Umprocessodetrabalhoparticularincorporatrabalhoconcretoútile

trabalhoou valor abstrato (tempode trabalho socialmentenecessário)numamercadoriaque seráo

suportedovalorde trocanomercado.Arespostaaoproblemadecomoo trabalhoespecializadoou

“complexo”podeserreduzidoaotrabalhosimpleséparcialmentefornecidanoitemseguinte,quando

Marxacompanhaamercadoriaatéomercadoetratadarelaçãoentrevalorevalordetroca.Passemos,

então,aoitem3.

Item3:Aformadevalorouvalordetroca

Ameuver,esseitemincluiumaenormequantidadedematerialenfadonho,quemuitofacilmente

podeesconderaimportânciadoargumentoprincipal.Comoeujádisse,àsvezesMarxvesteabecado

contabilista,eoresultadoéumaexposiçãoquepodeserabsolutamentetediosa:quandoissoéigual

àquilo e aquilo é igual a isso e isso custa trêspence e aquilo quinze, o resultado é que outra coisa

equivale a... e assim por diante, com o apoio de todo tipo de ilustração numérica.O problema de

considerarosdetalhesemvezdeseconcentrarnavisãodeconjunto–queocorrecomfrequênciaem

Marx–aparecepotencializadoaqui,oquetornaaconselhávelmostrarcomodevemoslidarcomele.

Tratareidessaquestãoemdoisníveis: tomareiumargumento simples, técnico, eentãocomentarei

seusignificadomaisprofundo.

OobjetivodeMarxéexplicaraorigemda forma-dinheiro.Dizele (maisumavezcomamaior

modéstiadomundo!):

Cabe,aqui,realizaroquejamaisfoitentadopelaeconomiaburguesa,asaber,provaragênesedessaforma-dinheiro,portantoseguirde

pertoodesenvolvimentodaexpressãodevalorcontidanarelaçãodevalordasmercadorias,desdesuaformamaissimpleseopacaatéa

ofuscanteforma-dinheiro.Comisso,desaparece,aomesmotempo,oenigmadodinheiro.(125)

Elerealizaessatarefanumasériedepassosdesajeitados,começandocomumasimplessituaçãode

escambo.Eutenhoumamercadoria,vocêtemumamercadoria.Ovalorrelativodaminhamercadoria

seráexpressoemtermosdovalor(otrabalhoincorporado)damercadoriaquevocêpossui.Assim,sua

mercadoria será amedida de valor daminhamercadoria. Invertendo a relação,minhamercadoria

podeservistacomoovalorequivalentedasua.Emsituaçõessimplesdeescambo,todoindivíduoque

tenhaumamercadoriapossui algocomvalor relativoe estáàprocurade seuequivalenteemoutra

mercadoria. Assim como existem tantas mercadorias quanto pessoas e trocas, existem tantos

equivalentesquantomercadoriasetrocas.OqueMarxquermostraréqueoatodetrocatemsempre

um caráter duplo – os polos das formas relativa e equivalente – no qual amercadoria equivalente

figura“comoincorporaçãodetrabalhohumanoabstrato”(134).Aoposiçãoentrevalordeusoevalor,

até aqui interiorizada na mercadoria, “é representada, assim, por meio de uma oposição externa”

entreumamercadoriaqueéumvalordeusoeoutraquerepresentaseuvalornatroca(137).

Num terreno complexo de trocas como é o mercado, minha mercadoria tem inúmeros

equivalentes potenciais e, inversamente, todomundo tem valores relativos numa relação potencial

commeuequivalentesingular.Umacomplexidadecadavezmaiorentreasrelaçõesdetrocaproduz

uma“formadesdobrada”devalorqueseconvertenuma“formauniversal”devalor(§b,138-41,e§c,

141-5).Esta secristaliza,por fim,num“equivalenteuniversal”:umamercadoriaquedesempenhao

papelexclusivodemercadoria-dinheiro(§d,145-6).Amercadoria-dinheirosurgedeumsistemade

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trocas, e não o precede, demodo que a proliferação e a generalização das relações de troca são a

condiçãonecessária,crucial,paraacristalizaçãodaforma-dinheiro.

NaépocadeMarx,mercadoriascomooouroeapratadesempenhavamessepapelcrucial,masem

princípio ele poderia ser desempenhadopor conchas de caurim, latas de atumou– como às vezes

ocorre, emcondiçõesdeguerra–cigarros,barrasdechocolate etc.Umsistemademercado requer

umamercadoria-dinheirodealgumtipoparafuncionar,masumamercadoria-dinheirosópodesurgir

comoadventodatrocamercantil.Odinheironãofoiimpostodefora,tampoucofoiinventadopor

alguémqueimaginouqueseriaumaboaideiaterumaforma-dinheiro.Mesmoformassimbólicas,diz

Marx,têmdeserentendidasnessecontexto.

Isso leva uma interessante questão interpretativa que se apresenta várias vezes n’O capital: a

argumentação de Marx é histórica ou lógica? Penso que a evidência histórica que sustenta essa

explanação sobre o surgimento da mercadoria-dinheiro seria considerada, em nossos dias, pouco

convincente. Sistemas emercadorias semimonetários, ícones religiosos, emblemas simbólicos etc. já

existiam haviamuito tempo e expressavam algum tipo de relação social, sem que fosse necessária

qualquer relaçãoprimitiva comas trocasdemercadorias,nemmesmoquando foramgradualmente

introduzidos nessas trocas. Se consultássemos os registros arqueológicos e históricos, muitos deles

mostrariamprovavelmentequea forma-dinheironãosurgiudamaneiraqueMarxpropõe.Tendoa

aceitar esse argumento, porém acrescento o seguinte – e isso remete ao interesse de Marx em

entender o modo de produção capitalista: sob o capitalismo, a forma-dinheiro tem de estar

disciplinadaealinhadacomaposiçãológicadescritaporMarx,demodoqueaforma-dinheiroreflita

asnecessidadesdeumsistemaderelaçõesdetrocaquesepropagacadavezmais.Contudo,ooutro

lado da moeda (desculpe o trocadilho) mostra que é a propagação das relações de troca de

mercadoriasquedisciplinatodaequalquer formasimbólicaprecedenteà forma-dinheironecessária

para facilitar as trocas mercantis. Os precursores da forma-dinheiro, que podem de fato ser

encontradosnos registrosarqueológicosehistóricosdacunhagemdemoedas, têmde seadequara

essalógica,apontodeseremabsorvidosnocapitalismoededesempenharemafunçãodedinheiro.Ao

mesmo tempo, deve estar claro que o mercado não poderia ter evoluído sem esse processo de

disciplinamento.Mesmoqueoargumentohistóricosejafraco,oargumentológicoépoderoso.

Assim,esseitemestabeleceemseuconjuntoarelaçãonecessáriaentreatrocademercadoriasea

mercadoria-dinheiro, além do papel de determinação mútua que cada uma delas cumpre no

desenvolvimento da outra.Mas hámuitos outros aspectos nesse itemquemerecemnossa atenção.

Logonasprimeiraslinhas,Marxdescrevecomo

A objetividade do valor das mercadorias é diferente de Mistress Quickly

[b]

, na medida em que não se sabe por onde agarrá-la.

Exatamenteaocontráriodaobjetividadesensívelecruadoscorposdasmercadorias,naobjetividadedeseuvalornãoestácontidoum

únicoátomodematérianatural.Porisso,pode-sevirarerevirarumamercadoriacomosequeira,eelapermaneceinapreensívelcomo

coisadevalor[Wertding].Lembremo-nos,todavia,dequeasmercadoriaspossuemobjetividadedevalorapenasnamedidaemquesão

expressõesdamesmaunidadesocial,dotrabalhohumano,poissuaobjetividadedevalorépuramentesociale,porisso,éevidenteque

elasópodesemanifestarnumarelaçãosocialentremercadorias.(125)

Este éumponto absolutamentevital,quenãopodemosdeixarde enfatizar:o valor é imaterial,

porém objetivo. Dada a suposta adesão de Marx a um materialismo rigoroso, esse argumento é

surpreendente,edevemosnosdeterumpoucoemseusignificado.Ovaloréumarelaçãosocial,enão

podemos ver, tocar ou sentir diretamente as relações sociais; no entanto, elas têm uma presença

objetiva.Épreciso,portanto,examinarcomcuidadoessarelaçãosocialesuaexpressão.

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Marxpropõe a seguinte ideia: os valores, sendo imateriais, nãopodemexistir semummeiode

representação.Éoadventodosistemamonetário,daprópriaforma-dinheirocomomeiotangívelde

expressão,quefazdovalor(comotempodetrabalhosocialmentenecessário)oreguladordasrelações

detroca.Masaforma-dinheirosóseaproximadovalorexpresso–passoapasso,dadooargumento

lógico – à medida que as relações de troca de mercadorias se propagam. Portanto, não existe

nenhuma entidade universal externa chamada “valor” que, depois de muitos anos de luta, é

finalmente expressa pormeio da trocamonetária.O que existe é uma relação interna e recíproca

entreoadventodaforma-dinheiroeasformas-valores.Osurgimentodatrocademercadoriasfazcom

queotempodetrabalhosocialmentenecessáriosetorneaforçanorteadoranointeriordomodode

produção capitalista. Desse modo, o valor como tempo de trabalho socialmente necessário é algo

historicamenteespecíficoaomododeproduçãocapitalista.Elesurgeapenasnumasituaçãoemqueo

mercadocumpreatarefaqueseexigedele.

DaanálisedeMarxresultamduasconclusõeseumaquestãoimportante.Aprimeiraconclusãoé

que as relações de troca, longe de ser epifenômenos que expressam a estrutura profunda do valor,

existemnumarelaçãodialéticacomosvalores,demodoqueestesdependemdaquelas,tantoquanto

aquelasdependemdestes.Asegundaconclusãoconfirmaostatusimaterial(fantasmagórico),porém

objetivo,doconceitodevalor.Todasastentativasdemedirdiretamenteovalorestãocondenadasao

fracasso.Aquestãodizrespeitoaograudeconfiabilidadeeprecisãodarepresentaçãomonetáriado

valorou,emoutraspalavras,acomoarelaçãoentre imaterialidade(valor)eobjetividade(talcomo

capturadapelarepresentaçãomonetáriadovalor)desdobra-senarealidade.

Marxtratadesseproblemanumasériedepassos.Comenta:“Somenteaexpressãodeequivalência

de diferentes tipos de mercadoria evidencia o caráter específico do trabalho criador de valor, ao

reduzirosdiversostrabalhoscontidosnasdiversasmercadoriasàquiloquelhesécomum:otrabalho

humano em geral” (65). Aqui encontramos uma resposta parcial à questão sobre como ocorre a

reduçãodetrabalhohumanoespecializadoecomplexoatrabalhohumanosimples.Maseleprossegue:

“A força humana de trabalho em estado fluido” – e é impressionante a frequência com queMarx

invocao conceitode fluidezn’Ocapital – “ou trabalhohumano, cria valor,masnão é, ela própria,

valor. Ela se torna valor em estado cristalizado, em forma objetiva” (128). Portanto, é preciso

estabelecerumadistinçãoentreoprocessodetrabalhoeacoisaqueéproduzida.Essaideiadeuma

relaçãoentreprocessosecoisas,juntamentecomaideiadefluidez,éimportantenaanálisedeMarx.

Quanto mais as invoca, mais se distancia da dialética como lógica formal e se aproxima de uma

dialéticacomofilosofiadoprocessohistórico.Otrabalhohumanoéumprocessotangível,masnofim

desseprocessochegamosaestacoisa–umamercadoria–que“coagula”ou“cristaliza”valor.Embora

sejaoprocessoefetivooqueimporta,acoisaéquetemvalor,acoisaéquepossuiqualidadesobjetivas.

Assim:“Paraexpressarovalordolinhocomogeleiadetrabalhohumano,elatemdeserexpressacomo

uma‘objetividade’materialmentedistintadoprópriolinhoesimultaneamentecomumaolinhoea

outrasmercadorias”(128).

Oproblemaé:comoérepresentadoovalor,essa“objetividadematerialmentedistintadopróprio

linho”?Arespostaestánaformadamercadoria-dinheiro.Mas,observaele,háalgumaspeculiaridades

nessa relação entre o valor e sua expressão na forma-dinheiro. “A primeira peculiaridade que se

sobressainaconsideraçãodaformaequivalente”,dizMarx,équeumvalordeusoparticular“setorna

aformademanifestaçãodeseucontrário,dovalor”,eisso“escondeemsiumarelaçãosocial”(133-4).

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Daí o caráter enigmático da forma de equivalente, que só salta aos olhos crus do economista político quando aparece para ele já

pronta, no dinheiro. Então, ele procura escamotear o carátermístico do ouro e da prata, substituindo-os pormercadoriasmenos

ofuscantes, e, com prazer sempre renovado, põe-se a salmodiar o catálogo inteiro da populaça de mercadorias que, em épocas

passadas,desempenharamopapeldeequivalentedemercadorias.(134)

“Ocorpodamercadoria”,continuaele,“queservedeequivalentevalesemprecomoincorporação

detrabalhohumanoabstratoeésempreoprodutodedeterminadotrabalhoútil,concreto”(134).O

que issoquerdizer?Oouro,porexemplo,éumvalordeusoespecífico,umamercadoriaespecífica,

produzidasobcondiçõesespecíficasdeprodução,e,noentanto,nósoutilizamoscomoummeiode

expressãodetodotrabalhohumanoemqualquerparte–nóstomamosumvalordeusoparticulareo

usamos como um substituto para todo o trabalho social. Isso gera questões complicadas, como

veremosaonosaprofundarnateoriadodinheiro,nocapítulo2.

A segunda peculiaridade é que “o trabalho concreto se torna forma de manifestação de seu

contrário, de trabalho humano abstrato”, e a terceira peculiaridade é que, “embora seja trabalho

privado como todos os outros, trabalho que produz mercadorias, ele é trabalho em forma

imediatamente social” (135). Isso significa não apenas que o equivalente universal, a mercadoria-

dinheiro,estásujeitoaproblemasqualitativosequantitativosinerentesàproduçãodequalquervalor

de uso,mas tambémque a produção e a comercialização damercadoria-dinheiro, assim como sua

acumulação (eventualmente como capital), estão emmãos privadas até quando desempenham sua

função social universalizante.Quando o ouro ainda era umamercadoria dominante e servia como

lastrododinheiroglobalno fimdosanos1960,porexemplo,osdoisprincipaisprodutoresdeouro

eram aÁfrica do Sul e aRússia, e nenhumdos dois era particularmente simpático ao capitalismo

internacional.Adesmaterializaçãodetodoosistemafinanceiro,noiníciodosanos1970,eosistema

de câmbio flutuante, livre do padrão-ouro, tiveram como consequência o enfraquecimento dos

produtoresdeouro(emboraessanãofossearazãoprincipaldesseprocesso).

ÉessetipodecontradiçãoqueaanálisedeMarxnoslevaacontemplar,everemosmaisadiante–

em particular no Livro III, mas também no capítulo 3 do Livro I – como essas peculiaridades e

contradições começam a semanifestar na criação de possibilidades de crises financeiras. Em todo

caso,aconclusãofundamentaléquearelaçãoentreosvaloresesuarepresentaçãonaforma-dinheiro

é cheia de contradições, de modo que não podemos nunca supor uma forma perfeita de

representação. Esse desencontro, por assim dizer, entre valores e sua representação acaba tendo

algumasvantagens,aindaqueprofundamenteproblemáticas,comoveremos.

IssonoslevaaumaimportantepassagemsobreAristóteles.“Atroca”,dizAristóteles,“nãopodese

darsemaigualdade,masaigualdadenãopodesedarsemacomensurabilidade”

[2]

.

Arelaçãoentreas formasrelativaeequivalentedevalorpressupõeuma igualdadeentreaqueles

querealizamastrocas.Esseatributodeigualdadenointeriordosistemademercadoéextremamente

importante;paraMarx, eleé fundamentalparaomodocomoocapitalismo funciona teoricamente.

Aristóteles também entendeu a necessidade da comensurabilidade e da igualdade nas relações de

troca, mas não podia imaginar o que havia por trás disso. Por que não? Marx responde que “a

sociedade grega se baseava no trabalho escravo e, por conseguinte, tinha como base natural a

desigualdadeentreoshomense suas forçasde trabalho” (135-6).Numa sociedadeescravagistanão

podehaverumateoriadovalordotipodaquelaqueencontramosnocapitalismo.Note,maisumavez,

aespecificidadehistóricadateoriadovalorparaocapitalismo.

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IssofazcomqueMarxretorneàstrêspeculiaridadesdaforma-dinheiroa fimde identificarsua

oposiçãoemergente:

Aoposiçãointernaentrevalordeusoevalor,contidanamercadoria,érepresentada,assim,pormeiodeumaoposiçãoexterna,istoé,

pelarelaçãoentreduasmercadorias,sendoaprimeira–cujovalordeveserexpresso–consideradaimediataeexclusivamentecomovalor

deuso,easegunda–naqualovaloréexpresso–imediataeexclusivamentecomovalordetroca.(137)

Essaoposiçãoentreaexpressãodevaloreomundodasmercadorias,oposiçãoqueresultanuma

“antinomia”entremercadoriasedinheiro,temdeserinterpretadacomoumaexteriorizaçãodealgo

queestáinteriorizadonaprópriamercadoria.Umavezexteriorizada,aoposiçãosetornaexplícita.A

relaçãoentremercadoriasedinheiroéumprodutodaqueladicotomiaentrevalordeusoevalorde

trocaqueidentificamoscomointernaàmercadorianoiníciodenossaexposição.

Oqueconcluímosdisso?Primeiro,o tempodetrabalhosocialmentenecessárionãopodeoperar

como regulador daquilo que está ocorrendo diretamente, porque é uma relação social. Ele faz isso

indiretamente, por meio da forma-dinheiro. Além disso, o surgimento da forma-dinheiro é o que

permitequeovalorcomeceasecristalizarcomoprincípionorteadordofuncionamentodaeconomia

capitalista.E,ésemprebomlembrar,ovaloréimaterial,porémobjetivo.Ora,issocriaumasériede

problemas para a lógica do senso comum, que supõe que o valor pode ser efetivamente medido;

mesmoalgunseconomistasmarxistasconsomemumtempoinestimávelexplicandocomoconseguem

fazê-lo.Meuargumentoé:issoéimpossível.Seovaloréimaterial,nãohácomomedi-lodiretamente.

Encontrarvalornumamercadoriaapenasolhandoparaelaécomotentardescobriragravidadenuma

pedra.Ovalorsóexisteemrelaçõesentremercadoriasesópodeserexpressomaterialmentenaforma

contraditóriaeproblemáticadamercadoria-dinheiro.

RefletiremosumbrevemomentosobreostatusqueMarxatribuiaostrêsconceitosfundamentais

de valor de uso, valor de troca e valor. Apresentarei ao mesmo tempo minhas próprias reflexões,

derivadasdeinteressesespecíficos,quevocêpodeaceitarourejeitar,comobementender.Essestrês

conceitosdiversosincorporamreferentesespaçotemporaisfundamentalmentedistintos.Osvaloresde

uso existem nomundo físicomaterial das coisas, que pode ser descrito nos termos newtonianos e

cartesianos de um espaço e um tempo absolutos. Os valores de troca se situam no espaço-tempo

relativodomovimentoedatrocademercadorias,aopassoqueosvalores sópodemserentendidos

nostermosdoespaço-temporelacionaldomercadomundial.(Ovalorimaterialrelacionaldotempo

de trabalho socialmente necessário surge no espaço-tempo mutável do desenvolvimento global

capitalista.)Noentanto,comoMarxmostroudemodoconvincente,osvaloresnãopodemexistirsem

valoresdetroca,eatrocanãopodeexistirsemvaloresdeuso.Ostrêsconceitossãodialeticamente

integradosunsaosoutros.

Do mesmo modo, as três formas de espaço-tempo – absoluto, relativo e relacional – estão

dialeticamente correlacionadas no interior da dinâmica histórico-geográfica do desenvolvimento

capitalista.Esseémeuargumentocomogeógrafo.Umadasprincipaisconsequênciaséqueoespaço-

tempodocapitalismonãoéconstante,masvariável(comomostraaaceleração–eaquiloqueMarx

chamade“anulaçãodoespaçopelotempo”

[c]

–provocadapelasconstantesrevoluçõesnotransportee

nascomunicações).Nãopossodeixardeintroduzir issonadiscussãoparaquevocêfaçasuaprópria

avaliação!Mas,sequiserseaprofundarnaquestãodadinâmicaespaçotemporaldocapitalismo,terá

deprocuraremoutrolugar

[3]

.

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Item4:Ocaráterfetichistadamercadoriaeseusegredo

Esseiteméescritonumestilocompletamentediferente,quaseliterário–evocativoemetafórico,

imaginativo,lúdicoeemotivo,cheiodealusõesereferênciasamágica,mistériosenecromancias.Ele

contrastacomosóbrioestiloexplanativodoitemanterior.Issoécaracterísticodatáticaempregada

porMarxaolongod’Ocapital;elealternaosestilosdeacordocomoassuntoabordado.Nessecaso,a

alternância pode criar confusão quanto à relevância do conceito de fetichismo no conjunto da

argumentação deMarx (uma confusão agravada pelo fato de que esse item foi transferido de um

apêndice da primeira edição para a posição atual – assim como o item3 – somente na segunda e

definitivaediçãod’Ocapital).Osinteressadosemdesenvolverumateoriapolítico-econômicarigorosa

apartirdeMarx,porexemplo,costumamverofetichismocomoumconceitoestranho,quenãodeve

ser levadomuito a sério.Por outro lado, aqueles de convicçãomais filosófica ou literária tratamo

fetichismomuitasvezescomoapepitadeouro,omomentofundamentaldoentendimentodeMarxa

respeitodomundo.Assim,umadasperguntasque temosde fazeré:dequemaneiraesse itemestá

relacionadocomoconjuntodaargumentaçãodeMarx?

Oconceitodefetichismojáfoiassinaladoemsuadiscussãoacercadomodocomocaracterísticas

importantes do sistema político-econômico são “escondidas” ou confundidas por meio das

“antinomias” e “contradições” entre, por exemplo, as particularidades damercadoria-dinheiro, por

umlado,eauniversalidadedosvaloresfantasmagóricos,poroutro.Tensões,oposiçõesecontradições

apresentadasanteriormentenotextoretornamagoraparaumexamedetalhadonotítulo“Ocaráter

fetichistadamercadoriaeseusegredo”(146).Norestanted’Ocapital,comoveremos,oconceitode

fetichismo aparece várias vezes (em geral, mais implícita do que explicitamente) como uma

ferramenta essencial para desvendar os mistérios da economia política capitalista. Por essa razão,

considero o conceito de fetichismo fundamental tanto para a economia política como para o

argumentodeMarxemseuconjunto.Defato,eleseuneindissoluvelmenteaambos.

Aanáliseéfeitaemdoispassos.Primeiro,eleidentificacomoofetichismosurgeeoperacomoum

aspecto fundamentale inevitáveldavidapolítico-econômicasobocapitalismo.Emseguida,analisa

como esse fetichismo é enganosamente representado no pensamento burguês, em geral, e na

economiapolíticaclássica,emparticular.

Amercadoria,dizeleparacomeçar,é“plenadesutilezasmetafísicasemelindresteológicos”:“O

caráter misterioso da forma-mercadoria consiste [...] simplesmente no fato de que ela reflete aos

homensoscaracteressociaisdeseuprópriotrabalhocomocaracteresobjetivosdosprópriosprodutos

dotrabalho,comopropriedadessociaisquesãonaturaisaessascoisas”(146-7).Oproblemaéque“a

forma-mercadoriaearelaçãodevalordosprodutosdotrabalhoemqueelaserepresentanãotem,ao

contrário, absolutamente nada a ver com sua natureza física e com as relaçõesmateriais que dela

resultam”.Nossaexperiênciasensíveldamercadoriacomovalordeusonãotemnadaavercomseu

valor. Asmercadorias são, portanto, “coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais”.O resultado é que

uma “relação social determinada entre os próprios homens [...] assume, para eles, a forma

fantasmagóricadeumarelaçãoentrecoisas”.Eéessacondiçãoquedefineo“fetichismo,quesecola

aosprodutosdotrabalhotãologosãoproduzidoscomomercadoriaseque,porisso,éinseparávelda

produçãodemercadorias”(147-8).

Issoacontece,diz ele,porque“osprodutores só travamcontato socialmediantea trocade seus

produtosdotrabalho”,demodoque“oscaracteresespecificamentesociaisdeseustrabalhosprivados

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aparecemapenasnoâmbito”datrocamercantil.Emoutraspalavras,elesnãosabemnempodemsaber

qualéovalordesuamercadoriaantesdelevá-laaomercadoeefetivarsuatroca.“Aestesúltimos[os

produtores], as relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem como aquilo que elas são.”

Note especialmente este trecho: aparecem como aquilo que elas são, “isto é, não como relações

diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas como relações reificadas entre

pessoaserelaçõessociaisentrecoisas”(148).

Oque está emquestão aqui?Digamos que você vá ao supermercado para comprar alface. Para

comprá-la, tem de desembolsar certa quantia de dinheiro. A relaçãomaterial entre o dinheiro e a

alfaceexpressaumarelaçãosocial,porqueopreço–o“quanto”–ésocialmentedeterminado,éuma

representaçãomonetáriadovalor.Oqueestáportrásdessatrocamercantildecoisaséumarelação

entre você, o consumidor, e os produtores diretos, aqueles que trabalharampara produzir a alface.

Paracompraraalface,vocênãoprecisa conhecero trabalhodaquelesque incorporaramvalora ela;

contudo, em sistemas altamente complexos de troca, é impossível conhecer a atividade dos

trabalhadores,eéissoquetornaofetichismoinevitávelnomercadomundial.Oresultadoéquenossa

relação social com as atividades laborais dos outros é dissimulada em relações entre coisas. No

supermercado, por exemplo, você não tem como saber se a alface foi produzida por trabalhadores

satisfeitos,miseráveis,escravos,assalariadosouautônomos.Aalfaceémuda,porassimdizer,noque

dizrespeitoacomofoiproduzidaeaquemaproduziu.

Por que isso é importante? Quando eu lecionava cursos introdutórios de geografia na

UniversidadeJohnsHopkins,semprecomeçavaperguntandoaosalunosdeondetinhavindoseucafé

da manhã. Eles geralmente diziam algo como: “Comprei na padaria”. Mas quando eu pedia que

pensassemmais além, eles acabavam vislumbrando um extenso mundo de trabalho, em ambientes

geográficosesobcondiçõessociaisradicalmentediferentes,dosquaisnãosabiamnada,nempodiam

saber,quandoolhavamos ingredientesde seucafédamanhãou iamàpadaria.Opão,oaçúcar,o

café,o leite, as xícaras, as facas,osgarfos, as torradeiras eospratosdeplástico–paranão falarda

maquinaria e dos equipamentos necessários para produzir todas essas coisas – conectavam-nos a

milhões de trabalhadores ao redor domundo.Uma das tarefas do ensino da geografia é despertar

nossa consciência para a variedade de condições socioambientais, interligações espaciais e práticas

laboraisenvolvidasemcadaaspectodavidacotidiana,mesmonoatodiáriodeprepararumsimples

cafédamanhã.

Muitasvezes,osalunostinhamaimpressãodequemeuobjetivoerafazê-lossesentirculpadospor

nãoprestaratençãoaospobrescortadoresdecanadaRepúblicaDominicana,quenãorecebiamquase

nadaporseutrabalho.Quandochegavamaesseponto,costumavamdizer:“Professor,eunãotomei

cafédamanhãhoje!”.Eeucostumavaresponderqueelestalvezgostassemdepassarumasemanasem

almoço,lancheejantar,apenasparasentirnapeleaverdadedaregramarxianabásicadequetemos

decomerparaviver.

Questõesdessetipolevamaaspectosmorais.Háaquelesque,porváriasrazões,propõemtodotipo

de códigomoral nas relações interpessoais,mas não sabem se e como devem estender esse código

moralaocampodatrocademercadoriasnomercadomundial.Nãohánenhumproblemaemquerer

manter“boas”relaçõescomopróximoouserprestativocomovizinho,masqualéovalordissosenão

nos preocupamos nem um pouco com todos aqueles que não conhecemos e jamais conheceremos,

emboratenhamumpapelvitalparanós,fornecendonossopãodiário?Essasquestõessãolevantadas,

porexemplo,pelomovimentoafavordo“comérciojusto”,quetentadefinirumpadrãomoralparao

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mundoda trocademercadorias,epelomovimentocontraapobreza,queprocuraangariardoações

paraasmaisdistanteslocalidades.Masnemmesmoessesmovimentosconseguemdesafiarasrelações

sociaisqueproduzemesustentamascondiçõesdadesigualdadeglobal:ariquezadosfilantroposea

pobrezadetodososoutros.

Oque interessa aMarx,porém,não são as implicaçõesmorais. Seu interesse émostrar comoo

sistemademercadoea forma-dinheirodisfarçamas relações reaispormeioda trocadecoisas.Ele

nãoestádizendoqueessedisfarce,queelechamade“fetichismo”(148)(enotequeousoqueMarx

faz desse termo é técnico e absolutamente distinto de outros usos comuns), é mera ilusão, uma

construçãoartificialquepodeserdesmontadaquandobementendermos.Não,defato,oquevocêvê

é a alface, é seu dinheiro, e você toma decisões tangíveis com base nessas informações. Este é o

significado da frase “aparecem como aquilo que elas são”: as coisas são realmente assim no

supermercado,epodemosobservá-lasdessemodo,mesmoqueelasmascaremasrelaçõessociais.

Esse fetichismo é uma condição inevitável do modo de produção capitalista, e tem diversas

implicações.Porexemplo:

[oshomens]nãorelacionamentresiseusprodutosdotrabalhocomovaloresporconsideraremessascoisasmerosinvólucrosmateriais

de trabalho humano de mesmo tipo. Ao contrário. Porque equiparam entre si seus produtos de diferentes tipos na troca, como

valores,elesequiparamentresiseusdiferentestrabalhoscomotrabalhohumano.(149)

Vemosmaisumavezqueosvaloressurgemdeprocessosdetroca,mesmoquandoasrelaçõesde

troca convergem progressivamente para expressar o valor como tempo de trabalho socialmente

necessário.

[Osprodutores]nãosabemdisso,masofazem.Porisso,natestadovalornãoestáescritooqueeleé.Ovalorconverte,antes,todo

produtodotrabalhonumhieróglifo social.Mais tarde,oshomens tentamdecifraro sentidodessehieróglifo,desvelaro segredode

seupróprioproduto social, pois adeterminaçãodosobjetosdeuso comovalores é seuproduto social tantoquanto a linguagem.

(149)

A relação dialética entre a formação e o intercâmbio do valor e as qualidades imateriais e

fantasmagóricasdovalorcomoumarelaçãosocialnãopoderiasermaisbemretratada.

Mas como essa dialética pode ser reproduzida no pensamento? Segundo Marx, muitos

economistaspolíticosentenderam(eaindaentendem)issocomoerrado,porqueveemospreçosnos

supermercadoseachamqueissoétudo,equeessaéaúnicaevidênciamaterialdequeprecisampara

construirsuasteorias.Elessimplesmenteexaminamarelaçãoentreofertaedemandaeasvariaçõesde

preço associadas a ela. Outros, mais atentos, chegam à “descoberta científica tardia de que os

produtosdotrabalho,comovalores,sãomerasexpressõesmateriaisdotrabalhohumanodespendido

emsuaprodução”.Isso“fezépocanahistóriadodesenvolvimentodahumanidade”(149).Aeconomia

políticaclássicaconvergiupoucoapoucoparaumaideiadevalorportrásdasflutuaçõesdomercado

(frequentementedenominadas“preçosnaturais”)ereconheceuqueotrabalhohumanotemavercom

isso.

Masaeconomiapolíticaclássicanãoconseguiucaptarohiatoentreaimaterialidadedosvalores

como tempo de trabalho socialmente necessário “cristalizado” e sua representação como dinheiro;

portanto,tambémnãoconseguiuentenderopapelqueaproliferaçãodatrocatemnaconsolidaçãoda

forma-valor como algo historicamente específico ao capitalismo. Supôs que os valores eram uma

verdadeevidenteeuniversalenãoviuque

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o caráter de valor dos produtos do trabalho se fixa apenas por meio de sua atuação como grandezas de valor. Estas variam

constantemente, independentementedavontade,daprevisãoedaaçãodaquelesque realizama troca.Seuprópriomovimento social

possui,paraeles,aformadeummovimentodecoisas,sobcujocontroleelesseencontram,emvezdeelesascontrolarem.(150)

ÉassimqueMarxcomeçaaatacaraconcepçãoliberaldeliberdade.Aliberdadedomercadonãoé

liberdade, é uma ilusão fetichista. No capitalismo, os indivíduos se rendem à disciplina de forças

abstratas (como a mão invisível do mercado, criada em grande parte por Adam Smith), que

efetivamentegovernamsuasrelaçõeseescolhas.Possofabricarumacoisabonitaelevá-laaomercado,

mas,seeunãoconseguirtrocá-la,elanãoteránenhumvalor.Consequentemente,nãotereidinheiro

suficienteparacomprarasmercadoriasdequeprecisoparaviver.Asforçasdomercado,queninguém

controlaindividualmente,regulamtodosnós.EumadascoisasqueMarxpretendefazern’Ocapitalé

falardessepoderreguladorqueocorremesmo“nasrelaçõesdetrocacontingentesesempreoscilantes

de seusprodutos”.As flutuaçõesdeoferta edemandageram flutuaçõesdepreçoem tornodeuma

norma,masnãopodemexplicarporqueumpardesapatosétrocado,emmédia,porquatrocamisas.

No interiorde toda a confusãodomercado, “o tempode trabalho socialmentenecessáriopara sua

produção [damercadoria] se impõe com a força de uma lei natural reguladora, tal como a lei da

gravidadese impõequandoumacasadesabasobreacabeçadealguém”(150).Esseparaleloentrea

gravidadeeovaloréinteressante:ambossãorelações,enãocoisas,eambostêmdeserconceituados

comoimateriais,porémobjetivos.

Isso conduzMarx diretamente à crítica da evolução dos modos burgueses de pensamento em

relaçãoàpropagaçãodasrelaçõesdetrocaedoadventodaforma-dinheiro:

A reflexão sobre as formas da vida humana e, assim, também sua análise científica, percorre um caminho contrário ao do

desenvolvimento real. [...] Assim, somente a análise dos preços das mercadorias conduziu à determinação da grandeza do valor, e

somente a expressãomonetária comumdasmercadorias conduziu à fixaçãode seu caráterde valor.Porém, é justamente essa forma

acabada – a forma-dinheiro – domundo dasmercadorias que velamaterialmente, em vez de revelar, o caráter social dos trabalhos

privadose,comisso,asrelaçõessociaisentreostrabalhadoresprivados.(150)

Essafalhadevisãoporpartedoseconomistaspolíticosclássicosépatentenomodocomomuitos

abraçaramRobinsonCrusoé,deDanielDefoe

[d]

, comoummodelodeeconomiademercadoperfeita,

quesurgeapartirdeumestadodenatureza:Robinsonnaufraganumailhaeconstróiporsuaprópria

contaummododevidaadequadoaumestadodenatureza,reproduzindopassoapassoalógicade

uma economia de mercado. Mas, como Marx mostra com muito humor, Robinson, além de

supostamente aprender com a experiência, salva de modo muito conveniente, dos “destroços do

navio”,seu“relógio,livrocomercial,tintaepena”epõe-seimediatamente,“comobominglês,afazer

a contabilidade de si mesmo” (151). Em outras palavras, Robinson leva para a ilha as concepções

mentaisdomundo apropriadas à economiademercado e constróiuma relação comanaturezade

acordocomessaimagem.Oseconomistaspolíticosusaramafábulademodoperverso,comointuito

denaturalizaraspráticasdeumaburguesiaemergente.

Durantemuitotempo,acheiqueoseconomistaspolíticostinhamescolhidoahistóriaerradade

Defoe.MollFlanders

[e]

éummodelomuitomelhordefuncionamentodaproduçãoedacirculaçãode

mercadorias. Moll comporta-se como a mercadoria quinta-essencial à venda. Ela especula com os

desejos alheios, e os outros especulam com seus desejos (o grande momento é quando ela,

absolutamente falida, gasta seus últimos tostões alugando um paramento grandioso, que inclui

carruagem,cavalosejoias,evaiaumbaile;láelaconquistaumjovemnobreefogenamesmanoite

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comele,masdescobrenamanhãseguintequeeletambémestáfalido;aaventuraterminacomosdois

achandoumaenormegraçanoocorridoedespedindo-seamistosamente).Elaviajapelomundo(vai

atéaVirgíniacolonial),passaumtemponaprisãoporcausadedívidas,esuafortunaflutuaparacima

eparabaixo.Elacirculacomoumobjetomonetárionummardetrocasdemercadorias.MollFlandersé

uma analogia muito melhor para o modo de funcionamento do capitalismo, especialmente o

especulativodeWallStreet.

OseconomistaspolíticosclássicospreferiramomitodeRobinsonCrusoésimplesmenteporqueele

naturaliza o capitalismo. Mas este, como Marx insiste, é um construto histórico, não um objeto

natural. “As categorias da economia burguesa” não são mais do que “formas de pensamento

socialmente válidas e, portanto, dotadas de objetividade para as relações de produção dessemodo

social de produção historicamente determinado, a produção de mercadorias”. Uma olhada nessa

históriamostraaslimitaçõesdassupostasverdadesuniversaisdateoriaburguesa.“Saltemos,então,da

iluminada ilhadeRobinsonparaa sombria IdadeMédiaeuropeia.”Seestaé sombria, suas relações

sociaissão,aocontrário,bastanteclaras.Sobosistemadacorveia,dizMarx,“cadaservosabequeo

que ele despende a serviço de seu senhor é uma quantidade determinada de sua força pessoal de

trabalho”; os vassalos tinham consciência de que “as relações sociais das pessoas em seus trabalhos

aparecem como suas próprias relações pessoais e não se encontram travestidas em relações sociais

entrecoisas,entreprodutosdetrabalho”(152).Omesmovaleparaadinâmicaruralepatriarcalde

umafamíliacamponesa:asrelaçõessociaissãotransparentes,epodemosverquemestáfazendooque

eparaquem.

Taiscomparaçõeshistóricas,juntamentecomaanálisedofetichismo,permitem-nosvislumbrara

natureza contingente, portanto não universal, das verdades estabelecidas pela economia política

burguesa.“Porisso,todoomisticismodomundodasmercadorias,todaamágicaeaassombraçãoque

anuviamosprodutosdotrabalhonabasedaproduçãodemercadoriasdesaparecemimediatamente,

tão logo nos refugiemos em outras formas de produção” (151). Podemos até imaginar as relações

sociaisorganizadascomo“umaassociaçãodehomenslivres”,istoé,ummundosocialistanoqual“as

relações sociais dos homens com seus trabalhos e seus produtos do trabalho permanecem [...]

transparentemente simples, tanto na produção quanto na distribuição” (153). Ao falar da ideia de

associação,Marx ecoamuito do pensamento socialista utópico francês dos anos 1830 e 1840 (em

particular Proudhon, emboraMarx não reconheça isso). Sua esperança é que possamos ir além do

fetichismodasmercadoriasetentarestabelecer,pormeiodeformasassociativas,ummododerelação

diferente. Se isso é viável ounão éumaquestão fundamental quequalquer leitor deMarx temde

considerar;masesseéumdos rarosmomentosn’Ocapital emque temosumvislumbredavisãode

Marxdeumfuturosocialista.

Ofetichismodomercadotrazcomeleumaboabagagemideológica.Marxcomenta,porexemplo,

asrazõesporqueoprotestantismoéaformadereligiãomaisadequadaparaocapitalismo.Argumenta

quenossasformasdepensamento–nãoapenasasdoseconomistaspolíticos–refletemofetichede

nossaépoca,masessaéumatendênciageral.Suasobservaçõessobrereligiãoearelaçãodestacoma

vidapolítico-econômicasãosignificativas:

aeconomiapolíticaanalisou,mesmoqueincompletamente,ovaloreagrandezadevalorerevelouoconteúdoqueseescondenessas

formas.Mas ela jamais sequer colocou a seguinte questão: por que esse conteúdo assume aquela forma, e por que, portanto, o

trabalho se representa no valor e amedida do trabalho, pormeio de sua duração temporal, na grandeza de valor do produto do

trabalho?Taisformas,emcujatestaestáescritoqueelaspertencemaumaformaçãosocialemqueoprocessodeproduçãodominaos

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homens,enãooshomensoprocessodeprodução,sãoconsideradasporsuaconsciênciaburguesacomoumanecessidadenaturaltão

evidentequantooprópriotrabalhoprodutivo.(154-6)

Aisso,Marxacrescentaumalongaeimportantenotaderodapé:

Aformadevalordoprodutodotrabalhoéaformamaisabstratamastambémmaisgeraldomodoburguêsdeprodução,queassim

secaracterizacomoumtipoparticulardeproduçãosociale,aomesmotempo,umtipohistórico.Setalformaétomadapelaforma

natural eternadaprodução social, tambémseperdedevistanecessariamente a especificidadeda formadevalor, e assim tambémda

forma-mercadoriae,numestágiomaisdesenvolvido,daforma-dinheiro,daforma-capitaletc.(155,nota32)

Marxsugerequeéumerronaturalizara formadevalorprópriadocapitalismoapenasporqueé

difícil,senãoimpossível,conceberalternativas.

Foi isto que os economistas políticos burgueses fizeram: trataram o valor como um fato da

natureza, não como uma construção social, saída de ummodo particular de produção.Marx está

interessadona transformaçãorevolucionáriada sociedade,e isso significaumrevolucionamentoda

forma-valor capitalista, a construção de uma estrutura de valor alternativa, um sistema de valor

alternativoquenãotenhaocaráterespecíficodaqueleaquesechegousobocapitalismo.Nãoposso

deixardeenfatizaresseponto,porqueateoriadovaloremMarxéinterpretadacomfrequênciacomo

uma norma universal a que deveríamos obedecer. Perdi a conta de quantas vezes ouvi pessoas se

queixaremdequeoproblemaemMarxéqueeleacreditaqueaúnicanoçãodevalorválidaderivado

acréscimo de trabalho. Mas isso não é verdade; a noção de valor é um produto histórico-social.

Portanto,oproblemadosocialista,docomunista,dorevolucionário,doanarquistaoudequemforé

encontrar uma forma-valor alternativa que funcionenos termos da reprodução social da sociedade

numa imagem diferente. Ao introduzir o conceito de fetichismo, Marx mostra que o valor

naturalizadodaeconomiapolíticaclássicaditaumanorma:seobedecermoscegamenteaessanormae

reproduzirmos o fetichismo da mercadoria, fecharemos as portas para as possibilidades

revolucionárias.Nossatarefa,aocontrário,équestioná-la.

Ocapitalismonãotemnenhummeioderegistrarvaloresintrínsecos,“naturais”,emseuscálculos.

“Comoesteúltimoéumamaneirasocialdeterminadadeexpressarotrabalhorealizadonumacoisa,

elenãopodecontermaismatérianaturaldoqueataxadecâmbio”;éilusórioacreditar,porexemplo,

“quearendafundiárianascedaterra,enãodasociedade”(157).

A economia política burguesa vê a aparência superficial. Embora tenha uma teoria do valor-

trabalho, ela jamais investigou a fundo seu significado ou as circunstâncias históricas de seu

surgimento. Isso nos obriga a ir além do fetichismo, não para tratá-lo como uma ilusão,mas para

examinar sua realidade objetiva (86-7, 147-8, 157). Uma resposta possível é seguir o caminho do

“comérciojusto”[fairtrade].Outraédesbravarumcaminhocientífico,umateoriacrítica:ummodo

deinvestigaçãoepesquisaquepossadesvendaraestruturaprofundadocapitalismoesugerirsistemas

alternativosdevalor,baseadosemtiposradicalmentediferentesderelaçõessociaisemateriais.

As duas opções não sãomutuamente excludentes. Uma política que lide com as condições de

trabalho numa base global, desenvolvendo-se nummovimento, digamos, contra a exploração, pode

facilmente conduzir ao campo teórico muito mais profundo que Marx esboça n’O capital

precisamente porque a aparência superficial, ainda que fetichista, sempre indica uma realidade

objetiva.Lembro-me,porexemplo,deumdesfilepromovidopelosestudantesdaUniversidadeJohns

Hopkins,emqueapresentaramroupasdasgrifesLizClaiborneeGapcomcomentáriostantosobreas

peças quanto sobre as condições de trabalho associadas à produção. Esse desfile foi uma maneira

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eficientedefalardofetichismoechamaraatençãoparaascondiçõesglobaisdotrabalho,sugerindo

aomesmotempoaimportânciadesefazeralgumacoisaarespeito.

AmissãodeMarxn’Ocapital,porém,éconceberumaciênciaparaalémdofetichismoimediato,

sem negar sua realidade. Ele lançou as bases para isso na crítica da economia política burguesa.

Também mostrou a que ponto somos governados pelas forças abstratas do mercado naquilo que

fazemosecomoestamosconstantementeameaçadosdesergovernadosporconstrutosfetichistas,que

nosimpedemdeveroqueestáacontecendo.Atéquepontovocêpodedizerquevivenumasociedade

livre,caracterizadapelaverdadeiraliberdadeindividual?Asilusõesdeumaordemliberalutópica,na

visãodeMarx, têmdeserdesmascaradascomoaquiloquesão:umaréplicadaquele fetichismoque

perverte as relações sociais entre pessoas, transformando-as em relações materiais entre pessoas e

relaçõessociaisentrecoisas.

CAPÍTULO2:OPROCESSODETROCA

Ocapítulo2nãoéapenasmaiscurto,mastambémmaisfácildeacompanhar.OpropósitodeMarxé

definirascondiçõessocialmentenecessáriasdatrocacapitalistademercadoriasecriarumabasemais

sólidaparaaconsideraçãodaforma-dinheiroqueseráfeitanocapítulo3.

Como as mercadorias não vão para o mercado por si mesmas, precisamos definir primeiro a

relação operativa entre elas e aqueles que as levam. Marx imagina uma sociedade em que “os

guardiões”dasmercadorias“têm[...]desereconhecermutuamentecomoproprietáriosprivados.Essa

relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ele legalmente desenvolvido ou não, é uma relação

volitiva,naqual se refletea relaçãoeconômica. [...]Aqui,aspessoasexistemumasparaasoutras”–

observeoecodoargumentosobreofetichismo–nãocomopessoas,mas“apenascomorepresentantes

damercadoriae,porconseguinte,comopossuidorasdemercadorias”. Isso levaaumaconsideração

mais ampla. Ao longo de todo O capital, “as máscaras econômicas das pessoas não passam de

personificações das relações econômicas”, é “como suporte” – note a repetição do termo – dessas

relaçõeseconômicasque“elassedefrontamumascomasoutras”(160).Marxestámaispreocupado

com os papéis econômicos que os indivíduos desempenham do que com os indivíduos que os

desempenham. Por isso, ele examina as relações entre compradores e vendedores, devedores e

credores, capitalistas e trabalhadores.De fato, n’O capital, o foco estámais nos papéis do que nas

pessoas, eMarx reconhece que os indivíduos podem ocupar – e com frequência ocupam – vários

papéisdiferenteseatémesmoposiçõesprofundamentecontraditórias(comootrabalhadorquetem

umfundodepensãocominvestimentosnomercadodeações).Essefocomaisnospapéisdoquenos

indivíduosétãolegítimoquantoseanalisássemosasrelaçõesentremotoristasepedestresnasruasde

Manhattan:amaioriadenósjáassumiuosdoispapéisesoubeadaptarseucomportamentoacadaum

deles.

Ospapéisnomododeproduçãocapitalistasãoestritamentedefinidos.Osindivíduossãosujeitos

jurídicos dotados da propriedade privada da mercadoria que manejam, e eles a negociam em

condiçõescontratuaisnãocoercitivas.Háumrespeitorecíprocopelosdireitosjurídicosdosoutros;a

equivalência das trocas mercantis baseada em princípios é, como notou Aristóteles, uma virtude

louvável. O queMarx descreve aqui é a política convencional e o arcabouço legal para o devido

funcionamentodosmercados,talcomoimaginadopelateorialiberal.Nessemundo,umamercadoria

é“leveller

[f]

ecínicadenascença”,porqueestá“sempreprontaatrocarnãoapenassuaalma,masseu

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corpo com qualquer outra mercadoria”. O proprietário quer cedê-la, e o comprador quer tomá-la:

“Todasasmercadoriassãonão-valoresdeusoparaseuspossuidores,evaloresdeusoparaseusnão-

possuidores.Portanto,elasprecisamuniversalmentemudardemãos”,mas“seotrabalhoéútilpara

outrem,ouseja,seseuprodutosatisfaznecessidadesalheias,éalgoquesópodeserdemonstradona

troca”(160).

Esseargumentoarespeitodaestruturainstitucionalelegalsocialmentenecessáriarequeridapara

queocapitalismofuncioneéhistoricamenteespecífico.Nãoreconheceraespecificidadehistóricada

concepçãoburguesadedireitosedevereslevaasériosequívocos.ÉporissoqueMarxfaz,numalonga

notaderodapé,umavigorosadenúnciacontraoanarquistaProudhon:

[Ele]criaseuidealdejustiça,ajusticeéternelle[justiçaeterna],apartirdasrelaçõesjurídicascorrespondentesàproduçãodemercadorias,

pormeiodoquê,diga-sedepassagem,tambéméfornecidaaprova,consoladoraparatodososfilisteus,dequeaformadaprodução

demercadoriasétãoeternaquantoajustiça.Então,emdireçãoinversa,eleprocuramodelardeacordocomesseidealaproduçãoreal

demercadoriaseodireitorealqueaelacorresponde.(159,nota38)

Defato,Proudhontomaasformasespecíficasdasrelaçõesjurídico-econômicasburguesasetrata-

as como universais e fundadoras do desenvolvimento de um sistema econômico alternativo,

socialmentejusto.DopontodevistadeMarx,issonãoéumaalternativa,porqueapenasreinscreveas

concepçõesburguesasdovalornumaformasupostamentenovadesociedade.Esseproblemacontinua

emnossosdias,nãosópelarenovaçãoanarquistadointeressepelasideiasdeProudhon,mastambém

peloadventodeumapolíticamaisampladedireitoshumanosliberaiscomosupostoantídotocontra

os males sociais e políticos do capitalismo contemporâneo. A crítica de Marx a Proudhon é

diretamenteaplicávelaessapolíticacontemporânea.ADeclaraçãoUniversaldosDireitosHumanos,

de1948,éumdocumentofundamentalparaumindividualismoburguêsbaseadonomercadoe,como

tal, fornece abaseparauma críticaminuciosado capitalismo liberal ouneoliberal.Defenderque a

ordem política capitalista seja coerente com seus próprios princípios fundamentais pode ser útil

politicamente,mas imaginar que essa política possa levar a um deslocamento radical domodo de

produçãocapitalistaé,noentenderdeMarx,umgraveerro.

Oque vema seguir éuma recapitulação–Marx reitera com frequência argumentos anteriores

numa linguagemumpoucodiferente – do fato de que, num ambiente institucional desse tipo, “o

cristalmonetárioéumprodutonecessáriodoprocessodetroca”.Elerepeteotemaquandodizque“a

expansãoeoaprofundamentohistóricosdatrocadesenvolvemaoposiçãoentrevalordeusoevalor

quejazlatentenanaturezadasmercadorias”:

Anecessidadedeexpressarexternamenteessaoposiçãoparaointercâmbioimpeleaumaformaindependentedovalordamercadoriae

nãodescansaenquantonãochegaa seuobjetivo finalpormeiodaduplicaçãodamercadoriaemmercadoriaedinheiro.Portanto,na

mesma medida em que se opera a metamorfose dos produtos do trabalho em mercadorias, opera-se também a metamorfose da

mercadoriaemdinheiro.(161-2)

Marxnãodiznadaquejánãotenhamosvistonositensanteriores,masagoraeleexpõeoqueessa

relação econômica entre coisas implica para as relações entre pessoas. Essa economia de trocas

mercantis,dizele,implicaqueestamoslidandocom“proprietáriosprivados”de“coisasalienáveis”,e

isso,porsuavez, implicaquetemos“pessoasindependentesumasdasoutras”.“Alienáveis”refere-se

aofatodeque“ascoisassão,emsimesmas,exterioresaohomem”,istoé,livrementecambiáveis.Isso

significaqueosoperadoresdatrocanãotêmnenhumvínculopessoalcomascoisasquepossuem.E

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implica também relações sociais “de alheamentomútuo”, que são exclusivasdo capitalismo, euma

relaçãoconcomitantedepossejurídicademercadorias(162).

Taiscondiçõesnãoerampredominantesna“famíliapatriarcal”,na“comunidadeindianaantiga”

ounum“Estadoinca”;osprocessosdetrocativeramderomperasestruturassociaisprecedentes.Isso

ocorre aos poucos, sugere ele, àmedida que o comércio ocasional entre comunidades evolui até o

pontoemque“aconstanterepetiçãodatrocatransforma-anumprocessosocialregular”(162):

Na mesma proporção em que a troca de mercadorias dissolve seus laços puramente locais [notem que aqui está subentendida a

expansão geográfica] e o valor dasmercadorias se expande emmaterialidade

[g]

do trabalho humano em geral, a forma-dinheiro se

encarnaemmercadoriasque,pornatureza,prestam-seàfunçãosocialdeumequivalenteuniversal:osmetaispreciosos.(163-4)

Comojáindiquei,esseéumargumentohistóricoumtantoduvidosoarespeitodadissoluçãodas

formassociaispreexistentesdiantedasrelaçõescrescentesdetrocaedoadventodasformasdinheiro.

Masseuconteúdológicoé importanteparademonstrarqueoqueésocialmentenecessárioé“uma

forma adequada de manifestação de valor”, e essa exigência é mais adequadamente satisfeita por

metais preciosos (tais como o outro e a prata), em virtude de suas qualidades naturais. Contudo,

comofrisadoanteriormente,issosignificaqueamercadoria-dinheirointeriorizaumadualidade,pois

tantoémercadoria–nosentidoordináriodeserumprodutodotrabalho–quanto“adquireumvalor

deusoformal,quederivadesuasfunçõessociaisespecíficas”.Nessafunçãosocial formal,“aforma-

dinheiro é apenas o reflexo, concentrado numa únicamercadoria, das relações de todas as outras

mercadorias”(164).

Além disso, é perfeitamente possível substituir amercadoria-dinheiro “por simples signos de si

mesmo” para cumprir esse papel. Mas essa capacidade de substituição não causa surpresa, já que

“cadamercadoriaseriaumsigno,umavezque,comovalor,elaétãosomenteuminvólucroreificado

do trabalho humano nela despendido” (165). Marx acena aqui com a possibilidade de incorporar

diretamente em sua análise muitos aspectos daquilo que atualmente costumamos chamar de

“economiasimbólica”.Elenãotenta fazer isso,porque, semdúvida,exigiriamudançasnomodode

apresentação, mas é importante notar que os aspectos simbólicos do modo de funcionamento do

capitalismonãosãoalheiosaseuargumento.Aquelesqueafirmamqueocapitalismoédiferentehoje,

devidoaograudepreponderânciaqueocapitaleaeconomiasimbólicospassaramaexercer,eque,

emconsequênciadisso,ocapitalismoteriamudadodefoco,deveriamperceberqueascoisasnãosão

necessariamenteassim.

Operigoestáemtrataressasqualidadessimbólicas–quesãomuitoimportantes–comosefossem

puramente imagináriasoucomoprodutosarbitráriosdareflexãodoshomens.OqueMarxsugereé

quemesmo amercadoria-dinheiro não pode realizar seu valor específico sem a troca com todas as

outrasmercadoriascomoequivalentes,aindaque,paraisso,finjaseroequivalenteuniversaldetodas

asoutrasmercadorias.“Adificuldade”,dizele,“nãoestáemcompreenderquedinheiroémercadoria,

masemdescobrircomo,porqueeporquaismeiosamercadoriaédinheiro”(186):“Umamercadoria

nãoparecesetornardinheiroporqueasoutrasmercadoriasexpressamnelaseuvaloruniversalmente,

mas,aocontrário,estaséqueparecemexpressarnelaseusvaloresuniversalmentepelofatodeelaser

dinheiro”(187,grifosmeus).

Emoutraspalavras,umavezqueexistadinheiro, asmercadorias encontramummeiodemedir

seuprópriovalorsimplesmenteagindocomoseoouro,talcomosurge“dasentranhasdaterra”,fosse

“aencarnaçãoimediatadetodotrabalhohumano”.Essa,dizele,éa“mágicadodinheiro”quetemde

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ser desvendada. “O enigma do fetiche do dinheiro não é mais do que o enigma do fetiche da

mercadoria,queagorasetornavisíveleofuscaavisão”(167).

Masháoutraquestãovitalnessecapítulo.Coma“mágica”eo“fetiche”dodinheirofirmemente

estabelecidos,

o comportamentomeramente atomístico dos homens em seu processo social de produção e, com isso, a figura reificada de suas

relaçõesdeprodução,independentesdeseucontroleedesuaaçãoindividualconsciente,manifestam-se,deinício,nofatodequeos

produtosdeseutrabalhoassumemuniversalmenteaformadamercadoria.(167)

IssoseparecemuitocomavisãodeAdamSmithdeummercadodefuncionamentoperfeito,cuja

mão invisível guia as decisões individuais.Ninguém está no comando, e cada um tem de agir de

acordocomoqueMarxchamamaistardede“leiscoercitivasdacompetição”(446).

No mundo ideal de Smith, o Estado criaria o arcabouço institucional para o funcionamento

perfeito dosmercados e da propriedade privada e a riqueza doEstado e o bem-estar dos cidadãos

cresceriam rapidamente, àmedidaque a iniciativa individual eo empreendedorismo,guiadospela

mãoinvisíveldomercado,produzissemresultadosquebeneficiassematodos.Nessemundo,segundo

acredita Smith, as intenções e as motivações dos indivíduos (que variam desde a ganância até a

missãosocial)nãoimportam,poisamãoinvisíveldomercadoseencarregariadetudo.

Esse capítulo apresenta-nos uma charada.De um lado,Marx dedica uma nota de rodapé para

condenarofatodeProudhonaceitarasnoçõesburguesasdedireitoselegalidade,alegandoqueisso

nãocontribuiemnadaparaaconstruçãodeumaalternativarevolucionária.Noentanto,nopróprio

textodocapítulo,Marxpareceaceitarateorialiberaldapropriedade,areciprocidadeeaequivalência

datrocamercantilnãocoercitivaentreindivíduosjurídicoseatémesmoamãoinvisíveldomercado

talcomopropostaporAdamSmith.Comoresolveressacontradiçãoaparente?Creioquearespostaé

bastantesimples,masaperguntatemramificaçõesimportantessobreomodocomoleremosorestante

d’Ocapital.

Marx está engajado numa crítica da economia política liberal clássica. Por isso, acredita que é

necessárioaceitarastesesdoliberalismo(e,porextensão,asdoneoliberalismo)paramostrarqueos

economistaspolíticosclássicosestavamprofundamenteequivocadosemseusprópriostermos.Assim,

mais do que dizer que os mercados de funcionamento perfeito e a mão invisível não podem ser

construídosequeomercadoésempredistorcidopelopoderpolítico,eleaceitaavisãoliberalutópica

demercadosperfeitosemãoinvisívelparamostrarqueelesjamaisproduzirãoumresultadobenéfico,

mas, ao contrário, tornarão a classe capitalista inconcebivelmente rica e empobrecerão os

trabalhadoreseorestantedapopulaçãonamesmaproporção.

Issosetraduznumahipótesesobreocapitalismorealmenteexistente:quantomaisestruturadoe

organizado segundo essa visão utópica liberal e neoliberal é esse capitalismo, maiores são as

desigualdadesdeclasse.Eédesnecessáriodizerqueháevidênciassuficientesparaapoiaravisãode

quearetóricadolivremercadoedolivre-comércioeseussupostosbenefíciosuniversais,àqualfomos

submetidos nos últimos trinta anos, produziu exatamente o resultado esperado por Marx: uma

concentração maciça de riqueza e de poder numa ponta da escala social, concomitante ao

empobrecimento crescente de todos os demais. Mas, para prová-lo, Marx tem de aceitar as bases

institucionaisdoutopismoliberal,eéprecisamenteissoqueelefaznessecapítulo.

Issonos levaaumaadvertênciaimportantesobrecomolerOcapital.Devemos terocuidadode

distinguir os momentos em que Marx critica a visão liberal utópica em seu estado perfeito e os

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momentos em que ele tenta dissecar o capitalismo realmente existente, com todas as suas

imperfeiçõesdemercado,desequilíbriosdepoder e falhas institucionais.Comoveremos, esses dois

momentos às vezes se confundem.Muitos dos equívocos de interpretação derivamdessa confusão.

Sendo assim, tentarei indicar quando ele está fazendo o quê, bem como identificar os momentos

ocasionaisde confusão, inclusiveosqueaparecemnaprópria análisedeMarx,quandoodesejode

cumprir seu objetivo – a crítica da economia política clássica – atrapalha a tarefa adicional de

entenderadinâmicaefetivadomododeproduçãocapitalista.

Namaioria das vezes, no entanto,Marx faz umuso engenhoso da crítica teórica do utopismo

liberal, em suas várias formas político-econômicas, para lançar uma luz crítica devastadora sobre o

capitalismoefetivamenteexistenteemsuaépoca.Eissoébomparanós,quevivemosnummundoem

queas tesesdoneoliberalismofazemecoeaprofundam,emcertosaspectos,as tesesdo liberalismo,

poisacríticadeMarxaolivremercadoeaolivre-comérciopodelançarumaluztãodevastadorasobre

nossoprópriocapitalismoefetivamenteexistentequantofezcomocapitalismodaépoca.

[1]KarlMarx,ZurKritik der PolitischenÖkonomie (Berlim, 1859), p. 3 [ed. bras.:Contribuição à crítica da economia política, 2. ed., São

Paulo,ExpressãoPopular,2008].

[a]KarlMarxeFriedrichEngels,ManifestoComunista,cit.,p.43.(N.E.)

[b]PersonagemdodramahistóricoHenriqueIV,deShakespeare.Marxusaaformaalemãdonome,WittibHurtig.(N.T.)

[2]CitadoemKarlMarx,Ocapital,cit.,p.135-6.OtrechodeAristótelesépartedaÉticaaNicômaco,livroV,cap.5.

[c]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.432.(N.E.)

[3]DavidHarvey,SpacesofGlobalCapitalism:TowardsaTheoryofUnevenGeographicalDevelopment[Espaçosdocapitalismoglobal:para

umateoriadodesenvolvimentogeográficodesigual](Londres,Verso,2006)..

[d]SãoPaulo,Iluminuras,2004.(N.E.)

[e]SãoPaulo,NovaCultural,2003.(N.E.)

[f]“Niveladora”:referênciaaoslevellers,correntepolíticaatuantenaInglaterraemmeadosdoséculoXVII.(N.T.)

[g]Nooriginalalemão:Materiatur.Essetermo,empregadoporHegelemVorlesungenüberdiePhilosophiederNatur[Liçõessobreafilosofia

da natureza], remete à doutrina hilemórfica escolástico-aristotélica, segundo a qual a “forma” (morphê) se realiza na “matéria” (hylê),

conferindoaestasuadeterminidade(Bestimmtheit,naterminologiahegeliana)ontológica.AMateriaturé,assim,oprincípioqueconstituia

materialidadeemgeraleaquiloquerestaquandoseretira(oquesóépossívelnaimaginação)deumasubstânciaasuaformadeterminada.

VerG.W.F.Hegel,VorlesungenüberdiePhilosophiederNatur(Hamburgo,FelixMeiner,2007),p.213.(N.T.)

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2.Dinheiro

CAPÍTULO3:ODINHEIROOUACIRCULAÇÃODEMERCADORIAS

Aestaaltura,estáclaroqueumanoçãoparticulardedinheirosecristalizouaolongodotratamento

que Marx dá à troca de mercadorias. Ela estava implícita na oposição entre as formas relativa e

equivalente do valor, e isso, com a disseminação da troca num ato social geral, conduziu ao

surgimentodeumequivalenteuniversal,quetomouaformadeumamercadoria-dinheirotangível,a

qual,apesardeencobrirasorigensdovalornotempodetrabalhosocialmentenecessário,representa

valor.Vamosanalisarmaisdepertoessaformadevalor.

Ocapítulo3élongoebastanteintricado.Noentanto,contaumahistóriasimples,emlinguagem

quehoje nos soa familiar.Odinheiro é um conceito unitário,mas interioriza funções duplas, que

refletem a dualidade do valor de uso e do valor de troca na própria mercadoria. Por um lado, o

dinheiro opera como umamedida de valor, como um padrão-ouro, por assim dizer, do tempo de

trabalho socialmente necessário. Para cumprir esse papel, ele precisa possuir qualidades distintivas

capazes de fornecer, tanto quanto possível, umpadrão preciso e eficiente demedida do valor. Por

outro lado, o dinheiro também tem de azeitar a expansão da troca e fazê-lo com o mínimo de

espalhafato e dificuldade. Desse modo, ele funciona como um simples meio [medium] para

movimentarumavariedadecadavezmaiordemercadoriasdeumlugarparaooutro.

Háumatensão,umacontradição,entreessasduasfunções.Comomedidadevalor,porexemplo,

oouroparecemuitobom.Eleépermanenteepodeserarmazenadoparasempre;podemosavaliarsuas

qualidades;podemosconhecerecontrolarsuascondiçõesconcretasdeproduçãoecirculação.Oouro,

portanto, é excelente como medida de valor. Mas imagine se toda vez que fôssemos tomar café

tivéssemosdeusarumminúsculogrãodeouroparapagá-lo.Essaéumaformamuitoineficientede

dinheiro,dopontodevistadacirculaçãodeumamiríadedepequenasquantidadesdemercadorias.

Imagine se cada um tivesse de carregar umabolsinha comgrãos de ouro – e o que aconteceria se

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alguémespirrasseenquantocontaosgrãos?Oouroéummeioineficientedecirculação,apesardeser

umaexcelentemedidadevalor.

Marx compara o dinheiro como medida de valor (item 1) e o dinheiro como um meio de

circulação(item2).Mas,nofimdascontas,háapenasumtipodedinheiro(item3).Earesolução

dessa tensão entre o dinheiro comomedida efetiva de valor e o dinheiro comomeio eficiente de

circulaçãoéparcialmentedadapelapossibilidadeou–eissoécontroverso–pelanecessidadedeoutra

formadecirculação,queéaexistênciadocrédito.Aconsequenterelaçãoentredevedoresecredores

nãosóabreapossibilidadecomointroduzanecessidadedeoutraformadecirculação:adocapital.

Emoutraspalavras,oqueemergenessecapítuloéapossibilidadedoconceito,assimcomodofato,do

capital.Domesmomodoqueapossibilidadedodinheirosecristalizouapartirdosprocessosdetroca,

apossibilidadedocapitalsecristalizaapartirdacontradiçãoentreodinheirocomomedidadovalor

e o dinheiro como meio de circulação. Essa é a questão principal desse longo capítulo. Se a

mantivermos sempreemmente,muitosdetalhes intricadoseporvezes confusos se encaixarãocom

maisfacilidadenoconjunto.

Item1:Medidadosvalores

Há uma distinção entre “dinheiro” e “mercadoria-dinheiro”. Para consolidar seu argumento

anterior – a saber, o valor não é materialmente mensurável em si mesmo, antes requer uma

representaçãopararegularastrocas–,Marxcomeçapressupondooourocomoamercadoria-dinheiro

singular.Oouroé“aformanecessáriademanifestaçãodamedidaimanentedevalordasmercadorias:

otempodetrabalho”(169).Ovaloréexpresso(outalvezdevêssemosdizer“reside”)narelaçãoentrea

mercadoria-dinheiro como “uma forma demanifestação” do valor e todas asmercadorias que são

trocadas por ela. O valor das mercadorias é irreconhecível e incognoscível sem sua forma de

manifestação.

Isso, no entanto, leva a algumas complicações – e revela algumas contradições – que requerem

uma análise mais detalhada.Marx concentra-se, em primeiro lugar, nomodo como os preços são

vinculadosàsmercadorias.Ospreços,dizele,sãoimaginários,ouideais(querdizer,umprodutodo

pensamentoouumprincípio lógico,emoposiçãoaconclusões“reais”ouempiricamentederivadas)

(170).Eleserefere,aqui,aofatodeque,quandoproduzoumamercadoria,nãotenhoideiadequalé

seuvalorantesdecolocá-lanomercado.Vouaomercadocomumanoçãoimaginária, ideal,deseu

valor.Assim,colonelaumaetiquetacomumpreço.Issoinformaopotencialcompradordovalorque,

paramim,amercadoriadeveriater.Masnãotenhocomosaberseconseguireiessepreçoporela,pois

nãopossoterumaideiapréviadequaléseu“valordemercado”:“Emsuafunçãodemedidadevalor,

oouroserve,portanto,apenascomodinheirorepresentadoouideal.Essacircunstânciadeuvazãoàs

mais loucas teorias. Embora apenas o dinheiro representado sirva à função demedida de valor, o

preçodependeinteiramentedomaterialrealdodinheiro”(171).Estabelece-seumarelaçãoentreos

preçosimaginários,ideais,eospreçosefetivamenterecebidosnomercado.Opreçorecebidodeveria

“idealmente”indicarovalorverdadeiro,maséapenasumaaparência,umarepresentação–imperfeita

–dovalor.

Preferiríamos, é óbvio, que a representação quantitativa do valor fosse um padrão estável de

medida.Oouro,noentanto,éumamercadoriaespecífica; seuvalorédadopelotempodetrabalho

socialmentenecessárioqueneleéincorporado,eeste,comovimos,nãoéconstante.Flutuaçõesnas

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condiçõesconcretasdeproduçãoafetamovalordoouro(oudequalqueroutramercadoria-dinheiro).

Mastalmudançadevalor“atingetodasasmercadoriasaomesmotempoecaeterisparibus [todosos

outrosfatorespermanecendoiguais]mantéminalteradosseusvaloresrelativosrecíprocos,mesmoque

estesagoraseexpressemempreçosdeouromaioresoumenoresdoqueantes”(173,grifomeu).

Marx também introduz a prata como uma potencial mercadoria-dinheiro alternativa para

enfatizar o seguinte: embora pareça ser um padrão sólido de valor para a comparação dos valores

relativos de todas as outras mercadorias, o ouro se revela pouco estável para estabelecer o valor

absoluto (173). Se, como aconteceu na corrida do ouro de 1848, omercado é inundado de ouro,

ocorreumaquedarepentinadeseuvalor–amedidarepresentativadotempodetrabalhosocialmente

necessário – e todos os preços dasmercadorias têm de ser reajustados para cima (o que explica a

grande inflação do século XVI, quando os espanhóis introduziram o ouro da América Latina no

mercado).Tratamosamercadoria-dinheirosemprecomoalgodotadodeumvalordeusoconcreto,e

suas próprias condições de produção influenciam o modo como o valor é representado. Em anos

recentes,ospreçosdoourooscilaramparacimaeparabaixoemtodoomundo(porrazõesqueserão

tratadasmaisadiante).OqueMarxdesejaenfatizaraquiéque,mesmoquetodamercadoria-dinheiro

provoqueumamedidaoscilantedevalor,suainconstâncianãofaznenhumadiferençaparaosvalores

relativosdasmercadoriasquesãotrocadasnomercado(173,vertambém130).

Marxobservaaindaque,“comomedidadosvaloresepadrãodospreços,oourodesempenhadois

papéiscompletamentedistintos”.Aqui,surgedateoriadodinheiroumasubdualidadequenãodeve

serconfundidacomadistinçãomaiorentreodinheirocomomedidadevalorecomoummeiode

circulação. A mercadoria-dinheiro é a “medida de valor por ser a encarnação social do trabalho

humano” – essa é a representação “ideal” –, mas é também “o padrão de preços como um peso

metálicoestipulado”.Éesseúltimoaspectoquenospermitedizerquetalmercadoria“vale”defato

tantosgramasdeouro.Essaquantidade,opesodoouro,éoquetemosemmenteantes–eesperamos

ternobolsodepois–da trocadamercadoria.No entanto, “asdenominaçõesmonetáriasdospesos

metálicosseseparamprogressivamentedesuasdenominaçõesoriginaisporrazõesdiversas”(255-6)–

eessasrazõessãorazõeshistóricas.

Não há nenhuma teoria explícita do Estado n’O capital, mas, se mapearmos suas diversas

ocorrênciasaolongodotexto,veremosclaramentequeoEstadoexercefunçõesessenciaisnointerior

dosistemadeproduçãocapitalista(invocamosimplicitamenteessefatonocapítulo2,aoimaginaras

instituições da propriedade privada e ummercado de funcionamento perfeito). Uma das funções

mais importantes do Estado, como veremos, tem a ver com a organização do sistema monetário,

regulandoamoedaemantendoosistemamonetárioefetivoeestável.

Esses processos históricos transformaram emhábito popular a separação entre a denominaçãomonetária dos pesosmetálicos e os

nomes de suasmedidas habituais de peso. Como o padrãomonetário é, por um lado, puramente convencional, mas, por outro,

necessitadevalidadeuniversal,eleé,porfim,reguladoporlei.(174)

Adenominaçãomonetáriaéumconstrutofetichista.“Onomedealgoétotalmenteexterioràsua

natureza.NãoseinadadeumhomemquandoseiapenasqueelesechamaJacó.Domesmomodo,nas

denominaçõesmonetáriaslibra,táler,franco,ducadoetc.desaparecetodosinaldarelaçãodevalor”

(175). Ou seja, a relação com o tempo de trabalho socialmente necessário é, ainda por cima,

dissimulada por essas denominações monetárias. “O preço”, conclui Marx, “é a denominação

monetáriadotrabalhoobjetivadonamercadoria”(176).Adenominaçãomonetária(libras,ducados)

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nãoéomesmoqueamercadoria-dinheiro(ouro),esuarelaçãocomovalorcomotempodetrabalho

socialmentenecessáriotorna-secadavezmaisopaca;maséimportantelembraradefiniçãodopreço

comoadenominaçãomonetáriadotrabalhoincorporadonumamercadoria.

Marx prossegue com duas observações importantes. Existe a possibilidade, diz ele, “de uma

incongruência quantitativa entre preço e grandeza de valor, ou o desvio do preço em relação à

grandezadevalor”,eessapossibilidadeéinerenteàprópriaforma-preço.“Issonãoénenhumdefeito

dessaforma,mas,aocontrário,aquiloquefazdelaaformaadequadaaummododeproduçãoemque

aregrasósepodeimporcomoaleimédiadodesregramentoqueseaplicacegamente”(117).Ouseja,

seeulevarminhamercadoriaaomercadoecolocarnelaumpreço(umadenominaçãomonetáriaou

umadadarepresentaçãodevalor),esevocêlevarumamercadoriasimilarecolocarnelaoutropreço,

e se um terceiro levar outra mercadoria similar e colocar nela outro preço, teremos ummercado

repleto de preços diferentes para uma mesma mercadoria. O preço médio que será efetivamente

alcançadoemdeterminadodiadependerádequantaspessoasdesejarãoamercadoriaequantasirão

aomercadoparavendê-la.Assim,opreçomédioalcançadooscilarádeacordocomasflutuaçõesnas

condiçõesdeofertaedemanda.

É por esse mecanismo que ocorre um equilíbrio de preço. Tal equilíbrio, ou aquilo que os

economistaspolíticosclássicoschamamdepreço“natural”,éopreçoalcançadoquandoaofertaea

demandachegamaumequilíbrio.Marxdirámais tardeque,nessepontodeequilíbrio,aofertaea

demanda deixam de explicar tudo. A oferta e a demanda não explicammais por que uma camisa

custa,emmédia,menosdoqueumpardesapatos,tampoucoqualéopreçodiferencialentrecamisas

e sapatos. Na visão de Marx, esse preço diferencial médio reflete o valor, o tempo de trabalho

socialmente necessário incorporado nas diferentes mercadorias. Num determinado dia, porém, as

flutuaçõesdepreçomostramoestadoemqueseencontraarelaçãoentreofertaedemandadesapatos

naquele dia e por que essa relação variou em comparação com o dia anterior. Assim, o fato de

colocarmosdenominaçõesmonetáriasnasmercadoriaseconvertermosamedidadevalornessaforma

ideal,aforma-preço,permitequeasflutuaçõesdepreçoequilibremomercado,aomesmotempoque

facilita a tarefa de identificar uma representação apropriada do valor como equilíbrio ou preço

natural.O que as flutuações nos preços produzem é uma convergência no trabalho médio socialmente

necessário para produzir uma mercadoria. Sem essa incongruência quantitativa não haveria como

transitardasvariaçõesdaofertaedademandanomercadoparaaconvergêncianopreçomédiosocial

querepresentaovalor.

Asegundaobservaçãoéaindamaisdifícildeabsorver:

Masaforma-preçopermitenãoapenasapossibilidadedeumaincongruênciaquantitativaentregrandezadevalorepreço,istoé,entre

a grandeza de valor e sua própria expressãomonetária,mas pode abrigar uma contradição qualitativa, demodo que o preço deixe

absolutamentedeserexpressãodevalor,emboraodinheironãosejamaisdoqueaforma-valordasmercadorias.Assim,coisasqueem

simesmasnãosãomercadorias,comoaconsciência,ahonraetc.,podemsercompradasdeseuspossuidorescomdinheiroe,mediante

seupreço,assumiraforma-mercadoria,demodoqueumacoisapodeformalmenteterumpreçomesmosemtervalor.Aexpressãodo

preçosetornaaquiimagináriatalcomocertasgrandezasdamatemática.Poroutrolado,tambémaforma-preçoimaginária–comoo

preçodosolonãocultivado,quenãotemvalorporquenelenenhumtrabalhohumanoestáobjetivado–abrigaumarelaçãoefetivade

valorouumarelaçãodeladerivada.(177)

Sepodemos colocarumaetiquetadepreçonumacoisa, então, emprincípio,podemos colocá-la

emqualquercoisa,inclusivenaconsciênciaenahonra,paranãofalardecriançasedepartesdonosso

corpo.Podemoscolocá-lanumrecursonatural,navisãodeumaqueda-d’água;podemoscolocá-lana

terra e especular com suas variações de preço. O sistema de preços pode operar em todas essas

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dimensões e produzir incongruências tanto qualitativas como quantitativas. Isso coloca a seguinte

questão:seospreçospodemsercolocadosemqualquercoisa, independentementedeseuvalor,ese

podemflutuarquantitativamenteportodaparte,tambémindependentementedeseuvalor,entãopor

que Marx se fixa tanto na teoria do valor-trabalho? Não teriam razão os economistas políticos

convencionais–mesmohojeemdia–aoafirmarquetudooquepodemosobservaretudooquepode

ter um significado real está contido no conceito de preço, e, por conseguinte, a teoria do valor-

trabalhoéirrelevante?

Marx não defende sua escolha; não precisava defendê-la, porque a teoria do valor-trabalho era

amplamente aceita pelos ricardianos da época.Mas, hoje, a teoria do valor-trabalho é largamente

questionada ou abandonada,mesmo por alguns economistasmarxistas, por isso temos de fornecer

algumtipoderesposta.Marx,pensoeu,recorreriaaoconceitodebasematerial:setentássemostodos

viverdoespetáculodasquedas-d’águaoudocomérciodeconsciênciaouhonra,nãosobreviveríamos.

Aproduçãoreal,atransformaçãorealdanaturezapormeiodeprocessoslaborais,écrucialparanossa

existência, e é esse trabalho material que forma a base para a produção e a reprodução da vida

humana.Nãopodemosnosvestirdeconsciênciaehonra(lembre-sedafábuladaroupanovadorei),

tampoucodoespetáculodeumaqueda-d’água;as roupasnãochegamaténósdessemodo,maspor

meio dos processos de trabalho humano e da troca de mercadorias. Mesmo numa cidade como

Washington,quepareceseropalcodeumenormecomérciodeconsciênciasehonras,aquestãode

quemproduziunossocafédamanhã,assimcomoosaparelhoseletrônicos,opapel,osautomóveis,as

casaseasestradasquesustentamnossavidadiária,estásemprepresente.Fazerdecontaquetudoisso

é dadomagicamente pelomercado, facilitado pelamágica do dinheiro que se encontra em nosso

bolso, é sucumbir totalmente ao fetichismo da mercadoria. Para romper com o fetichismo,

necessitamosdoconceitodevalorcomotempodetrabalhosocialmentenecessário.

SeMarxestavacertoouerradoemtomaressaposição,cabeavocêdecidir.Mas,paraentenderO

capitalnospróprios termosdeMarx,você terádeaceitarumargumentodesse tipoao longodestas

linhas,aomenosatéchegaraofimdolivro.TambéméimportantereconhecerqueMarxprofessaalgo

deextremaimportância:osistemadepreçosé,naverdade,umaaparênciasuperficialquepossuisua

própria realidade objetiva (ele é de fato “tal como parece ser”), assim como uma função vital – a

regulaçãodasflutuaçõesdeofertaedemanda,queconvergemnumequilíbriodepreços–,equeesse

sistema, em seus próprios termos, pode facilmente sair do controle. Como veremos ainda nesse

capítulo, as incongruências quantitativas e qualitativas têm sérias consequências para o

funcionamento do sistema de mercado e das formas dinheiro. (Elas podem gerar não só a

possibilidade,mastambémainevitabilidadedecrisesfinanceirasemonetárias!)

Mas o pressuposto deMarx – do qual teremos de compartilhar, se quisermos compreender seu

pensamento–équeovalor,comotempodetrabalhosocialmentenecessário,estánocentrodetudo.

Seassumirmosqueosvaloressãofixos(apesardeasconstantesmudançasnatecnologiaenasrelações

sociaisenaturaismostraremexatamenteocontrário),veremospreçosflutuaremaoredordospreços

“naturais”,queconsistemnoequilíbrio entre aoferta e ademanda.Esse equilíbriodopreçoéuma

mera aparência, uma representação do tempo de trabalho socialmente necessário que gera o valor

cristalizado em dinheiro. E é ao redor desse valor que os preços demercado efetivamente flutuam

(176).Ospreçosdemercadosedesviamdeseusvaloresdemaneiraconstanteenecessária;senãoo

fizessem, não haveria como equilibrar omercado.Quanto às incongruências qualitativas, algumas

(comoaespeculaçãocomovalorearendadaterra)têmumpapelmaterialimportante(quesóserá

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examinado no Livro III) nos processos de urbanização e na produção de espaço.Mas essa é uma

questãoquenãopodemosconsideraraqui.

Item2:Omeiodecirculação

EstudarosparágrafosintrodutóriosdeMarxémuitoútil,porquecostumamindicaroargumento

outemageralquedevemosteremvista.Elenoslembraaquique“vimosqueoprocessodetrocadas

mercadorias inclui relações contraditórias e mutuamente excludentes” (178). A que ele se refere?

Vamos voltar ao item sobre as formas relativa e equivalente de valor. Lá, ele identificou três

peculiaridades da mercadoria-dinheiro. A primeira é que “o valor de uso se torna a forma de

manifestação de seu contrário, o valor”; a segunda, o “trabalho concreto se torna [...] expressão do

trabalho humano abstrato”; e a terceira, “esse trabalho concreto [...], embora seja trabalho privado

como todos os outros, trabalho que produz mercadorias, [...] é trabalho em forma imediatamente

social”(132-5).

Oouroéumamercadoriaparticular,produzidaeapropriadaporpessoasprivadas,dotadadeum

valordeusoparticularcontudotodasessasparticularidadesestãodealgummodoocultasnointerior

do equivalente universal da mercadoria-dinheiro. “O desenvolvimento da mercadoria não elimina

essas contradições”, observa Marx, “porém cria a forma em que elas podem se mover.” Aqui há

algumaspistas–presteatençãoemespecialàfrase“aformaemqueelas[ascontradições]podemse

mover”–acercadanaturezadométododialéticodeMarx.Dizele:

Esseé,emgeral,ométodocomquesesolucionamcontradiçõesreais.É,porexemplo,umacontradiçãoofatodequeumcorposeja

atraído por outro e, ao mesmo tempo, afaste-se dele constantemente. A elipse é uma das formas de movimento em que essa

contradiçãotantoserealizacomoseresolve.(178,grifomeu)

Anteriormente, descrevi a dialética como uma forma de lógica expansionista. Algumas pessoas

gostam de pensar que a dialética diz respeito exclusivamente a tese, antítese e síntese,mas o que

Marxdizaquiéquenãoexistesíntese.Oqueexisteéapenasainternalizaçãodacontradiçãoesua

acomodaçãonumgraumais elevado.As contradiçõesnunca sãodefinitivamente resolvidas; podem

ser apenas repetidas num sistema demovimento perpétuo (como a elipse) ou em escala cada vez

maior.No entanto,hámomentos aparentesde resolução,por exemploquando a forma-dinheiro se

cristalizanatrocapararesolveroproblemadacirculaçãoeficientedasmercadorias.Issosignificaque

podemos respirar aliviados,dargraças aDeuspor termosodinheiro,que éumaboa síntese, enão

pensar mais no assunto? Não, diz Marx, temos de analisar as contradições que a forma-dinheiro

interioriza–contradiçõesquesetornamproblemáticasnumaescalamaior.Há,porassimdizer,uma

expansãoperpétuadascontradições.

Por essa razão, fico irritado compessoas que descrevem a dialética deMarx comoummétodo

fechado de análise. Ela não é finita; ao contrário, está sempre em expansão, e aqui ele mostra

precisamentecomoissoocorre.PrecisamosapenasreveraexperiênciaquetivemosaolerOcapital:o

movimento de sua argumentação é uma constante remodelação, recontextualização e expansão do

campodascontradições.IssoexplicaporqueMarxserepetetanto.Cadapassoadianteexigequeele

retorne a uma contradição anterior para explicar a origem da próxima. Refletir sobre as passagens

introdutóriasajudaaesclarecerosentidodopensamentodeMarx,porqueelasdãoumaideiamelhor

sobreaquiloqueeleestátentandofazeremcadaitemàmedidaqueseusargumentossedesdobram.

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Podemosveresseprocessoemfuncionamentonosegundoitemdocapítulosobreodinheiro,no

qualMarxexaminaoquechamade“metabolismosocial”e“metamorfosedasmercadorias”pormeio

da troca.A troca, comovimos,produzuma“duplicaçãodamercadoria emmercadoria edinheiro”.

Estes,quandoemação,movem-seemdireçõesopostasacadatrocademãos.Enquantoomovimento

de um (a troca de dinheiro) facilita o da outra (omovimento dasmercadorias), ocorre um fluxo

oposto,quecriaapossibilidadeparaosurgimentode“formasantiéticas”(178-9).Issoabreocaminho

paraaanálisedametamorfosedasmercadorias.

Atrocaéumatransaçãoemqueovalorsofreumamudançadeforma.Marxchamaessacadeiade

movimentos – mercadoria em dinheiro, dinheiro em mercadoria – de relação “M-D-M”. (O

movimento “M-D-M” é diferente domovimento “M-M”,mercadoria pormercadoria, ou escambo;

agora,todasastrocassãomediadaspelodinheiro.)Trata-sedeumaduplametamorfosedovalor:de

MemDedeDemM(179-80).

Superficialmente, essas formas do valor parecem imagens refletidas num espelho, portanto

equivalentes em princípio;mas, na verdade, elas são assimétricas.O ladoM-D da troca, a venda,

implica a mudança de forma de uma mercadoria particular em seu equivalente universal, a

mercadoria-dinheiro. Trata-se de ummovimento do particular para o universal. Para vender uma

mercadoriaparticular, você temdeencontrarnomercadoalguémqueaqueira.Oqueacontece se

vocêvaiaomercadoeninguémquerasuamercadoria?Issolevaaumasériedequestõessobrecomoa

necessidade–eaproduçãodenecessidadespelapropaganda,porexemplo–influenciaoprocessode

troca:

Talvezamercadoriasejaoprodutodeumnovomododetrabalho,quesedestinaàsatisfaçãodeumanecessidaderecém-inauguradaou

pretendeelaprópriaengendrarumanovanecessidade[...].Oprodutosatisfazhojeumanecessidadesocial.Amanhãépossívelqueele

sejatotalouparcialmentedeslocadoporoutrotipodeprodutosemelhante.(180)

Assim,a transformaçãodeMemDécomplicada,emgrandeparte,pelascondiçõesdeofertae

demandaexistentesnomercadonummomentoparticular:

Comosepodever,amercadoriaamaodinheiro,mas“thecourseoftrueloveneverdoesrunsmooth”[emtempoalgumteveumtranquilo

cursooverdadeiroamor]

[g]

.Tãonaturalmente contingentequantooqualitativo éoquantitativodoorganismo socialdeprodução,

queapresentaseusmembradisjecta[membrosamputados]nosistemadadivisãodotrabalho.(182)

Emoutraspalavras,amãoinvisíveldomercado–ocaosdastrocasmercantis,aincertezacrônica

inerente a elas – põe todo tipo de obstáculo à conversão direta da mercadoria em equivalente

universal.

M-D-Méumprocesso singular–uma troca–quepode servistode seusdois “polos” (182).O

ladoD-Mdatroca,acompra,éatransiçãododinheiroparaamercadoria;elerealizaummovimento

douniversalparaoparticular.MasessenãoéapenasooutroladodomovimentoM-D.Emprincípio,

trocardinheiroporumamercadoriaémuitomaisfácil:vocêvaiaomercadocomdinheironobolsoe

compratudooquequiser.Éclaroquecompradorespotenciaispodemeventualmentesefrustrar,não

encontrandooquedesejam;mas,nessecaso,graçasàequivalênciauniversaldamercadoria-dinheiro,

elessemprepodemcompraroutracoisaqualquer.

Noprocessodetroca,portanto,ovalorsemovedeumestado(odamercadoria)paraoutro(odo

dinheiro),evice-versa.Vistoemseuconjunto,esseprocesso

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consisteemdoismovimentosantitéticosemutuamentecomplementares,M-DeD-M.Essasduasmutaçõesantiéticasdamercadoria

serealizamemdoisprocessossociaisantitéticosdopossuidordemercadoriase serefletememdoiscaractereseconômicosantiéticos

dessepossuidor[...].Comoamesmamercadoriapercorresucessivamenteasduasmutaçõesinversas,[...]assimomesmopossuidorde

mercadoriasdesempenhaalternadamenteospapéisdevendedorecomprador.(184-5)

AênfasedeMarxnasantítesessinalizaumacontradiçãopotencial,masnãoentrecompradorese

vendedores,porqueestes“nãosãofixos,mas,antes,personagensconstantementedesempenhadospor

pessoas alternadas no interior da circulação de mercadorias”. A contradição tem de estar na

metamorfosedasmercadoriastomadasemconjunto,istoé,nacirculaçãodasmercadoriasemgeral,

umavezque“aprópriamercadoriaéaquideterminadademaneiraantiética”:éaomesmotempoum

nãovalordeusoparaoproprietário e, comoobjetode compra,umvalordeusoparao comprador

(185).

Esseprocesso–acirculaçãodemercadorias–écadavezmaismediadopelodinheiro.Note,mais

umavez,comoaexpansãodasrelaçõesdetrocaéimportanteparaoargumentodeMarx:

Vemos,porumlado,comoatrocademercadoriasrompeasbarreirasindividuaiselocaisdatrocadiretadeprodutosedesenvolveo

metabolismodo trabalhohumano.Poroutro, desenvolve-seumcírculo completode conexõesque, embora sociais, impõemcomo

naturais,nãopodendosercontroladasporseusagentes.(186)

Portanto,ondeestáacontradiçãonoprocessodecirculaçãodemercadorias?Aocontráriodeuma

mercadoriacomprada,que, sendoumvalordeusoparaoconsumidor,pode“sairdecirculação”,o

dinheironãodesaparece.Ele continua a semovimentar, ede talmodoque “a circulação transpira

dinheiroportodososporos”(186).Comisso,Marxlançaumataqueviolentoedefinitivoàchamada

leideSay,quetinhaumpoderextraordinárionaeconomiapolíticaclássicaeaindahojeéumacrença

inabalávelentreoseconomistasmonetaristas

[1]

.OeconomistafrancêsJ.B.Sayafirmavaquenãopode

ocorrerumacrisegeraldesuperproduçãonocapitalismo,porquetodavendaéumacompra,etoda

compraéumavenda.Segundoessalógica,hásemprealgumtipodeequilíbrioentrecomprasevendas

nomercado:mesmoquehajaumasuperproduçãodesapatosemrelaçãoacamisas,oudelaranjasem

relaçãoamaçãs,umasuperproduçãogeneralizadanasociedadeéimpossível,porqueháequivalência

absolutaentrecomprasevendas.

Marxfazaseguinteobjeção:

Nadapodesermaistolodoqueodogmadequeacirculaçãodemercadoriasprovocaumequilíbrionecessáriodevendasecompras,

umavezquecadavendaéumacompra,evice-versa.Seissosignificaqueonúmerodasvendasefetivamenterealizadaséomesmodas

compras,trata-sedepuratautologia[...].Ninguémpodevendersemqueoutrocompre.Masninguémprecisacomprarapenaspelo

fato de elemesmo ter vendido [...].Dizer que esses dois processos independentes e antitéticos [isto é,M-D eM-D] formamuma

unidade interna significa dizer que sua unidade interna se expressa em antíteses externas. Se, completando-se os dois polos um ao

outro, a autonomização externa [...] avança até certo ponto, a unidade se afirma violentamente por meio de uma crise. A antítese,

imanente àmercadoria, entre valor de uso e valor na forma do trabalho privado que aomesmo tempo tem de se expressar como

trabalhoimediatamentesocial,naformadotrabalhoparticulareconcretoqueaomesmotempoétomadoapenascomotrabalhogeral

abstrato,dapersonificaçãodascoisasecoisificaçãodaspessoas–essacontradiçãoimanenteadquirenasantítesesdametamorfoseda

mercadoriasuas formasdesenvolvidasdemovimento.Por isso, tais formas implicamapossibilidadedecrises,masnãomaisquesua

possibilidade.(186-7)

Lamentodizerque,paradesenvolverplenamente essapossibilidadede crise, você teráde leros

livrosIIeIII,alémdostrêsvolumesdeTeoriasdomais-valor,porque,comodizMarx,precisamossaber

muito antes de poder explicar em detalhes de onde surgem as crises. Para o nosso objetivo, no

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entanto,éimportantenotarquea“transformaçãodecoisasempessoasedepessoasemcoisas”fazeco

aoargumentoapresentadonoprimeirocapítulosobreofetichismo.

NocentrodaobjeçãodeMarxaSayencontramososeguinteargumento:começocomM,passo

paraD,masnãohánadaquemeobrigueagastarimediatamenteodinheiroemoutramercadoria.Se

eu quisesse, poderia simplesmente guardar o dinheiro; poderia fazer isso, por exemplo, se não

confiasse na economia ou estivesse inseguro quanto ao futuro e quisesse poupar. (O que você

prefeririateràmãoemtemposdifíceis:umamercadoriaparticularouoequivalenteuniversal?)Maso

que aconteceria com a circulação de mercadorias em geral se todo mundo decidisse de repente

guardar seudinheiro?Acompraeacirculaçãodemercadoriascessariam,oque levariaaumacrise

generalizada.Senomundointeiroaspessoasdecidissemnãousarseuscartõesdecréditodurantetrês

dias, a economia global correria um sério perigo. (Lembre como, após o 11 de Setembro, os norte-

americanosforamestimuladosasacarseuscartõesdecréditoevoltaràscompras.)Essaéarazãode

tantoesforçoparatirardinheirodonossobolsoemantê-locirculando.

NaépocadeMarx,amaioriadoseconomistas, inclusiveRicardo,aceitavamaleideSay(187-8,

nota73).Efoiemparteporinfluênciadosricardianosqueessaleidominouopensamentoeconômico

durantetodooséculoXIXeseestendeuatéosanos1930,quandohouveumacrisemundial.Seguiu-

seentãoumcorodeeconomistas(comoatéhojeétípico)quediziacoisascomo:“Nãoteriahavido

crise se a economia tivesse se comportado de acordo com meu manual!”. A teoria econômica

dominante, que negava a possibilidade de crises generalizadas, tornou-se indefensável depois da

GrandeDepressão.

Em1936, JohnMaynardKeynes publicouTeoria geral do emprego, do juro e damoeda

[b]

, em que

abandona de vez a lei de Say. Em Essays in Biography [Ensaios em biografia], de 1933, Keynes

reexaminouahistóriada leideSayeoqueviacomosuasconsequências lamentáveisparaa teoria

econômica.Eledágrandeimportânciaaoquechamadearmadilhadaliquidez,pelaqual,quandohá

umtumultonomercado,aquelesquetêmdinheiroficamnervososedecidampoupá-lo,aoinvésde

investi-lo ou gastá-lo, oqueprovocaumaquedanademandademercadorias.Deumahorapara a

outra, as pessoas não conseguem mais vender suas mercadorias. A incerteza cria cada vez mais

perturbações no mercado, e mais pessoas passam a poupar seu dinheiro, fonte de sua segurança.

Consequentemente,aeconomiainteirainiciaumaespiraldescendente.Keynesdefendiaque,nesses

casos,ogovernodeveriaentraremcenaereverteroprocessopormeiodacriaçãodeestímulosfiscais.

Issoatrairiaodinheiroacumuladodevoltaparaomercado.

Comovimos,Marx tambémconsidera a leideSayumdogma tolon’Ocapital, e desde os anos

1930háumdebate sobrea relaçãoentreas teorias econômicasmarxianas ekeynesianas.Marxestá

claramentedoladodaqueleseconomistaspolíticosquedefendemapossibilidadedecrisesgerais–na

literaturadaépoca,esseseconomistaseramchamadosde teóricosda“superproduçãogeral” [general

glut] e eram relativamente poucos. Um deles era o francês Simondi; outro era Thomas Malthus

(célebrepor sua teoriadapopulação),oquedecerta forma foiuma infelicidade,porqueMarxnão

toleravaMalthus,comoveremosmaisadiante.

Keynes,poroutrolado,louvadesmesuradamenteMalthusemEssaysinBiography,mascitamuito

poucoMarx–talvezporrazõespolíticas.Naverdade,KeynesdizianuncaterlidoMarx.Suspeitoque

eleotenhalido,mas,mesmoquenãootenha,estavacercadodepessoasquehaviamlidoMarx,como

a economista JoanRobinson, e certamente informaramKeynes de que ele rejeitava a lei de Say.A

teoria keynesiana dominou o pensamento econômico no período pós-guerra; seguiu-se então a

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revolução anti-keynesiana do fim dos anos 1970. A teoria monetarista e neoliberal, ainda hoje

predominante, tendemuitomaisaaceitar a leideSay.Aquestãodo statuspróprioda leideSayé

interessantecomoobjetodeinvestigaçãoposterior,mas,paraosnossospropósitos,oqueimportaéa

rejeiçãoenfáticadessaleiporMarx.

OpassoseguintenaargumentaçãodeMarxéaanálisedacirculaçãododinheiro.Nãodedicarei

muito tempo aos detalhes dessa questão, pois o que Marx faz é basicamente revisar a literatura

monetaristadaépoca.Aquestãoqueelecolocaaquié:quantodinheiroéprecisoparafazercircular

uma dada quantidade demercadorias? Ele aceita uma versão daquilo que era chamado de “teoria

quantitativa da moeda”, similar à teoria monetária de Ricardo. Após várias páginas de discussão

minuciosa,elechegaaumasupostalei:aquantidadedomeiocirculanteé“determinadapelasoma

dospreçosdasmercadorias emcirculaçãoepelavelocidademédiadocursododinheiro” (196). (A

velocidadedacirculaçãododinheiroésimplesmenteumamedidadataxacomqueamoedacircula,

porexemplo:quantasvezesnumdiaumanotadedólartrocademãos.)Antes,noentanto,eledizque

“os três fatores: omovimentodospreços, aquantidadedemercadorias emcirculação e, por fim, a

velocidadedocursododinheiropodemvariaremdiferentessentidosediferentesproporções”(195).

Portanto, a quantidade necessária de dinheiro varia consideravelmente, dependendo do

comportamento dessas três variáveis.Quando se descobre umamaneira de acelerar a circulação, a

velocidadedodinheirotambémaumenta,comoocorre,porexemplo,comousodecartõesdecrédito

e bancos eletrônicos: quantomaior a velocidade do dinheiro,menos dinheiro é necessário, e vice-

versa. Não há dúvida de que o conceito da velocidade do dinheiro é importante, e ainda hoje o

FederalReservetentaconseguirmedidasomaisprecisaspossível.

ConsideraçõessobreateoriaquantitativadamoedalevamMarxdevoltaaoargumentocitadono

início deste capítulo – o de que, para a circulação de mercadorias, pequenos grãos de ouro são

ineficientes.Émuitomaiseficienteusarobjetos simbólicos,moedas,papelou,comoacontecehoje

emdia,númerosnumateladecomputador.Mas“acunhagemdemoedas”,dizMarx,“assimcomoa

determinação do padrão dos preços, [...] é tarefa que cabe ao Estado” (198). Portanto, o Estado

desempenhaumpapelvitalnasubstituiçãodemercadorias-dinheirodemetalporformassimbólicas.

Marx ilustra isso comuma imagembrilhante: “Nos diferentes uniformes nacionais que o ouro e a

pratavestem,masdosquaisvoltamasedespojarnomercadomundial,manifesta-seaseparaçãoentre

as esferas internas ou nacionais da circulação das mercadorias e a esfera universal do mercado

mundial”(198).Aimportânciadomercadoedodinheiromundialéreafirmadanofimdessecapítulo.

Localmente, a busca por formas eficientes de dinheiro é primordial. “A moeda divisionária é

introduzida,paralelamenteaoouro,paraopagamentodefraçõesdamoedadeourodemenorvalor”,

o que leva então ao “papel-moeda emitido pelo Estado e de circulação compulsória” (200). O

surgimentodesímbolosdodinheirotrazmuitasoutraspossibilidadeseproblemas:“Opapel-moedaé

signodoouroousignodedinheiro.Suarelaçãocomosvaloresdasmercadoriasconsisteapenasem

que estes estão idealmente expressos nas mesmas quantidades de ouro simbólica e sensivelmente

representadaspelopapel”(202).

Marxobservatambém“que,assimcomoodinheirodepapelsurgedafunçãododinheirocomo

meiodecirculação, tambémodinheirocreditíciopossuisuasraízesnaturais-espontâneasnafunção

dodinheirocomomeiodepagamento”(200).Amercadoria-dinheiro,oouro,ésubstituídaportodo

tipo demeio de pagamento, comomoedas, cédulas de papel e crédito. Isso ocorre porque o ouro,

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medido por peso, é ineficiente comomeio de circulação. É “socialmente necessário” abandonar o

ourocomopesoeoperarcomessasoutrasformassimbólicasdedinheiro.

Esseéumargumentológico,históricoouambos?Nãohádúvidadequeahistóriadasdiferentes

formasdedinheiroeahistóriadopoderestatalestãointimamenteentrelaçadas.Masascoisastêmde

serassim,istoé,existeumpadrãoinevitávelparaessasrelações?Atéoiníciodosanos1970,amaioria

dos papéis-moeda era supostamente conversível em ouro. Era isso que lhes dava sua pretensa

estabilidade,ou,comodiriaMarx,sua“relacionalidade”comovalor.Noentanto,dosanos1920em

diante,aconversãodedinheiroemourofoiproibidaapessoasprivadasemmuitospaísesereservada

sobretudoparaastrocasentrepaísesparaequilibrarabalançafinanceira.Osistemadesmoronouno

fim dos anos 1960 e início dos anos 1970, e hoje temos um sistema puramente simbólico, sem

nenhumabasematerialclara–umamercadoria-dinheirouniversal.

Querelaçãoexistehojeentreosváriospapéis-moedas(porexemplo,dólares,euros,pesos,ienes)e

ovalordasmercadorias?Emboraaindatenhaumpapelinteressante,oouronãofuncionamaiscomo

base para a representação do valor. A relação entre as moedas e o tempo de trabalho socialmente

necessário,quejáéproblemáticamesmonocasodoouro,tornou-seaindamaisremotaealusiva.Mas

dizer que ela é oculta, remota e alusiva não significa que ela exista. As turbulências nosmercados

financeiros internacionais têm a ver com as diferenças de produtividade material nas diferentes

economias nacionais. A relação problemática entre as formas-dinheiro e os valores-mercadoria

existentes queMarx ressalta persiste até hoje, e estámuitomais aberta à linha de análise que ele

inaugurou,aindaquesuaformaatualdemanifestaçãosejamuitodiferente.

Item3:Dinheiro

Marxexaminouodinheirocomoumamedidadevalore reveloualgumasdesuascontradições,

particularmente no que diz respeito a suas funções “ideais” como o preço e as consequentes

“incongruências” na relação entre preços e valores. Observando o dinheiro do ponto de vista da

circulação, ele revelou outro conjunto de contradições (inclusive a possibilidade de crises

generalizadas).Agora–oqueé típicodeMarx–ele retomaoassuntoediz:no fimdascontas,há

apenasumdinheiro.Issosignificaque,decertomodo,ascontradiçõesentreodinheirocomouma

medidadevaloreodinheirocomoummeiodecirculaçãoprecisamde“espaçoparasemover”,ou

talveztenhammesmodeserresolvidas.

Elecomeçareiterandoaideiafundamentaldodinheirocomo“amercadoriaquefuncionacomo

medidadevalore,dessemodo,tambémcomomeiodecirculação,sejaemseuprópriocorpooupor

meiodeumrepresentante”(203).Voltamosassimaoconceitounitário,masagoratemosdeexaminar

comoas contradições anteriormente identificadaspodemoperar emseu interior.O fimdovínculo

entre o valor e sua expressão dá espaço para manobra, mas à custa do contato com uma base

monetáriarealesólida.Nesseponto,Marxpenetraprofundamentenascontradiçõesquecaracterizam

essaformaevoluídadosistemamonetário.Elecomeçaconsiderandoofenômenodoentesouramento:

Comoprimeirodesenvolvimentodacirculaçãodasmercadorias,desenvolve-setambémanecessidadeeapaixãodereteroprodutoda

primeira metamorfose, a figura transformada da mercadoria ou sua crisálida de ouro. A mercadoria é vendida não para comprar

mercadoria,maspara substituir a forma-mercadoriapela forma-dinheiro.De simplesmeiodometabolismo, essamudançade forma

converte-se em fim de si mesma [...]. Com isso, o dinheiro se petrifica em tesouro e o vendedor de mercadorias se torna um

entesourador.(144)

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(Essapassagemprenunciaoutrotipodeprocessodecirculação,noqual,comoveremos,M-D-Mé

vistocomoD-M-D,eaobtençãodedinheirosetornaumfimemsimesmo.)

Masporqueaspessoasfariamisso?Marxofereceumarespostaduplaemuitointeressante.Deum

lado,temosodesejoapaixonadopelopoderdodinheiro,mas,deoutro,temosanecessidadesocial.

Porqueoentesouramentoésocialmentenecessárioparaatrocademercadorias?Marxinvocaaquio

problemada coordenação da venda e da compra demercadorias que consomem tempos diferentes

paraserproduzidaselevadasaomercado.Umagricultorproduznumabaseanual,mascompranuma

basediária;portanto,eleprecisaacumularreservasentreumacolheitaeoutra.Qualquerpessoaque

queiracomprarumartigodegrandemonta(comoumacasaouumcarro)precisaantesentesourar

dinheiro – amenos que tenha acesso ao sistema de crédito. “Dessemodo, em todos os pontos do

intercâmbiosurgemtesourosdeouroeprata,dosmaisvariadostamanhos”(205).

Masacapacidadedeentesourarosmeiosdetroca(numdesafioàleideSay)tambémvemdeuma

paixão, a “avidez por ouro”. “O impulso para o entesouramento”, diz Marx, “é desmedido por

natureza”. Como atesta Cristóvão Colombo: “O ouro é uma coisa maravilhosa! Quem o possui é

senhordetudooquedeseja.Comoouropode-seatémesmoconduzirasalmasaoparaíso”(205).Ao

citarColombo,Marxretornaàideiadeque,sevocêpodecolocarumaetiquetadepreçonumacoisa,

podecolocá-laemqualquercoisa–atémesmonaalmadeumapessoa,comosugereaalusãoàinfame

vendade indulgências (isto é, de perdões papais queprometiam a entradanoCéu) praticadapela

IgrejaCatólicanaIdadeMédia:“Acirculaçãosetornaagranderetortasocial,naqualtudoélançado

paradelasaircomocristaldedinheiro.Aessaalquimianãoescapamnemmesmoosossosdossantos

[...]”(205).

A venda de indulgências é considerada em geral uma das primeiras grandes ondas da

mercantilização capitalista. Certamente lançou as bases para toda aquela riqueza entesourada no

Vaticano.Efala-sedemercantilizaçãodaconsciênciaedahonra!

Não há nada que não sejamensurável em dinheiro; na circulação demercadorias, ele “apaga,

comoumlevellerradical,todasasdiferenças”(205).Essaideiadodinheirocomoum levellerradialé

muito importante. Indica certa democracia, um igualitarismododinheiro: umdólarnomeubolso

tem omesmo valor de umdólar no seu bolso.Tendo dinheiro suficiente, podemos comprar nosso

lugarnocéu,poucoimportandoospecadosquetenhamoscometido!

Masodinheirotambém“é,elepróprio,umamercadoria,umacoisaexterna,quepodesetornara

propriedade privada de qualquer um. Assim, a potência social torna-se potência privada da pessoa

privada” (205). Esse é umpasso vital na argumentação deMarx.Note como ele faz eco à terceira

“peculiaridade”daforma-dinheiroreveladanoitemsobreosvaloresrelativoeequivalente–istoé,a

tendênciadodinheirodetornarotrabalhoprivadoummeiodeexpressãoparaotrabalhosocial.Com

esse passo, no entanto,Marx inverte aquela formulação inicial da relação lógica entre dinheiro e

trabalho. Lá, o problema era que as atividades privadas estavam envolvidas na produção do

equivalenteuniversal.Agora,eledescrevecomopessoasprivadaspodemseapropriardoequivalente

universal para suas próprias finalidades privadas – e começamos a vislumbrar a possibilidade de

concentraçãodepoderprivadoe,eventualmente,depoderdeclasseemformamonetária.

Issonemsempretranscorreubem.“Asociedadeantigaodenuncia[odinheiro][...]comoamoeda

da discórdia de sua ordem econômica emoral” (206). Esse é um tema longamente explorado por

MarxnosGrundrisse, emquedescrevecomoodinheirodestruiuacomunidadeantiga, tornando-se

elemesmoacomunidade,acomunidadedodinheiro

[c]

.Essemundoéomesmoemquevivemoshoje.

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Podemosfantasiarquepertencemosaestaouaquelacomunidadecultural,mas,naprática,dizMarx,

nossacomunidadeprimáriaédadapelacomunidadedodinheiro–osistemadecirculaçãouniversal

quepõenossocafédamanhãnamesa–,gostemosdissoounão:“asociedademoderna,quejánasua

infância arrancouPlutodas entranhasda terrapelos cabelos, saúdanoGraaldeouroa encarnação

resplandecentedeserprincípiovitalquelheémaispróprio”(206).

Opodersocialqueodinheiroproporcionanãotemlimite.Maspormaisdesenfreadoquesejao

impulso de entesouramento, há uma limitação quantitativa ao entesourador: a quantidade de

dinheiro que ele possui num dado momento. “Tal contradição entre a limitação quantitativa e a

ilimitação qualitativa do dinheiro empurra constantemente o entesourador de volta ao trabalho de

Sísifo da acumulação” (206, grifosmeus). Essa é a primeiramenção à acumulação n’O capital, e é

importante observar que Marx chega a ela revelando a contradição inerente ao ato de

entesouramentodedinheiro.

Aspotencialidadesilimitadasdaacumulaçãomonetáriasãoumobjetofascinantedereflexão.Há

umlimite físicoàacumulaçãodevaloresdeuso.Dizemque ImeldaMarcospossuíacercade2mil

pares de sapatos, mas essa enorme quantidade de sapatos continua sendo um montante finito.

QuantasFerrarisou“McMansions”vocêpodeter?Comopoderdodinheiro,océuéolimite.Não

importaquantodinheiroganhe, tododiretor executivooubilionárioquer epodeganharmais.Em

2005,osprincipaisgerentesdefundosdeinvestimentodosEstadosUnidosreceberamcercade250

milhões de dólares como remuneração pessoal, mas em 2008 vários deles, inclusive George Soros,

ganharamcercade3bilhõesdedólares.Aacumulaçãodedinheirocomopodersocialilimitadoéum

traçoessencialdomododeproduçãocapitalista.Quandoaspessoasprocuramacumularessepoder

social, começam a se comportar de forma diferente.Uma vez que o equivalente universal se torna

uma representação de todo o tempo de trabalho socialmente necessário, as possibilidades de uma

acumulaçãoprogressivasãoilimitadas.

As consequências são inúmeras. Omodo de produção capitalista é essencialmente baseado na

acumulaçãoinfinitaenocrescimentoilimitado.Outrasformaçõessociais,emalgumpontohistórico

ou geográfico, chegam a um limite e, quando isso acontece, desmoronam.Mas a experiência do

capitalismo,comalgumasfasesóbviasdeinterrupção,caracteriza-seporumcrescimentoconstantee

aparentementeilimitado.Ascurvasdecrescimentoqueilustramahistóriadocapitalismoemtermos

de produto, riqueza e dinheiro em circulação são impressionantes (assim como as consequências

sociais,políticaseambientaisradicaisqueimplicam).Essasíndromedecrescimentonãoseriapossível

se não fosse o modo aparentemente ilimitado de acumulação da representação de valor emmãos

privadas.Nadadissoéexplicitamentemencionadon’Ocapital,maspodenosajudaraestabeleceruma

ligaçãoimportante.Marxestáconstruindoseuargumentosobreacontradiçãoentreapotencialidade

ilimitadadaacumulaçãodedinheiro-podereaspossibilidades limitadasdaacumulaçãodevalorde

uso. Isso, como veremos, prenuncia sua explanação sobre a natureza dinâmica e expansionista do

crescimentodaquiloquehojechamamosdecapitalismo“globalizado”.

Nesseponto,noentanto,elesimplesmenteassumeopontodevistadoentesourador,paraquema

acumulaçãoilimitadadepodersocialnaformadedinheiroéumincentivosignificativo(deixandode

lado o incentivo secundário representado pelo valor estético agregado aos belos objetos de ouro e

prata). Marx observa que o entesouramento tem uma função potencialmente útil em relação à

contradição entre o dinheiro como medida de valor e como meio de circulação. O dinheiro

entesouradoconstituiumareservaquepodeserpostaemcirculação,sehouverumsúbitoaumentona

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produçãodemercadorias,epodeserretida,seaquantidadededinheironecessáriaparaacirculação

diminuir(porexemplo,emvirtudedeumaumentodevelocidade).Dessemodo,aformaçãodeum

tesourotorna-secrucialpararegular“asaltasebaixas”dodinheiroemcirculação(207).

Aextensãocomqueumtesouropodeexerceressafunçãodepende,noentanto,dequesejausado

demaneira apropriada.Comoodinheiroentesouradodeve ser colocadonovamente emcirculação,

quandonecessário?Aumentar opreço relativodoouro e daprata, por exemplo, poderia induzir as

pessoas a gastar com mercadorias que se tornaram relativamente mais baratas. A ideia é que “as

reservasservem,aomesmotempo,comocanaisdeafluxoerefluxododinheiroemcirculação,oqual,

assimregulado,jamaisextravasaseuscanaisdecirculação”(207).

Marxanalisaentãoasimplicaçõesdodinheiroqueéusadocomomeiodepagamento.Maisuma

vez,oproblemabásicotratadoaquisurgedetemporalidadescruzadasdediferentestiposdeprodução

demercadorias.Umagricultorproduzumasafraquepodeserpostanomercadoemsetembro.Como

osagricultoresvivemduranteorestodoano?Elesprecisamdedinheirocontinuamente,masganham

todooseudinheirodeumavezsó,umavezporano.Umasolução,emvezdoentesouramento,éusar

odinheirocomomeiodepagamento.Issocriaumhiatotemporalentreatrocademercadoriaseas

trocas monetárias: é preciso estabelecer uma data futura de liquidação. (A Festa de São Miguel

Arcanjotornou-seumadatatradicionaldeacertodecontasnaGrã-Bretanha,representandoociclo

agrícola no país

[d]

.) As mercadorias circulam “fiado”. O dinheiro se converte em moeda contábil,

lançadaemlivrocomercial.Comonenhumdinheiroémovimentadoatéadatadeliquidação,menos

dinheiro agregado é necessário para fazer circular asmercadorias, o que ajuda a resolver a tensão

entreodinheirocomomedidadevalorecomomeiodecirculação(208).

Oresultadoéumnovotipoderelaçãosocial–aqueleentredevedoresecredores–,quedáorigem

aumaespéciediferentedetransaçãoeconômicaeaumadinâmicasocialdiferente.“Ovendedorse

torna credor, e o comprador, devedor. Como aqui se altera a metamorfose da mercadoria ou o

desenvolvimento de sua forma-valor, também o dinheiro recebe outra função. Torna-se meio de

pagamento”(208).

Masnoteque“opapeldecredoroudevedorresulta,aqui,dacirculaçãosimplesdemercadorias”,

masépossíveltambémqueessepapelseoriginedapassagemdeformasocasionais,transitórias,para

umaoposição“suscetíveldeumamaiorcristalização”–peloqueMarxentendeumarelaçãodeclasses

maisdefinida. (Elecomparaessadinâmicaà lutadeclassesnomundoantigoeàdisputana Idade

Médiaqueterminou“comaderrocadadodevedorfeudal,queperdeseupoderpolíticojuntamente

com sua base econômica” (209).)Há, portanto, uma relação de poder no interior da relação entre

devedorecredor,emborasuanaturezaaindatenhadeserdeterminada.

Qual é então o papel do crédito na circulação geral demercadorias? Suponha que eu seja um

credorevocêprecisededinheiro.Eulheemprestocertaquantiaagoracoma ideiaderecebê-lade

voltadepois.AformadacirculaçãoéD-M-D,queémuitodiferentedeM-D-M.Porqueeucolocaria

dinheiroemcirculaçãoparaterdevoltaamesmaquantiadedinheiro?Nãohánenhumavantagem

paramimnessaformadecirculação,anãoserqueeurecebadevoltamaisdinheirodoqueemprestei.

(Talvezjáestejaclaroaondelevaessaanálise.)

Segue-seumapassagemcrucial,cujaimportânciapodefacilmentepassardespercebida,emparte

porqueMarxaapresentanumalinguagemcomplicada.Cito-aquasetoda:

Voltemosàesferadacirculaçãodemercadorias.Deixoudeexistiraapariçãosimultâneadosequivalentesmercadoriaedinheironosdois

polos do processo da venda. Agora, o dinheiro funciona, primeiramente, como medida de valor na determinação do preço da

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mercadoriavendida.Seupreçoestabelecidoporcontratomedeaobrigaçãodocomprador,istoé,asomadedinheiroqueeledevepagar

numdeterminadoprazo.Emsegundolugar,funcionacomomeioidealdecompra.Emboraexistaapenasnapromessadedinheirodo

comprador,eleoperanatrocademãosdamercadoria.Éapenasnovencimentodoprazoqueomeiodepagamentoentraefetivamente

emcirculação, isto é,passadasmãosdo compradorpara asdovendedor.Omeiode circulação converteu-se em tesouroporqueo

processo de circulação se interrompeu logo após a primeira fase, ou porque a figura transformada da mercadoria foi retirada da

circulação.Omeiodepagamentoentranacirculação,masdepoisqueamercadoriajásaiudela.Odinheironãomedeiamaisoprocesso.

Eleapenasoconcluidemodoindependente,comoformadeexistênciaabsolutadovalordetrocaoumercadoriauniversal.Ovendedor

converteu mercadoria em dinheiro a fim de satisfazer uma necessidade por meio do dinheiro; o entesourador, para preservar a

mercadorianaforma-dinheiro;odevedor,parapoderpagar.Seelenãopaga,seusbenssãoconfiscadosevendidos.Afiguradevalorda

mercadoria, odinheiro, torna-se, agora, o fimprópriodavenda, e isso emvirtudedeumanecessidade socialquederivadopróprioprocessode

circulação.(209,grifosmeus)

Decodificado,issosignificaqueénecessáriohaverumaformadecirculaçãoemqueodinheiroé

trocadocomafinalidadedeconseguirdinheiro:D-M-D.Essaéumamudançadeperspectivaquefaz

umaenormediferença.Seoobjetivo é conseguiroutros valoresdeusopormeiodaprodução eda

troca de mercadorias, ainda que mediadas pelo dinheiro, estamos lidando com M-D-M. Em

contrapartida,D-M-D é uma forma de circulação em que o objetivo é dinheiro, nãomercadorias.

Para que isso tenha lógica, é preciso que eu consiga de volta mais dinheiro do que aquele que

desembolsei. É nesse ponto d’O capital que vemos pela primeira vez a circulação de capital

cristalizando-seapartirdacirculaçãodemercadorias,mediadapelascontradiçõesdaforma-dinheiro.

Háumagrandediferençaentreacirculaçãodedinheirocomoummediadordatrocademercadorias

e o dinheiro usado como capital.Nem todo dinheiro é capital.Uma sociedademonetizada não é

necessariamenteumasociedadecapitalista.SetudoseresolvessecomoprocessodecirculaçãoM-D-

M,odinheiroseriaumsimplesmediadorenadamais.Ocapitalsurgequandoodinheiroépostoem

circulaçãocomointuitodeconseguirmaisdinheiro.

VamosfazerumapausapararefletirumpoucosobreanaturezadoargumentodeMarxatéaqui.

Neste ponto, podemos dizer que a expansão da troca de mercadorias conduz necessariamente ao

adventodaforma-dinheiroeacontradiçãointernanessaforma-dinheiroconduznecessariamenteao

surgimentodaformacapitalistadecirculação,emqueodinheiroéusadoparaganharmaisdinheiro.

Esseé,emlinhasgerais,oargumentod’Ocapitalatéomomento.

Temosdedecidir,emprimeirolugar,seesseargumentoéhistóricooulógico.Seéumargumento

histórico,entãoexisteumateleologiadahistóriaemgeraleumahistóriacapitalistaemparticular;o

surgimentodocapitalismoéumpassoinevitávelnahistóriahumanaeresultadasexpansõesgraduais

da troca de mercadorias. Podemos encontrar afirmações de Marx que sustentam essa visão

teleológica,eousofrequentequeelefazdapalavra“necessário”certamenteapoiaessainterpretação.

Deminhaparte,nãoestouconvencidodissoe,seMarxacreditavadefatonisso,pensoqueeleestava

errado.

Ficamos então como argumento lógico, que, ameu ver, émuitomais convincente.Ele foca a

metodologiaaplicadanodesenrolardaargumentação:aoposiçãodialéticaerelacionalentreovalor

de uso e o valor de troca incorporados na mercadoria; a exteriorização dessa oposição na forma-

dinheiro, comoummodode representarovalor e facilitar a trocademercadorias; a interiorização

dessacontradiçãopela forma-dinheiro, simultaneamentemeiodecirculaçãoemedidadevalor; ea

resolução dessa contradição pela emergência de relações entre devedores e credores no uso do

dinheirocomomeiodepagamento.Podemosagoraentenderodinheirocomoopontodepartidae

dechegadadeumprocessopeculiardecirculaçãochamadocapital.AlógicadoargumentodeMarx

revela as relações dialéticas interiorizadas que caracterizam um modo de produção capitalista

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(entendido como uma totalidade) plenamente desenvolvido, do tipo engendrado (por razões

históricascontingentes)apartirdoséculoXVI,emparticularnaInglaterra.

Épossível,naturalmente, estabelecerumcompromissocomoargumentohistórico,pormeioda

simples conversão do termo “necessidade” em “possibilidade”, ou mesmo “probabilidade” ou

“verossimilhança”.Diríamosentãoqueascontradiçõesnaforma-dinheirocriaramapossibilidadedo

surgimentodaformacapitalistadecirculação,eapontaríamosatémesmoascircunstânciashistóricas

específicasemqueaspressõesqueemanamdessascontradiçõespodemcrescerapontodeprovocara

quebra do capitalismo.Muito do queMarx atribui à “necessidade social” parece indicar isso. Do

mesmo modo, poderíamos indicar as intensas barreiras que tiveram de ser desenvolvidas nas

sociedades “tradicionais” para impedir a dominação da forma capitalista de circulação e as

instabilidadessociaisqueessassociedadesexperimentaramaosersubmetidasaperíodosregularesde

fomeeescassez, sejademercadorias, sejade fornecimentodeouroouprata.Emdiferentesépocas,

diversas ordens sociais (como a chinesa) padeceram a seumodo dessas contradições, sem cair na

dominaçãodocapital.SeaChinacontemporâneajáentrounocampocapitalistaoupodecontinuara

domarotigrecapitalistaéumaquestãodegrandeimportânciaeobjetodemuitosdebates.Devo,no

entanto,concluircomumasériedequestõesqueprecisamserconsideradas.

N’Ocapital,Marxpassaàanálisedequestõesmaisespecíficas.“Afunçãododinheirocomomeio

depagamento”,observaele,“trazemsiumacontradiçãodireta”:

Namedida emque os pagamentos se compensam, ele funciona apenas idealmente, comomoeda da conta oumedida dos valores.

Quandosetratadefazerumpagamentoefetivo,odinheironãoseapresentacomomeiodecirculação,comomeraformaevanescentee

mediadoradometabolismo,mascomoaencarnação individualdotrabalhosocial,existênciaautônomadovalordetroca,mercadoria

absoluta.(210-1)

Querdizer,quandoodinheiroépostoemcirculaçãopararesolveressedesequilíbrio,aquelesque

odesembolsamnãoofazemporbondade,emrespostaàsnecessidadesdosoutrosouàdemandado

mercado por uma oferta maior de dinheiro. Eles o fazem, ao contrário, de modo proposital, por

alguma outra razão, e devemos entender que razão é essa.Mas a “independência” damercadoria

universalesuaseparaçãodacirculaçãocotidianatêmconsequênciasprofundas.

Nesseponto,aargumentaçãodeMarxsofreumareviravoltasurpreendente:

Essa contradição emergenomomentodas crisesdeprodução ede comércio, conhecidas como crisesmonetárias.Ela ocorre apenas

onde a cadeia permanente de pagamentos e um sistema artificial de sua compensação encontram-se plenamente desenvolvidos.

Ocorrendo perturbações gerais nessemecanismo, venham elas de onde vierem, o dinheiro abandona repentina e imediatamente sua

figurapuramenteidealdemoedadecontaeconverte-seemdinheirovivo.Elenãopodemaissersubstituídopormercadoriasprofanas.

(211)

Em outras palavras, você não pode quitar suas dívidas assinandomais notas promissórias; para

pagá-las,vocêprecisaconseguirdinheirovivo,oequivalenteuniversal.Issolevaàquestãosocialem

geral:deondesairáodinheirovivo?Marxcontinua:

Ovalor de uso damercadoria se torna sem valor, e seu valor desaparece diante de sua forma de valor própria. Ainda há pouco, o

burguês,comatípicaarrogânciapseudoesclarecidadeumaprosperidadeinebriante,declaravaodinheirocomoumaloucuravã.Apenas

amercadoriaédinheiro.Masagoraseclamaportodapartenomercadomundial:apenasodinheiroémercadoria!Assimcomooveado

berrapor água fresca, tambémsua almaberrapordinheiro, aúnica riqueza.Nacrise, aoposição entre amercadoria e sua figurade

valor, o dinheiro, é levada até a contradição absoluta. Por isso, a forma demanifestação do dinheiro é aqui indiferente. A fome de

dinheiroéamesma,quersetenhadepagaremouro,emdinheirocreditícioouemcédulasbancáriasetc.(211)

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Em2005,acreditava-seunanimementequeumimensoexcedentedeliquidezhaviainundadoos

mercados mundiais. Os banqueiros tinham fundos superabundantes e emprestavam dinheiro para

qualquer um, inclusive, como vimos mais tarde, para pessoas sem nenhum histórico de crédito.

Comprar uma casa sem ter renda? Claro, por que não? O dinheiro não tem importância, pois

mercadorias na forma de imóveis são terreno seguro.Mas os preços das casas pararam de subir e,

quando as dívidas tiveram de ser quitadas, cada vezmenos pessoas podiam pagá-las.Quando isso

acontece,aliquidezdesaparecedesúbito.Ondeestáodinheiro?Repentinamente,oFederalReserve

tevedeinjetarfundosmaciçosnosistemabancário,porque“odinheiroéaúnicamercadoria”.

Como Marx ironiza em outro lugar, em fases de prosperidade econômica todos agem como

protestantes – com base na pura fé. Quando sobrevém a crise, porém, todos buscam refúgio no

“catolicismo”dabasemonetária,noouro.Masénessesmomentosquesecolocaaquestãodosvalores

reaisedaforma-dinheiroconfiável.Qualéarelaçãoentreaproduçãorealeoqueacontecenaquelas

fábricas de dívidas engarrafadas em Nova York? Essas são as questões que Marx nos apresenta,

questões das quais nos esquecemos em épocas de bonança, mas que voltam a nos assombrar nos

momentos de crise. O sistema monetário, destacando-se ainda mais do sistema de valor do que

quando se baseava no padrão-ouro, abre caminho para as possibilidades mais temerárias, com

consequênciasdevastadorasparaasrelaçõessociaisenaturais.

Asúbitaescassezdomeiodecirculação,emcertomomentohistórico,podegerarigualmenteuma

crise.Aretiradadecréditodecurtoprazodomercadopodequebraraproduçãodemercadorias.Um

bomexemplodissoocorreunolesteenosudoestedaÁsiaentre1997e1998.Companhiassaudáveis,

queproduziammercadorias,contraíramdívidasenormes,maspoderiamterescapado facilmenteda

insolvência não fosse uma súbita retirada de liquidez de curto prazo. Os banqueiros fecharam os

canaisdecrédito,aeconomiaquebrouecompanhiasviáveisforamàfalênciaporfaltadeacessoaos

meiosdepagamento.Por fim, foramarrematadasporbancosecapitalocidentaisporquasenada.A

liquidezfoirecuperada,aeconomiarevigoradaeascompanhiasfalidasvoltaramaserviáveis.Aúnica

diferença é que agora elas pertencemaosbancos e aopessoal deWall Street, quepodemvendê-las

comenormelucro.NoséculoXIX,houveváriasdessascrisesdeliquidezeMarxasacompanhoude

perto.Oanode1848foipalcodeumaprofundacrisedeliquidez.Easpessoasqueterminaramaquele

anoimensamentemaisricasepoderosasforam–adivinhequem?–aquelasquecontrolavamoouro,

istoé,osRothschilds.Eleslevaramosgovernosàbancarrotasimplesmenteporquetinhamocontrole

do ouro naquele momento. N’O capital, Marx mostra que a possibilidade desse tipo de crise é

imanenteaomodocomoosistemamonetáriosemovesobocapitalismo(211).

IssolevaMarxamudarateoriaquantitativadamoeda,insistindoquequantomenoréademanda

dedinheiro,maisospagamentosseequilibrammutuamenteemaisdinheiroseconverteemsimples

meiodepagamento. “Circulammercadorias cujo equivalente emdinheiro só apareceránumadata

futura.”Dessemodo, “dinheiro creditício surgediretamenteda funçãododinheiro comomeiode

pagamento,quandocertificadosdedívidarelativosàsmercadoriasvendidas”–oque,emWallStreet,

foiinstitucionalizadocomoobrigaçõesdedívidacolateralizadas[collaterizeddebtobligations–CDOs]–

“circulamafimdetransferiressasdívidasparaoutrem”(212-3).

Poroutro lado,quandoosistemadecréditoseexpande,omesmoocorrecomafunçãododinheirocomomeiodepagamento.[...]

Quandoaproduçãodemercadoriasatingiucertograudedesenvolvimento,afunçãododinheirocomomeiodepagamentoultrapassa

a esfera da circulação das mercadorias. Ele se torna a mercadoria universal dos contratos. Rendas, impostos etc., deixam de ser

fornecimentosinnaturaesetornampagamentosemdinheiro.(213-4)

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Com isso, Marx antecipa tanto a monetização de tudo quanto a propagação do crédito e do

capitalfinanceiro,edeummodoquetransformariaradicalmenteasrelaçõessociaiseeconômicas.

Aquestão fundamental é que “odesenvolvimentododinheiro comomeiodepagamento torna

necessária a acumulação de dinheiro para a compensação das dívidas nos prazos de vencimento”

(215).Maisumavez,aacumulaçãoeoentesouramentosãoequiparados,mastêmfunçõesdiferentes:

“Assim, seporum ladooprogressoda sociedadeburguesa fazdesaparecero entesouramento como

formaautônomadeenriquecimento,elaofazcrescer,poroutrolado,naformadefundosdereserva

demeiosdepagamento”(215).

IssolevaMarxamudarateoriaquantitativadamoedaanteriormenteapresentada:aquantidade

totaldedinheirorequeridaemcirculaçãoéasomadasmercadorias,multiplicadaporseuspreçose

modificada pela velocidade e pelo desenvolvimento dos meios de pagamento. A isso devemos

acrescentarumfundodereserva(umtesouro)quepermitiráflexibilidadeemtemposdefluxo(215).

(Nascondiçõesatuais,éevidentequeessefundodereservanãoéprivado,maséprerrogativadeuma

instituiçãopública;nosEstadosUnidos, essa instituição émuito apropriadamentedesignada como

FederalReserve

[e]

.)

OtópicoCdoitem3tratadodinheiromundial.Comovimos,parafuncionar,qualquersistema

monetárioexigeumaprofundaparticipaçãodoEstadocomoreguladordesímbolosemoedasecomo

supervisordaqualidadeedaquantidadedodinheiro(e,naépocaatual,comogerentedofundode

reserva). Estados individuais gerenciam seu sistema monetário de modo particular e, ao fazê-lo,

podemterumgrandepoderdiscricionário.Masexisteummercadomundial,easpolíticasmonetárias

nacionais não podem isentar os Estados dos efeitos disciplinares que derivam das trocas de

mercadoriasrealizadasnessemercadomundial.Assim,seéverdadequeoEstadopodeterumpapel

crucialnaestabilizaçãodosistemamonetáriodentrodesuasfronteirasgeopolíticas,poroutroladoele

estáligadoaomercadomundialesujeitoàsuadinâmica.Marxapontaopapeldosmetaispreciosos:o

ouroeapratatornaram-se,porassimdizer,a linguafrancadosistemafinanceiromundial.Essabase

metálicafoivitaltantointernamentequantonasrelaçõesexternas(internacionais)(216-9).

Assim,asegurançadadaporessabasemetálicaepelaforma-dinheiro(moedas,emparticular)que

deladerivatornou-seessencialparaocapitalismoglobal.Éinteressantenotarque,aomesmotempo

que John Locke pedia tolerância religiosa e condenava a prática de mandar os hereges para a

fogueira,seucolegaIsaacNewtonerachamadoadefenderaqualidadedasmoedascomomestreda

RoyalMint

[f]

. Ele teve de resolver o problema da desvalorização causada pelo costume de raspar a

pratadasmoedaspara fazermaismoedas (um jeito fácil de fazer dinheiro, se pensarmosbem).Os

condenadosporessapráticaerampublicamenteenforcadosemTyburn–ofensascontraDeuseram

perdoadas,masofensascontraocapitalecontraMamonmereciamapenademorte!

Isso nos conduz ao problema da relevância dos argumentos de Marx num mundo em que o

sistemafinanceiro funcionasemumamercadoria-dinheiro,umabasemetálica,comoeraocasoaté

1971. Você pode notar que o ouro continua importante e talvez se pergunte se, nestes tempos

turbulentos, demercados cambiais instáveis, deve entesourar ouro,dólares, eurosou ienes.Oouro

não saiu inteiramente de cena, e há quem defenda o retorno de uma versão do padrão-ouro para

contrabalançar as instabilidades e a especulação caóticaque frequentementeperturba as transações

financeiras internacionais.Oouro,devemos lembrar, édescritoporMarx simplesmente comouma

representaçãodo valor, do tempode trabalho socialmente necessário.Oque aconteceu a partir de

1973 foi uma mudança no modo de representação do valor. Mas o próprio Marx aponta várias

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alterações nas formas de representação commoedas, papel-moeda, crédito e coisas do gênero, de

modo que, nesse sentido, não há nada na situação atual que desafie seumodo de análise.O que

ocorre,comefeito,équeovalordeumamoedaparticular,quandoconfrontadocomovalordetodas

as outras moedas, é (ou deveria ser) determinado em termos do valor do conjunto total de

mercadoriasproduzidasnumaeconomianacional.Comoaprodutividadegeraldeumaeconomiaé

umavariávelimportante,aênfaserecainaprodutividadeenaeficiênciadaspolíticaspúblicas.

SeaderirmosàlógicadeMarx,teremosimediatamentedeobservarascontradiçõesquedecorrem

dessasituação.Paracomeçar,háaficçãodeumaeconomianacionalquecorrespondeaos“uniformes

nacionais” dasmoedas nacionais. Tal economia é um “ideal”, uma ficção que se tornou real pela

coletadeumagrandequantidadedeestatísticasdeprodução, consumo, troca,bem-estar etc.Essas

estatísticassãocruciaisparaavaliaroestadodeumanaçãoetêmumpapelimportante,afetandoas

taxas de câmbio entre as moedas. Quando as estatísticas sobre a confiança do consumidor e o

emprego são favoráveis, amoeda sevaloriza.Tais estatísticas constroema ficçãodeumaeconomia

nacional quando, na realidade, isso não existe; nos termos de Marx, trata-se de um construto

fetichista. Mas especuladores podem entrar em ação e desafiar esses dados (muitos dos quais

fundados sobre bases bastante frágeis) ou sugerir que certos indicadores sãomais importantes que

outrose,casoesses indicadoresprevaleçam,elespodemapostarnasvariaçõescambiaiseterganhos

extraordinários. George Soros, por exemplo, ganhou bilhões de dólares em poucos dias apostando

contraalibrainglesaemrelaçãoaoMecanismoEuropeudeTaxasdeCâmbio;acabouconvencendoo

mercadodequetinhaavisãomaisacuradadaeconomianacional.

O que Marx conseguiu com seu modo de análise foi construir um caminho convincente de

entendimento do nexo frágil e problemático entre o valor (o tempo de trabalho socialmente

necessário incorporado nasmercadorias) e as formas comque o sistemamonetário representa esse

valor.Ele revelanão sóoque é fictício e imaginárionessas representações e em suas consequentes

contradições, mas também que o modo de produção capitalista não pode funcionar sem esses

elementos ideais. Não podemos eliminar o fetichismo, como ele mesmo observou, e estamos

condenadosavivernummundoàsavessas,derelaçõesmateriaisentrepessoasederelaçõessociais

entrecoisas.Asoluçãoéavançarnaanálisedascontradiçõesinerentes,entendercomoelassemovem

eabremnovaspossibilidadesdedesenvolvimento(comoosistemadecrédito),bemcomodecrises.O

método marxiano de investigação me parece exemplar, mesmo que tenhamos de adaptá-lo para

compreendernossadelicadasituaçãoatual.

Umúltimoponto.Esse capítulo sobre odinheiro é rico, complicado e difícil de absorvernuma

primeira leitura. Por essa razão, comecei observando que muitas pessoas desistem da leitura d’O

capitalquandochegamaocapítulo3.Esperoqueoquevocêtenhaencontradosejasuficientemente

desafiadorparamotivá-lo a continuarna leitura,mas vai gostarde saberquenãoprecisa entender

todoocapítuloparaprosseguir.Muitodoqueéditoaquiémaisrelevanteparaosoutrosvolumesdo

queparaorestantedoLivroI.Munidosdealgumasproposiçõesbásicas–porémessenciais–desse

capítulo,épossívelcompreenderorestodomaterialsemgrandesdificuldades.Apartirdesteponto,a

argumentaçãosetornamuitomaisfácil.

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[a]ReferênciaàfaladeLisandroemSonhodeumanoitedeverão,deShakespeare,emComédias(trad.CarlosAlbertoNunes,RiodeJaneiro,

Agir,2008),ato1,cena1.(N.T.)

[1]Ver a sofisticada defesa dessa lei que o economista conservadorThomas Sowell faz em Says Law: AnHistorical Analysis (Princeton,

PrincetonUniversityPress,1972).

[b]SãoPaulo,NovaCultural,1996.(N.E.)

[c]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.166.(N.E.)

[d]A Festa de SãoMiguel Arcanjo (Michaelmas) é celebrada no dia 29 de setembro. Por ser próxima do equinócio, é tradicionalmente

associadaaocomeçodooutononohemisférionorte.(N.T.)

[e]FederalReserve(literalmente:“ReservaFederal”)éonomedoBancoCentraldosEstadosUnidos.(N.T.)

[f]ACasadaMoedainglesa.(N.T.)

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3.Docapitalàforçadetrabalho

Passamos,agora,aocapítulo4

[a]

,quetratadosconceitosdecapitaleforçadetrabalho.Essecapítulo,

como você verá, é muito mais direto e claro do que aqueles que tratamos anteriormente. Há

momentosemqueeleparecequaseóbvio,eàsvezesnossurpreendemosqueideiastãosimplessejam

submetidas a uma discussão tão elaborada, em particular quando ideias tão difíceis foram

apresentadas quase sem explicação nos capítulos anteriores. Até certo ponto, isso é resultado do

período em queMarx escreveu. Qualquer pessoa interessada em economia política naquela época

estavafamiliarizadacomateoriadovalor-trabalho(sebemquenaformaricardiana),aopassoquenós

não só não temos familiaridade com ela, como vivemos numa época em que a maioria dos

economistas,emesmomuitosmarxistas,consideram-naindefensável.SeMarxtivesseescritoOcapital

emnossos dias, teria de apresentar uma forte defesa dessa teoria, em vez de simplesmente supô-la

óbvia.Emcontrapartida,omaterialabordadonospróximoscapítulossignificava,naépocadeMarx,

umdistanciamentoradicalemrelaçãoaopensamentoconvencional,porémsoamuitomaisfamiliar

aosleitoresdehoje.

Nessecapítulo,noentanto,ocorreumagrandetransiçãonoargumento,eéimportantequevocê

perceba isso desde o início.O capital começa com um modelo de troca baseado no escambo de

mercadorias,noqualseimagina(irrealisticamente)quetemposdetrabalhosocialmentenecessáriose

equivalentessãotrocados.MarxpassaentãodessarelaçãoM-Mparaaanálisedecomoastrocassão

mediadas egeneralizadaspelo surgimentoda forma-dinheiro.Umaanálise cuidadosadesse sistema

de trocaM-D-M nos leva, ao fim do capítulo sobre o dinheiro, a identificar a forma D-M-D de

circulação, emqueodinheiro se transforma em finalidade eobjetoda troca.NocircuitoM-D-M,

uma trocade valores equivalentes faz sentido, porque sua finalidade é obter valores deuso.Quero

camisasesapatos,masnãoqueroasmaçãseasperasqueproduzi.Contudo,quandosechegaaD-M-

D, a troca de equivalentes parece absurda. Por que passar por todas as turbulências e riscos desse

processo para, no fim, obter amesma quantia de dinheiro que eu tinha no início?D-M-D só faz

sentidoseresultanumincrementodevalor,D-M-D+ΔD,queédefinidocomomais-valor.

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Isso leva à seguintequestão:deondevemessemais-valor, se as leisda troca,D-MeM-D, tais

comopressupostasnaeconomiapolíticaclássica,estabelecemumatrocadeequivalentes?Paraqueas

leisdatrocafuncionemcomoateoriadetermina,énecessárioencontrarumamercadoriaquetenhaa

capacidadedeproduzirumvalormaiordoqueoqueelaprópriapossui.Talmercadoria,diráMarxno

terceiroitemdocapítulo4,éaforçadetrabalho.Essaéagrandetransiçãorealizadaaolongodesse

capítulo.Ofococomeçaamudardatrocademercadoriasparaacirculaçãodocapital.

Há,no entanto,um traço importanteno capítulo4,quemereceuma análisepreliminar. Jáme

perguntaram várias vezes se Marx desenvolve um argumento lógico (baseado numa crítica das

proposições utópicas da economia política liberal clássica) ou um argumento histórico sobre a

evoluçãodocapitalismoefetivamenteexistente.Semprepreferialeituralógicaàhistórica,aindaque

tenhamos importantes insights históricos quando consideramos as circunstâncias necessárias à

facilitaçãodo surgimentodomodode produção capitalista (como a açãodoEstado em relação às

diferentesformasdinheiro).Esseprocedimentoparecesercoerentecomoargumentometodológico

que Marx desenvolve em outro lugar, em que afirma que só podemos entender corretamente a

história se olharmos retrospectivamente do ponto emque nos encontramos hoje. Esse é seu ponto

centralnosGrundrisse:

A sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada organização histórica da produção. Por essa razão, as categorias que

expressam suas relações e a compreensão de sua estrutura permitem simultaneamente compreender a organização e as relações de

produçãodetodasasformasdesociedadedesaparecidas,comcujosescombroseelementosedificou-se,partedosquaisaindacarrega

consigocomoresíduosnãosuperados,parte[que]nelasedesenvolvemdemerosindíciosemsignificaçõesplenasetc.Aanatomiado

serhumanoéumachaveparaaanatomiadomacaco.

[b]

Mas,se“osindíciosdeformassuperiores[...]sópodemsercompreendidosquandoaprópriaforma

superior jáéconhecida”, issonãodevenos induziraprocurarosprotótiposdas“relaçõesburguesas

em todas as formas de sociedade” ou a pensar “que as categorias da economia burguesa têm uma

verdade para todas as outras formas de sociedade”

[c]

.Marxnão aceita uma interpretaçãoWhig da

história ou uma simples teleologia. A revolução burguesa reconfigurou fundamentalmente os

elementos preexistentes em novas formas, ao mesmo tempo que nos permitiu ver esses elementos

preexistentessobumanovaluz.

CAPÍTULO4:ATRANSFORMAÇÃODODINHEIROEMCAPITAL

Item1:Afórmulageraldocapital

Nesses três itens, a leitura da história parece ter um papel importante e independente na

teorização. Marx começa o item 1, por exemplo, com uma afirmação histórica: “O comércio e o

mercadomundiais inauguram,no séculoXVI, a históriamoderna do capital”.Oponto de partida

lógicoéaafirmaçãoparaleladequea“circulaçãodasmercadoriaséaprimeiraformadeapariçãodo

capital”(223).Assim,osargumentoslógicosehistóricossãoimediatamentejustapostos.Porisso,se

quisermosentendercomoasprescriçõesmetodológicasdadasnosGrundrissesãopostasemprátican’O

capital,temosdeprestarmuitaatençãoaomodocomoessesargumentosatuamemconjuntonesses

trêsitens.

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Marxcomeçaexaminandocomoocapitalismoconfrontouhistoricamenteopoderdapropriedade

fundiária na transição do feudalismo para o capitalismo. Nessa transição, o capital comercial e o

capitalusurário–formasespecíficasdecapital–desempenharamumimportantepapelhistórico.Mas

essasformasdecapitalsãodiferentesda“moderna”formaindustrialdecapitalqueMarxconsidera

essencial para ummododeprodução capitalista plenamentedesenvolvido (223-4).Adissoluçãoda

ordemfeudal,istoé,dopoderdapropriedadefundiáriaedocontrolefeudalsobreaterra,realizou-se

em grande parte pelos poderes do capital comercial e da usura. Esse é um tema que encontramos

fortemente articuladonoManifestoComunista,mas que tambémocupaum lugar lógicon’O capital,

poisoquevemosnocapitalusurário,emparticular,éopodersocialindependentedodinheiro(edos

possuidoresdedinheiro),umpoderque,comodemonstrouocapítulosobreodinheiro,ésocialmente

necessário no modo de produção capitalista. É por meio do desenvolvimento desse poder

independentequeausuraeosusuráriosajudaramaderrubarofeudalismo.

Voltamosaopontodepartidaparaentenderopapeldodinheiro(comoopostoàmercadoria)no

processode circulação.Odinheiropode serusadopara fazer circular asmercadorias,paramediro

valor,paraarmazenarriqueza,eassimpordiante.Ocapital,noentanto,édinheirousadodemodo

determinado.NãoapenasoprocessoD-M-DéumainversãodoprocessoM-D-M,mas,comoMarx

observou no capítulo anterior, “o dinheiro não se apresenta comomeio de circulação, comomera

forma evanescente e mediadora do metabolismo, mas como a encarnação individual do trabalho

social,existênciaautônomadovalorde troca,mercadoriaabsoluta”(211).Arepresentaçãodovalor

(dinheiro), em outras palavras, torna-se o escopo e o objetivo da circulação. Esse processo de

circulação, no entanto, “seria absurdo e vazio se a intenção fosse realizar, percorrendo seu ciclo

inteiro, a trocadeummesmovalor emdinheiropelomesmovalor emdinheiro, ou seja, £100por

£100”(224).Atrocadevaloresiguaiséperfeitamentecorretacomrespeitoavaloresdeuso,portanto

oqueimportaéaqualidade.MasaúnicarazãológicaparaentrarnacirculaçãoD-M-D,comovimos

no capítulo 3, é termais valor no final doqueno começo.Depois de certo esforço,Marx chega à

conclusãobastanteóbvia:

Assim,oprocessoD-M-Dnãodeve seuconteúdoanenhumadiferençaqualitativade seusextremos,poisambos sãodinheiro,mas

apenasàsuadistinçãoquantitativa.Aofinaldoprocesso,maisdinheiroétiradodecirculaçãodoquenelaforalançadoinicialmente.O

algodãocompradopor£100érevendidopor100+£10,oupor£110.Aformacompletadesseprocessoé,portanto,D-M-D’,onde

D’=D+ΔD, istoé,àquantiadedinheiro inicialmenteadiantadamaisumincremento.Esse incremento,ouexcedentesobreovalor

original,chamodemais-valor(surplusvalue).(227)

Com isso, chegamos pela primeira vez ao conceito de mais-valor, que, evidentemente, é

fundamentalparatodaaanálisemarxiana.

Oque acontece é que “o valor originalmente adiantadonão se limita, assim, a conservar-sena

circulação,masnelamodificasuagrandezadevalor,acrescentaaessagrandezaummais-valor,ouse

valoriza. E esse movimento o transforma em capital” (227). Aqui, finalmente, está a definição de

“capital”.ParaMarx,ocapitalnãoéumacoisa,masumprocesso–maisespecificamente,umprocesso

de circulação de valores. Tais valores são incorporados em diferentes coisas em vários pontos do

processo: inicialmente, comodinheiro e, em seguida, comomercadoria, antesde retornar à forma-

dinheiro.

Ora, essa definição do capital como processo é de extrema importância. Ela marca um

distanciamentoradicalemrelaçãoàdefiniçãoqueencontraremosnaeconomiapolíticaclássica,em

que o capital era tradicionalmente entendido como um estoque de recursos (máquinas, dinheiro

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etc.),assimcomoemrelaçãoàdefiniçãopredominantenaciênciaeconômicaconvencional,naqualo

capital é visto como uma coisa, um “fator de produção”. Na prática, a ciência econômica

convencional tem uma grande dificuldade emmedir (valorar) o fator de produção que é capital.

Assim,eles simplesmenteorotulamdeKeo inserememsuasequações.Mas,narealidade, sevocê

pergunta “o que éK e como obtemos umamedida dele?”, a questão está longe de ser simples.Os

economistas lançammãode todosos tiposdemedidas,masnãoconseguemchegaraumconsenso

sobreoqueocapitalrealmente“é”.Eleexiste,comefeito,naformadedinheiro,mastambémexiste

comomáquinas,fábricasemeiosdeprodução;ecomoatribuirumvalormonetárioindependenteaos

meiosdeprodução,independentedovalordasmercadoriasqueelesajudamaproduzir?Comoficou

evidenciado na assim chamada controvérsia sobre o capital no início dos anos 1970, toda a teoria

econômica contemporânea corre o perigoso risco de estar fundada numa tautologia: o valor

monetáriodeKnaformafísicaderiquezaédeterminadoporaquiloqueeledeveriaexplicar,asaber,

ovalordasmercadoriasproduzidas

[1]

(186-7).

Uma vez mais, Marx vê o capital como um processo. Eu poderia fazer capital agora mesmo,

bastando tirar dinheiro do meu bolso e colocá-lo em circulação para fazer mais dinheiro. Ou eu

poderiatirarcapitaldecirculaçãosimplesmenteresolvendorecolocarodinheironomeubolso.Segue-

se, então, que nem todo dinheiro é capital. O capital é dinheiro usado de uma certa maneira. A

definição de capital não pode ser divorciada da escolha humana de lançar o dinheiro-poder nesse

mododecirculação.Masissocolocatodoumconjuntodeproblemas.Antesdetudo,háaquestãode

quantoincrementoocapitalpoderender.Lembremo-nosqueumadasdescobertasnocapítulosobreo

dinheiro foi que a acumulação de dinheiro-poder é potencialmente ilimitada;Marx a repete aqui

(210-1,230-1).Seu significadopleno,noentanto, só serádesenvolvidomais tarde (particularmente

noscapítulos21e22).

Diz Marx: “como portador consciente desse movimento, o possuidor de dinheiro se torna

capitalista.Suapessoa,oumelhor, seubolso, éopontodepartidaede retornododinheiro” (229).

Dissosesegueque“ovalordeusojamaispodeserconsideradoafinalidadeimediatadocapitalista”.

Quer dizer, o capitalista produz valores de uso apenas para ganhar valor de troca. Na verdade, o

capitalistanãosepreocupasobrequalouquetipodevalordeusoéproduzido;poderiaserqualquer

tipo de valor de uso, contanto que ele permita ao capitalista obter o mais-valor. A finalidade do

capitalista é, o que não surpreende, o “incessante movimento da obtenção de ganho” (229). Isso

pareceoenredodeEugêniaGrandet,deBalzac

[d]

!

Esseimpulsoabsolutodeenriquecimento,essacaçaapaixonadaaovalorécomumaocapitalistaeaoentesourador,mas,enquantoo

entesourador é apenas um capitalista louco, o capitalista é o entesourador racional.O aumento incessante do valor, objetivo que o

entesouradorprocuraatingirconservandoseudinheiroforadacirculação,éatingidopelocapitalista,que,maisinteligente,recolocao

dinheiroconstantementeemcirculação.(229)

Portanto, o capital é valor em movimento. Mas é valor em movimento que se manifesta em

diferentesformas.“Ora,setomarmosasformasparticularesdemanifestação”–notearepetiçãodesta

frase–“queovalorqueseautovalorizaassumesucessivamentenodecorrerdesuavida,chegaremosa

estas duas proposições: capital é dinheiro, capital é mercadoria” (169). Agora Marx explicita a

definiçãoprocessualdocapital:

Na verdade, porém, o valor se torna, aqui, o sujeito de umprocesso emque ele, aomesmo tempo que assume constantemente a

formadodinheiroedamercadoria,modificasuaprópriagrandeza,distanciando-sedesimesmocomovalororiginalaosetornarmais-

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valor,aovalorizarasimesmo.Poisomovimentoemqueeleadicionamais-valoréseuprópriomovimento;suavalorizaçãoé,portanto,

autovalorização.Por servalor, ele recebeuaqualidadeocultadeadicionarvalor.Elepare filhotes,oupelomenospõeovosdeouro.

(230)

ÉóbvioqueMarx está sendoextremamente irônico.Sedigo isso, é apenasporque li, certa vez,

umadissertaçãoquelevavaasérioasqualidadesmágicasdeautoexpansãoatribuídasaocapital.Mas,

num texto denso como esse, é muito fácil não perceber a ironia. Nesse exemplo, as qualidades

“ocultas”docapitalesuacapacidadeaparentementemágicadepôr“ovosdeouro”existemapenasno

reinodaaparência.Masnãoédifícilverporqueesseconstrutofetichistapoderiasertomadocomo

real–osistemadeproduçãocapitalistadependeexatamentedessaficção,comovimosnocapítulo1.

Vocêjáseperguntoudeondevemocrescimento?Tendemosasuporqueessaexpansãosimplesmente

pertenceànaturezadodinheiro.Jávimosperíodos,éclaro,emqueataxadepoupançaeranegativa,

istoé,emqueainflaçãoeratãoaltaeastaxasdejurostãobaixasqueoretornolíquidodopoupador

eranegativo(comoéocasohoje,em2008).Masparecequeodinheiroquevocêtemguardadono

bancocrescedeacordocomataxadejuro.Marxquersaberoqueestáportrásdessefetiche.Esseéo

mistérioquetemdesersolucionado.

Segundoele,háummomentonesseprocessodecirculaçãoaoqualsempreretornamoseque,por

essarazão,parecesermaisimportantequeosoutros.Esseéomomentododinheiro:D-D.Porquê?

Porqueodinheiroéarepresentaçãouniversaleamedidadefinitivadovalor.Portanto,éapenasno

momento do dinheiro – o momento da universalidade capitalista – que podemos perceber onde

estamos em relação ao valor e ao mais-valor. É difícil perceber isso apenas olhando para a

particularidadedasmercadorias.Odinheiro“constitui,porisso,opontodepartidaedechegadade

todoprocessodevalorização”(230).NoexemplodeMarx,aconclusãodoprocesso,quecomeçoucom

um investimentode100 libras, resulta em110 libras: “O capitalista sabeque todamercadoria, por

maismiserávelquesejasuaaparênciaouporpiorquesejaseucheiro,édinheiro,nãosóemsuafé,

mastambémnarealidade;queelaé, internamente,umjudeucircuncidadoe,alémdisso,ummeio

milagrosodesefazermaisdinheiroapartirdodinheiro”(230).

Observaçõesdessetipoderammargemaumdebatesignificativosobreosupostoantissemitismo

deMarx.Defato,éverdadequeessetipodeafirmaçãoaparecedevezemquandoemseustextos.O

contextodaépocaeradeantissemitismodisseminado(porexemplo,apersonagemFagin,emOliver

Twist,deDickens

[e]

).Assim,vocêpodeconcluirqueMarx,filhodejudeusqueseconverterampara

manter o emprego, estava se voltando inconscientemente contra seu passado ou refletindo os

preconceitos da época, ou, pelomenos nesse caso, que a intenção dele era reunir todo o opróbrio

costumeiramentelançadocontraosjudeusemostrarque,naverdade,eledeveriaserlançadocontra

ocapitalistaenquantocapitalista.Cabeavocêtirarsuasprópriasconclusões.

Retornandoaotexto,encontramosMarxaindaàsvoltascomaaparênciafetichista:

Senacirculaçãosimplesovalordasmercadoriasatingenomáximoumaformaindependenteemrelaçãoaseusvaloresdeuso,aquiele

seapresenta,derepente,comoumasubstânciaemprocesso,quemoveasimesmaeparaaqualmercadoriasedinheironãosãomais

do quemeras formas. Emais ainda. Em vez de representar relações demercadorias, ele agora entra, por assim dizer, numa relação

privada consigomesmo.Comovalor original, ele sediferenciade simesmo comomais-valor, tal comoDeusPai sediferenciade si

mesmocomoDeusFilho[...].Ovalorsetorna,assim,valoremprocesso,dinheiroemprocessoe,comotal,capital.(230-1)

Opróximopassonadefiniçãofundamentaldecapitalé:valoremprocesso,dinheiroemprocesso.

Eissoémuitodiferentedecapitalcomoestoquefixoderecursosoufatordeprodução.(MaséMarx,

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enãooseconomistas,queécriticadoporsuasformulaçõessupostamenteestáticase“estruturais”!)O

capital “sai da circulação, volta a entrar nela, conserva-se e multiplica-se em seu percurso, sai da

circulaçãoaumentadoecomeçaomesmocircuitonovamente”(231).Opoderososentidodofluxoé

palpável.Capitaléprocesso,epontofinal.

Marxretornabrevementeaoscapitaiscomercialeusurário(seupontodepartidahistórico,mais

doquelógico).Emboraoquerealmentelheimportasejaocapitalindustrial,eletemdereconhecer

queexistemestasduasoutrasformasdecirculação:ocapitalcomercial(comprarbaratoparavender

maiscaro)eocapitalajuros,pormeiodosquaistambémsepoderealizarumaaparenteautoexpansão

dovalor.Vemos,assim,diferentespossibilidades:ocapitalindustrial,ocapitalcomercialeocapitala

juros,todosnaformadecirculaçãoD-M-D+ΔD.Talformadecirculação,concluiele,“éafórmula

geraldocapitaltalcomoeleapareceimediatamentenaesferadacirculação”(231).Éessaformade

circulaçãoquetemosdeanalisaremdetalhesparadesmistificarsuasqualidades“ocultas”.Apergunta,

portanto,é:ocapitalpõeovosdeouro?

Item2:Contradiçõesdafórmulageral

Marx inicia a busca por uma resposta examinando as contradições no interior da forma de

circulaçãoD-M-D+ΔD.Aquestãofundamentalésimplesmenteesta:deondevemoincremento,o

mais-valor? As regras e as leis da troca em forma pura (como pressupostas no liberalismo utópico)

dizemqueéprecisohaverumaregradeequivalêncianastransiçõesdeDparaMedeMparaD.O

mais-valornãopode,portanto,serderivadodatrocaemsuaformapura.“Ondeháigualdade,nãohá

ganho.”Naprática, é certamente “verdadeque asmercadorias podem ser vendidasporpreçosque

nãocorrespondemaseusvalores,masessedesviotemdeserconsideradocomoumainfraçãodaleida

trocademercadorias”.Essasleissãoaquelaspressupostasnomodelodemercadosdefuncionamento

perfeitoprópriodaeconomiapolíticaclássica.“Emsuaformapura,elaéumatrocadeequivalentes,

nãoummeioparaoaumentodovalor”(233-4).

Diantedesseenigma,oscapitalistase seuseconomistas,comoCondillac, tentaramatribuiresse

incrementoaocampodosvaloresdeuso.MasMarxrejeitatalsolução.Nãopodemosapelarparaos

valoresdeusoafimderesolverumproblemaquederivadaequivalênciadosvaloresdetroca.

Sesãotrocadasmercadorias,oumercadoriasedinheirodemesmovalordetroca,portanto,equivalentes,éevidentequecadaumadas

partesnãoextraidacirculaçãomaisvalordoquenelacolocouinicialmente.Nãohá,então,criaçãodemais-valor.Ocorreque,emsua

formapura,oprocessodecirculaçãodemercadoriasexigeatrocadeequivalentes.(235)

Marx sabe perfeitamente que “na realidade, as coisas não ocorrem assim” e, por isso, devemos

“admitirumatrocadenãoequivalentes”.Issodálugaraumasériedepossibilidades.Umadelaséque

ovendedortem“algumprivilégioinexplicável[...][de]venderamercadoriaacimadeseuvalor”.Mas

issonãoseaplicaàrelaçãoentrecompradoresevendedoresemmercadosgeneralizados,assimcomo

não adianta dizer que o comprador tem o privilégio de adquirir mercadorias abaixo de seu valor.

“Portanto, a criaçãodomais-valor [...]nãopode ser explicadanempelo fatodequeunsvendemas

mercadoriasacimadeseuvalor,nempelofatodequeoutrosascompramabaixodeseuvalor”(236).

Marxpassa então aumabreve consideraçãodaquiloquehoje chamamosdedemanda efetiva e

que,naépoca,eradesenvolvidasobretudoporMalthus(emborasurpreendentementeMarxnãofaça

nenhuma referência aoprincipal textodeMalthus sobreo assunto:Princípios de economia política

[f]

)

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(236-8). SegundoMalthus, existe nomercado uma clara tendência a umadeficiência da demanda

agregadaparaaabsorçãodoexcedentedemercadoriasqueoscapitalistasproduzemcomoobjetivo

deobtermais-valor.Quemtemopoderdecompraparacomprarasmercadorias?Comooscapitalistas

reinvestem, não consomem tanto quanto poderiam. Já os trabalhadores não podem consumir a

totalidadedoproduto,porquesãoexplorados.Assim,Malthusconcluiqueaclassedosproprietários

fundiários–ou,comosãochamadosporMarx,osparasitasburguesesdetodasasespécies–temum

papelimportante,poisrealizaabenevolentetarefadeconsumirtantoquantopodeafimdemantera

economia estável. Com isso, Malthus justifica a perpetuação de uma classe consumidora não

produtiva(emcontraposiçãoàcríticaricardiana,quetambématachadeparasitasnãoprodutivos).

De certo modo, Malthus mudou seu argumento, sugerindo que essa classe de consumidores

poderiaestarforadanaçãoequeocomércioexterior,oumesmoostributosexternos(porexemplo,

pagamentosemprataparaumpoderimperial),ajudariaaresolveroproblema.Esteúltimoéumdos

principais argumentosdeRosaLuxemburgo,paraquemademanda efetivanecessárianumsistema

capitalista (que, segundo ela, é insuficientemente tratada n’O capital) só pode ser garantida, em

última instância, pelo estabelecimento de uma relação com o exterior – em suma, pela retirada

imperialista impositiva de tributos. A lógica imperialista britânica que levou à Guerra do Ópio

demonstrouaveracidadedessatese:comohaviaumagrandequantidadedepratanaChina,aideia

era vender ópio indiano aos chineses, lucrarmuita prata com a venda e, com essa prata, financiar

todososbensproduzidosemManchestereenviadosparaaÍndia.Quandooschinesessenegarama

abrirsuasportasaocomérciodoópio,arespostabritânicafoiderrubá-laspelaforçamilitar.

Marxrejeitamordazmentea ideiadequehajaemalgumlugarumaclassedeconsumidores,ou

outracoisaqualquer,quetenhaumvalorobtidosabeDeusondeepossadealgummodogeraromais-

valordedentrooude forado sistemadas relações sociais capitalistas.Todosque se encontramno

interiordocapitalismo(mesmoosmembrosdasclassesparasitárias),dizele,têmdeobterseuvalorde

algum lugar e, senãooobtêmno interiordo sistema, éporque se apropriamdosvaloresdeoutros

(como capitalistas ou trabalhadores), daqueles que são responsáveis pela produçãodesse valor.Não

podemosresolveroproblemadaproduçãodomais-valorapelandoparaomercado,ecertamentenão

podemos justificarpor isso aperpetuaçãodeumaclassenãoprodutivade consumidores.No longo

prazo, nem o comércio exterior pode realizar essa façanha; em algum momento, o princípio da

equivalênciatemdeprevalecer(237-8).

Essaspassagenssobreademandaefetivasãoproblemáticasemcertosaspectos,eRosaLuxemburgo

propõeumsériodesafioaMarxquandoafirmaqueoimperialismo,voltando-secontraasformações

sociaisnãocapitalistas,dáumarespostaparcialaoproblemadademandaefetiva

[2]

.Umlongodebate

foitravadosobreessaquestão.Mas,emtaispassagens,Marxestáinteressadosimplesmentenomodo

comoomais-valoréproduzido,nãoemcomopoderiaserpagoerealizadopormeiodoconsumo.O

mais-valor temde serproduzidoantesde ser consumido, enãopodemos apelarparaoprocessode

consumoafimdeentendersuaprodução.

Portanto,essasideiassobreademandaefetivanãopodemexplicarcomoomais-valoréproduzido,

sobretudo se nos mantivermos “nos limites da troca de mercadorias, em que vendedores são

compradores, e compradores, vendedores”. Ora, à primeira vista, essa observação parece um tanto

estranha,dadaarejeiçãoanteriordaleideSay.Tambémnãopareceajudaraafirmaçãodeque“talvez

nossa dificuldade provenha do fato de termos tratado os atores apenas como categorias

personificadas, e não individualmente” (237), ainda que seja importante mostrar, como faremos

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adiante,porqueeletomaessecaminho.Ameuver,háaquiumatensãorealnotextodeMarxentrea

confiançanacríticadas tendênciasutópicasdaeconomiapolíticaclássicaeodesejodeentendere

esclareceranaturezadocapitalismoefetivamenteexistente.Oqueeledizéque temosdeprocurar

uma resposta ao problema da origem do mais-valor num modo de produção capitalista

geograficamentefechadoeperfeito;nesseestadodecoisasideal,orecursoàsclassesparasitárias,ao

consumismo ou ao comércio exterior tem de ser excluído. Marx explicitará mais adiante essas

suposiçõesn’Ocapital; aqui, ele as invoca implicitamente quando rejeita qualquer solução externa.

Nessepontodaanálise,eleconsiderairrelevantesasquestõesdedemandaefetivaemgeral,pois,no

LivroI,oquelheinteressaéunicamenteaprodução.Passaráaosproblemasdarealizaçãodosvalores

nomercadoenomundodoconsumoapenasnoLivroII.

Porora,portanto, ficaexcluídaqualqueranálisedasexpansõesgeográficas,doajusteespacial

[g]

,

doimperialismoedocolonialismosocialmentenecessáriosparaasobrevivênciadocapitalismo.Marx

simplesmentesupõeumsistemacapitalistaperfeitoefechado,eéapenasnessestermosqueaorigem

do mais-valor será explicada. Essa suposição, ao mesmo tempo que restringe o alcance de sua

capacidade teórica (em particular com relação ao entendimento das atuais dinâmicas históricas e

geográficas do capitalismo), aprofunda e aguça a análise. Como mostrei em outros lugares – em

especialemOslimitesdocapitaleSpacesofCapital [Espaçosdocapital]–,essasquestõesmaisamplas

foram extremamente importantes para Marx quando tentou formular seu grande projeto de

investigaçãodoEstado,docomércioexterior,docolonialismoedaconstruçãodomercadomundial.

Nessepontod’Ocapital,porém,sólheinteressamostrarqueaproduçãodemais-valornãopodesurgir

das trocas mercantis, independentemente das condições históricas ou geopolíticas predominantes.

Eletemdeencontraroutromodopararesolveracontradiçãodecomoproduzirumanãoequivalência

(istoé,omais-valor)apartirdeumatrocadeequivalentes.

AadoçãodeumfocotãoestreitoexplicatambémporqueMarxpassabrevementeatratarmaisde

indivíduosdoquedepapéissociais.Osindivíduospodemludibriarunsaosoutrosvendendoporum

valormaiore,defato,issoaconteceotempotodo.Mas,quandoconsideradodemaneirasistemática,

em termos sociais, o resultado é apenas roubar de Pedro para pagar Paulo. Um capitalista pode

perfeitamente ludibriar outro,mas nesse caso o ganho do primeiro é igual à perda do segundo, e

nenhummais-valoréagregado.Épreciso,portanto,encontrarumaformaemquetodososcapitalistas

ganhemmais-valor.Umaeconomiasaudável,oudefuncionamentoadequado,éaquelaemquetodos

oscapitalistastêmumataxadelucroconstanteerentável.

Pode-sevirar e revirar como sequeira, eo resultado seráomesmo.Da trocade equivalentesnão resultamais-valor, e tampoucoda

trocadenãoequivalentesresultamais-valor[...].Compreende-se,assim,porque,emnossaanálisedaformabásicadocapital,formana

qualeledeterminaaorganizaçãoeconômicadasociedademoderna,deixamosinteiramentedeconsiderarsuasformaspopularese,por

assimdizer,antediluvianas:ocapitalcomercialeocapitalusurário.(238-9)

Historicamente, pode ser verdade, como observou Benjamin Franklin, que “guerra é roubo,

comércioétrapaça”(239).Nasorigensdocapitalismo,certamentehouvemuitadestruição, fraude,

rouboepilhagemdemais-valorpelomundointeiro.EMarxnãonegaaimportânciahistóricadesse

fato.Omesmoseaplicaaocapitalusurário,atédiantedosestritíssimosearraigadostabusarespeito

da cobrança de juros. Cobrar juros é proibido, por exemplo, pela lei islâmica. Muitas pessoas

provavelmenteignoramque,atémeadosdoséculoXIX,aIgrejaCatólicatambémproibiaacobrança

dejuros,eissoéextremamenteimportante.Porexemplo,naFrança,oscatólicoscomparavammuitas

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vezes as casas de investimentos a bordéis e consideravam as operações financeiras uma forma de

prostituição.Restaramdessaépocagrandeschargespolíticassatíricas.Numadelas–queutilizeiem

Paris: Capital of Modernity [Paris: capital da modernidade] – uma jovem mulher tenta atrair um

homemvelhoeassustadoparasuacasadeinvestimentos,dizendo:“Minhataxaderetornoéboapara

qualquerquantiaquevocêqueirainvestir.Voutratarvocêcomgentileza”

[3]

.

Dessemodo,ocapitalmercantileocapitalusurário(ouajuros)têm,ambos,papéisimportantes.

No entanto, como conclui Marx, no “curso de nossa investigação, veremos que tanto o capital

comercialcomoocapitalajurossãoformasderivadas;aomesmotempo,veremosporqueelassurgem

historicamenteantesdamodernaformabasilardocapital”(240).Oqueeleestádizendoéqueessas

formasdecirculaçãodocapitaltiveramumaexistênciahistóricaantesdeocapitalindustrialentrar

em cena.Mas o capital industrial, como veremos, será a forma de capital que definirá omodo de

produçãocapitalistaemseuestadopuro.E,umavezqueocapitalindustrialsetornadominante,ele

precisa tanto do comerciante para vender o produto quanto do capital a juros para variar os

investimentosemrespostaaosproblemasdoinvestimentodecapitalfixodelongoprazo,eassimpor

diante.Paraque isso aconteça, a formaprimáriada circulaçãodo capital temde submeter tantoo

capital financeiro quanto o capital comercial a suas necessidades particulares. No Livro III d’O

capital,Marxanalisarácomoissoaconteceuecomqueconsequências.

Éimportanteavaliar,denossaperspectivaatual,aposiçãodocapitalcomercialedocapitalajuros

nointeriordocapitalismoemgeral.Umaexplicaçãoplausíveléqueelesdeixaramdeserhegemônicos

e dominantes nos séculos XVI e XVII para se tornar subservientes ao capital industrial durante o

século XIX. Mas muitos – inclusive eu – diriam que o capital financeiro se tornou dominante

novamente,sobretudoapartirdosanos1970.Seissoéverdade,devemosinvestigaroquesignificae

pressagia.

Contudo,essanãoéumaquestãoquepossamostrataraqui.Paranossopropósito,oqueimportaé

notarqueMarxpresumia(eeleprovavelmenteestavacertonaépoca)queacirculaçãodocapitalem

suaformaindustrialhaviasetornadohegemônicae,portanto,eraemseuinteriorqueaquestãoda

produçãodemais-valortinhadeserresolvida.Concluiele:

Portanto,ocapitalnãopodesurgirdacirculação,tampoucopodesurgirforadacirculação.Eletemdesurgirnelae,aomesmotempo,

não surgirnela.Temos, assim,umduplo resultado.A transformaçãododinheiroemcapital temde ser explicadacombasenas leis

imanentesdatrocademercadorias,demodoqueatrocadeequivalentessejaopontodepartida.Nossopossuidordedinheiro,que

aindaéapenasumcapitalistaemestadolarval,temdecomprarasmercadoriaspeloseuvalor,vendê-laspeloseuvalore,noentanto,

nofinaldoprocesso,retirardacirculaçãomaisvalordoqueelenelacolocarainicialmente.Suacrisalidaçãotemdesedarnaesferada

circulaçãoenãopodesedarnaesferadacirculação.Essassãoascondiçõesdoproblema.HicRhodus,hicsalta!(241)

Oque,numatoscatraduçãocoloquial,significa:“Abolaésua,chute!”.

Item3:Acompraeavendadeforçadetrabalho

Acontradiçãoéfácilderesolver.Suasoluçãojáéanunciadanotítulodesseitem.Marxestruturao

argumentocomosesegue:

Parapoderextrairvalordoconsumodeumamercadoria,nossopossuidordedinheiroteriadeterasortededescobrirnomercado,no

interiordaesferadacirculação,umamercadoriacujoprópriovalordeusopossuísseacaracterísticapeculiardeserfontedevalor,cujo

próprioconsumofosse,portanto,objetificaçãodetrabalhoe,porconseguinte,criaçãodevalor.Eopossuidordedinheiroencontrano

mercadoumatalmercadoriaespecífica:acapacidadedetrabalhoouforçadetrabalho.(242)

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A força de trabalho consiste nas capacidades físicas,mentais e humanas de incorporar valor às

mercadorias. Mas, para ser ela mesma uma mercadoria, a força de trabalho precisa ter certas

características. Em primeiro lugar, “para que seu possuidor a venda comomercadoria, ele tem de

poder dispor dela, portanto, ser o livre proprietário de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa”.

Assim,aideiadotrabalhadorlivreécrucial–aocontráriodaescravidãoedaservidão.Otrabalhador

não pode ceder sua pessoa; tudo que pode fazer é negociar suas capacidades físicas, mentais e

humanasdecriarvalor.Dessemodo,o trabalhadoralienasua forçade trabalho– istoé, transfere-a

para outro –, “sem renunciar [...] a seus direitos de propriedade sobre ela” (242-3). Portanto, o

capitalista não pode possuir o trabalhador; tudo o que pode possuir é a capacidade de trabalhar e

produzirvalorporcertoperíododetempo.

Asegundacondiçãoessencialparaqueopossuidordedinheiroencontrenomercadoaforçadetrabalhocomomercadoriaéqueseu

possuidor,emvezdepodervendermercadoriasemqueseutrabalhoseobjetivou,tenha,antes,deoferecercomomercadoriaàvenda

suaprópriaforçadetrabalho,queexisteapenasemsuacorporeidadeviva.(243)

Emoutraspalavras,ostrabalhadoresnãotêmcondiçõesdetrabalharparasimesmos.

Paratransformardinheiroemcapital,opossuidordedinheirotem,portanto,deencontrarnomercadodemercadoriasotrabalhador

livre,e livreemdois sentidos:odeserumapessoa livre,quedispõedesua forçade trabalhocomosuamercadoria,ede,poroutro

lado, ser alguémquenão temoutramercadoriapara vender, livre e solto, carecendo absolutamentede todas as coisasnecessárias à

realizaçãodesuaforçadetrabalho.(244)

Emsuma,otrabalhadorjátemdeestarprivadodeacessoaosmeiosdeprodução.

O comentário de Marx sobre a liberdade é muito adequado à nossa época. O que significa

liberdade, por exemplo, quando o presidenteGeorgeW.Bush fala damissão de levar liberdade ao

mundo?Eleusouaspalavras“freedom”e“liberty”umascinquentavezesemseusegundodiscursode

posse. Segundo a interpretação crítica de Marx, isso significa que Bush está em campanha para

libertar o maior número de pessoas no mundo de qualquer acesso aos meios de produção, ou de

qualquercontrolediretosobreeles.Sim,os trabalhadores individuais terãodireitossobreseucorpo,

assimcomoterãodireitosindividuaislegaisnomercadodetrabalho.Emprincípio,têmodireitode

vendersuaforçadetrabalhoaquemquiserem,assimcomoodireitodecompraroquequiseremno

mercadocomossaláriosquerecebem.Oqueaformacapitalistadapolíticaimperialvêmfazendonos

últimosdoisséculosécriaressemundo.Populaçõesindígenasecamponesasforamprivadasdoacesso

aosmeiosdeproduçãoeproletarizadasportodooplaneta.Nasversõesneoliberaismaisrecentesdesse

processo, um número cada vez maior de populações em todo o mundo, inclusive nos países de

capitalismoavançado,estãosendoprivadasdeseusrecursos,atémesmodoacessoindependenteaos

meiosdeproduçãoouaoutrosmeiosdesobrevivência(porexemplo,aposentadoriaseoutrosauxílios

doEstado).

A ironia política e ideológica na promoção dessa forma “dúplice” da liberdade burguesa não

escapaaMarx.Hoje,somosdiariamentecatequizadosarespeitodosaspectospositivosdaliberdadee

forçados a aceitar como inevitáveis oumesmo naturais seus aspectos negativos. A teoria liberal se

fundaemdoutrinasdedireitoseliberdadesindividuais.DeLockeaHayek,edaíemdiante,todosos

ideólogos do liberalismo e do neoliberalismo afirmaram que a melhor defesa desses direitos e

liberdades individuais é um sistema de mercado fundado na propriedade privada e nas regras

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burguesasdeindependência,reciprocidadeeindividualismojurídicoqueMarxdescreveu(e,parao

propósitodesuainvestigação,aceitou)nocapítulo2.

Por ser difícil protestar contra ideais universais de liberdade, somos facilmente convencidos a

aceitar a ficção de que as boas liberdades (como as da escolha de mercado) são muito mais

importantes que as más liberdades (como a liberdade dos capitalistas de explorar o trabalho dos

outros).E,sefornecessárioapelarparaarepressãoafimdeprivaraspessoasdeseuacessoaosmeios

de produção e assegurar as liberdades de mercado, isso também se justifica. Em pouco tempo,

mergulhamosnomacarthismoounaBaíadeGuantánamo,incapazesdeesboçaramínimaoposição.

WoodrowWilson,ograndepresidente liberaldosEstadosUnidos, idealizadordaLigadasNações,

colocouissodaseguintemaneira,duranteumaconferêncianaUniversidadeColumbia,em1907:

Porqueocomércioignoraasfronteirasnacionaiseoindustrialinsisteemteromundocomoummercado,abandeiradestanaçãotem

deacompanhá-lo,easportasdasnaçõesqueestãofechadasparaeletêmdeserarrombadas.Asconcessõesobtidaspelosfinancistas

têmde ser salvaguardadasporministrosdeEstado,mesmoquea soberaniadenações renitentes sejaultrajada.Colônias têmde ser

conquistadasouimplantadas,paraquenenhumcantoútildomundosejanegligenciadooudesperdiçado.

O objetivo ideológico essencial de Marx é identificar a duplicidade que habita o cerne da

concepção burguesa de liberdade (do mesmo modo que ele questionou o apelo de Proudhon a

concepçõesburguesasde justiça).Ocontrasteentrearetóricada liberdadedeGeorgeW.Bushea

realidadedaBaíadeGuantánamoéexatamenteoquedeveríamosesperar.

Mas como o trabalhador se tornou “livre” nesse duplo sentido? A razão por que o trabalhador

oferecesuaforçadetrabalhoaocapitalistanomercado,observaMarx,“nãointeressaaopossuidorde

dinheiro [...]. E, no presente momento, ela tampouco tem interesse para nós” (244). Marx supõe

simplesmente que a proletarização já ocorreu e um mercado de trabalho já está em pleno

funcionamento.Masqueresclarecer“outracoisa”:

A natureza não produz possuidores de dinheiro e demercadorias, de um lado, e simples possuidores de suas próprias forças de

trabalho,deoutro.Essanãoéumarelaçãohistórico-natural,tampoucoumarelaçãosocialcomumatodososperíodoshistóricos,mas

éclaramenteoresultadodeumdesenvolvimentohistóricoanterior,oprodutodemuitasrevoluçõeseconômicas,daderrocadadetoda

umasériedeformasanterioresdeproduçãosocial.(244)

Queosistemadotrabalhoassalariadotemumaorigemhistóricaespecíficadeveserreconhecido,

nemquesejaparasublinharofatodequeacategoriadotrabalhoassalariadonãoémais“natural”do

queadocapitalistaouadoprópriovalor.Ahistóriadaproletarizaçãoserátratadaemdetalhesmais

adiante,nocapítulo24.Porora,Marxsupõeapenasquejáexisteummercadodetrabalhoempleno

funcionamento.Noentanto,reconhece:

Tambémas categorias econômicasque consideramos anteriormente trazemconsigo asmarcasdahistória.Na existênciadoproduto

como mercadoria estão presentes determinadas condições históricas [...]. Se tivéssemos avançado em nossa investigação e posto a

questão “sob que circunstâncias todos os produtos – ou apenas a maioria deles – assumem a forma da mercadoria?”, teríamos

descobertoqueissosóocorresobreabasedeummododeproduçãoespecífico,omododeproduçãocapitalista.(244)

Somos lembrados que é omododeprodução capitalista, e nãooutrosmodosdeprodução, que

constituiofocodeMarx.

Aproduçãodemercadoriasqueexistiunopassadoemváriasformas,juntamentecomacirculação

monetária,quetambémexistiuemmuitas formas,éclaramenterelacionada,namentedeMarx,ao

adventodasformasdetrabalhoassalariado.Nenhumadessasevoluçõesé independentedaoutrano

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processoque conduz àdominaçãodomododeprodução capitalista.Maisumavez,os argumentos

históricos e lógicos se entrelaçam. A relação socialmente necessária que vincula logicamente a

produção de mercadorias à monetização e ambas, por sua vez, à mercantilização do trabalho

assalariado, temuma origemhistórica distinta.O sistemade salário e omercado de trabalho, que

paranósparecemcoisasóbviaselógicas,certamentenãopareciamassimmesmonoperíodofinaldo

feudalismoeuropeu.

[As]condiçõeshistóricasdeexistência[docapital]nãoestãodemodoalgumdadascomacirculaçãodasmercadoriasedodinheiro.Ele

sósurgequandoopossuidordemeiosdeproduçãoedesubsistênciaencontranomercadootrabalhadorlivrecomovendedordesua

força de trabalho, e essa condição histórica compreende toda uma história mundial. Assim, o capital anuncia, desde seu primeiro

surgimento,umanovaépocanoprocessosocialdeprodução.(245)

Noentanto,aforçadetrabalhoéumamercadoriapeculiar,especial,diferentedequalqueroutra.

Antes de tudo, é a única mercadoria que tem capacidade de criar valor. É o tempo de trabalho

incorporadonasmercadorias,esãoostrabalhadoresquevendemsuaforçadetrabalhoaocapitalista.

Este,por suavez,usaessa forçade trabalhoparaorganizaraproduçãodemais-valor.Note,porém,

queaformaemqueaforçadetrabalhocirculaéM-D-M(ostrabalhadorespõemsuaforçadetrabalho

nomercadoeavendememtrocadedinheiro,comoqualpodem,então,comprarasmercadoriasde

quenecessitamparasobreviver).Assim,otrabalhador,lembre-se,estásemprenocircuitoM-D-M,ao

passoqueo capitalista operano circuitoD-M-D’.Há, portanto, regras diferentes paraum e outro

pensarem sua respectiva situação. O trabalhador pode se contentar com a troca de equivalentes,

porqueoque lhe importa sãoos valores deuso.O capitalista, por outro lado, temde solucionar o

problemadaobtençãodemais-valorapartirdatrocadeequivalentes.

Masoque fixao valorda forçade trabalho comomercadoria?A resposta é complexa,porque a

forçade trabalhonão éumamercadoriano sentidousual, não sóporque é aúnicaquepode criar

valor,mas tambémporqueosdeterminantesde seuvalor sãodiferentesdaquelesdas camisas edos

sapatos, tanto em princípio quanto em detalhes. Marx cita essas diferenças sem praticamente

nenhumaelaboraçãoadicional:

O valor da força de trabalho, como o de todas as outras mercadorias, é determinado pelo tempo de trabalho necessário para a

produção– e, consequentemente, tambémpara a reprodução–desse artigo específico.Comovalor, a forçade trabalho representa

apenasumaquantidadedeterminadadotrabalhosocialmédionelaobjetivado[...].Parasuamanutenção,oindivíduovivonecessitade

certa quantidadedemeios de subsistência.Assim, o tempode trabalhonecessário à produçãoda força de trabalho corresponde ao

tempodetrabalhonecessárioàproduçãodessesmeiosdesubsistência,ou,ditodeoutromodo,ovalordaforçadetrabalhoéovalor

dosmeiosdesubsistêncianecessáriosàmanutençãodeseupossuidor.(245)

Ovalordaforçadetrabalhoéfixado,portanto,pelovalordetodasaquelasmercadoriasquesão

necessárias para reproduzir o trabalhador em certa condiçãode vida. Somamoso valor dopão, das

camisas,dossapatosedetudomaisqueénecessárioparasustentarereproduzirostrabalhadores,eo

totaléoquedeterminaovalordaforçadetrabalho.

Pareceserumcálculobastantesimples,semelhanteemprincípioaodequalqueroutramercadoria.

Mascomosãodeterminadasessas“necessidades”?Asnecessidadesdistinguemotrabalhodetodasas

outras mercadorias. Em primeiro lugar, no decorrer da atividade laboral, “gasta-se determinada

quantidadedemúsculos,nervos,cérebroetc.humanos,quetemdeserreposta”.Seostrabalhadores

são exigidosnumcerto tipode trabalho (por exemplo,numaminade carvão),podemprecisar,por

exemplo,demaiscarneebatatasparasustentarseutrabalho.Alémdisso,“aquantidadedosmeiosde

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subsistência têm,portanto, de ser suficiente paramanter o indivíduo trabalhador como tal em sua

condiçãonormaldevida”.Masoqueé“normal”?Existem“necessidadesnaturais,comoalimentação,

vestimenta, aquecimento, habitação etc.”, que “são diferentes de acordo com o clima e outras

peculiaridades naturais de um país” (245-6). As necessidades dos trabalhadores são diferentes no

Árticoenaszonastemperadas.Masocorreentãoagrandemudança:

Por outro lado, a amplitude das assim chamadas necessidades imediatas, assim como omodo de sua satisfação, é ela própria um

produtohistóricoe,porisso,dependeemgrandemedidadograudeculturadeumpaís,mastambémdepende,entreoutrosfatores,

desobquaiscondiçõese,porconseguinte,comquaiscostumeseexigênciasdevidaseformouaclassedostrabalhadoreslivresnum

determinadolocal.Diferentementedasoutrasmercadorias,adeterminaçãodovalordaforçadetrabalhocontémumelementohistórico

emoral.(246)

Issoimplicaqueovalordaforçadetrabalhonãoéindependentedahistóriadaslutasdeclasses.

Maisainda,“ograudecivilização”deumpaísvaria,porexemplo,conformeaforçadosmovimentos

burguesesdereforma.Detemposemtempos,osrespeitáveisevirtuososburguesesindignam-secoma

pobrezadasmassase,sentindo-seculpados,concluemqueéinaceitávelque,numasociedadedecente,

amassadapopulaçãovivaassim.Defendementãoaconstruçãodemoradiasdecentes,saúdepública

decente, educação decente, isso decente e aquilo decente. Algumas dessas medidas podem ser

motivadasporinteressepróprio(porqueumsurtodecólera,porexemplo,nãorespeitafronteirasde

classe),masnãohásociedadeburguesaquenãotenhaalgumsensodevalorescivilizados,eessesenso

éfundamentalparadeterminarovalordaforçadetrabalho.

Marx baseia-se no princípio de que há um conjunto de mercadorias que determina o que se

entende por um salário razoável numa sociedade e numa época particulares. Ele não discute essas

particularidades.Aocontrário,podemoscontinuarainvestigaçãoteóricacomoseovalordaforçade

trabalhofossefixoe“dado”,mesmoqueesse“dado”estejaemconstantemovimentoe,dequalquer

modo,tenhadeserflexívelerefletiroutrosaspectos,comooscustosdereproduçãodotrabalhador,

desdeotreinamentoeareproduçãodehabilidadesatéosustentodafamíliaeareproduçãodaclasse

trabalhadora(emtermosqualitativosequantitativos)(245-7).

Outrapeculiaridadedaforçadetrabalhocomomercadoriaédignadenota.Ocapitalistaentrano

mercadoetemdepagarportodasasmercadorias(matérias-primas,maquinariaetc.)antesdepô-las

paratrabalhar.Comaforçadetrabalho,porém,ocapitalistaalugaessaforçadetrabalhoepagaseus

fornecedores apenas depois que eles concluem seu trabalho.Na verdade, o trabalhador adianta ao

capitalistaamercadoriadaforçadetrabalho,esperandoserpagonofimdodia.Masissonemsempre

acontece:empresasquedeclaramfalênciapodemdeixardepagarossaláriosquedevem(247-50).Na

China contemporânea, por exemplo, o salário de grande parte da força de trabalho em certas

indústrias(construçãocivil)eemcertasregiões,particularmentenoNorte,foinegado,oquegerou

grandesprotestos.

OqueMarxdefende aqui éque anoçãodeumpadrãode vida aceitávelparaos trabalhadores

varia de acordo comas circunstâncias naturais, sociais, políticas e históricas.Obviamente, o que é

aceitável numa sociedade (digamos, na Suécia contemporânea) não é omesmo que em outra (na

Chinacontemporânea),eoqueeraaceitávelnosEstadosUnidosem1850nãooémaishoje.Assim,o

valordaforçadetrabalhoéaltamentevariáveledependenãosódasnecessidadesfísicas,mastambém

dascondiçõesdalutadeclasses,dograudecivilizaçãodopaísedahistóriadosmovimentossociais

(algunstêmobjetivosquevãomuitoalémdoslimitesdalutadiretadosprópriostrabalhadores).Há

partidosdemocráticos,porexemplo,quedefendemumsistemauniversaldesaúde,acessoàeducação,

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habitação adequada, infraestruturapública–parques, sistemapúblicode transportes, fornecimento

deágua, saneamento–, assimcomooportunidadedeplenoempregoporumsaláriomínimo.Tudo

issopodeserconsideradoobrigaçõesfundamentaisdepaísescivilizados,dependendodesuasituação

socialepolítica.

A conclusão a que chegamos é que a força de trabalho não é uma mercadoria como outra

qualquer.É aúnicamercadoria que cria valor e, aomesmo tempo,umelementohistórico emoral

entranadeterminaçãodeseuvalor.Eesseelementohistóricoemoralestásujeitoàinfluênciadeum

vasto conjunto de forças políticas, religiosas etc. Mesmo o Vaticano escreveu encíclicas vigorosas

sobre as condições de trabalho, e a Teologia da Libertação, quando atingiu o ápice na América

Latina, nas décadas de 1960 e 1970, teve um papel fundamental no fomento de movimentos

revolucionárioscujofocoeramascondiçõesdevidadospobres.Portanto,ovalordaforçadetrabalho

não é constante.Ele flutuanão sóporque varia o custodasmercadoriasnecessárias à subsistência,

mas tambémporquea cestademercadoriasnecessáriaspara reproduziro trabalhadoré afetadapor

todoesseamploespectrodeforças.Claramente,ovalordaforçadetrabalhoésensívelàsalteraçõesno

valor das mercadorias necessárias para sustentá-la. Importações baratas reduzem esse valor, como

mostrouofenômenoWalmart,queteveumimpactosignificativonovalordaforçadetrabalhonos

EstadosUnidos.Comimportaçõesbaratas,ahiperexploraçãodaforçadetrabalhonaChinamantém

baixoovalordaforçadetrabalhonosEstadosUnidos.Issoexplicatambémaresistênciaderedutosda

classecapitalistacontraaimposiçãodebarreirastarifáriasaosprodutoschineses,poisocustodevida

nosEstadosUnidosaumentariaeostrabalhadoresreivindicariamsaláriosmaiores.

Depoisdemencionarrapidamentequestõesdessetipo,Marxasdeixadeladoeconcluique,“no

entanto,aamplitudemédiadosmeiosdesubsistêncianecessáriosaotrabalhadornumdeterminado

paísenumdeterminadoperíodoéalgodado”(246).Marxestabelececomo“dado”numpaísenuma

época determinada aquilo que ele admite como fluido e em fluxo constante. Isso é razoável?

Teoricamente,permitequeMarxavancenaexplicaçãodaproduçãodomais-valor,mascobracerto

preçoporisso.

Namaioriadaseconomiasnacionais,hámeiosdedeterminaresse“dado”.Alegislaçãoreferente

aosaláriomínimo,porexemplo,reconheceaimportânciadeum“dado”fixonumlugarenumaépoca

determinada; ao mesmo tempo, as decisões sobre o aumento ou não do salário mínimo são uma

excelente ilustraçãodopapelquea lutapolíticadesempenhanadeterminaçãodovalorda forçade

trabalho.Emanosrecentes,aslutaslocaisporum“saláriodecente”serviramtambémparailustrara

ideiatantodeum“dado”geralquantodalutasocialporaquiloquedeveriaseresse“dado”.

Um paralelo ainda mais interessante com relação à formulação de Marx encontra-se na

determinaçãodochamadoníveldepobreza.Emmeadosdadécadade1960,MollieOrshanskycriou

ummétodo para definir o nível de pobreza de acordo com o dinheiro necessário para comprar as

mercadoriasconsideradasimprescindíveisparaareprodução,porexemplo,deumafamíliadequatro

pessoas numnívelminimamente aceitável. Esse é o tipo de “dado” a que se refereMarx.Desde a

décadade1960,noentanto,háumdebateincessantesobreessadefinição,quesetornouabasedas

políticaspúblicas (porexemplo,paraosauxíliosda seguridade social).Aquestão sobrequais itensa

cestabásicademercadoriasdeveria conter–quantode transporte,quantodevestuário,quantode

alimentação, quanto de aluguel (e você precisa realmente de um celular?) – tornou-se objeto de

controvérsia. Hoje, o valor necessário a uma família de quatro pessoas varia em torno de 20 mil

dólaresporano.Adireitadizqueessacestaémalcalculadae,porisso,apobrezaésuperestimada;mas

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estudos indicamqueemlocaisdealtocustodevida,comoacidadedeNovaYork,acestadeveria

valer cercade26mildólares.Obviamente, argumentoshistóricos,políticos emorais têmumpapel

importantenadeterminaçãodessevalor.

RetornaremosàideiadacirculaçãodaforçadetrabalhopelocircuitoM-D-Meàdiferençaentre

eleeocircuitocapitalistaM-D-M+ΔM.Marxcomenta:

Ovalordeusoque[ocapitalista]recebenatrocamostra-seapenasnautilizaçãoefetiva,noprocessodeconsumodaforçadetrabalho

[...]. O processo de consumo da força de trabalho é simultaneamente o processo de produção da mercadoria e do mais-valor. O

consumodaforçadetrabalho,assimcomooconsumodequalqueroutramercadoria,completa-seforadomercadooudaesferada

circulação.(250)

E,emseguida,agrandemudançadeperspectiva:

Deixemos,portanto,essaesferarumorosa,ondetudosepassaàluzdodia,anteosolhosdetodos,eacompanhemosospossuidores

dedinheiro ede forçade trabalhoatéo terrenoocultodaprodução, emcuja entrada se lê:Noadmittance exceptonbusiness [entrada

permitida apenas para tratar de negócios]. Aqui se revelará não só como o capital produz, mas como ele mesmo, o capital, é

produzido.Osegredodacriaçãodemais-valortem,enfim,deserrevelado.(250)

Marx conclui com uma acusação contra a constitucionalidade e a lei burguesas. Abandonar a

esferada circulação eda troca significa abandonar a esfera constitucionalmente erigida como“um

verdadeiroÉden dos direitos inatos do homem”.Omercado “é o reino exclusivo da liberdade, da

igualdade,dapropriedadeedeBentham”.

Liberdade,poisoscompradoresevendedoresdeumamercadoria,porexemplo,da forçade trabalho, sãomovidosapenaspor suas

vontades livres.Elescontratamcomopessoas livres,dotadasdosmesmosdireitos. [...] Igualdade,poiseles se relacionamumcomo

outro apenas comopossuidoresdemercadorias e trocamequivalentepor equivalente.Propriedade,pois cadaumdispõe apenasdo

que é seu. Bentham, pois cada umolha somente para simesmo.A única força que os une e os põe em relaçãomútua é a de sua

utilidadeprópria,desuavantagempessoal,deseusinteressesprivados.Eéjustamenteporquecadaumsepreocupaapenasconsigo

mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em consequência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os

auspíciosdeumaprovidênciatodo-astuciosa,realizamemconjuntoaobradesuavantagemmútua,dautilidadecomum,dointeresse

geral.(250-1)

AdescriçãoprofundamenteirônicaqueMarxfazdaforma-padrãodaconstitucionalidadeliberal

burguesaedaleidomercadonosconduzàfasefinaldatransiçãodesseargumento:

Aoabandonarmosessaesferadacirculaçãosimplesouda trocademercadorias,deondeo livre-cambistavulgaris [vulgar] extrai suas

noções, seus conceitos e o padrão de medida com o qual ele julga a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já podemos

perceber uma certa transformação, ao que parece, na fisiognomia de nossas dramatis personae [personagens teatrais]. O antigo

possuidordedinheiro se apresenta, agora, comocapitalista eopossuidorde forçade trabalho, como seu trabalhador.Oprimeiro,

comumardeimportância,confianteeávidopornegócios;osegundo,tímidoehesitante,comoalguémquetrouxesuaprópriapele

aomercadoe,agora,nãotemmaisnadaaesperaralémda...despela.(251)

Essas reflexões adicionais sobre os direitos burgueses, fazendo eco à dualidade da suposta

liberdadedotrabalhador,direcionamoargumentoparaaanálisedeummomentobemmenosvisível

daproduçãoquesedáemgeralnafábrica.ÉaessereinoqueMarxnoslevanopróximocapítulo.

[a]Nooriginal,consta:“ostrêscapítulos(thethreechapters)”.AnumeraçãodoscapítulosdaediçãoinglesadoLivroId’Ocapital,utilizada

porHarvey,nãocoincidecomanumeraçãodasediçõesalemãs,mascomadaediçãofrancesa.Nesta,ostrêssubcapítulosdocapítulo4da

segundaediçãoalemãsãotransformadosemcapítulos(4-6),omesmoocorrendocomossetesubcapítulosdocapítulo24,quepassama

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formaroscapítulos26-32.Domesmomodo,altera-seadivisãodasseções:naediçãoalemã,aseçãoVIIencerraaobracomoscapítulos

21-25, ao passo que, nas edições francesa e inglesa, a seção VII compreende apenas os capítulos 21-23 e desloca os dois últimos

capítulosparaumaoitavaseção.Napresentetradução,optamosporalteraranumeraçãoadotadaporHarvey,adequando-aàdivisãode

capítulosestabelecidaporMarxapartirdasegundaediçãoalemãemantidaporEngelsnaterceiraenaquartaedições.Aorganizaçãodos

capítulosaquiadotadacoincideinteiramente,portanto,comaquelautilizadaemnossatraduçãod’Ocapital(SãoPaulo,Boitempo,2013).

(N.T.)

[b]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.58.(N.E.)

[c]Ibidem,p.58-9.(N.E.)

[1]MarxcitaamesmadefiniçãotautológicadocapitalapresentadanateoriadacirculaçãodeJ.B.Say.

[d]EmAcomédiahumana(3.ed.,RiodeJaneiro,Globo,1955),v.5.(N.E.)

[e]SãoPaulo,Hedra,2002.(N.E.)

[f]SãoPaulo,NovaCultural,1996.(N.E.)

[2]RosaLuxemburgo,TheAccumulationofCapital(NovaYork,Routledge,2003),p.104-5[ed.bras.:Aacumulaçãodocapital:contribuição

aoestudoeconômicodoimperialismo,2.ed.,SãoPaulo,NovaCultural,1985].

[g] Segundo Harvey, a cada crise de superprodução o capital busca um ajuste espacial (spatial fix) por meio de investimentos em

infraestrutura e urbanização.VerDavidHarvey,Spaces of Capital: Towards aCriticalGeography [Espaços do capital: para uma geografia

crítica](NovaYork,Routledge,2001),p.284-311.(N.T.)

[3]DavidHarvey,Paris:CapitalofModernity(NovaYork,Routledge,2003),p.119.

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4.Oprocessodetrabalhoeaproduçãode

mais-valor

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Gostaria de fazer um retrospecto do argumento de Marx até aqui. Para isso, recorro a uma

representação diagramática de sua cadeia dialética de argumentação (ver figura na p. anterior).

Reduzir o argumento de Marx a esse formato é inevitavelmente cometer uma injustiça contra a

riquezade seupensamento,maspensoque seráútil terdeleummapacognitivoparanavegar com

maisfacilidadeporesseredemoinho.

Marxcomeçacomoconceitounitáriodamercadoria,que incorporaadualidadeentrevalorde

uso e valorde troca.Oque encontramospor trásdovalorde troca éo conceitounitáriode valor,

definido como tempo de trabalho socialmente necessário (“socialmente necessário” implica que

alguémqueiraouprecisedovalordeuso).Ovalorinteriorizaumadualidadeentretrabalhoconcreto

etrabalhoabstrato,queseunemnumatodetrocapormeiodoqualovaloréexpressonadualidade

das formas relativa e equivalente de valor. Isso engendra uma mercadoria-dinheiro como

representante da universalidade do valor, porém disfarça o significado interno deste como uma

relação social, produzindo assim o fetichismo dasmercadorias, entendido como relaçõesmateriais

entrepessoaserelaçõessociaisentrecoisas.Nomercado,aspessoasserelacionamentresinãocomo

pessoas, mas como compradores e vendedores de coisas. Nesse ponto,Marx supõe, assim como a

teoria liberal, a existência de direitos de propriedade privada, indivíduos jurídicos emercados em

perfeitofuncionamento.Nointeriordessemundo,odinheiro,arepresentaçãodovalor,assumedois

papéis distintos e potencialmente antagônicos: comomedida de valor e comomeio de circulação.

Mas,nofim,háapenasumdinheiro,ea tensãoentreosdoispapéiséaparentementeresolvidapor

uma nova relaçãomonetária, isto é, a relação entre devedores e credores. Isso transfere o foco da

formaM-D-Mde circulação para a formaD-M-D, que é, obviamente, o protótipo do conceito de

capitaldefinidonãocomoumacoisa,mascomouma formadecirculaçãodovalorqueproduzum

mais-valor(lucro),D-M-D+ΔD.Issocriaumacontradiçãoentreaequivalênciasupostanomercado

de funcionamento perfeito e a não equivalência requerida na produção de mais-valor. E assim

chegamosàconcepçãodeumarelaçãodeclassesentrecapitaletrabalho.

Observe que não se trata de uma cadeia causal de argumentos, mas de um desdobramento

gradual, da sobreposição de diferentes graus de complexidade, à medida que a investigação se

expandedeumasimplesoposiçãonointeriordamercadoriaparainsightsprogressivossobrediferentes

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aspectosdo funcionamentodomododeprodução capitalista.Essa expansãodialética continua em

todoo livro,por exemplonaemergênciadeuma relaçãoedeuma lutadeclasses, assimcomonos

conceitosdúplicesdemais-valorabsolutoemais-valorrelativo.Porfim,talexpansãochegaaoplano

damacrodicotomiaentreoLivroI,quetratadomundodaproduçãodemais-valor,eoLivroII,cujo

focoéacirculaçãoearealizaçãodomais-valor.Astensões(contradições)entreproduçãoerealização

sustentamateoriadacrisenoLivroIII.Massigamosadiante.

EssemapacognitivonosajudaavercomoMarx“cultivou”seuargumentoorganicamenteepor

saltos dialéticos.Masnãopodemos esquecer que o diagrama é um simples esqueleto, em tornodo

qualMarxorganizaumaanálisedacarneedosanguereaisdeumdinâmico,evolutivoecontraditório

mododeproduçãocapitalista.

CAPÍTULO5:OPROCESSODETRABALHOEOPROCESSODEVALORIZAÇÃO

Deixamosagoraaesfera“barulhenta”domercado,aesferadaliberdade,daigualdade,dapropriedade

edeBentham,eentramosnoprocessodetrabalho,emcujolimiarestáescrito:“Noadmittanceexcept

onbusiness”.Noentanto,essecapítuloéincomum,emcertoaspecto.Namaiorpartedotexto,Marx

deixa claro que está lidando apenas com categorias conceituais formuladas nomodo de produção

capitalista e adequadas unicamente a esse modo de produção. O valor, por exemplo, não é uma

categoria universal,mas algo exclusivo do capitalismo, um produto da era burguesa (como vimos,

Aristóteles não poderia tê-lo descoberto, dadas as condições de escravidão). Contudo, nas dez

primeiraspáginasdessecapítulo,Marxselançanumadiscussãouniversal,aplicávelatodososmodos

possíveisdeprodução.“Deinício,devemosconsideraroprocessodetrabalhoindependentementede

qualquer forma social determinada” (255), diz ele, confirmando assim a posição assumida

anteriormentedequeotrabalhoé“umacondiçãodeexistênciadohomem,independentedetodasas

formassociais,eternanecessidadenaturaldemediaçãodometabolismoentrehomemenaturezae,

portanto,davidahumana”(120).

Contudo, não devemos interpretar essas afirmações em termos burgueses, familiares, que

pressupõemumaclara separaçãoentre “homemenatureza”, cultura enatureza,natural e artificial,

mental e físico, e nos quais a história é concebida como uma luta titânica entre duas forças

independentes: humanidade e natureza. Na visão de Marx, não existe separação no processo de

trabalho. Este é inteiramente natural e, ao mesmo tempo, inteiramente humano. É construído

dialeticamente como um momento do “metabolismo”, em que é impossível separar o natural do

humano.

Mas no interior dessa concepção unitária do processo de trabalho, assim como no caso da

mercadoria, identificamos de imediato uma dualidade. Segundo Marx, há “um processo entre o

homemeanatureza,processoesteemqueohomem,porsuaprópriaação,medeia,regulaecontrola

seumetabolismocomanatureza”(255).Ossereshumanossãoagentesativosemrelaçãoaomundo

queosrodeia.Assim,

[ohomem]confrontacomamatérianaturalcomocomumapotêncianatural[Naturmacht].Afimdeseapropriardamatérianaturalde

umaformaútilparasuaprópriavida,elepõeemmovimentoasforçasnaturaispertencentesasuacorporeidade:seusbraçosepernas,

cabeça emãos. Agindo sobre a natureza externa emodificando-a pormeio dessemovimento, elemodifica, aomesmo tempo, sua

próprianatureza.(255)

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Énessapassagemquevemosmaisclaramentea formulaçãodialéticadeMarxda relaçãocoma

natureza.Não podemos transformar o que se passa ao nosso redor sem transformar a nósmesmos.

Inversamente,nãopodemostransformaranósmesmossemtransformaroquesepassaaonossoredor.

Ocaráterunitáriodessa relaçãodialética,mesmoque impliqueuma“exteriorização”danaturezae

uma“interiorização”dosocial, jamaispodesereliminado.Taldialéticadatransformaçãoconstante

desimesmomediantea transformaçãodomundo,evice-versa,é fundamentalparaentendermosa

evoluçãodassociedadeshumanas,assimcomoaevoluçãodapróprianatureza.Masesseprocessonão

éexclusivodossereshumanos–eleexisteentreasformigas,entreoscastores,entretodosostiposde

organismos.AhistóriadavidanaTerraépródigaeminteraçõesdialéticasdessetipo.JamesLovelock,

por exemplo, defende com sua hipótese de Gaia que a atmosfera que nos mantém neste exato

momentonemsempreexistiu;elateriasidocriadapororganismosquesealimentavamdemetanoe

produziamoxigênio.Adialéticadavidaorgânicaeaevoluçãodomundonaturalfoi,desdesempre,

fundamental.

Emseusprimeirosescritos,Marxdeugrandeênfaseàideiadeum“sergenérico”especificamente

humano (apoiando-se talvez na antropologia kantiana e nas formulações antropológicas tardias de

Feuerbach).Essaideiaérelegadaaumsegundoplanonasformulaçõesd’Ocapital,masvezououtra

temuma influência furtiva, comonesse caso.Oque tornanosso trabalho exclusivamentehumano,

então?Marxescreve:

Umaaranhaexecutaoperaçõessemelhantesàsdotecelão,eumaabelhaenvergonhamuitosarquitetoscomaestruturadesuacolmeia.

Porém,oquedesdeoiníciodistingueopiorarquitetodamelhorabelhaéofatodequeoprimeirotemacolmeiaemsuamenteantes

de construí-la com a cera.No fi nal do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do

trabalhadornoiníciodoprocesso,portanto,umresultadoquejáexistiaidealmente[istoé,mentalmente].(256)

Essa éuma afirmação importante.Temosuma ideia, dizMarx, e a tornamos real.Portanto,há

sempre um momento “ideal” (mental), um momento utópico, envolvido na atividade produtiva

humana.Maisainda,essemomentonãoécontingente:ohomem“nãoselimit[a]aumaalteraçãoda

formado elementonatural; ele realizaneste último, aomesmo tempo, seuobjetivo”.A atividade é

intencional.Eaessepropósito,que“determina,comolei,otipoeomododesuaatividade”,eletem

de“subordinarsuavontade.Eessasubordinaçãonãoéumatoisolado”.Eleprecisa–nósprecisamos–

prestarmuitaatenção,e“tantomaisquantomenosesse trabalho,pelo seupróprioconteúdoepelo

modode sua execução, atrai o trabalhador,portanto,quantomenos esteúltimousufruidele como

jogodesuasprópriasforçasfísicasementais”(256).

Háumasériedepontosnessaspassagenscruciaisquedevemserressaltados–eelassãorealmente

cruciais.Paracomeçar,nãohádúvidadequeMarxcontestaasideiasdeFouriersobreoprocessode

trabalho. Fourier acreditava que o trabalho tinha de ser uma atividade prazerosa, de envolvimento

erótico e apaixonado,ou entãopuramente lúdico.Marxdizqueo trabalhonão énadadisso.Uma

enormedosedeesforçoedisciplinaénecessáriaparaqueoprodutoimaginadosetornereal,paraque

um propósito consciente seja concretizado. Em segundo lugar, ele atribui um papel vital às

concepções mentais, à ação consciente e intencional, o que contradiz um argumento muito

frequentementeatribuídoaele,odequeascircunstânciasmateriaisdeterminamaconsciência,ede

queomodocomopensamoséditadopelascircunstânciasmateriaisdenossavida.OqueMarxdiz

aqui é: não, há um momento em que o ideal (o mental) medeia efetivamente o que fazemos. O

arquiteto – e acho que é importante tratá-lo aqui mais como uma metáfora do que como uma

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profissão–temacapacidadedepensaromundoerefazê-losegundoessaimagem.Algunsintérpretes

argumentam que Marx simplesmente se esqueceu de suas próprias máximas nessas passagens, ou

então é esquizofrênico e, nesse caso, existem dois marxismos: um é o Marx dessa passagem, que

afirmaolivrejogodasideiasedasatividadesmentais;ooutroéoMarxdeterminista,quesustenta

que nossa consciência, assim como tudo o que pensamos e fazemos, é determinada pelas

circunstâncias materiais em que vivemos. Penso que nenhuma das duas concepções é plausível. É

improvável que justamente n’O capital, num capítulo fundamental de uma obra que foi

cuidadosamente revisada antes de ser publicada (e posteriormente modificada em resposta às

críticas),Marxassumiriaumaposiçãoquenãofosseprofundamentecoerentecomomodocomoele

compreendiaomundo.Seessaspassagensestivessemnumdeseuscadernosdeanotações,oumesmo

nosGrundrisse,aquestãoseriaoutra.Masesseéumpontode transição fundamentalnoargumento

d’Ocapital.Elemerece,portanto,umaleiturasériaeumainterpretaçãocuidadosa.

Acompreensãodialéticadoprocessode trabalhocomoummomentometabólico implicaqueas

ideiasnãopodemsurgirdonada.Asideiassão,emcertosentido,inteiramentenaturais(umaposição

fundamentalmentecontráriaao idealismohegeliano).Assim,nãohánadaestranhoemdizerqueas

ideias surgem da relaçãometabólica com a naturezamaterial e têm amarca dessa origem.Nossas

concepçõesmentaisdomundonãosãoseparadasdenossasexperiênciasmateriais,denossasrelações

centraiscomomundo,e,portanto,nãosãoindependentesdessasrelações.Contudo(eaquioparalelo

comodinheiroeamercadoriaéinstrutivo),háumaexteriorizaçãoinevitáveldeumarelaçãointerna

e, domesmomodo que omundo do dinheiro (sobretudo quando assume formas simbólicas) pode

aparentar ser e “realmente é” oposto ao mundo das mercadorias e de seus valores de uso (ver a

argumentação sobre o fetichismo), nossas concepçõesmentais transitam para uma relação externa

comomundomaterialqueprocuramosremodelar.Há,portanto,ummovimentodialético,emquea

imaginaçãovoalivreediz“Vouconstruiristo,emvezdaquilo”,remodelandoelementosmateriaise

usandoasforçasnaturais(inclusiveosmúsculoshumanos)paraproduziralgonovoediferente(por

exemplo,ooleirocomseutorno).Certaaberturaparaasideiaseconcepçõesmentaisécaptadapela

formulaçãodeMarx.E,assimcomoosistemamonetáriopodesairdos trilhosegerarcrises,nossas

concepçõesmentais (ou fixações ideológicas) tambémpodem fazê-lo.De fato, essa é exatamente a

posiçãoqueMarxassumeemrelaçãoàvisãoburguesadomundo,comsuasfantasiascomRobinson

Crusoée suacelebraçãodeum individualismopossessivo fictício edemercadosde funcionamento

perfeito.Domesmomodoqueemalgummomentoosistemamonetárioéforçadoaserecomporem

relação ao mundo material do trabalho socialmente necessário, a concepção burguesa do mundo,

ainda hoje tão presente entre nós, precisa dar lugar a uma configuração mais apropriada das

concepções mentais, se quisermos enfrentar os crescentes problemas sociais e ambientais do

capitalismo. A luta por concepções mentais apropriadas (tidas em geral como “meramente”

superestruturais, emboraMarxdiga especificamenteque esse éo reinoemqueoshomens “tomam

consciência”dasquestões e “as enfrentam”

[a]

) temumpapel importantenisso.Porqueoutra razão

Marx se esforçaria tanto para escrever O capital ? Por isso, esse momento em que Marx situa

concepçõesmentais,consciência, intencionalidadeecomprometimentonãoédemodoalgumuma

aberração em relação àdinâmicada evolução social eda transformaçãodanatureza, edanatureza

humana,pormeiodotrabalho.Aocontrário,eleéfundamental.

Marx tambémdiz aqui que, para concluir umprojeto (como construir uma casa), é necessário

trabalhoárduoe,umavezqueembarcamosnumprojeto,muitasvezesficamospresosaseuslimites.Se

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quisermosconcluí-lo,temosdenossubmeterasuasdemandas,sujeitarnossaspaixõesenósmesmosà

intensidadedesuaintenção.Semprequeescrevoumlivro,porexemplo,começocomumaideiaque

meparecebrilhanteeanimadora,mas,quandootermino,sintocomosetivessesaídodeumaprisão!

Masháaquiumsignificadomuitomaisamplo.NocentrodasensibilidadecríticadeMarxresidea

ideia de que os seres humanos podem muito facilmente se tornar prisioneiros de seus próprios

produtoseprojetos,paranãofalardesuasfalsasconcepçõesdemundo.Essasensibilidadecríticapode

seraplicadacomamesmacrueldadetantoaocomunismo,aosocialismoeàRomaAntigaquantoao

capitalismo,masénesteúltimoqueMarxadesenvolvecommaisforçaepersuasão.

Háalgomaisnessaspassagensqueastornainteressantes.Ameuver,Marxconfereaoprocessode

trabalhoum sentidonão apenasde criatividade,mas tambémdenobreza.Oargumentomeparece

profundamenteromântico.Indiscutivelmente,Marxfoi influenciadopeloRomantismodoiníciodo

séculoXIX.Seusprimeirosescritostranspiramsentimentosesignificadosromânticos.E,emboraessa

sensibilidadepercaforça,nãoédifícilnotá-laemseusescritosmaduros(aindaqueconceitoscomoa

alienação troquem o caráter profundamente agonístico que tinham nos Manuscritos econômico-

filosóficos

[b]

por significadosmais técnicosn’Ocapital ).Mas aqui ele diz semmeias-palavras queos

seres humanos podem transformar radicalmente o mundo, de acordo com sua imaginação e com

determinado propósito, e ter consciência do que estão fazendo. E que, com isso, têm o poder de

transformarasimesmos.Portanto,precisamosrefletirsobrenossospropósitos,tomarconsciênciade

como e quando intervimos no mundo, transformando a nós mesmos. Podemos e devemos nos

apropriarcomcriatividadedessapossibilidadedialética.Nãohá,portanto,umatransformaçãoneutra

deumanaturezaexterioranós.Oquefazemos“láfora”temmuitoaverconosco“aquidentro”.Marx

nosfazrefletirsobreoqueessadialéticasignificaexatamenteparanós,assimcomoparaanatureza,

daqualsomosapenasumaparte:daíaabordagemuniversalistaparacompreendermosoprocessode

trabalho.Issoimplicaqueanaturezahumananãoéalgodado,masestáemconstanteevolução.

A posição deMarx aqui é controversa (como talvez possa ser tambémminha leitura dela).Há

oportunidadesabundantesdedebate.Porexemplo,vocêpodeconcordarcomaposiçãodeFourier,ou

com alguma versão das posições marxistas autônomas de Antonio Negri, John Holloway e Harry

Cleaver, cujo Reading Capital Politically [Lendo O Capital politicamente]

[1]

oferece uma análise

intensivadamatériaexpostaaqui.Antes,porém,éprecisocompreenderoqueMarxestádizendo;veja

queessaéaposiçãoqueelepróprioassume,essaéavisãoqueeletemdaspotencialidadesdotrabalho

criativoedatransformaçãodomundo.

Entãocomooprocessode trabalho, enquantocondiçãouniversaldepossibilidadedaexistência

humana,podesercaracterizado?Marxdistinguetrêselementosfundamentais:“aatividadeorientada

aum fim, ouo trabalhopropriamentedito [...]; seuobjeto e [...] seusmeios” (256). Inicialmente, o

objetosobreoqualérealizadootrabalhoestádadonoconceitodeterra,nanaturezabruta.Maselese

distanciarapidamentedessaideiaepassaadistinguirentrenaturezabrutaematérias-primas,quesão

aspectosdomundojáparcialmentetransformados,criadosouextraídospelotrabalhohumano.Uma

distinçãosimilaréfeitanocasodosinstrumentosdetrabalho.Estespodemserdadosdiretamente–

paus,pedrasouqualqueroutracoisaquepossamosutilizar–oupodemserconfeccionadosdemodo

consciente,comofacasemachados.Assim,emboraaTerrapossasernosso“estoqueoriginaldemeios

de subsistência” e nosso “arsenal original de instrumentos de trabalho”, há muito tempo os seres

humanosconseguiramtransformartantoaTerraquantoosinstrumentosdetrabalhodeacordocom

umprojetoconsciente.CitandoBenjaminFranklincomcertaparceladeaprovação,Marxdizqueo

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homempodeserdefinidocomoum“toolmakinganimal,umanimalquefazferramentas”:“Ousoea

criação demeios de trabalho, embora já existam em germe em certas espécies de animais, é uma

característica específica do processo humano de trabalho” (257). Marx faz então uma rápida

observaçãosobrealgoqueserátratadoemdetalhesmaisadiante:

Oquediferenciaasépocaseconômicasnãoé“oquê”éproduzido,mas“como”,“comquedetrabalho”.Estesnãoapenasfornecem

umamedidadograudedesenvolvimentodaforçadetrabalho,mastambémindicamascondiçõessociaisnasquaissetrabalha.(257)

Isso implica que a transformação em nossos instrumentos de trabalho tem consequências para

nossas relações sociais, e vice-versa; àmedida que nossas relações sociaismudam, nossa tecnologia

também tem de mudar; e, à medida que nossa tecnologia muda, tambémmudam nossas relações

sociais.Assim, ele lança aqui a ideia deumadialética entre tecnologias e relações sociais que será

importantemaisadiante.Comovimos,estaéumaestratégiatípicadeMarx–inserirumcomentário

comointroduçãodoquevirádepois.

Masnãoestamos tratandoapenasde ferramentasemsentidoconvencional.Ascondições físicas

de infraestrutura, também produzidas pelo trabalho humano, não estão diretamente envolvidas no

processoimediatodetrabalho,porémsãonecessáriasàsuarealização.“Meiosdetrabalhodessetipo,

já mediados pelo trabalho, são, por exemplo, oficinas de trabalho, canais, estradas etc.” (258). O

processodetrabalhodependenãoapenasdaextraçãodemateriaisdanaturezabruta,mastambémde

umambienteconstruídodecampos,estradaseinfraestruturaurbana(àsvezescitadacomo“segunda

natureza”).

Eoprocessode trabalhopropriamentedito?Aqui,Marxvoltaaconsideraras relaçõesprocesso-

coisa.Otrabalhoéumprocessoquetransformaumacoisaemoutracoisa.Essatransformaçãoanula

um valor de uso existente e cria um valor de uso alternativo. Além disso, “o que do lado do

trabalhador aparecia sob a forma do movimento, “agora se manifesta, do lado do produto, como

qualidadeimóvel,naformadoser.Elefiou,eoprodutoéumfio”(258).Essadiferençaentreprocesso

ecoisaestásemprepresente.

SempreadmireiissonasformulaçõesdeMarx.Comoeducador,souconstantementeconfrontado

com a relação processo-coisa. O processo de aprendizado de um estudante é julgado por coisas

realizadas, comoensaios escritos.Mas às vezes édifícil, senão impossível, avaliar esseprocessopor

meio de coisas produzidas. Os estudantes podem achar o processo extremamente esclarecedor e

aprendermuito,mas,seredigemumensaioruim,recebemumanotaF.Dizem,então:“Masaprendi

tanto com o curso!”. E eu respondo: “Como você pode escrever um ensaio como este e dizer que

aprendeucomocurso?”.Masesseéumproblemacomquenosdeparamoscomfrequência.Podemos

fracassarestrondosamentequandoproduzimosacoisa,mas terumaprendizado fantásticoao longo

doprocesso.

ParaMarx, o cerne do trabalho está no processo.Domesmomodo que o capital é construído

comoumprocessodecirculação,otrabalhoéconstruídocomoumprocessodefabricação.Maséum

processodefabricaçãodevaloresdeusoe,sobocapitalismo,issosignificafabricarvaloresdeusopara

outrosnaformademercadoria.Essevalordeusoprecisaserdeusoimediato?Nãonecessariamente,

porqueotrabalhorealizadonopassadopodeserarmazenadoparausonofuturo(mesmosociedades

primitivasmantêmumestoquedeprodutosexcedentes).Nomundoatual,umaenormequantidade

detrabalhorealizadonopassadoencontra-searmazenadanoscampos,nascidadesenainfraestrutura

física,eboapartedissodatademuitotempoatrás.Aatividadelaboraldiáriaéumacoisa,masomodo

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comootrabalhoéarmazenadoemprodutosecoisastambémtemumpapelfundamental.Maisainda,

o processo de trabalho costuma produzir coisas diversas simultaneamente. É o que chamamos de

“produtoscombinados”.Acriaçãodegadoproduz leite,carneecouro,eaovelhacriadaparacorte

também produz lã, gostemos disso ou não. Isso coloca certos problemas sob o capitalismo, por

exemplo:comoessesmúltiplosprodutoscombinadospodemseravaliadosseparadamente?Ouainda:

como os produtos do trabalho passado se relacionam com o trabalho presente? Isso se torna

particularmenteimportantenocasodovalordasmáquinas:“umamáquinaquenãoservenoprocesso

detrabalhoéinútil”.Consequentemente,

Otrabalhovivotemdeapoderar-sedessascoisasedespertá-lasdomundodosmortos,convertê-lasdevaloresdeusoapenaspossíveis

emvaloresdeuso reais e efetivos.Umavez tocadaspelo fogodo trabalho [e aquiMarx volta a enfatizar a centralidadedo trabalho

comoprocesso],apropriadascomopartesdocorpodotrabalho,animadaspelasfunçõesque,porseuconceitoevocação,exercemno

processolaboral,elas[asmáquinas]serão,sim,consumidas,porémsegundoumpropósito,comoelementosconstitutivosdenovos

valoresdeuso,denovosprodutos,aptosa ingressarnaesferadoconsumo individualcomomeiosde subsistênciaouemumnovo

processodetrabalhocomomeiosdeprodução.(260-1)

Portanto,éocontatocomo trabalhovivoqueressuscitaovalordo trabalhomorto,cristalizado

nos produtos passados. Isso aponta uma distinção vital entre o consumo produtivo e o individual.

Consumoprodutivoéo trabalhopassadoqueéconsumidonumprocessode trabalhopresentepara

produzirumvalordeusointeiramentenovo;consumoindividualéoqueéconsumidopelaspessoas

aoreproduzirasimesmas.

“Oprocessode trabalho”,dizMarxàguisadeconclusão, “éatividadeorientadaàproduçãode

valoresdeuso,apropriaçãodoelementonaturalparaasnecessidadeshumanas,condiçãonecessária

do metabolismo entre homem e natureza” (note mais uma vez como é importante essa ideia de

interaçãometabólicanaanálisedeMarx),“perpétuacondiçãonaturaldavidahumana”(comoelejá

afirmounapágina261)

e,porconseguinte,independentedequalquerformaparticulardessavida,oumelhor,comumatodasassuasformassociais.Poressa

razão,nãonosfoinecessárioapresentarotrabalhadoremsuarelaçãocomoutrostrabalhadores,epudemosnoslimitaraohomeme

seu trabalho, de um lado, e à natureza e seusmateriais, de outro. Assim como o sabor do trigo não nos diz nada sobre quem o

plantou,tampoucoesseprocessonosrevelasobquaiscondiçõeseleserealiza.(198-9)

OqueMarxfaznessaspoucaspáginaséapresentardissecaçõesedescriçõesuniversaisdoprocesso

de trabalho, independente de qualquer formação social, despido de qualquer significado social

particular. Posso descrever com todos os detalhes físicos alguém que esteja cavando um buraco,

inclusive sua relação como trabalho realizadonopassado e incorporadonapá;no entanto, apenas

combasenessadescrição,nãopossosaberseessapessoaéumaristocrataexcêntrico,quecavaburacos

apenaspeloexercício,ou seéumcamponês,umescravo,umassalariadoouumcondenado.Assim,

podemos olhar para o processo de trabalho como um processo puramente físico, sem saber

absolutamentenadaarespeitodasrelaçõessociaisemqueestáassentadoesemnenhumareferência

às concepções ideológicas ementaisque surgem,digamos,domododeproduçãocapitalista.Resta

consideraromodocomoocapitalismofazusopeculiardessascapacidadesepotênciasuniversais.

Aformacapitalistadoprocessodetrabalho

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“Voltemos,agora,anossocapitalistainspe[aspirante].Quandoodeixamos,elehaviaacabadode

comprarnomercadotodososfatoresnecessáriosaoprocessodetrabalho,tantoseusfatoresobjetivos”

–istoé,osmeiosdeprodução–“quantoseufatorpessoal,ouaforçadetrabalho”.Duascondiçõesse

apresentam,noentanto,nocontratoentrecapitaletrabalhonoatodecompraevendadaforçade

trabalho comomercadoria. A primeira é que “o trabalhador labora sob o controle do capitalista, a

quempertenceseutrabalho”(262).Issoquerdizerque,quandofirmoumcontratodetrabalhocom

umcapitalista,eletemodireitodedirigirminhaatividadelaboraledeterminarminhastarefas.Isso

pode ser contestado quando o trabalho comporta um risco à vida, mas o princípio geral é que o

trabalhador receberáodinheiropara sobrevivere, emtroca,ocapitalistapoderádirigi-lopara fazer

isto ou aquilo. A força de trabalho é umamercadoria que pertence ao capitalista pelo período do

contrato.Asegundacondiçãoéquetudoqueotrabalhadorproduzirduranteoperíododocontrato

pertenceráaocapitalista,nãoaotrabalhador.Mesmoqueeutenhafeitoamercadoriaeincorporado

nela trabalho concreto e valor, ela não me pertence. Essa é uma transgressão interessante da

concepção de Locke de que aqueles que criam valor ao aplicar seu trabalho à terra tornam-se os

titularesdapropriedadeprivadadaquelevalor.Demodogeral,acreditoquevocêpossaperceberque

essasduascondiçõeslevamàalienaçãototaldotrabalhador(emboraMarxnãouseotermoaqui)em

relaçãoaopotencialcriativoinerentetantoaotrabalhoquantoaoproduto.“Apartirdomomentoque

ele entra na oficina do capitalista, o valor de uso de sua força de trabalho, portanto, seu uso, o

trabalho,pertenceaocapitalista.Medianteacomprada forçade trabalho,ocapitalista incorporao

própriotrabalho,comofermentovivo”–maisumavez,encontramosotrabalhocomoumaatividade,

comoo“fogovivo,conformador”presentenosGrundrisse–“aoselementosmortosqueconstituemo

produtoelhepertencemigualmente”(262).

Essasduascondições,noentanto,permitemqueocapitalistaorganizeaproduçãopara

produzirumamercadoria cujovalor sejamaiordoque a somadovalordasmercadorias requeridaspara suaprodução,osmeiosde

produçãoea forçadetrabalho,paracujacompraeleadiantouseudinheironomercado.Elequerproduzirnãosóumvalordeuso,

masumamercadoria;nãosóvalordeuso,masvalor,enãosóvalor,mastambémmais-valor.

Assim,ocapitalistaune“oprocessodetrabalhoeoprocessodeformaçãodevalor”paracriarum

novo tipodeunidade (263).É isso queo capitalista temde fazer, esse é seupropósito consciente,

porqueaorigemdolucroestánomais-valor,eopapeldocapitalistaébuscarlucro.DizMarx:

Todasascondiçõesdoproblemaforamsatisfeitas,semquetenhaocorridoqualquerviolaçãodasleisdatrocademercadorias.Trocou-

se equivalente por equivalente.Como comprador, o capitalista pagouodevido valor por cadamercadoria: algodão, fusos, forçade

trabalho.Emseguida,fezomesmoquecostumafazertodocompradordemercadorias:consumiuseuvalordeuso.

Isso permite que o capitalista produza mercadorias com mais valor do que aquelas que ele

comprou no início do processo e, assim, obtenhamais-valor. “Esse circuito inteiro”, concluiMarx,

envolve“atransformaçãodeseudinheiroemcapital”e“ocorrenointeriordaesferadacirculaçãoe,

aomesmotempo, foradela”(271).Omaterialea forçadetrabalhosãocompradosnomercadopor

seu valor,mas, uma vez longe dos olhos domercado, são utilizados para incorporarmais valor às

mercadoriasproduzidasnoprocessodeprodução.As condições “satisfeitas” são as estabelecidasno

fimdosegundoitemdocapítulo4:opossuidordedinheiro“temdecomprarasmercadoriaspeloseu

valor,vendê-laspeloseuvalore,noentanto,nofinaldoprocesso,retirardacirculaçãomaisvalordo

quenelacolocouinicialmente”(241).Oresultadoparecemágico,porquenãosóocapitalpareceser

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capazdepôrovosdeouro,masporque,“aoincorporarforçavivadetrabalhoàsuaobjetividademorta,

ocapitalistatransformaovalor–otrabalhopassado,objetivado,morto–emcapital,emvalorquese

autovaloriza,ummonstrovivoquesepõea‘trabalhar’comoseseucorpoestivessepossuídodeamor

[aquiMarxcitaFausto]

[c]

”(271).

Aformadacirculaçãopodeserassimdescrita:

FT

D-M.....PT............M-D+ΔD

MP

Vejamos mais de perto os diferentes momentos desse processo. O capitalista tem de comprar

meiosdeprodução(MP):matérias-primas,maquinariaeitenssemimanufaturados,todosprodutosde

trabalhopassado (valores incorporados).E temdepagarpor essasmercadorias seuvalor,de acordo

com as regras da troca. Se ele precisar de um fuso, o tempo de trabalho socialmente necessário

incorporado nos fusos fixa esse valor. Se ele usar um fuso de ouro, então este não é socialmente

necessário.Para queoprocessode trabalho funcione, o capitalista temde ter acesso adequado aos

meiosdeproduçãonomercado.Oqueacompradeforçadetrabalho(FT)possibilitaéareanimação

dessesmeios“mortos”deproduçãopormeiodoprocessodetrabalho(PT).

Duranteoprocessodetrabalho,estepassaconstantementedaformadainquietudeàformadoser,daformademovimentoparaade

objetividade. Ao final de 1 hora, o movimento da fiação está expresso numa certa quantidade de fio, ou seja, numa determinada

quantidadedetrabalho,em1horadetrabalho,estáobjetivadanoalgodão.Dizemoshoradetrabalho,istoé,dispêndiodaforçavital

dofiandeirodurante1hora,poisotrabalhodefiaçãosótemvalidadeaquicomodispêndiodeforçadetrabalho,enãocomotrabalho

específicodefiação.(266)

Emoutraspalavras,étrabalhoabstratoqueestásendoincorporadonoatodefiar,évalorqueestá

sendo adicionado na forma de tempo de trabalho socialmente necessário incorporado no fio. O

resultado é que “quantidades determinadas de produto, fixadas pela experiência, não representam

agoramaisdoquequantidadesdeterminadasdetrabalho,massasdeterminadasdetempodetrabalho

cristalizado”.Alémdisso,“duranteoprocesso,istoé,duranteatransformaçãodoalgodãoemfio,éde

extrema importância que não seja consumido mais do que o tempo de trabalho socialmente

necessário”(266).

Contudo,nofimdajornadadetrabalho,setudocorrerbem,oscapitalistasseveemmagicamente

depossedemais-valor.O “capitalista ficaperplexo”, escreveMarx comextrema ironia.Ovalordo

produtonãodeveriaser“igualaovalordocapitaladiantado”,umasimplesadiçãodetodososvalores

dados inicialmente(267)?Dadaa leideequivalêncianastrocas,deondevemomais-valor?“Maso

caminho para o inferno” – dizMarx com amesma ironia – “é pavimentado com boas intenções”

(268).

Oscapitalistasprocuramexplicaçõesvirtuosasparaomais-valor.Aprimeiraéaabstinência:elesse

abstêmde consumir e investemodinheiroquepoupam.Enãomerecemuma recompensapor essa

abstinência?Esse é um temado longodebate sobre opapel da ética protestanteno surgimentodo

capitalismo.Asegundaexplicaçãoéqueoscapitalistasdãoempregoaopovo.Seelesnãoinvestissem

seu dinheiro, não haveria empregos. Pobres trabalhadores! Os capitalistas fazem um favor a eles

investindoseudinheiro.Oscapitalistasnãomerecemumretornoporisso?Esseargumentoébastante

difundido e, superficialmente, bastante convincente – não é verdade que o investimento cria

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empregos? Eu costumava discutir isso com minha mãe. Ela dizia: “É claro que precisamos de

capitalistas!”.Eeu:“Porquê?Porquê?”.Earespostaera:“Quemempregariaostrabalhadoressenão

tivéssemos capitalistas?”. Ela não conseguia conceber outros modos de empregar as pessoas.

“Capitalistas são indispensáveis”, dizia ela, “e émuito importante tê-los ao nosso redor e tratá-los

bem,porque,seelesnãoempregassemostrabalhadores,omundoseriaumlugarterrível.Vejaoque

aconteceunosanos1930!”Aterceiraexplicaçãoéqueoscapitalistastrabalhamduro.Elescontrolamo

processodeprodução,administramascoisas,investemseuprópriotempodetrabalhoeassumemum

mundoderiscos.Sim,defato,muitoscapitalistastrabalham,emuitostrabalhamduro;mas,quando

trabalham,pagamasimesmosduasvezesmais,istoé,pagamasimesmosataxaderetornosobreo

capitalque investiramepagama simesmoscomoadministradores.Remunerama simesmoscomo

diretoresexecutivosecomprammaisaçõesdesuaprópriaempresa.

Marxconsideraessasexplicaçõessubterfúgiosetruquesdeilusionismo:

Ele[ocapitalista]nosrezoutodaessaladainha.Masnãodáporelanemumtostão.Esseseoutrossubterfúgiosetruquesbaratosele

deixaaosprofessoresdeeconomiapolítica,quesãopagosparaisso.Jáele,aocontrário,éumhomemprático,quenemsempresabeo

quedizquandoseencontraforadeseunegócio,massabemuitobemoquefazdentrodele.(269)

Oscapitalistaspodemsermodestosecomedidos,eatéexibirumaatitudebenevolenteemrelação

aos trabalhadores (numa tentativadesesperadademanter suamãodeobra em temposdifíceis, por

exemplo).OargumentodeMarxéqueoscapitalistasnãopoderiamsustentarosistemaapelandopara

avirtude,amoralidadeouabenevolência–ocomportamentoindividualdoscapitalistas,quevaria

da benevolência à mais pura cobiça, é irrelevante para aquilo que eles têm de fazer para ser

capitalistas,istoé,buscarmais-valor.Alémdomais,seupapelédefinido,comodizMarx,pelas“leis

coercitivasdaconcorrência”,queimpelemtodososcapitalistasasecomportardemodosimilar,não

importandosesãopessoasboasounotóriosporcoscapitalistas.

Segue-se daí a resposta ao problema da explicação do mais-valor. Paga-se o valor da força de

trabalho, que é fixado, lembramos, pelo valor das mercadorias necessárias para reproduzir o

trabalhadornumdadopadrãodevida.Otrabalhadorvendeaforçadetrabalho,recebeodinheiroe

compra com ele aquela cesta de mercadorias necessárias para viver.Mas o trabalhador precisa de

apenas um certo número de horas para reproduzir o equivalente do valor da força de trabalho.

Portanto, os “custos diários demanutenção”da força de trabalho e sua criaçãodiária de valor são

coisastotalmentediferentes.“Aprimeiradeterminaseuvalordetroca,asegundaconstituiseuvalor

deuso.”Otrabalho,lembramos,estánocircuitoM-D-M,aopassoqueocapitalestánocircuitoD-

M-D+ΔD.

O fato de quemeia jornada de trabalho seja necessária paramanter o trabalhador vivo por 24 horas demodo algumo impede de

trabalharuma jornada inteira.Ovalorda forçade trabalhoe suavalorizaçãonoprocessode trabalho são,portanto,duasgrandezas

distintas.Éessadiferençadevalorqueocapitalistatememvistaquandocompraaforçadetrabalho[...].Masoqueédecisivoéovalor

deuso específicodessamercadoria,o fatode ela ser fontede valor, edemais valordoque aqueleque elamesmapossui.Esse éo

serviço específico que o capitalista espera receber damercadoria e, dessemodo, ele age de acordo com as leis eternas da troca de

mercadorias.Naverdade,ovendedordaforçadetrabalho[otrabalhador],comoovendedordequalqueroutramercadoria,realizaseu

valordetrocaealienaseuvalordeuso.(270)

Há uma distinção crucial entre o que o trabalho recebe e o que o trabalho cria.Omais-valor

resultadadiferençaentreovalorqueotrabalhoincorporanasmercadoriasnumajornadadetrabalho

e o valor que o trabalhador recebe por entregar ao capitalista a força de trabalho como uma

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mercadoria. Em suma, paga-se aos trabalhadores o valor da força de trabalho, e ponto final. O

capitalistaoscolocaparatrabalhardemodoquenãosóreproduzamovalordesuaprópria forçade

trabalho,mastambémproduzamomais-valor.Paraocapitalista,ovalordeusodaforçadetrabalho

estánofatodeelaserumamercadoriaquepodeproduzirvalore,consequentemente,mais-valor.

Há, é claro, inúmeras sutilezas que devemos considerar. No capítulo anterior, por exemplo,

aprendemosqueovalorda forçade trabalhonãoéumagrandeza fixa,masvariadeacordocomas

necessidadesfísicas,ograudecivilizaçãodeumpaís,oestadodalutadeclassesetc.Assim,ovalorda

forçadetrabalhonaSuéciaéradicalmentedistintodovalordaforçadetrabalhonaTailândiaouna

China.Mas,parasimplificaraanálise,Marxsupõeovalordaforçadetrabalhocomoum“dado”fixo;

dessemodo,podemoschegaraovaloraproximadodaforçadetrabalhoemdeterminadasociedadee

emdeterminadaépoca.Issonospermitepresumirqueoscapitalistaspagamovalorplenodessaforça

de trabalho (mesmo que, na prática, empenhem todas as suas forças para pagar menos aos

trabalhadores)eaindaautilizam,independentementedeseuvalor,paracriarmais-valor,explorando

o hiato entre o que o trabalho recebe e o valor que o trabalho cria. Esse hiato pode ser explorado

porqueocapitalistatemocontrolesobre(1)oqueotrabalhadorfaznafábricae(2)oproduto.Mas

esconde-senesseargumentooutravariávelqueMarxtemdeanalisar:porquantotempootrabalhador

écontratadoparatrabalhardiariamente?Seostrabalhadoresproduzemovalorequivalenteàsuaforça

detrabalhoemseishoras,entãoocapitalistasópodeobtermais-valorseoscontratarparatrabalhar

maisdoqueisso.Seajornadadetrabalhoédedezhoras,ocapitalistaganhaquatrohorasdemais-

valor.Éissoquepermiteextrairmais-valorsemviolarasregrasdatroca.

Nesteponto,temosdenosrecordardadualidadedoprojetodeMarx.Oqueelepretendemostrar

aquiéque,mesmonumasociedadeliberalperfeita,emquetodasasregrasdatrocasãoestritamente

obedecidas,oscapitalistastêmummododeextrairmais-valordostrabalhadores.Autopialiberal,no

fimdascontas,revela-senãoutópica,maspotencialmentedistópicaparaostrabalhadores.Marxnão

estádizendoqueadeterminaçãodosaláriofuncionaefetivamentedessemodo,masqueastesesda

economia política liberal clássica (e isso se estende à nossa época neoliberal) são seriamente

deformadas para favorecer o capital. O mundo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de

Benthaméumamáscara,umdisfarceparapermitiraextraçãodemais-valordos trabalhadores sem

violarasleisdatroca.

Tendoestabelecidoesseteoremafundamental–omais-valortemorigemnadiferençaentreoque

o trabalhador recebe por sua força de trabalho comomercadoria e o que o trabalhador produz no

processodetrabalhosobocomandodocapital–,Marxfazimediatamenteumasériedeadvertências.

Observa,porexemplo,que“otrabalhosóimportanamedidaemqueotempogastonaproduçãodo

valordeusoésocialmentenecessário”,eissodependedeaforçadetrabalhofuncionarem“condições

normais”. Isso leva à pergunta: o que é normal? Diz também que a força de trabalho deve ser de

“qualidade normal”,mas deixa em aberto novamente a pergunta sobre o que é normal, indicando

apenas que isso varia de um ramo de atividade para outro e significa “possuir o padrãomédio de

habilidade,eficiênciaeceleridade”adequadoao“ramodeproduçãoemque[a forçade trabalho]é

empregada”.Aforçadetrabalhotambémtem“deseraplicadacomaquantidademédiadeesforçoe

comograudeintensidadesocialmenteusual,eocapitalistacontrolaotrabalhadorparaqueestenão

desperdicenemumsegundodetrabalho”(272).

A introdução casual da questão da “intensidade usual” é significativa aqui e surgemais tarde

comoumaspectocrucialdocontroledotrabalho,pois“ospequenosmomentossãooselementosque

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formamolucro”

[d]

.Emtudoisso,ocapitalista“exerceseusdireitos”,garantidospelaleidastrocas,de

fazerplenousodamercadoriaquefoicompradaepuniraquelesquenãocooperamplenamentecom

seusdesejos.Essesdireitosincluemqueotrabalhonãosejadesperdiçado,queseja“vedadoqualquer

consumo desnecessário de matéria-prima e meios de trabalho, pois material e meios de trabalho

desperdiçados representam o dispêndio desnecessário de certa quantidade de trabalho objetivado,

portanto, trabalho que não conta e não toma parte no produto do processo de formação de valor”

(272).

Oqueseressaltaaquiéumacartadedireitosparaassegurarocontrolecapitalistasobreoprocesso

detrabalho,eémedianteaimplementaçãodessecontrolequesedefinemaisclaramenteaquestãodo

que é socialmentenecessárionoprocessode trabalho.O resultado é, adivinhe, umadualidade! “O

processodeprodução,comounidadedosprocessosdetrabalhoedeformaçãodevalor,éprocessode

produçãodemercadorias;comounidadedosprocessosdetrabalhoedevalorização,eleéprocessode

produção capitalista, forma capitalista da produção de mercadorias” (273). Mais uma vez, Marx

distingueentreaproduçãodemercadoriasemgeraleaformaespecificamentecapitalistaqueutiliza

a produção de mercadorias para ganhar mais-valor, estabelecendo assim um tipo diferente de

unidade.

Finalmente, ele retorna à delicada questão de como explicar o impacto das diferenças de

habilidadenointeriordoprocessodetrabalho.Otrabalhoqualificadoéconsiderado“trabalhosocial

médio não qualificado ou trabalho complexo, dotado de um peso específico mais elevado”. Esse

trabalho“éaexteriorizaçãodeumaforçadetrabalhoqueentramcustosmaisaltosdeformação,cuja

produçãocustamais tempode trabalhoeque,por essa razão, temumvalormais elevadodoquea

forçasimplesdetrabalho”e“cria,nomesmoperíododetempo,valoresproporcionalmentemaisaltos

doqueaquelescriadospelotrabalhoinferior”(274).Nanotaderodapé(274,nota18),elemostraque

muitas dessas distinções de habilidade são ilusórias e arbitrárias, determinadas social e

historicamente.Háumalongahistóriaportrásdisso,àqualMarxfazapenasumamenção,masque

poderia terexploradomelhor.Porexemplo,emminhaobrasobreParisduranteoSegundoImpério,

mostroqueadefiniçãode“habilidade”possuíaumviés altamente sexista.Qualquer trabalhoquea

mulherpudesserealizareravistocomonãoqualificado;quandoasmulherescomeçaramaentrarno

mercado,houveumadesqualificaçãogeraldotrabalho.Issoexplicaemparteahostilidadedealguns

grupos de artesãos contra o emprego demulheres e a insistência de Proudhonde que o lugar das

mulheresnãoeramasoficinas,elasdeviamficaremcasa.Aquestãodoempregodasmulherestornou-

se uma grande fonte de tensão na Primeira Internacional, nos anos 1860. Mas isso não ajuda a

explicarotrabalhoqueexigealtotreinamentoe,por isso,custacaroparaserproduzidoemantido.

Marxdribla essa questãomais uma vez, afirmandoque “em todoprocessode formaçãode valor, o

trabalho superior tem sempre de ser reduzido ao trabalho social médio”, e que isso nos permite

pressupor“queotrabalhadorempregadopelocapitalrealizaotrabalhosocialmédionãoqualificado”

(275). Há, de fato, algumas dificuldades sérias nesse argumento, conhecido como o problema da

redução do trabalho qualificado ao trabalho simples. Mas eu também vou driblar essa questão, apenas

sinalizando-aparaexameposterior.

Aextensanotaderodapésobrearelaçãoentreescravidãoetrabalhoassalariado(272-3,nota17)

mereceumcomentário.Quandoosdoissistemasdetrabalhocolidemepassamacompetir,osefeitos

são particularmente perniciosos. A escravidão se torna mais brutal sob o açoite competitivo das

integrações no capitalismo, exercendo ao mesmo tempo fortes pressões negativas tanto sobre os

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salários quanto sobre as condições de trabalho. Todas as relações humanas que existiam entre o

senhor e o escravo são igualmente destruídas.Obviamente, a escravidão variamuito,mas não em

relação à produçãode valor no sentido emqueMarx a entende.Ela implica um tipo diferente de

processodetrabalho.Nãoháformadetrabalhoabstratonumsistemaescravagistapuro.Foiissoque

impediuAristótelesdeformularumateoriadovalor-trabalho–porqueessateoriasófuncionanocaso

do trabalho livre. Lembremos: o valor, para Marx, não é universal, mas específico do trabalho

assalariadonointeriordomododeproduçãocapitalista.

CAPÍTULOS6E7:CAPITALCONSTANTE,CAPITALVARIÁVELEATAXADOMAIS-VALOR

Nos dois capítulos seguintes, Marx procura esclarecer e consolidar sua teoria do mais-valor, uma

teoriaque,comoEngelsobservaemsua introduçãoaoLivroIId’Ocapital, “cintiloucomoumraio

numcéuclaro”.Comoessescapítulosnãosãocomplicados,passareirapidamenteporeles.

Marxcomeçaestabelecendoumadistinçãoentreoqueelechamadecapitalconstanteedecapital

variável. Capital constante é o trabalho passado, já incorporado nas mercadorias utilizadas como

meiosdeproduçãonumprocessodetrabalhopresente.Ovalordosmeiosdeproduçãojáestádado,

portantoaquestãoéoqueacontececomovalorquandoéincorporadononovoprocessodetrabalho.

Marx sustenta que o valor é simplesmente transferido para a novamercadoria. Esse valor varia de

acordocomaprodutividadedas indústriasqueproduzemmatéria-prima,maquinariaetc.,demodo

quechamaressecapitalde“constante”nãosignificaconsiderá-lofixo.OqueMarxquermostraraqui

équeovalordosmeiosdeproduçãofluiatravésdoprocessodetrabalhoatéserincorporadonanova

mercadoria.Enquantoflui,ovalorpermanececonstante.

Oprocessoefetivode transferênciadevalor é complicadoporumavariedadedecircunstâncias

especiais.Oalgodãotransformadoemcamisatorna-se,nofimdoprocesso,asubstânciadacamisa,o

quenospermitedizerqueovalordo algodão está incorporadona camisa.Mas a energiausadana

produção da camisa não se torna camisa. E, com toda a certeza, você não gostaria que pequenos

pedaços de máquina fossem incorporados na sua camisa. Há uma distinção, portanto, entre as

transferênciasfísicaseacirculaçãodevalores.Osdoisprocessosdecirculaçãosãodistintosporqueo

algodão é um valor de uso físico, material, mas o valor é imaterial e social (embora seja, como

dissemos anteriormente, objetivo). As matérias-primas também contêm certa quantidade de valor

passado, domesmomodo que asmáquinas e outros instrumentos de trabalho.Todos esses valores

passadosacumulados são trazidosparaumnovoprocessodeprodução,na formade trabalhomorto

queo trabalhovivo reanima.Assim,o trabalhadorpreservaos valores já incorporadosnasmatérias-

primas, nos produtos parcialmente manufaturados, nas máquinas etc., e faz isso utilizando-os (no

consumoprodutivo).Marxdágrandeênfaseaofatodequeotrabalhadorfazessefavoraocapitalista

gratuitamente.

Essesvaloresdeusopassadoseseusvaloresincorporadosnãocriamnempodemcriarnadanovo.

Sãosimplesmenteusadoseconservados.Asmáquinas,porexemplo,nãopodemcriarvalor.Esseéum

ponto importante, jáque sedizcomfrequência, “fetichisticamente”,queasmáquinas são fontede

valor.NoesquemadeMarx,porém,elasnãosãonadadisso.Oqueocorreéqueovalordamáquinaé

transferidoparaamercadoriaduranteoprocessode trabalho.Masháumproblemaaí,porqueuma

máquinapodedurarvinteanos,evocêpodeproduzirumaenormequantidadedecamisascomela,de

modoque a questão é: quantodo valor damáquina é incorporado em cada camisa?Omodomais

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simplesdeexplicarofluxodevalordamáquinaparaacamisaédizer,porexemplo,que

1

/

20

dovalor

deumamáquinaqueduravinteanoséincorporadoacadaanonascamisasproduzidasnesseperíodo.

Oprocessodetrabalhopreservatodosessesvalores,incorporando-osnamercadoriaqueévendidano

mercado.Enotequeéapenasporqueovaloréimaterial,porémobjetivo,queelepodesersocialmente

equacionadodessemodo.

Há também o capital variável, o valor dado em troca do aluguel dos trabalhadores.Como esse

capitalcircula,ecomqueconsequências?Otrabalhomortoéressuscitadoeincorporadonovalorda

nova mercadoria por meio do trabalho vivo. Essa é uma ideia muito importante para Marx, e

percebemos imediatamente seu peso político. Os trabalhadores têm o poder de destruir o capital

constante(porexemplo,asmáquinas)simplesmenteserecusandoatrabalharcomelas.Seotrabalhoé

paralisado (e cessa o “consumo produtivo”), a transferência de capital damáquina para o produto

finaléinterrompidaeovalordocapitalconstanteédiminuídooutotalmenteperdido.Otrabalhador

ganha um enorme poder com isso e, dado o grau em que exerce essa função, certamente deveria

reivindicaralgumtipoderemuneraçãoporisso.Afinal,seoscapitalistaspodemjustificarseudireito

ao mais-valor argumentando que são eles que criam empregos para os trabalhadores, por que os

trabalhadores não podem argumentar que merecem o mais-valor pois sem seu esforço o capital

constanteapropriadopeloscapitalistasperderiaseuvalor?

Os trabalhadores também adicionam valor incorporando tempo de trabalho necessário nos

produtos. Mas o valor que eles criam tem dois componentes. Primeiro, os trabalhadores têm de

produzir valor suficiente para cobrir os custos de seu próprio aluguel. Isso, quando convertido em

forma-dinheiro,permite a reproduçãoda forçade trabalhonumdadopadrãodevida,num lugar e

nummomentodeterminados.Ostrabalhadoresgastamseudinheirocomprandoasmercadoriasque

querem,desejamoudequeprecisamparaviver.Dessemodo,ocapitalvariávelcircula literalmente

pelocorpodotrabalhadornoprocessoM-D-M,quereproduzotrabalhadorvivomedianteoconsumo

individualeareproduçãosocial.Osegundocomponentedocapitalvariáveldizrespeitoàprodução

de mais-valor, a produção de valor além e acima daquele que seria necessário para reproduzir os

trabalhadoresnumdadopadrãodevida.Essemais-valorproduzereproduzocapitalista.OqueMarx

propõe,naverdade,éumateoriadaproduçãodemais-valorbaseadanaadiçãodevalor.

Ovalortotaldamercadoriaéconstituídodasomadovalordoscapitaisconstanteevariáveledo

mais-valor(c+v+mv).Paraqueocapitalistaganhemais-valor,apartevariáveltemdesercontrolada.

Afinal, máquinas não fazem greve, tampouco se aborrecem (embora às vezes pareçam

temperamentais). O elemento ativo no processo de trabalho é o capital variável. Ele é o “fogo

conformador”dotrabalhovivoaplicadoàprodução.Maisumavez,háumaimplicaçãopolíticanesse

argumento. Marx está dizendo: “Vejam, caros trabalhadores, são vocês que estão fazendo todo o

trabalho.Sãovocêsquepreservamosvalorespassados,reproduzemasimesmospormeiodotrabalhoe

produzemomais-valorqueocapitalapropriaparaqueoscapitalistaspossamviver,quasesempreno

luxo.Éóbvioqueoscapitalistastêmtodoointeresseemassegurarquevocêsnãoreconheçamopapel

fundamentalqueexercemeosenormespoderesdequedispõem.Elespreferemquevocêsimaginem

quetrabalhamapenasporumsaláriodecente,paraentãovoltarparacasaereproduzirasimesmosea

suas famílias, de preferência com disposição suficiente para retornar ao trabalho no dia seguinte.

VocêsestãonumprocessodecirculaçãoM-D-M,eelesachamquevocêsdevemlimitarsuasambições

devidaaesseestágio”.Marxquerrebateressafetichizaçãodeliberadachamandoaatençãodaclasse

trabalhadoraparasuaverdadeiraposiçãonaproduçãodemais-valorenaacumulaçãodocapital.

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Assim,todooprocessodecirculaçãodocapitalfoidefinido,easdefiniçõesdecapitalconstantee

variávelestãopostas.ComoMarxescrevesumariamente:

Portanto,apartedocapitalqueseconverteemmeiosdeprodução,istoé,emmatérias-primas,matériasauxiliaresemeiosdetrabalho,

não altera sua grandeza de valor no processo de produção. Por essa razão, denomino-a parte constante do capital, ou, mais

sucintamente:capitalconstante.Poroutrolado,apartedocapitalconstituídapelaforçadetrabalhomodificaseuvalornoprocessode

produção.Elanãosóreproduzoequivalentedeseuprópriovalor,comoproduzumexcedente,ummais-valor[...].Denomina-o,por

isso,partevariáveldocapitalou,maissucintamente:capitalvariável.(286)

Isso nos conduz ao capítulo 7, em que Marx emprega as categorias que acabou de definir e

examina as relações entre elas demaneiramais estruturada.Volta a vestir a beca de contabilista e

procura“umaexpressãoexata”dograudeexploraçãodaforçadetrabalho.Masmuitasdasequações

que ele estabelece são importantes. Considere, por exemplo, a razão entre os capitais constante e

variável,c/v.Essarazãoéumamedidadaprodutividadedotrabalho,ovalordosmeiosdeprodução

queumaúnicaunidadedevalordeforçadetrabalhopodetransformar.Quantomaiorarazão,mais

produtivoéotrabalho.Considereagoraarazãoentreomais-valoreocapitalvariável,mv/v.Elamede

a taxa de exploração da força de trabalho.Quantomaior a razão,maior a exploração da força de

trabalho.Por fim,háa taxade lucro,queéa razãoentreomais-valoreovalor totalusado(capital

constantemaiscapitalvariável)oumv/(c+v).Ataxadelucroédiferentedataxadeexploração.Esta

capturaaquantidadedetrabalhoextraqueostrabalhadoresfornecemaocapitalistaemtrocadovalor

queelesrecebemparareproduzirasimesmosnumdadopadrãodevida.Vocêpodeverclaramente

quea taxade lucroé sempremaisbaixaquea taxadeexploração.Sevocê reclamardaalta taxade

exploração,oscapitalistasvãoexibirseuslivrosparaprovarqueataxadelucroébaixa.Esperamque

assimvocêsintapenadeleseseesqueçadaaltataxadeexploração!Quantomaiorocapitalconstante

empregado,menorataxadelucro(mantidosiguaisosdemaisfatores).Umataxadelucrobaixapode

acompanharumaalta taxadeexploração.EsseéumargumentocrucialnoLivroIIId’Ocapital.Os

próprios capitalistas trabalhamcombasena taxade lucro e tendema alocar seu capital onde ela é

maisalta.Oresultadoéumatendência(movidapelaconcorrência)aonivelamentodataxadelucro.

Seanalisoasituaçãoevejoquepossoobterumataxadelucromaisaltaemoutrolugar,aplicomeu

capital ali. Mas isso não me leva necessariamente a tomar boas decisões do ponto de vista da

maximizaçãodataxadeexploração,quedeveseroprincipalinteressedocapitalista.Defato,éaqui

queofetichismodosistemapegaocapitalista.Mesmoquereconhecessemtudoisso,oscapitalistas

nãopoderiam fazer nada.Eles são impelidos pela concorrência a tomar decisões combasemais na

taxadelucrodoquenataxadeexploração.Seprocuraremumbancoparatomardinheiroemprestado,

obancotomarásuasdecisõesbaseadonataxadelucro,enãonataxadeexploração.

Certamente, a relaçãodomais-valornão apenas comapartedo capitaldeonde ele resultadiretamente e cujamudançadevalor ele

representa,mastambémcomocapitaltotaladiantadoédeextremaimportânciaeconômica.Poressarazão,trataremosdetalhadamente

dessarelaçãonoLivroIIIdestaobra.(291)

NoLivro III,Marx procuramostrar que esse é umdosmecanismos que levamo capitalismo a

crisesperiódicasde taxasdecrescentesde lucro.Comonãopossodesenvolver essaquestãomaisdo

queMarxofez,queroapenasenfatizarquevocêdeveprestarmuitaatençãoàdistinçãoentreataxa

delucro,mv/(c+v),eataxadeexploração,mv/v.

ParaMarx,eparaostrabalhadores,oquerealmenteimportaéataxadeexploração.Alémdisso,a

compreensãodadinâmicadocapitalismoexigemaisaanálisedataxadeexploraçãodoquedataxade

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lucro.Essaanálise,portanto,éoobjetodeMarxnessecapítulo.Ataxadeexploração,dizele,podeser

vista de diversas formas. Podemos pensá-la como a relação entre mais-trabalho (apropriado pelo

capitalista)etrabalhonecessário(otrabalhorequeridoparareproduçãodovalordaforçadetrabalho),

como o tempo de trabalho necessário em relação ao tempo demais-trabalho ou, demaneiramais

formal, como a razão entre o valor gastona comprada força de trabalho e o valor total produzido

menosovalorpagopela forçade trabalho.Oproblema,porém,éque todas essas equações, embora

façam sentido, nãopodem ser observadas na prática.Nãohá um sino, por exemplo, que toque em

determinadomomentodajornadadetrabalhoparaavisarostrabalhadoresdequejáreproduziramo

valordev(oujágastaramotemponecessárioparaproduzirv),demodoquesaibamque,apartirdali,

estãoproduzindomais-valor(oucedendoseutempogratuitamente)paraocapitalista.Oprocessode

trabalhoéumprocessocontínuo,queterminacomumamercadoria,cujovalorécompostodec+v+

mv.

Emboraosdiferenteselementosdevalorincorporadosnamercadorianãosejamvisíveisaolhonu,

Marxsustenta(oquevocêtalveznãogostedesaber)queessemododeanáliseproduzumaciênciada

economia política muito superior, precisamente porque vai além do fetichismo do mercado. A

burguesiaproduziuumaciênciaboadopontodevistadomercado,masnãoentendecomoosistema

funcionadopontodevistadoprocessodetrabalhoe,quandooentende,tentaclaramenteescamoteá-

lo.Ela tem todo o interesse emdizer aos trabalhadores que o trabalho é apenas umdos fatores de

produção que eles levam ao mercado – essa é a contribuição deles, e eles recebem por ela uma

remuneraçãojusta,conformeataxadesalárioemvigor.Elanãopodeadmitirqueotrabalhoéofogo

conformador, o elemento fluido e criativo na transformação da natureza que está no centro de

qualquer modo de produção, inclusive do capitalismo. Tampouco podemos imaginar o capitalista

louvandoostrabalhadoresportodovalorqueproduzem,inclusive,éclaro,omais-valorquealimenta

olucrocapitalista.

Marxconcluiessecapítulocomumfantásticoretratodarepresentaçãoburguesatípicadomundo

dotrabalho:“Numabelamanhãdoanode1836,NassauW.Senior,célebreporsuaciênciaeconômica

e seu belo estilo, praticamente oClauren dos economistas ingleses, foi transferido deOxford para

Manchester,afimdeaprendereconomiapolíticanestacidade,emvezdeensiná-laemOxford”(299).

OsindustriaisdeManchesterestavamassustadoscomaagitaçãopolíticaquepretendialimitara

ampliaçãodajornadadetrabalhopara“civilizadas”dezhoras,depoisquearasaepoucoefetivaLei

Fabrilde1833mostrouque,aomenosemprincípio,oaparatoestatalestavapreparadoparalegislaras

horas legais de trabalho.Num panfletominucioso, Senior afirma que, nas primeiras oito horas da

jornadadetrabalho,otrabalhadortemdeproduzirovalorequivalenteatodososmeiosdeprodução

utilizados (o capital constante, nos termos de Marx). Como não lhe passa pela cabeça que o

trabalhadorpossatransferirosvaloresjáincorporadosnasmercadorias,eledefendeaideiaridículade

queotrabalhadortemdereproduzirefetivamenteaquelesvalores.Segundoele,astrêshorasseguintes

sãousadaspara reproduzirovalorda forçade trabalho empregada (o capital variável), e apenasna

últimahoraproduz-seolucrodocapitalista(omais-valor).Dessemodo,umajornadadetrabalhode

doze horas é absolutamente essencial para obter lucro. Se a duração da jornada de trabalho fosse

reduzidadedozeparadezhoras,todoolucrodesapareceriaeaindústriapararia.ArespostadeMarx

émordaz:“eosr.professorchamaissode‘análise’!”(300).A“últimahoradeSenior”éumargumento

econômicogrosseiro,concebidounicamenteparapromoverosinteressesdosindustriais.

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Comicamente,noentanto,SeniorconfirmaaprópriateoriadeMarx.Otempodostrabalhadores

tem valor crucial para os capitalistas, por isso eles precisam tão desesperadamente dessa décima

segunda hora. A luta pelo controle do tempo do trabalhador está na origem do lucro, que é

exatamenteoquedizateoriamarxianadomais-valor.IssoreafirmaarelevânciadadefiniçãodeMarx

do valor como tempo de trabalho socialmente necessário. Então o que é socialmente necessário na

temporalidadedotrabalho?Oscapitalistasnãoapenascontrolamoprocessodetrabalho,oprodutoe

o tempodo trabalhador,mas tambémtentamcontrolar anatureza socialdaprópria temporalidade.

Seniorreconheceessaverdadefundamental,eMarx,usandosuasferramentascríticasesuaposiçãoa

favordostrabalhadores,derrubaseuargumentonummomentorevelador.Assim,acríticadaúltima

hora de Senior adquire uma dupla importância. Por um lado, permite a Marx descrever as

profundezas em que os economistas podem afundar quando tentam criar argumentos apologéticos

para a classe capitalista; por outro, dá a Marx a oportunidade de tomar a verdade fundamental

reveladapelapolêmicadeSenior: adequeocontrole sobreo tempoéumvetor centralda lutano

interiordomododeproduçãocapitalista.OexamedaúltimahoradeSeniorpermite,portanto,uma

transiçãoastuciosaparaocapítuloseguinte,dedicadointeiramenteaotempocapitalista.

[a] “Tem início, então,umaépocade revolução social.Comaalteraçãodabase econômica revoluciona-se todaa enorme superestrutura

commaioroumenorrapidez.Naconsideraçãodetais revolucionamentos,éprecisosempredistinguirentreorevolucionamentomaterial

das condições econômicas de produção, que pode ser constatadopelas ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, numapalavra,

ideológicas,nasquaisoshomenstomamconsciênciadesseconflitoeoenfrentam”(KarlMarx,ZurKritikderPolitischenÖkonomie,MEW,

7.ed.,1971,v.13,p.8[ed.bras.:Contribuiçãoàcríticadaeconomiapolítica,cit.]).(N.T.)

[b]SãoPaulo,Boitempo,2004.(N.E.)

[1]HarryCleaver,ReadingCapitalPolitically[LendoOCapitalpoliticamente](Leeds,AKPress/AntiThesis,2000).

[c]Nooriginal:“alshätt’esLieb’imLeibe”,literalmente:“comosetivesseamornocorpo”(Goethe,Fausto,primeiraparte,quadroVI,cenaI).

Nocontextooriginal,afraseserefereàreaçãodeumaratazanarecém-envenenada.(N.T.)

[d]Nooriginal,“momentsaretheelementsofprofit”,citaçãodoReportoftheInspectorsofFactoriesfor30thApril1860,p.56,emKarlMarx,O

capital,cit.,p.317.(N.T.)

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5.Ajornadadetrabalho

CAPÍTULO8:AJORNADADETRABALHO

Ocapítulo8apresentaumaestruturaeumestilodiferentesdaquelesdoscapítulosprecedentes.Éleve

quanto à teoria, mas carregado de detalhes históricos. E também invoca categorias abstratas que

aindanãoforamapresentadas.IssoaconteceporqueofocodeMarxaquiéahistóriadalutadeclasses

em torno da duração da jornada de trabalho. Já mencionei o complexo entrelaçamento dos

argumentoslógicosehistóricosn’Ocapital,e,namaioriadoscasos,afirmeisermaissegurooptarmos

pelo argumento lógico. Aqui, porém, o que importa é a narrativa histórica – embora não seja

desprovidadeimportânciateórica.Encontramosnessecapítuloumaprofundateorizaçãodanatureza

dotempoedatemporalidadesobocapitalismoe,aomesmotempo,vemoscommaisclarezaporqueo

modode produção capitalista é necessariamente constituído pela luta de classes e semove no seu

interior.

Marxcomeçalembrandoqueháumaenormediferençaentreateoriadovalor-trabalhoeovalor

daforçadetrabalho.Ateoriadovalor-trabalhotratadomodocomootempodetrabalhosocialmente

necessárioéincorporadonasmercadoriaspelotrabalhador.Esseéopadrãodevalorrepresentadopela

mercadoria-dinheiro e pelo dinheiro em geral. O valor da força de trabalho, por outro lado, é

simplesmenteovalordaquelamercadoriavendidanomercadocomoforçadetrabalho.Emboraseja

uma mercadoria como outra qualquer em certos aspectos, ela também tem algumas qualidades

especiais, de caráter histórico emoral.Uma distinção falha entre o valor da força de trabalho e a

teoriadovalor-trabalhopodeacarretargravesequívocos.

“Partimosdopressuposto”,dizMarx,“dequeaforçadetrabalhoécompradaevendidapeloseu

valor”, e de que seu valor, “como o de qualquer outra mercadoria, é determinado pelo tempo de

trabalho necessário à sua produção” (305). Este equivale ao tempo de trabalho consumido para

produzir asmercadorias necessárias à reprodução do trabalhador num dado padrão de vida.Marx

supõequeessevalorsejafixo,apesardesabermos(assimcomoele)queestáemconstantemudança,

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dependendodocustodasmercadorias,dograudecivilizaçãoedascondiçõesda lutadeclassesno

país.

Ostrabalhadoresadicionamvaloràsmercadoriasnoprocessodetrabalhoatécriaroequivalente

exatodovalordesuaprópriaforçadetrabalho.Suponhamos,dizMarx,queissoocorradepoisdeseis

horasdetrabalho.Omais-valorsurgeporqueostrabalhadorestrabalhamalémdaquantidadedehoras

necessáriasparareproduzirovalorequivalentedesuaforçadetrabalho.Quantashorasextraselestêm

detrabalhar?Issodependedaduraçãodajornadadetrabalho.Essaduraçãonãopodesernegociada

no mercado como uma forma de troca de mercadorias, em que o equivalente é trocado pelo

equivalente(comoocorrecomossalários).Nãoéumaquantidadefixa,masfluida.Podevariarde6a

10,12ou14horas,comumlimitede24horas–oqueéimpossível,emvirtudedo“limitefísicoda

forçade trabalho” edo fatodeque “o trabalhadorprecisade tempopara satisfazer asnecessidades

intelectuais e sociais [...]. A variação da jornada de trabalho semove, assim, no interior de limites

físicosesociais”(306).

Marximaginaentãoumadiscussãofictíciaentreumcapitalistaeumtrabalhador.Ocapitalista,

comocompradorda forçade trabalho,dizque temdireitodeusá-lapelo tempoquepuder.Afinal,

como capitalista, ele é “apenas capital personificado” (lembramos queMarx fala de papéis, não de

pessoas). “Sua alma é a alma do capital”, e este “tem um único impulso vital, o impulso de se

autovalorizar,decriarmais-valor”.Ocapital,dizMarx,“étrabalhomorto,que,comoumvampiro”–e

nesse capítulo temos muitos vampiros e lobisomens, a léguas de distância dos modos usuais da

teorizaçãopolítico-econômica–, “vive apenasda sucçãode trabalhovivo, e vive tantomaisquanto

mais trabalho vivo suga”. Se o trabalhador faz pausas ou diminui o ritmo de trabalho, “furta o

capitalista[...].Ocapitalistaseapoia,portanto,naleidatrocademercadorias.Comoqualqueroutro

comprador,elebuscatiraromaiorproveitopossíveldovalordeusodesuamercadoria”(307-8).

Os trabalhadores, ao contrário das máquinas e de outras formas de capital constante, podem

reagir.Sabemquetêmessapropriedadechamadaforçadetrabalhoeédeseuinteresseconservaresse

valorparausofuturo.Ocapitalistanãotemodireitodesugá-ladiariamente,abreviandoassimavida

laborativadostrabalhadores.Dizotrabalhador:

“Isso ferenossocontratoea leida trocademercadorias.Exijo,portanto,uma jornadade trabalhodeduraçãonormal,eaexijo sem

nenhumapeloateucoração,poisemassuntosdedinheirocessaabenevolência.[...]Exijoajornadadetrabalhonormalporque,como

qualqueroutrovendedor,exijoovalordeminhamercadoria.”(308)

Notequetantoostrabalhadoresquantooscapitalistastomamsuasposiçõesdeacordocomasleis

datroca.Aocontráriodoqueesperaríamosdeumpensadorrevolucionário,Marxnãopregaaabolição

dosistemadesalários,masquerqueambos,trabalhadoresecapitalistas,concordememobedeceràlei

fundamentaldatroca:equivalenteporequivalente.Aúnicacoisaqueimportaésaberquantodevalor

deuso(capacidadedeincorporarvalornasmercadorias)otrabalhadorcederáaocapitalista.Marxfaz

isso porque, como enfatizei, um dos objetivos principais d’O capital é desconstruir as proposições

utópicas da economia política liberal clássica em seus próprios termos. “O capitalista exerce seus

direitoscomocompradorquandotentaalongaraomáximoajornadadetrabalho.”

Eo trabalhador faz valer seudireito comovendedorquandoquer limitar a jornadade trabalho aumaduraçãonormaldeterminada.

Tem-se aqui,portanto,umaantinomia,umdireito contraoutrodireito, ambos igualmente apoiadosna leida trocademercadorias.

Entredireitos iguais, quemdecide é a força.E assima regulamentaçãoda jornadade trabalho se apresenta,nahistóriadaprodução

capitalista,comoalutaemtornodoslimitesdajornadadetrabalho–umlutaentreoconjuntodoscapitalistas,i.e.,aclassecapitalista,

eoconjuntodostrabalhadores,i.e.,aclassetrabalhadora.(309)

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Assim,após309páginas,chegamosàideiadalutadeclasses.Finalmente!

Háaquiuma sériedequestõesque exigemesclarecimento.Aaceitação,por ambosos lados,de

umanoçãode“direitos”éumadeclaraçãodefatoquedizrespeitoàhegemoniadasnoçõesburguesas

dedireitos.Marx,porém,mostraimediatamentequeoproblemadaduraçãodajornadadetrabalho

nãopodeserresolvidocomumapeloadireitoseàsleiselegalidadesdatroca(umargumentoparalelo

a seuataquecontrao conceitoproudhonianode justiça eterna).Questõesdesse tipo sópodemser

resolvidaspormeiodalutadeclasses,naquala“força”decideentre“direitosiguais”.Essadescoberta

temramificaçõesnoentendimentodapolíticadocapitalismocontemporâneo.Emtemposrecentes,

houveumaumentoconsiderávelderightstalk[conversassobredireitos]einvestiu-seumaquantidade

enormedeenergiana ideiadequeapromoçãodedireitoshumanos individuaiséumcaminho(se

nãoo caminho) paramoldar um sistema capitalistamais humano.O queMarxmostra aqui é que

muitas questões importantes, postas em termosdedireitos, nãopodem ser resolvidas senão forem

reformuladasemtermosdelutadeclasses.AAnistiaInternacional,porexemplo,lidasuficientemente

bem com direitos políticos e civis, mas tem dificuldade para estender seus interesses à esfera dos

direitoseconômicos,porquenãohácomoresolvê-lossemtomarpartido,ouafavordocapital,oua

favor do trabalho. Percebemos aqui o cerne do argumento de Marx. Não há como julgar

“imparcialmente” entre direitos iguais (ambos com a chancela da lei da troca). A única coisa que

podemos fazer é lutar pelo nosso lado do argumento. Por isso, esse capítulo termina com uma

observaçãobastante cética sobreum“pomposo catálogodos ‘direitoshumanos inalienáveis’” (374),

emoposiçãoaoquepodemosconseguircomalutadeclasses.

“Força”,nessecontexto,nãosignificanecessariamenteforçafísica(emboraestasejanecessáriaem

certos casos). A ênfase desse capítulo recai antes na força política, na capacidade de mobilizar e

construir aliançaspolíticas e instituições (como sindicatos)para influenciaro aparelho estatal, que

temopoderdelegislarajornadadetrabalho“normal”.ParaMarx,háoportunidadesquepodemser

aproveitadasouperdidas,dependendodascontingênciasdasituaçãopolíticaedasrelaçõesdeforça

queestãoemjogo.AtécnicaaquiésimilaràquelaquefoiapresentadacomtantobrilhantismoemO

18debrumário,emqueMarxanalisacomoLuísBonapartechegouaopodernaesteiradafracassada

Revoluçãode1848 emParis.Omaterial apresentadonesse capítulo lançauma luz especial sobre a

trajetória deMarx embusca de uma teoria domodode produção capitalista, articulada comuma

compreensão profunda dos processos de transformação histórica das formações sociais capitalistas

efetivamenteexistentes.Osresultadosdalutadeclassesnãosãodeterminadosdeantemão.

Aintroduçãodalutadeclassesmarcaumarupturaradicalcomosalicercesdateoriaeconômica

clássicaecontemporânea.Elamudaradicalmentealinguagememqueaeconomiaédescritaealtera

seu foco. Em cursos introdutórios de economia, é pouco provável que a duração da jornada de

trabalho seja tratada como uma questão importante. Isso também não era discutido na economia

políticaclássica.Noentanto,ahistóriafoipalcodeumalutamonumentalepermanenteemtornoda

duraçãodajornadadetrabalho,dasemanadetrabalho,doanodetrabalho(fériaspagas)edavidade

trabalho (a idade de aposentadoria), e essa luta perdura até hoje. Isso constitui claramente um

aspectofundamentaldahistóriacapitalistaeumaquestãocentralnomododeproduçãocapitalista.

Dequeadiantamteoriaseconômicasqueignoramtalaspecto?

Em contrapartida, a teoria do valor de Marx conduz diretamente a essa questão central. Isso

aconteceporqueovalor é tempo de trabalho socialmentenecessário, oque significaqueo tempo é

essencialnocapitalismo.Comodizoditado,“tempoédinheiro”!Ocontroledotempo,emparticular

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dotempoalheio,temdesercombatidocoletivamente.Elenãopodesercomercializado.Portanto,a

lutadeclassestemdeocuparumlugarcentralnateoriapolítico-econômica,assimcomoemtodasas

tentativasdecompreenderaevoluçãohistóricaegeográficadocapitalismo.Énessepontod’Ocapital

que podemos começar a apreciar o “valor de uso” da teoria do valor-trabalho e do mais-valor. E,

emborasejaerradoconsideraresseargumentoumaprovaempíricadoaparatoteórico,elecertamente

ilustraautilidadedateoriaparaarealizaçãodeumainvestigaçãoteóricaempiricamenteesclarecida.

ComoMarxnosguiaporessahistóriada lutaemtornodaduraçãoda jornadadetrabalho?Ele

começaobservandoqueo capitalismonãoéoúnico tipode sociedade emqueomais-trabalhoeo

mais-produtosãoextraídosparaobenefíciodeumaclassedominante:“Ondequerqueumaparteda

sociedadedetenhaomonopóliodosmeiosdeprodução,otrabalhador,livreounão,temdeadicionar

ao tempo de trabalho necessário a sua autoconservação um tempo de trabalho excedente a fim de

produzirosmeiosdesubsistênciaparaopossuidordosmeiosdeprodução”(309).

No capitalismo, porém, o mais-trabalho é convertido emmais-valor; assim, a produção de um

mais-produto é um meio de o capitalista obter mais-valor. Isso fornece qualidades particulares à

exploraçãocapitalista,porqueaacumulaçãodevalornaforma-dinheiro,comovimos,éilimitada.

Emtodaformaçãoeconômicadasociedadeondepredominanãoovalordetroca,masovalordeusodoproduto,omais-trabalhoé

limitadoporumcírculomais amplomais amplooumais estreitodenecessidades,masnenhumcarecimentodescomedidodemais-

trabalhosurgedoprópriocaráterdaprodução.(309-10)

Alémdisso,comoessaapropriaçãoocorrenumasociedadecaracterizadapelotrabalhoassalariado,

os trabalhadores não experimentam sua produção demais-valor domesmomodo comoos servos e

escravos experimentam o mais-trabalho (o fetichismo do mercado a esconde). Marx usa como

ilustraçãoacorveianaEuropaCentral.Nessesistema,otrabalhadoreraforçadoacedercertonúmero

de dias de trabalho ao proprietário da terra, de modo que a apropriação do mais-trabalho era

totalmentetransparente.Alibertaçãodosservospeloéditorussode1831criouumasituaçãoemque

o novo sistema de corveia, organizado sob oRèglementOrganique [RegulamentoOrgânico], tornou

fluida e aberta adefiniçãode jornadade trabalho.Osproprietários rurais (osboiardos)diziamque

umajornadadetrabalhonãoémedidaporumdiareal,maspelaquantidadedetrabalhoquedeveria

serrealizada.Comoessaexigênciadetrabalhonãopodiasercumpridaemumdia,eramnecessários

vários dias para completar um dia formal de trabalho, de modo que “os 12 dias de corveia do

RèglementOrganique[...]correspondemaos365diasdoano!”(313).

Encontramosemgermeaquiumaideiamuitoimportante,queaparecediversasvezesn’Ocapital.

Amedidadetempoéflexível,podeseresticadaemanipuladaparafinssociais.Nessecaso,12diasde

trabalhosetransformamem365diasefetivos.Essamanipulaçãosocialdotempoedatemporalidadeé

tambémumtraçofundamentaldocapitalismo.Logoqueaextraçãodetempodetrabalhoexcedente

setornafundamentalparaasrelaçõesdeclasses,aquestãoarespeitodoqueéotempo,quemomede

ecomoa temporalidadedeveserentendidapassaparaa linhade frentedaanálise.Otemponãoé

simplesmentedado;eleésocialmenteconstruídoeestácontinuamentesujeitoareconstruções(basta

pensarnosetorfinanceiroenamudançadopadrãodetempodastomadasdedecisõesqueocorreu

nos últimos anos). No caso do Règlement Organique, o esticamento do tempo era óbvio. Os

trabalhadoressabiammuitobemquantodemais-trabalhocediamaosenhorecomooprolongamento

dotempoestabelecidoporumaclassedominantecontribuiuparaisso.MasoobjetivodasLeisFabris

naGrã-Bretanhano séculoXIX– o interesse principal de grandeparte desse capítulo – eramuito

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diferente: “essas leis refreiam o impulso do capital por uma sucção ilimitada da força de trabalho,

medianteuma limitaçãocompulsóriada jornadade trabalhopeloEstadoe,maisprecisamente,por

umEstadodominadopelocapitalistaepelolandlord”(313).

A formulação de Marx leva a uma questão importante: por que um Estado governado por

capitalistaseproprietáriosfundiáriosaceitaria,oumesmocogitaria,limitaraduraçãodajornadade

trabalho?Emais:seatéaquisóencontramosasfigurasdotrabalhadoredocapitalistan’Ocapital,o

quefazoproprietáriofundiárionessecapítulo?Éevidenteque,paraanalisarumasituaçãohistórica

real,Marxtemdeolharparaaconfiguraçãodeclasseexistenteeconsiderarcomoasaliançasdeclasse

funcionamquando os trabalhadores não têm acesso direto ao poder estatal.OEstado britânico da

primeirametadedoséculoXIXeraessencialmenteorganizadopelarelaçãodepoderentrecapitalistas

e proprietários fundiários, e seria impossível analisar a política desse período sem levar em conta o

papelqueaaristocraciaruraldesempenhavanessarelação.Opoderdomovimentodostrabalhadores

aindaerasecundário.“Abstraindodeummovimentodostrabalhadoresquesetornaacadadiamais

ameaçador”,escreveMarx,

a limitação da jornada de trabalho nas fábricas foi ditada pela mesma necessidade que forçou a aplicação do guano nos campos

ingleses.Amesmarapacidadecegaque,numcaso,exauriuosolo,nooutromatounaraizaforçavitaldanação.Epidemiasperiódicas

são,aqui,tãoeloquentesquantoadiminuiçãodaalturadossoldadosnaAlemanhaenaFrança.(313)

Seotrabalho,assimcomoaterra,éumrecursofundamentalparaacriaçãodariquezanacional,e

se é superexplorado e degradado, a capacidadedemanter a produçãodemais-valor é prejudicada.

MastambémédeinteressedoEstadotertrabalhadoresquepossamintegrarumaforçamilitarefetiva.

Asaúdeeaboaformafísicadaclassetrabalhadoratêm,portanto, interessepolíticoemilitar(como

Marxobservana longanotade rodapé).NaGuerraFranco-Prussianade1870-1871,porexemplo,a

rápida derrota dos franceses pelos alemães foi atribuída, em parte, à boa saúde dos camponeses

alemães,emcomparaçãocomapobreclassecamponesaeoperáriadaFrança.Aimplicaçãopolíticaé

de que é militarmente perigoso permitir a degradação das classes trabalhadoras. Essa questão se

tornouimportantenosEstadosUnidosduranteaSegundaGuerraMundial,emparticularquandose

tratou de mobilizar indivíduos oriundos de populações pobres e, em alguns casos, racialmente

distintas.

AsleisfabrisanalisadasporMarxforamimpostaspeloEstadobritânicoeconcebidas–porrazões

tantoeconômicasquantopolítico-militares–paralimitaraexploraçãodotrabalhovivoeprevenirsua

degradaçãoexcessiva.Masaleiéumacoisa,esuaaplicaçãoéoutrabemdiferente.Issonosremeteà

importante figura dos inspetores de fábrica: quem eram e de onde vinham?Certamente não eram

marxistasradicais!Elesvinhamdaburguesiaprofissional.Eramservidorespúblicoscivis,masfizeram

um belo trabalho de coleta de informações e uma enorme pressão para disciplinar os interesses

industriaissegundoasexigênciasdoEstado.Marxnãoteriaescritoessecapítulosemasinformações

abundantes fornecidas por eles.Mas por que um Estado regulado pelo capital e por proprietários

fundiáriosusaria inspetoresde fábricapara fazer esse trabalho?Énestepontoqueentra “ograude

civilizaçãodeumpaís”, assim comoamoralidadeburguesa e os interessesmilitaresdoEstado.Na

Grã-Bretanha do século XIX, havia fortes correntes do reformismo burguês (por exemplo, Charles

Dickens)quejulgavamquealgumaspráticaslaboraisemvigornãodeveriamexistirnumasociedade

civilizada.Issotrazparaadiscussãoaquelemesmo“elementohistóricoemoral”queafetaovalorda

força de trabalho. Embora o movimento operário estivesse crescendo, ele não teria ido tão longe

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quantofoisemaajudadoreformismoburguês,emparticulardosetorrepresentadopelosinspetores

defábrica.

Os inspetores de fábrica tiveram de enfrentar o problema da definição prática da jornada de

trabalho.Aquehorasostrabalhadoresdeviamcomeçaratrabalhar?Otempodetrabalhocomeçaaser

contadodentroouforadafábrica?Easpausasparaasrefeições?Marxcitaorelatóriodeuminspetor:

Para muitos fabricantes, o lucro extra a ser obtido com o sobretrabalho além do tempo legalmente estabelecido parece ser uma

tentação grande demais para que possam resistir a ela [...]. Esses “pequenos furtos” que o capital realiza do tempo reservado às

refeiçõeseaodescansodotrabalhadortambémsãodesignadospelosinspetoresdefábricacomo“pettypilferingsofminutes”,pequenos

surrupiosdeminutos,“snatchingafewminutes”,furtadelasdealgunsminutos,ou,nalinguagemtécnicadostrabalhadores,“nibbling

andcribblingatmealtimes”[roerepeneiraràsrefeições].(316)

Marxcitaumaideiafundamental:“Ospequenosmomentossãooselementosqueformamolucro”

(317). Para mim, essa formulação é crucial. Os capitalistas tentam aproveitar todo e qualquer

momentodotempodotrabalhadornoprocessodetrabalho.Oscapitalistasnãosócompramaforçade

trabalhodeumtrabalhadorpordozehoras, comotêmdeassegurarquecadamomentodessasdoze

horas seja usado com omáximo de intensidade. E isso, é claro, é a essência de um sistema fabril

disciplinadorefiscalizador.

Se acreditarmos nos filmes antigos, houve uma época em que as telefonistas tinham tempo de

conversarconosco(souvelhoosuficienteparateralembrançadeatéterpaqueradoalgumas).Hojeos

telefonistastêmumametarígidadechamadasquedevematenderporhora.Senãoacumprem,são

demitidos.Eametaaumentaconstantemente.Vocêpodeseconsiderarumprivilegiadoseconseguir

maisdedoisminutosdotempodeles.Liumanotíciasobreumtelefonistaqueficoumeiahoranuma

ligação comumacriança cujamãehaviamorrido e foidemitidopornão cumprir suameta. Isso é

comumemtodososprocessosdetrabalho.Ocapitalistaquerotempo,queraquelesmomentosque

sãooselementosdolucro.Issoéumcoroláriodofatodequeovalorétempodetrabalhosocialmente

necessário. Apesar de toda a sua abstração, a teoria do valor revela algo importante a respeito das

práticas e experiências diárias no chão de fábrica. Ela toca a realidade do comportamento do

capitalista,tocaarealidadedavidadotrabalhador.

No terceiro item desse capítulo, Marx trata longamente dos “ramos da indústria inglesa sem

limites legais à exploração”. Não me deterei nessa parte, porque os relatos terríveis das práticas

laborais na indústria de palitos de fósforo, papéis de parede, linho e panificação (onde o trabalho

noturno e a adulteração dopão eramquestões candentes) são autoevidentes o bastante.Marx cita

também acidentes provocados pelo sobretrabalho, um deles numa ferrovia e, segundo o médico

legista,causadopelasexcessivashorasdetrabalhoimpostasaostrabalhadores.Hátambémofamoso

casodeMaryAnneWalkley,“de20anosdeidade,empregadanumamanufaturademodasdeveras

respeitável”–numasituaçãoemque“essasmoçascumpremumajornadaemmédiade16½horase,

duranteaseason

[a]

,chegamfrequentementeatrabalhar30horasininterruptas,suaevanescente‘força

detrabalho’costumaserreanimadacomaofertaeventualdexerez,vinhodoPortooucafé”–eque

simplesmentemorreuporexcessodetrabalho(327).Morrerporexcessodetrabalhonãoéalgorestrito

ao século XIX.Os japoneses têm um termo técnico para isso: karoshi.Muitas pessoasmorrem por

excessodetrabalho,eavidadeoutrastantaséabreviadaporissoeporcausadecondiçõesinsalubres

detrabalho.Em2009,aUnitedFarmWorkersprocessouaCaliforniaOccupationalSafetyandHealth

Administration(Cal/Osha)pornãoprotegerostrabalhadoresagrícolascontraamorteporexcessode

calor,citandotrêscasosdemortesporexaustãocausadaporessemotivo.

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Marx descreve o que acontece quando a relação de poder entre capital e trabalho torna-se tão

distorcida que a força de trabalho é reduzida a uma condição de degradação e até de morte

prematura.Esseproblemaéexacerbadopelaintroduçãodosistemadeturnosdescritonoquartoitem

desse capítulo. O capital que não é aplicado é capital perdido, e capital, lembre-se, não é uma

máquinaouumasomadedinheiro,masvaloremmovimento.Seumamáquinanãoéusada,écapital

morto,porissohápressãoparausá-laotempotodo.Acontinuidadedoprocessodeproduçãotorna-se

importanteemparticularnasindústriasqueempregamgrandesquantidadesdecapitalfixonaforma

deequipamentos,comoéocasodosaltos-fornosnaindústriametalúrgica.Anecessidadedemanter

empregado o capital fixo leva a uma jornada de trabalho de 24 horas. Como os trabalhadores não

podem trabalhar24horaspordia,o sistemade turnos é introduzido e suplementadopelo trabalho

noturnoepelosistemaderevezamento.Lembre-se:ostrabalhadoresnãoapenasproduzemmais-valor,

mas reanimam o capital constante. O resultado é o revezamento por meio de turnos. Não há,

portanto, uma “jornada natural de trabalho”, apenas várias construções da jornada de trabalho em

relaçãoàdemandacapitalistademanteratodocustoacontinuidadedofluxo.

O item 5 trata da luta por uma jornada de trabalho normal. Por quanto tempo o capital pode

consumiraforçadetrabalhoqueelecomprouporseuvalordiário?Nãohádúvidadequeocapital

extrairádelatantoquantopuder.Paraocapital,

éevidentequeotrabalhador,durantetodaasuavida,nãoésenãoforçadetrabalho,razãopelaqualtodooseutempodisponívelé,

pornaturezaepordireito,tempodetrabalho,quepertence,portanto,àautovalorizaçãodocapital[istoé,aproduçãodemais-valor].

Tempopara a formaçãohumana,paraodesenvolvimento intelectual,parao cumprimentode funções sociais,para relações sociais,

parao livre jogodasforçasvitais físicase intelectuais,mesmootempolivredodomingo[...]épurafutilidade!Masemseuimpulso

cegoedesmedido, suavoracidadede lobisomempormais-trabalho,ocapital transgridenãoapenasos limitesmoraisda jornadade

trabalho,mas também seus limites puramente físicos. Ele usurpa o tempopara o crescimento, o desenvolvimento e amanutenção

saudável do corpo.Rouba o tempo requeridopara o consumode ar puro e de luz solar.Avança sobre o horário das refeições e o

incorpora,semprequepossível,aoprocessodeprodução.(337)

Quandoleioessaspassagens,sempremelembrodeTemposmodernos,deCharlieChaplin.

[Ocapitalreduzo]sonosaudável,necessárioparaarestauração,renovaçãoerevigoramentodaforçavital[...]anãomaisdoqueum

mínimodehorasdetorporabsolutamenteimprescindíveisaoreavivamentodeumorganismocompletamenteexaurido[...].Ocapital

nãoseimportacomaduraçãodevidadaforçadetrabalho.Oquelheinteressaéúnicaeexclusivamenteomáximodeforçadetrabalho

quepodeserpostoemmovimentonumajornadadetrabalho.Eleatingeesseobjetivopormeiodoencurtamentodaduraçãodaforça

detrabalho,comoumagricultorgananciosoqueobtémumamaiorprodutividadedaterraroubandodelasuafertilidade.(338)

O paralelo entre a exaustão do solo e as forças vitais do trabalhador faz eco à formulação do

capítulo1,emqueMarxcitaocomentáriodeWilliamPettydeque“o trabalhoéopaida riqueza

material, [...] e a terra é a mãe” (121). Mas isso também implica que a exploração excessiva dos

recursosnecessáriosparaproduzirtodaariquezaéumperigoparaoprópriocapitalismo.Umahora

ououtra,ocapitalistachegaráàconclusãodequeumajornadanormaldetrabalhopodenãoseruma

máideia.

Assim, se o prolongamento antinatural da força de trabalho, que o capital visa necessariamente por objetivo em seu impulso

desmedidodeautovalorização,encurtaotempodevidadotrabalhadorsingulare,comisso,aduraçãodesuaforçadetrabalho,torna-

senecessáriaumasubstituiçãomaisrápidadostrabalhadoresqueforamdesgastadose,portanto,ainclusãodecustosdedepreciação

maioresnareproduçãodaforçadetrabalho,domesmomodocomoapartedovaloraserdiariamentereproduzidadeumamáquinaé

tantomaior quantomais rapidamente ela se desgasta.Uma jornada de trabalho normal parece, assim, ser do próprio interesse do

capital.(281)

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Oproblema,no entanto, é queos capitalistas em situaçãode concorrência entre si nãopodem

deixardeforçarasuperexploraçãodesuasbasesfundamentaisderecursos:otrabalhoeaterra.Existe

potencial para um conflito entre o interesse de classe dos capitalistas por uma força de trabalho

“sustentável” e seus comportamentos individuais de curto prazo diante da concorrência. Portanto,

algumlimitetemdeserimpostonaconcorrênciaentreeles.

Os proprietários de escravos, dizMarx, podemmatá-los por excesso de trabalho, contanto que

tenhamàmãoumafontedeescravosbaratos.Masissotambémvaleparaomercadodetrabalho:

Basta ler, no lugar demercado de escravos,mercado de trabalho, no lugar deKentucky eVirgínia, Irlanda e distritos agrícolas da

Inglaterra,EscóciaePaísdeGales,e,nolugardaÁfrica,Alemanha!OuvimoscomoosobretrabalhodizimaospadeirosemLondres,e,

apesardisso,omercadodetrabalholondrinoestásempretransbordandodealemãeseoutroscandidatosàmortenaspadarias.(339)

Marx introduz aqui outro conceito importante: o de população excedente. Esta permite aos

capitalistassuperexplorarostrabalhadores,semlevaremcontasuasaúdeoubem-estar.Éclaroquea

população excedente tem de ser acessível ao capital.Marx cita o caso dos comissários da Lei dos

Pobres,que eram instruídos a “enviarparaoNorteo ‘excessodepopulação’dosdistritos agrícolas,

com o argumento de que ‘os fabricantes os absorveriam e consumiriam’” (339-40). Os distritos

agrícolas livraram-se convenientementede suas obrigações comaLeidosPobres, aomesmo tempo

queforneceramtrabalhoexcedenteparaosdistritosmanufatureiros.

Oqueaexperiênciamostraaoscapitalistasé,emgeral,umaconstantesuperpopulação,istoé,umexcessodepopulaçãoemrelaçãoàs

necessidades momentâneas de valorização do capital, embora esse fluxo populacional seja formado de gerações de seres humanos

atrofiados,devidacurta,quesubstituemunsaosoutrosrapidamenteesão,porassimdizer,colhidosantesdeestaremmaduros.No

entanto,aexperiênciamostraaoobservadoratento,poroutrolado,oquãorápidaeprofundamenteaproduçãocapitalista,que,em

escalahistórica,dataquasedeontem,temafetadoaforçadopovoemsuaraizvital,comoadegeneraçãodapopulaçãoindustrialsóé

retardadapelaabsorçãocontínuadeelementosvitaisnaturais-espontâneosdocampoecomomesmoostrabalhadoresrurais,apesar

doarpuroedoprincipleofnaturalselection[princípiodaseleçãonatural]quereinatãosoberanoentreelesesópermiteasobrevivência

dosindivíduosmaisfortes,jácomeçamaperecer.(341-2)

Apopulaçãoexcedentepõeemquestãoointeressedocapitalistapelasaúde,pelobem-estarepela

expectativadevidadaforçadetrabalho.Comosereshumanos,oscapitalistaspodemseimportarcom

isso,mas,sendoforçadosamaximizarolucroemcondiçõesdeconcorrência,elesnãotêmescolha.

“Aprèsmoiledéluge!”[Depoisdemim,odilúvio!]

[b]

éolemadetodocapitalistaetodanaçãocapitalista.Ocapitalnãotem,porisso,a

mínimaconsideraçãopelasaúdeeduraçãodavidadotrabalhador,amenosquesejaforçadopelasociedadeateressaconsideração.Às

queixas sobre a degradação física emental, amorte prematura, a tortura do sobretrabalho, ele responde: deveria essemartírio nos

martirizar,elequeaumentanossogozo(olucro)

[c]

?Demodogeral,noentanto, issotampoucodependedaboaoumávontadedo

capitalista individual.A livre-concorrência impõeaocapitalista individual,comoleiseternas inexoráveis,as leis imanentesdaprodução

capitalista.(342)

Os capitalistas, tendo coração ou não, são forçados pela concorrência a promover as mesmas

práticaslaboraisdeseusconcorrentes.Seosconcorrentesabreviamavidadeseustrabalhadores,você

tambémtemdeabreviá-la.Assimfuncionamasleiscoercitivasdaconcorrência.Estaexpressão–“leis

coercitivasda concorrência”– aparecerádiversasvezesno texto.Eé importantenotarque tais leis

coercitivasdesempenhamumpapeldecisivo,comonocasopresente.

Marxpassaentãoaanalisara“lutadequatrocentosanosentrecapitalistaetrabalhador”quelevou

à“consolidaçãodeumajornadadetrabalhonormal”.Elenotaque“ahistóriadessalutamostraduas

correntesantagônicas”(343).Naépocamedieval,eramuitodifícilqueaspessoastrabalhassemcomo

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assalariadas. Quem não tirava seu sustento da terra tornava-se vagabundo, mendigo ou ladrão de

estrada (como Robin Hood). Por isso, criou-se uma legislação para codificar a relação salarial,

estendera jornadade trabalhoecriminalizarmendigosevagabundos.E,comefeito,estabeleceu-se

umaparatodisciplinar(eMarxretomaessepontonocapítulo24)parasocializarapopulaçãonopapel

detrabalhadoresassalariados.Osvagabundoseramaçoitadoseamontoadosantesdeseremmandados

paraumaboajornadadetrabalho.Enosprimeirosdecretos,quedatamde1349,umaboajornadade

trabalhoeradefinidacomoumdiadetrabalhodedozehoras.Assimfoiimpostaadisciplinalaboralna

Grã-Bretanha.Háqueixas semelhantesporpartedas autoridades coloniaisno séculoXIXedepois;

afirmam,porexemplo,queoproblemanaÍndiaounaÁfricaéquenãoseconseguequeapopulação

indígena trabalhe um dia de trabalho “normal”, que dirá uma semana de trabalho “normal”! Eles

trabalham por um breve período e desaparecem. A noção de temporalidade dos nativos não se

coadunacomaideiadotempodorelógioeatravancaacapacidadedoscapitalistasdeextrairvalor

dos “pequenos momentos” que formam o lucro. A falta de disciplina temporal era uma queixa

frequente entre os administradores coloniais, e esforços tremendos foram feitos para incutir nas

populações locais uma disciplina laboral e um senso adequado de temporalidade. (Ouço queixas

semelhantesdediretoresdeuniversidadesarespeitodosestudantes,etivedeassistiraumcursode

gêniospedagógicosdeHarvardqueinsistiamqueaprimeiracoisaquetínhamosdefazernumcurso

degraduaçãoeraincutirnosalunosumsentidoapropriadodedisciplinatemporal.)

Hojeháumaextensaliteraturasobreaatitudemedieval(emedievaltardia)emrelaçãoaotempo,

bemcomosobreasmudançasna temporalidadeocorridascomoadventodocapitalismo(ou,como

algunspreferem,da“modernidade”).Porexemplo,dificilmentenoslembramosdequeahorafoi,em

grandeparte,umainvençãodoséculoXIII,ominutoeosegundosósetornarammedidascomunsno

séculoXVIIetermoscomo“nanossegundos”surgiramapenasemtemposrecentes.Essasmedidasnão

são determinações naturais, mas sociais, e sua invenção não foi irrelevante para a transição do

feudalismo ao capitalismo. Quando Foucault fala do advento da governamentalidade, ele está se

referindoaomomentoemqueaspessoascomeçaramainteriorizarosentidodadisciplinatemporale

a aprender a viverde acordo comela, quase sempensar.Umavezque interiorizamos esse sentido,

acabamospresos a certa concepçãoda temporalidade e apráticas vinculadas a ela.ParaMarx, essa

temporalidadesurgeemassociaçãocomaemergênciadovalorcomotempodetrabalhosocialmente

necessário. E, para ele, o papel da luta de classes é fundamental, um papel que Foucault tende a

ignorarousubestimar.DizMarx:

Vimos que essas determinaçõesminuciosas, que regulam com uma uniformidade tãomilitar os horários, os limites, as pausas do

trabalhodeacordocomosinodorelógio,nãoforamdemodoalgumprodutodaslucubraçõesparlamentares.Elassedesenvolveram

paulatinamenteapartirdascircunstâncias,como leisnaturaisdomododeproduçãomoderno.Sua formulação, seureconhecimento

oficialesuaproclamaçãoestatalforamoresultadodelongaslutasdeclasses.(354)

Nãosetratamaisdedizerque“entredireitosiguais,aforçadecide”,masdereconhecerocaráter

classistadasformashegemônicasdetemporalidade.Eaquestãoaquinãoselimitaàtemporalidade,

masenvolvetambémaespacialidade.ParaideólogoscomooautoranônimodeAnEssayonTradeand

Commerce [Um ensaio sobre o intercâmbio e o comércio], de 1770, o problema é uma inclinação

“fatal”ao“ócioeàindolência”dapartedapopulaçãotrabalhadora.Marxcitaoensaio:

“Acuranãoestarácompletaatéquenossospobresoperáriosaceitemtrabalharseisdiaspelamesmaquantiaqueelesagorarecebem

porquatrodiasdetrabalho.”Paraessefim,eparaa“extirpaçãodapreguiça,dalicenciosidadeedodevaneioromânticodeliberdade”,

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ditto“paraareduçãodonúmerodepobres,ofomentodoespíritodaindústriaeadiminuiçãodopreçodotrabalhonasmanufaturas”,

nosso fiel Eckart do capital propõe este instrumento de eficácia comprovada: trancafiar esses trabalhadores, que dependem da

beneficência pública, numa palavra, os paupers, numa “casa ideal de trabalho” (an ideal workhouse). “Tal workhouse ideal deve ser

transformada numaCasa doTerror (House of Terror).” Nessa “Casa do Terror”, esse “ideal de uma casa de trabalho” [workhouse],

devem-se trabalhar “catorze horas diárias, inclusive o tempo reservado às refeições, demodo que restam doze horas completas de

trabalho”.(348)

Marxdáentãosuaréplica.Oequivalenteatalcasadoterrorparaospaupers,escreveele,“coma

qualaalmadocapitalaindasonhavaem1770,ergueu-sealgunsanosmaistardecomoumagigante

‘casade trabalho’paraospróprios trabalhadoresdamanufatura.Chamou-se fábrica.E,dessa vez, o

idealempalideceudiantedarealidade”(349).

A organização espacial é parte do aparato disciplinar imposto ao trabalhador. Muito

provavelmente,issoinspirouváriosestudosdeFoucaultsobreosaparatosdisciplinaresespacialmente

organizados(tendoopanópticocomomodelo)emobrascomoHistóriada loucuranaidadeclássica

[d]

,

Vigiarepunir

[e]

eOnascimentodaclínica

[f]

.Éumaironia,pensoeu,quenouniversolinguísticoanglo-

saxãoFoucaultsejavistonormalmentecomoumpensadorradicalmentecontrárioaMarx,apesarde

ser bastante claro que as análisesmarxianas da jornadade trabalho sãoumade suas inspirações.A

meuver,FoucaultfazumexcelentetrabalhodegeneralizaçãoesubstanciaçãodoargumentodeMarx.

Emboraemalgumasdesuasobrastardiaselepartadaquiloqueosmarxistas(e,maisparticularmente,

osmaoistaseoscomunistasdaFrançadeentão)diziam,seusprimeirostextosfundamentais(sobreos

manicômios, as prisões e as clínicas) deveriam ser lidos não como afastamento, mas como

continuaçãodosargumentosdeMarxarespeitodoadventodeumcapitalismodisciplinar,noqualos

trabalhadorestêmdesersocializadosedisciplinadosparaaceitaralógicaespaçotemporaldoprocesso

detrabalhocapitalista.

Oproblemadecomocriaremanteradisciplinadotrabalhadorpermanece,éclaro.Trazconsigoo

problemadoquefazercomaquelesquenãosesujeitamaessadisciplinaepor issosãotachadosde

esquisitos oumesmode transgressores.E este é oponto fundamental tanto emFoucault como em

Marx: eles são chamadosde loucosou antissociais e presos emmanicômiosoupresídios; ou, como

observaMarx,sãoamontoados,humilhadosepunidos.Serumapessoa“normal”,portanto,éaceitar

certo tipodedisciplinaespaçotemporal convenienteaomododeproduçãocapitalista.OqueMarx

mostraéqueissonãoénadanormal;trata-sedeumconstrutosocialquesurgiuduranteesseperíodo

histórico,demodoparticulareporrazõesparticulares.

É claro que os capitalistas tiveram inicialmente de lutar para ampliar a jornada de trabalho e

normalizá-laem,digamos,dezoudozehoras(comoeranaépocadeMarx).O“tempodetrabalho”

nassociedadespré-capitalistasvariavamuito,conformeascircunstâncias,masemmuitoscasosnão

ultrapassavaquatrohoraspordia,eorestododiaeradestinadoàsocializaçãoeaoutrasatividades

que não poderiam ser chamadas de “produtivas”, no sentido de contribuir para a sobrevivência

material.Na forma atualde sociedade,uma jornadade trabalhodequatrohoras seria considerada

ridícula,despropositadaeincivilizada,oquenoslevaàquestãosobreo“graudecivilização”danossa

própria cultura. Presumivelmente, uma alternativa socialista deve ter como objetivo recuperar a

jornadadetrabalhodequatrohoras!

No item 6, Marx relata o que aconteceu nos anos 1830 e 1840, quando os trabalhadores se

revoltaram contra a duração excessiva da jornada de trabalho na Grã-Bretanha industrial. Ele

descreveumadinâmicapolíticaparticularmaisoumenosdaseguinteforma(eaquicontoahistóriaà

minhamaneira para ajudar a esclarecer a descrição deMarx).Nos anos 1820, naGrã-Bretanha, a

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aristocracia rural ainda dominava o poder político. Ela controlava o Parlamento, a Câmara dos

Lordes,amonarquia,asForçasArmadaseoJudiciário.Mashaviatambémumaburguesiaascendente,

parcialmenteformadaporinteressesmercantisefinanceirostradicionais(estabelecidaemLondrese

em cidades portuárias, como Bristol e Liverpool, que ganhavam muito dinheiro com o trabalho

escravo), e agora somada a um interesse industrial cada vez mais poderoso, concentrado nos

fabricantes de algodão da região deManchester. Estes se tornaram poderosos defensores de uma

versão particular da teoria econômica, dominada pelas ideias de liberdade de mercado e livre-

comércio(lembre-sedequefoiemManchesterqueSeniorfoiensinarsuaeconomia).Apesardecada

vezmaisricos,oscapitalistasindustriaistinhamcadavezmenospoderpolítico,emcomparaçãocom

a aristocracia fundiária. Eles tentaram então reformar o sistema parlamentar para ter mais poder

dentrodoaparelhoestatal.Paraisso,tiveramdetravarumasériabatalhacontraaaristocraciarural.E,

ao travar essa batalha, buscaram o apoio damassa da população, em particular das classesmédias

profissionais e de uma classe trabalhadora articulada, educada por seus própriosmeios e artesanal

(distinta damassa de trabalhadores incultos). Em resumo, a burguesia industrial tentou fazer uma

aliança com movimentos da classe trabalhadora artesanal contra a aristocracia fundiária. E, com

agitações emmassano fimdos anos1820, impuseramapromulgaçãodaReformActde1832,que

mudouosistemaderepresentaçãoparlamentaraseufavoreliberalizouocensoeleitoral,concedendo

aospequenosproprietáriosodireitodevotar.

Contudo, ao longo do movimento que levou à reforma, os capitalistas fizeram todo tipo de

promessapolítica às classes trabalhadoras, inclusive a extensãodovoto aos artesãos, a regulaçãoda

jornada de trabalho e a adoção de medidas contra as condições opressivas de trabalho. Os

trabalhadoresnãodemoraramachamaraReformActde“agrande traição”.Aburguesia industrial

conseguiu a maioria das reformas que desejava, enquanto as classes trabalhadoras não obtiveram

quase nada. A primeira Lei Fabril para regular a duração da jornada de trabalho, promulgada em

1833,erafracaeineficaz(emboratenhaservidocomoprecedenteparaalegislaçãoestatalsobreessa

questão).Revoltadoscomatraição,ostrabalhadoresorganizaramummovimentopolítico,chamado

cartismo,paraprotestarcontraascondiçõesdevidadamassadapopulaçãoeasterríveiscondiçõesde

trabalho nas fábricas. Enquanto isso, os aristocratas fundiários assumiram uma posição aindamais

antagônica ao poder crescente da burguesia industrial (essa tensão é onipresente nos romances de

Dickens ou Disraeli). Tenderam a apoiar as demandas dos trabalhadores, em parte movidos pelo

interesse nacional (militar), mas também pela típica política aristocrática da noblesse oblige, e

descreviam-se como a boa gente paternalista que não explorava o povo como faziam os perversos

industriais.Foiempartedaíque saíramos inspetoresde fábrica,promovidospelaaristocracia rural

para contrapor o poder de uma burguesia cruel. Nos anos 1840, a burguesia industrial viu-se

pressionadaporessacoalizãoentreaaristocraciafundiáriaeummovimentooperárioque,comodiz

Marx, tornava-se “a cada dia mais ameaçador” (313). Versões mais incisivas da Lei Fabril foram

propostaseaprovadasem1844,1847e1848.

Há, porém, outra peça nesse quebra-cabeça de relações entre classes e formação de alianças. A

EscoladeManchestereragrandedefensoradolaissez-faireedolivre-comércio.Issolevouaumaluta

contraasCornLaws [LeisdosCereais]

[1]

. Altos impostos sobre a importação de grãos protegiamos

ganhosdaaristocraciafundiáriacontraaconcorrênciaestrangeira.Masoresultadoeraoaltocusto

dopão,umalimentobásicodasclasses trabalhadoras.Aburguesia industrial lançouumacampanha

política,lideradaporCobdeneBrightemManchester,afavordaaboliçãodasCornLaws,dizendoaos

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trabalhadoresqueissobarateariaopão.Houvetentativasdefirmarumaaliançacomostrabalhadores

(nãomuitobem-sucedidas,porqueelesaindaguardavamvivanamemóriaa“grande traição”).Nos

anos1840, reformaseventuaisnasCornLaws reduziramos impostos sobre a importaçãodegrãos, e

issoteveumsério impactosobreariquezadaaristocracia fundiária.Mas,comopãomaisbarato,a

burguesia industrial reduziu os salários. Nos termos de Marx, como parte do valor da força de

trabalhoeradeterminadapelopreçodopão,aimportaçãomaisbaratadetrigodiminuiuopreçodo

pãoe,porconseguinte(mantidosiguaisosdemaisfatores),provocouumaquedanovalordaforçade

trabalho.Osindustriaispodiampagarmenosaseustrabalhadoresporqueestesprecisavamdemenos

dinheiroparacomprarseupãodiário!Nessaalturadosanos1840,omovimentocartistasefortaleceu

easreivindicaçõesdostrabalhadoreseomovimentooperárioseintensificaram,masnãohaviauma

aliança sólida contra eles, porque os interesses industriais (burgueses) e rurais (aristocráticos)

divergiamprofundamente.

Aburguesia industrial tentouminarapráticadasLeisFabrisdosanos1840.Comoosboiardos,

manipulavaanoçãodetemporalidade.Aproveitando-sedofatodequeostrabalhadoresnãotinham

relógio, os empregadores alteravam os relógios da fábrica para ganhar tempo extra de trabalho.

Dividiam o trabalho em pequenas partes e empurravam o trabalhador “de lá para cá em porções

fragmentadasdetempo”(362);dessemodo,otrabalhador,comoumatornopalco,participavadedez

horasdetrabalho,maspermaneciaquinzenafábrica.Via-se“forçadoaengolirsuarefeiçãooranesse

pedaçodetemponãoutilizado,oranoutro”(363).Osempregadoresusavamosistemadeturnospara

confundir o tempo e “denunciaramos inspetores de fábricas comouma espécie deComissários da

Convenção

[g]

, que sacrificavam impiedosamente os desditosos trabalhadores a seus delírios de

reforma domundo” (356). A legislação inicial dirigia-se especialmente ao emprego demulheres e

criançasedesencadeouumdebatesobrea idadeemqueascriançasse tornamadultas.“Deacordo

comaantropologiacapitalista,a idade infantilacabavaaos10,ou,nomáximo,aos11anos” (352).

Isso é suficiente para mostrar o grau de civilização da burguesia industrial! E, como denunciou

veementementeoinspetordefábricaLeonardHorner,nãoadiantavarecorreraostribunais,porqueo

máximo que faziam era eximir os empregadores.No entanto, dizMarx, “os tories” – a aristocracia

rural–,“ávidosporvingança”(355)porcausadaaboliçãodasCornLaws,patrocinaramaLeiFabrilde

1848,quelimitouajornadadetrabalhoadezhoras.

Mas em 1848 aconteceu uma daquelas crises periódicas do capitalismo: uma grande crise de

superacumulação de capital, uma enorme crise de desemprego em grande parte da Europa. Isso

provocoumovimentos revolucionários intensosemParis,Berlim,Vienaeoutros lugares; aomesmo

tempo, a mobilização cartista chegou ao auge na Grã-Bretanha. A burguesia começou a temer o

potencial revolucionário da classe trabalhadora. Em Paris, em junho de 1848, os movimentos

operáriosqueexigiampoderforamviolentamentereprimidoseestabeleceu-seumregimeautoritário

quesetornaria,em1852,oSegundoImpério,instituídoporLuísBonaparte.

NaGrã-Bretanha,osacontecimentosnãoforamtãodramáticos,masomedodeumarevoltaera

disseminado.

[O]fiascodopartidocartista,comseuslíderesencarceradosesuaorganizaçãofragmentada,jáhaviaabaladoaautoconfiançadaclasse

trabalhadora inglesa. Logo depois disso, a Insurreição de Junho em Paris e sua sangrenta repressão provocaram, na Inglaterra do

mesmomodoquenaEuropacontinental,auniãodetodasas fraçõesdasclassesdominantes,proprietários fundiáriosecapitalistas,

chacais das bolsas de valores e varejistas, protecionistas e livre-cambistas, governo e oposição, padres e livres-pensadores, jovens

prostitutas e velhas freiras [francamente, não tenho amenor ideia do que elas tinham a ver com isso], sob a bandeira comum da

salvaçãodapropriedade,dareligião,dafamíliaedasociedade!(357)

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Éespantosocomquefrequência“apropriedade,areligião,afamíliaeasociedade”sãorepetidas

comoummantra ideológicoparaprotegeraordemburguesaestabelecida.Nãoprecisamos irmuito

longe para encontrar um exemplo disso: na história recente dos Estados Unidos, o Partido

Republicano, em particular, não existiria se não fosse sua veemente declaração de lealdade a esses

princípios.NaGrã-Bretanha de 1848, “a classe trabalhadora foi por toda parte execrada, proscrita,

submetidaà loidessuspects [leisobreossuspeitos]

[h]

.Ossenhores fabricantes jánãotinhammaispor

queseconstranger”e“revoltaram-seabertamentenãosócontraaLeidas10Horas,mascontratodaa

legislação que, desde 1833, procurava de algum modo restringir a ‘livre’ exploração da força de

trabalho”.A“rebelião”foi“conduzidapormaisdedoisanoscomumcínicodespudoreumaenergia

terrorista,ambostantomaisbanalizadosquantoocapitalistarebeldenãoarriscavanadaalémdapele

de seus trabalhadores” (357). Tudo isso lembra muito a contrarrevolução neoliberal de Reagan e

Thatcher nos anos 1980. Sob o governo Reagan, grande parte dos avanços obtidos no campo das

relações de trabalho (com oNational Labor Relations Board e a Occupational Safety andHealth

Administration)foirevogadaouficousemaplicação.Tambémnessecaso,ocaráterinstáveldopoder

declasseedasaliançasdeclassenointeriordoaparatoestatalteveumpapelfundamental.

NaGrã-Bretanha,aconteceuumacoisainteressanteapós1850:

Masa esse triunfoaparentementedefinitivodocapital seguiu-se imediatamenteuma reviravolta.Os trabalhadoreshaviam,até então,

oferecidouma resistênciapassiva, aindaque inflexível ediariamente renovada.Elesprotestavam,agora, emameaçadores comícios em

LancashireeYorkshire.AsupostaLeidas10Horasera,paraeles,meraimpostura,umatrapaçaparlamentar,ejamaisteriaexistido!Os

inspetoresdefábricasalertaramurgentementeogovernodequeoantagonismodeclasseschegaraaumgraudetensãoinacreditável.

Uma parte dos próprios fabricantes murmurou: “Devido às decisões contraditórias dos magistrados, reina um estado de coisas

totalmenteanormaleanárquico.UmaleivigoraemYorkshire,outraemLancashire,outraleinumaparóquiadeLancashire,outraem

suavizinhançaimediata.(363)

Naverdade,oqueoscapitalistas fizeramfoiusara leiparadividirasdecisõesaqui,alieacolá,

privando-aassimdequalquereficácia.Mas,diantedeumasériaameaçaderevoltaem1850,

fabricantesetrabalhadoreschegaramaumcompromisso,querecebeuoseloparlamentarnanovaleifabriladicionalde5deagostode

1850.Ajornadadetrabalhopara“jovensemulheres”foiprolongada,nosprimeiroscincodiasdasemana,dedezhorasparadezhoras

emeia,ediminuídaparasetehorasemeiaaossábados.(364)

Certos grupos, como os fabricantes de seda, procuraram isenções, e as crianças foram

simplesmentemassacradas“peladelicadezadeseusdedos”(365).Contudo,em1850,

oprincípiotriunfoucomsuavitórianosgrandesramosdaindústria,queconstituemacriaturamaiscaracterísticadomodernomodo

deprodução. Seu admirável desenvolvimento entre 1853 e 1860, lado a lado como renascimento físico emoral dos trabalhadores

fabris,saltavamesmoaosolhosmaiscegos.Osprópriosfabricantes,aosquaisaslimitaçõeseregulaçõeslegaisdajornadadetrabalho

foramgradualmentearrancadasao longodemeio séculodeguerracivil, apontavamjactanciososparaocontrastecomos setoresda

exploraçãoqueaindaseconservam“livres”.Osfariseusda“economiapolítica”proclamaram,então,acompreensãodanecessidadede

umajornadadetrabalhofixadaporleicomoumanovaconquistacaracterísticadesua“ciência”.Compreende-sefacilmenteque,depois

deosmagnatasdasfábricasteremseresignadoesereconciliadocomoinevitável,aforçaderesistênciadocapitaltenhaseenfraquecido

gradualmente,aomesmotempoqueopoderdeataquedaclassetrabalhadoracresceuapardonúmerodeseusaliadosnascamadas

sociaisnãodiretamenteinteressadas.(367)

Quemeramessesaliados?Marxnãodiz,maséprovávelquefossemasclassesprofissionaiseaala

progressistadaburguesia reformista.Elas eramelementoscruciaisnuma situaçãoemqueas classes

trabalhadorasnãotinhamdireitoaovoto.“Daíoprogressorelativamenterápidoocorridoapartirde

1860”(367).

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Embora Marx não mencione o fato, esse reformismo não estava confinado às condições do

trabalhofabrile,àmedidaquese tornavaclaroquetambémpodiamsebeneficiar,oscapitalistas se

interessaramcadavezmaisemparticipar.IssoébemilustradoporJosephChamberlain,umindustrial

deBirminghamquesetornouprefeitodacidadeefoichamadomuitasvezesdeRadical Joepor seu

empenho para promover melhorias na educação, na infraestrutura (abastecimento de água,

saneamento, iluminaçãoagásetc.)enascondiçõesdemoradiadosmaispobres.Nosanos1860,ao

menos uma parte da burguesia industrial havia aprendido que, para manter o lucro, não era

necessárioterumaposiçãoreacionáriaemrelaçãoaessasquestões.

Essa dinâmica exige um comentário. Os dados mostram que, até cerca de 1850, a taxa de

exploração no sistema industrial britânico era terrível, e as horas de trabalho eram igualmente

terríveis,comconsequênciaspavorosasparaascondiçõesdetrabalhoevida.Masessasuperexploração

diminuiuapós1850,semnenhumefeitonegativosobreolucroouaprodutividade.Issoocorreu,em

parte, porque os capitalistas encontraramumnovomeiode obtermais-valor (que analisaremos em

breve). Mas eles também descobriram que uma força de trabalho saudável e eficiente, com uma

jornada de trabalho menor, podia ser mais produtiva do que uma força de trabalho doente,

ineficiente,dispersa,comcolapsosemortesfrequentes,comoaquelaquefoiutilizadanosanos1830e

1840.Oscapitalistaspuderamsegabardessadescobertaedesuabenevolência,ealgumasvezesapoiar

publicamentecertograuderegulaçãocoletivaeinterferênciadoEstadoparalimitarosefeitosdasleis

coercitivas da concorrência. Mas, se do ponto de vista da classe capitalista limitar a duração da

jornadadetrabalhorevelou-seumaboaideia,oquedizerdalutadostrabalhadoresedeseusaliados

poressemesmofim?Ostrabalhadorespodemmuitobemterfeitoumfavoraocapital.Oscapitalistas

foram empurrados para uma reforma que não era necessariamente contrária a seus interesses de

classe. Em outras palavras, a dinâmica da luta de classes pode tanto ajudar a equilibrar o sistema

quantoderrubá-lo.OqueMarxconstata éque, apóscinquentaanosde luta,quando finalmente se

renderamàideiaderegularajornadadetrabalho,oscapitalistasviramqueelanãoatendiamenosa

seusinteressesdoqueaosinteressesdostrabalhadores.

No item 7, Marx examina o impacto da legislação fabril britânica em outros países,

principalmenteaFrançaeosEstadosUnidos.Começareconhecendoainsuficiênciadeummodode

análisequefocasimplesmenteotrabalhadorindividualeseucontratodetrabalho.

Ahistóriadaregulaçãoda jornadadetrabalhoemalgunsmodosdeprodução,bemcomoa lutaque,emoutros,aindase travapor

essa regulação, provam palpavelmente que, quando o modo de produção capitalista atinge certo grau de amadurecimento, o

trabalhadorisolado,otrabalhadorcomo“livre”vendedordesuaforçadetrabalho,sucumbeaelesempoderderesistência.Acriaçãode

umajornadanormaldetrabalhoé,porisso,oprodutodeumalongaemaisoumenosocultaguerracivilentreasclassescapitalistae

trabalhadora.(370)

Em outros países, essa luta é afetada pela natureza das tradições políticas (o “método

revolucionário francês”, por exemplo, é muito mais dependente das declarações de “direitos

universais”)epelascondiçõesefetivasdetrabalho(nosEstadosUnidos,emcondiçõesdeescravidão,

“otrabalhodepelebrancanãopodeseemanciparondeotrabalhodepelenegraémarcadoaferro”)

(372). Em todos os casos, porém, o trabalhador que aparece como um “agente livre” no mercado

descobrequenãoéumagentelivrenoreinodaprodução,onde“seuparasita[Sauger]nãoodeixará

‘enquantohouverummúsculo,umnervo,umagotadesangueparaexplorar’”(373).Aqui,Marxcita

Engels

[i]

.Aliçãoquesedeveaprenderé:

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Para“seproteger”contraaserpentedesuasaflições

[ j]

,ostrabalhadorestêmdeseunire,comoclasse,forçaraaprovaçãodeumalei,

umabarreirasocialintransponívelqueosimpeçaasimesmosde,pormeiodeumcontratovoluntáriocomocapital,venderasiesuas

famílias à morte e à escravidão. No lugar do pomposo catálogo dos “direitos humanos inalienáveis”, tem-se a modestaMagna

Charta

[k]

deuma jornadade trabalho legalmente limitada,que “afinaldeixa claroquandoacabao tempoqueo trabalhadorvende e

quandocomeçaotempoquelhepertence”.(373-4)

Algumasquestõesvêmàtonacomessaconclusão.Arejeiçãodos“direitosinalienáveisdohomem”

é a reafirmação de que a rights talk não conseguirá dar conta de questões fundamentais, como a

determinação da duração da jornada de trabalho. Nem os tribunais.Mas aqui, pela primeira vez,

Marxargumentaqueostrabalhadores“têmdeseunir”eatuarcomoclasse,eomodocomofizerem

isso teráumenorme impacto sobre as condiçõesde trabalho e adinâmicado capitalismo.A luta é

fundamentalparaaprópriadefiniçãodeliberdade.CitoaquiumapassagemdoLivroIIId’Ocapital:

O reino da liberdade só começa, de fato, onde termina o trabalho determinado pela necessidade e pela conveniência externa; ele se

encontra,porsuapróprianatureza,paraalémdaesferadaproduçãomaterialpropriamentedita.Assimcomooselvagem,tambémo

homemcivilizadotemdelutarcomanaturezaparasatisfazersuasnecessidades,paraconservarereproduzirsuavida,etemdefazê-lo

em todas as formas sociais e sob todos os modos de produção possíveis. Com seu desenvolvimento, expande-se esse reino da

necessidadenatural,porquetambémseexpandemsuasnecessidades;aomesmotempo,porém,expandem-seasforçasprodutivasque

as satisfazem. A liberdade nesse terreno só pode consistir em que o homem socializado, os produtores associados, regulem seu

metabolismocomanatureza,submetam-noaseucontrolecoletivo,emvezdeseremdominadosporelecomoporumapotênciacega,

e que o realizem comomínimodispêndiode energia e sob as condiçõesmais dignas e adequadas à suanaturezahumana.Mas ele

permanece sempre um reino de necessidade. Para além dele começa o desenvolvimento das forças humanas como um fim em si

mesmo,overdadeiroreinoda liberdade,que,noentanto,sópodeflorescersobreabasedaquelereinodanecessidade.Areduçãoda

jornadadetrabalhoéaprecondiçãofundamental.

[ l]

Masvemostambémqueoscapitalistas,movidospelasleiscoercitivasdaconcorrência,costumam

se comportar de maneira prejudicial a suas perspectivas de reprodução como classe. Se os

trabalhadores se organizam como classe e, com isso, forçam os capitalistas a mudar seu

comportamento, o poder coletivo dos trabalhadores ajuda a salvar os capitalistas de sua própria

estupidezemiopia individuais, forçando-osa reconhecer seu interessedeclasse. Isso implicaquea

luta de classes pode atuar como um estabilizador na dinâmica capitalista. Se os trabalhadores são

completamentedesprovidosdepoder,osistematorna-sedeficiente,porqueo“aprèsmoiledéluge!”não

éummodoviáveldeconduzirumaeconomiacapitalistaestável.Issoéumproblemasério,noquediz

respeitotantoàsuperexploraçãodaterraeàpilhagemdosrecursosnaturaisquantoàqualidadeeà

quantidadedeofertadetrabalho.

Masessaéumaconclusãodifícil,porqueMarxésupostamenteumpensadorrevolucionário.Nesse

capítulo,eleiniciasuaexposiçãocomatesedequetantoocapitalquantootrabalhoprocuramseus

direitosnostermosdasleisdatroca.Nessestermos,oúnicoresultadopossívelparaostrabalhadoresé

uma“modestaMagnaCarta”deumsaláriodiáriojustoparaumajornadadetrabalhojusta.Nãohá

aquinenhumamençãoàderrubadadaclassecapitalistaouàaboliçãodasrelaçõesdeclasse.Alutade

classesserveapenasparaequilibrararelaçãoentrecapitaletrabalho.Elapodesermuitofacilmente

interiorizadanadinâmicacapitalistacomoumaforçapositivaquesustentaessemododeprodução.

Se,porumlado, issosignificaquea lutadeclassesé tanto inevitávelcomosocialmentenecessária,

poroutro,lançapoucaluzsobreasperspectivasdeumaderrubadarevolucionáriadocapitalismo.

Como devemos interpretar o elemento político envolvido nisso tudo? Minha inclinação é

concordar com a proposição de que um certo ganho de poder do movimento trabalhador é

socialmentenecessáriopara o funcionamento efetivodo capitalismo e, quanto antes os capitalistas

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reconheceremesesubmeteremaessefato,melhorparaeles.Háevidênciashistóricassuficientespara

apoiaressaconclusão,comooNewDeal,peloqualosEstadosUnidosfortaleceramdeliberadamenteo

movimentosindicalnãoparaderrubarocapitalismo,masparaajudaraestabilizá-lo.Aslutasemtorno

dovalordaforçadetrabalhoedaduraçãodajornadadetrabalhosãofundamentaisparachegaraum

mínimo de estabilidade no capitalismo, tanto por razões sociais e políticas quanto por razões

puramenteeconômicas.Talveznãosejaporacasoqueafasedegovernosocial-democratamaisforte

naEuropanosanos1950e1960ea aliança social entreocapital eo trabalhonosEstadosUnidos

estejam associadas a um robusto crescimento capitalista, e que os Estados escandinavos, com seus

poderosos sistemasde bem-estar social, tenham continuado como concorrentes relativamente bem-

sucedidosnaarenamundial,mesmodurantearecenteviradaneoliberal.Marxtambémdiráque,para

compreender a dinâmica do capitalismo, é necessário introduzir a descoberta da existência

socialmente necessária da luta de classes numa economia política burguesa, que, por si mesma,

silenciaessefato.

Mashátambémumpontoemquealutaemtornodaduraçãodajornadadetrabalhoeoganho

de poder do movimento trabalhador podem ir além da consciência sindical e se transformar em

reivindicaçõesmaisrevolucionárias.Umacoisaédizerqueajornadadetrabalhodeveriaserlimitada

aoitooudezhoras,masoque aconteceria seos trabalhadores exigissemuma reduçãoparaquatro

horas?Nesseponto,oscapitalistasficamassustados.ComoaconteceunaFrança,mesmoumasemana

detrabalhode35horasefériasde6semanasforamvistascomoexcessivasedesencadearamumforte

movimentoporpartedaclassecapitalistaedeseusaliadosafavordeumamaior“flexibilidade”nas

leis trabalhistas. A questão é: em que ponto a reforma se excede e desafia a própria base do

capitalismo?

Seexisteumpontodeequilíbrionalutadeclasses,elenãoéfixo,tampoucoconhecido.Masesse

pontodependedanaturezadasforçasdeclasseedograudeflexibilidadedoscapitalistasemrelação

àsnovasdemandas.Porexemplo,umajornadadetrabalhomuitomaiscurtapermiteaoscapitalistas

forçar a intensidade e a eficiência do trabalho para compensar as horas reduzidas. É virtualmente

impossívelmanterumaltograudeintensidadenumajornadadetrabalhodedozehoras.Umexemplo

interessanteocorreunagrevedosmineiroscontraogovernodeEwardHeath,naGrã-Bretanha,nos

anos1970.Diantedaescassezdeenergia,Heathdecretouumajornadadetrabalhodetrêsdias,mas

dados subsequentes mostraram que a atividade produtiva não diminuiu namesma proporção. Ele

decretoutambémofimdastransmissõesdetelevisãoapósasdezhorasdanoite,eissolhecustouo

mandatonaeleiçãoseguinte(tambémhouveuminteressanteaumentononúmerodenascimentos,

cercadenovemesesdepois).

Nãopossodeixardeconcluirestecapítulocomalgunscomentários sobre sua relevânciaparaas

condiçõesatuais.Estáclaroque,desdeostemposdeMarx,adinâmicadalutadeclasses(inclusiveda

formaçãode aliançasde classe) continuouadesempenharumpapel crucial tantonadeterminação

dosdias,semanas,anosevidadetrabalhoquantonograuderegulaçãodascondiçõesdetrabalhoe

dosníveisdesalários.Mesmoqueemcertoslugareseépocasascondiçõesmaisterríveisdescritaspor

Marx tenham sido lentamente corrigidas, as questões gerais que ele descreve (por exemplo, a

expectativadevidamuitomenordoqueamédiaemmuitasocupações,comomineração,metalurgia

econstrução)nuncaforamresolvidas.Mas,nosúltimostrintaanos,comacontrarrevoluçãoneoliberal

–quedámuitomaisênfaseàdesregulamentação–eaprocuradeforçasdetrabalhomaisvulneráveis

pormeiodaglobalização,houveumarecrudescênciadaquelascondiçõesqueosinspetoresdefábrica

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descreveram com tantos detalhes na época deMarx. Emmeados dos anos 1990, por exemplo, eu

passavao seguinteexercícioaosestudantesque frequentavammeucurso sobreOcapital: pedia que

imaginassemquehaviamrecebidoumacartadeseuspaisemqueestesdiziamqueOcapital,apesarde

ter certa relevância histórica, descreve condições que foram superadas há muito tempo. Eu lhes

apresentava uma quantidade enorme de excertos de relatórios oficiais (do Banco Mundial, por

exemplo) e recortes de jornais respeitáveis (New York Times etc.) que descreviam as condições de

trabalhonasfábricasdaGapnaAméricaCentral,daNikenaIndonésiaenoVietnãedaLeviStrauss

noSudoesteAsiáticoediziamquãochocadahaviaficadoKathieLeeGifford,grandedefensoradas

crianças,aodescobrirqueasroupasqueelahaviacriadoparaoWalmarthaviamsidoproduzidasem

fábricas hondurenhas que empregam crianças pequenas por salário inexistente ou em fábricas

clandestinas em Nova York em que os trabalhadores ficam semanas sem salário. Os estudantes

escreviamensaiosexcelentes,mashesitavamquandoeusugeriaque talvezgostassemdeenviá-losa

seuspais.

Lamentavelmente,ascondiçõespioraram.Emmaiode2008,umainspeçãodaImmigrationand

Customs Enforcement num frigorífico em Iowa descobriu 389 pessoas suspeitas de ser imigrantes

ilegais, entre elas váriosmenores de idade emuitas trabalhando doze horas por dia, seis dias por

semana.Os imigrantes foramtratadoscomocriminosos;muitosdos297condenadosficarampresos

cinco meses ou mais, até que foram deportados; enquanto isso, as autoridades começarammuito

lentamenteatomarmedidascontraofrigoríficoporsuaspráticasdetrabalhochocantes,masapenas

depoisqueoultrajeganhourepercussãopública.Comomeusestudantespuderamconcluir,émuito

fácilincluirdadosatuaissobreaspráticaslaboraisnocapítuloemMarxdiscuteajornadadetrabalho,

sem que se note nenhuma diferença. Foi a isso que nos levaram a contrarrevolução neoliberal e o

enfraquecimento do movimento trabalhista. Infelizmente, a análise de Marx é absolutamente

relevanteparanossacondiçãocontemporânea.

CAPÍTULO9:TAXAEMASSADOMAIS-VALOR

Ocapítulo9éumtípicocapítulodetransição.Elepartedeumconjuntodequestõesparaintroduzir

outro.Marxretomaa formaárida,algébrica,antesdedarumaguinadasubstancial.Oscapitalistas,

sugere ele, estãomuito interessados emmaximizar amassa domais-valor porque seu poder social

individual depende da quantidade total de dinheiro que controlam.Amassa domais-valor é dada

pela taxa de mais-valor multiplicada pelo número de trabalhadores empregados. Se esse número

diminui,amesmamassademais-valorpodeserganhacomumaumentodataxademais-valor.Mas

háumlimiteparaataxademais-valor,dadonãoapenaspelofatodeodiaterapenas24horas,mas

também por todas as barreiras sociais e políticas discutidas anteriormente.Diante desse limite, os

capitalistaspodemaumentaronúmerodetrabalhadoresempregados.Numcertoponto,porém,outro

limite se apresenta: o do total de capital variável disponível e da oferta total de população

trabalhadora.Obviamente,oúltimolimiteseriaapopulaçãototal,masexistemoutrasrazõesparaque

aforçadetrabalhodisponívelsejamuitomenordoqueela.Diantedessesdoislimites,ocapitaltem

delançarmãodeumaestratégiainteiramentediferenteparaaumentaramassadomais-valor.

Como ocorre com frequência em capítulos transitórios,Marx apresenta, de forma sucinta, um

mapaconceitualdocaminhopercorridoedoqueaindarestapercorrer:

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No interior doprocesso de produção, o capital se desenvolveu para assumir o comando sobre o trabalho, isto é, sobre a força de

trabalho em atividade ou, em outras palavras, sobre o próprio trabalhador.O capital personificado, o capitalista, cuida para que o

trabalhadorexecuteseutrabalhoordenadamenteecomograuapropriadodeintensidade[...].[Mas]ocapitaldesenvolveu-se,ademais,

numa relação coercitiva, que obriga a classe trabalhadora a executar mais trabalho do que o exigido pelo círculo estreito de suas

própriasnecessidadesvitais.(381)

Ocapitalpersonificado,emsuasedepormais-trabalhoesuabuscaincessantedemais-valor,

excede em energia, desmedida e eficiência todos os sistemas de produção anteriores baseados no trabalho direto compulsório [...].

Inicialmente,[porém],ocapitalsubordinaotrabalhoconformeascondiçõestécnicasemqueelehistoricamenteseencontra.Portanto,

elenãoalteraimediatamenteomododeprodução,razãopelaqualaproduçãodemais-valor,naformacomoaconsideramosatéagora,

mostrou-seindependentedequalquermudançanomododeprodução.(381-2)

Masissoestáprestesamudartantológicacomohistoricamente.Quando“observamosoprocesso

deproduçãodopontodevistadoprocessodevalorização”,percebemosqueos“meiosdeprodução

converteram-seimediatamenteemmeiosparaasucçãodetrabalhoalheio.Nãoémaisotrabalhador

queempregaosmeiosdeprodução,masosmeiosdeproduçãoqueempregamo trabalhador”.Essa

mudançalógicaehistóricaocupaocernedeumatransformaçãoradicalnaformacomoomodode

produção capitalista temde ser entendido. “Emvez de serem consumidos por ele como elementos

materiaisdesuaatividadeprodutiva”,sãoosmeiosdeproduçãoque“oconsomemcomofermentode

seupróprioprocessovital,eoprocessovitaldocapitalnãoémaisdoqueseumovimentocomovalor

quevalorizaasimesmo”(382).Issoseseguedosimplesfatodequeovalordosmeiosdeprodução(o

trabalhomorto congeladonas fábricas,nos fusos enasmáquinas) sópode serpreservado (paranão

dizeraumentadonaformademais-valor)pelaabsorçãodaofertadetrabalhovivosemprerenovada.

Parao“cérebroburguês”,aconclusãoéqueostrabalhadoresexistemapenasparavalorizarocapital

pormeiodaaplicaçãodesuaforçadetrabalho!

Ocapitalismoabominaqualquertipodelimite,precisamenteporqueaacumulaçãodedinheiroé,

emprincípio, ilimitada.Porisso,ocapitalismoseesforçaconstantementeparatranscendertodosos

limites (ambientais, sociais, políticos e geográficos) e transformá-los em barreiras que possam ser

transpostasoucontornadas.Issodáumcaráterdefinidoeespecialaomododeproduçãocapitalistae

impõeconsequênciashistóricasegeográficasaoseudesenvolvimento.Vamosanalisaragoracomoos

limites encontrados neste capítulo – da força de trabalho disponível e da taxa de exploração – são

transformadospelocapitalnumabarreiraquepodeserultrapassada.

[a]ALondonseasoneraoperíododoanoemqueaelitebritânica,compostamajoritariamentedearistocratasrurais,instalava-senacapitala

fimdetravarcontatossociaiseengajar-senapolítica.A season londrinacoincidiacomo iníciodasatividadesdoParlamentoeestendia-se

porcercadecincomeses,começandonofimdedezembroeencerrando-senofimdejunho.(N.T.)

[b]Referência à frase deMadamedePompadour, “Après nous le déluge !” (Depois de nós, o dilúvio!), em resposta à advertência de um

membrodacortearespeitodosefeitosnocivosdasextravagânciasdarealezasobreadívidapúblicafrancesa.(N.T.)

[c]ReferênciadeMarxaumversodopoema“Suleika”,daobraWestöstlicherDivan,deJ.W.deGoethe.(N.T.)

[d]SãoPaulo,Perspectiva,1972.(N.E.)

[e]36.ed.,Petrópolis,Vozes,2007.(N.E.)

[f]7.ed.,RiodeJaneiro,ForenseUniversitária,2011.(N.E.)

[1]NaGrã-Bretanha,cornreferia-sesobretudoaotrigo,enãoaomilho,comonaAmérica.

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[g]Assimeramchamados,duranteaRevoluçãoFrancesa,osrepresentantesdaConvençãoNacionalque,investidosdepoderesespeciais,

atuavamnosdepartamentosenasfileirasmilitares.(N.T.)

[h] Lei sobremedidas de segurança geral, aprovada peloCorps Législatif em 19 de fevereiro de 1858. A lei dava ao imperador e a seu

governoodireito irrestritodedeterqualquerpessoasuspeitadeposturahostilaoSegundoImpérioedemantê-lanaprisãoportempo

indeterminado,exilá-lanaArgéliaouexpulsá-ladoterritóriofrancês.(N.T.)

[i] Friedrich Engels, “Die englische Zehnstundenbill” [A lei inglesa da jornada de trabalho de dez horas], emNeue Rheinische Zeitung.

Politsch-ÖkonomischeRevue[NovaGazetaRenana.Revistadeeconomiapolítica],cadernodeabril,1850,p.5.(N.T.)

[j]Referênciaa“Heinrich”,poemadeHeinrichHeine:“Du,meinliebestreuesDeutschland,/DuwirstauchdenManngebären,/DerdieSchlange

meinerQualen/NiederschmettertmitderStreitaxt”(Tu,Alemanhaamadaefiel/Darásàluztambémaohomem/Queabateráamachadadas/A

serpentedeminhasaflições).(N.T.)

[k]MagnaChartaLibertatum:documentoimpostoaoreiinglêsJoãoI(chamado“JoãosemTerra”)pelosgrandessenhoresfeudais,barões

epríncipeseclesiásticos,apoiadospelanobrezaruralepelasmunicipalidades.ACharta,assinadaem15dejunhode1215,limitavaopoder

do rei, principalmente em favor dos senhores feudais, e fazia várias concessões à nobreza rural; àmassa da população, os camponeses

servos, a Charta não concedia qualquer direito. Marx refere-se aqui à lei para a limitação da jornada de trabalho, pela qual a classe

trabalhadorainglesatevedetravarumalongaepersistenteluta.(N.T.)

[l]MEW,DasKapital(Berlim,Dietz,1983),v.25,p.828.(N.T.)

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6.Omais-valorrelativo

CAPÍTULO10:OCONCEITODEMAIS-VALORRELATIVO

Ocapítulo10propõeumargumentosimples,compoucosdetalhescomplicados.Aindaassim,éum

capítuloquepodemuitofacilmentesermalcompreendido.Oargumentoinicialéoseguinte:ovalor

deumamercadoriaédeterminadopelotempodetrabalhosocialmentenecessárioincorporadonela,e

esse valor diminui à medida que a produtividade aumenta. Em suma “quanto maior é a força

produtivadotrabalho,menoréotempodetrabalhorequeridoparaaproduçãodeumartigo,menora

massadetrabalhonelecristalizadaemenorseuvalor”(118).

Ovalordaforçadetrabalhocomomercadoriaéafetadoportodotipodecircunstânciahistórica,

cultural e social.Mas ao valor dasmercadorias também está ligado o fato de que os trabalhadores

precisamreproduzirasimesmoseaseusdependentesnumdadopadrãodevida.“Ovalordaforçade

trabalho se resume no valor de uma quantidade determinada de meios de subsistência e varia,

portanto,comovalordessesmeiosdesubsistência,istoé,deacordocomamagnitudedotempode

trabalhorequeridoparaasuaprodução”(247).Assim,osdemaisfatorespermanecendoiguais,ovalor

da força de trabalho diminuirá à medida que aumenta a produtividade naquelas indústrias que

produzemosbensqueostrabalhadoresnecessitamparareproduzirasimesmos.

Para reduzir o valor da força de trabalho, o aumento da força produtiva tem de afetar os ramos da indústria cujos produtos

determinamovalordaforçadetrabalho,portanto,aquelesramosqueoupertencemaocírculodosmeiosdesubsistênciahabituaisou

podemsubstituí-losporoutrosmeios.(390)

Issopermiteaoscapitalistasgastarmenoscomocapitalvariável,porqueostrabalhadoresprecisam

demenosdinheiroparaatenderasuasnecessidades(taiscomofixadasporumdadopadrãodevida).

Seoscapitalistaspodemgastarmenoscomocapitalvariável,arazãom/v–ouataxadeexploração–

aumenta,mesmoqueaduraçãodajornadadetrabalhosejafixa.Dessemodo,ocapitalistaconsegue

umamassamaiordemais-valor,aindaqueaduraçãodajornadadetrabalhosejafixa.

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Esse processo não infringe as leis da troca. É claro que os capitalistas procurarão comprar o

máximodeforçadetrabalhopossívelabaixodeseuvalor,eissoaumentaráamassademais-valorque

recebem.“Apesardoimportantepapelquedesempenhanomovimentorealdosalário,essemétodoé

aqui excluído pelo pressuposto de que as mercadorias, portanto também a força de trabalho, são

compradasevendidasporseuvalorintegral”(389).Aaceitaçãodalógicadomercadoedastesesda

economiapolíticaclássicatemprecedênciasobreoestudodaspráticasefetivas,demonstrandomais

uma vez o compromisso de Marx com a desconstrução das teses utópicas da economia política

clássicaemseusprópriostermos.Outroresultadopeculiarsegue-sedomododeraciocinardeMarx.

“Emcontrapartida,nos ramosdeproduçãoquenão fornecemmeiosde subsistêncianemmeiosde

produção para sua fabricação, a força produtiva aumentada deixa intocado o valor da força de

trabalho” (390). Portanto, a redução do valor de artigos de luxo em consequência do aumento de

produtividadenãointerferenomais-valorrelativo.Oqueimportaéapenasadiminuiçãodovalordos

produtosquecompõemosalário.

Isso leva a uma charada. Por que os capitalistas aumentariam a produtividade de sua própria

produção de artigos de primeira necessidade se todos os capitalistas se beneficiassem com esse

aumento?Issoéoquechamamoshojede“problemadeparasitismo”[free-riderproblem].Ocapitalista

individual,queinovaereduzopreçodeumartigodeprimeiranecessidade,contribuindoassimpara

areduçãodovalordetodaaforçadetrabalho,nãoconseguecomissonenhumbenefícioparticularou

singular.Obenefícioatingetodaaclassecapitalista.Qualéoincentivoindividualparafazê-lo?

O mais-valor poderia ser produzido por meio de uma estratégia de classe? Embora Marx não

mencioneissonessecapítulo,elerelataumcasoemquetalfatoaconteceu–aaboliçãodasCornLaws

comoresultadodaarticulaçãodos industriaisdeManchester.As importaçõesmaisbaratasdegrãos

provocaramumaquedanopreçodopão,oque,porsuavez,permitiuareduçãodossalários.Essetipo

de estratégia de classe teve grande importância histórica. O mesmo raciocínio é usado hoje nos

Estados Unidos em relação às supostas vantagens do livre-comércio. O fenômeno Walmart e as

importaçõesbaratasdaChinasãobem-vindosporqueprodutosbaratosreduzemocustodevidadas

classes trabalhadoras. O fato de que os salários dessas classes não tenham aumentado muito nos

últimos trinta anos torna-se mais palatável, porque a quantidade física de bens que elas podem

compraraumentou (desdequecompremnoWalmart).Assimcomoaburguesia industrialbritânica

do séculoXIX queria reduzir o valor da força de trabalho permitindo importações baratas, a atual

relutância em frear as importações baratas nos Estados Unidos deriva da necessidade de manter

estável o valor da força de trabalho. Tarifas protecionistas, embora pudessem ajudar a manter o

empregonosEstadosUnidos,provocariamumaumentodepreçose,porconseguinte,desalários.

Há muitos registros na história de estratégias do Estado para intervir no valor da força de

trabalho.Porexemplo,porqueoEstadodeNovaYorknãotaxaavendadealimentos?Porqueelaé

vista como fundamental para determinar o valor da força de trabalho. Vez por outra, a burguesia

industrial apoiou controles de renda, programas habitacionais e subsídios de produtos agrícolas,

porqueissotambémmantinhabaixoovalordaforçadetrabalho.Assim,podemosidentificarmuitas

situaçõesemquehouve,eaindahá,estratégiasdeclasse,implementadaspormeiodoaparatoestatal,

parareduzirovalordaforçadetrabalho.Namedidaemqueconquistaramummínimodeacessoao

poder estatal, as classes trabalhadoras puderam usá-lo para aumentar seu ganho (pela provisão do

Estadodediversosbense serviços)eovalorde sua forçade trabalho (naverdade,exigindopara si

mesmasumapartedomais-valorrelativopotencial).

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Marxnãofazmençãoaessasquestõesnessecapítulo,muitoprovavelmentepelamesmarazãopor

queignorouofatodequeoscapitalistasprocuramconstantementecomprarforçadetrabalhoabaixo

deseuvalor.Estratégiasconscientesdeclasseeintervençõesestataisnãosãoadmissíveisnomodelo

teórico construído por Marx. Não precisamos necessariamente segui-lo à risca nesse ponto, em

particularporqueestamosinteressadosemacontecimentosreais.Mas,aodesmontarospressupostos

restritivos do utopismo do livre-comércio, ele faz algomuito profundo:mostra como e por que os

capitalistas individuaispoderiamser impelidosa inovar(semnenhumaintervençãodeclasseoudo

Estado),mesmoseoretornoporsuainovaçãofossedistribuídoentretodaaclassecapitalista.

“Se, por exemplo, um capitalista individual barateia camisas por meio do aumento da força

produtivadotrabalho,issodemodoalgumimplicaqueeletenhaemvistareduzirovalordaforçade

trabalho e, com isso, o tempo de trabalho necessário pro tanto.” O capitalista individual, mesmo

contribuindo “para aumentar a taxa geral domais-valor”, não age com base numa consciência de

classegeneralizada.Marxadverte:“éprecisoqueastendênciasgeraisenecessáriasdocapitalsejam

diferenciadasdesuasformasdemanifestação”.Essaformulaçãopeculiarésinaldequealgoespecial

estáacontecendo(hácheirodefetichismonoar).Oquê?

Nãonosocuparemos,porora,domodocomoas leis imanentesdaproduçãocapitalista semanifestamnomovimentoexternodos

capitais,impondo-secomoleiscompulsóriasdaconcorrênciaeapresentando-seàmentedocapitalistaindividualcomoaforçamotriz

desuasações.Porém,esclareçamosdeantemão:aanálisecientíficadaconcorrênciasóépossívelquandoseapreendeanaturezainterna

docapital,domesmomodoqueomovimentoaparentedoscorposcelestessóécompreensívelparaquemconheceseumovimento

real,apesardesensorialmenteimperceptível.(390-1)

Temosdepensarmuito,críticaecuidadosamente,sobreoqueeledizaqui.Sugeriquedeveríamos

ficaratentosaomomentoemqueasleiscoercitivasdaconcorrênciaaparecessemnaargumentação.

Esteé,semdúvida,omomentoaquemereferi.Marx,porém,parecequererdiminuiraimportância

dessas leis, mesmo reconhecendo que não pode prescindir delas. Em relação a esse ponto, posso

oferecerapenasminhaprópriainterpretação,tendoplenaconsciênciadequemuitosdiscordarãode

mim.PensoqueháumparaleloentreomodocomoMarxanalisaopapeldasflutuaçõesdaofertaeda

demandaeopapeldaconcorrência.Nocasodaofertaedademanda,Marxadmitequetaiscondições

têmumpapelvitalnageraçãodevariaçõesdepreçodeumamercadoriaemparticular,mas,quandoa

ofertaeademandaestãoemequilíbrio,dizele,elasdeixamdeexplicartudo.Aexplicaçãotemdevir

dealgo totalmentedistinto,a saber,o tempode trabalhosocialmentenecessário,ouvalor. Issonão

significa que a oferta e a demanda sejam irrelevantes – sem elas não poderia haver equilíbrio de

preços.Asrelaçõesdeofertaedemandasãoumaspectonecessáriodomododeproduçãocapitalista,

mas não suficiente. A concorrência entre capitalistas individuais no interior de dada linha de

produçãodemercadoriasdesempenhaumpapel similar.Nesse exemplo,no entanto, ela redefine a

posiçãodeequilíbrio–opreçomédioouvalordamercadoria–pormeiodemudançasnonívelgeral

da produtividade naquela linha de produção de mercadorias. A concorrência, tal como Marx a

descreveaqui,éumaespéciedeepifenômenoqueocorrenasuperfíciedasociedade,masque,comoa

própria troca, tem algumas consequências mais profundas, que não podem ser entendidas com

referênciaàconcorrência.EstaéaposiçãoqueeleassumenosGrundrisse:acompetiçãonãoestabelece

asleisdemovimentodocapitalismo,

mas é sua executora. Por essa razão, a concorrência ilimitada não é o pressuposto para a verdade das leis econômicas, mas a

consequência – a forma de manifestação em que sua necessidade se realiza. [...] Por isso, a concorrência não explica essas leis; ao

contrário,astornavisíveis,masnãoasproduz.

[a]

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Vejamoscomo talprocesso sedánesse exemplo. “Paraque se compreendaaproduçãodomais-

valorrelativocombaseapenasnosresultadosjáobtidos,devemosprocederàsseguintesobservações”

(391). Lembramos que o valor de uma mercadoria é fixado pelo “tempo de trabalho socialmente

necessário[...]requeridoparaproduzirumvalordeusoqualquersobascondiçõesnormaisparauma

dada sociedade e com o grau social médio de destreza e intensidade do trabalho” (117). O que

acontece se um capitalista individual parte dessa média social e cria um sistema produtivo

supereficiente,que,emvezdeproduzirdezartigosemumahora,produzvinte?Seumcapitalistafaz

isso, enquantoosoutroscontinuamaproduzirdezartigosporhora, entãoelepodevenderporum

preço social médio de dez, embora produzindo e vendendo vinte. “O valor individual dessa

mercadoriaseencontra,agora,abaixodeseuvalorsocial,istoé,elacustamenostempodetrabalhodo

que a grande quantidade do mesmo artigo produzida em condições sociais médias” (391). O

capitalistainovadorganhaumlucroextra,ummais-valorextra,aovenderporumpreçosocialmédio,

emborasuaprodutividadesejamuitomaiordoqueamédiasocial.Essadiferençaécrucialegerauma

formademais-valorrelativoparaocapitalistaindividual.Nessecaso,nãoimportaseocapitalistaestá

produzindobensdeprimeiranecessidadeouartigosdeluxo.Mascomoessecapitalistavendeosdez

artigosextrasqueproduziuemumahorapelopreçosocialmédioantigo?Aquientramemcenaasleis

daofertaedademanda.Earespostaé,provavelmente,queessesartigosnãopodemservendidospelo

preçoantigo.Logo,ospreçostêmdecair,oquefazcomqueosoutroscapitalistastenhamumlucro

menor.Issoprovocaumaredistribuiçãodomais-valordaquelesqueempregamtecnologiasinferiores

paraaquelesqueempregamtecnologiassuperiores.Osquetrabalhamcomtecnologiasinferiorestêm

umestímulocompetitivomaiorparaadotaranovatecnologia.Umavezquetodososcapitalistasque

atuamnessalinhadeproduçãoadotemanovatecnologiaeproduzamvinteartigosporhora,ocorre

umaquedadotempodetrabalhosocialmentenecessárioincorporadonosartigos.

Essa forma de mais-valor relativo apropriada pelo capitalista individual só dura enquanto ele

possuirumatecnologiasuperioràdosoutroscapitalistas.Elaéefêmera.

Essemais-valoradicionaldesapareceassimqueonovomododeproduçãoseuniversalizaeapaga-seadiferençaentreovalorindividual

dasmercadoriasbarateadas e seuvalor social.Amesma leidadeterminaçãodovalorpelo tempode trabalho,que se apresentou ao

capitalista, juntamentecomonovométododeprodução, soba formadequeele éobrigadoavender suamercadoriaabaixode seu

valorsocial,forçaseusconcorrentes,comoleicompulsóriadaconcorrência,àaplicaçãodonovomododeprodução.(393)

Assim, a primeira forma de mais-valor relativo considerada nesse capítulo é um fenômeno de

classe.Eleéapropriadoportodaaclassecapitalistaeduraenquantopermitiremascondiçõesdaluta

de classes em tornodo valor da força de trabalho.A segunda forma é individual e efêmera.É essa

segundaformaqueconfereaquelavantagemindividualqueoscapitalistassãoobrigadosaprocurar

pelasleiscoercitivasdaconcorrência.Oresultadoéquetodososcapitalistas,umahoraououtra,são

forçados a adotar amesma tecnologia. As duas formas demais-valor relativo também têm relação

entresi,umavezqueinovaçõesefêmerasnosetordeprodutosdeprimeiranecessidadeforçarãopara

baixo o valor da força de trabalho. “Vê-se, assim, o impulso imanente e a tendência constante do

capital a aumentar a força produtiva do trabalho para baratear amercadoria e, com ela, o próprio

trabalhador”(394).

Masumcapitalistacomedidosabequesemprepodeobteressa segundaformaefêmerademais-

valorrelativo,contantoquetenhaumatecnologiasuperior.Issolevaaalgunsresultadosinteressantes.

Suponhamosqueanovatecnologiasejaumanovamáquina.Marxafirmouqueasmáquinas,porque

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sãotrabalhomorto,nãoproduzemvalor.Masoqueacontecesevocêconsegueummais-valorrelativo

extraporcausadeumanovamáquina?Emboranãosejamumafontedevalor,máquinaspodemser

uma fonte demais-valor relativopara o capitalista individual!Assimque elas se generalizam,pode

parecerque sãouma fontedemais-valor relativopara a classe capitalista,por causadadiminuição

provocadanovalordaforçadetrabalho.Issogeraumresultadopeculiar:asmáquinasnãopodemser

umafontedevalor,maspodemserumafontedemais-valor.

Domodo comoMarx expõe o argumento, vemos que há um tremendo incentivo para que os

capitalistasindividuaisadoteminovaçõestecnológicas.Saionafrente,tenhoumsistemadeprodução

superior,maiseficientedoqueoseu,edurantetrêsanosganhomais-valorefêmero;entãovocême

alcança, ou até me ultrapassa, e consegue mais-valor efêmero durante três anos, e assim

sucessivamente. Os capitalistas estão todos à caça de mais-valor efêmero por meio de novas

tecnologias.Decorredaíodinamismotecnológicodocapitalismo.

A maioria das teorias da mudança tecnológica trata a inovação como uma espécie de deus ex

machina, uma variável exógena, externa ao sistema, que pode ser atribuída ao gênio inerente dos

empresáriosousimplesmenteàcapacidadedeinovaçãoprópriadossereshumanos.MasMarxreluta

em atribuir algo tão crucial a uma potência externa. O que faz aqui é encontrar uma explicação

interna (endógena, como preferimos dizer) para o fato de o capitalismo ser tão incrivelmente

dinâmicodopontodevistatecnológico.Eletambémexplicaporqueoscapitalistassustentamavisão

fetichistadequeasmáquinassãoumafontedevalor,eporquetodosnósestamossujeitosàmesma

concepção fetichista. Mas ele está convencido de que as máquinas são uma fonte de mais-valor

relativo, e não de valor. Como os capitalistas estão interessados na massa de mais-valor, e como

geralmente preferem ganhar mais-valor relativo do que travar uma luta de classes pelo mais-valor

absoluto, a crença fetichista num “remédio tecnológico” como resposta a suas ambições é

perfeitamentecompreensível.Temosatédefazerumgrandeesforçoparanoslivrardessacrença.

Mas há uma questão interessante queMarx não considera, embora faça alusão a ela em outro

lugar.Suponhaqueostrabalhadoresvivamapenasdepão,equeocustodopãocaiapelametadeem

razãodeumaumentonaprodutividade.Suponhatambémqueoscapitalistascortemossaláriosem

umquarto.Comisso,elesganhamaformacoletivademais-valorrelativoeaumentamataxageralde

exploração. Aomesmo tempo, porém, os trabalhadores podem comprar mais pão e aumentam seu

padrão de vida físico. A questão geral que se coloca é: como os ganhos derivados do aumento da

produtividade são distribuídos entre as classes? Uma possibilidade, que Marx infelizmente não

enfatiza, équeopadrãodevida físicodos trabalhadores–medidopelosbensmateriais (valoresde

uso)queelestêmcondiçõesdeadquirir–podeaumentar,aomesmotempoqueaumentaataxade

exploração (mv/v).Esse éumponto importante,porqueumadas críticasmais frequentes aMarx é

queeleacreditanumataxacrescentedeexploração.Comoissoépossível,perguntamoscríticos?Seos

trabalhadores (ao menos nos países capitalistas avançados) têm carros e muitos outros bens de

consumo,éóbvioqueataxadeexploraçãonãopodeestaraumentando!Ostrabalhadoresnãoestão

vivendoemcondiçõesmuitomelhores?Partedarespostaéqueéperfeitamentepossível,nostermos

postulados pela teoria deMarx, que aumentos constantes no padrão de vida do trabalhador sejam

acompanhadosdeumataxadeexploraçãocrescenteouconstante.(Outrapartedarespostapodeser

encontrada nos benefícios que uma parcela da classe trabalhadora global tem com as práticas

imperialistasdeexploraçãodaoutraparcela,masnãopodemosusaresseargumentoaqui.)

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DigoqueélamentávelqueMarxnãotenhaenfatizadoesseponto,emparteporqueteriaevitado

uma linhaerrôneaeespúriadecrítica teóricaehistórica.Mas tambémporquenos faria focarmais

claramenteoaspectocrucialdahistóriada lutadeclasses: aquestãodadistribuiçãodosbenefícios

obtidoscomosganhosdeprodutividade.NocasodosEstadosUnidos,umapartedosganhosobtidos

com o aumento da produtividade foi destinada aos trabalhadores a partir da Guerra Civil. Uma

estratégia de barganha tipicamente sindical colabora, de fato, para a obtenção de saláriosmaiores

como recompensa por uma produtividade maior. Se os benefícios obtidos com o dinamismo

tecnológicosãodistribuídos,aoposiçãoaessedinamismotecnológicotorna-seimpotente,aindaque

oscapitalistasaumentemataxadeexploração.Épossíveltambémque,pelofatodeostrabalhadores

terem enfim alcançado um bom padrão de vida, a oposição política ao capitalismo em geral seja

menos estridente, mesmo com uma taxa de exploração crescente. O que é estranho no caso dos

EstadosUnidoséqueostrabalhadoresdeixaramdeganharcomoaumentodaprodutividadeapenas

nosúltimostrintaanos.Aclassecapitalistapassouaseapropriardequasetodososbenefícios.Issoestá

nocernedacontrarrevoluçãoneoliberal e éoqueadistinguedoperíodokeynesianodoEstadode

bem-estar social, quando os ganhos obtidos com o aumento da produtividade tendiam a ser

distribuídos mais equitativamente entre o capital e o trabalho. O resultado foi, como está bem

documentado, um tremendo aumento nos níveis de desigualdade social em todos os países que

adotarampolíticasneoliberais.Issotemaverempartecomoequilíbriodeforçasentreasclassesea

dinâmicadalutadeclasses,masespecificamentenosEstadosUnidosasimportaçõesmaisbaratas(e

as práticas imperialistas) também ajudaram a manter a ilusão dos trabalhadores de que talvez

estivessem se beneficiando como imperialismo capitalista.Mas isso vaimuito alémdaquilo que o

textodeMarxnospropõe.Noentanto,acreditoquesejaútilestenderosinsightsmaisimportantesde

Marxnessadireção.

CAPÍTULO11:COOPERAÇÃO

Ostrêscapítulosseguintes tratamdosváriosmodoscomooscapitalistaspodemprocurarconseguir

mais-valorrelativodotipoindividual.Ofocogeraléoqueaumentaaprodutividadedotrabalho,eé

claroqueissodependedeformasorganizacionais(cooperaçãoedivisãodotrabalho),assimcomode

maquinariaeautomação(oquechamamosemgeraldetecnologia).Issopodedarmargemaconfusão,

porqueàsvezesMarxreúnetodasessasestratégiassobarubrica“forçasprodutivas”,mas,emoutras

passagens,empregaotermo“tecnologia”,comoseambostivessemomesmosignificado.Eleestátão

interessadonaformaorganizacional(nosoftware,porassimdizer)quantonasmáquinas(nohardware).

PensoqueomelhorsejapressuporqueateoriadeMarxdatecnologia/forçasprodutivasconsistana

maquinaria mais a forma organizacional. A meu ver, isso é particularmente relevante porque, em

tempos recentes, as transformações na forma organizacional – subcontratação, sistemas just-in-time,

descentralizaçãocorporativaecoisasdogênero–desempenharamumpapelpreponderantenabusca

doaumentodaprodutividade.SeosaltoslucrosdoWalmartrepousamsobreaexploraçãodamãode

obrachinesabarata,éaeficiênciadesuaformaorganizacionalqueocolocaàfrentedemuitosdeseus

concorrentes. De modo similar, a conquista do mercado norte-americano de automóveis pelos

japoneses, à custa de Detroit, teve a ver tanto com a forma organizacional (just-in-time e

subcontratações) das indústrias automobilísticas japonesas quanto com o novo hardware e a

automaçãoempregadosporelas.Defato,desdequeacronoanálise[time-and-motionstudies](eaquilo

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quesepassouachamartaylorismo)setornoumodanoiníciodoséculoXX,houvesempreumforte

vínculoentreohardwareeosoftwaredossistemasdeproduçãocapitalista.

Marx começa examinando como duas formas organizacionais – a cooperação e a divisão do

trabalho–podemserusadaspelocapitalemcondições tecnológicasde trabalhoartesanalemanual

para aumentar a produtividade. As inovações nesses dois aspectos da forma organizacional foram

fatores integrantes da aquisição de mais-valor relativo ao longo da história do capitalismo, e não

devemosnuncanosesquecerdisso.Contudo,assimcomonocapítulosobreoprocessodetrabalho,em

queanobrezapotencialdoprocessoérealçadaporoposiçãoàsuaformaalienadasobocapitalismo,

Marx não lança uma luz inerentemente negativa nem sobre a cooperação nem sobre a divisão do

trabalho. Ele as vê como potencialmente criativas, benéficas e gratificantes para o trabalhador. A

cooperação e a divisão bem organizada do trabalho são capacidades humanas esplêndidas, que

incrementamnossospoderescoletivos.Osocialismoeocomunismoteriampresumivelmentegrande

necessidadedelas.OqueMarxtentamostrarécomoessaspotencialidadespositivassãoapropriadas

pelocapitalparaseubenefícioparticularetransformadasemalgonegativoparaotrabalhador.

“Aformadetrabalhodentrodaqualmuitosindivíduostrabalhamdemodoplanejadounsaolado

dosoutroseemconjunto,nomesmoprocessodeproduçãoouemprocessosdeproduçãodiferentes

porém conexos chama-se cooperação.” Note a palavra “planejadamente”, pois ela será uma ideia

importante.Acooperaçãopermite,porexemplo,umaescalaaumentadadeprodução,easeconomias

deescalaquedaíresultampodemgeraraumentonaeficiênciadotrabalhoenaprodutividade.Esseé

umobjetocomumdateoriaeconômicaconvencional,eMarxnãoonega.“Aquinãosetratasomente

do aumento da força produtiva individual pormeio da cooperação,mas da criação de uma força

produtivaquetemdeser,emsimesma,umaforçademassas”(400-1).

[Essaforçademassas]provoca,namaiorpartedostrabalhosprodutivos,emulaçãoeexcitaçãoparticulardosespíritosvitais[animal

spirits] que elevam o rendimento dos trabalhadores individuais, fazendo com que uma dúzia de pessoas forneça, numa jornada de

trabalho simultâneade144horas,umproduto totalmaiordoque12 trabalhadores isolados, cadaumdeles trabalhando12horas.

(401)

Alémdisso,“acooperaçãopermiteestenderoâmbitoespacialdotrabalho”,aomesmotempoque

tornapossível,emproporçãoàescaladaprodução,oestreitamentoespacialdaáreadeprodução.Essalimitaçãodoâmbitoespacialdo

trabalhoea simultâneaampliaçãode suaesferadeatuação,quepoupaumagrandequantidadede falsoscustos [...], é resultadoda

conglomeraçãodostrabalhadores,dareuniãodediversosprocessosdetrabalhoedaconcentraçãodosmeiosdeprodução.(404)

Há aqui uma tensão interessante entre expansão geográfica (o trabalho realizado numa ampla

área)econcentraçãogeográfica(aconcentraçãodetrabalhadoresnummesmolocalcomopropósito

dehavercooperação).Estaúltima,comoafirmaMarx,pode terconsequênciaspolíticas,namedida

emqueostrabalhadoressereúnemeseorganizam.

Eleinsiste,noentanto,que“aforçaprodutivaespecíficadajornadadetrabalhocombinadaéforça

produtivasocialdotrabalhoouforçaprodutivadotrabalhosocial.Eladerivadaprópriacooperação”.

Além disso, “ao cooperar com outros de modo planejado, o trabalhador supera suas limitações

individuais e desenvolve sua capacidade genérica” (405). Esse é um daqueles casos em queMarx

retorna à noção de ser genérico universal, que foi um tema importante nosManuscritos econômico-

filosóficos de 1844.Neste ponto, é difícil ver a discussão sobre a cooperação sob uma luz negativa.

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Removemos os grilhões que tolhem nossa individualidade e desenvolvemos as potencialidades da

espécie.Cabe-nos,portanto,realizaressaspotencialidadesdogênerohumano.

Masoqueacontecequandovoltamosaomundodonosso“aspiranteacapitalista”?Antesdemais

nada, o capitalista precisa de umamassa inicial de capital para organizar a cooperação. Qual é a

quantidadedessamassaedeondeelavem?Háaquiloaquechamamoshojedebarreirasàentradaem

qualquerprocessodeprodução.Emalgunscasos,oscustosiniciaispodemserconsideráveis.Mashá

modosdeamenizaresseproblema.Marxintroduzaquiumaimportantedistinção.“Domesmomodo,

ocomandodocapitalsobreotrabalhopareciainicialmenteserapenasumadecorrênciaformaldofato

deotrabalhadortrabalharnãoparasi,masparaocapitalistae,portanto,sobocapitalista.”Contudo,

“com a cooperação de muitos trabalhadores assalariados, o comando do capital se converte num

requisitoparaaconsecuçãodopróprioprocessodetrabalho,numaverdadeiracondiçãodaprodução”

(406).Adistinçãoaquiéentreasubsunção“formal”dotrabalhosobocapitalesuasubsunção“real”.

Oque significa essadiferença? Sobo chamado sistemaputting-out, os capitalistas entregavamo

materialaostrabalhadoresemseuscottagese retornavammais tardepararecolheroprodutopronto.

Os trabalhadores não eram supervisionados e competia a eles a tarefa de regular o processo de

trabalho(quecomfrequênciaenvolviaotrabalhofamiliareeracombinadocompráticasagrícolasde

subsistência).Masessestrabalhadoresemdomicíliodependiamdoscapitalistasparaobterseuganho

monetário e não possuíam aquilo que produziam. É isso queMarx entende por subsunção formal.

Quandoostrabalhadoressãoempregadosnumafábricaporumsalário,tantoelesquantooprocesso

de trabalhoestão soba supervisãodiretadocapitalista.Essaéa subsunçãoreal.Assim,a subsunção

formal é externa, dependente, ao passo que a subsunção real se dá no interior da fábrica, sob a

supervisão do capitalista. A subsunção real implica mais custos iniciais, mais capital inicial; nos

primeirosestágiosdocapitalismo,quandoocapitaleraescasso,osistemaformaldeexploraçãopodia

sermaisvantajoso.Marxacreditavaque,comotempo,asubsunçãoformaldarialugaràreal.Masnão

estava necessariamente certo. O retorno da subcontratação, do trabalho em domicílio e de outras

práticas adotadas em nossa época indica que é sempre possível haver um retrocesso a tipos de

subsunçãoformal.

Quando os trabalhadores são reunidos numa estrutura coletiva de cooperação na fábrica, eles

ficamsobaautoridadedirigentedocapitalista.Todaatividadecooperativa requerumaautoridade

dirigentequalquer,comoummaestroquedirigeumaorquestra.Oproblemaéqueessa“funçãode

direção, supervisão emediação torna-se funçãodo capital assimque o trabalho a ele submetido se

tornacooperativo”.Alémdisso,“comofunçãoespecíficadocapital,adireçãoassumecaracterísticas

específicas”(406).Talfunçãoconsisteemreconhecerque“ospequenosmomentossãooselementos

que formam o lucro” (317) e sugar omáximo de trabalho possível do trabalhador. Por outro lado,

“conforme a massa dos trabalhadores simultaneamente ocupados aumenta, aumenta também sua

resistênciae,comela,apressãodocapitalparasuperá-la”(406).

A luta entre capital e trabalho, que encontramos antes no mercado de trabalho, é agora

interiorizadanafábrica.Issoocorreporqueacooperaçãoéorganizadapormeiodopoderdocapital.

Oqueanteseraumpoderdotrabalhoapareceagoracomoumpoderdocapital.“Porisso,aconexão

entre seus trabalhos aparece para os trabalhadores, idealmente, como plano preconcebido e,

praticamente,comoautoridadedocapitalista,comoopoderdeumavontadealheiaquesubmeteseu

agiraoseupróprioobjetivo”(407).

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O propósito do capitalista é assegurar, “por um lado, [um] processo social de trabalho para a

produçãodeumprodutoe,poroutro,[o]processodevalorizaçãodocapital”, istoé,aproduçãode

mais-valor.Issoimplicaodesenvolvimentodeumtipoespecíficodeprocessodetrabalho,emque“a

funçãodesupervisãodiretaecontínuadostrabalhadoresindividuaisedosgruposdetrabalhadores”é

conferida“aumaespécieparticulardeassalariados.Domesmomodoqueumexércitonecessitade

oficiaismilitares,tambémumamassadetrabalhadoresquecooperasobocomandodomesmocapital

necessitadeoficiais(dirigentes,gerentes)esuboficiais(capatazes,foremen,overlookers, contre-maîtres)

industriaisqueexerçamocomandoduranteoprocessodetrabalhoemnomedocapital”.Surgecerta

estruturadesupervisãodostrabalhadoresdecaráterautoritárioe“despótico”.Ocapitalistaadquire

um papel distintivo, como orquestrador do processo de trabalho em todos os seus aspectos. “O

capitalistanãoécapitalistaporserdiretordaindústria;aocontrário,elesetornachefedaindústria

porsercapitalista.Ocomandonaindústriatorna-seatributodocapital”(407-8).Apenaspormeiodo

comandodoprocessodetrabalhoocapitalpodeserproduzidoereproduzido.Ostrabalhadores,por

outrolado,

entramnumarelaçãocomomesmocapital,masnãoentresi.Suacooperaçãocomeçaapenasnoprocessodetrabalho,masentãoeles

já não pertencemmais a si mesmos. Com a entrada no processo de trabalho, são incorporados ao capital. Como cooperadores,

membrosdeumorganismolaborativo,elesprópriosnãosãomaisdoqueummododeexistênciaespecíficodocapital.

Os trabalhadores perdem sua individualidade e tornam-semero capital variável. É o queMarx

entendeporsubsunçãodotrabalhadorsobocapital.

A força produtiva que o trabalhador desenvolve como trabalhador social é, assim, força produtiva do capital, a qual se desenvolve

gratuitamentesemprequeostrabalhadoresseencontremsobdeterminadascondições,eéocapitalqueoscolocasobessascondições.

Pelo fatodea forçaprodutiva socialdo trabalhonãocustarnadaaocapital, eporque,poroutro lado, elanãoédesenvolvidapelo

trabalhadorantesqueseuprópriotrabalhopertençaaocapital,elaaparececomoforçaprodutivaqueocapitalpossuipornatureza,

comosuaforçaprodutivaimanente.(408)

Umpoderinerentedotrabalho,opodersocialdecooperação,éapropriadopelocapitaleaparece

comoumpoderdocapitalsobreostrabalhadores.Háexemploshistóricosabundantesdecooperação

forçada–aIdadeMédia,aescravidão,ascolônias–,massobocapitalismoovínculodacooperação

organizadacomotrabalhoassalariadomanifesta-sesobformasespecíficas.Issoteveumpapelcrucial

noadventodocapitalismo.

[A]ocupaçãosimultâneadeumnúmeromaiordetrabalhadoresassalariadosnomesmoprocessodetrabalho[...]constituiopontode

partida da produção capitalista, que por sua vez coincide com a existência do próprio capital. Se, portanto, omodo de produção

capitalistaseapresenta,porumlado,comonecessidadehistóricaparaatransformaçãodoprocessodetrabalhonumprocessosocial,

essaformasocialdoprocessodetrabalhoseapresenta,poroutrolado,comoummétodoempregadopelocapitalparaexplorá-lode

maneiramaislucrativapormeiodoaumentodesuaforçaprodutiva.(410)

Essestatusoriginaldecertaformadecooperaçãomanteve-seconstantedurantetodaahistóriado

capitalismo.

Acooperaçãosimplescontinuaapredominarnaquelesramosdeproduçãoemqueocapitaloperaemgrandeescala,semqueadivisão

dotrabalhoouamaquinariadesempenhemumpapelsignificativo.

Acooperaçãocontinuaaseraformabasilardomododeproduçãocapitalista,emborasuaprópriafigurasimplesapareçacomoforma

particularaoladodesuasformasmaisdesenvolvidas.(410)

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Éimpossívelimaginaromododeproduçãocapitalistasemcooperação,aindaquesejacooperação

sobodespotismodos capitalistas, que organiza e dirige uma autoridade supervisora e fragmenta a

classetrabalhadoraemgruposhierárquicosdistintos.Portanto,nãofazmaissentidopensarapenasno

trabalhador assalariado, porque a classe trabalhadora é estratificada de acordo com o status e a

remuneração correspondentes às diferentes funções constitutivas de um aparato cooperativo

despótico,dedicadounicamenteàproduçãodemais-valor.

CAPÍTULO12:DIVISÃODOTRABALHOEMANUFATURA

Ocapítulo12examinaadivisãodotrabalho.Marxconcentra-seaquinareorganizaçãodoartesanato,

dos ofícios, das tecnologias e outros num novo sistema que ele chama de “manufatureiro”. A

reorganizaçãopodeserfeitadedoismodos.Noprimeiro,sãoreunidos,“sobocontroledeummesmo

capitalista, trabalhadores de diversos ofícios autônomos” (411). O exemplo que ele dá é o da

manufatura de carruagens, em que as rodas, o estofamento, a carroceria etc. têm de ser feitos

separadamente e então reunidos. Esse tipo de reorganização contrasta com a da fabricação de

alfinetes ou agulhas.Nesse caso, o processo inicia-se com amatéria-prima e percorre um processo

contínuoatéresultarnoalfineteounaagulha.Emambososcasos,porém,“sejaqualforseupontode

partidaparticular, suaconfiguração finaléamesma:ummecanismodeprodução,cujosórgãos são

sereshumanos”.Querdizer,sereshumanossãopostosnumcertotipoderelaçãomútuanointeriordo

regimecooperativo.

Essas reorganizações, no entanto, não deixam incólumes os ofícios originais. “A análise do

processodeproduçãoem suas fasesparticulares coincideplenamente comadecomposiçãodeuma

atividadeartesanalemsuasdiversasoperaçõesparciais”(413).Quandooprocessodeproduçãoévisto

comoumtodo, surgemoportunidadesde fragmentá-loeencarregar trabalhadoresespecializadosde

executarcadafragmento,sejaemtermosdasequênciacontínua,sejaemtermosdaheterogeneidade

de ofícios distintos. Todavia, “o trabalho artesanal permanece sendo a base”, uma “base técnica

limitada” que “exclui uma análise verdadeiramente científica do processo de produção, pois cada

processoparcialqueoprodutopercorretemdeserexecutávelcomotrabalhoparcialartesanal”.Isso

constituiumabarreiraclaraaoprogressodaproduçãocapitalistae,comoafirmei,ocapitalnãogosta

debarreiras,porissotentaconstantementesuperá-las.Adificuldade,nessecaso,éque:

cadaprocessoparcialqueoprodutopercorretemdeserexecutávelcomotrabalhoparcialartesanal.Éjustamenteporqueahabilidade

artesanal permanece como a base do processo de produção que cada trabalhador passa a dedicar-se exclusivamente a uma função

parcialsua,esuaforçadetrabalhoétransformadanoórgãovitalíciodessafunçãoparcial.(413)

Oresultadoéqueostrabalhadores,aoinvésdeteraliberdadedesemoverentreumaatividadee

outra,veem-sepoucoapoucoacorrentadosaumafunçãoparticular,aumofícioparticular,aousode

um conjunto particular de ferramentas especializadas. “Um trabalhador que executa uma mesma

operação simples durante toda vida transforma seu corpo inteiro num órgão automaticamente

unilateral dessa operação” (414).É o trabalhador que controla a ferramenta ou é a ferramenta que

controla o trabalhador? Marx sugere que o agrilhoamento social dos trabalhadores a uma

especializaçãoparticularnointeriordadivisãodotrabalhovincula-osdetalformaasuasferramentas

especializadasqueelesacabamperdendosualiberdade.Issonemsemprefoiassim.“Umartesãoque

executasucessivamenteosdiversosprocessosparciais[...]éobrigadoamudaroradedelugar,orade

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instrumentos.Apassagemdeumaoperaçãoparaoutrainterrompeofluxodeseutrabalho,formando,

emcertamedida,porosemsuajornadadetrabalho”(415).Masocapitalnãogostadesseslapsosna

jornadadetrabalho,pois“ospequenosmomentossãooselementosqueformamolucro”(317).Esses

lapsos acabam “assim que ele passa a executar continuamente uma única emesma operação o dia

inteiro”. Por outro lado, isso pode ser contraprodutivo, uma vez que “a continuidade do trabalho

uniforme aniquila a força tensional e impulsiva dos espíritos vitais, que encontram na própria

mudançadeatividadeseudescansoeestímulo”(415).

Essa é uma concessão parcial à visão de Fourier a respeito da importância da variedade e do

estímulonoprocessodetrabalho,emoposiçãoaoagrilhoamentomaçanteevitalíciodeumapessoaa

umaferramentanadivisãodotrabalho.Osaspectospositivosenegativosdadivisãodotrabalhosobo

controle capitalista começam a ser introduzidos na discussão. Esta não se esgotou, mesmo sob o

capitalismo.Atentativadeaumentaraeficiênciaeaprodutividadedoprocessodetrabalhopormeio

da introdução de “círculos de controle de qualidade” e de uma variedade de tarefas para

contrabalançaramonotoniadotrabalhotemsidoalvodemuitasexperiênciasdeempresascapitalistas

emcertaslinhasdeprodução.

No item 3,Marx apresenta um contrastemais sistemático entre duas formas fundamentais de

manufatura:aheterogênea(quereuniumuitosofícios,comoaproduçãodecarruagenselocomotivas)

eaorgânica(contínua,comoaproduçãodealfinetesouagulhas).Masaquieleaproveitaaocasião

para introduzir o conceito de “trabalhador coletivo”, que seria “resultado da combinação de

trabalhadoresdetalhistas,puxaoarameaomesmotempoque,simultaneamente,comoutrasmãose

outrasferramentas,oestica,comoutrasocorta,oapontaetc.Deumasucessãotemporal,osdiversos

processos graduais se convertemnuma justaposição espacial” (419).A produtividade e a eficiência

dependemnãodotrabalhadorindividual,masdaorganizaçãoadequadadotrabalhocoletivo.

Issosignificaquesedeveprestarmuitaatençãoàorganizaçãodoespaço-tempodaproduçãoeà

eficiência que pode ser obtida com a reconstrução espaçotemporal do processo de trabalho.Marx

observaque,nãoperdendotempo,temosumganhodeprodutividade.Racionalizandoomodocomoo

espaço é organizado, podemos economizar os custos do deslocamento. Assim, toda a estrutura

espaçotemporaltorna-seumaquestãoorganizacionalparaomododefuncionamentodocapitalismo.

Essafoiagrandeinovaçãoqueosjaponesesintroduziramnoprocessodetrabalhonosanos1970,com

aproduçãojust-in-time,umaprogramaçãorígidadofluxodemercadoriasnoespaçoenotempoque

evita quase toda produção excedente em qualquer ponto do sistema. Essa foi a inovação que deu

vantagemcompetitivaà indústriaautomobilística japonesaemrelaçãoa todasasoutrasduranteos

anos 1980, e os japoneses absorveram sozinhos a forma efêmera do mais-valor relativo até ser

alcançados.Oponto fracodesse sistemaéqueele évulnerável a interrupções.Seumelonacadeia

espaçotemporalérompido–porexemplo,porumagreve–,ofornecimentoéparalisado,porquenão

háestoquesdereserva.

Marxreconhececlaramentequeumaspectoorganizacionalfundamentaldosistemacapitalistaé

comooespaçoeotemposãoestruturadoseentendidos.Ocapitalistatemdeelaborarumplanopara

umsistemadeproduçãoeficientedopontodevistaespaçotemporal.Mas isso implica,por suavez,

uma importante distinção entre o que ocorre nomercado e o que ocorre na empresa. “Quenuma

mercadoria seja aplicadoapenaso tempode trabalho socialmentenecessário à suaproduçãoé algo

queaparecenaproduçãodemercadoriasemgeralcomocoerçãoexternadaconcorrência”(note,mais

umavez,aimportânciadaconcorrência).Mas“namanufatura,aocontrário,ofornecimentodeuma

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dada quantidade de produtos em dado tempo de trabalho torna-se uma lei técnica do próprio

processodeprodução”(420).Essadistinção(contradição)entreoquealógicadomercadoexigeeo

quepodeserfeitopeloplanejamentointernoévitalparaoargumentoseguinte.Noentanto,opleno

desenvolvimentodessacontradiçãoéimpedidopelaexistênciadeumobstáculo,quesedeveaofato

dequeaindaestamostratandodeofíciosetrabalhoartesanal.Issopermiteumcomentáriogeralde

certaimportância:

A forma elementar de todamaquinaria foi-nos transmitida pelo Império romano comomoinhode água.Operíododo artesanato

deixoucomolegadoasgrandesinvenções:abússola,apólvora,aimpressãodelivroseorelógioautomático.Emgeral,noentanto,a

maquinariadesempenhaaquelepapelsecundárioqueAdamSmithlheconfereaoladodadivisãodotrabalho.(422)

Em outras palavras, até o fim do século XVIII os capitalistas ainda não investiam em novas

máquinascomoummeioprimáriodeaumentarsuaeficiênciaprodutiva.Emgeral,contentavam-se

emusarosmétodosdeproduçãoexistentesereorganizá-los.Houveinovações,éclaro,comoabússola

e a pólvora, entre outras, mas o capitalismo ainda não havia interiorizado no centro do próprio

processodetrabalhoadinâmicadaconstanteinovaçãotecnológica.Issosóocorreumaistarde,como

adventodamaquinariaedaindústriamoderna(temadocapítulo13).

Areorganizaçãocapitalistadosprocessosdetrabalhotemsériosimpactossobreotrabalhador.“O

hábito de exercer uma função unilateral transforma o trabalhador parcial seu órgão natural – e de

atuaçãosegura–dessafunção,aomesmotempoquesuaconexãocomomecanismototalocompelea

operarcomaregularidadedeumapeçademáquina.”Ostrabalhadores“sãoseparados,classificadose

agrupadosdeacordocomsuasqualidadespredominante”,eoresultadoéuma“hierarquiadasforças

de trabalho, a que corresponde uma escala de salários” (422-4). A distinção entre trabalhadores

qualificadosenãoqualificadostorna-separticularmentemarcada.

Juntamente com a gradação hierárquica, surge a simples separação dos trabalhadores emqualificados e não qualificados. Para estes

últimos,oscustosdeaprendizagemdesaparecemporcompleto,eparaosprimeirosessescustossãomenores,emcomparaçãocomo

artesão[...].Emambososcasoscaiovalordaforçadetrabalho.

Asreorganizaçõesereconfiguraçõescapitalistasdastarefastendemaproduzirdesqualificação,na

medidaemquetarefasqueanteseramcomplexassãosimplificadasemsuaspartesconstitutivas.Isso

tambémprovocaareduçãodovalordaforçadetrabalhoempregada.

Adesvalorizaçãorelativada forçadetrabalho,decorrentedaeliminaçãooureduçãodoscustosdeaprendizagem, implicadiretamente

umamaior valorização do capital, pois tudo que encurta o tempo de trabalho necessário para a reprodução da força de trabalho

estendeosdomíniosdomais-trabalho.

Mas“exceçõesocorremnamedidaemqueadecomposiçãodoprocessodetrabalhogerafunções

novaseabrangentesquenoartesanato,ounãoexistiamounãonamesmaextensão”(424).Devemos

reconhecerque,emtodareorganizaçãodoprocessodetrabalho,podeocorrerumduplomovimento

dedesqualificaçãoemmassausualmenteacompanhadadarequalificaçãodeumgrupomuitomenor

(por exemplo, engenheiros de linha de produção). Esses segmentos da classe trabalhadora são

normalmentefortalecidoseprivilegiadosemrelaçãoaosoutrossegmentosdotrabalho.

Oitem4, intitulado“Divisãodotrabalhonamanufaturaedivisãodotrabalhonasociedade”,é

importanteetemalgumasimplicaçõespotencialmenteproblemáticas.Marxretornaàdistinçãoentre

adivisãodotrabalhonaoficina,queocorresoboplanejamentoeasupervisãodiretadocapitalista,e

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adivisãodotrabalhorealizadapormeiodaconcorrêncianomercado.Essasduasformastêmpontos

departida“diametralmenteopostos”,masestãorelacionadas.Marxapresentaumadiscussãobrevee,

eu diria, não plenamente satisfatória a respeito do movimento histórico. “Numa família ou, com

desenvolvimentoulterior,numatribo,surgeumadivisãonatural-espontâneadotrabalhofundadanas

diferenças de sexo e de idade, portanto, sobre uma base puramente fisiológica.” Essa é uma

simplificaçãoexcessiva,baseadaemevidênciasescassas,comonocasodeoutrosdeseuscomentários

históricos.Prossegueele:

atrocadeprodutossurgenospontosemquediferentesfamílias,tribos,comunidadesentrammutuamenteemcontato,poisnãosão

pessoas privadas,mas sim famílias, tribos etc. que, nos primórdios da civilização, defrontam-se de forma autônoma.Comunidades

diferentes encontramem seu ambientenaturalmeiosdiferentesdeprodução ede subsistência.Por isso, também sãodiferentes seu

mododeprodução,seumododevidaeseusprodutos.

As relações de troca surgem entre comunidades diferentes, com recursos diferentes e produtos

diferentes.“Abasedetodadivisãodotrabalhodesenvolvidaemediadapelatrocademercadoriaséa

separação entre cidade e campo.” A dialética das relações entre cidade e campo é historicamente

importante,comosugereMarx(corretamente,ameuver),maselenãodizcomonemporquê.Além

disso, a “grandeza da população e sua densidade” também é relevante para o surgimento do

capitalismo,como“pressupostomaterial”da“divisãodotrabalhonasociedade”(425-6).

Mas essa tal densidade é algo relativo.Um país de povoamento relativamente esparso, commeios de comunicação desenvolvidos,

possuiumpovoamentomaisdensodoqueumpaísmaispovoado,porémcommeiosdecomunicaçãopoucodesenvolvidos,demodo

que,porexemplo,osEstadossetentrionaisdaUniãoAmericanasãomaisdensamentepovoadosdoqueaÍndia.

OrecursodeMarxaumateoriarelativadasrelaçõesdeespaço-tempoéabsolutamenteinovador.

Oterrenogeográficoemqueocapitalismosedesenvolveunãoerafixo,masvariável,edependianão

apenasdadensidadedaspopulações,mastambémdotransporteedastecnologiasdecomunicação.O

argumento central é que a divisão do trabalho namanufatura pressupõe que a sociedade já tenha

atingido “certo grau de desenvolvimento [...]. Inversamente, por efeito retroativo, a divisão

manufatureirado trabalhodesenvolve emultiplica aqueladivisão socialdo trabalho” (426-7).Marx

defende o chamado “período de rotação” [roundaboutness] e a complexidade da produção. O

movimentopassadeumasimplessituaçãoemquealguémfazalgumacoisaaumasituaçãoemque

váriaspessoasfazempartesdeumamesmacoisaenegociamessaspartesnomercado,atéque,nofim

doprocesso,todasaspartessãoreunidasporumaterceirapessoa.Esseperíododerotaçãocrescente

geraumapossibilidadecadavezmaiordeespecializaçãoterritorial.

Adivisãoterritorialdotrabalho,queconcentraramosparticularesdeproduçãoemdistritosparticularesdeumpaís,obtémumnovo

impulsodaindústriamanufatureira,queexploratodasasparticularidades.Aampliaçãodomercadomundialeosistemacolonial,que

integramascondiçõesgeraisdeexistênciadoperíododamanufatura[umpontoimportanteaquedevemosprestaratenção],fornecem

aesteúltimoumricomaterialparaodesenvolvimentodadivisãodotrabalhonasociedade.(427-8)

Massehá“analogiasenexos”entreadivisãodotrabalhonasociedadeenaoficina,“adiferença

entreelasénãoapenasdegrau,masdeessência”(AdamSmithtinhaconsciênciadisso,comoMarx

reconhece)(428).

Enquantoadivisãodotrabalhosociedadeémediadapelacompraevendadosprodutosdediferentesramosdetrabalho,aconexãodos

trabalhosparciaisnamanufaturaoépelavendadediferentesforçasdetrabalhoaomesmocapitalista,queasempregacomoforçade

trabalhocombinada.Enquantoadivisãomanufatureiradotrabalhopressupõeaconcentraçãodosmeiosdeproduçãonasmãosdeum

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capitalista, a divisão social do trabalho pressupõe a fragmentação dosmeios de produção entremuitos produtores demercadorias

independentes entre si. Diferentemente da manufatura, onde a lei de bronze da proporção ou da proporcionalidade submete

determinadasmassasdetrabalhadoresadeterminadasfunções,nasociedadeéodiversificadojogodoacasoedoarbítrioquedetermina

adistribuiçãodosprodutoresdemercadoriasedeseusmeiosdeproduçãoentreosdiferentesramossociaisdetrabalho.(429)

Noúltimocaso,dizele,“asdiferentesesferasdeproduçãoprocuramconstantementepôr-seum

equilíbrio”(429),massófazemissopelosmecanismosdomercado.Então,recorrendoàsleisdatroca

de mercadorias, ele explica por que isso acontece. Isso significa que a “tendência constante das

diferentes esferas de produção de se pôr em equilíbrio é exercida apenas como reação contra a

constantesupressãodessemesmoequilíbrio”.Querdizer,quandoaofertaeademandasedesajustam

(enotequenãopodemosprescindirdosmecanismosdeofertaedemanda),asflutuaçõesdospreços

no mercado forçam o ajuste necessário nas relações de valor subjacentes, fazendo os produtores

mudaremoqueestãoproduzindoesuaescaladeprodução.Oresultadoéumnítidocontrasteentre

“aregraapriorieplanejadamenteseguidanadivisãodotrabalhonointeriordaoficina”ea“divisão

dotrabalhonointeriordasociedade”.Nesta,aregraaprioriatua

apenasaposteriori,comonecessidadenatural,interna,muda,quecontrolaoarbítriodesregradodosprodutoresdemercadoriasepode

ser percebida nas flutuações barométricas dos preços do mercado. A divisão manufatureira do trabalho pressupõe a autoridade

incondicional do capitalista sobre homens que constituemmeras engrenagens de ummecanismo total que a ele pertence; a divisão

socialdotrabalhoconfrontaprodutoresautônomosdemercadorias,quenãoreconhecemoutraautoridadesenãoadaconcorrência,da

coerçãoquesobreeleséexercidapelapressãodeseusinteressesrecíprocos,assimcomonoreinoanimalabellumomniumcontraomnes

[guerradetodoscontratodos]preservaemmaioroumenorgrauascondiçõesdeexistênciadetodasasespécies.(430)

Noteque,nessaspassagens,tantoosmecanismosdeofertaedemandaquantoasleiscoercitivas

da concorrência são admitidos comonecessários para a obtençãode um tipode equilíbrio emque

prevaleçamasrelaçõesdevalor.

O capitalismo, concluiMarx, vive sempre emmeio à contradição entre “a anarquia da divisão

social do trabalho e o despotismo da divisão manufatureira do trabalho”. Além disso, esses dois

aspectos da divisão do trabalho “se condicionammutuamente”. A essa conclusão, no entanto, ele

acrescentaumcomentáriocontroversoecomsériasimplicaçõespolíticas:

Poressarazão,amesmaconsciênciaburguesaquefestejaadivisãomanufatureiradotrabalho,aanexaçãovitalíciadotrabalhadorauma

operação detalhista e a subordinação incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organização do trabalho que

aumentaaforçaprodutivadenunciacomomesmoalardetodoequalquercontroleeregulaçãosocialconscientedoprocessosocialde

produção como um ataque aos invioláveis direitos de propriedade, liberdade e à “genialidade” autodeterminante do capitalista

individual.Émuitocaracterísticoqueosmaisentusiasmadosapologistasdosistemafabrilnãosaibamdizernadamaisofensivocontra

todaorganizaçãogeraldotrabalhosocialalémdequeelatransformariaasociedadeinteiranumafábrica.(430)

Essasafirmaçõesrequeremumaanálisecuidadosa.Oscapitalistasamamaorganizaçãoplanejada

da produção em suas fábricas,mas abominam a ideia de qualquer tipo de planejamento social da

produção na sociedade.A acusação ideológica de que o planejamento é nocivo e, emparticular, a

crítica dos capitalistas de que ele reformularia o mundo à imagem de suas terríveis fábricas é

reveladora.A condenaçãodoplanejamentonão se confunde comoque acontecenaToyotaouno

Walmart.Empresasdesucessoempregamtécnicassofisticadasdegerenciamentodequalidadetotal,

análises de input-output, planejamento edesign de otimização, prevendo tudo até em seusmínimos

detalhes. Para Marx, porém, uma coisa é denunciar a hipocrisia dos capitalistas em relação ao

planejamentono terreno social eoutrabemdiferente é sugerirque suas técnicas indubitavelmente

sofisticadas, aplicadas para obtenção do mais-valor relativo, possam ser apropriadas para o

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planejamento de uma sociedade socialista, cuja finalidade é o aumento do bem-estar material de

todos.Emsuma,seriarazoáveltransformaromundonumaeconomiacomplanejamentocentralizado

ounumagrandefábricaparachegaraosocialismo?Obviamente,haveriaproblemas,seconsiderarmos

adescriçãoqueMarxfazdasterríveiscondiçõesdetrabalhonasfábricas.Masseoproblemanãoestá

nastécnicasemsi,masnofatodequesãousadasparaobtermais-valorrelativoparaocapitalista,e

não para produzir artigos voltados para a satisfação das necessidades de todos, então a defesa de

Lenin do sistema fordista de produção como um objetivo para a indústria soviética torna-semais

compreensível.Voltaremosaessaquestãomaisadiante.

Certamente,oargumentodequeoplanejamentocentralizadoéimpossívelporcausadoseugrau

de complexidade ou porque fere as relações de propriedade privada não convence; basta pensar na

complexidade envolvida em qualquer grande indústria que produza, por exemplo, produtos

eletrônicos e na despossessão do direito dos trabalhadores aos frutos de seu próprio trabalho. As

incríveis deficiências do sistema de mercado (particularmente em relação ao meio ambiente) e a

brutalidade periódica das leis coercitivas da concorrência, além do crescente despotismo que essa

coerçãoproduznoslocaisdetrabalho,sãograndesargumentosafavordasuperioridadedaregulação

do mercado. E a ideia de que a inovação só é possível quando são assegurados os direitos da

propriedadeindividualeodomíniodasleisdaconcorrênciaécertamenteinverossímil,tantológica

quantohistoricamente.Pois,ameuver,oquemaisimpressionaMarxaquiéaapropriaçãodasforças

produtivas do trabalho pelo capital. Ele insiste em dizer à classe trabalhadora que essas forças de

cooperaçãoedivisãodotrabalhosãosuasforçasprodutivasequeocapitalestáseapropriandodelas.

Por isso, a força produtiva que nasce da combinação dos trabalhos aparece como força produtiva do capital. A manufatura

propriamenteditanão só submete ao comando e àdisciplinado capital o trabalhador antes independente, como tambémcriauma

estruturahierárquicaentreosprópriostrabalhadores.

Asimplicaçõesparaostrabalhadoressãoenormes.

Elaaleijaotrabalhador,converte-onumaaberração,promovendoartificialmentesuahabilidadedetalhistapormeiodarepressãodeum

mundodeimpulsosecapacidadesprodutivas,domesmomodocomo,nosEstadosdeLaPlata,umanimalinteiroéabatidoapenas

para a retirada da pele ou do sebo.Não só os trabalhos parciais específicos são distribuídos entre os diversos indivíduos, como o

próprioindivíduoédivididoetransformadonomotorautomáticodeumtrabalhoparcial,conferindoassimrealidadeàfábulaabsurda

deMenênioAgripa

[b]

,querepresentaumserhumanocomomerofragmentodeseuprópriocorpo.(434)

Assim, o corpo político é configurado de modo tal que os trabalhadores são reduzidos a

fragmentos vivosde simesmos. “Por suapróprianatureza incapacitado”– eMarx é irônico aqui–

“para fazer algo autônomo, o trabalhador manufatureiro só desenvolve atividade produtiva como

elementoacessóriodaoficinadocapitalista.”Infelizmente,

As potências intelectuais da produção, ampliando sua escala, por um lado desaparecempormuitos lados.Oque os trabalhadores

parciaisperdemconcentra-sedefronte a elesno capital.Éumprodutodadivisãomanufatureirado trabalhoopor-lhes aspotências

intelectuaisdoprocessomaterialdeproduçãocomopropriedadealheiaecomopoderqueosdomina.

O trabalho intelectual torna-se uma função especializada, separando o trabalhomental daquele

manualesubmetendocadavezmaisoprimeiroaocontroledocapital.

Esseprocessodecisãocomeçanacooperaçãosimples,emqueocapitalistarepresentadiantedostrabalhadoresindividuaisaunidadee

avontadedocorposocialdetrabalho.Elesedesenvolvenamanufatura,quemutilaotrabalhador,fazendodeleumtrabalhadorparcial,

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ele se consuma na grande indústria, que separa do trabalho a ciência como potência autônoma de produção e a obriga a servir ao

capital.(435)

Oresultadodissoéum“empobrecimentodotrabalhador”eumasériaperdade“forçasprodutivas,

individuais”. As subjetividades políticas e intelectuais não permanecem imunes. E aquiMarx cita

AdamSmith,nãonecessariamenteemtomdeaprovação,mascomoumtestemunhodealgoquese

torna,cadavezmais,umamatériadefato:

“Amente da grandemaioria dos homens”, diz A. Smith, “desenvolve-se necessariamente a partir de e pormeio de suas ocupações

diárias.Umhomemqueconsometodaasuavidanaexecuçãodeumaspoucasoperaçõessimples[...]nãotemnenhumaoportunidade

deexercitarsuainteligência.[...]Elesetorna,emgeral,tãoestúpidoeignorantequantoépossívelaumacriaturahumana.”E,depoisde

descrever a estupidificação do trabalhador parcial, Smith prossegue: “A uniformidade de sua vida estacionária também corrompe,

naturalmente,acoragemdesuamente.[...]Elaaniquilaatémesmoaenergiadeseucorpoeotornaincapazdeempregarsuaforçade

modovigorosoeduradouro,anãosernaoperaçãodetalhistaparaaqualfoiadestrado.Suadestrezaemseuofícioparticularparece,

assim,tersidoadquiridaàcustadesuasvirtudesintelectuais,sociaiseguerreiras.Masemtodasociedadeindustrialecivilizadaéesseo

estadoaquenecessariamentetemdesedegradaropobrequetrabalha(thelabouringpoor),istoé,agrandemassadopovo”.(436)

Marx parece inclinado a aceitar, até certo ponto, a caracterização da situação apresentada por

Smith, epensoque é importante levantar a seguintequestãogeral: emquemedidanosso emprego

corrompeacoragemdenossamente?Pensoqueoproblemaégeneralizado,nãoserestringeapenas

aos operários. Jornalistas, personalidades da mídia, professores universitários – todos temos esse

problema(tenhoexperiênciapessoalsuficientenessesentido).Arelutânciageneralizadaemprotestar

contraomilitarismo,asinjustiçassociaiseasrepressõesquenosrodeiamtêmtantoaver(edeforma

aindamaisinsidiosa)comasmentalidadesesubjetividadespolíticasquederivamdenossoemprego

quantocomasofisticadaorganizaçãodarepressãoburguesa.“Certaatrofiamentoespiritualecorporal

éinseparávelmesmodadivisãodotrabalhoemgeraldasociedade”,admiteMarx,eresultanoqueele

chama de “patologia industrial” (437). Mais uma vez, pisamos em terreno perigoso. Seria correto

tratar como patológica a classe trabalhadora? No entanto, seria utópico supor que isso não tenha

nenhumimpactosobreacapacidadedaspessoasdereagir,pensar.Quemjáseorganizoucompessoas

quetêmdoisempregos(oitentahorasporsemana)conhecemuitobemesseproblema.Trabalhadores

nessascondiçõesdispõemdepoucoounenhumtempoparapensar(quediráler)sobremuitascoisasa

respeito das quais achamos que eles deveriam pensar, dada sua posição de classe. Eles estão tão

ocupadostentandojuntarasduaspontas,sustentarosfilhosedarcontadastarefasdomésticas,que

nãosobratempoparanadaalémdotrabalho.Smithlevouoargumentoaoextremoechegouàinfeliz

conclusãodequecaberiaaumapequenaeliteatarefaeodeverdepensareorganizar,masháalgona

descriçãodeMarxquenegamosparanossopróprioriscopolítico.

A reorganização da divisão do trabalho, tanto no interior do processo de trabalho como na

sociedade em seu conjunto, é a marca daquilo que Marx chama de “período manufatureiro” na

história capitalista.Mas esse sistemamanufatureiro tem limites. “Aomesmo tempo, amanufatura

nempodiaseapossardaproduçãosocialemtodaasuaextensão,nemrevolucioná-laemsuasbases.

Como obra de arte econômica” – eMarx admira isso – “ela se erguia apoiada sobre o amplo do

artesanatourbano eda indústria doméstica rural. Suaprópria base técnica estreita, tendo atingido

certo grau de desenvolvimento, entrou em contradição com as necessidades de produção que ela

mesma criara” (442). A pressão empurrava para além dessas barreiras. São as máquinas que

“suprassumem[aufheben]aatividadeartesanalcomoprincípioreguladordaproduçãosocial.Porum

lado, portanto, é removido o motivo técnico da anexação vitalícia do trabalhador a uma função

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parcial”(443).Issonosconduzaopróximocapítulo,emqueasmáquinaseaformaorganizacionalda

fábricamodernaocupamocentrodopalco.

[a]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.456.(N.E.)

[b]Em494d.C.ocorreuoprimeirograndeconflitoentrepatrícioseplebeusemRoma.Segundoalenda,opatrícioMenênioAgripateria

usadodeumaparábolaparaconvencerosplebeusaumaconciliação.Segundoele,arevoltadosplebeusseassemelhavaaumarecusados

membrosdocorpohumanoapermitirqueoalimentochegasseaoestômago,oquetinhacomoconsequênciaqueosprópriosmembros

definhavam.ArecusadosplebeusacumprirsuasobrigaçõeslevariaassimàruínadoEstadoromano.(N.T.)

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7.Oqueatecnologiarevela

CAPÍTULO13:MAQUINARIAEGRANDEINDÚSTRIA

Naintrodução,afirmeiqueMarxraramentecomentasuametodologia.Elatemdeserreconstruída,

portanto, por uma leitura atenta dos comentários ocasionais, suplementada por um estudo das

práticas.O capítulo 13, “Maquinaria e grande indústria”, nos dá a oportunidadede enfrentar essa

questão ao mesmo tempo em que antecipa os argumentos gerais quanto ao caráter do modo de

produçãocapitalista.Ocapítuloélongo,masositenssãologicamenteordenados.Valeapenaseguir

esseordenamentológicotantoantesquantodepoisdeestudaressecapítulo.

Umanotaderodapéimportante

Começarei, no entanto, com a quarta nota do capítulo, em que Marx, nos mesmos termos

enigmáticos que emprega com frequência ao fazer considerações metodológicas, interconecta um

grandenúmerodeconceitosnumaconfiguraçãoqueforneceumarcabouçogeralparaomaterialismo

dialéticoehistórico.Anotaderodapésedesdobraemtrêsfases.Aprimeiraconcentra-senarelação

deMarxcomDarwin.MarxleuAorigemdasespécieseficouimpressionadocomométodohistóricode

reconstruçãoevolucionáriadesenvolvidoporDarwin.Eleviasuaprópriaobracomoumaespéciede

continuação da obra de Darwin, com ênfase na história humana e na história natural (e não em

oposição a ela). Seu objetivo, como ele observa no prefácio à primeira edição, é apreender “o

desenvolvimentodaformaçãoeconômicadasociedadecomoumprocessohistórico-natural”.Apartir

dessepontodevista,oindivíduo“podemenosdoquequalqueroutroresponsabilizaroindivíduopor

relações das quais ele continua a ser socialmente uma criatura, pormais que, subjetivamente, ele

possasecolocaracimadelas”(80).

Nanotaderodapé,Marxfocaprimeiramenteuma“históriacríticadatecnologia”.

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[Esta]provariaoquãopoucoqualquerinvençãodoséculoXVIIIpodeseratribuídaaumúnicoindivíduo.Atéentão,talobrainexiste.

Darwin atraiu o interesse para a história da tecnologia natural, isto é, para a formaçãodos órgãos das plantas e dos animais como

instrumentosdeproduçãoparaavida.Nãomereceriaigualatençãoahistóriadaformaçãodosórgãosprodutivosdohomemsocial,da

basematerialdetodaorganizaçãosocialparticular?Enãoseriaelamaisfácildesercompilada,umavezque,comodizVico,ahistória

doshomenssediferenciadahistórianaturalpelofatodefazermosumaenãoaoutra?(446,nota89)

O argumento de Vico é que a história natural é o domínio de Deus e, como Deus age por

caminhosmisteriosos,elaestáalémdoentendimentohumano;jáanossahistória,porqueéfeitapor

nós mesmos, pode ser conhecida. Anteriormente, Marx mencionou a abordagem histórica das

mudançastecnológicaseapontoualgumastransiçõesvitaisassociadasàstransformaçõesdomodode

produção.DepoisdeconcordarcomadefiniçãodeBenjaminFranklinnocapítulo5dequeohomem

éum“animalquefabricaferramentas”,eleprossegue:

Amesmaimportânciaqueasrelíquiasdeossostêmparaoconhecimentodaorganizaçãodasespéciesdeanimaisextintastêmtambém

asrelíquiasdemeiosdetrabalhoparaacompreensãodeformaçõessocioeconômicasextintas.Oquediferenciaasépocaseconômicas

nãoé“oquê”éproduzido,mas“como”,“comquemeiosdetrabalho”.(257)

Então,numanotaderodapé,eleobservaquãoínfimoéo“conhecimentoqueahistoriografiade

nossosdiaspossuidodesenvolvimentodaproduçãomaterial,portanto,dabasedetodavidasociale,

porconseguinte,detodahistóriaefetiva”(258).Nocapítulo12,afirma:

A forma elementar de todamaquinaria foi-nos transmitida pelo Império romano com omoinho d’água.O período do artesanato

deixou como legadograndes invenções: abússola, apólvora, a impressãode livros eo relógio automático.Emgeral,no entanto, a

maquinariadesempenhaaquelepapelsecundárioqueAdamSmithlheconfere,aoladodadivisãodotrabalho.(422)

Essa ideia de que houve um processo humano evolucionário, no qual podemos discernir

mudançasradicaisnãoapenasnastecnologias,mastambémnosmodosdevidasocial,éclaramente

degrandeimportânciaparaMarx.

Marx não leu Darwin de maneira acrítica. “É notável”, escreveu ele a Engels, “como Darwin

reconhece, entre os animais e as plantas, a sociedade inglesa de seu tempo, com sua divisão de

trabalho, concorrência, abertura de novos mercados, ‘invenções’ e a ‘luta pela existência’

malthusiana.”

[a]

ParaMarx,oproblemaestavanaconcepçãodarwinianadeumaevoluçãopuramente

natural, sem nenhuma referência ao papel da ação humana na transformação da face da terra. A

referênciaaMalthustambémésignificativa,porque,na introduçãodeAorigemdas espécies,Darwin

atribuiualgumasdesuas ideiasprincipaisaMalthus.E,comoMarxnãotoleravaMalthus,deveter

sidodifícilparaeleengoliraideiadequeestetivesseinspiradoDarwin.Éinteressantenotarqueos

evolucionistas russos, que não estavam expostos ao impiedoso industrialismo inglês (Darwin era

casadocoma filhade JosiahWedgwood,o famoso fabricantede cerâmica, epor isso tinhagrande

familiaridadecomaconcorrênciaeadivisãodotrabalhoedas funções),enfatizavammuitomaisa

cooperação e a ajudamútua, ideias que o geógrafo russoKropotkin traduziu nos fundamentos do

anarquismosocial.

Mas o que Marx apreciava em Darwin era a ideia da evolução como um processo aberto à

reconstruçãohistórica e à investigação teórica.Marx entendeoprocesso evolucionáriohumanode

maneirasemelhante.Énessepontoquesemostrasuaênfasenosprocessos,emvezdenascoisas.O

capítulosobreamaquinariaeagrandeindústriadeveriaserlidocomoumensaionessalinhasobrea

históriadatecnologia.Elefaladosurgimentodaformaindustrialdocapitalismoapartirdomundo

doartesanatoedamanufatura.Atéentão,ninguémhaviapensadoemescrevertalhistória;assim,esse

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capítulo é um esforço pioneiro que levaria mais tarde a todo um campo de estudos acadêmicos

chamadohistóriadaciênciaedatecnologia.Lidadessemodo,aargumentaçãodocapítulofazmuito

maissentido.Mas,assimcomoateoriadeDarwin,hámuitomaisaquidoqueapenashistória.Há

umengajamentoteóricocomosprocessosdetransformaçãosocial,portantohámuitacoisaparaser

discutida.

A segunda parte da nota de rodapé faz uma afirmação curta, mas, a meu ver, extremamente

importante,erequeranálise.“Atecnologiadesvelaaatitudeativadohomememrelaçãoànatureza,o

processoimediatodeproduçãodesuavidae,comisso,tambémdesuascondiçõessociaisdevidae

dasconcepçõesespirituaisquedelasdecorrem”(446,nota89).Numaúnicasentença,Marxarticula

seis elementos conceituais identificáveis. Há, antes de tudo, a tecnologia. Há a relação com a

natureza. Há o processo efetivo de produção e, em forma bastante nebulosa, a produção e a

reproduçãodavidacotidiana.Há,enfim,asrelaçõessociaiseasconcepçõesmentais.Esseselementos

não são estáticos, mas móveis, vinculados entre si pelos “processos de produção” que guiam a

evoluçãohumana.Oúnicoelementoqueelenãodescreveexplicitamenteemtermosdeproduçãoéa

relaçãocomanatureza.Obviamente,essarelaçãomudouaolongodotempo.Queanaturezaéalgo

queestásempresendoproduzido,empartepelaaçãohumana,éumaideiaantiga;naversãomarxista

(esboçada no capítulo 5), ela é mais bem apresentada por meu colega Neil Smith, em seu livro

Desenvolvimentodesigual

[b]

,emqueosprocessoscapitalistasdeproduçãodanaturezaedoespaçosão

explicitamenteteorizados.

Como construir as relações entre esses seis elementos conceituais? Embora sua linguagem seja

sugestiva,Marxdeixaessaquestãoemaberto,oqueélamentável,porqueabreespaçoparatodotipo

de interpretação. Marx é descrito muitas vezes, tanto por amigos como por inimigos, como um

deterministatecnológico,queacreditaquemudançasnasforçasprodutivasditamocursodahistória

humana, inclusiveaevoluçãodas relações sociais,asconcepçõesmentais,a relaçãocomanatureza

etc.O jornalistaneoliberalThomasFriedman,porexemplo, admite tranquilamenteemseu livroO

mundoéplano

[c]

queéumdeterministatecnológico;quandolhedisseram(equivocadamente)queessa

era a posição de Marx, ele expressou sua admiração por Marx e citou uma longa passagem do

Manifesto Comunista para provar seu argumento. Numa resenha do livro de Friedman, o filósofo

político conservador John Gray confirmou o determinismo tecnológico de Marx e afirmou que

FriedmanestavaapenasseguindoospassosdeMarx

[1]

.Essasobservações, feitasporpessoasqueem

geralsãoantipáticasaopensamentodeMarx,encontramparalelonatradiçãomarxista.Aversãomais

sólidadatesedequeasforçasprodutivassãooagentecondutordahistóriaédeG.A.Cohen,emKarl

Marx’sTheoryofHistory:ADefence

[2]

.DepoisdeestudartodosostextosdeMarxdopontodevistada

filosofiaanalítica,Cohendefendeessainterpretaçãodateoriamarxiana.

Nãoconcordocomtalinterpretação.AchoqueéinconsistentecomométododialéticodeMarx

(considerado lixo por filósofos analíticos como Cohen). Em geral, Marx evita a linguagem causal

(desafiovocêaencontrarpassagensdessetipon’Ocapital).Nessanotaderodapé,elenãodizquea

tecnologia “causa” ou “determina”, mas “revela” ou, em outra tradução, “desvela” a relação do

homemcomanatureza.ÉclaroqueMarxdámuitaatençãoaoestudodastecnologias(inclusivedas

formasorganizacionais),masissonãoolevaatratá-lascomoprincipaisagentesdaevoluçãohumana.

O queMarx diz (emuitos discordarão demim) é que as tecnologias e as formas organizacionais

interiorizamcertarelaçãocomanatureza,assimcomocomconcepçõesmentaiserelaçõessociais,com

avidacotidianaeosprocessosdetrabalho.Emvirtudedessainteriorização,oestudodastecnologias

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e formas organizacionais pode “revelar” ou “desvelar” muito dos outros elementos. Inversamente,

todosessesoutroselementosinteriorizamalgodatecnologia.Umestudodetalhadodavidacotidiana

sobocapitalismo“revelará”,porexemplo,muitadanossarelaçãocomanatureza,astecnologias,as

relações sociais,asconcepçõesmentaiseosprocessos laborais.Domesmomodo,oestudodanossa

relação com a natureza não pode ir muito longe, se não examinar a natureza de nossas relações

sociais,nossossistemasdeprodução,nossasconcepçõesdomundo,astecnologiasqueempregamose

comoconduzimosnossavidacotidiana.Todosesseselementosconstituemumatotalidade,etemos

deentendercomfuncionamasinteraçõesmútuasentreeles.

Pensoqueesseéummodoprofícuodepensaromundo.Porexemplo,fuimembrodeumjúripara

selecionarideiasparaoplanejamentodeumanovacidadenaCoreiadoSul.Nós,osmembrosdojúri,

tínhamostodososprojetosànossafrente.Ojúrieraformadosobretudoporengenheiroseurbanistas,

além de uns poucos arquitetos e paisagistas célebres. Estes últimos dominaram a discussão inicial

sobre o critério que deveríamos adotar emnossas decisões, o que gerouprincipalmente umdebate

sobre a força simbólica relativa e as implicações práticas de círculos e cubos em estruturas

arquitetônicas.Emoutraspalavras,asdecisõesteriamdesertomadas,emgrandeparte,combaseem

critériosgeométricosesimbólicos.Numdeterminadomomento,perguntei:sevocêestáconstruindo

umanovacidade,quecoisasvocêachaimportantesaber?Paramim,éimportantesaber:quetipode

relaçãocomanaturezaserácriadonessacidade(oaspectoambientaletc.)?Quetipodetecnologias

serão incorporadas lá e por quê? Que tipo de relação social se tem em vista? Quais sistemas de

produção e reprodução serão incorporados?Como será a vida cotidiana lá, e esse é o tipo de vida

cotidiana que gostaríamos de criar? E que concepções mentais, simbólicas etc. serão implantadas?

Estamosconstruindoummonumentonacionalistaouumespaçocosmopolita?

Osoutrosjuradosacharamessaformulaçãoinovadoraeinteressante.Discutimosissoporalgum

tempo, até que a questão se tornou um pouco complicada demais em relação ao tempo de que

dispúnhamos.Umdos arquitetos disse então que, dos seis critérios formulados pormim, apenas o

relativo às concepçõesmentais era realmente importante, e voltamos à questão do simbolismo das

formas e das forças relativas dos círculos e dos cubos!Mais tarde, porém,muitosme perguntaram

onde poderiam encontrar mais sobre aquele modo tão interessante de pensar. Cometi o erro de

indicaranota89docapítulo13d’Ocapital.Nãodeveriaterfeitoisso,porqueháduasreaçõestípicas

emcasosassim.Umaénervosa,eatétemerosa,poisadmitirqueMarxpossaterditoalgotãoóbvioe

interessantesignificaadmitirsimpatiasmarxistas,eissoseriaterrívelparaasambiçõesprofissionaise

atémesmopessoaisdealguém.Aoutraéolharparamimcomoseeufosseumidiota,umapessoatão

desprovidadeideiasquesóconseguepapagaiaroqueMarxdize,piorainda,chegaraopontodecitar

uma mera nota de rodapé! E assim termina a conversa. Mas acredito que essa é uma maneira

interessantedeavaliarumplanejamentourbanoecriticarasqualidadesdavidaurbana.

Essearcabouçoéessencialparaa fundamentaçãodateoriadomaterialismohistórico,eháuma

forte evidência, como esperodemonstrar, de que ele fundamenta grandeparte da compreensãode

Marxdaevoluçãodocapitalismo.Devomedeterummomentonesseponto.Imagineumarcabouço

emqueessesseiselementosestãoreunidosnummesmoespaço,masemintensainter-relação(vera

figuraaseguir).Cadaumdesseselementoséinternamentedinâmico,oquenospermitevercadaum

comoum“momento”noprocessodaevoluçãohumana.Podemosestudaressaevoluçãodaperspectiva

deumdessesmomentosouexaminarasinteraçõesentreeles,comoastransformaçõesnatecnologia

ou nas formas organizacionais com referência às relações sociais e às concepções mentais. Como

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nossasconcepçõesmentaissãoalteradaspelastecnologiasqueestãoànossadisposição?Nãovemoso

mundo com outros olhos quando dispomos de microscópios, telescópios, satélites, raios X e

tomografia computadorizada? Entendemos e pensamos o mundo hoje de modo muito, muito

diferenteporcausadastecnologiasquetemos.Damesmaforma,alguémdevetertidoaconcepção

mental de que construir um telescópio seria algo interessante (lembre-se da passagem d’O capital

sobreoprocessodetrabalhoeoarquitetoincompetente).E,quandoteveessaideia,essapessoateve

deencontrarumóptico,umvidreiroetodososelementosnecessáriosparatransformaremrealidade

aideiadaconstruçãodotelescópio.Tecnologiaseformasorganizacionaisnãocaemdocéu.Elassão

produzidasapartirdeconcepçõesmentais.Tambémsurgemdenossasrelaçõessociaiseemresposta

àsnecessidadespráticasdavidacotidianaoudosprocessosdetrabalho.

AprecioomodocomoMarxestabeleceessasrelações,desdequesejamvistasdialeticamente,enão

causalmente. Essa maneira de pensar permeia O capital, e deveríamos lê-lo tendo em mente tal

arcabouçoconceitual.Eletambémofereceumpadrãodecrítica,porquepodemosanalisaropróprio

desempenho de Marx a partir do modo como ele inter-relaciona esses diferentes elementos. Mas

comoexatamenteeleinterconectaconcepçõesmentais,relaçõessociaisetecnologias?Elefazissode

formaadequada?Háaspectos,comoapolíticadavidacotidiana,quesãodeixadosdelado?Emoutras

palavras,adialéticaentreessaformulaçãoeaspráticasdeMarxtemdeserinvestigada.

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Façamosumresumodaquestão.Osseiselementosconstituemmomentosdistintivosnoprocesso

deevoluçãohumana,entendidocomoumatotalidade.Nenhummomentoprevalecesobreosoutros,

mesmoquenointeriordecadaumexistaapossibilidadedodesenvolvimentoautônomo(anatureza

mudaeevolui,domesmomodoqueas ideias,asrelaçõessociais,as formasdavidacotidianaetc.).

Todos esses elementos sedesenvolvememconjunto e estão sujeitos a renovações e transformações

perpétuas como momentos dinâmicos no interior da totalidade. Mas essa totalidade não é uma

totalidadehegeliana,emquecadamomentointeriorizaestreitamentetodososoutros,massimuma

totalidade ecológica, o que Lefebvre chama de “conjunto” [ensemble] e Deleuze, de “junção”

[assemblage] de momentos que se codesenvolvem de modo aberto, dialético. O desenvolvimento

desigualentreoselementosproduzcontingêncianaevoluçãohumana(demaneiramuitosemelhante

comoasmutaçõesimprevisíveisproduzemcontingêncianateoriadarwiniana).

Na teoria social, o perigo é ver um dos elementos como determinante de todos os outros. O

determinismo tecnológico é tão equivocado quanto o determinismo ambiental (a natureza

condiciona), o determinismo da luta de classes, o idealismo (as concepções mentais estão na

vanguarda), o determinismo do processo de trabalho ou o determinismo resultante dasmudanças

(culturais)navidacotidiana(essaéaposiçãopolíticadePaulHawkenemseuinfluenteBlessedUnrest

[Abençoada inquietação]

[3]

).Grandes transformações, como omovimento do feudalismo (ou outra

configuração pré-capitalista) para o capitalismo, ocorrem por meio de uma dialética de

transformaçõesqueatravessatodososmomentos.Essecodesenvolvimentosedeudemododesigual

no espaço e no tempo, produzindo todo tipo de contingências locais, apesar de limitadas pela

interaçãonointeriordoconjuntodeelementosimplicadosnoprocessoevolucionárioepelacrescente

integração espacial (e, às vezes, competitiva) dos processos de desenvolvimento econômico no

mercadomundial.Talvezumdosmaioreserrosnatentativaconscientedeconstruirosocialismoeo

comunismosobreabasedocapitalismotenhasidoaincapacidadedereconheceranecessidadedeum

engajamento político que atravessasse todos esses momentos e fosse sensível às especificidades

geográficas. A tentação do comunismo revolucionário foi reduzir a dialética a um simplesmodelo

causal,emqueumououtromomentoeracolocadonavanguardadamudançaeencaradorealmente

comotal.Ofracassoerainevitável.

À primeira vista, a terceira fase da nota de rodapé parece contradizerminha interpretação da

segunda:

Mesmotodahistóriadareligiãoqueabstraidessabasematerialéacrítica.Defato,émuitomaisfácilencontrar,pormeiodaanálise,o

núcleoterrenodasnebulosasrepresentaçõesreligiosasdoque,inversamente,desenvolver,apartirdascondiçõesreaisdevidadecada

momento,suascorrespondentesformascelestializadas.Esteéoúnicométodomaterialistae,portanto,científico.(446,nota89)

Marxseconsideravaumcientista,eaquieledizqueissosignificaumcomprometimentocomo

materialismo.Masessematerialismoédiferentedaqueledoscientistasnaturais.Eleéhistórico.“O

defeito do materialismo abstrato da ciência natural, que exclui o processo histórico, pode ser

percebido já pelas concepções abstratas e ideológicas de seus porta-vozes, onde quer que eles se

aventuremalémdos limitesdesuaespecialidade”(446,nota89).AsdescobertasdeDarwinsobrea

evoluçãoeramfalhas,porqueeleignoravaoimpactodocontextohistóricoemsuateorização(opoder

dasmetáforasqueeleextraiudocapitalismobritânico)enãoestendeunemintegrouseusargumentos

àevoluçãohumana.Marx,éclaro,escreveuOcapitalantesdeodarwinismosocialsetornarpopular,

mas eleprefigurauma resposta crítica aosdarwinistas sociais, que legitimaramo capitalismocomo

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“natural” apelando para a teoria da evolução de Darwin. Como a teoria de Darwin extraía suas

principaismetáforasdocapitalismoeerainspiradapelateoriasocialdeMalthus,nãosurpreendiaque

visseocapitalismocomoplenamentecoerentecomprocessosdecompetiçãosupostamentenaturais,a

luta pela sobrevivência e, é claro, a sobrevivência do mais adaptado (sem levar em conta a ajuda

mútuadeKropotkin).

OargumentogeraldeMarxéqueoscientistas,pornãoterementendidoomomentohistóricoe

estarem impedidos por seus compromissos metodológicos de integrar a história humana a seus

modelosdemundo,chegarammuitasvezesainterpretaçõesdessemundoqueserevelaramfalsasou,

namelhordashipóteses,parciais.Napiordashipóteses,ocultarampressupostoshistóricosepolíticos

sobumaciênciasupostamenteneutraeobjetiva.Essaperspectivacrítica,inauguradaporMarx,éhoje

prática-padrão no campo dos estudos científicos e mostra que introduzir metáforas sobre gênero,

sexualidadeehierarquiassociaisnaciênciaconduzatodotipodeequívocosobreomundonatural,

aindaqueadmitaque,semmetáforas,apesquisacientíficanãochegaalugarnenhum.

Masdevemosexaminarumaquestãomuitomaisprofunda.Faleinocapítulo1doprocedimento

descendentedeMarx:elepartedaaparênciasuperficialedesceatéosfetichismosparadescobrirum

aparato teórico conceitual capazde capturar omovimento subjacente dos processos sociais.Então,

passoapasso,esseaparatoteóricoétrazidodevoltaàsuperfícieparainterpretaradinâmicadavida

cotidiana sob uma nova luz. Esse é, segundoMarx confirma na nota de rodapé, “o únicométodo

materialistae,portanto,científico”.Nocapítulosobreajornadadetrabalho,vimosumexemplotípico

desse método. O valor, como tempo de trabalho socialmente necessário, interioriza uma

temporalidadeespecificamentecapitalista,edissoresultaumvastocampodelutassociaisemtorno

daapropriaçãodotempoalheio.Ofatodeque“ospequenosmomentossãooselementosqueformam

olucro”geranoscapitalistasumaobsessãopeladisciplinatemporalepelocontroledotempo(e,em

breve,explicaráporqueelessãoobcecadospelarapidez).

Mascomopodemospensar a relaçãoentre,digamos, a teoriado“valorprofundo”eo fermento

imprevisíveldaslutasemtornodaduraçãodajornadadetrabalho?Devoltaàpágina157,Marxcita

(emoutra nota de rodapé!) umapassagem famosa de umaobra anterior, aContribuição à crítica da

economiapolítica:

Osmodosdeterminadosdeproduçãoeasrelaçõesdeproduçãoquelhescorrespondem,emsuma,deque“aestruturaeconômicada

sociedadeéabaserealsobreaqualseergueumasuperestruturajurídicaepolíticaeàqualcorrespondemdeterminadasformassociais

deconsciência” [concepçõesmentais, sevocêpreferir],deque“omododeproduçãodavidamaterialcondicionaoprocessodavida

social,políticaeespiritualemgeral”.

Eledeixadeforaafraseseguinte,queafirmaqueénasuperestruturaquetomamosconsciência

dasquestõespolíticaseasenfrentamos.

Éissoqueécitadocomfrequênciacomoomodelobase-superestrutura.Marxsupõequeháuma

baseeconômicasobreaqualseerguemosarcabouçosdopensamento,assimcomoumasuperestrutura

políticaelegalquedefinecoletivamentecomotomamosconsciênciadosproblemaseosenfrentamos.

Essa formulaçãoé lidaàsvezesdemododeterminista:abaseeconômicadetermina a superestrutura

política e legal, determina as formas de luta que são travadas nessa superestrutura e, conforme as

transformaçõesocorridasnabaseeconômica,determinaosresultadosdaslutaspolíticas.Masnãovejo

comooargumentopodeserconsideradodeterminista,oumesmocausal.Nãoéassimqueocapítulo

sobre a jornada de trabalho é desenvolvido. Há alianças de classe, possibilidades conjunturais,

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mudanças discursivas nos sentimentos, e o resultado jamais é seguro. Contudo, há sempre uma

preocupaçãotãoprofundacomaapropriaçãodotempoalheioqueaquestãonuncaseesgota.Trata-se

deumeternopontodecontestação“entredireitosiguais”nointeriordocapitalismoquenãochega

jamais a uma solução definitiva. A luta pelo tempo é fundamental para o modo de produção

capitalista. É o que a teoria profunda nos diz, e, independentemente do que aconteça na

superestrutura,esseimperativonãopodesersuperadosemaderrubadadocapitalismo.

Em todo caso, as forças produtivas e as relações sociais não podem existir sem expressão e

representaçãocorrespondentesnasuperestruturapolíticaelegal.Vimosissocomrelaçãoaodinheiro,

queéumarepresentaçãodovalorcercadaportodosostiposdearranjosinstitucionaiselegaiseum

objetode lutaemanipulaçãopolítica(comotambémocorrecomosarcabouços legaisdodireitode

propriedadeprivada).Contudo,Marxmostroutambémque,semodinheiro(ouumarcabouçolegal

dodireitodepropriedadeprivada),ovalornãopoderiaexistircomoumarelaçãoeconômicabásica.

Naesferamonetária,ascoisastranscorremdemaneirasmuitodistintas,conformeadinâmicadaluta

declasses,eissotemimplicaçõesnofuncionamentodateoriadovalor.Afinal,odinheiropertenceà

superestruturapolíticaouàbaseeconômica?Nãohádúvidadequearespostadeveser:aambas.

De modo semelhante, o capítulo sobre a jornada de trabalho não nos permitiria dizer que o

resultado da luta pela jornada de trabalho foi determinado pelos movimentos ocorridos na base

econômica.Alémdisso,arestriçãopolíticaàduraçãodajornadadetrabalholevouoscapitalistas,em

parte, a procurar outro modo de ganhar mais-valor, isto é, mais-valor relativo. Claramente não é

intençãodeMarxqueessemodelobase-superestruturaoperedemodomecânicooucausal,massim

dialético.

Noentanto,éverdadetambémquea“resolução”quesedánoreinodalutaemtornodaduração

da jornada de trabalho diz respeito ao fato fundamental de que os “pequenos momentos são os

elementos que formam o lucro”, o que deriva da definição do valor como tempo de trabalho

socialmentenecessário.Nas sociedadespré-capitalistas,oumesmonaRomaAntiga,nãohaviauma

luta concertada em torno da duração da jornada de trabalho. Esse tipo de luta só faz sentido no

interior das regras de um modo de produção capitalista. Questões formais, como a duração da

jornada de trabalho (semanal, anual, vitalícia), vêm à tona precisamente por causa da estrutura

profundadocapitalismo.Comoessas lutassãoresolvidaséalgoquedependedevocê,demimede

todososoutros.E,defato,alutapoderiaserresolvidademaneiraqueacarretasseofimdomodode

produçãocapitalista.Poderíamosconstruirumasociedadeemqueospequenosmomentosnãofossem

os elementos que formam o lucro. Você consegue imaginar como seria essa sociedade? Parece

interessante,não?

Oquequerodizeréqueomodocomoessascoisassãoresolvidas–pormeiospolíticosejurídicos,

peloequilíbriodas forçasdeclasse,dasconcepçõesmentaisetc.–nãoé irrelevanteparaoconceito

profundodacirculaçãodovalorcomocapital.Ométodorealmentecientíficoconsisteemidentificar

tais elementos profundos que explicampor que certas coisas acontecemdedeterminada forma em

nossa sociedade.Vimos issona luta em tornodaduraçãoda jornadade trabalho, e podemos vê-lo

tambémna luta em tornodomais-valor relativo, que explica por queo capitalismo temde ser tão

dinâmico tecnologicamente. Parece que não temos escolha entre crescer ou não, inventar ou não,

porqueéissoquemandaaestruturaprofundadocapitalismo.Aúnicaquestãoqueimporta,portanto,

écomosedaráessecrescimento,ecomquetipodemudançatecnológica.Issonosobrigaaconsiderar

asimplicaçõesnoquedizrespeitoàsconcepçõesmentais,àrelaçãocomanaturezaeatodososoutros

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momentos.E,senãogostamosdessas implicações,nãotemosoutrasaídasenãonosengajarnaluta,

nãoapenasemtornodeumououtrodessesmomentos,masdetodosaomesmotempo,atéque,por

fim,tenhamosdeenfrentaratarefadetransformaraprópriaregradovalor.

A circulação do capital, no entanto, é o móvel da dinâmica sob o capitalismo. Mas o que é

socialmente necessário para que esse processo se sustente? Considere, por exemplo, as concepções

mentaisnecessárias.SevocêfosseaWallStreetcomumcartazdizendo“Ocrescimentoéruim,abaixo

ocrescimento!”, isso seria consideradoumsentimentoanticapitalista?Pode ter certezadeque sim.

Mas você seria condenado não necessariamente por ser anticapitalista, e sim por ser contra o

crescimento,porqueocrescimentoéconsideradoinevitávelebom.Crescimentozeroésinaldesérios

problemas.OJapãonãocresceumuitonosúltimostempos,pobredopovo!JáocrescimentonaChina

tem sido espetacular, e os chineses são uma grande história de sucesso.Como podemos imitá-los?

Cruzamosalegrementeosbraçosedizemosqueocrescimentoébom,amudançatecnológicaéboa,

portantoocapitalismo,querequeressasduascoisas,énecessariamentebom.Esseéumtipodecrença

comum ao qual Gramsci se refere frequentemente como “hegemonia”. Omesmo tipo de questão

emergedosarranjosinstitucionais.Parafuncionardemaneiraeficiente,ocapitalismorequerarranjos

legaisadequados.Quantomaisoschinesessedirigiamparaocapitalismo,menosplausívelsetornava

amanutenção de um sistema legal que não reconhecesse alguns tipos de direitos de propriedade

privada.Masháumaboadosede liberdadede açãoe contingêncianos arranjos institucionaisque

podemsercriados.

Itens1a3:Odesenvolvimentodamaquinaria,atransferênciadevaloreosefeitossobreo

trabalhador

Examinaremos agora o material reunido nesse longo capítulo. Sugiro que você preste muita

atençãoàsequênciadostítulosdositens.Elesdefinemalinhalógicadeargumentaçãoqueestrutura

ainvestigaçãodeMarxsobreosurgimentodosistemafabriledousodamaquinaria.Elecomeça,no

entanto, com a surpresa de John Stuart Mill diante do fato de que as invenções mecânicas,

supostamenteconcebidasparaaliviarofardodotrabalho,nãoserviramparanadadisso.Naverdade,

emgeral,tornaramascoisasaindapiores.Marxnãosesurpreendecomisso,porqueasmáquinassão

usadasparaproduzirmais-valor,enãoparadiminuiracargadetrabalho.Issosignifica,notebem,que

amáquina “é ummeio para a produção demais-valor” (445). Isso soa estranho, dada a afirmação

anteriordeMarxdequeasmáquinas sãotrabalhomorto(capitalconstante)enãopodemproduzir

valor.Noentanto,elaspodemserumafontedemais-valor.Areduçãonovalordaforçadetrabalho

pormeio da produtividade aumentada geramais-valor para a classe capitalista, e o capitalista que

possuiramelhormaquinariaadquiriráaformatemporáriademais-valorrelativoquetrazganhospara

oprodutorcommaiorprodutividade.Nãoadmiraqueoscapitalistasseapeguemàcrençafetichista

dequeasmáquinasproduzemvalor!

Marx examina então adiferença entre ferramentas emáquinas.Definir “ferramenta comouma

máquina simples, e máquina como uma ferramenta composta”, e não ver aí “nenhuma diferença

essencial”, significa perder algo fundamental,mais especificamente “o elemento histórico” (aquele

elementoquemereceutantaatençãonanotaderodapé)(446).Marxfoiumdosprimeirosausaro

termo “revolução industrial” e a torná-lo essencial para sua reconstrução histórica. Mas o que

constituiocernedessarevoluçãoindustrial?Foielaumasimplesmudançatecnológica,ofatodeas

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ferramentasteremsetornadomáquinas?Consisteadiferençaentremáquinaseferramentasnofato

deasmáquinasteremumafonteexternadeforça?Ouarevoluçãoindustrialprovocoutambémuma

mudança radical nas relações sociais, paralelamente às transformações nas forças produtivas? A

respostaaessasperguntaséigualmenteafirmativa.

Amáquina da qual parte aRevolução Industrial substitui o trabalhador quemaneja uma única ferramenta por ummecanismo que

operacomumamassadeferramentasiguaisousemelhantesdeumasóvezeémovidoporumaúnicaforçamotriz,qualquerqueseja

suaforma.Temos,aqui,amáquina,masapenascomoelementosimplesdaproduçãomecanizada.(449)

Isso se refere, no entanto, à transformação operada na posicionalidade (relação social) do

trabalhador, que é tão importante quanto a própriamáquina.Mesmo que os trabalhadores possam

continuaraproporcionara forçamotriz,emalgummomentosurgeanecessidadede suplementá-la

com uma fonte externa. A força hidráulica foi utilizada desdemuito cedo, mas sua aplicação era

limitadapelalocalização.

SomentecomasegundamáquinaavapordeWatt,aassimchamadamáquinaavapordeaçãodupla,encontrou-seumprimeiromotor

capazdeproduzirsuaprópriaforçamotrizpormeiodoconsumodecarvãoeágua,ummotorcujapotênciaencontra-seplenamente

sobcontrolehumano,queémóveleummeiodelocomoçãoeque,aocontráriodarodad’água,éurbanoenãorural,permitindoa

concentraçãodaproduçãonascidades,aoinvésdedispersá-lapelointerior.Alémdisso,éuniversalemsuaaplicaçãotecnológica,esua

instalaçãodependerelativamentepoucodecircunstânciaslocais.(451)

Amáquina a vapor liberou o capital da dependência de fontes localizadas de poder, porque o

carvão era uma mercadoria que, em princípio, podia ser transportada para qualquer lugar. Mas

cuidadoparanão superestimaressa invenção,porque“aprópriamáquinaavapor [...]nãoprovocou

nenhuma revolução industrial.Oque sedeu foi o contrário: a criaçãodasmáquinas-ferramentas é

quetornounecessáriaamáquinaavaporrevolucionada”(449).

E,emboraMarxnãomencioneo fato,ocarvãotambémeliminouaagudarivalidade,quehavia

limitadoatéentãoodesenvolvimentoindustrial,entreousodaterraparaaproduçãodealimentose

ousodesuabiomassacomofontedeenergia.Enquantoamadeiraeocarvãovegetalforamasfontes

primárias de combustível, a disputa pela terra aumentou o custo tanto dos alimentos quanto dos

combustíveis.Comocarvão,foipossívelextrairaenergiaarmazenadanoperíodocarboníferoe,como

petróleo,aquelaarmazenadanoperíodocretáceo.Issoliberouaterraparaaproduçãodealimentose

outrasformasdematéria-primaepermitiuqueaindústriaseexpandisseusandocombustíveisbaratos,

com todo o tipo de consequência tanto para a urbanização quanto, é claro, para o modo como

vivemos nossa vida neste exatomomento. É interessante notar que, em tempos recentes, uma das

respostas para a escassez de combustíveis tem sido recorrer à terra para produzi-los (etanol, em

particular),e issotevecomoconsequênciaprevisívelorápidoaumentodopreçodosalimentosede

outras matérias-primas (com todo os tipos de consequências sociais, como rebeliões e fome; até

mesmoopreçodomeubagelsubiutrintacentavos).Estamosrecriandoasbarreirasàacumulaçãodo

capital que amudançaparaos combustíveis fósseis contornou com tanto sucessono fimdo século

XVIIIaorevolucionarnossarelaçãocomanatureza.

Mas a marca da revolução industrial foi mais do que uma simples mudança na produção de

energia.“Pormeiodadivisãodotrabalho,reapareceacooperaçãopeculiaràmanufatura,masagora

como combinação de máquinas de trabalho parciais”. Há uma evolução significativa nas relações

sociais.

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Namanufatura,ostrabalhadores,individualmenteouemgrupos,têmdeexecutarcadaprocessoparcialespecíficocomsuaferramenta

manual. Se o trabalhador é adaptado ao processo, este último também foi previamente adaptado ao trabalhador. Esse princípio

subjetivo da divisão deixa de existir na produção mecanizada. O processo total é aqui considerado objetivamente, em si mesmo,

analisadoemsuas fasesconstitutivas,eoproblemadeexecutarcadaprocessoparcialedecombinarosdiversosprocessosparciaisé

solucionadomedianteaaplicaçãotécnicadamecânica,daquímicaetc.

O resultado é a evolução de “um sistema articulado que reúne tanto máquinas de trabalho

individuais de vários tipos quanto diversos grupos dessas máquinas”, sistema que é tanto mais

perfeito“quantomaiscontínuoforseuprocessototal”(454).

Devemos ressaltar alguns pontos nessa afirmação. Em primeiro lugar, a importância da

continuidade no processo de produção, que é crucial por ser requerida pela continuidade da

circulaçãodo capital, e amaquinaria ajuda a realizar isso.Em segundo lugar,noteque as relações

sociais são transformadas juntamente com as relações técnicas. Em terceiro lugar, a análise do

processo de produção em suas fases constitutivas acarreta uma transformaçãomental que faz uma

ciência (a química, por exemplo) gerar tecnologia. Em outras palavras, há uma evolução nas

concepçõesmentais.Aomenos três dos elementos examinados na nota de rodapé entram em ação

aqui,aomesmotempoquearelaçãocomanaturezaeasexigênciaslocaissealteramàmedidaqueo

carvãosubstituiasquedasd’águaeabiomassacomofonteprimáriadeenergia.Éemparágrafosdesse

tipo que vemos como funciona o raciocínio de Marx na nota de rodapé. Diferentes elementos

confluem perfeitamente para formar uma narrativa convincente de coevolução, mais do que de

causação.Oresultadoéum“sistemaarticuladodemáquinasdetrabalhomovidasporumautômato

central”. Nesse sistema, diz ele, “a produçãomecanizada atinge sua formamais desenvolvida. No

lugardamáquinaisoladasurge,aqui,ummonstromecânico”–comovimos,Marxadoraessetipode

imagem–,“cujocorpoocupafábricasinteirasecujaforçademoníaca,inicialmenteescondidasobo

movimentoquasesolenementecomedidodeseusmembrosgigantescos,irrompenoturbilhãofurioso

e febril de seus incontáveis órgãos de trabalho”. No entanto, Marx lembra que “as invenções de

Vaucanson,Arkwright,Wattetc.sópuderamserrealizadasporqueessesinventoresencontraramàsua

disposição, previamente fornecida pelo período manufatureiro, uma quantidade considerável de

hábeistrabalhadoresmecânicos”.Ouseja,nãohaverianovastecnologiassemaexistênciapréviadas

necessárias relações sociais e habilidades laborais.Uma parte desses trabalhadores “era formada de

artesãos autônomosdediversasprofissões”, enquanto “outraparte estava reunida emmanufaturas”

(455).

Mas o processo evolucionário teve um impulso próprio. “Com o aumento das invenções e a

demanda cada vezmaiorpormáquinas recém-inventadas,desenvolveram-se cada vezmais,porum

lado,acompartimentaçãodafabricaçãodemáquinasemdiversosramosautônomose,poroutrolado,

a divisão do trabalho no interior dasmanufaturas de construção demáquinas.”As relações sociais

estavam em pleno processo de transformação. “Na manufatura, portanto, vemos a base técnica

imediatadagrandeindústria.Aquelaproduziuamaquinaria,comaqualestasuprassumiu[aufhob]os

sistemas artesanal e manufatureiro nas esferas de produção de que primeiro se apoderou.” Após

“revolucionar essa base – encontrada já pronta e, depois, aperfeiçoada de acordo com sua antiga

forma”–,osistemafinalmentecriou“parasiumanova,apropriadaaseuprópriomododeprodução”

(456). Em suma, o capitalismo descobriu uma base tecnológica mais adequada a suas regras de

circulação.

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Esseé,ameuver,umargumentoevolucionário,nãodeterminista.Ascontradiçõesdocapitalismo,

naformaemquesurgemnoperíodomanufatureiroeartesanal,nãopodiamserresolvidascombase

nastecnologiasexistentes.Houve,portanto,umapressãoconsiderávelparaquesecriasseumanova

combinação de tecnologias. Marx conta como o capitalismo criou “para si uma nova [base],

apropriadaa seuprópriomododeprodução”.Mas todoesseprocessopermaneceucondicionadoao

“crescimentodeumacategoriadetrabalhadoresque,dadaanaturezasemiartísticadeseunegócio,só

podiaseraumentadademodogradual,enãoaossaltos.Emcertograudedesenvolvimento,porém,a

grandeindústriaentroutambémtecnicamenteemconflitocomsuabaseartesanalemanufatureira”

(456).Aforçaexpansionistadocapitalencontrouumlimite.Osistemacapitalistachegouaoponto

em que necessitava de trabalhadores qualificados para construir as máquinas que facilitariam seu

desenvolvimento, ao mesmo tempo que sua própria base tecnológica servia como impulso para a

capacidadedeconstruirmáquinas.

Maseradifícildeteroprocessoevolucionário.“Orevolucionamentodomododeproduçãonuma

esferada indústria condiciona seu revolucionamento emoutra.”Note aqui ousoqueMarx fazdo

termo“mododeprodução”.Emcertaspassagens,comonoparágrafoiniciald’Ocapital, eleusaesse

termoparacontrapor,digamos,osmodosdeproduçãocapitalistaefeudal.Mas,aqui,otermoganha

um significado muito mais específico: o modo de produção numa indústria particular. Esses dois

significadosestãorelacionados:omododeproduçãonumaindústriaparticularcrianovasformasde

máquinasquesãoadequadasaomododeproduçãocapitalistaentendidoemseusentidomaisamplo.

Aqui,noentanto,estamosfalandodetransformaçõesespecíficasnosmodosdeproduçãoemesferas

particularesdaindústriaedasinteraçõesdinâmicasentreelas.

Issovale,antesdemaisnada,paraosramosdaindústriaisoladospeladivisãosocialdotrabalho–cadaumdelesproduzindo,porisso,

umamercadoria autônoma–,porémentrelaçados como fasesdeumprocessoglobal.Assim, a fiaçãomecanizada tornounecessário

mecanizar a tecelagem, e ambas tornaram necessária a revolução mecânico-química no branqueamento, na estampagem e no

tingimento.

Oalastramento entre diferentes segmentos de umprocesso de produção criamudanças que se

reforçammutuamente.Alémdisso,“arevoluçãonomododeproduçãodaindústriaedaagricultura

provocou também uma revolução nas condições gerais do processo de produção social, isto é, nos

meios de comunicação e transporte” (457). Isso introduz um tema que acho extremamente

interessante emMarx: a importânciadaquiloqueele chamanosGrundrisse de “anulaçãodo espaço

pelo tempo”

[d]

. A dinâmica evolucionária do capitalismo não é neutra em relação a sua forma

geográfica. Já vimos pistas disso na discussão sobre a urbanização, a concentração provocada pela

introduçãodamáquinaavaporealiberdadedemovimentopropiciadapelovaporcomoforçamotriz.

Aconectividadenomercadomundialtambémfoialterada.

Assim, abstraindo da construção de veleiros, que foi inteiramente revolucionada, o sistema de comunicação e transporte foi

gradualmenteajustadoaomododeproduçãodagrandeindústriapormeiodeumsistemadenaviosfluviaisetransatlânticosavapor,

ferroviasetelégrafos.Masasterríveisquantidadesdeferroquetinhamdeserforjadas,soldadas,cortadas,furadasemoldadasexigiam,

porsuavez,máquinasciclópicas,cujacriaçãoestavaalémdaspossibilidadesdaconstruçãomanufatureirademáquinas.

Eaquisurgeoúltimoelodaargumentação:“Agrandeindústriateve,pois,deseapoderardeseu

meio característico de produção, a própria máquina, e produzir máquinas por meio de máquinas.

Somente assim ela criou sua base técnica adequada e se firmou sobre seus próprios pés” (457-8).A

capacidadedeproduzirmáquinascomaajudademáquinasé,emsuma,abasetécnicadeummodo

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de produção capitalista absolutamente maduro e dinâmico. Em outras palavras, o crescimento da

engenhariaedaindústriademáquinas-ferramentaséafasefinaldeumarevoluçãoquecrioua“base

técnica adequada” para o modo de produção capitalista em geral. “Comomaquinaria, o meio de

trabalhoadquireummododeexistênciamaterialquecondicionaasubstituiçãodaforçahumanapor

forçasnaturaisedarotinabaseadanaexperiênciapelaaplicaçãoconscientedaciêncianatural.”Isso

acarretaumarevoluçãonãoapenasdasconcepçõesmentais,mastambémdesuaaplicação.

Namanufatura,aarticulaçãodoprocessosocialdetrabalhoépuramentesubjetiva,combinaçãodetrabalhadoresparciais;nosistema

damaquinaria,agrande indústriaédotadadeumorganismodeprodução inteiramenteobjetivo,queotrabalhadorencontra jádado

comocondiçãomaterialdaprodução.(459)

Anaturezadacooperaçãoéfundamentalmentealterada,porexemplo.

Detive-me nesse item para mostrar que a propagação sinérgica das revoluções na tecnologia

baseia-se,eaomesmotempoprovocatransformações,nasrelaçõessociais,nasconcepçõesmentaise

nos modos de produção (em sentido concreto e particular), assim como nas relações espaciais e

naturais.O surgimentodessenovo sistema tecnológico adequado aomododeprodução capitalista

(em sentido amplo) é umahistória evolucionária emque todos os elementos presentes na nota de

rodapédeMarxsedesenvolvememconjunto.

No segundo item do capítulo,Marx levanta a seguinte questão: como o valor é transferido da

máquinaparaoproduto?Osoutrosdoismodosdeaquisiçãodemais-valorrelativo–pelacooperação

e pela divisão do trabalho – não custam nada ao capital, exceto algum gasto fortuito. Mas uma

máquina é uma mercadoria que tem de ser comprada no mercado. Isso é muito diferente, por

exemplo,deumasimplesreconfiguraçãodadivisãodotrabalhonafábrica.Asmáquinastêmumvalor,

eessevalortemdeserpago.Ovalorincorporadonamáquinatemdesertransferidodealgummodo

“aoprodutopara cujaprodução ela serve”,mesmoquenãoocorranenhuma transferência físicade

matéria (460). Inicialmente,Marx apelapara a ideiadadepreciação linear. Se amáquinaduradez

anos,umdécimodeseuvaloréincorporadoaoprodutoacadaanodesseperíodo.Maseleestabelece

umlimiteimportanteparaodesenvolvimentodamaquinaria:

Consideradoexclusivamentecomomeiodebarateamentodoproduto,olimiteparaousodamaquinariaestádadonacondiçãodeque

suaprópriaproduçãocustemenostrabalhodoqueotrabalhoquesuaaplicaçãosubstitui.Paraocapital,noentanto,esse limitese

expressadeformamaisestreita.Comoelenãopagaotrabalhoaplicado,masovalordaforçadetrabalhoaplicada,ousodamáquina

lheérestringidopeladiferençaentreovalordamáquinaeovalordaforçadetrabalhoporelasubstituída.(466)

Isso supõe (como amaioria dos economistas tende a fazer) que os capitalistas tomamdecisões

racionais. Se umamáquina é cara e você economizamuito pouco trabalho com ela, então por que

comprá-la?Quantomaisbarataamáquinaemaiscarootrabalho,maioréoincentivoparaempregar

maquinaria.Ocálculoqueocapitalistatemdefazer,portanto,éentreovalorgastoparacomprara

máquina e o valor economizado no trabalho empregado (capital variável). Esse limite para o

desenvolvimento da maquinaria é tipicamente imposto pelas leis coercitivas da concorrência. Os

capitalistasquecomprammáquinascaras,maseconomizampoucotrabalhocomelas,serãoexcluídos

domercado.

Quantocapitalvariáveléeconomizadodepende,noentanto,dovalordaforçadetrabalho.“Isso

explicaporquehoje,naInglaterra,sãoinventadasmáquinasquesóencontramaplicaçãonaAmérica

doNorte”(466).NaAméricadoNorte,arelativaescassezdetrabalhoencareciaocustocomamão

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deobraeestimulavaoempregodemáquinas,aopassoquenaGrã-Bretanhaoexcedentedemãode

obrasignificavatrabalhomaisbaratoe,portanto,menosincentivoaousodemáquinas.Essecálculo

dascondiçõeslimitantesdoempregodamaquinariaéimportantetantonateoriaquantonaprática.

HáexemplosnaChina,onde,porabundânciademãodeobra,umartigoqueéfeitonumamáquina

caraesofisticadanosEstadosUnidosfoifragmentadoemprocessosdetrabalhomenores,quepodem

ser feitos à mão. Em vez de empregar uma máquina muito cara e 20 trabalhadores nos Estados

Unidos, você emprega 2mil trabalhadores naChina e ferramentasmanuais. Esse exemplo refuta a

ideia de que o capitalismo marcha inevitavelmente em direção a uma mecanização e a uma

sofisticaçãotecnológicacadavezmaiores.Dadaaimportânciadascondiçõeslimitanteseasrelações

devalor,todosostiposdeoscilaçãopodemocorrernodesenvolvimentodastecnologiasmecânicas.

Noterceiroitem,Marxconsideratrêsconsequênciasdoempregodamáquinaparaotrabalhador.

A maquinaria facilitou a “apropriação de forças de trabalho subsidiárias pelo capital”, o “trabalho

feminino e infantil”. De fato, as tecnologias mecânicas destruíram a base técnica que existia no

períodoartesanal.Tornou-semuitomaisfácilempregarmulheresecriançassemqualificaçãotécnica.

Isso trouxe uma série de consequências. Foi possível substituir o salário familiar pelo salário

individual. Este pôde ser reduzidoenquanto salário familiar, com a entrada das mulheres e das

crianças no mercado de trabalho, pôde permanecer constante. Esse foi um tema interessante e

persistente na história do capitalismo. Nos Estados Unidos, desde os anos 1970, os salários

individuais caíram ou permaneceram praticamente constantes em termos reais, mas os salários

familiares tenderam a crescer àmedida quemaismulheres começavam a trabalhar.Oque a classe

capitalistaganhacomissosãodoistrabalhadorespelopreçodeum.Omilagreeconômicobrasileiro

nosanos1960foiigualmentedominadoporumadiminuiçãocatastróficadossaláriosindividuaissob

a ditadura militar, mas os salários familiares conseguiram se estabilizar por causa não apenas do

trabalho das mulheres, mas também das crianças (nessa época, o trabalho infantil começou a ser

empregado nasminas de ferro). Isso levou ao famoso comentário do presidente EmílioGarrastazu

Médicideque“aeconomia”(eledeveriaterditoaclassecapitalista)“vaibem,masopovovaimal”.

Hámuitas circunstâncias históricas emque os capitalistas apelarampara essa solução para ganhar

mais-valor.

Issotrazàtonatambémaquestãodarelaçãoentreossaláriosindividualefamiliar.Esteúltimoé

necessáriopara a reproduçãoda classe trabalhadora.Masquemassumeo custode sua reprodução?

Marx, comomuitos apontaram, não émuito sensível a questões desse gênero,mas numa nota de

rodapéelereconheceaimportânciadarelaçãoentretrabalhodomésticoeacompraevendadeforça

detrabalhonomercado.Seamulherparticipadaforçadetrabalho,

énecessáriosubstituirpormercadoriasprontasostrabalhosdomésticosqueoconsumodafamíliaexige,comocosturar,remendaretc.

Aumdispêndiomenorde trabalhodomésticocorresponde,portanto,umdispêndiomaiordedinheiro,demodoqueos custosde

produçãodafamíliaoperáriacrescemecontrabalançamareceitaaumentada.Aissoseacrescentaqueaeconomiaeaeficiêncianousoe

napreparaçãodosmeiosdesubsistênciasetornamimpossíveis.(469,nota121)

A análise do salário familiar traz outras questões.Na época deMarx, eramuito comumque o

homem,emespecialnospaísescomqueMarxtinhafamiliaridade,distribuísseotrabalhoparatodaa

família. Daí resultou o “gang system” [sistema de turmas] para a provisão de trabalho. Um homem

adultopodiaserresponsávelpelofornecimentodaforçadetrabalhodeváriascrianças,talvezdeuma

mulhereumairmã,assimcomodesobrinhoseoutrosparentes.NaFrança,omercadodetrabalhoera

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formadocomfrequênciaporumgangsystememqueafigurapatriarcalcomandavaotrabalhodetodos

ao seu redor e entregava esse trabalho a seus empregadores, que, por sua vez, deixavam a cargo

daquela figura patriarcal a remuneração do trabalho e a distribuição dos benefícios. Sistemas desse

tipo não são raros na Ásia e podem ser encontrados na organização de grupos de imigrantes na

Europa e na América do Norte. Como aponta Marx na nota de rodapé, os piores aspectos desse

sistema se evidenciaram (e continuam a se evidenciar) no tráfico de crianças e no trabalho em

condições análogas à escravidão. Baseando-se em grande medida nos relatórios dos inspetores de

fábrica (imbuídos de umamoralidade vitoriana queMarx não critica) e no relato de Engels emA

situaçãodaclassetrabalhadoranaInglaterra

[e]

,Marxfocaa“corrupçãomoraldecorrentedaexploração

capitalista do trabalho demulheres e crianças” e as débeis tentativas da burguesia de conter essa

degradação moral por meio da educação (473). Assim como no caso das Leis Fabris, há uma

contradiçãoentreoqueasleiscoercitivasdaconcorrênciaobrigamoscapitalistasindividuaisafazer

eoqueoEstadotentarealizarpormeiodaeducaçãodascrianças.Marx,portanto,levantaquestões,

emborademodopoucoapropriado,sobreareproduçãodavida(outroelementoimportante,apesarde

negligenciado,danota89).

A segundaparte (b)desse itemtratado“prolongamentoda jornadade trabalho”.Amaquinaria

criadefatonovascondições,nãoapenaspermitindoaocapitalestendera jornadadetrabalho,mas

criando “novos incentivos” para isso. “Como capital, e como tal o autômato tem no capitalista

consciência e vontade, a maquinaria é movida pela tendência a reduzir ao mínimo as barreiras

naturais humanas, resistentes, porém elásticas.” A máquina é concebida, em parte, para vencer a

resistênciado trabalhador,que é, “de todomodo, reduzidapela aparente facilidadedo trabalhona

máquinaepelamaiorductibilidadeeflexibilidadedoelementofemininoeinfantil”(476).Éevidente

quetemosaquiumtípicopreconceitovitoriano.Naverdade,asmulheresnãoeramnadadóceis,nem

ascrianças.

Mas,aqui,ocernedoproblemaéatemporalidadeeacontinuidadedaprodução.Quantomaisa

máquina é usada,mais ela se desgasta; isso explica o forte incentivo para que asmáquinas fossem

empregadasomaisrápidopossível.Paracomeçar,“odesgastematerialdamáquinaéduplo.Umdeles

decorredeseuuso”eooutrodeseunãouso,istoé,quandoamáquinasimplesmenteenferruja.“Mas,

alémdodesgastematerial,amáquinasofre,porassimdizer,umdesgastemoral.”Essetermosempre

mepareceestranho.OqueMarxquerdizeré“obsolescênciaeconômica”.Secompreiumamáquina

por2milhõesdedólaresnoanopassadoe,nesteano,todososmeusconcorrentespodemcomprá-la

por1milhão(ou,oquedánomesmo,pagar2milhõesdedólaresporumamáquinaduasvezesmais

eficientedoqueaminha),entãoovalordasmercadoriasproduzidascairáeperdereimetadedovalor

daminhamáquina.“Emambososcasos,seuvalor,pormais jovemevigorosaqueamáquinaainda

possaser,jánãoédeterminadopelotempodetrabalhoefetivamenteobjetivadonelamesma,maspelo

tempodetrabalhonecessárioàsuaprópriareproduçãoouàreproduçãodamáquinaaperfeiçoada.”O

perigoéqueamáquinasedesvalorize“emmaioroumenormedida”(477).Para seprotegercontra

esse perigo, os capitalistas são levados a usar sua maquinaria o mais rápido possível (se possível,

mantendo-a em uso 24 horas por dia). Isso significa estender a jornada de trabalho (ou, como

veremos,introduzirotrabalhoporturnoseossistemasderevezamento).Máquinasempregadaspara

estenderajornadadetrabalhoestimulamanecessidadedeestendê-laaindamais.

Oscapitalistas sãoapaixonadospelasmáquinasporqueelas sãoumafontedeexcedenteemais-

valorrelativo.Ofetichedeum“ajustetecnológico”[technologicalfix] torna-sealgoarraigadoemseu

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sistemadecrenças.Noentanto,asmáquinastambémsãofontedeuma“contradiçãoimanente,jáque

doisfatoresquecompõemomais-valorfornecidoporumcapitaldedadagrandeza,umdeles,ataxa

demais-valor,aumentasomentenamedidaemquereduzooutrofator,onúmerodetrabalhadores”

(480).E,comoamassademais-valor,tãocrucialparaocapitalista,dependedataxademais-valore

donúmerode trabalhadores, as inovaçõesquepoupamtrabalhopodemnãomelhorara situaçãodo

capitalista.Dessepontodevista,substituirtrabalhadoresporinovaçõestecnológicasnãopareceuma

boaideia,poissignificariaeliminardaproduçãoosverdadeirosprodutoresdevalor.Essacontradição

étratadaemdetalhesnoLivroIIId’Ocapital,emqueasdinâmicasdainovaçãotecnológicasãovistas

comodesestabilizadorasefontedesériastendênciasacrises.

Mas o incentivo para que os capitalistas continuem a inovar é todo-poderoso. Apesar das

contradições,abuscacompetitivapelaefêmeraformademais-valorrelativoéirresistível.Emresposta

às leis coercitivas da concorrência, os capitalistas individuais comportam-se de ummodo que não

coincidenecessariamentecomosinteressesdaclassecapitalista.Masasconsequênciassociaisparao

trabalhotambémpodemsercatastróficas.

Se,portanto,aaplicaçãocapitalistadamaquinariacria,porumlado,novosepoderososmotivosparaoprolongamentodesmedidoda

jornada de trabalho, revolucionando tanto omodo de trabalho como o caráter do corpo social de trabalho e, assim, quebrando a

resistência a essa tendência, ela produz, por outro lado, em parte mediante o recrutamento para o capital de camadas da classe

trabalhadoraqueanteslheeraminacessíveis,emparteliberandoostrabalhadoressubstituídospelamáquina,umapopulaçãooperária

redundante,obrigadaaaceitaraleiditadapelocapital.Daíestenotávelfenômenonahistóriadaindústriamoderna,asaber,dequea

máquina jogapor terra todas as barreirasmorais enaturais da jornadade trabalho.Daí oparadoxo econômicodequeomeiomais

poderosoparaencurtarajornadadetrabalhoseconvertenomeioinfalíveldetransformartodootempodevidadotrabalhadorede

suafamíliaemtempodetrabalhodisponívelparaavalorizaçãodocapital.(480)

PodemosentenderagoraporqueJohnStuartMillestavacerto.

A terceira parte (c) desse item trata explicitamente da intensificação. Antes mencionada de

passagem (por exemplo, na definição do tempo de trabalho socialmente necessário), a questão é

devidamentetratadaaqui.Oscapitalistaspodemusaratecnologiamecanizadaparaalterareregulara

intensidade e o ritmo do processo de trabalho. A redução da chamada porosidade da jornada de

trabalho (momentos em que o trabalho não é realizado) é o alvo principal. Quantos segundos o

trabalhador pode desperdiçar durante a jornada de trabalho? Se trabalham com ferramentas, os

trabalhadorespodem largá-las epegá-lasnovamente.Podemtrabalhar emseupróprio ritmo.Coma

tecnologiamecanizada,avelocidadeeacontinuidadesãodeterminadaspelosistemadamáquina,e

os trabalhadores têm de se adequar ao movimento da linha de produção, por exemplo (como em

Temposmodernos, de Charles Chaplin). Ocorre uma inversão nas relações sociais: os trabalhadores

tornam-seapêndicesdamáquina.Umdosgrandesavançosocorridosapós1850,quandoaburguesia

industrialaceitouqueteriadeconvivercomasLeisFabrisecomaregulaçãodaduraçãodajornada

de trabalho, foi os capitalistas terem descoberto que jornadas de trabalho mais curtas eram

compatíveiscomintensidadesaumentadas.Essereposicionamentodotrabalhadorcomoumapêndice

doprocessodetrabalhoéextremamenteimportanteparaoquevemaseguir.

[a]CartadeMarxaEngels,19dejunhode1862(MEW,cit.,v.30,p.249).Traduzidaaquidooriginalalemão.(N.T.)

[b]RiodeJaneiro,BertrandBrasil,1988.(N.T.)

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[c]3.ed.,RiodeJaneiro,Objetiva,2009.(N.T.)

[1]JohnGray,“TheWorldisRound”,TheNewYorkReviewofBooks,v.52,n.13,11ago.2005.

[2]Ed.ampl.,Princeton,PrincetonUniversityPress,2000.

[3]NovaYork,Viking,2007.

[d]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.432.(N.E.)

[e]SãoPaulo,Boitempo,2008.(N.E.)

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8.Maquinariaegrandeindústria

Nocapítuloanterior, sugeriqueolhássemoso longocapítulosobreamaquinariapela lentedanota

89,prestandoparticularatençãoaomodocomoa“tecnologiadesvelaaatitudeativadohomemem

relação à natureza, o processo imediato de produção de sua vida e, com isso, também de suas

condiçõessociaisdevidaedasconcepçõesespirituaisquedelasdecorrem”.Éinteressanteque,aoler

essecapítulo,vocêobservequeMarxestabeleceinter-relaçõesentreessesdiferentes“momentos”não

apenas para entender a evolução das tecnologias capitalistas, mas também para mostrar o que o

estudo desse processo evolutivo revela sobre o modo de produção capitalista visto como uma

totalidade(umconjuntooujunçãodeelementosinterativos).Sevocêlê-loassim,veráumconjunto

dedeterminaçõesmuitomaisricodoqueumasimpleshistóriadasmudançastecnológicas.

Paraaleituradessecapítulogigantesco(emqueémuitofácilseperder),tambémdissequeseria

útil prestar atenção aos títulos dos itens para ter uma ideia do dinamismo da argumentação.

Considere a história até aqui.Nosprimeiros itens,Marx explicou comoo capitalismodesenvolveu

uma base tecnológica ímpar, revolucionando as tecnologias associadas ao artesanato e à indústria

manufatureira. Essa base se formoupela produção demáquinas pormáquinas e pela associação de

muitasmáquinasnumsistemafabril.Masmáquinassãomercadoriasquetêmdeserpagas,portanto

seuvalortemdecircularcomocapitalconstanteduranteseutempodevida.Seessetempodevidaé

dedezanos,entãoumdécimodovalordamáquinaéincorporadonoprodutoacadaano.Masisso

impõe um limite – o valor depreciado damáquina tem de ser menor do que o valor do trabalho

substituídoporela.Issocriaapossibilidadedeumdesenvolvimentogeográficodesigual.Seocustodo

trabalho é maior nos Estados Unidos do que na Grã-Bretanha, então o incentivo para empregar

maquinarianosEstadosUnidosémaior.OpoderdossindicatosnaAlemanhaOcidentalapartirde

meadosdadécadade1970garantiualtossalários,oqueprovocouumforteincentivoparaainovação

tecnológica. Assim, a vantagem tecnológica permitiu à Alemanha Ocidental ganhar mais-valor

relativocomrelaçãoaorestodomundo,masaomesmotempoproduziuumdesempregoestrutural.

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Noterceiroitem,Marxexaminouasimplicaçõesparaotrabalhador(arelaçãoentretecnologiase

relações sociais). A transformação de ofícios qualificados em supervisão de máquinas permitiu o

emprego de mulheres e crianças de um modo que antes não era possível. Isso possibilitou a

substituição do trabalho familiar (salário familiar) pelo trabalho individual (salário individual) e

economiaparaocapitalista,mastevegrandesconsequênciasparaasestruturasfamiliareseasrelações

de gênero e provocoumudanças no papel e na forma das economias domésticas. A introdução da

maquinaria, porém, também criou um incentivo para prolongar a jornada de trabalho e, com isso,

enfrentaroproblemada“depreciaçãomoral”(obsolescênciaeconômica)eoperigodadesvalorização

damaquinaria antiga emrazãoda introduçãodemaquinarianova emais eficiente.Oscapitalistas

esforçaram-se, portanto, para recuperar omais rápidopossível o valor incorporadonasmáquinas, o

que implicava usá-las 24 horas por dia, se possível. A maquinaria também pôde ser usada para

intensificaroprocessodetrabalho.Oscapitalistaspuderamassumirocontroletantodacontinuidade

quandodavelocidadedoprocessodetrabalhoe,assim,reduziraporosidadedajornadadetrabalho.A

intensificação surgiu como uma importante estratégia capitalista para tirar mais mais-valor do

trabalhador.Essaéahistóriaatéaqui.

Itens4a10:Trabalhadores,fábricas,indústria

Osúltimosseteitensdocapítulosobreamaquinariaaprofundameampliamnossaperspectivaa

respeitodoquepodeser“revelado”sobreocapitalismoapartirdoexamedaevoluçãotecnológica.No

item4,Marxexaminaafábricaperse.Estaéoobjetoprincipaldesuapreocupação,nãoapenascomo

uma coisa de caráter técnico, mas também como uma ordem social. Devo fazer aqui, contudo,

algumas advertências críticas. A experiência de Engels com o industrialismo de Manchester foi

crucialesuplementadacomosescritosdeBabbageeUre,osprincipaisideólogospró-capitalistasna

épocaepromotoresdosprincípiosdegerenciamentoindustrialeficiente.Marxtendeauniversalizaro

queaconteceuemManchestercomosefosseaformaacabadadoindustrialismocapitalistae,ameu

ver,aceitaumpoucodemaisas ideiasdeBabbageeUre.SeEngels tivesse idoparaBirmingham,o

argumento de Marx teria sido muito diferente. A estrutura industrial na cidade era de pequena

escala,masestavareunidadeformaapoupardeslocamentos.Eramaisorientadaparaosofícios,com

oficinas de armas, joias e produtos metalúrgicos, aparentemente dotada de grande eficiência e

caracterizada por relações de trabalho muito diferentes das encontradas nas imensas fábricas de

algodão de Manchester. Evidentemente, Marx conhecia muito pouco daquilo que poderíamos

chamardemodelobirminghamnianode industrialismo capitalista, por issonão foi capazde traçar

uma distinção importante na história do desenvolvimento capitalista. Desde a década de 1960, o

industrialismo sul-coreano é do tipo manchesteriano, mas o de Hong Kong é mais do tipo

birminghamniano.ABaviera,achamadaTerceiraItáliaeoutrosdistritosindustriaisorganizadosde

modosemelhante(oValedoSilícioéumcasoparticular)foramextremamenteimportantesnasfases

recentes do industrialismo, e são muito diferentes das formas industriais de tipo manchesteriano

instaladasnodeltadoRiodasPérolas,naChina.Aquestão,noentanto,équeomundoindustrialnão

podiaenãopodeserreduzidoàsfábricasdeManchester.AanálisedeMarxsobreasfábricas,ainda

quesejaconvincente,éunilateral.

Eleobserva:

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coma ferramentade trabalho, tambéma virtuosidade em seumanejo é transferidado trabalhadorpara amáquina.A capacidadede

rendimentodaferramentaéemancipadadaslimitaçõespessoaisdaforçahumanadetrabalho.Comisso,supera-seabasetécnicasobre

aqualrepousaadivisãodotrabalhonamanufatura.Nolugardahierarquiadetrabalhadoresespecializadosquedistingueamanufatura,

surgenafábricaautomáticaatendênciaàequiparaçãoouaonivelamentodostrabalhosqueosauxiliaresdamaquinariadevemexecutar;

nolugardasdiferençasgeradasartificialmenteentreostrabalhadores,vemospredominarasdiferençasnaturaisdeidadeesexo.

Adivisãodotrabalhoquereaparecenafábricaautomáticaconsiste,antesdetudo,nadistribuiçãodostrabalhadoresentreasmáquinas

especializadas.(491-2)

Ostrabalhadorespodemirdeumamáquinaparaoutra.Elesse tornam,de fato, supervisoresde

máquinas.

Marxdescreveadesqualificaçãoqueacompanhaoadventodosistemafabril,demodoquepouco

apouco todo trabalho se tornahomogêneo.Sevocêpodevigiar estamáquina, tambémpodevigiar

aquela.Osignificadocontínuodadesqualificaçãoatravésdahistóriadocapitalismofoiobjetodeum

debate considerável em tempos mais recentes (a começar por Trabalho e capital monopolista: a

degradaçãodotrabalhonoséculoXX,deHarryBraverman

[a]

,queprovocouumasériedecomentáriose

estudos a partir dos anos 1970). Além disso, “como o movimento total da fábrica não parte do

trabalhador e sim da máquina, é possível que ocorra uma contínua mudança de pessoal sem a

interrupçãodoprocessodetrabalho”(493).Oresultadoéqueostrabalhadoressãoreduzidosàtarefa

vitalíciade servir amáquinasparticulares.Assim,o trabalhador e as relações sociaismudamcoma

atividadelaboral,detalmodoqueostrabalhadoressetornammerosapêndicesdasmáquinas.

Namanufatura eno artesanato, o trabalhador se serveda ferramenta;na fábrica, ele serve àmáquina.Lá, omovimentodomeiode

trabalhoparte dele; aqui, ao contrário, é ele quem temde acompanhar omovimento.Namanufatura, os trabalhadores constituem

membros de ummecanismo vivo.Na fábrica, tem-se ummecanismomorto, independente deles e ao qual são incorporados como

apêndicesvivos.[...]Mesmoafacilitaçãodotrabalhosetornaummeiodetortura,poisamáquinanãolivraotrabalhadordotrabalho,

masseutrabalhodeconteúdo.[...]nãoéotrabalhadorquemempregaacondiçãodetrabalho,mas,aocontrário,sãoestasúltimasque

empregamotrabalhador;porém,apenascomamaquinariaessainversãoadquireumarealidadetecnicamentetangível.Pormeiodesua

transformaçãonumautômato,oprópriomeiode trabalho se confronta,duranteoprocessode trabalho, como trabalhador como

capital, como trabalho morto a dominar e sugar a força de trabalho viva. A cisão entre as potências intelectuais do processo de

produçãoeotrabalhomanual,assimcomoatransformaçãodaquelasempotênciasdocapitalsobreotrabalho,consuma-se,comojá

indicadoanteriormente,nagrandeindústria,erguidasobreabasedamaquinaria.(494-5)

Em outras palavras, as concepçõesmentais são separadas do trabalho físico. Elas ficam com os

capitalistas – são eles que concebem as coisas. Os trabalhadores não precisam pensar, apenas dar

assistênciaàsmáquinas.Issopodenãoserverdadenaprática,éclaro,masoqueimportaéqueessaé

a estrutura pela qual a classe capitalista luta dia e noite e, por conseguinte, toda a estrutura das

concepçõesmentais, das relações sociais, da reprodução da vida, da relação com a natureza etc. é

transformadasegundoposiçõesdeclasse.

Ahabilidadedetalhistadooperadordemáquinas individual,esvaziado,desaparececomocoisadiminutaesecundáriaperanteaciência

[leia-seconcepçõesmentais],peranteasenormespotênciasdanatureza[leia-serelaçãocomanatureza]eotrabalhosocialmassivoque

estãocorporificadasnosistemadamaquinariaeconstituem,comesteúltimo,opoderdo“patrão”(master).(495)

Mas essa transformação se baseia na capacidade de degradar de tal maneira a situação dos

trabalhadoresqueelesacabamsetransformandoemmerosapêndicesdasmáquinas,incapazesdeusar

seu podermental e sujeitos ao “poder autocrático” (496) e às regras despóticas dos capitalistas. A

habilidaderesideagoranaquelesqueprojetamasmáquinas,nosengenheirosetc.,quesetornamum

pequeno grupo de trabalhadores altamente especializados. Mas em contrapartida, como Marx

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observou anteriormente, surge “uma classe superior de trabalhadores, com formação científica ou

artesanal,situadaàmargemdocírculodosoperáriosfabrisesomenteagregadaaeles”(492).

Transformações desse tipo só poderiam gerar resistência, em particular dos trabalhadores

qualificados.Esseéofocodoitem5,quetratada“lutaentreotrabalhadoreamáquina”.Oludismo

(assimbatizadoemreferênciaaumapersonagemficcionalchamadaNedLudd)foiummovimento

de protesto contra a desqualificação e a perda de trabalho em que os trabalhadores destruíam as

máquinas. Eles consideravam que as máquinas eram suas concorrentes, que elas destruíam suas

habilidades e criavam insegurança em relação aos postos de trabalho. Marx, porém, observa uma

evoluçãonapolíticadessarevolta:

A destruição massiva de máquinas que, sob o nome de ludismo, ocorreu nos distritos manufatureiros ingleses durante os quinze

primeirosanosdoséculoXIXequefoiprovocadasobretudopelautilizaçãodotearavapor,ofereceuaogovernoantijacobinodeum

Sidmouth,Castlereaghetc.opretextoparaaadoçãodasmaisreacionáriasmedidasdeviolência.Foiprecisotempoeexperiênciaatéque

otrabalhadordistinguisseentreamaquinariaesuaaplicaçãocapitalistae,comisso,aprendesseatransferirseusataques,antesdirigidos

contraoprópriomeiomaterialdeprodução,paraaformasocialdeexploraçãodessemeio.(501)

Essa afirmação requer uma análise cuidadosa.Marx parece sugerir que o problema não são as

máquinas (a tecnologia), mas o capitalismo (as relações sociais). A partir daí, podemos deduzir

(erroneamente,ameuver)queasmáquinassãoneutrasemsimesmas,portantopoderiamserusadas

na transiçãoparao socialismo.Historicamente,parece serverdadeiroqueos trabalhadorespararam

dequebrarmáquinasesevoltaramcontraoscapitalistasqueutilizavamessatecnologiademodomais

brutal.Mas issopareceviolara linhageraldeargumentaçãodeMarx, sobretudose forconsiderada

minhaleituradanota89,naqualastecnologiaseasrelaçõessociaisestãomutuamenteintegradas.

Deacordocomessaleitura,háumproblemaquedizrespeitoàsprópriasmáquinas,porqueelasforam

concebidas e introduzidas para interiorizar certas relações sociais, concepçõesmentais emodos de

produzir e viver. Certamente, não é uma coisa boa que os trabalhadores se tornem apêndices das

máquinas.Nemaprivaçãodascapacidadesmentaisassociadaaoempregodastecnologiasmecânicas

capitalistas.Assim,quandoLeninlouvouastécnicasfordistasdeprodução,introduziusistemasfabris

semelhantes aos das fábricas norte-americanas e afirmou que a transformação das relações sociais

ocasionada pela revolução era o que importava, ele entrou num terreno perigoso.O próprioMarx

pareceambíguonessaspassagens.Emoutraspartesdesuaobra,eleémaiscríticoacercadanatureza

dastecnologiasemqueocapitalismoassentousuasbases.Astecnologiasdiscutidasnessecapítulosão

adequadasaomododeproduçãocapitalista.Issodeverianoslevarautomaticamenteaoproblemadas

tecnologiasadequadasaomododeproduçãosocialistaoucomunista.Sevocêpegarastecnologiasdo

modo de produção capitalista e tentar construir o socialismo com elas, que resultado você terá?

Provavelmente uma versão diferente de capitalismo, como tendeu a acontecer naUnião Soviética

após a disseminação das técnicas fordistas. Apesar de criticar Proudhon por ter simplesmente se

apropriadodasnoçõesburguesasdejustiça,Marxcorreorisco,aqui,deendossaraapropriaçãodas

tecnologiascapitalistas.

UmaformadedefenderMarxéretornaràsuadescriçãodoadventodocapitalismo.Noperíodo

manufatureiro,odesenvolvimentocapitalistabaseava-senoartesanatofeudaltardioenastecnologias

manufatureiras (ainda que modificando sua forma de organização) e, dadas as condições

conjunturais,nãohaviacomoserdeoutromodo.Apenasmaistardeocapitalismoconseguiudefinir

uma base tecnológica específica. Exatamente domesmomodo, o socialismo foi obrigado a usar as

tecnologiascapitalistasemseuestágiorevolucionárioiniciale,dadasasexigênciasdascircunstâncias

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(guerraedesordemsocial),Leninestavacertoemadotarasmaisavançadasformastecnológicasdo

capitalismopararecuperaraproduçãoe,comisso,protegerarevolução.Mas,considerando-seminha

leitura da nota de rodapé, um projeto socialista revolucionário de longo prazo não pode evitar a

questãodadefiniçãodeumabasetecnológicaalternativa,ouderelaçõesalternativascomanatureza,

relações sociais alternativas, sistemas de produção alternativos, reprodução alternativa da vida

cotidianaeconcepçõesdemundoalternativas.Eessefoi,pensoeu,umdosgraveserrosnahistória

doscomunismosexistentes.Éclaroqueessedebateémaisamplodoqueocomunismo,umavezquea

questãodas tecnologias apropriadaspara a realizaçãode certosobjetivos sociais epolíticos– sejam

elesfeministas,anarquistas,ambientalistasouoquefor–éumproblemageral,quemereceumexame

detalhado.As tecnologias, temos de concluir, não são neutras em relação aos outrosmomentos da

totalidadesocial.

O problemático caráter de classe das tecnologias capitalistas é confirmado no texto de Marx.

Segundoele:

[Amaquinaria]nãoatuaapenascomoconcorrentepoderoso,sempreprontoatornar“supérfluo”otrabalhadorassalariado.Ocapital,

demaneira aberta e tendencial, proclama emaneja amaquinaria como potência hostil ao trabalhador. Ela se converte na armamais

poderosaparaarepressãodasperiódicasrevoltasoperárias,grevesetc.contraaautocraciadocapital.SegundoGaskell,amáquinaa

vaporfoi,desdeoinício,umantagonistada“forçahumana”,orivalquepermitiuaoscapitalistasesmagarascrescentesreivindicações

dostrabalhadores[...].Poder-se-iaescreverumahistóriainteiradosinventosque,apartirde1830,surgirammeramentecomoarmasdo

capitalcontraosmotinsoperários.(508)

Assim,oscapitalistasdesenvolvemconscientementenovastecnologiascomoinstrumentosdaluta

declasses.Essastecnologiasnãoapenasservemparadisciplinarotrabalhadordentrodoprocessode

trabalho,comotambémajudamacriarumexcedentedetrabalhoquereduzossalárioseasambições

dotrabalhador.

Marx introduz aqui, pela primeira vez, a ideia do desemprego ocasionado pela tecnologia. As

inovações que poupam trabalho provocam demissões. De fato, ao longo dos últimos trinta anos,

profundas mudanças econômicas e aumentos de produtividade incríveis causaram desemprego e

insegurançanoempregoetornarammuitomaisfácilatarefadedisciplinarpoliticamenteotrabalho.

HouvecertatendênciaaculparasubcontrataçãoeaconcorrênciadamãodeobrabaratadoMéxicoe

daChinapelosmalesdaclassetrabalhadoranorte-americana,masestudosmostramquecercadedois

terçosdaperdadepostosdetrabalhonosEstadosUnidossedevemamudançastecnológicas.Quando

memudeiparaBaltimore,em1969,aBethlehemSteelempregavamaisde25miltrabalhadores;20

anosdepois,empregavamenosde5mileproduziaamesmaquantidadedeaço.“Oinstrumentode

trabalholiquidaotrabalhador”(504).

Nãoédifícilfundamentaroargumentodequeastecnologiassãousadascomoarmasdalutade

classes.Lembro-medeterlidoasmemóriasdeumindustrial,uminovadornocampodasmáquinas-

ferramentasnaParisdoSegundoImpério.Eledavatrêsmotivaçõesparaainovação:primeiro,reduzir

o preço damercadoria emelhorar a competitividade; segundo,melhorar a eficiência e eliminar o

desperdício;terceiro,colocarostrabalhadoresemseudevidolugar.Desdeomovimentodosludistas,

alutadeclassesemtornodasformastecnológicasfoiumtraçoconstantedocapitalismo.

O item 6, sobre a “teoria da compensação”, concentra-se nas alterações que as mudanças

tecnológicas provocam na relação entre capital e trabalho. Se os capitalistas economizam capital

variávelaoempregarmenostrabalhadores,oquefazemcomocapitaleconomizado?Seexpandemsuas

atividades, então parte do trabalho que se tornou supérfluo é reabsorvido. Com base nisso, os

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economistasburguesesdaépocainventaramumateoriadacompensaçãoparaprovarqueasmáquinas

nãocausavamdesemprego.Marxnãonegaquehajacertacompensação,masagrandezadestaúltima

éproblemática.Vocêpodereabsorver10%dostrabalhadoresquesetornaramsupérfluos,ou20%.Não

há nenhuma razão imediata para que todos sejam reabsorvidos. “Apesar de a maquinaria

necessariamentedeslocar trabalhadoresnos ramosde atividade emque é introduzida, elapode,no

entanto,gerarumaumentodaocupaçãoemoutrosramosdotrabalho.Masesseefeitonadatemem

comumcomaassimchamadateoriadacompensação”(514).Mesmoqueamaioriadostrabalhadores

sejareempregada,háaindaumsérioproblemadetransição.“Assimqueamaquinarialiberaumaparte

dostrabalhadoresatéentãoocupadosemdeterminadoramoindustrial,distribui-setambémopessoal

dereserva”–istoé,oexércitoindustrialdereserva,queestásempreàdisposição–,“queéabsorvido

emoutrosramosdetrabalho,enquantoasvítimasoriginais”–dispensadasdotrabalho–“definhame

sucumbem, em suamaior parte, durante o período de transição” (513).Há também problemas de

adaptação:metalúrgicosnãopodemsetornarprogramadoresdecomputadordanoiteparaodia.

Como,portanto,consideradaemsimesma,amaquinariaencurtaotempodetrabalho,aopassoque,utilizadademodocapitalista,ela

aumentaajornadadetrabalho;como,emsimesma,elafacilitaotrabalho,aopassoque,utilizadademodocapitalista,elaaumentasua

intensidade;como,emsimesma,elaéumavitóriadohomemsobreasforçasdanatureza,aopassoque,utilizadademodocapitalista,

elasubjugaohomemporintermédiodasforçasdanatureza;como,emsimesma,elaaumentaariquezadoprodutor,aopassoque,

utilizadademodocapitalista,elaoempobreceetc.,oeconomistaburguêsdeclarasimplesmentequeaobservaçãodamaquinariaemsi

mesmademonstracomabsolutaprecisãoqueessascontradiçõespalpáveisnãosãomaisdoqueaaparênciadarealidadecomum,não

existindoemsimesmase,portanto,tampouconateoria.(513-4)

Assim,amaquinariatemsempredeservistanarelaçãocomousocapitalistaquesefazdela.Ea

única questão que realmente importa é que o uso capitalista da maquinaria é em geral cruel e

desnecessariamenteopressivo.Masseamáquinaévista“emsimesma”comouma“vitóriadohomem

sobreasforçasdanatureza”edotadadepossibilidadespotencialmentevirtuosas(comoaliviarofardo

do trabalho e aumentar o bem-estar material), então retornamos à dúbia afirmação de que a

tecnologia capitalista, “em simesma”, pode servir de base para formas alternativas de organização

social,semnecessidadedegrandesajustesoutransformaçõesrevolucionárias.Caímosmaisumavez

na questão da posicionalidade das formas organizacionais, das tecnologias e das máquinas na

transiçãodofeudalismoparaocapitalismoedocapitalismoparaosocialismooucomunismo.Essaé

umadasgrandesquestõeslevantadasnessecapítulo,questãoquemereceumaanáliselongaerigorosa.

Acompensaçãotambémécausadapelofatodeaintroduçãodasmáquinasaumentaroemprego

naindústriademáquinas-ferramentas.Maslembre-sedequeo“aumentodetrabalhoexigidoparaa

produção do próprio meio de trabalho – maquinaria, carvão etc. – tem de ser menor do que a

diminuição de trabalho ocasionada pela utilização da maquinaria” (514). Portanto, existe a

possibilidade de um aumento do emprego na extração de matérias-primas. No caso do algodão,

porém,issosignificounãoaexpansãodotrabalhoassalariado,masaintensificaçãoeadisseminação

do trabalho escravo no sul dos Estados Unidos. Se todas essas possibilidades de compensação são

inibidas,porém,permaneceoproblemadoqueoscapitalistasdevemfazercomocapitalexcedente.

Elesadquiremesseexcedente–individualmenteoucomoclasse–àmedidaqueovalordaforçade

trabalhodiminuieonúmerodetrabalhadoresempregadostendeacair.

Oqueépostoaqui,aindaqueformaumtantonebulosa,éoproblemadoqueaburguesiadeve

fazercomtodooseucapitalexcedente.Esseéumproblemaenormeefundamental.Euochamode

problema da absorção do capital excedente. No fim de cada dia, os capitalistas acabam

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necessariamente comum excedente e têmde decidir o que fazer com ele no dia seguinte. Se não

encontramaplicaçãoparaele,estãonumaenrascada.EsseéoproblemaprincipalanalisadoporMarx

nosdois volumes seguintes d’Ocapital. Ele não o examina em todos os detalhes aqui,mas levanta

algumassugestões:“Oresultadoimediatodamaquinariaéaumentaromais-valore,aomesmotempo,

amassadeprodutosemqueeleserepresenta–portanto,aumentar,juntamentecomasubstânciade

que a classe dos capitalistas e seus sequazes se alimentam, essas próprias camadas sociais” (517).

Assim,“cresceaproduçãodeartigosdeluxo”,eomercadodaproduçãoexcedentepodeserampliado

pela expansão do comércio exterior. “O aumento dos meios de produção e de subsistência,

acompanhadodadiminuição relativadonúmerode trabalhadores, leva à expansãodo trabalho em

ramosdaindústriacujosprodutos–comocanais,docas,túneis,pontesetc.–,sótrazemretornonum

futuromais distante” (517). Investimentos em infraestrutura física de longo prazo, que não rende

frutospormuitosanos,podemsetornarumveículoparaaabsorçãodoexcedente.Observaçõesdesse

tipomelevaramaexaminar,emOslimitesdocapital,opapelcrucialdasexpansõesgeográficasedos

investimentosdelongoprazo(particularmenteemurbanização)naestabilizaçãodocapitalismo.Além

disso,

o extraordinário aumento da força produtiva nas esferas da grande indústria, acompanhado como é de uma exploração intensiva e

extensivamenteampliadadaforçadetrabalhoemtodasasoutrasesferasdaprodução,permiteempregardemodoimprodutivouma

partecadavezmaiordaclassetrabalhadorae,dessemodo,reproduzirmassivamenteosantigosescravosdomésticos,agorarebatizados

de“classeserviçal”,comocriados,damasdecompanhia,lacaiosetc.

Essaclasseimprodutivainclui

osmuito velhos oumuitos jovens para o trabalho, todas asmulheres, jovens e crianças “improdutivos”, seguidos dos estamentos

“ideológicos”,comogoverno,clero, juristas,militaresetc.,alémdetodosaquelescujaocupaçãoexclusivaéconsumir trabalhoalheio

sobaformaderendadaterra,jurosetc.,e,porfim,osindigentes,vagabundos,delinquentesetc.(518)

Todaessaenormepopulaçãotemdesersustentadacomoexcedente.ComreferênciaàInglaterra

eaoPaísdeGales,Marxcitaosnúmerosdocensode1861,quemostramque“osocupadosemtodas

asfábricastêxteis[...]somadosaopessoaldetodasasmetalúrgicasemanufaturasdemetais”formam

um total de 1.039.605 pessoas, enquanto aquelas empregadas nas minas somam 565.835, em

comparação com as 1.208.648 que compõem a classe dos serviçais (ou “escravos domésticos

modernos”)(519).Tendemosapensarqueamudançaradicalquetransferiuopesodaeconomiada

manufaturaparaosetordeserviçosocorreunofimdoséculopassado,masessesdadosmostramqueo

setordeserviçosnãoénovo.AgrandediferençaéqueamaiorpartedaclassedosserviçaisdeMarx

não era organizada de modo capitalista (muitos moravam na casa dos patrões). Não havia

estabelecimentos anunciando “manicures”, “faxineiros”, “cabeleireiros” etc. Mas a parcela da

população envolvida nessa forma de emprego sempre foi grande e muito frequentemente

negligenciadanasanáliseseconômicas(inclusiveasdeMarx),emborafossemaisnumerosadoquea

classetrabalhadoranosentidoclássicodeoperários,mineirosetc.

O item 7, sobre a “Repulsão e atração de trabalhadores com o desenvolvimento da indústria

mecanizada”, examina os ritmos temporais de emprego segundo as altas e as baixas dos ciclos

econômicos. Os lucros, diz Marx, “não só constituem, em si mesmos, uma fonte de acumulação

acelerada,comoatraemàesferafavorecidadaproduçãograndepartedocapitalsocialadicionalque

se forma constantemente e busca novas aplicações”. Mas, quando flui para essas novas áreas

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favorecidas,ocapitalexcedenteencontracertasbarreiras,comoaquelasgeradaspela“insuficiênciade

matéria-prima edemercadopor onde escoar seus próprios produtos” (522).Onde você conseguirá

novasmatérias-primaseparaquemvenderáseusprodutos?Essaperguntaécrucial,evoltaremosaela

noúltimoitem,“Reflexõeseprognósticos”.

A respostadeMarx é... a Índia!Vocêdestrói as indústrias indianas e transforma aquela imensa

população emmercado seu, e aomesmo tempo transforma o país emprodutor dematérias-primas

paraesseseumercado.Emoutraspalavras,vocêadotapráticascolonialistaseexpansõesgeográficas.

Oproblema é resolvidopor aquilo que chamode ajuste espacial.O resultado é “umanovadivisão

internacional do trabalho, adequada às principais sedes da indústria mecanizada, divisão que

transformaumapartedogloboterrestreemcampodeproduçãopreferencialmenteagrícolavoltadoa

suprir as necessidades de outro campo, preferencialmente industrial” (523).Naquelemomento, no

entanto,issoestavaforadoalcancedoaparatoteóricodeMarx.Oquevemosclaramentenesseitemé

anecessidadesocialinerenteaomododeproduçãocapitalistaderevolveroproblemadeaplicaçãodo

excedentedecapitalpormeiodedeslocamentosgeográficosetemporais.

Altasebaixasnocicloindustrialsãocaracterísticasdocapitalismo.

A enorme capacidade, própria do sistema fabril, de expandir-se aos saltos e sua dependência do mercado mundial geram

necessariamente uma produção em ritmo febril e a consequente saturação dos mercados, cuja contração acarreta um período de

estagnação.Avidada indústria se convertenuma sequênciadeperíodosdevitalidademediana,prosperidade, superprodução, crise e

estagnação. A insegurança e a instabilidade a que a indústria mecanizada submete a ocupação e, com isso, a condição de vida do

trabalhador tornam-se normais com a ocorrência dessas oscilações periódicas do ciclo industrial. Descontadas as épocas de

prosperidade, grassa entre os capitalistas a mais encarniçada luta por sua participação individual no mercado. Tal participação é

diretamenteproporcionalaobaixopreçodoproduto.Alémdarivalidadequeessalutaprovocapelousodemaquinariaaperfeiçoada,

substitutiva de força de trabalho, e pela aplicação de novosmétodos de produção, chega-se sempre a umponto emque se busca

baratearamercadoriapormeiodareduçãoforçadadossaláriosabaixodovalordaforçadetrabalho.(524-5)

Essadescriçãogenéricadosmovimentoscíclicosnaeconomiacarecedesustentaçãoteórica,eos

mecanismosexatosqueproduzemtaismovimentosnãosãoexplorados.Marxpassa,porassimdizer,

do terreno da teoria para uma descrição esquemática dos ciclos de alta e baixa característicos da

economiabritânicadaépoca.Oqueeleapresentaemseguida,comoúnicopropósitodeilustrarseu

argumentohistórico,éahistóriadosciclosdealtaebaixadaindústriaalgodoeiranaGrã-Bretanha.

Eleresumeahistória:

Portanto,nosprimeiros45anosdaindústriaalgodoeirabritânica,de1770a1815,encontramosapenas5anosdecriseeestagnação,

masessefoioperíododeseumonopóliomundial.Osegundoperíodo,ouseja,os48anosquevãode1815a1863,contaapenas20

anosderecuperaçãoeprosperidadecontra28dedepressãoeestagnação.De1815a1830,teminícioaconcorrênciacomaEuropa

continental e os EstadosUnidos. A partir de 1833, a expansão dosmercados asiáticos se impõe pormeio da “destruição da raça

humana”.(530)

Uma nota de rodapé esclarece que a “destruição da raça humana” a que Marx se refere foi

protagonizadapelosbritânicos,queobrigaramaÍndiaaplantarópioevendê-loàChinaemtrocade

prata,aqual,porsuavez,seriausadaparacomprarprodutosdaGrã-Bretanha.

No item 8, “O revolucionamento da manufatura, do artesanato e do trabalho domiciliar pela

grandeindústria”,Marxexaminaoqueacontecequandosistemasdetrabalhodiferentesentramem

concorrênciamútua.Esseitemlevantaalgumasquestõesintrigantes.NaépocadeMarx,sistemasde

trabalho domésticos, sistemas artesanais, sistemas manufatureiros e sistemas fabris coexistiam, às

vezes na mesma região. Quando foram postos em concorrência uns com os outros, esses sistemas

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sofreramadaptaçõese,emalgunscasos,produziramnovasformashíbridas,masoresultadogeralfoi

tornar as condições de trabalho terríveis, se não absolutamente intoleráveis, em todos os setores.

Trabalhadores artesanais,por exemplo, tinhamde trabalhar cincovezesmaispara competir comos

produtosfabricadosnostearesavapor.MasMarxpareceacreditarque,nofimdascontas,osistema

fabril prevaleceria. Se digo “parece”, é porque ele não diz isso explicitamente.Contudo, hámuitas

pistasaquideumaespéciedeprogressãoteleológica,emqueocapitalismosemovenecessariamentee

cadavezmaisemdireçãoaumsistemafabril.Osantigossistemashíbridosdetrabalho,baseadosem

sistemasdeexploraçãocompletamentedesumanos(queMarx,comaajudadosinspetoresdefábrica,

descreve em detalhes), não podiam durar. Se é isso que ele está dizendo, então temos razões para

discordar.

Prefirolê-lodeoutromodo,talvezcontraopanodefundodeseuprópriopensamento.Diriaque

oscapitalistasgostamdepreservaropoderdeescolherosistemadetrabalho.Senãoconseguemlucro

suficientecomosistemafabril,queremteraopçãoderetornaraosistemadoméstico.Seaindaassim

não conseguirem lucro, recorrerão a um sistema quasemanufatureiro. Isto é, em vez de tomar as

condições queMarx descreve nesse capítulo como temporárias e transicionais, prefiro lê-las como

características (opções) permanentes de ummodo de produção capitalista em que a concorrência

entre diferentes sistemas de trabalho se torna uma arma do capital contra o trabalho na luta para

conseguirmais-valor.UsardessemodoaexplicaçãodeMarxparaasconsequênciasdevastadorasda

concorrência entre os sistemas de trabalho permite uma melhor compreensão do que está

acontecendo hoje no mundo. O ressurgimento de oficinas clandestinas e sistemas familiares de

trabalho, subcontratação e coisas do gênero foi a marca do capitalismo neoliberal nos últimos

quarentaanos.Osistemafabrilnemsempretrouxevantagensparaocapital,eMarxtembonsinsights

do porquê.Os trabalhadores, quando reunidos numa grande fábrica, podem tomar consciência de

seusinteressescomunseconstituirumaforçapolíticapoderosa.AindustrializaçãonaCoreiadoSula

partirdadécadade1960produziuumsistemafabrildelargaescala,eumadesuasconsequênciasfoi

ummovimentosindicalforte;atéserdisciplinadopelacrisede1997-1998,essemovimentofoiuma

forçapoliticamentepoderosa.EmHongKong,osistemadetrabalhobaseava-senotrabalhofamiliar

clandestino e em estruturas de subcontratação, e o movimento sindical é quase inexistente.

Obviamente,háoutros fatoresemjogo,masaquestãoprincipaléqueapossibilidadedeescolhero

sistemadetrabalhoqueseráaplicadoéimportanteparaocapitalnadinâmicadalutadeclasses.

Por isso, acredito que é mais proveitoso ler esses itens d’O capital na forma de uma história

exemplardecomooscapitalistas,tendoopoderdeescolheroprocessoeosistemadetrabalho,usam

essaescolhacomoumaarmanalutadeclassespelageraçãodemais-valor.Ostrabalhadoresfabrissão

disciplinados pela concorrência com as oficinas clandestinas e vice-versa. O acirramento da

concorrênciaentreessessistemaspiorouascoisasparaotrabalhador,emcomparação,porexemplo,

com as décadas de 1960 ou 1970, quando havia, emmuitas partes domundo capitalista, grandes

sistemasfabriseorganizaçõestrabalhistasfortesqueapoiavamosmovimentossociaiscomcertograu

de influência e poder político. Na época, era tentador imaginar que o sistema fabril acabaria

eliminandoosoutroseapolíticadecorrentedesseprocessoconduziriaaosocialismo.Muitosdosque

leramOcapitalnosanos1960favoreceramessainterpretaçãoteleológica.

Analisaremos agora a explanação de Marx em detalhes. Em primeiro lugar, temos o subitem

“Suprassunção da cooperação fundada no artesanato e na divisão do trabalho”, que descreve um

deslocamentodistintivodeumsistemadetrabalhoparaoutro.Emsegundolugar,oimpactosobrea

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manufatura e as indústrias domésticas é examinado. Nesse caso, o tema é a adaptação, e não a

supressão. “Por toda parte torna-se determinante o princípio da produção mecanizada, a saber,

analisaroprocessodeproduçãoemsuas fasesconstitutivaseresolverosproblemasassimdadospor

meiodaaplicaçãodamecânica,daquímicaetc.,emsuma,dasciênciasnaturais”(532-3).Emoutras

palavras, as concepções mentais associadas às tecnologias mecânicas introduziram-se na

reorganizaçãodossistemasantigos.Aciênciaeatecnologiasócomeçaramainteragircomaindústria

noséculoXIX,oquefezcomqueosprocessosdetrabalhofossemcientificamentefragmentadosem

fases constitutivas e transformados em processos repetitivos e mecânicos. Mas isso implicou uma

revoluçãomentalnomodocomoentendíamosomundo, eométodocientíficopôde ser aplicadoa

todos os sistemas de trabalho (inclusive os artesanais). É claro quenamanufatura e nas indústrias

domésticas,emqueformasmaisantigasdepensamentoprevaleciamhaviamuitotempo,amudança

não foi automática. Mas as consequências para as indústrias que se reformularam segundo os

princípios científicos e técnicos foram terríveis, comomostra a descrição deMarx da produçãode

renda(490-3).

Aformaqueaindústriadomésticaassumiunãotinhanada“emcomum,anãoseronome,com

aquela indústria domiciliar antiquada”. Ela se converteu “no departamento externo da fábrica, da

manufatura ou da grande loja”. Desse modo, “o capital movimenta, por fios invisíveis, um outro

exército”detrabalhadores(533).Marxcitaoexemplodeumafábricadecamisas“queempregamil

trabalhadores na fábrica e 9mil trabalhadores domiciliares espalhados pelo campo”. Essa forma de

organização do trabalho ainda é comum nos dias atuais, sobretudo na Ásia, onde a indústria

automobilísticajaponesa,porexemplo,baseia-senumavastarededetrabalhadoressubcontratadosque

produzemaspeças.Essa exploração “desavergonhada” é característicadessas formas “modernas”de

indústria domiciliar, em parte porque “a capacidade de resistência dos trabalhadores diminui em

consequênciade suadispersão”eemparteporque“todaumasériedeparasitas rapaces se interpõe

entreoverdadeiropatrãoeotrabalhador”(533).

As transformações generalizadas em todos os sistemas de trabalho apresentam complicações

específicas. “O revolucionamento do modo social de produzir, esse produto necessário da

transformaçãodomeiodeprodução,consuma-senumemaranhadocaóticode formasdetransição”

(543). Mas isso é o mais perto que Marx chega de endossar uma perspectiva teleológica, “a

diversidadedas formasde transiçãonãoesconde[...]a tendênciaà transformaçãodessas formasem

sistema fabrilpropriamentedito” (544).Noentanto, isso éuma tendência,nãouma lei, e,quando

Marx usa a palavra “tendência”, é importante notar que quase sempre ele tenciona contrapor

tendências que tornam incertos os resultados reais. Nesse exemplo, porém, ele não examina

contratendênciaspotenciais.

Ele descreve como essa “revolução industrial, que transcorre de modo natural-espontâneo, é

artificialmenteaceleradapelaexpansãodasleisfabrisatodososramosdaindústriaemquetrabalhem

mulheres, adolescentes e crianças” (545). Apenas os grandes ramos industriais, observa ele, têm

recursosparacumprirasregulamentações.

Masse,dessemodo,a lei fabrilaceleraartificialmenteamaturaçãodoselementosmateriaisnecessáriosàtransformaçãodaprodução

manufatureira em fabril, ela ao mesmo tempo acelera, devido à necessidade de um dispêndio aumentado de capital, a ruína dos

pequenospatrõeseaconcentraçãodocapital.(548)

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O grande capital costuma suportar as imposições de todos os tipos de marcos regulatórios –

relativos,porexemplo,àsegurançadotrabalhoeàpreservaçãodasaúdedotrabalhador–,sobretudo

seaspequenasempresasnãopodemarcarcomesses custos edeixamomercadoparaasgrandes.A

chamada“capturaregulatória”[regulatorycapture]existehámuito temponahistóriadocapitalismo.

Asempresascapturamoaparatoreguladoreousamparaeliminaraconcorrência.QuandoosMini

Cooper chegaram àGrã-Bretanhano iníciodos anos 1960, eles haviam sidoproibidos pelo regime

regulatóriodosEstadosUnidos,porqueadistânciadosfaróisemrelaçãoaosolonãoerasuficiente,

era alguns milímetros menor do que a necessária. É o bastante quanto às práticas reais do livre-

comércio!

Asazonalidadequecaracterizaalgumaslinhasdeproduçãopõeoutroconjuntodeproblemasaos

quaisocapitaltemdeseadaptar.UmadasrazõesporqueconsideroOcapitalumlivrotãopresciente

équecomfrequênciaMarxidentificatendênciasnocapitalismodesuaépocaquesãomuitofáceisde

identificarnocapitalismodehoje.Porexemplo,haviaumatendêncianocapitalismodecriaraquilo

que nos anos 1980, como resultado da inovação japonesa, seria chamado de sistemas just-in-time.

Marx observou em sua época que as flutuações de oferta e demanda, tanto sazonais como anuais,

exigiammodosderespostaflexíveis.Elecitaumcomentadordaépoca:

“A expansão do sistema ferroviário […] por todo o país estimulou bastante o hábito das encomendas de curto prazo. Agora os

compradores vêm de Glasgow, Manchester e Edimburgo, uma vez por quinzena, ou então compram por atacado nos grandes

armazéns daCity, aos quais fornecemos as mercadorias. Fazem encomendas que têm de ser atendidas imediatamente, em vez de

comprarem as mercadorias do estoque, como antes era o costume. Em anos anteriores, sempre conseguíamos adiantar o serviço

durante a estação baixa para a demanda da temporada seguinte, mas agora ninguém pode prever qual será, então, o objeto da

demanda.”

Para ter essa flexibilidade, no entanto, era necessário criar uma infraestrutura adequada de

transporteecomunicação.“Ohábitodessasencomendasseexpandecomasferroviaseatelegrafia”

(548).

Oitem9,sobreas“cláusulassanitáriaseeducacionais”dalegislaçãofabril,põeoutroconjuntode

contradições interessantes. “A legislação fabril”, observa Marx, “essa primeira reação consciente e

planejada da sociedade à configuração natural-espontânea de seu processo de produção, é, como

vimos,umprodutonecessáriodagrandeindústriatantoquantooalgodão,as selfactors eo telégrafo

elétrico”(551).AsLeisFabrisnãosóprocuravamregularashorasde trabalho,mas tambémtinham

algo a dizer sobre a saúde e a educação, temas a quemuitos industriais resistiam ferozmente.No

entanto,

dosistemafabril,comopodemosveremdetalhenaobradeRobertOwen,brotaogermedaeducaçãodofuturo,quehádeconjugar,

paratodasascriançasapartirdecertaidade,otrabalhoprodutivocomoensinoeaginástica,nãosócomométododeincrementara

produçãosocial,mascomoúnicométodoparaaproduçãodesereshumanosdesenvolvidosemseusmúltiplosaspectos.(554)

Por que estamos falando, de repente, de “seres humanos desenvolvidos em seus múltiplos

aspectos”,numcapítulocheiodehistóriasdedignidadedestruídaeapropriaçãodascapacidadesdo

trabalhador pelo capital? Talvez porque a resistência do capitalista a medidas sanitárias e

educacionaisseja irracionaldopontodevistadaclassecapitalista?“Comovimos,aomesmotempo

que a grande indústria suprime tecnicamente a divisão manufatureira do trabalho”, ela reproduz

“aquela divisão do trabalho demaneira aindamaismonstruosa, na fábrica propriamente dita, por

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meiodatransformaçãodotrabalhadoremacessórioautoconscientedeumamáquinaparcial”(554).

Osefeitossobreascriançassãoparticularmentedevastadores.Mashásinaispositivosnissotudo.

Écaracterísticoque, jáno séculoXVIII, ainda sedenominassemmistérios (mystères) os diversos ofícios em cujos segredos só podia

penetraro iniciadoporexperiênciaeporprofissão.Agrande indústria rasgouovéuqueocultavaaoshomensseupróprioprocesso

socialdeproduçãoequeconvertiaosdiversos ramosdaprodução,que sehaviamparticularizadodemodonatural-espontâneo, em

enigmasunsemrelaçãoaosoutros,einclusiveparaoiniciadoemcadaumdessesramos.(556)

A moderna ciência da tecnologia provocou uma verdadeira revolução em nossas concepções

mentaisdomundo.“Asformasvariegadas,aparentementedesconexaseossificadasdoprocessosocial

deprodução se dissolveram,de acordo como efeitoútil almejado, em aplicações conscientemente

planificadasesistematicamenteparticularizadasdasciênciasnaturais”(556-7).

Oresultadofoiumarevoluçãoindustrialemtodosossentidosdotermo.

Aindústriamodernajamaisconsideranemtratacomodefinitivaaformaexistentedeumprocessodeprodução.Suabasetécnicaé,por

isso, revolucionária, ao passo que a de todos os modos de produção anteriores era essencialmente conservadora. Por meio da

maquinaria,deprocessosquímicoseoutrosmétodos,elarevolucionaconstantemente,juntamentecomabasetécnicadaprodução,as

funções dos trabalhadores e as combinações sociais do processo de trabalho. Desse modo, ela revoluciona de modo igualmente

constanteadivisãodotrabalhonointeriordasociedadeenãocessadejogardeumramodeproduçãoparaoutromassasdecapitale

massasdetrabalhadores.Anaturezadagrandeindústriacondiciona,portanto,avariaçãodotrabalho,afluidezdafunção,amobilidade

onidirecionaldotrabalhador.(557)

Anecessidadegeraumaenormecontradição.Oladonegativoéqueagrandeindústria“reproduz

em sua forma capitalista a velha divisão do trabalho” e “suprime toda tranquilidade, solidez e

segurança na condição de vida do trabalhador, a quem ela ameaça constantemente de privá-lo,

juntamente comomeiode trabalho,de seumeiode subsistência”. Isso “desencadeiaodesperdício

mais exorbitante de forças de trabalho e as devastações da anarquia social” (557).Mas há o lado

positivo:

a grande indústria, precisamente por suasmesmas catástrofes, converte em questão de vida oumorte a necessidade de reconhecer

comoleisocialgeraldaproduçãoamudançadostrabalhose,consequentemente,amaiormultilateralidadepossíveldostrabalhadores,

fazendo, aomesmo tempo, comque as condições se adaptem à aplicação normal dessa lei. Ela converte numa questão de vida ou

morteasubstituiçãodessarealidademonstruosa,naqualumamiserávelpopulaçãotrabalhadoraémantidacomoreserva,deprontidão

para satisfazer as necessidades mutáveis de exploração que experimenta o capital, pela disponibilidade absoluta do homem para

cumprirasexigênciasvariáveisdotrabalho;asubstituiçãodoindivíduoparcial,meroportadordeumafunçãosocialdedetalhe,pelo

indivíduototalmentedesenvolvido,paraoqualasdiversasfunçõessociaissãomodosalternantesdeatividade.(558)

O capitalismo requer fluidez e adaptabilidade do trabalho, uma força de trabalho instruída e

variada,capazdeexecutarmúltiplastarefaserespondercomflexibilidadeacondiçõesvariáveis.Há

aquiumaprofundacontradição:porumlado,ocapitalquertrabalhodegradado,desqualificado,algo

comoumgorila treinadopara serviraocapital semquestioná-lo;poroutro lado,elenecessitadesse

outrotipode trabalho, instruído, flexíveleadaptável.Comosepoderiaabordar talcontradiçãosem

fazer surgir “fermentos revolucionários” (558), sobretudo se levarmos em conta que os capitalistas

individuais,quebuscamintensamenteseusprópriosinteressesesãoimpelidospelasleiscoercitivasda

concorrência,teriamdificuldadeemeliminá-la?

Umarespostacoletivadeclasseencontra-senosartigossobreaeducaçãoinseridosnasLeisFabris.

Essesartigosnãoforamnecessariamenteaplicados,observaMarx,emparticulardiantedaresistência

docapitalistaindividual.Noentanto,ésignificativoquetenhamsidoconsideradosnecessáriosnum

Estado que, como observamos anteriormente, era governado por capitalistas e proprietários

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fundiários.Elesugereque“oensinoteóricoepráticodatecnologia”garantiu“seudevidolugarnas

escolasoperárias”.Eprossegue:“Mastampoucorestadúvidadequeaformacapitalistadeproduçãoe

as condições econômicas dos trabalhadores que lhe correspondem encontram-se namais diametral

contradição com tais fermentos revolucionários e sua meta: a superação da antiga divisão do

trabalho”.Notebem:odesenvolvimentodessas“contradiçõesdeumaformahistóricadeproduçãoé,

noentanto,oúnicocaminhohistóricodesuadissoluçãoereconfiguração”(558).

Odesenvolvimentodessacontradiçãofundamentalécrucialparaentenderastransformaçõesna

reproduçãodaforçadetrabalho.Agrandeindústriateveumpapelimportantenadissoluçãoda“base

econômicadoantigosistemafamiliaredotrabalhofamiliaraelecorrespondente”.Tambémdissolveu

“asprópriasrelaçõesfamiliaresantigas”,revolucionouasrelaçõesentrepaisefilhosefreouosabusos

do poder paterno, que surgiu com o gang system. Foi o “modo capitalista de exploração que,

suprimindo a base econômica correspondente à autoridade paterna, converteu esta última num

abuso”(559).Porém,

porterrívelerepugnantequepareçaadissoluçãodovelhosistemafamiliarnointeriordosistemacapitalista,nãodeixadeserverdade

queagrande indústria, ao conferir àsmulheres, aos adolescentes e às criançasde ambosos sexosumpapeldecisivonosprocessos

socialmenteorganizadosdaproduçãosituadosforadaesferadoméstica,criaonovofundamentoeconômicoparaumaformasuperior

dafamíliaedarelaçãoentreossexos.(560)

Éóbvio,Marxconclui,

que a composição do pessoal operário por indivíduos de ambos os sexos e das mais diversas faixas etárias, que em sua forma

capitalista,natural-espontânea ebrutal– emqueo trabalhador existeparaoprocessodeprodução, enãooprocessodeprodução

paraotrabalhador–,éumafontepestíferadedegeneraçãoeescravidão,podeseconverter,sobascondiçõesadequadas,emfontede

desenvolvimentohumano.(560)

Abuscaporfluidez,flexibilidadeeadaptabilidadedotrabalhorevolucionaafamíliaeasrelações

entre os sexos! Pressões desse tipo perduram até hoje, ao mesmo tempo que o lado negativo da

contradição aqui identificada porMarx continua onipresente.Trata-se, devemos concluir, de uma

contradiçãopermanente,localizadanocernedocapitalismo.

Assim,oquesubitamenteencontramosaofimdesselongocapítulo,plenodeimagensnegativas,

são algumaspotencialidadespositivas e revolucionáriaspara a educaçãodas classes trabalhadoras e

uma reconfiguração radical (com a ajuda do poder estatal) de suas condições de reprodução. O

capitalprecisadefluideznotrabalhoe,portanto,temdeeducarostrabalhadores,aomesmotempo

queeliminaosvelhos rigorespaternalistas,patriarcais.Essas ideiasnão sãomuitodesenvolvidasno

textodeMarx,maséinteressantequeeletenhaconsideradoimportanteinseri-lasemsuaanálise.E,

aomesmo tempo que a política da jornada de trabalho visava salvar o capital de suas tendências

autodestrutivas,elatraziaemsiogermedeumapolíticaoperáriavoltadaparaasupressãodopróprio

sistemacapitalista.

IssoconduzMarx,apósumalongaedetalhadaexposiçãodasLeisFabris,asuaconclusão,naqual

elevoltaaflertarcomumaformulaçãoteleológica:

Se a generalização da legislação fabril tornou-se inevitável como meio de proteção física e espiritual da classe trabalhadora, tal

generalização,poroutrolado,ecomojáindicamosanteriormente,generalizaeaceleraatransformaçãodeprocessoslaboraisdispersos,

realizadosemescaladiminuta,emprocessosdetrabalhocombinados,realizadosemlargaescala,emescalasocial;elaacelera,portanto,

aconcentraçãodocapitaleoimpérioexclusivodoregimedefábrica.Eladestróitodasasformasantiquadasetransitórias,sobasquais

odomíniodocapitalaindaseescondeemparte,eassubstituiporseudomíniodireto,indisfarçado.Comisso,elatambémgeneralizaa

lutadiretacontraessedomínio.Aomesmotempoqueimpõenasoficinasindividuaisuniformidade,regularidade,ordemeeconomia,a

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legislação fabril, pormeiodo imenso estímuloque a limitação e a regulamentaçãoda jornadade trabalhodão à técnica, aumenta a

anarquiaeascatástrofesdaproduçãocapitalistaemseuconjunto,assimcomoaintensidadedotrabalhoeaconcorrênciadamaquinaria

com o trabalhador. Juntamente com as esferas da pequena empresa e do trabalho domiciliar, ela aniquila os últimos refúgios dos

“supranumerários” e, assim, a válvula de segurança até então existente de todo o mecanismo social. Ao amadurecer as condições

materiaiseacombinaçãosocialdoprocessodeprodução,elaamadureceascontradiçõeseosantagonismosdesuaformacapitalistae,

portanto,aomesmotempo,oselementoscriadoresdeumanovasociedadeeosfatoresquerevolucionamasociedadevelha.(570-1)

Oitem10,“Grandeindústriaeagricultura”,trazdevoltaparaocentrodadiscussãoa“relação

entreohomemeanatureza”efaz,porassimdizer,umabreveporémimportanteparticipaçãoespecial

naargumentação.“Énaesferadaagricultura”,dizMarx,que“agrandeindústriaatuadomodomais

revolucionário”, empartepor “liquidarobaluartedavelha sociedade,o ‘camponês’, substituindo-o

pelo trabalhador assalariado”,oque,por sua vez, gera conflitosde classeno campo.A aplicaçãode

princípios científicos na agricultura revoluciona as relações entre a agricultura e amanufatura, ao

mesmotempoque“criaospressupostosmateriaisdeumanovasíntese,superior,entreagriculturae

indústria”.Masesseresultadopotencialmentepositivo“perturbaometabolismoentreohomemea

terra,istoé,oretornoaosolodaqueleselementosquelhesãoconstitutivoseforamconsumidospelo

homemsobformadealimentosevestimentas,retornoqueéaeternacondiçãonaturaldafertilidade

permanentedosolo”(572).Esseproblemaéexacerbadopelacrescenteurbanização.“Etodoprogresso

daagriculturacapitalista”,concluiMarx,

éumprogressonaartedesaquearnãosóotrabalhador,mastambémosolo,poistodoprogressonoaumentodafertilidadedosolo

por certoperíodo traz consigo, aomesmo tempo,umprogressono esgotamentodas fontesduradourasdessa fertilidade.Quanto

maisumpaís,como,porexemplo,osEstadosUnidosdaAméricadoNorte,temnagrandeindústriaabasedeseudesenvolvimento,

tantomaisrápidoéesseprocessodedestruição.Porisso,aproduçãocapitalistasódesenvolveatécnicaeacombinaçãodoprocessode

produçãosocialaominarosmananciaisdetodaariqueza:aterraeotrabalhador.(573-4)

As relações entre tecnologia, natureza, produção e reprodução da vida sofrem uma mudança

negativa, ainda que revoluções em concepções mentais e relações sociais abram possibilidades

positivas. Marx não defende o retorno a uma sociedade em que os processos de produção sejam

“mystères”.Eleacreditaqueaaplicaçãodaciênciaedatecnologiapodeterimplicaçõesprogressistas.

Masograndeproblemadessecapítuloéidentificarondeexatamenteseencontramtaispossibilidades

progressistas e comopodem sermobilizadas na criação de ummodode produção socialista.Marx,

emboranãoresolvaesseproblema,coloca-oeobriga-nosarefletirsobreele.Asmudançastecnológicas

eorganizacionaisnãosãoumdeusexmachina,masestãoprofundamenteenraizadasnacoevoluçãode

nossarelaçãocomanatureza,osprocessosdeprodução,asrelaçõessociais,asconcepçõesmentaisde

mundo e a reproduçãoda vida cotidiana.Todos esses “momentos” são combinadosnesse capítulo,

algunsmuitomaisdoqueoutros.Elepodeedeveserlidocomoumensaioacercadareflexãosobre

essas relações. Mas o sentido do método que surge dessa leitura permite uma interrogação do

argumentodeMarxnosprópriostermosdeMarx.

[a]3.ed.,RiodeJaneiro,Guanabara,2010.(N.T.)

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9.Domais-valorabsolutoerelativoà

acumulaçãodocapital

Noscapítulosanteriores,dedicamo-nosaosváriosmodoscomopodemosconseguirmais-valorrelativo

e absoluto. Quando Marx faz esse tipo de bifurcação conceitual, invariavelmente leva de volta a

dualidadeaoestadodeunidade:nofimdascontas,háapenasummais-valor,esuasduasformasse

condicionammutuamente.Seria impossível ganharmais-valor absoluto semumabase tecnológica e

organizacional adequada. Inversamente, o mais-valor relativo não teria sentido algum sem uma

duraçãodajornadadetrabalhoquepermitisseaapropriaçãodemais-valorabsoluto.Adiferençaestá

apenasnaestratégiacapitalista,que“sefazsentirondequerquesetratedeaumentarataxademais-

valor”. Como costuma ocorrer quando Marx avança para um ponto de síntese, ele tanto retoma

materialjáapresentadoquantooconduzaumpontodiferente,deondeépossívelobservaroterreno

docapitalismodeumanovaperspectiva.Asnovasperspectivasdocapítulo14geraramumagrande

controvérsia,porissoexigemumescrutíniocuidadoso.

Considere,emprimeirolugar,oconceitodetrabalhadorcoletivo,mencionadodiversasvezesem

capítulosanteriores.Omais-valornãoémaisvistocomoumarelaçãoindividualdeexploração,mas

como parte de um todo mais amplo, em que os trabalhadores, em cooperação e dispersados pela

divisão detalhista do trabalho, produzem coletivamente o mais-valor de que os capitalistas se

apropriam.Adificuldadedesseconceitoédefinirondecomeçaeondeterminaotrabalhadorcoletivo.

Ocaminhomaissimplesseria,digamos,partirdafábricaedesignarcomotrabalhadorcoletivotodos

que trabalham ali, inclusive faxineiros, auxiliares, gerentes de depósito emesmo estagiários, ainda

quemuitosdessestrabalhadoresnãodesempenhempapelalgumnaproduçãoefetivademercadorias.

“Paratrabalharprodutivamente, jánãoémaisnecessáriofazê-locomasprópriasmãos;basta,agora,

serumórgãodotrabalhadorcoletivo,executarqualquerumadesuassubfunções”(577).

Masgrandepartedotrabalhonãoérealizadanasfábricas,eatendênciaemtemposmaisrecentes

é recorrer à terceirização e à subcontratação, atrás das quais se encontram muitas vezes outros

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subcontratantes.Eoquedizerdapropaganda,domarketingedodesigncomoserviçosque,embora

essenciais à venda de mercadorias, são frequentemente separados das atividades imediatas da

produção?Oudevemosconsiderarexclusivamenteasatividadesinternasdafábrica?Édifícilchegara

umadefiniçãoexata,eparecenãohavernenhumasoluçãoperfeita–daíacontrovérsia.Massema

ajudadesseconceitoseriadifícilchegaraumaabordagemmacroteóricadadinâmicadocapitalismo.

Marxdizqueatéaquiaanálise“permanececorretaparaotrabalhadorcoletivo,consideradoemseu

conjunto”,masnãoémaisválida“paracadaumdeseusmembros,tomadosisoladamente”.

O segundo movimento é comparar essa ampliação da definição de trabalho produtivo com a

restrição de seu âmbito, demodo que “só é produtivo o trabalhador que produzmais-valor para o

capitalista”.Caracterizar alguémcomo“improdutivo”podeprovocaruma reação emocional, jáque

soacomoumaofensacontratodosaquelesquetrabalhamduroparasobreviver.Contudo,comoMarx

se apressa a afirmar, no capitalismo “ser trabalhador produtivo não é [...] uma sorte,mas um azar”

(577-8). A noção marxiana de “produtivo” não é normativa ou universal, mas uma definição

historicamente específica ao capitalismo.Noque concerne ao capital, aqueles quenão contribuem

paraaproduçãodemais-valorsãoconsideradosimprodutivos.Atarefadosocialismoseria,portanto,

redefiniranoçãode“produtivo”deummodomaisresponsávelebenéficosocialmente.

Noentanto,mesmonocontextodocapitalismo,hádesafioslegítimosemtornodadefiniçãode

“produtivo”.Por exemplo, durante anos as feministas argumentaramqueo trabalhodomésticonão

pagoreduzovalordemercadodaforçadetrabalhoe,porisso,geramais-valorparaocapitalista.Marx

não tratadessaquestão,masocupa-seda suposta “basenatural”daprodutividade, e sua análisedá

pistas de como ele teria abordado algumas dessas questões. A produtividade, diz ele, pode ser

“limitada por condições naturais” ou aumentada, porque “quantomaiores a fertilidade natural do

solo e a excelência do clima, tantomenor é o tempo de trabalho necessário para a conservação e

reprodução do produtor”.Mantendo-se inalteradas as demais circunstâncias, “a grandeza domais-

trabalho variará de acordo com as condições naturais do trabalho, sobretudo com a fertilidade do

solo” (581-2). Portanto, nãohá razão algumapara nãodizer que omais-trabalho variará de acordo

comascondiçõessociais(porexemplo,aprodutividadedotrabalhofamiliar).Deixaremosdeladoas

passagensestranhas,querefletemopensamentooitocentistaarespeitododeterminismoambientale

dadominaçãodanatureza(“Umanaturezademasiadopródiga‘conduzohomememsuamão,como

umacriançaemandadeiras’”

[a]

);Marxconclui,então,que“aexcelênciadascondiçõesnaturais”(às

quais poderíamos acrescentar também as condições sociais) “limita-se a fornecer a possibilidade,

jamaisarealidadedomais-trabalho,portanto,domais-valoroudomais-produto”(583).Querdizer,a

relação dinâmica com a natureza (ou com as condições da vida cotidiana e o trabalho doméstico)

forma umpano de fundo necessário,mas não suficiente, para os processos sociais e as relações de

classepormeiodasquaisomais-valorécriadoeapropriado.

Marxnosinduzareconhecerque“arelaçãocapitalista[...]nascenumterrenoeconômicoqueéo

produtodeumlongoprocessodedesenvolvimento”,demodoqueaprodutividadedotrabalho“nãoé

umadádivadanatureza,masoresultadodeumahistóriaquecompreendemilharesdeséculos”(580-

1). Além disso, diz ele, “para que [o trabalhador] o gaste [o tempo de ócio] emmais-trabalho para

estranhos,énecessáriaacoaçãoexterna”(584).Eagrande ironiaéque“tantoas forçasprodutivas

historicamente desenvolvidas, sociais, quanto as forças produtivas do trabalho condicionadas pela

naturezaaparecemcomoforçasprodutivasdocapital,aoqualotrabalhoé incorporado”(584).Para

Marx,o xdaquestão, certoou errado, reside semprena configuração específicada apropriaçãodo

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mais-valordotrabalhopelocapital,umaconfiguraçãoqueseencontranamatrizdoselementosque

definematotalidadedeummododeproduçãocapitalistacadavezmaisampliado.SeMarxtivesse

abordado essaquestão, émuitoprovávelque tivesse tratado as tarefasdomésticasdomesmomodo

quetrataarelaçãocomanatureza(comoindicaanota121dapágina469).

Osdoismovimentos,odeampliaçãoeoderestriçãodadefiniçãodetrabalhoprodutivo,nãosão

independentesumdooutro.Combinados,ajudamMarxairdeumamicroperspectivaindividual,em

que a imagem dominante é a do trabalhador individual explorado por um empregador capitalista

particular, para umamacroanálise das relações de classe, na qual é a exploraçãode uma classe por

outraqueocupaacena.Essaperspectivadeclasseseráadominantedosúltimoscapítulos.

Curiosamente, todas as formas de teoria econômica encontram problemas ao se mover de um

terrenomicroteóricopara um terrenomacroteórico.A economiapolítica burguesanão tinha como

realizar essemovimento, porque não dispunha (e ainda não dispõe) de uma teoria das origens do

mais-valor. Ricardo ignorou completamente o problema, e John StuartMill,mesmo reconhecendo

queeletinhaalgoavercomotrabalho,nãopôdeidentificarexatamenteemqueconsistiaessealgo,

porquenãoviuadiferençaentreoqueotrabalhotomaeoqueotrabalhocria.“Emterrenosplanos”,

dizMarx numa sarcástica referência aMill, “até os montes de terra parecem colinas, e podemos

medirabanalidadedenossaburguesiaatualpelocalibredeseus‘grandesespíritos’”(586).Emboraa

teoriadeMarxdomais-valorfaciliteomovimento,omodocomoofaz,comovimos,nãoseeximede

críticas.Mascabeanósararosoloparacolherosfrutosdeseupensamento.

Os dois capítulos seguintes não abordam questões substanciais. No capítulo 15, Marx apenas

reconhece que omais-valor varia de acordo com três fatores: a duração da jornada de trabalho, a

intensidadedotrabalhoeaprodutividadedotrabalho,demodoqueoscapitalistaspodemrecorrera

trêsestratégias.Adiminuiçãodaspossibilidadesnumadimensãopodesercompensadapelorecursoa

outra.Opontofundamentaléenfatizar,comofazMarxcomfrequência,aflexibilidadedasestratégias

dos capitalistas na busca de mais-valor: se não conseguem obtê-lo de um modo (aumentando a

intensidade),elesoobtêmdeoutro(aumentandoashorasdetrabalho).Enfatizoessepontoporque

Marxévistomuitasvezescomoumpensadorrígido,quetrabalhacomconceitosrígidos.Ocapítulo

16 limita-se amencionar (maisumavez!) várias fórmulaspara interpretar a taxademais-valor.Há

muitas repetições n’O capital. Às vezes parece que Marx não está seguro de que entendemos o

problemaesente-senaobrigaçãoderepeti-loparasecertificar.

CAPÍTULOS17A20:SALÁRIO

Os curtos capítulos sobre o salário (17-20) são relativamente autoexplicativos. As consequências

resultam,comopoderíamosesperar,dofatodequeocampodaaçãosocialéconfiguradomaispela

representação na forma-dinheiro – salário – do que pelo valor da força de trabalho. Isso leva

imediatamenteaoproblemadamáscarafetichistaqueescondeasrelaçõessociaissobofermentoda

políticarepresentativa.Marx,noentanto,começalembrandoqueháumaenormediferençaentre“o

valor do trabalho” (expressão empregada na economia política clássica) e o “valor da força de

trabalho”.

Nomercado,oquesecontrapõediretamenteaopossuidordedinheironãoé,narealidade,otrabalho,masotrabalhador.Oqueeste

últimovendeé sua forçade trabalho.Mal seu trabalho tem inícioefetivamenteea forçade trabalho jádeixoude lhepertencer,não

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podendomais,portanto,servendidaporele.Otrabalhoéasubstânciaeamedidaimanentedosvalores,maselemesmonãotemvalor

algum.

Pensardeoutromodoécairnumatautologia,istoé,falardovalordovalor.

Na expressão “valor do trabalho”, o conceitode valornão só se apagoupor completo,mas converteu-se em seu contrário.Éuma

expressão imaginária, como,por exemplo, valorda terra.Essas expressões imaginárias surgem,noentanto,daspróprias relaçõesde

produção.Sãocategoriasparaasformasemquesemanifestamrelaçõesessenciais.Queemsuamanifestaçãoascoisasfrequentemente

seapresenteminvertidaséalgoconhecidoemquasetodasasciências,menosnaeconomiapolítica.(607)

Emoutraspalavras,ovalordotrabalhoéumconceitofetichistaquedisfarçaaideiadovalorda

força de trabalho e, por conseguinte, evita a questão crucial de como a força de trabalho se torna

mercadoria.

Aúnica soluçãoquea economiapolítica clássica encontrouparaoproblemada fixaçãodaquilo

que ela chamava incorretamente de valor do trabalho foi apelar para a doutrina da oferta e da

demanda. Essa doutrina aparece várias vezes n’O capital, mas é aqui queMarx rechaça commais

ênfaseseuvalorexplanatório.Mesmoaeconomiapolíticaclássica

reconheceuqueavariaçãonarelaçãoentreofertaedemandanadaesclareceacercadopreçodotrabalho,assimcomodequequalquer

outramercadoria,alémdesuavariação, istoé,aoscilaçãodospreçosdemercadoabaixoouacimadeumacertagrandeza.Seofertae

demanda coincidem, cessa,mantendo-se iguais asdemais circunstâncias, a oscilaçãodepreço.Mas, então, oferta edemanda cessam

tambémdeexplicarqualquercoisa.Quandoofertaedemandacoincidem,opreçodotrabalhoédeterminado independentementeda

relaçãoentredemandaeoferta,querdizer,éseupreçonatural,que,dessemodo,tornou-seoobjetoquerealmentesedeveriaanalisar.

(608)

Essadeterminação independente já foi definidaporMarxna análise da compra e da vendade

forçadetrabalho.Estaéfixadapelovalordasmercadoriasnecessáriasàreproduçãodotrabalhadorem

dadopadrãodevida,emdadasociedadeeemdadaépoca.Continuarafalardovalordotrabalho,em

vezdedovalorda forçade trabalho, levaa todo tipodeconfusão.Marx tentaesclareceraquestão

fazendo(denovo!)umresumodateoriadomais-valornaspáginas609-10.

Masotrabalhadorpodeserremuneradodediferentesmodos–porhora,pordia,porsemana,por

peça.Ocapítulo18tratadosalárioportempoedofuncionamentodessesistema.Nãohánadamuito

problemático aqui, mas devemos nos lembrar de que o modo como ele é praticado no mercado

disfarça a relação social subjacente. O capítulo 19 fala do salário por peça, cuja vantagem para o

capitalista é que os trabalhadores são forçados a competir entre si em termos de produtividade

individual.Aconcorrênciaexcessivaentreostrabalhadoresprovocaoaumentodaprodutividadeea

queda dos salários, muito possivelmente abaixo do valor da força de trabalho. Por outro lado, a

concorrência entreos capitalistaspodeprovocarumaumentonos salários.E assimchegamos,mais

umavez, à ideiadequeháumpontodeequilíbrioemquea concorrência entreos capitalistas e a

concorrênciaentreostrabalhadoresproduzemumsalárioquerepresentaovaloradequadodaforçade

trabalho.

AseçãoVI,sobreosalário,culminanocapítulo20,emqueMarxexaminaasdiferençasnacionais

dossalários.Nesseponto,eledispensabrevementeatendênciaaanalisarocapitalismocomosefosse

umsistemafechado.Épossívelaquiexaminarumdesenvolvimentogeográficodesigualnumsistema

globalizado.Masaabordagemémuitobreveparapermitirmaioresconclusões.Seovalordaforçade

trabalho é fixado pelo valor da cesta demercadorias necessárias para sustentar o trabalhador num

dadopadrãodevida,eseessepadrãovariadeacordocomascondiçõesnaturais,oestadodalutade

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classeseograudecivilizaçãodeumpaís,entãoovalordaforçadetrabalhotemdeapresentaruma

variação geográfica (de país para país, nesse caso) significativa. A história da luta de classes na

AlemanhaédiferentedahistóriadalutadeclassesnaGrã-BretanhaounaEspanha,porexemplo,e

por isso há diferenças nacionais entre os salários (na verdade, costuma haver também diferenças

regionais, mas Marx não se ocupa delas aqui). Do mesmo modo, variações de produtividade nas

indústrias que produzem gêneros de primeira necessidade em diferentes partes do mundo geram

diferençasnovalorda forçade trabalhoenas taxasdesalários.Umsalárionominalbaixonumpaís

altamenteprodutivotraduz-senumsaláriorealmaior,evice-versa,porqueostrabalhadorescompram

maisprodutoscomossaláriosquerecebem(oqueéchamadohojedeparidadedopoderdecompra).

Oqueaconteceentãocomocomércioentrepaísessobessascondições,ecomoseráaconcorrência

entre os diferentes países? Marx não trata a fundo dessa questão; ele parece mais interessado na

diferenciação entre salários reais e nominais, causada, em primeiro lugar, pela variação de

produtividadenasindústriasdegênerosdeprimeiranecessidadenosdiversospaíses.Oresultadoserá

um contraste entre os modos como o capitalismo se desenvolve e como o mais-valor é

estrategicamente buscado e extraído nos diferentes países. Se Marx tivesse se aprofundado nessa

questão,muitoprovavelmenteoresultadoseriaumsérioquestionamentodadoutrinaricardianada

vantagemcomparativadocomércioexterior,mas,poralgumarazão,eledecidiunãodesenvolveressa

linha de argumentação.Devodizer que achodifícil que alguém se entusiasme com esses capítulos

sobreosalário,umavezqueasideiassãobastanteóbviasearedaçãoéumtantoprosaica.

SEÇÃOVII:OPROCESSODEACUMULAÇÃODOCAPITAL

AseçãoVII,porsuavez,éimensamenteinteressanteericadeinsights,porqueéaquiqueMarxtrata

do“processodeacumulaçãodocapital”comoumtodo.Eleconstróioquepoderiaserchamadode

“macroanálise” das dinâmicas domodo de produção capitalista. Esse é, sem dúvida, o argumento

culminantedoLivroId’Ocapital.Todooconjuntodeinsightsanterioreséreunidoaquiparacriaro

quehojepoderíamoschamardesériede“modelos”dedinâmicascapitalistas.Noentanto,évitalter

emmente,durantealeituradaseçãoVII,anaturezadospressupostos.AsconclusõesdeMarxnãosão

afirmações universais, mas achados contingentes, baseados e limitados por seus pressupostos.

Esquecer-se disso é um risco.Há um grande número de comentários sobre a obra deMarx, tanto

favoráveis quanto desfavoráveis, que caem em sérios erros de interpretação porque negligenciamo

impacto desses pressupostos. Uma das teses mais famosas apresentadas aqui, por exemplo, é a

tendênciaaoempobrecimentocrescentedoproletariadoeàproduçãodeumadesigualdadecadavez

maiorentreasclasses.EssatesesebaseianospressupostosdeMarxe,quandoessespressupostossão

abrandadosousubstituídos,atesenãonecessariamentesesustenta.Ficoextremamenteirritadocom

tentativasdeaprovaroureprovarosachadosdeMarxnessescapítuloscomoseeleapresentassesuas

conclusõescomoverdadesuniversais,enãocomoproposiçõescontingentes.

MarxespecificaseuspressupostosnopreâmbulodaseçãoVII.Eleafirma:

Aprimeiracondiçãodaacumulaçãoéqueocapitalistatenhaconseguidovendersuasmercadoriasereconverteremcapitalamaiorparte

dodinheiroassimobtido.Emseguida,pressupõe-sequeocapitalpercorraseuprocessodecirculaçãodemodonormal.Aanálisemais

detalhadadesseprocessopertenceaoLivroIIdestaobra.(639)

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O“modonormal”implicaqueoscapitalistasnãoencontramnenhumproblemaparavenderseus

produtos por seu valor nomercado ou recolocar na produção omais-valor que ganham. Portanto,

todas asmercadorias são negociadas por seu valor.Não há superprodução ou subprodução; tudo é

negociadoemequilíbrio.Emparticular,nãohánenhumproblemaparaencontrarummercado,assim

comonãohánenhumafaltadedemandaefetiva.Seriaesseumpressupostorazoável?Arespostaé:de

modo nenhum, porque ele exclui um dos principais aspectos da formação de crises, aquele que

predominou, por exemplo, na Grande Depressão dos anos 1930 e tornou-se central nas teorias

keynesianas, qual seja, a falta de demanda efetiva.Marx abandona esses pressupostos nos volumes

posteriores, mas é inteiramente fiel a eles nos três capítulos seguintes. Desconsiderar a demanda

efetivapermiteaeleidentificaraspectosdadinâmicacapitalistaque,deoutromodo,permaneceriam

obscuros.

Osegundopressupostoéqueadivisãodomais-valoremlucrodaempresa(ataxaderetornodo

capital industrial), lucrodocapitalcomercial, juro,rendae impostos(Marxnãoincluiesteúltimo)

nãotemefeitoalgum.Naprática,osprodutorescapitalistastêmdecompartilharpartedomais-valor

criadoeapropriadocomcapitalistasqueexecutamoutrasfunções.“Omais-valorsedivide,assim,em

diversaspartes.Seusfragmentoscabemadiferentescategoriasdepessoaserecebemformasdistintas,

independentesentresi,comoolucro,ojuro,oganhocomercial”–olucrodocomerciante–,“arenda

fundiária”,osimpostosetc.“Taisformasmodificadasdomais-valorsópoderãosertratadasnoLivro

III” (639). Com efeito, Marx pressupõe que há uma classe capitalista formada exclusivamente de

capitalistas industriais. No Livro III d’O capital, torna-se claro que o capital a juros, o capital

financeiro, o capital comercial e o capital fundiário desempenham um papel considerável na

compreensão da dinâmica geral do capitalismo. Aqui, porém, esses aspectos são deixados de lado.

Temosapenasummodeloaltamentesimplificadodecomofuncionaaacumulaçãodocapitale,como

todomodelodessetipo,eleservesomentenamedidadoquepermitemseuspressupostos.

Outropressupostotácitoéexplicitadoumpoucomaisadiante,numanotaderodapé.

Abstraímos,aqui,docomérciodeexportação,pormeiodoqualumanaçãopodeconverterartigosdeluxoemmeiosdeproduçãoou

de subsistência, e vice-versa. Para conceber o objeto da investigação em sua pureza, livre de circunstâncias acessórias perturbadoras,

temosdeconsiderar,aqui,omundocomercialcomoumanaçãoepressuporqueaproduçãocapitalistaseconsolidouemtodapartee

apoderou-sedetodososramosindustriais.(656,nota21a)

Marx pressupõe um sistema fechado, em que o capital circula de modo “normal”. Esse é um

pressupostoimportanteeclaramenterestritivo.Oquetemosaquiéapenasummodelosimplificado

dadinâmicadeacumulaçãodocapital,derivadodateoriadomais-valorabsolutoerelativooperando

num sistema fechado.Como veremos, omodelo émuito esclarecedor quanto a certos aspectos do

capitalismo.

Apenas para situar os capítulos seguintes em seu contexto, vale a pena compará-los com o que

temos nos outros volumes d’O capital. O Livro II confronta aquilo que é constante no Livro I: a

dificuldadedeencontrarmercadoselevá-losaumestadodeequilíbriotalqueoprocesso“normal”da

circulação do capital possa ocorrer.Mas oLivro II tende amanter constante aquilo que é tratado

comoalgodinâmiconoLivroI,istoé,aextraçãodemais-valorabsolutoerelativo,rápidasmudanças

de tecnologia eprodutividade,determinações cambiantesdovalorda forçade trabalho.OLivro II

imaginaummundodetecnologiaconstanteerelaçõesdetrabalhoestáveis!Elelevantaasseguintes

questões:comoocapitalpodecircularsemdificuldade(dadososdiferentestemposdefaturamento,

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além dos problemas resultantes da circulação do capital fixo de diferentes durações) e sempre

encontrarmercadoparaomais-valorqueestásendoproduzido?Considerandoqueaacumulaçãodo

capitalexigeexpansão,comooscapitalistasconseguemencontrarmercado, seaclasse trabalhadora

está cada vezmais pobre e os capitalistas estão reinvestindo?De fato, não há nenhumamenção à

pauperização no fim do Livro II. O problema é assegurar o “consumo racional” das classes

trabalhadoras para ajudar a absorção dos excedentes de capital que são produzidos. O modelo

apresentadoaquiéofamosoexpedientefordistadebaixarosalárioparacincodólaresporjornadade

oito horas de trabalho, auxiliado por um exército de assistentes sociais cuja tarefa era fazer os

operáriosconsumiremseussalários“racionalmente”dopontodevistadocapital.Hoje,nosEstados

Unidos,vivemosnummundoemquecercade70%daforçaqueimpulsionaaeconomiadependedo

consumismomovido a dívidas, o que é perfeitamente compreensível, de acordo com a análise que

encontramosnoLivroII,masnãonoLivroI.

Está claro que há uma contradição fundamental entre as condições de equilíbrio definidas no

Livro I e aquelas definidas no Livro II. Se as coisas vão bem de acordo com a análise do Livro I,

provavelmentevãomuitomaldopontodevistadaanálisedoLivroII,evice-versa.Osdoismodelos

da dinâmica de acumulação do capital não concordam, e nem podem concordar. Isso serve de

prefáciopara adiscussão sobre a inevitabilidadedas crisesnoLivro III,mas a expressão“movidoa

dívidas” que acrescentei ao “consumismo” indica que os termos da distribuição (financiamento,

créditoejuro)podemterumpapelimportantenadinâmicadocapitalismo,emvezdesimplesmente

um papel auxiliar. O poder do consumidor, fortalecido pelo fato de todos (inclusive os governos)

usaremcartõesdecréditoeseendividarematéopescoço,foiessencialparaaestabilização(talcomo

existehoje)docapitalismoglobalnosúltimoscinquentaanos.Nadadissoéencontradonoscapítulos

seguintes. Mas o modelo altamente simplificado de acumulação do capital que Marx constrói e

analisaéextremamenterevelador,alémdeprofundamenterelevanteparaacompreensãodahistória

recente doneoliberalismo, que se caracterizoupela desindustrialização, pelodesemprego estrutural

crônico, pela insegurança crescente do trabalho e por surtos de desigualdade social. Em suma,

passamos muito tempo no mundo do Livro I nos últimos trinta anos. Os problemas da demanda

efetivareveladosnoLivroIIforamtemporariamenteresolvidospelosexcessosdosistemadecrédito,

comconsequênciasprevisivelmentedesastrosas.

CAPÍTULO21:REPRODUÇÃOSIMPLES

OprimeirocapítulodaseçãoVIIapresentaasqualidadesdeumcapitalismoficcionalcaracterizado

pela reprodução simples. Como a acumulação do capital por meio da extração de mais-valor é

reproduzida e perpetuada? Para responder a essa pergunta, temos de entender a acumulação do

capitalemsua“interdependênciacontínua”eno“fluxoconstantedesuarenovação”,demodoque

“todo processo social de produção é simultaneamente processo de reprodução”. Além isso, “se a

produçãotemformacapitalista,tambémotemareprodução”(641).

Partedoqueocapitalistaapropriaemtermosdenovariquezatemdeserinvestidonareprodução

dosistema.Masissosignificaqueomais-valortemderetornaràreproduçãosimples.“Ora,embora

esta[areproduçãosimples]sejamerarepetiçãodoprocessodeproduçãonamesmaescala,essamera

repetição ou continuidade imprime ao processo certas características novas ou, antes, dissolve as

característicasaparentesqueeleostentavaquandotranscorriademaneiraisolada”(642).Atéaqui,a

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análiseseconcentrouapenasnaproduçãodomais-valorcomoumeventoproduzidodeumasóvez.

Masascoisassemostrammuitodiferentesquandoexaminadascomoumprocessocontínuoaolongo

dotempo.

O que reflui continuamente para o trabalhador na forma do salário é uma parte do produto continuamente reproduzido por ele

mesmo.Semdúvida,ocapitalistalhepagaemdinheiroovalordasmercadorias[istoé,ovalordaforçadetrabalho].Masodinheiroé

apenas a forma transformada do produto do trabalho. Enquanto o trabalhador converte uma parte dos meios de produção em

produto,umapartedeseuprodutoanteriorsereconverteemdinheiro.Écomseutrabalhodasemanaanterioroudoúltimosemestre

que serápago seu trabalhodehojeoudopróximosemestre.A ilusãogeradapela forma-dinheirodesaparecede imediatoassimque

consideramosnãoocapitalistaeotrabalhadorindividuais,masaclassecapitalistaeaclassetrabalhadora.(642)

Asrelaçõesdeclasse,enãooscontratosentreindivíduos,ocupamagoraopensamentodeMarx.

Aclassecapitalistaentregaconstantementeàclassetrabalhadora,sobaforma-dinheiro,títulossobrepartedoprodutoproduzidopor

estaúltimaeapropriadopelaprimeira.Demodoigualmenteconstante,otrabalhadordevolveessestítulosàclassecapitalistae,assim,

delaobtémapartedeseupróprioprodutoquecabeaelepróprio.Aforma-mercadoriadoprodutoeaforma-dinheirodamercadoria

disfarçamatransação.(643)

A imagemque isso transmite é que a classe trabalhadora se encontranuma relaçãode “loja de

fábrica” com a classe capitalista. Os trabalhadores recebem dinheiro pela força de trabalho que

vendemaoscapitalistasegastamessedinheirocomprandodevoltaumapartedaquelasmercadorias

queelesproduziramcoletivamente.Essarelaçãodelojadefábricaédissimuladapelosistemasalariale

nãoéfacilmentediscernívelquandoaanálisefocaapenasotrabalhadorindividual.Osignificadode

“capitalvariável”sofreoutramudança.Defato,ocorpodotrabalhador,dopontodevistadocapital,

éummeroinstrumentodetransmissãoparaacirculaçãodeumapartedocapital.Otrabalhadorestá

numa contínua versão do processoM-D-M.Mas, em vez de ver isso como uma relação simples e

linear,temosdepensá-laagoracomocontínuaecircular.Umapartedocapitalfluiàmedidaqueos

trabalhadoresincorporamvalornasmercadorias,recebemsaláriosemdinheiro,gastamodinheiroem

mercadorias, reproduzema simesmose retornamao trabalhonodia seguintepara incorporarmais

valornasmercadorias.Ostrabalhadoressemantêmvivosaofazercircularocapitalvariável.

Isso suscita algumas observações interessantes. Para começar, “o capital variável só perde o

significadodeumvalor adiantadoapartirdo fundoprópriodocapitalistaquandoconsideramoso

processocapitalistadeproduçãonofluxoconstantedesuarenovação”.Oscapitalistassópagamseus

trabalhadoresdepoisqueotrabalhoérealizado.Portanto,ostrabalhadoresadiantamaoscapitalistaso

valor de sua força de trabalho. Não há garantia alguma de que o trabalhador será pago (se, por

exemplo, o capitalista declarar falência nessemeio-tempo). Na China, nos últimos anos, tem sido

muito comum não pagar os salários devidos, em particular na área da construção civil.Marx está

interessado em remodelar de maneira ainda mais radical nossa interpretação da acumulação do

capital.Dizeleque“esseprocessotemdetercomeçadoemalgumlugareemalgummomento.Do

pontodevistaquedesenvolvemosatéaqui,portanto,éprovávelqueocapitalistasetenhaconvertido

empossuidordedinheiroemvirtudedeumaacumulaçãooriginária”(644).Esseconceitoformaráa

basedadiscussãosobreasorigensdocapitalismonocapítulo24.Aqui,eleafirmaapenasquedeveter

havidoummomentooriginalemqueoscapitalistas,deumamaneiraoudeoutra,tiveramrecursos

suficientesparainiciaresseprocessodeacumulaçãodecapital.Aperguntaqueelefazaquié:comoe

porquemessecapitaloriginaléreproduzido?

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Marxdáumexemplo:seumcapitalistateminicialmentemillibraseasinvesteemcapitalvariável

ecapitalconstanteparaproduzirummais-valordeduzentaslibras,eleseapropriadasduzentaslibras

como se fossem capital seu e ainda recebede volta asmil libras iniciais.Mas o capital original foi

preservadopeloconsumoprodutivodostrabalhadores,eomais-valorfoiproduzidoapartirdotempo

de trabalho excedente dos trabalhadores. Suponhamos que, no ano seguinte, o capitalista volte a

investirmillibras(tendoconsumidooexcedente)comoobjetivodeproduziroutrasduzentaslibras

demais-valor.Após cinco anosde repetiçãodoprocesso, os trabalhadoresproduzirammil libras de

mais-valor, o equivalente ao capital original do capitalista. Marx desenvolve aqui o argumento

políticodequeocapitalista,mesmoquetivessedireitoàquelasmillibrasiniciais,certamenteperdeo

direitoaocapitaloriginal,depoisdecincoanosproduzindoduzentaslibrasdemais-valorporano.Por

direito, as mil libras pertencem aos trabalhadores, dado o princípio lockiano (queMarx não cita,

apesardeestarclaroqueotememmente)dequeosdireitosdepropriedadecabemàquelesquecriam

valor aomisturar seu trabalho à terra. São os trabalhadores que produzemomais-valor, e este, por

direito,deveriapertenceraeles.

O caráter políticodesse argumento é importante,mas contraria radicalmentemodosdepensar

profundamente arraigados. Ficaríamos surpresos se nos informassem que o dinheiro original que

depositamos numa caderneta de poupança por 5% de juros, por exemplo, não nos pertence mais

depoisdealgunsanos.Noquenosdizrespeito,ocapitalismoparecesercapazdebotarseuspróprios

ovosdeouro.Masélegítimoperguntardeondevêmos5%,e,seMarxestácerto,elessópodemvir

damobilizaçãoedaapropriaçãodomais-valordealguém,emalgumlugar.Éinquietantepensarque

esses5%talvezvenhamdaexploraçãocrueldetrabalhovivonaprovínciadeCantão,naChina.Nossa

superestruturalegalinsisteempreservarosdireitosoriginaisdepropriedade,assimcomoodireitode

usar esses direitos para ter lucro.Mas os direitos de propriedade resultam do poder de classe do

capital de extrair e manter o controle dos excedentes, porque a força de trabalho se tornou, por

processoshistóricosespecíficos,umamercadoriacompradaevendidanomercadodetrabalho.Oque

Marxdizaquiimplicaque,paradesafiarocapitalismo,énecessáriodesafiarnãoapenasanoçãode

direitos,omodocomoaspessoaspensamsobreosdireitoseapropriedade,mastambémosprocessos

materiaispormeiodosquaisosexcedentes sãocriadoseapropriadospelocapital.Assim,depoisde

cincoanos,

Nem um átomo de valor de seu antigo capital continua a existir. [...] Abstraindo-se inteiramente de toda acumulação, a mera

continuidade do processo de produção, ou a reprodução simples, após um período mais ou menos longo, transforma

necessariamentetodocapitalemcapitalacumuladooumais-valorcapitalizado.Aindaque,nomomentoemqueentrounoprocessode

produção,essecapitalfossepropriedadeadquiridamedianteotrabalhopessoaldaquelequeoaplicou,maiscedooumaistardeelese

converteria emvalor apropriado sem equivalente, emmaterialização, seja em formamonetária, seja emoutra, de trabalho alheionão

pago.(645)

Há um exemplo interessante de um plano prático que reflete omodomarxiano de pensar (se

derivouounãodeMarx,issoeunãosei).UmeconomistasuecochamadoRudolfMeidner,queteve

umpapel fundamental na elaboração do altamente bem-sucedidoEstadode bem-estar social sueco

nosanos1960einíciodosanos1970,formulouaquelequeseriaconhecidocomooPlanoMeidner.

Para enfrentar a inflação, os poderosos sindicatos seriam estimulados a aceitar um arrocho salarial

coletivo.Em troca,os lucros extras (mais-valor)que se somariamaocapital emconsequênciadesse

arrocho seriam depositados num fundo de investimento social que seria controlado pelos

trabalhadoresecomprariaaçõesdeempresascapitalistas.Asaçõesseriaminalienáveise,comotempo

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(maisdoqueos cinco anosdo exemplodeMarx), o controleda empresapassariaparao fundode

investimentosocial.Emoutraspalavras,aclassecapitalistaserialiteralmentecomprada(demaneira

pacífica) ao longo do tempo e substituída pelo controle total dos operários sobre as decisões de

investimento.Oplanofoirecebidocomhorrorpelaclassecapitalista(queprontamenteconcedeuo

chamadoPrêmioNobeldeEconomia–naverdade,esseprêmionãotemnadaavercomNobel–a

neoliberais como Friedrich Hayek e Milton Friedman, formou think tanks antissindicalistas e

mobilizou uma oposição feroz na mídia). O governo social-democrata da época nunca tentou

implementaroplano;contudo,quandopensamosnele,aideia(muitomaiscomplicadanosdetalhes,

éclaro)éextremamentecoerentecomoargumentodeMarx,eofereceaomesmotempoummodo

pacíficodecompraropodercapitalista.Porquenãopensarmaisnisso?

Quandoassociadoàrelaçãode“lojadefábrica”entreotrabalhoeocapital,oargumentodeMarx

conduzainsightsaindamaisprofundos,aomesmotempoquelevantaquestõescruciais(e,nessecaso,

infelizmente não respondidas). “Como antes de [o trabalhador] entrar no processo seu próprio

trabalho já está estranhado” – isto é, o trabalhador cedeu o valor de uso da força de trabalho ao

capitalista–,“tendosidoapropriadopelocapitalistaeincorporadoaocapital,essetrabalhoseobjetiva

continuamente,nodecorrerdoprocesso, emproduto alheio.”Nemoprodutonemo trabalhonele

incorporadopertencemaotrabalhador.

Porconseguinte,oprópriotrabalhadorproduzconstantementeariquezaobjetivacomocapital,comopoderquelheéestranho,queo

dominaeexplora,eocapitalistaproduzdeformaigualmentecontínuaaforçadetrabalhocomofontesubjetivaeabstrataderiqueza,

separadadeseusprópriosmeiosdeobjetivaçãoeefetivação,existentenameracorporeidadedotrabalhador;numapalavra,produzo

trabalhadorcomoassalariado.Essaconstantereproduçãoouperpetuaçãodotrabalhadoréasinequanon[condiçãoindispensável]da

produçãocapitalista.(645-6)

Pensoqueessaéumaformulaçãointeressanteedesconcertante,dignadeumareflexãoséria.“O

próprio trabalhadorproduzconstantementea riquezaobjetiva comocapital”, e essa riquezaobjetiva

torna-seumpoderestranhoqueagoradominaotrabalhador.Otrabalhadorproduzoinstrumentode

sua própria dominação! Esse é um tema que ressoa e reverbera por todoO capital. Ele levanta a

questãohistórica geral da tendência dos seres humanos a produzir os instrumentos de sua própria

dominação.Nessecaso,porém,ocapitalistaproduza fonte subjetivada riqueza,queé abstrata,por

intermédioda“corporeidadedotrabalhador”,queé“separadodeseusprópriosmeiosdeobjetivaçãoe

efetivação”.Ocapitalistaproduze reproduzo trabalhadorcomoosujeitoativo–porémalienado–

capazdeproduzirvalor.Eisso,notebem,éacondiçãofundamentalesocialmentenecessáriaparaa

sobrevivênciaeamanutençãodomododeproduçãocapitalista.

O trabalhador engaja-se no consumo produtivo e no consumo individual (uma distinção que

encontramosantes).Ostrabalhadoresnãosóproduzemoequivalentedovalordocapitalvariável,isto

é,suaprópriavida,comotambémtransfereme,dessemodo,reproduzemovalordocapitalconstante.

Por meio de seu trabalho, os trabalhadores reproduzem tanto o capital quanto o trabalhador. Os

capítulos sobre a divisão do trabalho e a maquinaria mostraram como o trabalhador foi

necessariamente transformado num apêndice do capital no interior do processo de trabalho.Mas

agoravemoso trabalhadorcomoum“apêndicedocapital”nomercadoeemsuacasa.É istoquea

circulação de capital variável realmente significa: o capital circula pelo corpo do trabalhador e

reproduzotrabalhadorcomoumsujeitoativoquereproduzocapital.Masotrabalhadornãotemde

ser reproduzido apenas como uma pessoa individual. “A manutenção e a reprodução da classe

trabalhadorapermanecemumacondiçãonecessáriaparaareproduçãodocapital”(647).

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Issolevantaumasériedequestões,tratadasporMarxdemodomuitosuperficial.Aspolíticasde

reprodução de classe, diz ele, erambrutais e simples em sua época. “O capitalista pode abandonar

confiadamente”atarefadiáriadareproduçãodeclasse“aoimpulsodeautoconservaçãoeprocriação

dos trabalhadores. Ele apenas se preocupa com limitar ao máximo o consumo individual dos

trabalhadores,mantendo-onos limites donecessário” (647).Contudo,Marxpassa ao largode algo

importante,querequerumaanálisemaisprofunda.Aimensaefundamentalquestãodareprodução

daclasse trabalhadoraenvolvequestõesdepropagação,autopreservação, relações sociaisno interior

da classe e uma série de outros aspectos que Marx deixa convenientemente para os próprios

trabalhadores resolverem, porque é isso que o capital supostamente faz. Na verdade, mesmo num

Estado controlado por capitalistas e proprietários fundiários, as questões a respeito da reprodução

socialjamaissãodeixadasunicamenteaostrabalhadores,ecertamenteascondiçõesdalutadeclasses

e “o grau civilizacional” de um país têm o mesmo peso – se não maior – nesse caso do que nas

questõesrelativasà jornadadetrabalho.AdiscussãoanteriorsobreosartigosdasLeisFabrisquese

referemà educação sãoumexemploda intervençãodoEstadonapolítica de reproduçãoda classe

trabalhadora,eoEstadosemprefoiativonocampodasaúdepública(acóleratinhaoestranhohábito

detransporasfronteirasdeclasse)edosdireitosreprodutivos,daspolíticasdecontrolepopulacional

etc.Questõesdessetiponecessitariamdeumaconsideraçãomuitomaisdetalhadadoqueafornecida

porMarx.Masseuargumentogeraléacertado.Areproduçãosimplesnãoéumaquestão técnica.A

questãofundamentaléareproduçãodarelaçãodeclasse.

Em seu próprio desenrolar, portanto, o processo capitalista de produção reproduz a cisão entre força de trabalho e condições de

trabalho.Com isso, ele reproduz e eterniza as condições de exploraçãodo trabalhador.Ele força permanentemente o trabalhador a

vender sua força de trabalho para viver e capacita o capitalista a comprá-la para enriquecer. Já não émais o acaso que contrapõe o

capitalista eo trabalhadornomercado, comocompradorevendedor.Éaversatilidadecaracterísticadoprocessoque faz comqueo

trabalhadortenhaderetornarconstantementeaomercadocomovendedordesuaforçadetrabalhoeconverteseupróprioprodutono

meiodecompranasmãosdoprimeiro.Narealidade,otrabalhadorpertenceaocapitalaindaantesdevender-seaocapitalista.(652)

O resultado, conclui Marx, é que “o processo capitalista de produção, considerado em seu

conjuntooucomoprocessode reprodução,produznãoapenasmercadorias,nãoapenasmais-valor,

masproduzereproduzaprópriarelaçãocapitalista:deumlado,ocapitalista,dooutro,otrabalhador

assalariado”(653).

CAPÍTULO22:TRANSFORMAÇÃODEMAIS-VALOREMCAPITAL

Porumasériederazões,comoveremosembreve,aideiadeummododeproduçãocapitalistanuma

condição estável, de não crescimento, é improvável, se não totalmente impossível. O capítulo 22

examina como e por que omais-valor ganho ontem é transformado no novo capitalmonetário de

amanhã. A resultante “reprodução do capital em escala progressiva” envolve a incorporação dessas

“forças de trabalho suplementares e de diversas faixas etárias que a classe trabalhadora lhe fornece

anualmenteaosmeiosdeproduçãoadicionaisjácontidosnaproduçãoanual”.Paraqueissoaconteça,

énecessárioqueocapitalproduzaprimeiroascondiçõesparasuaprópriaexpansão.

Paraacumular,énecessáriotransformarumapartedomais-produtoemcapital.Mas,semfazermilagres,sópodemostransformarem

capitalaquiloqueéutilizávelnoprocessodetrabalho,istoé,osmeiosdeproduçãoe,alémdeles,aquilocomqueotrabalhadorpode

sustentar-se,istoé,osmeiosdesubsistência.Porconseguinte,éprecisoempregarumapartedomais-trabalhoanualnafabricaçãode

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meios de produção e de subsistência adicionais [...].Numa palavra: omais-valor só pode ser convertido em capital porque omais-

produto,doqualeleéovalor,jácontémoscomponentesmateriaisdeumnovocapital.(656)

Aproduçãodeartigosdeluxooudeoutrosprodutossemutilidade(comoequipamentomilitare

monumentos religiosos ou aoEstado) não tem importância, independentemente de quão lucrativa

possa ser. Os novos meios de subsistência e produção têm de ser produzidos e organizados de

antemão. Então, e apenas então, “o ciclo da reprodução simples se modifica e se transforma [...]

perfazendo uma espiral” (657). Outro modo de ver isso (de acordo com a análise do capítulo

precedente)éodeque“aclassetrabalhadoraquecriou,comseumais-trabalhorealizadonesteano,o

capital que no próximo ano ocupará trabalho adicional. Isso é o que se denomina”, dizMarx com

profundaironia,“gerarcapitalpormeiodecapital”.

No entanto, o trabalhador é sujeito ativo nesse processo. Marx continua a pressupor que os

processosdemercadoobedecem“continuamente à lei da trocademercadorias, e queo capitalista

semprecompraaforçadetrabalhoeotrabalhadorsempreavende,esupomosqueporseuvalorreal”.

Maisumavez,enfatizoaimportânciadessespressupostosnaanálisedeMarx.“Éevidentequealeida

apropriaçãoouleidapropriedadeprivada,leiquesefundanaproduçãoecirculaçãodemercadorias,

converte-seemseudiretooposto,obedecendoàsuadialéticaprópria,internaeinevitável.”Ficaclara,

assim, a inversão do princípio lockiano da mistura de trabalho e terra para criar valor como

fundamentododireitoàpropriedadeprivada.

Atrocadeequivalentes,queapareciacomoaoperaçãooriginal,distorceu-seapontode,agora,atrocaserealizarapenasnaaparência,

umavezque,emprimeirolugar,aprópriapartedocapitaltrocadapelaforçadetrabalhonãoémaisdoqueumapartedoprodutodo

trabalhoalheio,apropriadosemequivalente.(659)

Consequentemente,“arelaçãodetrocaentreocapitalistaeotrabalhadorseconverte,portanto,

emmeraaparênciacorrespondenteaoprocessodecirculação,numameraforma,estranhaaopróprio

conteúdoequeapenasomistifica”(659).EMarxcontinua:

Acompraevendaconstantesdaforçadetrabalhoéaforma.Oconteúdoestánofatodequeocapitalistatrocasemcessarumaparte

do trabalho alheio já objetivado, do qual ele constantemente se apropria sem equivalente, por uma quantidade cada vez maior de

trabalhovivoalheio.Originalmente,odireitodepropriedadeapareciadiantedenóscomofundadonoprópriotrabalho.Nomínimo

esse suposto tinhadeseradmitido,porquantoapenaspossuidoresdemercadoriascomiguaisdireitos seconfrontavamunscomos

outros,mas omeio de apropriação damercadoria alheia era apenas a alienação damercadoria própria, e esta só podia se produzir

medianteotrabalho.Apropriedadeapareceagora,doladodocapitalista,comodireitoaapropriar-sedetrabalhoalheionãopagoou

deseuproduto;doladodotrabalhador,comoimpossibilidadedeapropriar-sedeseupróprioproduto.Acisãoentrepropriedadee

trabalhoconverte-senaconsequêncianecessáriadeumaleiqueaparentementepartiadaidentidadedeambos.(659)

Nesseponto,Marxvolta(maisumavez!)àquestãodecomoatrocadeequivalentespodeproduzir

um não equivalente, isto é, mais-valor, e como a noção original de direitos de propriedade é

invertida, tornando-se um direito de apropriação do trabalho de outros. O que vem a seguir é,

portanto,aenésimarepetiçãoda teoriadomais-valor (sevocêainda temalgumadúvidaa respeito

dessateoria,leiacomatençãoapassagemdaspáginas660-1).Marxprossegue,noentanto,eobserva

queoquepodeserdeduzidodopontodevistadoindivíduonãocostumafuncionardopontodevista

dasrelaçõesdeclasse.

Certamente,oquadroéinteiramentediferentequandoconsideramosaproduçãocapitalistanofluxoininterruptodesuarenovaçãoe,

em vez do capitalista individual e do trabalhador individual, consideramos a totalidade, a classe capitalista e, diante dela, a classe

trabalhadora.Comisso,porém,introduziríamosumpadrãodemedidatotalmenteestranhoàproduçãodemercadorias.(661)

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Issoaconteceporquealiberdade,aigualdade,apropriedadeeBenthamprevalecemnomercado,

tornandoinvisívelaproduçãodemais-valornoprocessodetrabalho.

Esse mesmo direito segue em vigor como no início, quando o produto pertencia ao produtor, e este, trocando equivalente por

equivalente, sópodia enriquecermediante seupróprio trabalho, e também segue emvigornoperíodo capitalista, quando a riqueza

socialsetorna,emproporçãocadavezmaior,apropriedadedaquelesemcondiçõesdeseapropriarsempredenovodotrabalhonão

pago de outrem. [...] Esse resultado se torna inevitável tão logo o próprio trabalhador vende livremente a força de trabalho como

mercadoria.(662)

Asliberdadeseosdireitosburguesesmascaramaexploraçãoeaalienação.“Namesmamedidaem

que,deacordocomsuasprópriasleisimanentes,ela[aproduçãodemercadorias]sedesenvolveatése

converteremproduçãocapitalista,asleisdepropriedadequeregulamaproduçãodemercadoriasse

convertem em leis da apropriação capitalista” (662). Para usarmos a linguagem do prefácio da

Contribuição à crítica da economia política, há um ajuste superestrutural para legitimar e legalizar a

apropriaçãodemais-valor,recorrendoaconceitosdedireitosdepropriedadeprivada.Daíarejeição

deMarxatodaequalquertentativadeuniversalizarasconcepçõesburguesasdedireitoejustiça.Elas

não fazemmaisdoque forneceracobertura legal, ideológicae institucional socialmentenecessária

paraaproduçãodocapitalnumaescalacadavezmaior.

A economia política clássica, cheia de concepções burguesas de direitos, levou a “concepções

errôneasdareproduçãoemescalaampliada”(comodizotítulodoitem2).Paracomeçar,arelação

entreaacumulaçãodocapitaleoentesouramento(poupança) foimantidanumestadodeextrema

confusão. No entanto, a economia política clássica está certa “quando acentua como momento

característicodoprocessodeacumulaçãooconsumodomais-produtoportrabalhadoresprodutivos,

emvezdeporimprodutivos”(664).Mas,peladefiniçãomarxianade“produtivo”,issosignificaqueo

mais-produto de ontem tem de servir para a criação de mais mais-produto e mais-valor hoje. As

dinâmicas desse processo são complicadas. A economia política clássica focou exclusivamente o

trabalhoextrae,portanto,ocapitalvariávelextra(aumentoemgastoscomsalários)queeraexigido.

Contudo,assimcomonocasodaúltimahoradeSenior,daqualMarxzombou,aeconomiapolítica

clássicatendeuaseesquecerinteiramentedanecessidadedeobternovosmeiosdeprodução(capital

constante) a cada rodada de acumulação (que acarretoumudanças na relação com a natureza por

meio da extração de matéria-prima). Essa era a segunda “concepção errônea” queMarx tinha de

corrigir.

Isso nos leva à pergunta fundamental: se os capitalistas têmo comandodomais-valor, por que

simplesmentenãooconsomemeaproveitamavida?Umapartedomais-valoré,defato,consumida

pelos capitalistas como renda. A classe capitalista consome uma parte domais-valor para satisfazer

seusprazeres.Masoutraparteéreinvestidacomocapital.Surgeentãooutrapergunta:oquegoverna

a relação entre o consumoda renda e o reinvestimento domais-valor como capital?A resposta de

Marxmereceumalongacitação.

Apenascomocapitalpersonificadoocapitalistatemumvalorhistóricoedispõedaqueledireitohistóricoàexistênciadeque,comodiz

o espirituoso Lichnovski, nenhuma data não dispõe

[b]

. Somente nesse caso sua própria necessidade transitória está incluída na

necessidadetransitóriadomododeproduçãocapitalista.Aindaassim,porém,suaforçamotriznãoéovalordeusoeafruição,maso

valordetrocaeseuincremento.(667)

Oscapitalistas,dizMarx,estãonecessariamenteinteressadosnaacumulaçãodopodersocialem

forma-dinheiroe,portanto,sãoestimuladosporela.

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Como fanático da valorização do valor, o capitalista força inescrupulosamente a humanidade à produção pela produção e,

consequentemente,aumdesenvolvimentodasforçasprodutivassociaiseàcriaçãodecondiçõesmateriaisdeproduçãoqueconstituem

asúnicasbasesreaispossíveisdeumaformasuperiordesociedade,cujoprincípiofundamentaléoplenoelivredesenvolvimentode

cada indivíduo.O capitalista só é respeitável como personificação do capital. Como tal, ele partilha com o entesourador a pulsão

absolutadeenriquecimento.Masoquenesteaparececomomaniaindividual,nocapitalistaéefeitodomecanismosocial,noqualele

não é mais que uma engrenagem. Além disso, o desenvolvimento da produção capitalista converte numa necessidade o aumento

progressivo do capital investido numa empresa industrial, e a concorrência impõe a cada capitalista individual, como leis coercitivas

externas,asleisimanentesdomododeproduçãocapitalista.Obriga-oaexpandircontinuamenteseucapitalafimdeconservá-lo,eele

nãopodeexpandi-losenãopormeiodaacumulaçãoprogressiva.(667)

O capitalista, segundo Marx, não tem uma liberdade real. Os pobres capitalistas são meras

engrenagensdeummecanismo;elestêmdereinvestir,porqueasleiscoercitivasdaconcorrênciaos

obrigamaisso.Comocapitalpersonificado,elestêmumapsicologiatãoconcentradanoaumentodo

valor de troca, na acumulação do poder social em forma-dinheiro ilimitada, que a acumulação de

dinheirosetornaofocofetichistadeseusdesejosmaisprofundos.Nissoresideasimilaridadeentreo

miserável e o capitalista. Ambos desejam poder social, mas os capitalistas procuram esse poder

colocando constantemente sua riqueza em circulação, ao passo que o miserável tenta manter sua

riquezadeixandodeusá-la.E se individualmenteos capitalistasderemalgumsinaldequeestão se

desviando de sua missão principal, as irritantes leis coercitivas da concorrência (mais uma vez

introduzidasnaargumentaçãocomafunçãoessencialdepoliciarosistema)ospõemnalinha.

Diantedessa realidade,os apologistasburgueses criamumanobre ficção.Oscapitalistas,dizem

eles,criamcapitalededicam-seàsuanobremissãodecriaraquela“formasuperiordesociedade”–

quemesmoMarxadmitequepodeserprodutodeseusesforços–pormeiodaabstinência!Devodizer

que,vivendoemNovaYork,jamaispresencieiumasituaçãoemqueaclassecapitalistasemostrasse

abstinente.Marxsugere,noentanto,queoscapitalistassedefrontamcomumdilemafaustiano.Eaté

citaFausto: “Duas almasmoram, ah!, em seupeito, eumaquer apartar-sedaoutra!” (620).Porum

lado, eles são forçadospelas leis coercitivasda concorrência a acumular e reinvestir;poroutro, são

atormentados pelo desejo de consumir. A abstinência forçada de consumo é transformada numa

ideologiadevirtudeburguesavoluntária.Olucropodeatéserinterpretadocomoumretornoobtido

graçasàvirtude!Eoreinvestimentotambéméumavirtude(elecriaempregos,porexemplo)emerece

seradmiradoerecompensado.TodosaquelescortesdeimpostosqueGeorgeW.Bushconcedeuaos

multimilionários durante seu governo foram interpretados como uma recompensa aos investidores

virtuosos, cuja abstinência tinha supostamente um papel crucial na criação de empregos e no

crescimentoeconômico.Ofatodeosricosseacostumaremrapidamenteafazerfestasde10milhões

dedólaresparacomemorara formaturados filhosouoaniversáriodaesposanãocasoumuitobem

com a teoria. No entanto, Marx, ainda fortemente influenciado pela história do capitalismo de

Manchester, sugere que a luta entre as “duas almas” que habitam o peito do capitalista teve uma

evoluçãogradual.Defato,nosestágiosiniciais,oscapitalistasforamforçadosaseabsterdoconsumo

(daí a importânciada ideologiadosquakers entreosprimeiros capitalistas ingleses),mas, àmedida

queaespiraldaacumulaçãoaumentavacadavezmais,asrestriçõesaoconsumoseabrandaram.Em

Manchester,“oúltimoterçodoséculoXVIII,‘foidegrandeluxoeesbanjamento’”,dizMarx,citando

umrelatode1795(670).Sobtaiscondições,“aproduçãoeareproduçãoemescalaampliadaseguem

aqui seu curso, sem qualquer ingerência daquele santo milagroso, o cavaleiro da triste figura, o

capitalista‘abstinente’”(674).

Movidos pelas leis coercitivas da concorrência e pelo desejo de aumentar seu poder social em

forma-dinheiro ilimitada, os capitalistas reinvestemporque esse é o únicomeio de permanecer no

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negócioemanter suaposiçãodeclasse. Isso levaMarxaumaconclusão fundamentala respeitoda

essênciadomododeproduçãocapitalista.

Acumulai,acumulai!EisMoiséseosprofetas!“Aindústriaprovêomaterialqueapoupançaacumula.”Portanto,poupai,poupai,isto

é, reconverteiemcapitalamaiorpartepossíveldomais-valoroudomais-produto!Aacumulaçãopelaacumulação,aproduçãopela

produção:nessafórmula,aeconomiaclássicaexpressouavocaçãohistóricadoperíodoburguês.Emnenhuminstanteelaseenganou

sobre as dores de parto da riqueza,mas de que adianta lamentar-se diante da necessidade histórica? Se para a economia clássica o

proletárionãoeramaisqueumamáquinaparaaproduçãodemais-valor,tambémocapitalista,paraela,eraapenasumamáquinapara

atransformaçãodessemais-valoremmais-capital.(670-1)

Isso significa simplesmente que o capitalismo procura sempre o crescimento.Não pode existir

uma ordem social capitalista que não seja fundada na busca do crescimento e da acumulação em

escalacadavezmaior.“Aacumulaçãopelaacumulação,aproduçãopelaprodução.”Leiaasmatérias

diáriassobreasituaçãodaeconomia–doqueaspessoasfalamotempointeiro?Crescimento!Onde

está o crescimento? Como vamos crescer? Pouco crescimento define uma recessão, assim como

crescimento negativo define uma depressão. Um crescimento (composto) de 1% ou 2% não é

suficiente; precisamos de 3% no mínimo e a economia só pode ser considerada “saudável” se

chegarmosa4%.EvejaaChina:elatemtaxasconstantesde10%decrescimentohátantosanos.Essa

é a verdadeira história de sucesso nos tempos atuais, em comparação com o Japão, que depois de

décadasdecrescimentoespetaculartevecrescimentopróximoazeronosanos1990efoitransferido

paraaenfermariadocapitalismoglobal.

A esse imperativo soma-se uma crença fetichista, uma ideologia centrada nas virtudes do

crescimento.O crescimento é inevitável, o crescimento é bom.Não crescer é estar em crise.Mas

crescimento ilimitado significa produzir por produzir, o que também significa consumir por

consumir. Tudo o que se coloca no caminho do crescimento é ruim. Barreiras e limites ao

crescimentotêmdeserremovidos.Problemasambientais?Péssimo!Arelaçãocomanaturezatemde

sermudada.Problemassociaisepolíticos?Péssimo!Reprimaoscríticosemandeosrecalcitrantespara

acadeia.Barreirasgeopolíticas?Derrube-ascomviolência,senecessário.Tudodevedançaraoritmo

da“acumulaçãopelaacumulação”eda“produçãopelaprodução”.

ParaMarx,essaéumadascaracterísticasquedefinemocapitalismo.Éclaroqueelechegaaessa

conclusão com base em seus pressupostos. Mas esses pressupostos são coerentes com a visão da

economia política clássica acerca da “missão histórica” da burguesia. E isso define um princípio

reguladormuitoimportanteepoderoso.Ahistóriadocapitalismonãosebaseiaemtaxascompostas

de crescimento? Sim. As crises capitalistas não são definidas como falta de crescimento? Sim. Os

criadores de políticas em todo o mundo capitalista não são obcecados pelo estímulo e pela

manutençãodocrescimento?Sim.Evocêjáviualguémquestionaroprincípiodocrescimento,para

nãodizertomaralgumaprovidênciaaesserespeito?Não.Questionarocrescimentoéirresponsávele

impensável. Apenas excêntricos, desajustados e utopistas esquisitos acreditam que o crescimento

ilimitadosejaruim,sejamquaisforemsuasconsequênciasambientais,econômicas,sociaisepolíticas.

Sem dúvida, problemas causados pelo crescimento, como o aquecimento global e a degradação

ambiental, têmde ser enfrentados,mas é raroque se diga que a resposta aoproblema é suspender

completamenteocrescimento(emborahajaevidênciasdequeasrecessõesaliviemapressãosobreo

meioambiente).Não,temosdedescobrirnovastecnologias,novasconcepçõesmentais,novosmodos

de viver e produzir, para que o crescimento, a ilimitada acumulação composta do capital, possa

continuar.

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Essenãofoiumprincípioreguladordeoutrosmodosdeprodução.Éclaroqueimpérioscresceram

eordenssociaisseexpandiramepisodicamente,mascomfrequênciaelesapenasseestabilizarame,em

algunscasos,estagnarameatédesapareceram.Umadasgrandescríticasaoscomunismosrealmente

existentes,comoaantigaUniãoSoviéticaeCuba,foiecontinuaaserqueessespaísesnãocresceram

o suficiente e, por isso, não podiam competir com o incrível consumismo e o espetáculo do

crescimento no Ocidente, concentrado nos Estados Unidos. Digo isso não para elogiar a União

Soviética,masparadestacarquãoautomáticastendemasernossasrespostasaonãocrescimento–a

estagnaçãoé imperdoável.Hoje temosumaquantidade suficientedeveículosutilitáriosesportivos,

Coca-Colaeáguaengarrafadaparasatisfazeraacumulaçãopelaacumulação,acompanhadadetodo

tipodeconsequênciadesastrosaparaasaúdeeomeioambiente(comoepidemiasdediabetes,que,

diga-sedepassagem,aindasãorarasemCuba,emcomparaçãocomosEstadosUnidos).Issonosleva

a pensar que pode ser difícil manter a taxa composta de crescimento de 3% que caracteriza o

capitalismo desde ametade do século XVIII. Quando o capitalismo era constituído de uma zona

econômicadecercade40milhasquadradasemtornodeManchestereumaspoucascidadezinhas,

3% de taxa composta de crescimento eram algo excepcional, mas hoje ele abrange a Europa, a

América do Norte e do Sul e, sobretudo, o Leste Asiático, com forte implantação na Índia, na

Indonésia,naRússiaenaÁfricadoSul.Partindodessabase,asconsequênciasdeumataxacomposta

decrescimentode3%ao longodospróximoscinquentaanos são inimagináveis.Aomesmotempo,

isso tornamais imaginável, senãoabsolutamente imperativa, a sugestãodeMarxnosGrundrisse de

queestánahoradeocapitaldarlugaraummododeproduçãomaissensato.

Comosepodever,háumavariedadedemodosdeganharmais-valorsemproduzirabsolutamente

nada.Reduzirovalordaforçadetrabalhopelareduçãodopadrãodevidaéumdoscaminhos.Marx,

citando John StuartMill, diz que, “se o trabalho pudesse ser obtido sem ser comprado, os salários

seriamsupérfluos”.

Mas,seostrabalhadorespudessemviverdear,tampoucoseriapossívelcomprá-losporpreçoalgum.Suagratuidadeé,portanto,um

limiteemsentidomatemático,sempre inalcançável,aindaquesemprepassíveldeaproximação.Éumatendênciaconstantedocapital

reduzirostrabalhadoresaessenívelniilista.(676)

E Marx apresenta algumas maneiras de fazer isso, como fornecer receitas culinárias aos

trabalhadoresparaqueeconomizemcomalimentação.Maistarde,essetipodecoisatornou-separte,

porexemplo,daspráticasdaRussellSageFoundationedosassistentessociais,quetentaramensinara

outros trabalhadoresmaneirasadequadasdeconsumir.Tomaressecaminho,porém,criaproblemas

de demanda efetiva queMarx não considera, porque ele pressupõe que todas as mercadorias são

comercializadasporseusvalores.Aeconomiadecapitalconstante(inclusiveocortededesperdícios)

também pode ser proveitosa, embora os capitalistas estejam constantemente à procura de algo

“presenteado gratuitamente pela Natureza”. “Uma vez mais, é a ação direta do homem sobre a

natureza que se converte, sem interferência de novo capital, em fonte direta de uma maior

acumulação” (679). Alterar a produtividade do trabalho social por outros meios (motivação e

organização) não custa nada, e usarmáquinas velhas, além de seu tempo de vida, também ajuda,

assimcomodestinarrecursosexistentes(porexemplo,ambientesconstruídos)paranovospropósitos.

Finalmente, “a ciência e a técnica constituem uma potência de expansão do capital em

funcionamento,independentedagrandezadadaqueessecapitalalcançou”(681).Aacumulaçãopode

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serexpandidaportodosessesdiferentesmeios,semquehajanecessidadederecorreràcapitalização

domais-valor.

“Nodecorrerdestainvestigação”,dizMarxnoiníciodoitem5,

verificamosqueocapitalnãoéumagrandeza fixa,masumaparte elásticada riqueza social,parteque flutuaconstantementecoma

divisão do mais-valor em renda e capital adicional. Viu-se, além disso, que, mesmo com uma dada grandeza do capital em

funcionamento,aforçadetrabalho,aciênciaeaterraneleincorporadas(eporterraentendemos,dopontodevistaeconômico,todos

osobjetosde trabalhopreexistentesnanatureza, sem intervençãohumana) constituempotências elásticasdocapital,potênciasque,

dentro de certos limites, deixam a ele umamargem de ação independente de sua própria grandeza. Abstraímos, aqui, de todas as

circunstâncias do processo de circulação [ele se refere aos pressupostos iniciais sobre omercado], que proporcionam grausmuito

diversosdeeficiênciaàmesmamassadecapital[...][e]abstraímosdequalquercombinaçãomaisracionalquepudesseserrealizadade

maneiradiretaeplanificadacomosmeiosdeproduçãoeasforçasdetrabalhoexistentes.(684-5)

Maisumavez,Marx insistena incrível flexibilidadeemanobrabilidadedocapital. “Aeconomia

políticaclássica”,aocontrário,“sempregostoudeconceberocapitalsocialcomoumagrandezafixae

dotada de um grau fixo de eficiência”. O pobre Jeremy Bentham, “esse oráculo insipidamente

pedanteefanfarrãodosensocomumburguêsdoséculoXIX”,tinhaumavisãoparticularmentefixade

comoocapitalismoconstruiuumfundodetrabalho(685).

Ocapitalnãoéumagrandezafixa!Nuncaseesqueçadissoeagradeçaofatodeexistirumaboa

dose de flexibilidade e fluidez no sistema. Muito frequentemente, a oposição de esquerda ao

capitalismosubestimouessefato.Seoscapitalistasnãopodemacumulardeummodo,elesofarãode

outro.Senãopodemusaraciênciaeatecnologiaemseuprópriobenefício,explorarãoanaturezaou

passarão receitas à classe trabalhadora. Há inúmeras estratégias à disposição deles, e eles

desenvolverammaneirasmuitosofisticadasdeusá-las.Ocapitalismopodesermonstruoso,masnãoé

um monstro rígido. Os movimentos oposicionistas ignoram sua capacidade de adaptação, sua

flexibilidadeefluidezporsuaprópriacontaerisco.Ocapitalnãoéumacoisa,masumprocesso.Está

continuamenteemmovimento,mesmoquandointeriorizaoprincípioreguladorda“acumulaçãopela

acumulaçãoeaproduçãopelaprodução”.

[a]Citaçãomodificadadopoema(ecançãopopular)“AndieNatur”,deFriedrichLeopold,condedeStolberg.(N.T.)

[b]A31deagostode1848,naAssembleiaNacionaldeFrankfurt,olatifundiáriosilesianoLichnovskipronunciou-se–numalemãoque

provocou risos nos ouvintes – contra o direito histórico da Polônia à existência autônoma, direito de que, disse, “nenhuma data não

dispõe”.SegundoLichnovski,umadataanteriordeocupaçãodoterritóriopolonêssempre“poderiareivindicar”um“direitomaior”,como

eraocasodosalemães.EssediscursofoicomentadoàépocaporMarxeEngels,naNovaGazetaRenana,numasériedeartigosintitulada

“DiePolendebatteeinFrankfurt”[OdebatesobreaPolôniaemFrankfurt](Cf.N.E.A.MEW,5,p.351-3).(N.T.)

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10.Aacumulaçãocapitalista

CAPÍTULO23:ALEIGERALDAACUMULAÇÃOCAPITALISTA

Nocapítulo23,Marxoperacionalizaummodelosinópticodadinâmicacapitalistasobospressupostos

apresentadosnocomeçodaseçãoVII:aacumulaçãoocorrenormalmente(nãohánenhumproblema

nomercadoetudoécomercializadoporseuvalor,comexceção,nessecapítulo,daforçadetrabalho);

osistemaéfechado(nãohácomércioexterior);omais-valoréproduzidopormeiodaexploraçãodo

trabalhovivonaprodução;eadivisãodomais-valorentre juro, lucrodocapitalmercantil, rendae

impostosnão temnenhumimpacto.Nessemodelopurodoprocessodeacumulação, tudodepende

desses pressupostos. Quando eles são abandonados, como ocorre no Livro II, os resultados são

diferentes.

Umcomentáriosobreacomposiçãodovalordocapital

Nesse capítulo,Marx concentra-senumaquestão substantiva.Quer examinar as implicaçõesda

acumulaçãodocapitalparaodestinodaclassetrabalhadora.Essaéarazãoporqueelepermitequea

remuneraçãodaforçadetrabalhoflutueacimaeabaixodeseuvalor.Paraajudarnessatarefa,constrói

umaparatoconceitualparatratardaquiloqueelechamade“composiçãodocapital” (689).Eleusa

três termos: composição técnica, composiçãoorgânica e composiçãodevalor.Aparentemente, esses

termosforamintroduzidosbemmaistardenoargumento,empartecomoreflexodotrabalhoqueele

estavafazendonoLivroIII,sobreascontradiçõeseascrises.Assim,nãotêmumafunçãoimportante

nessecapítulo,eépossívelentenderoargumentosemeles.

Casoessapartedadiscussão lhepareçaesotérica e complicada (oqueela é),passediretamente

paraoitemseguinte.Mas,comotaistermosdesempenhamumpapelcentralnoLivroIIIetêmsido

objeto de grande discussão e controvérsia na teoria marxiana em geral, acho que é importante

examiná-losaqui.

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Otermo“composiçãotécnica”descrevesimplesmenteacapacidade físicadeumtrabalhadorde

transformar certa quantidade de valores de uso numamercadoria em dado período de tempo. Ele

medeaprodutividadefísicaerefere-seaonúmerodemeias,toneladasdeaço,unidadesdepão,litros

desucodelaranjaougarrafasdecervejaproduzidosporhoraporumtrabalhador.Novastecnologias

transformamessarazãofísicaparaque,porexemplo,onúmerodemeiasquecadatrabalhadorproduz

por hora aumente de dez para vinte. O conceito de composição técnica é claro e inequívoco. Os

problemascomeçamnadiferenciaçãoentreascomposiçõesorgânicaedevalor,quesãoambasrazões

de valor. A composição de valor é a razão entre o valor dos meios de produção consumidos na

produçãoeovalordocapitalvariáveladiantado.Convencionalmente,representamosessarazãocomo

c/v, a quantidade de capital constante dividida pelo capital variável. A composição orgânica, que

também émedida comouma razão de valor de c/v, é definida comomudanças na composição de

valorqueadvêmdemudançasfísicasnaprodutividade.

Por que essa diferença? A implicação é que podem ocorrer mudanças na composição do valor

diferentesdaquelas relacionadasàsmudanças físicasnaprodutividade.Umavezquemudançasnão

tecnológicas foram listadas no fim do capítulo precedente, essa interpretação é mais do que

simplesmente plausível. Mas note que tal tipo de mudança, assim como dádivas da natureza,

economiasdedesperdíciooureduçãodopadrãodevidadostrabalhadores,podeafetarovalortanto

docapitalconstantequantodocapitalvariável investido,demodoquearazãoc/vpodecrescerou

decrescer como resultado de tais mudanças. Há outra interpretação que, pelo que sei, Marx não

desenvolve,maspodemosinferi-la.Essainterpretaçãodependedeondeestãoocorrendoasmudanças

na produtividade física. Se eu alterar a produtividade física da fabricação de meias por meio do

emprego de nova maquinaria, a razão c/v (chamemos assim à composição orgânica do capital)

aumentaráemminhaempresaemvirtudedeminhasações.Mas tambéméprovávelqueessa razão

mudesemqueeufaçanada,poisovalordocapitalconstanteevariávelqueobtenho(porseuvalor,

dados os pressupostos de Marx) é fixado pela produtividade física cambiante nas indústrias

produtorasdosbensdeprimeiranecessidadequefixamovalordaforçadetrabalhoenasindústrias

queproduzemosmeiosdeproduçãoqueadquiro(entradasdecapitalconstante).Nesseexemplo,a

razão c/v (chamemos a isso composiçãode valor do capital) aumentará ou cairá conformeo ritmo

relativodemudançasnaprodutividade físicanessesdoisdiferentes setoresda economia (embora a

produtividade física naminha empresa não tenha se alterado). Essa interpretação foca a diferença

entreoqueocapitalistapodefazerquantoàrazãoc/veoqueacontececomarazãoc/vnomercado,

fora do controle do capitalista. É difícil sustentar essa interpretação aqui, porque, nesse capítulo,

Marx trabalha no nível agregado das relações entre as classes capitalista e trabalhadora.Mas ela é

plausívelaindaassim,dadaateoriadomais-valorrelativo,queenfatizaqueoquemoveodinamismo

tecnológico (queproduzmais-valor relativodo tipoagregado)é aprocuradocapitalista individual

(queoperasobasleiscoercitivasdaconcorrência)pelaformaefêmerademais-valorrelativo.

Arazãoporqueissoétãoimportanteéque,noLivroIIId’Ocapital,Marxexplicaporqueexiste

uma tendênciadequedada taxade lucro.Ricardo explicou isso em termosmalthusianos,dizendo

que,nofim,ganhosdecrescentescomaterraaumentariamtantoopreçodosrecursosnaturaisqueos

lucrosteriamdecairatézero.Emoutraspalavras,oproblemaestánarelaçãocomanatureza(quando

sedeparoucomoproblemadataxadecrescentedelucro,Marxafirmou,emoutraparte,queRicardo,

“fugindoda economia, [...] se refugianaquímicaorgânica”

[a]

).Marxdesconsidera essa afirmação e

argumenta, ao contrário, que é a dinâmica interna da mudança tecnológica no interior do

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capitalismo, a busca pelo mais-valor relativo, que aumenta a composição orgânica (de valor?) do

capital, c/v, que, no longo prazo, levará a uma taxa decrescente de lucro (s/[c + v]), com base no

pressuposto de um limite sobre a taxa de exploração (s/v).Dito de outromodo, as inovações que

poupamtrabalhoremovemoprodutorativodevalordoprocessode trabalhoe,assim, tornammais

difícil (mantendo-se constantes as demais circunstâncias) produzir mais-valor. O argumento é

engenhoso e tem a virtude indubitável de interiorizar (corretamente, ameu ver) as dinâmicas da

formaçãodecrisesnosquadrosdasrelaçõessociaiscapitalistasedodesenvolvimentodesuasforças

produtivas.Infelizmente,oargumentoéincompletoeproblemático,porque,dadaasegundalinhado

argumentoapresentadoacima,nãoháporquearazãoc/vaumentardomodocomoMarxsugere.

Nesse capítulo,Marx argumenta diretamente em favor de uma lei da composição crescente de

valor do capital. Ele começa observandoque, do ponto de vista da classe capitalista, a composição

cambiantedevalordocapitaltemaspectosdiretoseindiretosemrelaçãoàprodução.

Estamosfalandonãoapenasdemáquinasefábricas,mastambémdeferrovias,estradasetodotipo

de infraestrutura (ambientes construídos) que fornecem as precondições necessárias à produção

capitalista.Paraqueessasprecondiçõessejamcumpridas,éprecisoqueocorraumenormeaumento

naproporçãodoestoquetotaldecapitalconstante(ecadavezmais fixo)emrelaçãoaonúmerode

trabalhadores empregados. (Marx não registra aqui algo que ele observa em outro lugar: se

investimentospassados,porexemplo,emambientesconstruídosjáforamamortizados,elesfuncionam

como um “bem livre” – demodomuito semelhante às dádivas da natureza – para a realização da

produçãocapitalista.Querdizer,anãoserqueumaclasseinoportunadeproprietáriosfundiáriosse

meta no caminho e comece a extrair renda dos capitalistas.)Omovimento que leva da produção

artesanalrelativamentesimplesaprocessosdeproduçãomaiscomplexoseintegradosapresentauma

tendênciahistóricaaaumentar,comotempo,arazãodec/v.IssolevaMarxaobservarque

essaleidoaumentocrescentedaparteconstantedocapitalemrelaçãoasuapartevariáveléconfirmadaacadapasso[...]pelaanálise

comparativa dos preços das mercadorias, quer comparemos diferentes épocas econômicas de uma única nação, quer comparemos

naçõesdiferentesnumamesmaépoca.Enquantoagrandezarelativadoelementodopreçoquerepresentaapenasovalordosmeiosde

produçãoconsumidos,ouseja,aparteconstantedocapital, serádiretamenteproporcionalaoprogressodaacumulação,agrandeza

relativa do outro elemento do preço, que representa a parte que paga o trabalho ou a parte variável do capital, será inversamente

proporcionalaele.(699)

Há, comoMarx claramente propõe, uma “lei” da composição crescente de valor do capital ao

longodotempo,eéessaleiquedesempenhaumpapelcrucialnateoriadataxadecrescentedelucro

noLivroIII.Contudo,Marxreconhecequepodehaverumdecréscimonovalor(opostoàpresença

física)docapitalconstanteemrazãodamudançatecnológica.Defato,elesugerequesearazãoc/v

nãoaumentoumaisfoiporque,“comacrescenteprodutividadedotrabalho,nãoapenasaumentao

volumedosmeiosdeproduçãoporeleutilizados,masovalordelesdiminuiemcomparaçãocomseu

volume”.Comoresultadodaprodutividadecrescentenaproduçãodemeiosdeprodução,

seu valor aumenta, portanto, demodo absoluto,mas não proporcionalmente a seu volume.O aumento da diferença entre capital

constanteecapitalvariávelé,porconseguinte,muitomenordoqueodadiferençaentreamassadosmeiosdeproduçãoeamassada

forçadetrabalhoemquesãoconvertidos,respectivamente,ocapitalconstanteeocapitalvariável.(699)

A“lei”pressupostada composiçãocrescentedevalordocapital está sujeita amodificação,mas

nãodeummodoquecontrariesuadireçãofundamental.Aacumulaçãodocapitaleabuscapormais-

valorrelativo“geram,deacordocomaconjugaçãodosestímulosqueelesexercemumsobreooutro,a

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variação na composição técnica do capital, o que faz comque a sua componente variável se torne

cadavezmenoremcomparaçãoàcomponenteconstante”(701).

Maspara consolidar seu argumentoMarxprecisadividir a economia em setoresqueproduzam

bensemeiosdeproduçãoe,emseguida,examinaras taxas relativasdemudançanaprodutividade

físicaemambosossetores.ElefazissonofimdoLivroII(escritoapósosrascunhosdoLivroIIIque

chegaramaténós),massuapreocupaçãoprincipaléexaminarcomoomercadopodemanterosdois

setoresemequilíbrio(seéquepodefazerisso).Eledescarta,portanto,odinamismotecnológicoque

se encontra no centroda análise doLivro I e é tão vital para a análise dos lucros decrescentes no

LivroIII.Oconceitodecomposiçãodevalornãoémencionado.Marxconsideraaprobabilidadede

crisesdedesproporcionalidade (excessodeprodutosdeprimeiranecessidade em relação aosmeios

produção, ou vice-versa) emesmo a possibilidade de crises generalizadas de subconsumo (falta de

demanda efetiva),mas não faz nada para esclarecer a questão das taxas decrescentes de lucro que

decorremdasmudançastecnológicas.Oqueaobrateóricasubsequentemostrou,noentanto,éque

há um padrão de mudança tecnológica entre os dois setores (bens de subsistência e meios de

produção)quepodemanterarazãoc/vperpetuamenteconstante,masnãoexistenenhummecanismo

paraassegurartal resultado.Por issoaprobabilidadedecrises frequentesdedesproporcionalidadee

crisesgeneralizadasocasionais,decorrentesdeinstabilidadesgeradaspelasmudançastecnológicas,é

considerável.

Éclaroquenãopodemosresolvertodasessasquestõesaqui.Ameuver(emuitosdiscordarãode

mim),aintuiçãodeMarxdequeospadrõesdemudançatecnológicasãodesestabilizadoresaponto

de produzir crises está correta, mas não posso dizer o mesmo de sua explicação das composições

crescentes de valor e das taxas decrescentes de lucro.No entanto, a linha principal de argumento

desenvolvidanessecapítuloéperfeitamentecompreensívelsemoempregodoconceitodecomposição

devalor.

Oprimeiromodelodaacumulaçãodocapital

Se os capitalistas pegam parte do mais-valor que eles apropriaram ontem e investem emmais

produçãohoje, isso requermais forçade trabalho,pressupondo-se,porora, quenãohajanenhuma

mudançatecnológica.Assim,oprimeiroefeitoóbviodaacumulaçãodocapitalsobessascondiçõeséa

demanda aumentada de força de trabalho. “Acumulação do capital é, portanto, multiplicação do

proletariado”(690).Deondesairãoostrabalhadoresextras,equaisserãoasimplicaçõesdoaumento

dademanda?Emalgumponto,ademandaaumentadalevaráaumaumentonossalários.A“espiral”

daacumulaçãofaz,portanto,comquemaiscapitalsejagerado,maistrabalhadoressejamempregados

porsaláriosmaiores,demodoqueouaforçadetrabalhoévendidaacimadeseuvalor(umaexceção

dopressupostodequetodasasmercadoriassãotrocadasporseuvalor)ouovalordaforçadetrabalho

aumenta àmedida que os trabalhadores alcançam um padrão superior de vida.Mas isso significa

apenas que “o tamanho e o peso dos grilhões de ouro que o trabalhador forjou para si mesmo

permitemtorná-las [a relaçãodedependênciaeaexploraçãodoassalariado]menosconstringentes”

(695).

Abstraindototalmentedaelevaçãodosalário,acompanhadadeumabaixadopreçodotrabalhoetc.,oaumentodossaláriosdenota,no

melhordos casos, apenas adiminuiçãoquantitativado trabalhonãopagoqueo trabalhador temdeexecutar.Taldiminuição jamais

podealcançaropontoemqueameaceoprópriosistema.Semlevaremcontaosconflitosviolentosemtornodataxadosalário[...],

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umaelevaçãodopreçodo trabalhoderivadadaacumulaçãodocapitalpressupõea seguintealternativa. [...]Ouopreçodo trabalho

continuaasubirporqueseuaumentonãoperturbaoprogressodaacumulação.(695-6)

Querdizer,oscapitalistaspodemsuportarumaumentonopreçodotrabalhoporqueamassade

capital da qual eles podem se apropriar continua a crescer, à medida que empregam mais

trabalhadores. Lembre-se de que os capitalistas estão interessados em primeiro lugar na massa de

lucro,eestadepende,comovimosnocapítulo15,donúmerodetrabalhadoresempregados,dataxae

daintensidadedaexploração.Diantedeumataxadecrescentedeexploração,aumentaronúmerode

trabalhadoresempregadospodeaumentarsubstancialmenteamassadecapitalganhapelocapitalista.

Nessecenário,nãohá,portanto,nenhumconflitoentresalárioscrescenteseacumulaçãodocapital.

“Ooutrotermodaalternativa”é:

a acumulação se afrouxa graças ao preço crescente do trabalho, que embota o acicate do lucro. A acumulação decresce. Porém, ao

decrescer desaparece a causa de seu decréscimo, a saber, a desproporção entre capital e força de trabalho explorável. O próprio

mecanismodoprocessodeproduçãocapitalistaremove,assim,osempecilhosqueelecriatransitoriamente.(696)

OmodelodeMarxébastantesimples.Aacumulaçãodocapital,pressupondo-seaprodutividade

constante,aumentaademandaportrabalho.Seissogeraounãoumaumentodesaláriosdependeda

populaçãodisponível.Masquantomaior é aparcela empregadadapopulaçãodisponível,maior é a

elevaçãodossalários,oquediminuiataxadeexploração.Masamassademais-valorpodecontinuara

aumentar porque mais trabalhadores estão empregados. Se em algum ponto, por alguma razão, a

massa de mais-valor começa a diminuir, a demanda por trabalho cai, a pressão sobre os salários

diminui e a taxa de exploração se recupera.Ao longodo tempo, portanto, provavelmente veríamos

oscilações contrabalançando as taxas de salário e de lucro. Se os salários aumentam, a acumulação

diminui;seossalárioscaem,oslucroseaacumulaçãovoltamasubir.Marxdescreveaquiumsistema

automáticodeajusteentreademandaeaofertadetrabalhoeadinâmicadaacumulação.

Marxsugerequeháevidênciahistóricaparaprocessosdessetipo.NaInglaterradoséculoXVIII,

havia uma tendência – muito explorada por um comentador da época chamado Eden – de um

aumento dos salários provocado pela rápida expansão da acumulação do capital. As classes

trabalhadorasmelhoravamdevida,juntamentecomumaclassecapitalistaque,éclaro,iamuitobem.

Edensucumbiuàtentaçãodedeclarar,portanto,queaacumulaçãodocapitaleraboatambémparaos

trabalhadores.Masoqueelafaz,dizMarx,éafrouxar“osgrilhõesdeouro”queprendemotrabalhoao

capital. Além disso, essa ideia já havia sido vigorosamente contestada no famoso tratado de

Mandeville, The Fable of the Bees [A fábula das abelhas]. Mandeville provocou uma indecorosa

polêmica contra os “vadios” que existiam na sociedade inglesa e, com isso, estabeleceu que tal

sociedadetinhaumanecessidadedesesperadadepessoaspobres,equantomaispobresmelhor,pois

assim demandariam menos em termos de bens e serviços, deixando mais para os ricos. Se não

tivéssemosospobres,osricosnãopoderiamserricos.EssaglorificaçãodascondiçõesnaInglaterrado

séculoXVIII incomodouAdam Smith e os humanistas, que não podiam aceitar a ideia de que os

pobressempreexistirãoeexercemumafunçãotãovitalparaosricos.ArespostadeSmithfoitentar

mostrar que as condições de todos, inclusive a do mais pobre, melhorariam se o mecanismo de

mercadofossemobilizadoparaaumentarariquezanacional.AimportânciadeMandevilleparaMarx

é a ideiadeque a acumulaçãodo capital requer a existênciaprévianão apenasdeumapopulação

disponível, mas de uma população disponível suficientemente pobre, ignorante, oprimida e

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desesperada,quepossa ser recrutada comomãodeobrabarata e introduzidano sistemacapitalista

numpiscardeolhos.

Osegundomodelodaacumulaçãodocapital

O segundomodelo da acumulação analisa o que ocorre quando a produtividade crescente do

trabalho social se converte “na mais poderosa alavanca da acumulação” (698). Os impactos das

mudanças tecnológicas e organizacionais na produtividade têm de ser colocados numa posição

central em relação às dinâmicas da acumulação. Isso leva Marx a tratar a “lei” da composição

crescente de valor do capital da maneira já exposta. Mas “ainda que o progresso da acumulação

diminuaagrandezarelativadapartevariáveldocapital,elenãoexcluidemodoalgum,comisso,o

aumento de sua grandeza absoluta”, porque, como vimos no primeiro modelo, mais trabalhadores

podemserempregadosparacontrabalançarataxadecrescentedemais-valor(699).

Oempregodacooperação,asnovasdivisõesdo trabalhoeaaplicaçãodemaquinaria, ciênciae

tecnologia comomeiosde aumentar aprodutividadedo trabalhodependem fundamentalmentede

umaacumulaçãoderiquezamonetáriainicialou“primitiva”emquantidadesuficienteparapôrtodo

oprocessoemmovimento.Marxintroduziuotermo“acumulaçãoprimitiva”noscapítulosanteriores,

masprefere,maisumavez,postergarqualquerconsideraçãodetalhadasobreeleatéocapítulo24.“De

que modo ela surge é algo que ainda não precisamos examinar aqui” (700).Mas, uma vez que a

acumulação está em andamento, o progresso da produtividade crescente também depende de

processosdeconcentraçãoecentralizaçãodocapital.Apenasdessemodotodasaspossíveiseconomias

deescalapodemserealizar.Ariquezaconcentra-secadavezmaisnumnúmeropequenodemãos,diz

ele,porqueacadaetapadaacumulaçãoocapitalistaadquireumamassacrescentedecapitalnaforma

depodermonetário.Ocrescimentoocorreaumataxacomposta,eaconcentraçãoda riquezaedo

poder se acelera, embora seja limitada pela taxa de mais-valor e pelo número de trabalhadores

empregados.Mas esse processo de concentração também pode ser parcialmente compensado, pela

aberturadepequenosnegóciosemnovaslinhasdeprodução.

Portanto,aacumulaçãoeaconcentraçãoqueaacompanhaestãonãoapenasfragmentadasemmuitospontos,masocrescimentodos

capitais em funcionamento é atravessado pela formação de novos capitais e pela cisão de capitais antigos. De maneira que, se a

acumulação se apresenta, por um lado, como concentração crescente dosmeios de produção e do comando sobre o trabalho, ela

aparece,poroutrolado,comorepulsãomútuaentremuitoscapitaisindividuais.(701)

A“fragmentaçãodocapitalsocialtotalemmuitoscapitaisindividuaisouarepulsãomútuaentre

seusfragmentos”tambémtemdeserlevadaemconta.ÉtípicodeMarxpôrtendênciascontrapostas

emjogo:deumlado,concentração;deoutro,subdivisãoefragmentação.Ondeestáoequilíbrioentre

elas? Sabe-se lá!O equilíbrio entre concentração e descentralização está quase sempre sujeito a um

fluxoconstante(contrariandotodainterpretaçãoteleológicadaevoluçãodamaquinariaedagrande

indústria).

A centralização, por outro lado, chega à concentração do capital por um caminho distinto –

incorporações, fusões, extinção implacável dos competidores. Marx sugere que pode haver leis da

centralização do capital. Mas admite não ter condições de desenvolvê-las aqui, embora suspeite,

evidentemente,quepossamserreveladas(oqueseriacoerentecomavisãoteleológica!).Noentanto,

há uma tendência definida à centralização, alimentada indubitavelmente por “uma potência

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inteiramentenova”quesurgecomaproduçãocapitalista:o“sistemadecrédito”(702).Apesardenão

poder introduzir o sistemade crédito (isso violaria opressuposto inicial deque adivisãodomais-

valor entre juro, renda e lucro sobre o capital comercial não tem importância),Marxnão resiste a

fazeralgumasconsideraçõesprévias:

Emseusprimórdios,[ocrédito]insinua-sesorrateiramentecomomodestoauxíliodaacumulaçãoe,pormeiodefiosinvisíveis,conduz

às mãos de capitalistas individuais e associados recursos monetários que se encontram dispersos pela superfície da sociedade em

massas maiores ou menores, mas logo se converte numa arma nova e temível na luta concorrencial e, por fim, num gigantesco

mecanismosocialparaacentralizaçãodoscapitais.(702)

Oquadroéconvincentee,naépocadeMarx,extraíamuitodeseumaterialdasteoriasdeSaint-

SimonsobreopoderdoscapitaisassociadoseaspráticasdosbanqueirosdoSegundoImpério,como

os irmãos Péreire. Ele ainda ecoa em nosso mundo contemporâneo. Criam-se instituições de

microcréditoemicrofinançasparacapturarachamada“riquezanabasedapirâmide”e,emseguida,

todaessariquezaéabsorvidaparasocorreras instituições internacionais (tudo issocomaajudado

BancoMundialedoFMI)eusadaemWallStreetparapagarojogodeapostasemaçõesefusõesde

capitais.“Namesmamedidaemquesedesenvolveaproduçãoeaacumulaçãocapitalistas”,observa

Marxcomperspicácia, “desenvolvem-se tambémaconcorrênciaeocrédito,asduasalavancasmais

poderosas da centralização” (702).A rápida centralizaçãoultrapassa os processosmais vagarosos de

concentraçãopormeiodocrescimentocompostocomoprincipalveículoparaobteraenormeescala

financeiranecessária à implementaçãode etapas inteiramentenovasdeprodutividade crescente.A

centralização pode melhorar radicalmente e aumentar a escala da produção. Não conseguiríamos

realizar muitos dos megaprojetos de infraestrutura física (por exemplo, ferrovias e portos) e

urbanização (capital fixo e constante) sema centralização (ou, comoMarxdiscute emoutro lugar,

semoenvolvimentodoEstado).

Instrumentos adequados de centralização são, portanto, absolutamente fundamentais para a

dinâmicadaacumulação.Masissotrazaameaçadopoderdomonopólioecontradizavisão–muito

cara à economia política clássica, bem como aos teóricos neoliberais contemporâneos – de uma

economia de mercado descentralizada, em que as decisões são tomadas de modo tão disperso e

individualistaqueninguémconseguemonopolizaroudominaromercado.OqueMarxsugereéque,

mesmoqueaeconomiademercadocomececompequenasempresas,altamentecompetitivas,équase

certoqueela se transformará rapidamentepelacentralizaçãodocapitale terminaránumestadode

oligopólioemonopólio.Oresultadodaconcorrência,dizeleemoutrolugar,ésempreomonopólio.

Há, portanto, processos internos à dinâmica capitalista que são inerentemente disruptivos com

relaçãoàteoriadofuncionamentoperfeitodosmercados.Oproblemaéqueosmercadosealutapelo

mais-valorrelativonãopodemcoexistirpormuitotemposemqueacentralizaçãosurjaerompacoma

tomada de decisões descentralizada que caracteriza os mercados de funcionamento livre. Embora

Marxnãoexpliciteessaquestão,elaécertamenteumadasimplicaçõesdeseuargumento.Mas,sea

análise da concentração é digna de crédito, a centralização crescente não pode ser de todo um

processo demão única, sem nenhuma influência ou força contrapesantes. Infelizmente,Marx não

explora esse ponto aqui, mas falará em outro lugar como a centralização pode às vezes ser

contrabalançada pela descentralização. O que ele introduz aqui é a ideia de uma dinâmica de

mercadodoprocessodeacumulaçãonaqualessasforçastêmdeserintegradasaoargumentoenão

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ignoradas comoumacidentedahistória.No entanto, issoo levapara alémde seupropósitonesse

capítulo,queétratardacondiçãodaclassetrabalhadora.

Uma produtividade crescente do trabalho (um valor crescente da composição do capital) tem

implicaçõesparaademandadetrabalho.

Como a demanda de trabalho não é determinada pelo volume do capital total, mas por sua componente variável, ela decresce

progressivamentecomocrescimentodocapitaltotal,emvezde,comopressupomosanteriormente,crescernamesmaproporçãodele.

Essa demanda diminui em relação à grandeza do capital total e em progressão acelerada com o crescimento dessa grandeza. Ao

aumentarocapitalglobal,tambémaumenta,naverdade,suacomponentevariável,ouseja,aforçadetrabalhoneleincorporada,porém

emproporçãocadavezmenor.(704-5)

Isso significa que a acumulação capitalista “produz constantemente, e na proporção de sua

energia e seu volume, uma população trabalhadora adicional relativamente excedente, isto é,

excessivaparaasnecessidadesmédiasdevalorizaçãodocapitale,portanto,supérflua”(705).Elafaz

isso por meio de processos que hoje chamamos downsizing. “Assim, com a acumulação do capital

produzida por elamesma, a população trabalhadora produz, em volume crescente, osmeios que a

tornam relativamente supranumerária. Essa lei de população é peculiar ao modo de produção

capitalista” (706-7).Maisumavez,o temadaproduçãodas condiçõesdenossaprópriadominação

surgecomosupremaironia.

Amençãoauma“leidapopulação”põeMarxcontraMalthus,que,ajulgarpelasnotasderodapé,

estálongedeseroteóricofavoritodeMarxecujateoriauniversaldapopulaçãoedasuperpopulação

exigiaumarefutação.“Cadamododeproduçãoparticularnahistória”,escreveMarx,“temsuasleis

depopulaçãoparticulares,historicamenteválidas.Umaleiabstratadepopulaçãosóéválidaparaas

plantaeosanimaise,aindaassim,apenasenquantooserhumanonãointerferehistoricamentenesses

domínios” (707).A objeção deMarx aMalthus é que este naturaliza o desemprego e a criação da

pobreza, transformando-os em simples relação entre o aumento da população e a demanda de

recursos.Marxnão considera que o crescimentodapopulação seja irrelevante oumesmoum fator

neutroemrelaçãoàacumulaçãodocapital;defato,hámuitaspassagensemoutroslugaresnasquais

ele tratao forte crescimentopopulacional comoumaprecondiçãonecessáriaparaumaacumulação

sustentada. Sua objeção fundamental é à tese de que a pobreza é produzida por uma classe

trabalhadora que reproduz a simesma em número demasiado grande (tese que culpa a vítima). A

preocupaçãodeMarxémostrarqueocapitalismoproduzpobreza,independentementedoestadoou

da taxa de crescimento da população. Ele prova queMandeville estava certo quando disse que os

pobres estão e sempre estarão entre nós nomodo de produção capitalista,mas, contraMandeville,

mostracomoeporqueissoacontece.

Ocapitalismoproduzpobrezacriandoumexcedenterelativodetrabalhadorespormeiodousode

tecnologias que eliminam postos de trabalho. Uma massa permanente de trabalhadores

desempregadosésocialmentenecessáriaparaqueaacumulaçãocontinueaseexpandir.

Mas,seumapopulaçãotrabalhadoraexcedenteéumprodutonecessáriodaacumulaçãooudodesenvolvimentodariquezacombase

capitalista,essasuperpopulaçãoseconverte,emcontrapartida,emalavancadaacumulaçãocapitalista,eatémesmonumacondiçãode

existência do modo de produção capitalista. Ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de

maneiratãoabsolutacomoseeleotivessecriadoporsuaprópriaconta.(707)

Não é, portanto, a tecnologia em si a principal alavanca da acumulação, mas a massa de

trabalhadoresexcedentesqueelafazsurgir.“Elaforneceasuasnecessidadesvariáveisdevalorizaçãoo

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material humano sempre pronto para ser explorado, independentemente dos limites do verdadeiro

aumentopopulacional”(707).

Normalmente,oexércitoindustrialdereservaécolocadonaproduçãoe,emseguida,retiradoem

movimentos alternados, criando um movimento cíclico no mercado de trabalho. “Por sua vez, as

oscilaçõesdocicloindustrialconduzemaorecrutamentodasuperpopulaçãoe,comisso,convertem-

senumdosmaisenérgicosagentesdesuareprodução”(708).Marxdescreveo:

simplesprocessoque “libera” constantementeumapartedos trabalhadores,pormétodosque reduzemonúmerode trabalhadores

ocupados em relação à produção aumentada. Toda forma demovimento da indústriamoderna deriva, portanto, da transformação

constantedeumapartedapopulaçãotrabalhadoraemmãodeobradesempregadaousemiempregada.(708)

“Umavezconsolidadaestaforma,atémesmoaeconomiapolíticacompreendequeproduziruma

população excedente relativa, isto é, excedente em relação à necessidademédia de valorização do

capital, é uma condição vital da indústria moderna” (709).Malthus, por exemplo, “reconhece na

superpopulação[...]umanecessidadedaindústriamoderna”,masnãovêque“àproduçãocapitalista

nãobastademodoalgumaquantidadede forçade trabalhodisponível fornecidapelo crescimento

naturaldapopulação.Elanecessita,paraassegurarsualiberdadedeação,deumexércitoindustrialde

reservaindependentedessabarreiranatural”(710).

Asramificaçõesdesseprocessoseespalhameinfluenciamadesqualificaçãodeamplossegmentos

daforçadetrabalhoeosprocessosdedesindustrializaçãopormeiodamudançatecnológica,comos

quais nos familiarizamos tão bem nos últimos trinta anos. A existência dessa população excedente

relativa resulta normalmente em sobretrabalho para aqueles que estão empregados, uma vez que

podemserameaçadosdedemissãosenãotrabalharemalémdajornadaenãoaceitaremaumentara

intensidadedetrabalho.Comoemnossaépocaocapitalnãogostadearcarcomoscustosindiretosde

empregados de tempo integral (assistência à saúde e aposentadoria), a preferência por obrigar o

empregadoatrabalharalémdajornadalegal,querendoeleounão,aumentamesmoquandoamassa

detrabalhadoresdesempregadosaumenta.Àsvezesfazerhorasextrasécondiçãoparapermanecerno

emprego.

“O sobretrabalhodaparte ocupadada classe trabalhadora engrossa as fileiras de sua reserva, ao

mesmo tempo que, inversamente, esta última exerce, mediante sua concorrência, uma pressão

aumentadasobreaprimeira,forçando-aaosobretrabalhoeàsubmissãoaosditamesdocapital.”Issose

torna umnotável “meio de enriquecimento do capitalista individual” (711-2).O impacto sobre os

salários é também significativo. “Grosso modo, os movimentos gerais do salário são regulados

exclusivamentepelaexpansãoecontraçãodoexércitoindustrialdereserva”(712).Osmovimentosdo

salário são regidos pela acumulação do capital. Isso contradiz a visão comum de que o ritmo de

acumulação do capital é regulado pelas flutuações das taxas salariais, causadas pelo aumento

populacional ou, segundo a retórica contemporânea, por sindicados gananciosos. O “dogma

econômico” era que “o incremento do salário estimula um aumento mais rápido da população

trabalhadora,aumentoqueprossegueatéqueomercadodetrabalhoestejasupersaturado,ouseja,até

queocapitalsetorneinsuficienteemrelaçãoàofertadetrabalho”(713).

O modelo de Marx sugere que, onde quer que enfrente problemas de oferta de trabalho, a

acumulação do capital expulsa as pessoas de seus postos de trabalho, recorrendo a inovações

tecnológicaseorganizacionais,eoresultadoéaquedadossaláriosabaixodeseuvalorouoaumento

dajornadaedaintensidadedetrabalhoparaaquelesquepermanecemempregados.

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Nos períodos de estagnação e prosperidademédia, o exército industrial de reserva pressiona o exército ativo de trabalhadores; nos

períodosdesuperproduçãoeparoxismo,elebarrasuaspretensões.Asuperpopulaçãorelativaé,assim,opanodefundosobreoqual

semovealeidaofertaedademandadetrabalho.Elareduzocampodeaçãodessaleialimitesabsolutamentecondizentescomaavidez

deexploraçãoeamaniadedominaçãoprópriasdocapital.(714-5)

Temos, assim, que “omecanismodaprodução capitalista vela para que o aumento absolutode

capitalnãosejaacompanhadodeumaumentocorrespondentedademandageraldetrabalho”(715).

Isso provoca “proezas da apologética econômica” para justificar tais práticas quando atuam tão

claramente emdetrimentodas classes trabalhadoras (715).Aúnica coisa queos apologistas podem

fazerévera“miséria”,os“sofrimentos”ea“possívelmortedos trabalhadoresdeslocadosduranteo

período de transição, que os expulsa para as fileiras do exército industrial de reserva”, como um

sacrifíciobreveenecessáriopelobemmaioremaisduradourodetudoquepodemosconseguircoma

acumulaçãoprogressivadocapital.Masarealidadeébemmaissinistra.

A demanda de trabalho não é idêntica ao crescimento do capital, e a oferta de trabalho não é idêntica ao crescimento da classe

trabalhadora,comosefossemduaspotênciasindependentesaseinfluenciarmutuamente.Lesdéssontpipés[osdadosestãoviciados].O

capitalagesobreosdoisladosaomesmotempo.(715)

Quer dizer, o capital cria a demanda para o trabalho quando reinveste, mas também pode

administrar a oferta de trabalhomediante reinvestimentos em tecnologias que poupam trabalho e

produzemdesemprego. Essa capacidade de operar dos dois lados da equação de oferta e demanda

contradiztotalmenteomodocomoosmercadosdeveriamfuncionar.

Comoaconteceunocasodamaquinaria,ostrabalhadoreslogodesvendam

o mistério de como é possível que, na mesma medida em que trabalham mais, produzam mais riqueza alheia, de como a força

produtivadeseutrabalhopodeaumentaraomesmotempoquesuafunçãocomomeiodevalorizaçãodocapitalsetornacadavezmais

precáriaparaeles;tãologodescobremqueograudeintensidadedaconcorrênciaentreelesmesmosdependeinteiramentedapressão

exercidapela superpopulação relativa; tão logo,portanto,procuramorganizar,mediante tradesunions [surpreendentemente, esta é a

únicavezemqueessetermoéusadon’Ocapital]etc.,umacooperaçãoplanificadaentreosempregadoseosdesempregadoscomo

objetivode eliminarou amenizar as consequências ruinosasque aquela leinaturaldaprodução capitalista acarretapara sua classe, o

capital e seu sicofanta, o economista político, clamam contra a violação da “eterna” e, por assimdizer, “sagrada” lei da oferta e da

demanda.(715-6)

Numasituaçãoemqueasregrasdomercadosãosubvertidaspelacapacidadedocapitalderegular

tantoaofertaquantoademandadeforçadetrabalho,astentativasdostrabalhadoresdeseorganizar

para proteger seus interesses coletivos são furiosamente condenadas por infringir as regras do

mercado!

Marx construiu doismodelos de acumulação, com e semmudança tecnológica.Os capitalistas

podemescolher entre: acumular comuma tecnologia existente e ingressarnomundodomodelo1

(coisa difícil de fazer, dadas as leis coercitivas da concorrência) ou investir numa mudança

tecnológicaeingressarnomundodomodelo2.Aquestãonosegundomodeloé:oqueregulaoritmo

damudançatecnológica?Ateoriadomais-valorrelativomostrouqueessamudançaéimpulsionada

pelasleiscoercitivasdaconcorrência,àmedidaqueoscapitalistascompetempelaformaefêmerado

mais-valorrelativo–quecaberáaosquetrabalhamcomumaprodutividademaior.Assim,olimiteé

parcialmenteestabelecidopelaintensidadedaconcorrência(umpontoqueMarxnãoenfatiza).Mas

hátambémumlimiteexterno.Marxestabeleceuanteriormentequeocálculoparaaadoçãodenovas

tecnologiasmecânicasenvolveumacomparaçãoentreovalorinvestidonaaquisiçãodamáquinaeo

valordaforçadetrabalhopoupadacomseuuso.EmboraMarxnãoexpliciteaquestão,issosignifica

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que a inovação tecnológica continuaria até o ponto emque a taxa salarial caísse o suficiente para

fazercomqueacomprademáquinasdeixassedevalerapena(comoocorreunaInglaterranoséculo

XIX em relação aosEstadosUnidos). Esse ponto seria provavelmente quando a classe trabalhadora

fossereduzidaaumacondiçãodeextremamiséria.

Asuperpopulaçãorelativa

Noitem4,Marxexaminaaquestãodasuperpopulaçãorelativa.Eleaclassificaemtrêsextratos:

flutuante, latente, estagnada (716). Por superpopulação “flutuante” ele entende as pessoas que já

estão proletarizadas, que já são trabalhadoras assalariadas de tempo integral ou que, são

temporariamentedispensadas do trabalhopor alguma razão, sobrevivemde algummododurante o

período de desemprego, antes de serem reabsorvidas no emprego quando as condições para a

acumulação melhoram. Em termos atuais, a superpopulação flutuante equivale mais ou menos ao

conjunto de desempregados, tal como são quantificados nas estatísticas de desemprego, além

daquelesclassificadoscomosubempregadosou“trabalhadoresdesmotivados”.

A superpopulação latente sãopessoasque aindanão foramproletarizadas.Na épocadeMarx,o

termo referia-se particularmente às populações camponesas ainda não absorvidas pelo sistema de

trabalhoassalariado.Adestruiçãodosistemadesubsistênciacamponêsounativoeaproletarizaçãodo

mundo rural empurraramgrandesmassasparao trabalho assalariado. Isso continua atéhoje (como

mostraram nas últimas décadas China, México e Índia). A dissolução dos sistemas domésticos

tambémmobilizou–econtinuaamobilizar–mulheresecriançasparaaforçadetrabalhoassalariado

(transformandoasmulheresnaespinhadorsaldotrabalhoassalariadoemmuitaspartesdomundoem

desenvolvimento). A superpopulação latente pode também incluir produtores pequeno-burgueses

independenteseartesãosqueforamdeslocadospelograndecapitaleforçadosaingressarnomercado

detrabalho.AcanibalizaçãodasfazendasfamiliaresnosEstadosUnidosnosúltimoscinquentaanos

liberouaforçadetrabalhodeseusantigosconfinamentos.Poderíamosdizeromesmodosprodutores

independentes e das pessoas que dirigiam pequenas lojas e mercearias, hoje substituídas por

supermercados. A superpopulação latente é, portanto, uma categoria enorme e diversa, que

compreende produtores pequeno-burgueses de vários tipos, mulheres e crianças, camponeses etc.

Atualmente,elaabrangetambémgruposquefugiramdaproletarizaçãoapenaspararetornaraela.Os

médicosacreditavamquenãofaziampartedoproletariado,masnãoédifícilidentificaruminsidioso

processo de proletarização da força de trabalho médica. A proletarização da educação superior

tambémocorreuemritmoacelerado,àmedidaqueomodeloempresarialeneoliberaldauniversidade

seintensificou.Marxchamanossaatençãoparaaspossíveismudançasnadinâmicadeproletarização

easváriasmaneirascomoumareservalatentedeforçadetrabalhopodesermobilizada.Obviamente,

issovariarámuitodeumasituaçãoparaoutra.Alémdisso,enquantoapopulaçãoflutuanteestámais

ou menos confinada nas áreas da organização capitalista, a reserva latente tem uma composição

geográficamuitodiferente.Elaestápotencialmentedisponívelemtodososlugares,eageopolíticade

acessoaelamediantepráticasimperialistasecoloniaispodeterumpapelsignificativo.

Oterceiroextratoéasuperpopulaçãoestagnada.Refere-seàquelapartedapopulaçãoempregada

de maneira muito irregular e particularmente difícil de mobilizar. A camada mais baixa da

superpopulação estagnante é situada por Marx “na esfera do pauperismo” e inclui “vagabundos,

delinquentes, prostitutas”, em suma, o “lumpemproletariado propriamente dito”, pelo qual ele

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demonstra muito pouca simpatia. Entre eles, encontram-se também os “aptos ao trabalho”, assim

como“osórfãoseosfilhosdeindigentes.Estessãocandidatosaoexércitoindustrialdereservae[...]

sãorápidaemassivamentealistadosnoexércitoativodetrabalhadores”.Porfim,há“osdegradados,

maltrapilhos, incapacitados para o trabalho”, especialmente os “indivíduos que sucumbem a sua

incapacidadedeadaptação,causadapeladivisãodo trabalho”.Essacamada formaaquiloqueMarx

chamade“asiloparainválidosdoexércitotrabalhadorativo”,eéquaseimpossívelmobilizá-laparaa

forçadetrabalhoassalariado(719).ÉissoqueWilliamJuliusWilsonchamade“subclasse”(umtermo

quenãoaprecio).

O último e longo item desse capítulo descreve com detalhes sombrios a situação vivida pelos

indivíduosqueintegravamoexércitoindustrialdereserva(tantoflutuantequantolatente).Embora

seconcentrenaGrã-Bretanha(e,emparticular,nascondiçõesdesuareservadetrabalhorural),Marx

dáatençãoespecialaopapeldaurbanizaçãoe,comrespeitoaosimigrantesirlandesesnaInglaterra,

identifica algo importante no modo como as mobilizações de forças de trabalho latentes

frequentemente se aproveitamdas diferenças de etnia e religião (nesse caso), o que, por extensão,

podeenglobartodotipodediferençaracial,sexual,religiosaetc.napolíticade“dividirparagovernar”

praticadapela classe capitalista.Não serianadadifícil encontrarparalelos emnossa época.A longa

história do trabalhodeporto-riquenhosnosEstadosUnidos temumanítida semelhança com ado

trabalho de irlandeses na Grã-Bretanha no século XIX. Poderíamos facilmente citar exemplos de

condiçõesdetrabalhonoMéxico,naGuatemala,naChina,emBangladesh,naIndonésiaenaÁfrica

doSulquenãoseriammenosterríveisdoqueascondiçõesdescritasporMarxnoitem5.

OsegundomodelodeacumulaçãodeMarxdepende fundamentalmentedas reservas flutuantes

criadaspelodesempregoinduzidopeloavançotecnológico.Omodosistêmicocomoessapopulação

flutuante é administrada (por exemplo, comoos trabalhadores desempregados permanecemvivos e

emcondiçõesde saúde suficientespara retornarà forçade trabalho)éobviamenteumaquestãode

interesse considerável.Mas há também um problema estratégico, o de se é mais vantajoso para o

capitalismotrabalharcomreservas flutuantesou latentes (a reservaestagnadaseriamuitodifícilde

mobilizar e coordenar). A livremanipulação de reservas flutuantes traz uma série de dificuldades.

Uma organização de trabalho forte, que exija ummínimo de segurança no trabalho, pode frear o

desemprego. Novas tecnologias e sistemas de produção podem ser desafiados pelos próprios

trabalhadores antes de se disseminarem.E as consequências políticas que resultamdaproduçãode

desemprego podem ser sérias em determinadas circunstâncias. Nas décadas de 1950 e 1960, por

exemplo,houveumarelutânciageral,porpartedaclasseempresarialburguesa,emcriardesemprego,

empartepormedodadesordemsocial.Preferiu-seencontrarreservaslatentes.Haviaduasmaneiras

defazerisso:tomarcapitalnoexteriorouimportartrabalhadores.NaSuécia,nasdécadasde1960e

1970,odesempregoerabaixoenãohaviapraticamentenenhumareservaflutuante.Dadoopoderdos

sindicatos,omontedeleissociaiseoforteaparatopolíticosocial-democrata,ageraçãodemais-valor

passouadependerdaimportaçãodetrabalhodePortugal,IugosláviaeEuropaCentral.Aescassezde

trabalho na indústria automobilística francesa levou o Estado a incentivar a imigração dos

magrebinos,enquantooexcedentedetrabalhadoresnaTurquiaalimentouaindústriaalemãdurante

essesanos.AsmudançasnasleisdeimigraçãonosEstadosUnidosduranteadécadade1960também

foramimportantesparaajudaramobilizarasreservas latentesdeforçadetrabalho.Oexcedentede

mãodeobranoMéxicoécrucialparaofuncionamentodasempresasnosEstadosUnidos,etornao

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atualfurorcontraaimigração,tantolegalquantoilegal,umaquestãodifícil(porexemplo,afaltade

umexcedentedemãodeobracausouprejuízosnaépocadascolheitasnoOestedosEstadosUnidos).

Hojetemosumasituaçãoemqueháumdesempregoconsideráveleumagrandequantidadede

trabalho latente. É interessante refletir sobre essas categorias em relação com a história política

específicadocontroledotrabalhonocapitalismo.Apopulaçãoflutuantetambémlevantaaquestãode

comomanter a reserva num nível suficientemente saudável para competir com os empregados. A

criaçãodeestruturasdebem-estarfoiumadasrespostasencontradas,masissoémenossignificativo

agora,dadaatendênciaàneoliberalização.Oargumentodadireitaéqueodesempregosurgequando

os trabalhadores cobramumpreçomuitoaltopor seu trabalho.Os trabalhadores criamdesemprego

quandoserecusamatrabalharporumsalárioabaixodecertosaláriomínimo!Issocostumaacontecer

quando as políticas de bem-estar são muito generosas. Logo, a melhor maneira de acabar com o

desemprego é reduzir essas políticas a zero. Mas isso torna difícil para a população flutuante

permanecer como reserva de trabalho. O mesmo problema aflige a política de imigração. Toda

tentativa de regular a imigração nos EstadosUnidos vai de encontro à necessidade de um acesso

adequado à oferta de trabalho excedente. As indústrias, desde o agronegócio até aMicrosoft, são

contrapolíticasrestritivasdeimigração.

A administração da oferta de trabalho se torna crucial. O interesse da classe capitalista é

administraraofertadetrabalhoparacriareperpetuarumexércitodereserva(numacombinaçãode

flutuanteelatente)eassimmantersaláriosbaixos,ameaçarosempregadoscomdemissõesiminentes,

dispersar a organização de trabalho e aumentar a intensidade de trabalho dos que continuam

empregados. Desde os anos 1970, essa estratégia parece ter funcionado bastante bem nos Estados

Unidos, já que os salários reais permaneceram essencialmente baixos (com um breve período de

aumentonosanos1990),enquantoastaxasdelucroaumentaramemgeral.Essafoiaprimeiraerana

história dosEstadosUnidos emque os trabalhadores não tiraramnenhumbenefício dos aumentos

significativos de produtividade. Os benefícios obtidos com a procura de mais-valor relativo

acumularam-se nas mãos da classe capitalista, gerando imensas concentrações de riqueza e

desigualdadecrescente.

Adesconstruçãodosonhoutópicoliberal

Na seção IV, ao analisar a produção do mais-valor relativo, vimos que no interior do sistema capitalista todos os métodos para

aumentaraforçaprodutivasocialdotrabalhoseaplicamàcustadotrabalhadorindividual;todososmeiosparaodesenvolvimentoda

produção se convertem em meios de dominação e exploração do produtor, mutilam o trabalhador, fazendo dele um ser parcial,

degradam-noàcondiçãodeumapêndicedamáquina,aniquilamoconteúdodeseutrabalhoaotransformá-lonumsuplício,alienam

aotrabalhadoraspotênciasespirituaisdoprocessodetrabalhonamesmamedidaemqueatalprocessoseincorporaaciênciacomo

potência autônoma,desfiguramas condiçõesnas quais ele trabalha, submetem-no,duranteoprocessode trabalho, aodespotismo

maismesquinhoeodioso,transformamseutempodevidaemtempodetrabalho,arrastamsuamulhereseufilhosobarodadocarro

deJagrená

[b]

docapital.Mastodososmétodosdeproduçãodomais-valorsão,aomesmotempo,métodosdeacumulação,e toda

expansão da acumulação se torna, em contrapartida, ummeio para o desenvolvimento dessesmétodos. Segue-se, portanto, que, à

medidaqueocapitaléacumulado,asituaçãodotrabalhador,sejasuaremuneraçãoalta,sejabaixa,temdepiorar.Porúltimo,aleique

mantémasuperpopulaçãorelativaouoexércitoindustrialdereservaemconstanteequilíbriocomovolumeeovigordaacumulação

prendeo trabalhadoraocapitalmais firmementedoqueascorrentesdeHefestoprendiamPrometeuao rochedo.Elaocasionauma

acumulaçãodemisériacorrespondenteàacumulaçãodecapital.Portanto,aacumulaçãoderiquezanumpoloé,aomesmotempo,a

acumulaçãodemiséria,osuplíciodotrabalho,aescravidão,aignorância,abrutalizaçãoeadegradaçãomoralnopolooposto,istoé,

doladodaclassequeproduzseupróprioprodutocomocapital.(720-1)

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Essa é a famosa tese conclusiva sobre o empobrecimento crescente do proletariado como

consequênciaecondiçãonecessáriadaacumulaçãocapitalista.Umarespostatípicaaessateseédizer

queelaestá simplesmenteerrada,quemuitos trabalhadoresdomundoestãohojemuitomelhordo

que há cem anos e que, embora possa ser verdade que as condições de trabalho nas indústrias da

ChinaenasfábricasclandestinasdeHongKongaindasejamterríveis,essesproblemassãotípicosde

um processo de transição para um padrão de vida material melhor, que mesmo nesses países já

começa a despontar. Essa é uma daquelas afirmações que tantomarxistas quanto críticos deMarx

costumam tomar como predições sólidas, que podem ser testadas recorrendo-se aos registros

históricos.E,namedidaemqueessesregistrosnãocorroboramplenamenteaspredições,aanálisede

Marxédeclaradaerrada.

Porisso,souobrigadoalembrá-lodospressupostosqueregemessescapítuloseenfatizarmaisuma

vez que conclusões desse tipo não são absolutas, mas contingentes, e dependem inteiramente dos

pressupostosestabelecidosno início.EssaéaconclusãodoLivro Id’Ocapital,noqualo foco recai

exclusivamente sobre a dinâmica da produção. A análise prossegue dessa perspectiva. O que

encontraremosnofimdoLivroII,escritodopontodevistadarealizaçãodocapitalnomercado,é

algointeiramentediferente.Lá,Marxseconcentraránosproblemasdademandaefetiva(quemtem

poder financeiro para comprar um volume cada vez maior de produtos?). Parte da solução desse

problematemderesidirnaquiloqueláelechamade“consumoracional”daclassetrabalhadora.Por

essetermo,eleentendeduascoisas:primeiro,aclassetrabalhadoratemdedispordepoderdecompra

suficientepara sercapazdeconsumir; segundo,aclasse trabalhadora temdeadquiriroshábitosde

consumoadequadosàabsorçãodoprodutoexcedentequeocapitalismonãoparadegerar.Assim,ao

final do Livro II, Marx cita como a filantropia burguesa se concentra em ensinar hábitos

“apropriados” de consumo às classes trabalhadoras (de modo semelhante ao que Ford fez quando

mobilizouumexércitodeassistentes sociaisparaassegurarqueaquelesque sebeneficiavamdeum

saláriodecincodólarespela jornadadeoitohorasqueele implantaraemsuas fábricasgastassemo

dinheirocomsensatez,enãooesbanjassemcombebidas,drogasemulheres).Assim,oquetemosno

fimdoLivro II éumahistória completamentediversa.Fica evidentequea classe trabalhadoranão

pode desempenhar seu papel socialmente necessário como um centro de demanda de produtos

capitalistasseahistóriacontadanoLivroIforaúnicaaexistir.

Então qual é o propósito do argumento do Livro I? Ele diz que se omundo funcionasse desse

modo o resultado seria um empobrecimento cada vez maior dos trabalhadores. Há elementos de

verdadenessaconclusão?Certamentesim,sepensarmosnasfábricasdaIndonésia,deBangladesh,do

VietnãedaGuatemala.Nesseslugares,reservaslatentesdetrabalhosãomobilizadassobcondiçõesde

extremabrutalidade.Defato,vemosali todaa“árduafaina”queMarxdescreve.Nãoprecisamos ir

muito longe para encontrar relatos detalhados das terríveis condições de trabalho emmuitos dos

centros mundiais de produção (os relatórios de diversas ONGs e da ONU estão cheios deles, e

mesmo a mídia convencional tem publicado matérias impressionantes). Além disso, uma das

características dos últimos trinta anos de práticas e políticas neoliberais é que a desigualdade de

rendanãoparoudeaumentaresurgirambilionáriosportodaaparte(Índia,México,China,Rússia),

fazendo da imagemda acumulação de riqueza, de um lado, e damiséria, de outro, umametáfora

muitoconvincenteparadescreverascondiçõesdocapitalismoglobalcontemporâneo.

Assim,édifícillerahistórianarradanoLivroIenãoreconhecerqueeladescreveumaverdade,

aindaqueparcial,sobretudosecomparadacomasituaçãonospaísescapitalistasavançadosnosanos

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1950 e 1960, quando a organização do trabalho era relativamente forte, as tendências social-

democrataseramdominanteseasintervençõesestatais,tantonaproduçãocomonadistribuiçãoda

riqueza,erammaisamplamenteaceitas.Naquelestempos,asquestõesdeconsumoracionalerammais

salientes:comogarantirqueaclassetrabalhadoracompreautomóveis?Ora,bastaconstruircidadese

subúrbiosdetalmodoqueoautomóvelsetorneumanecessidadeenãomaisumluxo,oquesignifica

que os trabalhadores terão de receber o suficiente para poder dispor de automóveis, habitações

suburbanas e tudo o que acompanha esse estilo de vida.Durante essa época, a análise do Livro II

tinhamuitosentido,easconclusõesdoLivroIpareciamumpoucoimplausíveis.

Muito disso mudou na virada neoliberal dos anos 1970. Houve uma expansão maciça do

proletariado no mundo todo, quando cerca de 2 bilhões de pessoas foram privadas de sua base

econômicae introduzidasnoproletariado,sejapeladestruiçãodemodosdevidaruraleeconomias

camponesas (comonaAméricaLatinaenosuldaÁsia), sejapelaaçãodiretadogoverno(comona

ChinaenolestedaÁsiaemgeral).Oresultadoprevisíveldesseinfluxofoiqueasclassestrabalhadoras

doscentrostradicionaisdeacumulaçãodecapitalnãomelhoraramdevida.Aumentosespantososde

riqueza fluíram para o 1%mais rico (emais ainda, proporcionalmente, para o 0,1%mais rico) da

população. A perseguição do projeto neoliberal nos levou de volta a ummundo em que a análise

apresentadanoLivroIécadavezmaisrelevante.

Esse era um projeto consciente das classes dominantes. O “choque Volcker”, que aumentou

dramaticamente as taxas de juros nos Estados Unidos no início de 1979, produziu um surto de

desemprego;isso,conjugadoaoataquedopresidenteReaganaotrabalhoorganizado(acomeçarpela

extinçãodosindicatodecontroladoresdetráfegoaéreonagrevede1981),tevecomoclaroobjetivo

disciplinar o trabalho. O economista britânico Alan Budd, refletindo sobre sua experiência como

principalconselheiroeconômicodeMargaretThatcher,confessoumaistardequãoenvergonhadose

sentiaaoladodeseusvizinhos:

aspolíticasde controleda inflaçãonos anos1980, ao comprimir a economia e o gastopúblico, foramumdisfarceparabaternos

trabalhadores.Odesempregocrescenteeraummeiomuitoadequadodereduziraforçadaclassetrabalhadora.Oquefoiengendrado–

em termosmarxistas– foiuma crisedo capitalismo,que recriouumexércitode reservade trabalho epermitiu aos capitalistas fazer

altoslucrosdesdeentão.

[1]

ComoReagan,Thatcheratacoupoliticamenteopoderdossindicatoscomarepressãoviolentada

grevedosmineirosnosanos1980.Maisumavez,oobjetivoeradisciplinarotrabalhoparagarantir

lucroseumaacumulaçãoilimitada.OqueéterrívelnaanálisedeMarxéofatodetalresultadoser

inteiramenteprevisívelepodersertãofacilmentearticuladoemtermosmarxistas.

O queMarx faz no Livro I d’O capital é levar a sério as palavras e as teorias dos economistas

políticosclássicoseperguntarquetipodemundosurgiriaseelesconseguissemimplementarsuavisão

liberal utópica demercados de funcionamento perfeito, liberdade pessoal, direitos de propriedade

privadaelivre-comércio.Passoapasso,eleexploraoqueacontecerianummundoconstruídosegundo

essa imagem.AdamSmith pretendiamostrar que a riqueza nacional cresceria e todos viveriam ou

poderiamvivermelhornummundodemercadosdescentralizadosefuncionamentolivre(apesarde

ele próprio não eximir o Estado de responsabilidade, quando se tratava de distribuir a riqueza de

modomais equitativo).OqueMarxmostra équeummundoconstruído segundoas linhasdeum

puro laissez-faire produziria, por um lado, uma acumulação crescente de riqueza e, por outro, uma

enormeacumulaçãodemiséria.Quemgostariadeconstruirummundosegundoasregrasdessavisão

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utópica?A resposta é de umaobviedade estonteante: osmembros ricos da classe capitalista!Quem

tentanosconvencerdasvirtudesdessavisãoutópicadolivremercadoequemnoscolocounatrilha

neoliberal? Surpresa!Os ricos, queusaram seudinheiro paranos convencer de que omercado está

semprecertoedequeateoriamarxianaéumabobagem.

O projeto neoliberal (comomostro emO neoliberalismo: história e implicações

[c]

) foi direcionado

para a acumulação crescente de riqueza e a apropriação crescente de mais-valor pelos degraus

superiores da classe capitalista. E, ao perseguir esse objetivo, a classe capitalista tomou o caminho

típico, tal comodescritonosmodelosde acumulaçãode capital apresentadosnoLivro I.Diminuir

salários e criar desemprego por meio de mudanças tecnológicas que deslocam trabalhadores,

centralizaropodercapitalista,atacarasorganizaçõesdostrabalhadoreseinterferiraomesmotempo

nacoordenaçãodaofertaedademanda(quando,comovimos,ocapitalatuaemambososladosdo

mercado), investir na terceirização enaprodução offshore,mobilizar populações latentes em todoo

mundo e reduzir o máximo possível as políticas de bem-estar social. Foi exatamente nisso que

consistiu a “globalização neoliberal”. Criaram-se as condições socialmente necessárias, em grande

partedeacordocomaanálisefeitanoLivroI,paraaimensaacumulaçãoderiquezadeumapequena

parcela da população a expensas de todo o restante. O problema, é claro, é que esse tipo de

capitalismoneoliberalsópodesobreviver“minandoaomesmotempoosmananciaisdetodaariqueza:

aterraeotrabalhador”(574).

MasessanãofoiaúnicaconsequênciacoerentecomaanálisedeMarx.Nessecapítulo,eleaponta

a inevitabilidade da concentração e da centralização crescentes do capital sob as condições do

utopismo do livremercado. Essa foi outra forte característica do neoliberalismo nos últimos trinta

anos(bastaolharmosparaaenergia,a indústria farmacêutica,amídiae, sobretudo,acentralização

crescentedopoderfinanceiro).Liberdadesexcessivasdemercadosempreproduzemumatendênciaa

ummaioroligopólio e atémesmoaummonopólio (fato reconhecidona legislaçãoantitruste e em

monitoramentosestatais–amplamenteineficazesemnossosdias–defusõesemonopólios).Ariqueza

nãoapenasseacumula,comoseconcentranasmãosdeumaclassecapitalistacadavezmaispoderosa!

Mas isso também levanta um problema. O que acontece quando as condições para a harmonia

definidasnaanáliseapresentadanoLivroIIsetornamtãocontraditórias–precisamenteporcausada

polarizaçãodariqueza–apontodeprovocarumacrisecomoaqueestourouem2008?Talveznãoseja

poracasoqueoúnicoperíododahistóriadosEstadosUnidosemqueadistribuiçãoderiquezafoitão

assimétrica quanto hoje tenha sido nos anos 1920, e agora estejamos assistindo a uma reprise do

colapsode1929em2008.

Acredito que isso seja um imenso testemunho da força da análise deMarx e do poder de seu

método.Não resta dúvida de que ele pode nos fazer enxergar aspectos da dinâmica histórica que

muitofrequentementepermanecemocultos,aomesmotempoqueenfrentaascontradiçõeslatentese

aspoderosasconstruçõesideológicasqueproduzemelegitimamostiposderesultadosqueeleprevê.

Quantos Nassau Seniors não se encontram hoje em nossos departamentos de economia! Assim, é

apropriado defender teses condicionais deMarx, reconhecendo que, embora não sejam a história

inteira, ainda assim são um aspecto vital e muito facilmente reconhecível daquilo que ocorre no

capitalismodehoje.De fato, eledesfezo feitiçoda“lei geral,absoluta,daacumulaçãocapitalista” em

termos nada equívocos, ainda que também reconheça que “como todas as outras leis, ela é

modificada,emsuaaplicação,pormúltiplascircunstâncias,cujaanálisenãocaberealizaraqui”(719-

20).A lei geral é uma exposição brilhante dos caminhos por onde nos levarão o livremercado e o

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utopismoliberal,casosejamimplantados,e,nograucomqueavirada ideológicaneoliberaladotou

essafraseologia,deu-lhenovaroupagemebuscouimplementá-la,elarealmentenoslevounadireção

previstaporMarx, repletadecontradições.Uma leituraatentado textodeMarxeumaapreciação

profundadeseumétodo,apesardenãonostrazeremnenhumreconforto,podemproporcionarmuitos

insightseumasignificativacapacidadedediagnóstico.

[a]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.631.(N.E.)

[b] Juggernaut (Dschagannat): umadas formasdodeusVishnu.Ocultode Jagrená caracterizava-seporumelevadograude fanatismo

religiosoeincluíarituaisdeautoflagelaçãoeautossacrifícioextremos.Emcertosdiasfestivos,osfiéissejogavamsobasrodasdeumcarro

(o“carrodeJagrená”),sobreoqualseencontravaumafiguradeVishnu-Dschagannat.(N.T.)

[1]VerTheObserver,21dejunhode1992.

[c]DavidHarvey,Oneoliberalismo:históriaeimplicações(SãoPaulo,Loyola,2008).(N.T.)

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11.Osegredodaacumulaçãoprimitiva

Oscapítulos24e25d’Ocapitalapresentamumanítidamudançadetom,conteúdoemétodo.Para

começar,elesvãodeencontroaopressupostocentraldorestodolivro,estabelecidonocapítulo2,em

queMarxaceitaomundoteóricodeAdamSmithdetrocasatomísticasrealizadasnomercado;nesse

mundo,aliberdade,aigualdade,apropriedadeeBenthamreinamdetalmodoquetodasastrocasde

mercadoriaocorremnumambientenãocoercitivodeinstituiçõesliberaisemperfeitofuncionamento.

Smith sabia perfeitamente bem que esse não é o modo como o mundo realmente funciona, mas

aceitou-o como uma ficção conveniente e convincente sobre a qual ele podia erigir uma teoria

econômico-política normativa. Marx, como vimos, leva tudo isso em conta para desconstruir seu

utopismo.

Usando desse estratagema, Marx foi capaz de mostrar, como vimos no último capítulo, que,

quantomais próximos estivermos de um regime demercado livre,mais nos veremos confrontados

comduasimportantesconsequências.Amenordelaséqueaestruturadescentralizada,fragmentadae

atomística que evitaria que umpoder singular dominasse emanipulasse omercado dá lugar a um

podercapitalista cadavezmais centralizado.Aconcorrência tende sempreaproduzirmonopólioe,

quanto mais feroz a concorrência, mais rápida é a tendência à centralização. A maior das

consequências é a produção, de um lado, de imensas concentrações de riquezas (em particular da

partedoscapitalistascentralizadores)e,deoutro,deumacrescentemiséria,exploraçãoedegradação

daclassetrabalhadora.

O projeto neoliberal dos últimos trinta anos, fundado no utopismo liberal, confirmou as duas

tendênciasprevistasporMarx.Éclaroque,nosdetalhes,háumagrandedosededivergência,tanto

geográficaquantosetorial,masograudecentralizaçãodocapitalqueocorreuemváriasesferas foi

avassalador, e há um reconhecimento geral de que as imensas concentrações de riqueza que

ocorreramno pontomais alto da escala de riqueza e renda jamais foram tão grandes como agora,

enquanto as condições de vida das classes trabalhadoras do mundo inteiro estagnaram ou se

deterioraram.NosEstadosUnidos,porexemplo,aproporçãodarendaedariquezaconcentradasnas

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mãosdo1%maisricodapopulaçãodobrounosúltimosvinteanos,eado0,1%maisricotriplicou.A

proporçãoderendaentreosdiretoresexecutivoseos trabalhadoresassalariadosmédios,queerade

30:1 nos anos 1970, passou para mais de 350:1 em média nos últimos anos. Onde quer que a

neoliberalizaçãotenhasidodesenfreada(comonoMéxicoenaÍndiaapartirdosanos1990),novos

bilionáriosentraramparaalistadaForbesdaspessoasmaisricasdomundo.OmexicanoCarlosSlimé

hojeumadaspessoasmaisricasdomundo,eelealcançouessaposiçãonaesteiradaneoliberalização

queocorreunoMéxiconoiníciodosanos1990.

Marxchegouaessasconclusõescontraintuitivasdesconstruindo,emseusprópriostermos,asteses

dos economistas políticos clássicos.Mas também usou criticamente suas poderosas abstrações para

penetraradinâmicarealdocapitalismoerevelarasorigensdaslutasemtornodaduraçãodajornada

detrabalho,dascondiçõesdevidadoexércitoindustrialdereservaecoisasdogênero.Aanálisedo

LivroIpodeserlidacomoumrelatosofisticadoecondenatóriodeque“nãohánadamaisdesigualdo

quetratardesiguaiscomoiguais”.Aideologiada liberdadedetrocaeda liberdadedecontratonos

ludibria a todos. Fundamenta a superioridade e a hegemonia moral da teoria política burguesa e

sustenta sua legitimidade e seu suposto humanismo.Mas, quando as pessoas entramnessemundo

livreeigualitáriodastrocasmercantiscomdoteserecursosdiferentes,mesmoamenordesigualdade,

paranãofalardadivisãofundamentaldaposiçãodeclasse,aprofunda-seetransforma-secomotempo

emenormesdesigualdadesdeinfluência,riquezaepoder.Eisso,quandosomadoaumacentralização

crescente,contribuiparaainversãodevastadoradeMarxdavisãosmithianado“benefíciodetodos”

quederivadamãoinvisíveldomercado.Issoesclareceoconteúdodeclassedaquiloque,porexemplo,

caracterizou os últimos trinta anos de globalização neoliberal.O resultado emMarx é uma crítica

ferozdastesesdaliberdadeindividualquefundamentamateorialiberaleneoliberal.Essesideaissão,

na visão de Marx, tão enganadores, fictícios e fraudulentos quanto sedutores e cativantes. Os

trabalhadores,comoobservaele,sãolivresapenasnoduplosentidodesercapazesdevendersuaforça

detrabalhoparaquemquiserem,aomesmotempoquesãoobrigadosavenderessaforçadetrabalho

para viver, porque foram libertados e liberados de todo e qualquer controle sobre os meios de

produção!

Oqueoscapítulos24e25d’Ocapitalfazeméanalisarcomoessesegundotipode“liberdade”foi

assegurado. Somos obrigados a enfrentar o uso predatório, violento e abusivo do poder que se

encontra nas origens históricas do capitalismo, quando ele liberou a força de trabalho como uma

mercadoriaeeliminouomododeproduçãoanterior.Ospressupostosquedominaramoargumento

emtodososcapítulosanterioresd’Ocapitalsãoabandonadoscomconsequênciasbrutais.

O capitalismo, comovimos, depende fundamentalmentedeumamercadoria capazdeproduzir

maisvalordoqueaquelequeela tem,eessamercadoriaéa forçade trabalho.ComoMarxobserva

numapassagemd’Ocapital:

Aperguntasobreporqueessetrabalhadorlivreseconfrontacomelenaesferadacirculaçãonãointeressaaopossuidordedinheiro,

queencontraomercadodetrabalhocomoumaseçãoparticulardomercadodemercadorias.E,nopresentemomento,elatampouco

teminteresseparanós.Ocupamo-nosdaquestãoteoricamente,assimcomoopossuidordedinheiroocupa-sedelapraticamente.Uma

coisa,noentanto,éclara.Anaturezanãoproduzpossuidoresdedinheiroedemercadorias,deumlado,esimplespossuidoresdesuas

próprias forças de trabalho, de outro.Essa não é uma relaçãonatural e tampoucouma relação social comuma todos os períodos

históricos.Masé claramenteo resultadodeumdesenvolvimentohistóricoanterior,oprodutodemuitas revoluções econômicas,da

derrocadadetodaumasériedeformasanterioresdeproduçãosocial.(244)

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Aacumulaçãoprimitivadizrespeitoàsorigenshistóricasdessetrabalhoassalariado,assimcomoà

acumulaçãonasmãosdocapitalistadosrecursosnecessáriosparaempregá-lo.

Oscapítulos24e25tratam,portanto,daquestãocentraldatransformaçãodaforçadetrabalho

emmercadoria(ou,demodomaisgeral,daformaçãodaclassetrabalhadora).Aversãoburguesadessa

história,contadaporLockeeSmith,éaseguinte:

Numaépocamuitoremota,havia,porumlado,umaelitelaboriosa,inteligenteesobretudoparcimoniosae,poroutro,umbandode

vadiosadissipartudooquetinhameaindamais[...].Deu-se,assim,queosprimeirosacumularamriquezaseosúltimosacabaramsem

ternadaparavender,anãosersuaprópriapele.Edessepecadooriginaldatamapobrezadagrandemassa,queaindahoje,apesarde

todoseutrabalho,continuaanãopossuirnadaparavenderanãoserasimesma,eariquezadepoucos,quecrescecontinuamente,

emborahámuitotenhamdeixadodetrabalhar.(785)

Essahistóriadescreveumatransiçãogradualepacíficadofeudalismoparaocapitalismo.Mas“na

históriareal”,dizMarx,

o papel principal é desempenhado pela conquista, pela subjugação, pelo assassínio para roubar, em suma, pela violência. Já na

economia política, tão branda, imperou sempre o idílio.Direito e “trabalho” foram, desde tempos imemoriais, os únicosmeios de

enriquecimento,excetuando-sesempre,éclaro,“esteano”.(786)

Issoaconteceporque

oprocessoquecriaarelaçãocapitalistanãopodesersenãooprocessodeseparaçãoentreotrabalhadoreapropriedadedascondições

derealizaçãodeseutrabalho,processoque,porumlado,transformaemcapitalosmeiossociaisdesubsistênciaedeproduçãoe,por

outro,converteosprodutoresdiretosemtrabalhadoresassalariados.Aassimchamadaacumulaçãoprimitivanãoé,porconseguinte,

maisdoqueoprocessohistóricodeseparaçãoentreprodutoremeiodeprodução.Elaaparececomo“primitiva”porqueconstituia

pré-históriadocapitaledomododeproduçãoquelhecorresponde.(786)

Em termos factuais, os métodos da acumulação primitiva “podem ser qualquer coisa, menos

idílicos [...]. E a história dessa expropriação está gravada nos anais da humanidade com traços de

sangueefogo”(786-7).

AvisãodeMarx,radicalmentediferentedadeSmitheLocke,levantaquestõesinteressantes.Em

primeiro lugar: o capital comercial e financeiro e a usura são formas antediluvianas ou ainda

desempenham um papel ativo, independente do capital de produção, do capital industrial etc.?

Anteriormente, Marx observou que “tanto o capital comercial como o capital a juros são formas

derivadas”, ao mesmo tempo que “tornar-se-á claro por que elas surgem historicamente antes da

modernaformabasilardocapital”(240).Issoimplicaqueatransiçãodofeudalismoparaocapitalismo

ocorreuemestágiosemqueocapitalcomercialeocapitalusurárioabriramocaminhoparaocapital

de produção (ou industrial). O papel que essas formas anteriores de capital desempenharam na

dissoluçãodaordemfeudalestá,portanto,abertoàinvestigação.Emsegundolugar:issosignificaque,

umavezqueocapitalismopassoupelaacumulaçãoprimitiva,eumavezqueapré-históriaacaboue

surgiu uma sociedade capitalista madura, os violentos processos que ele descreve tornam-se

insignificantes e desnecessários aomodo comoo capitalismo funciona?Essa é uma questão à qual

retornareimaisadiante.Masébomtê-laemmente,enquantoprosseguimos.

Na versão de Marx da acumulação primitiva, todas as regras da troca mercantil expostas

anteriormente (no capítulo 2) são abandonadas. Não há reciprocidade nem igualdade. Sim, a

acumulaçãododinheiroestálá,bemcomoosmercados,masoprocessorealédiferente.Trata-seda

expropriaçãoviolentadetodaumaclassedepessoasdocontrolesobreosmeiosdeprodução,primeiro

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pormeiode ações ilegais e,por fim, comoa leide cercamentona Inglaterra,pela açãodoEstado.

AdamSmith,éclaro,nãoqueriaqueoEstadofosseentendidocomoumagenteativonavitimaçãoda

população e, por isso, não podia contar uma história da acumulação primitiva em que o Estado

desempenhasseumpapelcrucial.Seasorigensdaacumulaçãodocapitalseencontramnoaparatoe

nopoder estatal, qual é o sentidodedefenderpolíticasde laissez-faire comoummeio fundamental

para aumentar o bem-estar nacional e individual? Por isso, Smith, e a maioria dos economistas

políticos clássicos, preferiu ignorar o papel do Estado na acumulação primitiva. Houve exceções.

James Steuart, observaMarx, compreendeu que a violência estatal era absolutamente fundamental

para a proletarização, mas assumiu a posição de que era um mal necessário. O livro de Michael

Perelman,TheInventionofCapitalism[Ainvençãodocapitalismo]

[1]

,forneceumaexcelenteexplicação

sobrecomoaacumulaçãooriginalouprimitivafoitratadanaeconomiapolíticaclássica.

A principal preocupação de Marx nos capítulos 24 e 25 é esmiuçar a história da acumulação

primitivadoséculoXVIemdianteeinvestigarcomoessesprocessosforampostosemmovimento.É

claro que ele admite prontamente que a “história [da expropriação da terra] assume tonalidades

distintas nos diversos países e percorre as várias fases em sucessão diversa e em diferentes épocas

históricas. Apenas na Inglaterra, e por isso tomamos esse país como exemplo, tal expropriação se

apresentaemsuaformaclássica”(787-8).

Devemos entender por “clássica” que essa expropriação foi um modelo de transição para o

capitalismoqueomundointeirotevedeseguir?Maistarde,Marxnegouessainterpretaçãoeafirmou

queviaaGrã-Bretanhaapenascomoumexemplo,apesardeespecialepioneiro.Maisumavez,essas

questões são controversas, e teremos de retornar a elas. O modo como pensamos sobre elas tem

relevânciaparaoutraquestão importante,porémlargamentenegligenciada:énecessáriopassarpela

acumulaçãoprimitivaepelalongahistóriadocapitalismoparachegaraosocialismo?

CAPÍTULO24:AASSIMCHAMADAACUMULAÇÃOPRIMITIVA

Ositensdocapítulo24sãorelativamentecurtoseordenadosnumasequênciacomclarasimplicações.

Vejamosalgunsdeseuspontosmaisimportantes.Oprimeiroitemtratadaexpropriaçãodapopulação

agrícola,bemcomodoprocessoigualmenteimportantededissoluçãodoslaçosdosvassalosfeudais.A

apropriaçãodaterrafoiomeioprincipalparaexpropriarocampesinato,masaliberaçãodosvassalos

se deveumuito aomodo como o poder do dinheiro começou a ser exercido na, e sobre a, ordem

feudal(porexemplo,pelocapitalcomercialepelausura).“Anovanobrezaeraumafilhadesuaépoca,

para a qual o dinheiro era o poder de todos os poderes” (790). NosGrundrisse, Marx é bemmais

explícito.Lá,elemostracomoodinheirodissolveacomunidadetradicionale,aofazê-lo,torna-seele

mesmoacomunidade.Assim,passamosdeummundoemquea“comunidade”édefinidaemtermos

de estruturas de relações sociais interpessoais para ummundo emqueprevalece a comunidadedo

dinheiro.Odinheiro,usadocomopodersocial,conduzàcriaçãodegrandeslatifúndios,criaçõesde

ovelhasecoisasdogênero,aomesmotempoqueatrocademercadoriasprolifera(umaideiamuito

presentenos capítulos iniciais sobre odinheiro e a troca emgeral).A comunidade tradicional não

capitulasemlutare,aomenosnosestágiosiniciais,opoderestataltentapreservaraquiloque,mais

tarde,E.P.Thompsonchamariade “economiamoral”do campesinato contraopodernue crudo

dinheiro.

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Mas o poder estatal cede gradualmente por duas razões. Em primeiro lugar, porque o Estado

dependedopoderdodinheiroetorna-se,assim,vulnerávelaele.Emsegundolugar,porqueopoder

dodinheiropodesercriadoemobilizadodeummodoquealegislaçãoestataltenhadificuldadede

detê-lo. Sob Henrique VII, aprovaram-se leis que tentavam conter o processo de monetização e

proletarização.Masopodercadavezmaiordoincipientecapitalismodemandava,aocontrário,“uma

posiçãoservildasmassaspopulares,atransformaçãodestasemtrabalhadoresmercenárioseadeseus

meiosdetrabalhoemcapital”.Um“novoeterrívelimpulsoaoprocessodeexpropriaçãoviolentadas

massaspopulares foidado,noséculoXVI”e,depoisdisso,aresistênciadaordemsocial tradicional

começou a ruir (792). Em vez de as ilegalidades do poder do dinheiro assumirem uma liderança

subversiva,oEstadosealiaaessepoderecomeçaaapoiarativamenteosprocessosdeproletarização.

Essatendênciaseconsolida,dizMarx,comaRevoluçãoGloriosade1688,que:

conduziuaopoder,comGuilhermeIIIdeOrange,osextratoresdemais-valor,tantoproprietáriosfundiárioscomocapitalistas.Estes

inauguraramanovaerapraticandoemescalacolossaloroubodedomíniosestataisque,atéentão,erarealizadoapenasemproporções

modestas.Taisterrasforampresenteadas,vendidasapreçosirrisóriosou,pormeiodeusurpaçãodireta,anexadasadomíniosprivadas.

[...]Opatrimônio doEstado, apropriadodessemodo fraudulento, somado ao roubodas terras da Igreja [...], constitui a base dos

atuaisdomíniosprincipescosdaoligarquiainglesa.(795-6)

Sobre essa base, formaram-se alianças de classe novas e mais poderosas. “A nova aristocracia

fundiáriaeraaliadanaturaldanovabancocracia,dasaltasfinançasrecém-saídasdoovoedosgrandes

manufatureiros, que então se apoiavam sobre tarifas protecionistas.”Emoutras palavras, formou-se

umaburguesiaconstituídaporumaamplaaliançaentrecapitalistasrurais,comerciais,financeirose

manufatureiros.Elescurvamoaparatoestatalàsuavontadecoletiva.Oresultadoéquea“próprialei

se torna, agora, o veículo do roubo das terras do povo, embora os grandes arrendatários também

empreguemparalelamenteseuspequenoseindependentesmétodosprivados”.

Dessemodo, o roubo sistemático da propriedade comunal se estende por todo o período, com

destaque para o amplo cercamento das terras comuns. A “violenta usurpação dessa propriedade

comunal,emgeralacompanhadadatransformaçãodasterrasdelavouraempastagens,teminíciono

finaldoséculoXVeprossegueduranteoséculoXVI”(796).Fortuitamente,taiscircunstânciasderam

origemaumaimportanteliteraturanostálgicasobreaperdadaantigaordem.Esseeraomundode

OliverGoldsmithedaselegiasdeGraysobreadestruiçãodeumasupostaalegreInglaterra

[a]

.Marx

escolhe um exemplo posterior, o caso espetacular da expulsão dos habitantes das Terras Altas

escocesas,ondeoscamponesesforamexpulsospoucoapoucodesuasterrasatéofimdoséculoXIX.

ElecriticaahipocrisiadaduquesadeSutherland,que,enquantoexpulsavaaspessoasdasTerrasAltas

porumprocessoquase legal, recebia“emLondres, comgrandepompa,aautoradeA cabanado pai

Tomás, Harriet Beecher Stowe, a fim de exibir sua simpatia pelos escravos negros da república

americana”(802,nota218)

DizMarx,emresumo:

O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios estatais, o furto da propriedade comunal, a transformação

usurpatória, realizadacominescrupulosoterrorismo,dapropriedade feudaleclânicaempropriedadeprivadamoderna foramoutros

tantosmétodos idílicosdaacumulaçãoprimitiva.Taismétodosconquistaramocampoparaaagriculturacapitalista, incorporaramo

soloaocapitalecriaramparaaindústriaurbanaaofertanecessáriadeumproletariadointeiramentelivre.(804)

Aquestãosobreoquetodasessaspessoasexpulsasdesuasterrasfariamétratadanoitem3.Em

geralnãohaviaempregoparaelas;então,aomenosaosolhosdoEstado,taisindivíduossetornavam

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vagabundos,mendigos, ladrões e assaltantes.Oaparato estatal respondiadeummodoqueperdura

até nossos dias: criminalizando e encarcerando, tratando-os como vagabundos e praticando contra

eles a mais extrema violência. “Assim, a população rural, depois de ter sua terra violentamente

expropriada,sendodelaexpulsaeentregueàvagabundagem,viu-seobrigadaasesubmeter,pormeio

de leis grotescas e terroristas, e por força de açoites, ferros em brasa e torturas, a uma disciplina

necessária ao sistema de trabalho assalariado.” A violência da socialização dos trabalhadores ao

aparatodisciplinardocapitalénítida.Mas,comopassardotempo,“acoerçãomudaexercidapelas

relações econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador”. Uma vez formado o

proletariado,segundooqueMarxparecedizer,amudacoerçãodasrelaçõeseconômicascumpresua

missão, e a violência flagrante pode passar a segundo plano, pois as pessoas foram socializadas à

situação de trabalhadoras assalariadas, como portadoras da mercadoria-força-de-trabalho. Mas “a

burguesia emergente” continua a necessitar do “poder do Estado” para regular os salários e evitar

qualquer tipo de organização coletiva dos trabalhadores (a legislação antissindical e o que foi

chamadonaépocadeCombinationLaws,leisqueproibiamassociaçõeseatémesmoassembleiasde

trabalhadores)(808-9).Essefoiumapoiocrucial,observaMarx,paraaconsolidaçãodoregimeliberal

(fundadonosdireitosdepropriedadeprivada).

Jáno inícioda tormenta revolucionária, aburguesia francesaousoudespojarnovamenteos trabalhadoresde seu recém-conquistado

direito de associação. O decreto de 14 de junho de 1791 declarou toda coalizão de trabalhadores um “atentado à liberdade e à

DeclaraçãodosDireitosdoHomem”.(812)

A legalidade burguesa é usada desse modo muito específico para inibir os potenciais poderes

coletivosdotrabalho.

Oitem4examinaagênesedosarrendatárioscapitalistas.Marxcontaumahistóriamuitosimples

sobrecomoosbailiosprimeiro se tornarammeeirosedepoisarrendatáriospassando,então,apagar

renda fundiária (emdinheiro) aos senhores rurais.Esseprocessodemonetização emercantilização

deu impulso a uma “revolução agrícola” no campo, permitindo que o capital utilizasse o solo de

determinadamaneira.Ocapitalcirculavaatravésdosolo,danatureza,exatamentedomesmomodo

que circulava através do corpo do trabalhador como capital variável. O impacto dessa revolução

agrícola,dizMarxnoitem5,tevedoislados:liberounãosóumagrandequantidadedetrabalho,mas

tambémmeiosdesubsistênciaqueanteseramconsumidosdiretamentenaterra.Elemercantilizoua

oferta de alimentos.Omercado para bens emercadorias cresceu, em parte porquemenos pessoas

podiam subsistir por sua própria conta.O resultado foi a expansão das trocas e o crescimento do

mercado. Enquanto isso, o capital destruiu grande parte dos negócios subsidiários artesanais e

domiciliares não apenas na Índia, como também na Grã-Bretanha. Isso levou à criação de um

mercadodomésticomaisforteemaior.OcrescimentodomercadointernonaGrã-Bretanhaapartir

doséculoXVIfoi,segundoMarx,umelementoimportantenodesenvolvimentodocapitalismo.

Issonosconduz,noitem6,àgênesedocapitalistaindustrial,queassumiuopapeldeprotagonista

que antes eradesempenhadopelo capital comercial,pelo capitalusurário,pelabancocracia (capital

financeiro) e pelo capital fundiário. Desde o início, essa mudança estava estreitamente ligada ao

colonialismo, ao comércio escravagista e ao que ocorreu na África e nos Estados Unidos. No

feudalismo havia muitas barreiras para a transformação da quantidade cada vez maior de capital

monetárioemcapitalindustrial.“Oregimefeudalnocampoeaconstituiçãocorporativanascidades”

inibiram o desenvolvimento industrial baseado no trabalho assalariado,mas “essas barreiras caíram

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comadissoluçãodosséquitosfeudaisecomaexpropriaçãoeaparcialexpulsãodapopulaçãorural”.

Contudo,comopredizMarx,

Anovamanufaturaseinstalounosportosmarítimosexportadoresouempontosdocamponãosujeitosaocontroledovelhoregime

urbanoedesuaconstituiçãocorporativa.NaInglaterraseassistiu,porisso,aumaamargalutadascorporatetowns

[b]

contraessasnovas

incubadorasindustriais.(820-1)

NaGrã-Bretanha,ocapitalismoindustrialsedesenvolveunaquiloquehojechamaríamosdeáreas

não cultivadas [greenfield sites]. Centros econômicos como Norwich e Bristol eram altamente

organizados,eeramuitodifícilenfrentá-lospoliticamenteeconteropoderdasguildas.Nasregiões

nãocultivadasnãoexistiamaparatosregulatóriosparadetê-lo–nãohaviaumaburguesiacitadinaou

guildasorganizadas.Porisso,amaiorpartedaindustrializaçãobritânicaocorreuemantigosvilarejos,

como Manchester (todas os centros algodoeiros eram originalmente pequenos vilarejos). Leeds e

Birmingham também começaram como pequenos vilarejos comerciais. Esse padrão de

industrializaçãodiferedaqueledeoutrasregiões,emboracontinueavaleraregradeque,sempreque

possível, o capital gosta de se deslocar para lugares ermos. Quando a indústria automobilística

japonesasetransferiuparaaGrã-Bretanhanosanos1980,elaevitouasregiõesmaissindicalizadase

instalou-se em áreas abertas a novos desenvolvimentos, onde as companhias podiam agir com

liberdade e construir o que bem quisessem (com o apoio do governo antissindical de Thatcher, é

claro). Nos Estados Unidos, a tendência é a mesma. Encontrar espaços onde não há regulação e

organizaçãosindicalcontinuaaserumaspectosignificativodadinâmicageográficaelocacionaldo

capitalismo.

Opapeldosistemacolonialedocomércioescravagistanãopodeserignorado,poisfoipormeio

delesqueaburguesiacercouesubjugouospoderesfeudais.Háumafortecorrentedeopiniãoquevê

as plantations das Índias Ocidentais no começo do século XVIII como um estágio pioneiro da

organização de trabalho em larga escala, como aquelas que reaparecerammais tarde nos sistemas

fabrisdaGrã-Bretanha:“Taismétodos,como,porexemplo,osistemacolonial,baseiam-se,emparte,

na violênciamais brutal” (821). Todo tipo de tática foi usado para extrair riqueza das populações

colonizadas.“Entre1769e1770”,porexemplo,“osinglesesfabricaramumsurtodefomepormeioda

compradetodoarrozepelarecusaderevendê-lo,anãoserporpreçosfabulosos”(822-3).Todosesses

métodos

lançarammãodopoderdoEstado,daviolênciaconcentradaeorganizadadasociedade,paraimpulsionarartificialmenteoprocessode

transformaçãodomododeproduçãofeudalemcapitalistaeabreviaratransiçãodeumparaooutro.Aviolênciaéaparteiradetoda

sociedadevelhaqueestáprenhedeumasociedadenova.Elamesmaéumapotênciaeconômica.(821)

Mas não podemos entender esse papel crucial do Estado como força organizadora e como

promotor do sistema colonial sem reconhecer a importância tanto da dívida nacional quanto do

sistemadecréditopúblicocomomeiospelosquaisopoderdodinheiropodecomeçaracontrolaro

poderdoEstado.AfusãodopoderdodinheirocomopoderestatalapartirdoséculoXVIéassinalada

peloadventodeum“modernosistematributário”edeumsistemainternacionaldecrédito(826).Os

“bancocratas,financistas,rentistas,corretores,stockjobbers[bolsistas]”etc.quepovoavamessesistema

passaram a desempenhar importantes funções de poder (825).O sistema colonial permitia que “os

tesouros espoliados fora da Europa diretamentemediante o saqueio, a escravização e o latrocínio”

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fossem levados “àmetrópole”, onde “se transformavam em capital”, aomesmo tempo que a dívida

públicasetornava“umadasalavancasmaispoderosasdaacumulaçãoprimitiva”(824).

Sistema colonial, dívidas públicas, impostos escorchantes, protecionismo, guerras comerciais etc., esses rebentos do período

manufatureiro propriamente dito cresceram gigantescamente durante a infância da grande indústria. O nascimento desta última é

celebradopelogranderaptoherodianodosinocentes.(827)

Esse“massacre” surgiudanecessidadedeencontrar emobilizar forçade trabalho suficiente em

áreasdistantesdascidades.MarxcitaJohnFielden:“Oquemaisserequisitavaeramdedospequenos

e ágeis. Logo surgiu o costume de buscar aprendizes (!) nas diferentes workhouses paroquiais de

Londres,Birminghameoutroslugares”(827).EMarxprossegue:“Enquantointroduziaaescravidão

infantilnaInglaterra,aindústriadoalgodãodava,aomesmotempo,oimpulsoparaatransformação

daeconomiaescravistadosEstadosUnidos,antesmaisoumenospatriarcal,numsistemacomercial

de exploração”, e com isso estimulava o comércio escravagista, que estava sob o domínio dos

britânicos. “Liverpool teve um crescimento considerável graças ao tráfico de escravos. Esse foi seu

métododeacumulaçãoprimitiva”(829).Foinecessárioumimensoesforçopara

trazer à luz as “eternas leis naturais” do modo de produção capitalista, para consumar o processo de cisão entre trabalhadores e

condiçõesdetrabalho,transformando,numdospolos,osmeiossociaisdeproduçãoesubsistênciaemcapitale,nopolooposto,a

massadopovoemtrabalhadoresassalariados,em“pobreslaboriosos”livres,esseprodutoartificialdahistóriamoderna.(829)

Se o dinheiro “vem aomundo commanchas naturais de sangue numa de suas faces”, conclui

Marx,“ocapitalnasceescorrendosangueelamaportodososporos,dacabeçaaospés”(830).

Osprocessosdeexpropriação,afirmaMarxnoitem7,sãotãolongosquantobrutaisedolorosos.O

feudalismonãoacabou sem luta. “Apartirdessemomento, agitam-seno seioda sociedade forças e

paixõesquesesentemtravadasporessemododeprodução.”

[Ofeudalismo]temdeserdestruído,eédestruído.Suadestruição,atransformaçãodosmeiosdeproduçãoindividuaisedispersosem

meiosdeproduçãosocialmenteconcentradose,porconseguinte,a transformaçãodapropriedadenanicademuitosempropriedade

gigantescadepoucos,portanto,aexpropriaçãoquedespojagrandemassadapopulaçãodesuaprópriaterraedeseusprópriosmeios

de subsistência e instrumentosde trabalho, essa terrível edificultosa expropriaçãodasmassaspopulares, tudo isso constitui apré-

históriadocapital.(831)

Essa pré-história “compreende uma série demétodos violentos” que levam ao “mais implacável

vandalismo” (831). Mas, uma vez em movimento, os processos do desenvolvimento capitalista

assumemsuapróprialógicadistintiva,inclusiveadacentralização.“Cadacapitalistaliquidamuitos

outros. Paralelamente a essa centralização, ou à expropriação de muitos capitalistas por poucos,

desenvolve-se a forma cooperativa do processo de trabalho em escala cada vez maior, a aplicação

técnicaconscientedaciência,aexploraçãoplanejadadaterra”(832).

Isso ocorre àmedida que se forma omercadomundial e, com ele, o “caráter internacional do

regimecapitalista”.Dissotambémemergearevoltadaclassetrabalhadora,

que, cada vez mais numerosa, é instruída, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista. O

monopóliodocapitalseconvertenumentraveparaomododeproduçãoquefloresceucomeleesobele.Acentralizaçãodosmeiosde

produção e a socializaçãodo trabalho atingemumgrau emque se tornam incompatíveis com seu invólucro capitalista.Oentrave é

arrebentado.Soaahoraderradeiradapropriedadeprivadacapitalista.Osexpropriadoressãoexpropriados.(832)

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Há, no fim das contas, uma enorme diferença entre “a expropriação da grande massa da

população” por uns poucos usurpadores e a expropriação de uns poucos usurpadores pela grande

massadapopulação.

Esse chamado às barricadas da revolução é a retórica doManifesto Comunista, que retorna para

influenciar o conteúdo político d’O capital. Trata-se de uma afirmação política e polêmica, que

certamente havia de proporcionar a uma obra impressionante como esta, de tão profunda análise,

animadaporumespíritotãorevolucionário,umcapítuloculminante.

Isso nos leva ao último capítulo [capítulo 25], um capítulo curioso, que contraria a retórica

messiânicadocapítuloprecedenteeofereceumasériedereflexõessobreateoriadacolonização.Além

disso, ele trata não da experiência colonial real e dos prognósticos das lutas revolucionárias

anticoloniais(aexpropriaçãodossenhorescoloniaispelamassadopovocolonizado),masdasteorias

dacolonizaçãoelaboradasporumhomemchamadoWakefield,quenuncafigurouentreosgrandes

economistas políticos de todos os tempos e escreveu seu livro sobre colonização enquanto cumpria

penanaprisãodeNewgateportentarseduzirafilhadeumafamíliarica.Naprisão,Wakefieldachou-

se em companhia de prisioneiros prestes a ser enviados para a Austrália, e isso, é claro, levou-o a

pensar sobre o papel da Austrália no esquema geral das coisas. Ele sabia pouco do que estava

acontecendo na Austrália, mas viu algo que Marx considerou de grande importância, porque

significava uma refutação esmagadora de Adam Smith. Wakefield reconheceu simplesmente que

podemos levar para a Austrália todo o capital existente no mundo (dinheiro, instrumentos de

trabalho, materiais de todos os tipos); no entanto, se não conseguirmos encontrar trabalhadores

“livres”(noduplosentidodapalavra!)paratrabalharparanós,nãopodemossercapitalistas.

Em suma,Wakefield “descobriu que o capital não é uma coisa, mas uma relação social entre

pessoas,intermediadaporcoisas”(836).EradifícilencontrartrabalhadoresnaAustrália;naépoca,eles

tinhamacessofácilàterraepodiamsesustentarcomoprodutoresindependentes.Oúnicomeiode

asseguraraofertadetrabalho,eassimpreservarasperspectivasdocapitalismo,eraoEstadointervire

pôr um preço de reserva na terra. Esse preço de reserva tinha de ser suficientemente alto para

assegurarquetodosque fossemparaaAustrália tivessemdetrabalharcomoassalariadosatépoupar

capital suficiente para ter acesso à terra.Wakefield considerava que o sistema agrário nos Estados

Unidos(oHomesteadAct)eraabertoelivredemais,eissoaumentavamuitoopreçodotrabalho(o

que,comovimosanteriormente,levouàrápidaadoçãodeinovaçõesquepoupavamtrabalho).Como

Wakefield predisse corretamente, os Estados Unidos teriam de recorrer às táticas brutais da pré-

históriadocapitalismosequisessemqueosistemacontinuassevivonopaís.Alutaentreo“trabalho

livre”nafronteiraeocontrolecrescentedapolíticaagráriaporinteressesprivados(emparticularas

ferrovias), assim como a retenção das populações imigrantes como trabalhadores assalariados nas

cidades,eramaspectosvitaisdaacumulação.

“Oquenosinteressa”,escreveMarx,

éapenasosegredoqueaeconomiapolíticadoVelhoMundodescobrenoNovoMundoeproclamabemalto,a saber,odequeo

modocapitalistadeproduçãoeacumulação–e,portanto,apropriedadeprivadacapitalista–exigeoaniquilamentodapropriedade

privadafundadanotrabalhopróprio,istoé,aexpropriaçãodotrabalhador.(844)

Ogovernodeveconferirà terravirgem,pordecreto,umpreçoartificial, independenteda leidaofertaedademanda,queobrigueo

imigrante a trabalhar como assalariadoporumperíodomaior, antes quepossa ganhardinheiro suficientepara comprar sua terra e

transformar-senumcamponêsindependente.(842)

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Esse,dizMarx,éo“grandesegredo”dosplanosdeWakefieldparaacolonização,masétambémo

grande segredo da acumulação primitiva. Esses planos tiveram uma influência considerável no

Parlamentobritânicoeafetaramapolíticaagrária.“Éaltamentecaracterísticoqueogoverno inglês

tenhaaplicadodurantemuitosanosessemétodode‘acumulaçãoprimitiva’,expressamenteprescrito

pelosr.Wakefieldparaseuusoempaísescoloniais”(843).

Marxusaessateoriacolonialpararefutarateoriasmithianadaacumulaçãooriginalouprimitiva.

Mas há algomais em jogo aqui, algo que pode ser de profunda relevância para o argumento e a

estruturad’Ocapital como livro.No prefácio da segunda edição,Marxmenciona sua relação com

Hegelediz:“Critiqueioladomistificadordadialéticahegelianaháquasetrintaanos”(91).Équase

certoqueeleserefiraàsualongaCríticadafilosofiadodireitodeHegel.Nela,elepartedoparágrafo250

daexposiçãodeHegel.Masoconteúdodosparágrafosprecedentes é surpreendente.Semqualquer

advertência ou teorização prévia, Hegel inicia uma discussão das contradições internas do

capitalismo. Ele observa a “dependência e a agonia da classe ligada” a um certo tipo de trabalho,

processos que levam ao empobrecimento generalizado e à criação de uma turba demiseráveis, ao

mesmo tempoque “produz,dooutro ladoda escala social, condiçõesque facilitam imensamente a

concentraçãodesproporcionalderiquezaempoucasmãos”.Alinguagemémuitosimilaràdocapítulo

23d’Ocapital, em queMarx fala da acumulação de riqueza numpolo e damiséria, da faina e da

degradação no outro polo, ocupado pela classe trabalhadora. “Por isso, torna-se evidente”, observa

Hegel,“que,apesardeumexcessoderiqueza,asociedadecivilnãoéricaosuficiente[...]paraevitar

apobrezaexcessivaeacriaçãodeumamultidãodemiseráveis”.Dizainda:

Essa dialética interna da sociedade civil a leva – ou leva de todomodo uma sociedade civil específica – a avançar para alémde seus

próprioslimiteseabuscarmercados,ecomelesseusmeiosnecessáriosdesubsistência,emoutrospaíses,quesãodeficientesnosbens

queelaproduzemexcessoou,demodogeral,sãoindustrialmenteatrasados.

Uma “sociedade civil madura” é levada assim à atividade colonizadora, “pormeio da qual ela

ofereceaumapartedesuapopulaçãoumretornoàvidaembasesfamiliaresnumnovopaísegarante

parasimesmaumanovademandaeumnovocampoparasuaindústria”

[2]

.

OqueHegelchamade“dialéticainterna”produzníveiscadavezmaioresdedesigualdadesocial.

Alémdisso, comoelediznumde seus adendos, “contra anaturezaohomemnãopode reivindicar

nenhumdireito,mas,umavezqueasociedadeestáestabelecida,apobrezaassumeimediatamentea

formadeummalcometidoporumaclassecontraaoutra”

[3]

.Essadialéticainterna,fundadanaluta

de classes, leva as sociedades civis a buscar alívio numa “dialética externa” da atividade colonial e

imperialista.NãoestáclaroseHegelacreditaqueissoresolveráoproblemainterno.Marx,porém,está

segurodequenão.A expropriaçãodos expropriadores, expostanopenúltimo capítulo [capítulo24]

d’O capital como resultado último da dialética interna, não pode ser contraditada por práticas

coloniaisqueapenasrecriamemescalamaiorasrelaçõessociaisdocapitalismo.Nãopodehaveruma

soluçãocolonialàscontradiçõesdeclasseinternasdocapitalismoe,nessemesmosentido,nãopode

haver um ajuste espacial às contradições internas. O que hoje chamamos de globalização é

simplesmente,comonos lembramatodoinstante,umajustetemporárioque“resolve”osproblemas

noaquieagora,projetando-osparaumterrenogeográficomaioremaisamplo.

COMENTÁRIO

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HáumavariedadedequestõeslevantadaspelaanálisedeMarxdaacumulaçãoprimitivaquerequer

comentário. Para começar, é importante reconhecer e apreciar o caráter inovador e pioneiro dessa

análise.Nuncaninguémhavia feito issodemodo tão sistemático eordenado.Mas, comocostuma

acontecercomteoriasinovadoras,essaéumpoucoexageradaetratasuperficialmentedeumasérie

de questões. Desde então, historiadores e historiadores econômicos realizaram uma enorme

quantidade de pesquisas sobre a transição do feudalismo para o capitalismo. Provavelmente seria

consensoque ahistória contadaporMarx éparcialmente verdadeira emalgunspontos.Houve,de

fato, vários momentos e incidentes de extrema violência nessa geografia histórica. E é inegável o

papel do sistema colonial, inclusive da evolução das políticas agrárias, trabalhistas e tributárias

aplicadas nas colônias. Mas também houve exemplos de acumulação primitiva que foram

relativamente pacíficos. As populações eram menos forçadas a sair da terra do que atraídas pelas

possibilidadesdeempregoepelasperspectivasdeumavidamelhoroferecidaspelaurbanizaçãoepela

industrialização.Atransferênciavoluntáriaparaascidadesdepopulaçõesinteiras,quedeixavampara

trás as condiçõesprecáriasda vida rural embuscade altos salários,não era incomum(mesmo sem

aquelesprocessosdeexpropriaçãodaterraaqueMarxserefereedosquaisháevidênciashistóricas

suficientes).Ahistóriadaacumulaçãoprimitivaé,portanto,muitomaisnuançadaecomplicadaem

seusdetalhesdoqueaquelaqueMarxconta.E, em suadinâmica,houveaspectos importantesque

Marx ignora.Porexemplo,adimensãodegêneroé reconhecidahojecomoaltamente significativa,

porqueaacumulaçãoprimitivaacarretoumuitasvezesumaperda radicaldepoderdasmulheres, a

reduçãodelasàcondiçãodepropriedademóveleoreforçodasrelaçõessociaispatriarcais.

Marx, porém, delineou os traços gerais da revolução industrial e agrícola, dos processos de

proletarização,mercantilizaçãoemonetizaçãonecessáriosaosurgimentodocapitalismo.Suaanálise

estabeleceu uma linha para todas as discussões futuras e isso já é suficiente para fazer dela uma

intervenção criativa. Ela nos recorda dramaticamente a violência originária e as lutas ferozes que

deramàluzocapitalismo,umaviolênciaquesubsequentementeaburguesiatentounegareesquecer,

apesardevivermosatéhojecomsuasmarcas.

Por todoO capital, mas também em muitos de seus outros escritos, Marx tende a relegar os

processosdeacumulaçãoprimitivaàpré-históriadocapitalismo.Umavezacabadaessapré-história,

entraemcenaa“coerçãosilenciosadasrelaçõeseconômicas”.OprojetopolíticodeMarxn’Ocapital

consiste emnos alertar sobreomodocomoessas coerções silenciosasoperamemnós,muitas vezes

sem nos darmos conta, escondidas atrás das máscaras fetichistas que nos cercam. Ele nosmostra,

comoafirmeianteriormente,quenãohánadamaisdesigualdoqueotratamentoigualdedesiguais;

que a igualdade pressuposta no mercado nos ilude, fazendo-nos acreditar na igualdade entre as

pessoas; que as doutrinas burguesas dos direitos de propriedade privada e da taxa de lucro fazem

parecerquetodostemosdireitoshumanos;queasilusõesdaliberdadepessoaledaliberdade(ecomo

eporqueagimoscombasenessasilusões,eatélutamosporelaspoliticamente)nascemdasliberdades

domercadoedolivre-comércio.

Mashá,ameuver,umproblemanaideiadequeaacumulaçãoprimitivaaconteceuumavezna

história e, após concluída, perdeu a importância. Em tempos recentes, diversos comentadores,

inclusive eu, sugeriram que temos de atentar para a continuidade da acumulação primitiva que

aconteceu durante toda a geografia histórica do capitalismo. Rosa Luxemburgo introduziu

firmemente essa questão na agenda há cerca de um século. Insistiu no fato de que pensamos o

capitalismocomosendobaseadoemduasformasdeexploração:

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Umadizrespeitoaomercadodemercadoriaseaolugarondeomais-valoréproduzido–afábrica,amina,olatifúndioagrícola.Vista

poresseprisma,aacumulaçãoéumprocessopuramenteeconômico,cuja fasemais importanteéa transaçãoentreocapitalistaeo

trabalhadorassalariado.[...]Aqui,aomenosformalmente,prevalecemapaz,apropriedadeeaigualdade,eaagudadialéticadaanálise

científica[e,segundoela,essafoiaprincipalrealizaçãodeMarxn’Ocapital]eranecessáriapararevelarcomoodireitodepropriedade,

nocursodaacumulação,torna-seapropriaçãodapropriedadedeoutrem,ecomoatrocademercadoriasetransformaemexploraçãoe

aigualdade,emdomíniodeclasse.

Isso é, de fato, o queMarx revela tão brilhantemente até o capítulo 23 d’O capital. “O outro

aspectodaacumulaçãodocapital”,dizela,

dizrespeitoàsrelaçõesentreocapitalismoeosmodosnãocapitalistasdeprodução,quecomeçamasurgirnocenáriointernacional.

Seusmétodospredominantessãoapolíticacolonial,umsistemadecréditointernacional–umapolíticadeesferasdeinteresse–ea

guerra.A força, a fraude, a opressão e o saque sãopraticados abertamente, semnenhuma tentativadedisfarce, e énecessário certo

esforçoparadescobrir,nesseemaranhadodeviolênciapolíticaedisputasdepoder,asleisinexoráveisdoprocessoeconômico.

[4]

Há,sustentaela,uma“conexãoorgânica”entreessesdoissistemasdeexploraçãoeacumulação.A

longa história do capitalismo está centrada nessa relação dinâmica entre, de um lado, a contínua

acumulação primitiva e, de outro, a dinâmica da acumulação pormeio do sistema de reprodução

ampliadadescriton’Ocapital.Portanto,Marxestavaerrado,dizela,emsituaraacumulaçãoprimitiva

numpontoantediluviano,numapré-históriadocapitalismo.Ocapitalismoteriadeixadodeexistirhá

muito tempo, se não tivesse se engajado em novos ciclos de acumulação primitiva, sobretudo por

meiodaviolênciadoimperialismo.

Intuitivamente,muitascoisas sugeremqueRosaLuxemburgoestavacertaemprincípio,mesmo

que não concordemos com suas conclusões específicas. Para começar, os processos específicos de

acumulaçãoqueMarxdescreve – a expropriaçãodas populações rurais e camponesas, a política de

exploração colonial, neocolonial e imperialista, o uso dos poderes doEstado para realocar recursos

paraaclassecapitalista,ocercamentodeterrascomuns,aprivatizaçãodas terrasedosrecursosdo

Estadoeosistemainternacionaldefinançaecrédito,paranãofalardosdébitosnacionaiscrescentes

edacontinuaçãodaescravidãopormeiodotráficodepessoas(especialmentemulheres)–todosesses

traços ainda estão entrenós e, emalguns casos, parecemnão ter sido relegados ao segundoplano,

mas,comoosistemadecrédito,ocercamentodeterrascomunseaprivatização,tornaram-seainda

maisproeminentes.

Acontinuidadesetornaaindamaisenfáticaquandodeslocamosnossoolhardocaso“clássico”da

Grã-Bretanhaparaageografiahistóricadocapitalismonocenáriomundial.RosaLuxemburgocitaas

chamadasGuerrasdoÓpiocontraaChinacomoexemplodosprocessosqueelatinhaemmente.Um

dos maiores mercados estrangeiros para os produtos britânicos era a Índia, e os indianos podiam

pagar por esses produtos, em parte fornecendo matérias-primas para a Grã-Bretanha (comoMarx

indica n’O capital). Mas isso não era suficiente. Assim, o ópio indiano foi cada vez mais

comercializadonaChinaemtrocadaprata,quepodiaserusadaparapagarpelosprodutosbritânicos.

Quando os chineses tentaram controlar o comércio exterior em geral e o comércio de ópio em

particular,oExércitobritânicosubiuorioYangtzéedestruiuoExércitochinêsnumacurtabatalha

para forçar a abertura dos portos. Apenas por meios imperialistas como esses, sugeriu Rosa

Luxemburgo,équesepodiaasseguraraacumulaçãodelongoprazoearealizaçãodocapital.Segundo

sua obra, a continuidade da acumulação primitiva ocorreu sobretudo na periferia, fora das regiões

ondeomododeproduçãocapitalista se tornoudominante.Práticascoloniais e imperialistas foram

cruciaisemtudoisso.Contudo,àmedidaquenosaproximamosdopresente,opapeldasmudanças

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naperiferia(emparticularcomadescolonização)easpráticasdaacumulaçãoprimitivanãoapenas

mudam e proliferam em suas diferentes formas, mas também se tornam mais proeminentes nas

principaisregiõesdominadaspelocapital.

Considere,porexemplo,ocasodaChinacontemporânea.AChinapassouporumprocessopróprio

de desenvolvimento, com relaçõesmínimas com o exterior, durante o governo deMao. Em 1978,

porém,DengXiaopingcomeçouaabriropaísparaoexteriorearevolucionaraeconomiachinesa.As

reformas agrícolas não só produziram o equivalente a uma revolução agrícola na produção, como

também extraíram da terra uma enorme quantidade de trabalho e produção excedentes. Não há

dúvidadequealgoequivalenteaoqueMarxdescrevecomoacumulaçãoprimitivaocorreunaChina

nosúltimos trinta anos.Enograucomquea aberturadaChinaajudoua estabilizaro capitalismo

globalemtemposrecentes,éprovávelqueRosaLuxemburgoolhasseparaissoedissessequeessenovo

ciclode acumulaçãoprimitiva foi fundamentalpara a sobrevivênciadocapitalismo.Nesse caso,no

entanto, os acontecimentos não foram provocados por práticas imperialistas estrangeiras,mas pelo

EstadochinêsepeloPartidoComunista,queresolveuseguirumaviaquasecapitalistaparaaumentar

ariquezanacional.Issolevouàcriaçãodeumproletariadourbanoamploemalpago,oriundodeuma

população agrária, a um investimento inicialmente controlado de capital estrangeiro em certas

regiões e cidades para empregar esse proletariado e ao desenvolvimento de uma rede de relações

comerciais globaispara comercializar e realizaro valordasmercadorias,mesmoquandoomercado

interno já começava adar grandes saltosde crescimento.É interessantenotar tambémopapeldas

terras não cultivadas na China. Viu-se acontecer em Shenzhen, a partir de 1980, o mesmo que

aconteceuemManchester,quepassoudeumpequenovilarejoparaumsólidocentroindustrialem

poucasdécadas.OpadrãodedesenvolvimentoemShenzhennãoémuitodiferentedaquelequeMarx

descreve,excetoqueograudeviolênciaorigináriofoiabrandado(algunsdiriamquefoidissimulado)

eopoderdoEstadoedopartidofoifundamentalemtodoesseprocesso.Àluzdesseexemplo,edo

papel crucial que a China desempenhou na contínua expansão de um sistema capitalista cujo

empenho era “a acumulação pela acumulação, a produção pela produção”, é difícil evitar as

conclusões de que (a) algo semelhante à acumulação primitiva continua vivo na dinâmica do

capitalismo contemporâneo e (b) sua existência ininterrupta pode ser fundamental para a

sobrevivênciadocapitalismo.

Mas essa proposição é válida em toda a parte. A violência da extração dos recursos naturais

(sobretudonaÁfrica) e a expropriaçãodas populações camponesasnaAméricaLatina, noSul eno

Leste da Ásia continuam a ocorrer. Tudo continua igual e, em alguns casos, até se intensificou,

provocandosériosconflitos,porexemplo,emtornodaexpulsãodepopulaçõescamponesasnaÍndia

paraabrircaminhoparaacriaçãode“zonaseconômicasespeciais”emterrasnãocultivadas,ondea

indústria possa iniciar suas atividades em terreno privilegiado.O assassinato dos camponeses que

resistiram às expulsões emNandigram, em BengalaOcidental, que visavam abrir caminho para o

desenvolvimento industrial, éumexemplo tão “clássico”de acumulaçãoprimitivaquantoqualquer

outro da Grã-Bretanha do século XVII. Além disso, quando Marx aponta o débito nacional e o

sistema nascente de crédito como aspectos vitais na história da acumulação primitiva, ele está

falandodealgoquecresceudesordenadamenteparaagircomoumsistemanervosocentraleregular

osfluxosdecapital.AstáticaspredatóriasdeWallStreetedasinstituiçõesfinanceiras(operadorasde

cartãodecrédito) são indicadorasdeumaacumulaçãoprimitivarealizadaporoutrosmeios.Assim,

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nenhumadaspráticaspredatóriasidentificadasporMarxdesapareceu,ealgumasatéprogredirama

grausinimagináveisentão.

Nosdiasatuais,noentanto,astécnicasdeenriquecimentodasclassesdominanteseadiminuição

do padrão de vida do trabalhador por algo semelhante à acumulação primitiva proliferaram e se

multiplicaram.Porexemplo,aUnitedAirlinesvaiàfalênciaeconseguequeoTribunaldeFalências

reconheçaqueaempresaprecisaselivrardesuasobrigaçõescomaposentadoriasparaserumnegócio

viável.Todosos funcionáriosdaUnitedAirlines sãosubitamenteprivadosdesuasaposentadoriase

passam a depender de um fundo de previdência do Estado que paga taxas muito menores. Os

funcionáriosaposentadosdacompanhiaaérea sãoenviadosdevoltaaoproletariado.Háentrevistas

comex-funcionáriosdaUnitedAirlinesemqueelesdizem:“Estoucom67anoseacheiqueestaria

vivendo tranquilamente comminha aposentadoriade80mildólarespor ano,mas estouganhando

apenas35mil.Vouterdevoltarparaomercadoeencontrarumempregoparasobreviver”.Eagrande

questão,aquerealmenteinteressa,é:paraondefoioequivalentedetodoessedinheiro?Talveznão

seja coincidência que, no momento em que muitos trabalhadores eram privados de suas pensões,

planos de saúde e outros direitos de bem-estar em todo o território dos Estados Unidos, a

remuneraçãodeexecutivosdeWallStreetediretoresexecutivosatingianíveisestratosféricos.

Considere,aindacomoexemplo,aondadeprivatizaçõesquevarreuomundocapitalistaapartir

dosanos1970.Aprivatizaçãodaágua,daeducaçãoeda saúdeemmuitospaísesqueos forneciam

comobenspúblicosalteroudramaticamenteo funcionamentodocapitalismo(criandotodotipode

mercado,porexemplo).Aprivatizaçãodeempresasestatais(quasesempreporpreçosquepermitiam

aos capitalistas conseguir lucros imensos emmuito pouco tempo) também acabou com o controle

públicosobreocrescimentoeasdecisõesde investimento.Essaé,defato,umaformaparticularde

cercamentodosbenscomuns,orquestradaemmuitoscasospeloEstado(comonociclooriginárioda

acumulaçãoprimitiva).Oresultadofoiumconfiscodosrecursosedosdireitosdaspessoascomuns.E,

aomesmotempoquehouveconfisco,houveessaimensaconcentraçãoderiquezanooutroextremo

daescala.

EmmeuslivrosOnovoimperialismo

[c]

eOneoliberalismo:históriaeimplicação,afirmeique,hoje,o

poder de classe consolida-se cada vezmais pormeio de processos desse tipo.Como parece ser um

poucoestranhochamá-losdeprimitivosouoriginais,prefirochamaressesprocessosdeacumulação

dedesapossamento.Argumenteique,emboraboapartedesseprocessotenhaocorridonosanos1950e

1960,emparticularpormeiodastáticasdocolonialismoedoimperialismoenabuscapredatóriade

recursosnaturais,nãohaviaumagrandeacumulaçãopordesapossamentonasprincipais regiõesdo

capitalismo,sobretudonaquelasondeexistiamsólidosaparatossocial-democratas.Apartirdemeados

dadécadade1970,oneoliberalismomudouisso.Aacumulaçãopordesapossamentose interiorizou

cadavezmaisnasprincipaisregiõesdocapitalismo,aindaquetenhaseampliadoeaprofundadoem

todo o sistema global. Não deveríamos ver a acumulação primitiva (como poderíamos considerar

razoavelmenteque éo casonaChina)ou a acumulaçãopordesapossamento (comoocorreu coma

ondadeprivatizaçõesnasprincipaisregiõesdocapitalismo)comoalgoquedizrespeitoapenasàpré-

históriadocapitalismo.Elacontinuae,nosúltimostempos,foirevividacomoumelementocadavez

mais importante nomodo comoo capitalismo opera para consolidar o poder de classe. E ela pode

abarcartudo–desdeoconfiscododireitodeacessoàterraeàsubsistênciaatéaprivaçãodedireitos

(aposentadoria,educaçãoesaúde,porexemplo)duramenteconquistadosnopassadopormovimentos

daclassetrabalhadoraemlutasdeclasseferozes.ChicoMendes,olíderdosseringueirosnaAmazônia,

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foiassassinadopordefenderummododevidacontraoscriadoresdegado,osprodutoresdesojaeos

madeireiros que pretendiam capitalizar a terra. Os camponeses de Nandigram foram mortos por

resistir à expulsão da terra contra o desenvolvimento capitalista.OMovimento dosTrabalhadores

RuraisSemTerra(MST)noBrasileoszapatistaslutaramemdefesadeseudireitoàautonomiaeà

autodeterminaçãoemambientesricosemrecursos,quesãocobiçadosoudominadospelocapital.E

então imagine como os novos fundos de private equity tomam as empresas públicas nos Estados

Unidos, apropriam-se de seus ativos e demitem omáximo possível de funcionários, antes de levar

essasempresasreestruturadasparaomercadoevendê-lasporumlucroaltíssimo(operaçãoquerende

aodiretorexecutivodofundodeprivateequityumbônusastronômico).

Háinúmerosexemplosdelutacontratodasessasformasdeacumulaçãoedesapossamento.Luta

contra a biopirataria e a tentativa de patentearmaterial e códigos genéticos; luta contra o uso da

desapropriação compulsória para abrir espaço para empreendedores capitalistas; luta contra a

gentrificação [gentrification]eaproduçãode sem-tetoemNovaYorkeLondres;omodopredatório

comoosistemadecréditoexpulsaosagricultoresfamiliaresdesuasterrasafimdeabrircaminhopara

oagronegócionosEstadosUnidos...Alistanãotemfim.Aacumulaçãopordesapossamentocontinua

a ocorrer por intermédio de uma variedade de práticas que, ao menos superficialmente, não tem

nenhumarelaçãodiretacomaexploraçãodotrabalhovivoparaaproduçãodemais-valor, talcomo

aquelaqueMarxdescreven’Ocapital.

Há, no entanto, aspectos comuns, assim como complementares, entre os dois processos, como

sugereRosaLuxemburgo–corretamente,ameuver–aoapontara“relaçãoorgânica”entreeles.A

extraçãodemais-valoré,afinaldecontas,umaformaespecíficadeacumulaçãopordesapossamento,

porqueésimplesmenteaalienação,aapropriaçãoeodesapossamentodacapacidadedotrabalhador

deproduzirvalornoprocessodetrabalho.Alémdomais,paraqueessaformadeacumulaçãocontinue

acrescer,éprecisoencontrarmaneirasdemobilizarpopulaçõeslatentescomotrabalhadoreseliberar

maisterrasemaisrecursoscomomeiosdeproduçãoparaodesenvolvimentocapitalista.Assimcomo

no casoda Índia edaChina, por exemplo, a criaçãode “zonas econômicas especiais”pormeioda

expulsão de camponeses de suas próprias terras é pré-requisito para a continuidade do

desenvolvimentocapitalista,domesmomodocomoalimpezadasassimchamadasfavelasénecessária

paraqueocapitalemdesenvolvimentoexpandasuasoperaçõesurbanas.Essatomadadeterraspelo

Estado mediante desapropriação ou outro meio legal tornou-se um fenômeno disseminado nos

tempos recentes. Em Seul, nos anos 1990, investidores e construtores estavam desesperados por

terrenosurbanoseforçaramodesapossamentodepopulaçõesquehaviamimigradoparaacidadenos

anos 1950 e construído suas casas em terrenos dos quais não possuíamo título de propriedade.As

construtoras contrataram gangues de valentões para ir a essas regiões da cidade e destruir a

marretadas as casas dessas pessoas, assim como todos os seus bens.Na década de 1990, podíamos

andarporbairrosdeSeultotalmentedevastados,pontilhadosdeilhasdeintensaresistênciapopular.

Emboratendaaconsiderarqueareproduçãoampliadaéomecanismopormeiodoqualomais-

valoréacumuladoeproduzido,Marxnãodeixadenotarascondiçõesnecessáriasdodesapossamento,

quetambémredistribuirecursosdiretamenteparaaclassecapitalista.AssimcomoRosaLuxemburgo,

pensoqueaacumulaçãopormeiododesapossamentonãopodeserignorada,oconfiscododireitoà

aposentadoria,àsterrascomunseàseguridadesocial(umativoquepertenceatodaapopulaçãodos

EstadosUnidos),acrescentemercantilizaçãodaeducação,paranãofalardasexpulsõesdasterraseda

destruição domeio ambiente, são fatores importantes para omodo como entendemos a dinâmica

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agregadadocapitalismo.Alémdisso,aconversãoemmercadoriadeumativodepropriedadecomum

como a educação, a conversão das universidades em instituições empresariais neoliberais (com

enormes consequências para o que se ensina nelas e o modo como se ensina), tem importantes

consequências ideológicas e políticas e é ao mesmo tempo o sinal e o símbolo de uma dinâmica

capitalistaquenãopoupanadaemsualutaparaexpandiraesferadaproduçãoeextraçãodolucro.

Na história da acumulação primitiva descrita por Marx, houve todo tipo de luta contra as

expulsõeseasexpropriações forçadas.MovimentosgeneralizadosnaGrã-Bretanha–os levellers e os

diggers, por exemplo – resistiram violentamente. Não seria exagero dizer que, nos séculos XVII e

XVIII,asprincipaisformasdelutadeclassenãoforamcontraaexploraçãodotrabalho,mascontrao

desapossamento.Emmuitaspartesdomundo,poderíamosdizeromesmohoje.Issonoslevaapensar

qualformadelutadeclasseconstituiouconstituiráocernedeummovimentorevolucionáriocontra

ocapitalismonumdado lugarenumdadomomento.Comodesdeadécadade1970ocapitalismo

globalnãotemconseguidogerarcrescimento,aconsolidaçãodopoderdeclassetevedeapelarcom

muitomaisforçaparaaacumulaçãopordesapossamento.Foiprovavelmenteissoqueencheuoscofres

dasclassesaltasapontodefazê-lostransbordar.Orenascimentodosmecanismosdeacumulaçãopor

desapossamento foi particularmente visível no papel cada vez maior do sistema de crédito e das

apropriaçõesfinanceiras,emcujaúltimaondamilhõesdenorte-americanosperderamsuascasaspor

execuçãohipotecária.Grandepartedessaperdaderecursosaconteceunosbairrosmaispobreseteve

implicaçõesparticularmentesériasparaasmulhereseaspopulaçõesafro-americanasemcidadesmais

antigas, comoCleveland e Baltimore. Enquanto isso, os banqueiros deWall Street – que nos anos

prósperos ficaram imensamente ricos com o negócio – ganham bônus enormes mesmo quando

perdem o emprego por causa das dificuldades financeiras. O impacto redistributivo da perda dos

investimentosemimóveisdemilhõesdepessoaseosenormesganhosemWallStreetaparecemcomo

um caso contemporâneo de forte predação e roubo legalizado típico da acumulação por

desapossamento.

Entendoquelutaspolíticascontraaacumulaçãopordesapossamentosãotãoimportantesquanto

os movimentos proletários mais tradicionais. Mas esses movimentos tradicionais e os partidos

políticosassociadosaelestendemaprestarpoucaatençãoàslutasemtornododesapossamentoea

vê-lasmuitasvezescomosecundáriasedeconteúdonãopropriamenteproletário,porqueseufocoéo

consumo,omeioambiente,ovalordosativosecoisasdogênero.OsparticipantesdoFórumSocial

Mundial,poroutrolado,estãomuitomaispreocupadosemresistiràacumulaçãopordesapossamento

e não é raro que assumam posições antagônicas às políticas classistas dos movimentos operários,

afirmandoqueessesmovimentosnãolevamasérioaspreocupaçõesdosparticipantesdoFórumSocial

Mundial.NoBrasil,porexemplo,oMST,queéumaorganizaçãoquesepreocupasobretudocoma

acumulação por desapossamento, mantém uma relação relativamente tensa com o Partido dos

Trabalhadores(PT),quetemumabaseurbanaeumaideologiamaistrabalhistaeélideradoporLula.

Portanto, alianças mais sólidas entre eles são uma questão digna de consideração, tanto prática

quantoteoricamente.SeRosaLuxemburgoestivercerta,comoacreditoqueestá,quandodizquehá

umarelaçãoorgânicaentre essasduas formasdeacumulação, entãodevemosnosprepararparaver

uma relação orgânica entre as duas formas de resistência. Uma força de oposição formada por

“desapossados”, seja desapossados no processo de trabalho, seja desapossados dos meios de

subsistência,recursosoudireitos,requerumarevisãodaspolíticascoletivasemlinhasabsolutamente

diferentes. Penso queMarx estava errado em confinar essas formas de luta numa pré-história do

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capitalismo.Gramscicertamenteentendeua importânciadeconstruiraliançasdeclasseentreesses

doisterrenosdistintos,comoofezMao.Aideiadequeaspolíticasdaacumulaçãoprimitiva–e,por

extensão, da acumulação por desapossamento – pertencem exclusivamente à pré-história do

capitalismoéerrada.Masisso,éclaro,vocêterádedecidirporcontaprópria.

[1]MichaelPerelman,TheInventionofCapitalism:ClassicalPoliticalEconomyandtheSecretHistoryofPrimitiveAccumulation(Durham,Duke

UniversityPress,2000).

[a] “Merrie England ”: visão utópica e nostálgica da sociedade e da cultura inglesas, baseada em ummodo de vida idílico e pastoral, e

bastantedifundidanoiníciodaRevoluçãoIndustrial.(N.T.)

[b] As corporate towns são cidades que, por privilégio real, tinham autonomia em relação ao condado e podiam eleger suas próprias

autoridades,constituindo-seelasmesmasnumcondado(countyofitself,countyofatown,countycorporate).(N.T.)

[2]G.W.F.Hegel,Hegel’sPhilosophyofRight(Oxford,Clarendon,1957),p.149-52.

[3]Ibidem,p.277.

[4]RosaLuxemburgo,TheAccumulationofCapital (Londres,Routledge, 2003), p. 432. [Ed. bras.:Aacumulação do capital, 2. ed., São

Paulo,NovaCultural,1985.]

[c]6.ed.,SãoPaulo,Loyola,2012.(N.T.)

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Reflexõeseprognósticos

QuandovocêchegaraofimdoLivroId’Ocapital,umaboaideiaéretornaraoinícioeleroprimeiro

capítulodenovo.Équasecertoquevocêolerácomoutrosolhoseacharámuitomaisfácilentendero

texto.Quandofizissopelaprimeiravez,acheiotextomuitomaisinteressanteeatédivertidodeler.

Sematensãocausadapeladúvidadeconseguirounãochegaraofimdovolume,relaxeiecomeceia

gostar realmentedaquiloqueBertellOllmanchamade “dançadadialética” ede todas asnuances

(inclusiveasnotasderodapé,osadendoseasreferências literárias)queeuhaviadeixadopassarna

primeira leitura. Voltar a correr os olhos esquematicamente pelo texto também pode ser útil. Isso

ajuda a consolidar a compreensão de alguns temas. Em minhas aulas, eu costumava pegar um

conceitobásicoepediraosestudantesquecomentassemcomoeleeratrabalhadonafábricadolivro.

“Quantas vezes você encontrouo conceitode fetichismo?”, euperguntava.Mercadorias edinheiro

são conceitos óbvios.Mas por que os capitalistas fetichizam amaquinaria e por que todos aqueles

poderes inerentes ao trabalho (cooperação, divisão do trabalho, capacidades e poderes mentais)

aparecem tão frequentemente como poderes do capital? (E a palavra “aparece” significa

necessariamenteummomento fetichista?)Háumasériede temasquepodemserexplorados,como

alienação(nessecaso,tentecomeçardofim,comaacumulaçãoprimitiva,etrabalheotextodetrás

parafrente!),relaçõesentreprocessoecoisa,interseções(confusões?)entrelógicaehistóriaetc.

Aqui, no entanto, quero considerar alguns dos argumentos que Marx apresenta nos outros

volumeseemoutrosescritos, estendendoas implicações lógicasdoquadroapresentadonoLivro I.

Pensoqueéapropriadofazer isso,porque,comoindiquei inicialmente,Marxpretendiaquegrande

parte da argumentação do Livro I estabelecesse uma base teórica e conceitual capaz de levá-lo

adiante, para um terreno mais amplo. A invocação ocasional das contradições onipresentes do

capitalismoedaspossibilidadesdecrisequeelasprenunciamindicaparaondeiaMarx.Apartirdaí,

podemos ter uma noção do que é uma política da classe capitalista e de quais serão os principais

terrenosdalutapolítica.

OLivroId’Ocapitalanalisaumprocessodecirculaçãodocapitalcomaseguinteestrutura:

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FT

D-M.....PT............M-D+ΔD

MP

Opontodepartidaéodinheiro.Comele,o capitalistavai aomercadoe compradois tiposde

mercadorias:forçadetrabalho(capitalvariável)emeiosdeprodução(capitalconstante).Aomesmo

tempo,eleselecionaumaformadeorganizaçãoeumatecnologiaecombinaaforçadetrabalhoeos

meiosdeproduçãonumprocessode trabalhoqueproduzumamercadoria,queentãoévendidano

mercadopelodinheirooriginalacrescidodeumlucro(mais-valor).Impelidospelasleiscoercitivasda

concorrência,oscapitalistasparecem(eusoessapalavranosentidodeMarx)forçadosausarpartedo

mais-valor para criar ainda mais mais-valor. A acumulação pela acumulação e a produção pela

produçãotornam-seamissãohistóricadaburguesia:aproduçãodetaxasilimitadasdecrescimento,a

menos que o capital encontre limites ou barreiras insuperáveis.Quando isso acontece, o capital se

deparacomumacrisedeacumulação(definidasimplesmentecomofaltadecrescimento).Ageografia

históricadocapitalismoécheiadecrisesdessetipo,oralocais,orasistêmicas(comoem1848,1929e

2008).O fatodeo capitalismo ter sobrevivido atéhoje sugereque,de alguma forma, a fluidez e a

flexibilidadedaacumulaçãodocapital–traçosqueMarxnãosecansadeenfatizar–permitiramque

oslimitesfossemsuperadoseasbarreirascontornadas.

Uma análise detalhada do fluxo do capital nos permite identificar alguns pontos potenciais de

bloqueioquepodemserfontedesériascriseserupturas.Vejamosessespontosumaum.

1)DEONDEVEMODINHEIROINICIAL?

EssaéaquestãofundamentalqueaanálisedeMarxdaacumulaçãoprimitivaprocuraresponder.A

acumulação primitiva é mencionada em diversos pontos da obra, como no capítulo 24, que trata

diretamentedasorigens.Masquantomaisquantidadesdemais-valorcriadoontemsãoconvertidas

emcapitalnovo,maisodinheiro investidohoje vemdo excedentede amanhã. Issonão exclui,no

entanto, a possibilidade de incrementos adicionais de dinheiro extraídos da continuação da

acumulaçãoprimitiva,ouoqueeuprefeririachamar,emseucontextomoderno,de“acumulaçãopor

desapossamento”.Se apenas a acumulaçãodeontem fosse capitalizadana expansãodehoje, como

tempo certamente teríamos uma concentração cada vez maior de capital monetário em mãos

individuais.Contudo,comoafirmaMarx,hámétodosdecentralização,concretizadossobretudocom

a ajuda do sistema de crédito, que permitem que grandes quantidades de podermonetário sejam

reunidascommuitarapidez.Nocasodeempresasdecapitalabertoeoutrasformasdeorganizações

empresariais, enormes quantidades de podermonetário são reunidas sob o controle de uns poucos

diretoresegerentes.Hámuitotempoaquisiçõesefusõessãoumgrandenegócio,eatividadesdesse

tipo podem provocar novos ciclos de acumulação e desapossamento (vendas de ativos de firmas e

demissãodetrabalhadores,comofazomovimentodefundosdeprivateequity).Alémdisso,hávários

truques que permitem ao grande capital excluir o pequeno (a regulação estatal é usada com

frequênciacomoumauxílio,comopredisseMarx).Odesapossamentodepequenosoperadores(lojas

de bairro ou fazendas de família) para dar lugar a grandes empresas (redes de supermercados e

agronegócio),frequentementecomaajudademecanismosdecrédito,éumapráticaantiga.Assim,a

questão da organização, da configuração e da massa de capital monetário disponível para

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investimento jamais nos abandonou. Ela ganha importância diante das “barreiras de entrada” – a

escaladecertasatividades,comoaconstruçãodeumasiderúrgicaoudeumaferroviaouafundação

deumacompanhiaaérea,requerumimensogastoinicialdecapitalmonetárioantesqueaprodução

comecede fato.Apenasemtemposrelativamenterecentes,porexemplo, foipossívelqueconsórcios

privados de capitais associados, e não mais o Estado, empreendessem grandes projetos de

infraestrutura, como o túnel doCanal daMancha, que liga aGrã-Bretanha à Europa continental.

ComoobservaMarxno capítulo sobre amaquinaria, tais projetosde infraestrutura tornam-semais

necessáriosàmedidaqueomododeproduçãocapitalistasedesenvolve.Processosdecentralizaçãoe

descentralização do capital definem um terreno de luta entre diferentes facções do capital, assim

como entre o capital e o Estado (em torno de questões de poder monopolista, por exemplo). A

centralizaçãomaciçadedinheirotemtodotipodeconsequênciaparaadinâmicadalutadeclasses,

bem como para a trajetória do desenvolvimento capitalista. Entre outras coisas, ela dá a muitos

elementosdaclassecapitalistaprivilegiada(elamesmaconsolidadacomacentralização)acapacidade

de esperar, porque o podermonetário dá a eles um controle sobre o tempo que frequentemente é

negado aos pequenos produtores e aos trabalhadores assalariados. Mas o elemento contraditório

reside no fato de que o poder monopolista crescente diminui o poder das leis coercitivas da

concorrência de regular a atividade econômica (em particular a inovação), e isso pode levar à

estagnação.

2)DEONDEVEMAFORÇADETRABALHO?

MarxdámuitaatençãoaessepontonoLivroI.Aacumulaçãoprimitivalançaaforçadetrabalhono

mercado como uma mercadoria, mas, em seguida, o trabalho extra requerido para expandir a

produção com uma dada tecnologia vem ou da absorção da reserva flutuante gerada por ciclos

anterioresdemudançatecnológicaquedispensatrabalhooudamobilizaçãodeelementoslatentese

inextremis[emcondiçõesextremas]nointeriordareservaestagnada.Marxmencionadiversasvezesa

capacidade de mobilizar trabalhadores agrícolas ou camponeses, além de mulheres e crianças

anteriormente excluídas, e incorporá-los à força de trabalho como elementos cruciais para a

perpetuaçãodaacumulaçãodocapital.Paraqueissoocorra,éprecisohaverumprocessocontínuode

proletarização, o que significa contínua acumulação primitiva por ummeio ou outro ao longo da

geografia histórica do capitalismo.Mas as reservas de trabalho tambémpodem ser produzidas pelo

desemprego induzido pela tecnologia. A acumulação perpétua requer, como mostra Marx, um

excedenteconstantede forçadetrabalho.Esseexército industrialdereservaéposicionadomaisou

menoscomoumaondadeproadiantedoprocessodeacumulação.Éprecisotersempreàdisposição

força de trabalho acessível e em quantidade suficiente. E ela tem de ser não apenas acessível,mas

tambémdisciplinadaedotadadecertasqualidades(istoé,qualificadaeflexível,quandonecessário).

Se, por alguma razão, essas condições não são satisfeitas, o capital se defronta com uma séria

barreiraàacumulaçãocontínua.Ouopreçodotrabalhosobe,porqueissonãointerferenadinâmica

daacumulação,outantooapetitequantoacapacidadedeacumulaçãocontínuaenfraquecem.Sérias

barreiras à oferta de trabalho, derivadas da absoluta escassez de trabalho ou do surgimento de

poderosasorganizaçõestrabalhistas(sindicatosepartidospolíticosdeesquerda),podemgerarcrises

deacumulaçãodocapital.Umarespostaóbviaaessasbarreiraséocapitalentraremgreve,recusando-

se a reinvestir. Isso produz uma crise deliberada de acumulação, que visa produzir desemprego

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suficienteparadisciplinaraforçadetrabalho.Essasolução,noentanto,édispendiosaparaocapital,

assimcomoparaotrabalho.Oscapitalistasprefeririam,obviamente,umcaminhoalternativo,quenos

conduz à política doproblema. Se o trabalho formuitobemorganizado emuitopoderoso, a classe

capitalistatentarácomandaroaparatoestatalporumgolpedeEstado,comooquematouAllendeea

alternativasocialistanoChileem1973,oupormeiospolíticos,comonosEstadosUnidosenaGrã-

Bretanha,para fazeroquePinochet,Reagan eThatcher fizeram, isto é, esmagar aorganizaçãodo

trabalho e acabar com os partidos políticos de esquerda. Essa é uma forma de transpor a barreira.

Outraétornarocapitalmaismóvel,demodoquepossasedeslocarparaondeexistaumproletariado

disponívelouumapopulaçãoquepossa ser facilmenteproletarizada,comonoMéxicoounaChina

nosúltimostrintaanos.Políticasde imigraçãooumesmoestratégiasde imigraçãoorganizadaspelo

Estado (como fizeram muitos países europeus no fim dos anos 1960) constituem uma terceira

alternativa.Umadasconsequênciasdessetipodesuperaçãodasbarreirasàofertadetrabalhoéforçar

otrabalhoorganizado(e,maisemgeral,segmentosdaesferapública)aseoporàexportaçãodepostos

detrabalhoeàspolíticasdeimigração,culminandoemmovimentosanti-imigrantesentreasclasses

trabalhadoras.

Os aspectos contraditórios das políticas de oferta de trabalho surgem em torno de questões

relativas não apenas ao valor da força de trabalho (fixado pelas condições da oferta de bens de

subsistência para satisfazer a reprodução da força de trabalho emdado padrão de vida, elemesmo

sujeitoadefiniçãodeacordocomasituaçãodalutadeclasses),mastambémàsaúde,àshabilidadese

aotreinamentodaforçadetrabalho.Osinteressesdeclassedoscapitalistas(opostosaosinteressesdos

capitalistasindividuais,quecostumampraticarapolíticado“aprèsmoiledéluge!”)podemsemobilizar

tantoparasubsidiarumaofertadebensdesubsistênciamaisbaratos,eassimmanterbaixoovalorda

forçadetrabalho,quantoparainvestirnamelhoriadaqualidadedaofertadetrabalho;nesseúltimo

caso,osinteressesmilitaresdoEstadopodemdesempenharumimportantepapeldeapoio.Assim,as

políticasdeofertadetrabalhoapresentamtodotipoderamificação,eforamumfococentraldelutas

duranteodesenvolvimentohistóricoegeográficodocapitalismo.

Algunsmarxistasextraíramdissoumateoriaprópriadaformaçãodecrises.Achamadateoriada

compressãodolucro[profit-squeeze]concentra-senoproblemasemprepresentedasrelaçõesdetrabalho

edalutadeclasses,tantonoprocessoquantonomercadodetrabalho.Quandoessasrelaçõescriam

umobstáculoàcontinuidadedaacumulaçãodocapital,temosumacrise,amenosqueencontremos

ummodo(ou,maisprovavelmente,umamisturademodos)defazerocapitalcontornaroobstáculo.

Algunsanalistas,comoAndrewGlyn(vejasuaimpressionanteanálise,escritacomBobSutcliffe,

emBritishCapitalism,Workersand theProfitsSqueeze

[1]

), interpretamoqueocorreuno fimdos anos

1960 e início dos anos 1970 (em especial na Europa e na América doNorte) como um excelente

exemploprático da teoria da compressãodo lucro.É verdade que o gerenciamentode recursos do

trabalhoeapolíticadeorganizaçãoeofertadetrabalhodominaramapolíticanesseperíodo.Também

é verdade que a sobrevivência do capitalismodependeuda transposição oudo contorno constante

dessepotencialobstáculoàacumulação.Nomomentoemqueescrevo(2008),porém,hápoucossinais

de uma situação de compressão do lucro, já que existem reservas de trabalho por toda a parte e o

ataque político contra os movimentos da classe trabalhadora reduziu a níveis muito modestos a

resistência operária em quase todo o mundo. É difícil interpretar a crise de 2008 em termos de

compressãodolucro,salvoporcontorcionismosteóricos(eháalgumasversõesdessateoria,comoade

Itoh,quefazemisso).

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3)ACESSOAOSMEIOSDEPRODUÇÃO

Quandooscapitalistasvãoaomercado,precisamencontraralimeiosextrasdeprodução(elementos

extrasdecapitalconstante)parasatisfazersuanecessidadedereinvestimentodepartedoexcedente

na expansão da produção. Há dois tipos de meios de produção: os produtos intermediários (já

conformadospelotrabalhohumano),quesãoconsumidosnoprocessodeprodução(pormeiodaquilo

queMarxchamade“consumoprodutivo”,comoaenergiaeo tecidoconsumidosnaconfecçãode

umcasaco),eamaquinariaeoequipamentodecapitalfixo,inclusiveprédioseinfraestruturafísica,

comosistemasdetransporte,canais,portosetudoaquiloqueénecessárioparaobomandamentoda

produção. A categoria de meios de produção (capital constante) é evidentemente muito ampla e

complicada. Do mesmo modo, a falta desses investimentos e condições materiais é um obstáculo

potencialmente sério à acumulação sustentada do capital. A indústria automobilística não pode se

expandir sem uma quantidademaior de aço. É por essa razão queMarx observa que as inovações

tecnológicas, introduzidas numa parte daquilo que hoje chamamos de “cadeia de mercadorias”,

tornamnecessáriaainovaçãoemoutrolugarparafacilitaraexpansãogeraldaprodução.Inovaçõesna

indústria algodoeira exigiam inovações na produção do algodão (descaroçadores), nos transportes,

nascomunicações,nastécnicasquímicaseindustriaisdetingimentoetc.

Podemosdeduzirdissoapossibilidadedaschamadas“crisesdedesproporcionalidade”nointerior

da complicada estrutura de entrada e saída que compõe a totalidade do modo de produção

capitalista.NofimdoLivroII,Marxfazumestudodetalhadodecomopodemseformartaiscrises

numaeconomiadivididaemdoisgrandesdepartamentos:odasindústriasqueproduzemosmeiosde

produçãoeodasindústriasqueproduzemasmercadoriasnecessáriasàsubsistênciadostrabalhadores

(mais tarde, ele complicou o modelo, incluindo os bens de luxo). O que ele mostrou (e estudos

matemáticosmaissofisticadosdeeconomistascomoMorishimaconfirmariamesseponto)foiqueo

equilíbrionunca era automático,porque a tendênciado capital é fluirparaonde a taxade lucro é

maior, e desproporcionalidades em excesso podiam abalar seriamente a reprodução do capitalismo.

Emnossostempos,vemostambémoóbvioimpactoqueaescassezeoaumentodopreçodaenergia

provocamnadinâmicacapitalista.Barreirasdesse tipo sãouma fonteconstantedepreocupaçãono

sistema capitalista, e a necessidade igualmente constante de superar ou contornar esses obstáculos

costuma ser a prioridade da atividade política (subsídios e planejamento estatal – sobretudo de

infraestruturafísica–,atividadedepesquisaedesenvolvimento,integraçãoverticalmediantefusões

etc.).

4)ESGOTAMENTODOSRECURSOSNATURAIS

Por trás disso, porém, esconde-se uma problemática mais profunda, que Marx também menciona

diversasvezesnoLivroI.Eladizrespeitoànossarelaçãometabólicacomanatureza.Ocapitalismo,

como qualquer outromodo de produção, conta com a beneficência de uma natureza generosa, e,

comoMarxobserva,adestruiçãoeadegradaçãodaterrafaztãopoucosentidonolongoprazoquanto

adestruiçãodasforçascoletivasdetrabalho,poisambasestãonabasedaproduçãodetodariqueza.

Masos capitalistas individuais, trabalhandopor seuspróprios interessesdecurtoprazoe impelidos

pelasleiscoercitivasdaconcorrência,sãoconstantementetentadosaassumiraposiçãodo“aprèsmoi

ledéluge!”comrelaçãotantoaotrabalhadorquantoaosolo.Mesmoquandoissonãoacontece,ocurso

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daacumulaçãoperpétuaexerceumaenormepressãosobreaexpansãodaofertadosassimchamados

recursos naturais, ao mesmo tempo que o aumento inevitável da quantidade de dejetos testa a

capacidadedos sistemas ecológicos de absorvê-los sem envenenar o ambiente.Éprovável que, aqui

também, o capitalismo encontre obstáculos que se tornarão cada vezmais difíceis de contornar.O

capitalismo, observa Marx, “adquire uma elasticidade, uma súbita capacidade de se expandir por

saltos que só encontra limites namatéria-prima e nomercado onde escoa seus próprios produtos”

(522).

Há,noentanto,váriosmodosdeenfrentar, àsvezes superar emuito frequentementecontornar

esses obstáculos da natureza. Os recursos naturais integram um contexto tecnológico, social e

cultural, de modo que toda escassez na natureza pode ser mitigada por mudanças tecnológicas,

sociaiseculturais.Arelaçãodialéticacomanaturezaqueéestabelecidananotadoiníciodocapítulo

13 (“Maquinaria e grande indústria”) indica uma série de transformações possíveis, inclusive a

produção da própria natureza. A geografia histórica do capitalismo foi marcada por uma incrível

fluidezeflexibilidadecomrelaçãoa isso,demodoqueseriafalsodizerquehálimitesabsolutosem

nossa relaçãometabólica com a natureza que não podem ser superados ou contornados de alguma

forma.Masissonãosignificaqueessesobstáculosnãosejamsériosàsvezesequepossamossuperá-los

sem provocar crises ambientais. Grande parte da política capitalista, sobretudo em nossos dias,

procuraassegurarqueaquiloqueMarxchamadedádivasdanaturezaestejafacilmentedisponívelao

capitalegarantidoparausofuturo.Astensõesemtornodessasquestõesqueexplodemnointeriorda

políticacapitalistapodemserbastanteagudas.Deumlado,amanutençãodeumfluxocadavezmaior

depetróleobaratofoiessencialparaaposiçãogeopolíticadosEstadosUnidosnosúltimoscinquenta

ousessentaanos.Assegurarqueasreservasmundiaisdepetróleoestejamacessíveisàexploraçãolevou

osEstadosUnidosaentrarnoconflitonoOrienteMédioeemoutroslugares,eapolíticaenergética,

apenas para citar outro exemplode estreita relação com anatureza, surgemuitas vezes comouma

questão predominante no interior do aparato estatal. De outro lado, a política do petróleo barato

criouproblemasdeempobrecimentoexcessivo,alémdoaquecimentoglobaledeumasériedeoutros

problemas relacionados à qualidade do ar (nível de ozônio, fumaça, partículas sólidas na atmosfera

etc.)querepresentamriscoscadavezmaioresparaaspopulaçõeshumanas.Adegradaçãodousodo

solo em razão do enorme consumo de energia das grandes aglomerações humanas tornou-se um

problemanaoutrapontadaextraçãoconstantederecursosnaturaisparasustentartodososaspectos

docrescimentodaindústriaautomobilística.

Algunsmarxistas (liderados por JimO’Connor, fundador do jornalCapitalismNature Socialism)

referem-seaessasbarreiras impostaspelanaturezacomo“asegundacontradiçãodocapitalismo”(a

primeira é, obviamente, a relação capital-trabalho). Mesmo em nossa época, é verdade que essa

segunda contradição atrai tanta atenção política quanto a questão do trabalho, se nãomais, e há

certamente uma grande preocupação e uma ansiedade política geradas pela ideia de uma crise na

relaçãocomanatureza,encaradanãosócomoumafontesustentáveldeterraematérias-primaspara

oavançododesenvolvimentocapitalista(urbano),mastambémcomoumdepósitodelixo.

NaobradeO’Connor,essasegundacontradiçãodocapitalismotomouolugardaprimeira,após

asderrotasdosmovimentostrabalhistasesocialistasdosanos1970,comopontadelançadaagitação

anticapitalista.Deixoavocêatarefadeavaliaratéquepontoessetipodepolíticadeveserperseguido.

O que é certo, porém, é que a barreira na relação com a natureza não deve sermenosprezada ou

desprezada,dadooarcabouço teóricoconstruídoporMarxnoLivroId’Ocapital.Ehojeestáclaro

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queosobstáculosnanaturezasãocadavezmaioresequepodeacontecerumacriseemnossarelação

com a natureza que exigirá grandes adaptações (como o desenvolvimento de novas tecnologias

ambientaiseaexpansãode indústriasparaaproduçãodessesbens)paraqueessesobstáculos sejam

contornados com sucesso, ao menos por algum tempo, no contexto da acumulação ilimitada do

capital.

5)AQUESTÃODATECNOLOGIA

Asrelaçõesentrecapitale trabalho,assimcomoaquelasentrecapitalenatureza, sãomediadaspela

escolhadeformasdeorganizaçãoetecnologia(hardwareesoftware).Ameuver,Marxestáemplena

forma no Livro I, quando teoriza de onde vêm os impulsos para a mudança organizacional e

tecnológicaeporqueinevitavelmenteoscapitalistasfetichizamamaquinaria,quenãopodeproduzir

valor, embora sejauma fontevitaldemais-valorpara eles, tanto individual comocoletivamente.O

resultadoéoconstantedinamismoorganizacional e tecnológico.“A indústriamoderna”,dizMarx,

“jamaisconsideranemtratacomodefinitivaaformaexistentedeumprocessodeprodução.Suabase

técnica é, por isso, revolucionária, ao passo que a de todos os modos de produção anteriores era

essencialmenteconservadora”(577).EsseéumtemarecorrentenasobrasdeMarx.Comoeleobserva

noManifestoComunista:

A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de

produçãoe,comisso,todasasrelaçõessociais.Aconservaçãoinalteradadoantigomododeproduçãoera,pelocontrário,aprimeira

condiçãodeexistênciadetodasasclassesindustriaisanteriores.Essasubversãocontínuadaprodução,esseabaloconstantedetodoo

sistemasocial,essaagitaçãopermanenteeessafaltadesegurançadistinguemaépocaburguesadetodasasprecedentes.

[a]

Mas é nesse ponto também que as leis coercitivas da concorrência dão um passo adiante,

estimulandoaprocurapormais-valor relativo.A implicação,quepor alguma razãoMarx reluta em

considerar, é que toda ação dessas leis coercitivas, por meio da monopolização e da crescente

centralização do capital descritas no capítulo 23, influenciará o ritmo e a forma das revoluções

tecnológicas. As dimensões da luta de classes mediante oposição de amplas bases (por exemplo, o

movimento ludista) ou sabotagemno chão de fábrica devem também ser levadas em consideração.

ComoobservouMarx,umestímuloàsmudançastecnológicassurgedodesejodocapitaldeterarmas

parausarcontraotrabalho.Quantomaisostrabalhadoressetornammerosapêndicesdamáquina,e

quanto mais suas habilidades monopolizáveis são minadas pelas tecnologias mecânicas, mais

vulneráveis eles se tornam à autoridade arbitrária do capital. Na medida em que a história das

inovações tecnológicas e organizacionais se apresenta emondas, parecequehámuitomais a dizer

sobreessadinâmicadoquefoiditoatéagora,mesmonaricaanáliseapresentadanoLivroI.

Essasquestõessetornamimportantesporque,aoapresentarseusargumentossobreacomposição

orgânicaedevalordocapitalnocapítulo23,MarxantecipaavisãoapresentadanoLivroIIIdeque

uma tendência inelutável a um valor de composição crescente do capital pressagia uma lei ou

tendência igualmente inelutável de queda da taxa de lucro, o que produz necessariamente as

condiçõesparaascrisesdelongoprazonoprocessodeacumulação.ParaMarx,éespecialmenteaqui

queocapitaltemdeenfrentarumobstáculocrucialinerenteàsuapróprianatureza.

A crise resultante da lucratividade deve-se unicamente aos efeitos desestabilizadores do

dinamismotecnológicoquenascedabuscapersistentepormais-valorrelativo.Umaversãoresumida

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da argumentação afirmaque a busca pormais-valor relativo empurra o capitalista para tecnologias

que economizam trabalho, e quanto mais trabalho é poupado, menos valor é produzido, já que o

trabalhoéafontedevalor.Éclaroqueexistemmeiosdecompensaressaperda,comooaumentoda

taxadeexploraçãoouareabsorçãodostrabalhadoresdeslocadosnaproduçãoaumentada.Mas,como

afirmeino capítulo10,há razõespara sermos céticos em relação aqualquer tendêncianecessária e

inelutáveldeaumentodacomposiçãodevalordocapital.NoLivroIII,Marxlistaumavariedadede

“influênciasantagônicas”aumataxadecrescentede lucro, inclusive taxascrescentesdeexploração

do trabalho, quedanos custos do capital constante, comércio exterior e forte aumentodo exército

industrialdereserva,oquedesestimulaoempregodenovastecnologias(comoobservadonoLivroI).

NosGrundrisse,elevaialémeapontaaconstantedesvalorizaçãodocapital,aabsorçãodocapitalna

produçãodeinfraestruturafísica,aaberturadenovaslinhasdeproduçãocomtrabalhointensivoeo

processo de monopolização.Minha visão (provavelmente minoritária) é que o argumento da taxa

decrescente de lucro não funciona comoMarx determina, e explicomais detalhadamente por que

pensoassimemmeulivroOslimitesdocapital.

Masacreditotambémquenãohádúvidadequeasmudançasorganizacionaisetecnológicastêm

sérios efeitos desestabilizadores na dinâmica da acumulação do capital, e a brilhante exposição de

Marxsobreasforçasqueimpulsionamasconstantesrevoluçõestecnológicaseorganizacionaisprepara

o terreno para uma melhor compreensão dos processos tanto da luta de classes quanto das lutas

popularesemtornododesenvolvimentodenovastecnologiasedaformaçãodecrises.Atendênciaà

crisepodesemanifestar(comoindicaanota89docapítulo13)nasrelaçõesdetrabalho,narelação

com a natureza e em todos os outros momentos coexistentes do processo de desenvolvimento

capitalista. Há também efeitos diretamente desestabilizadores, como a desvalorização do

investimento prévio (maquinaria, instalações, equipamentos, construções, rede de comunicação)

antesqueovalortenhasidorecuperado(amortizado);rápidasmudançasnasexigênciasqualitativas

dotrabalho(porexemplo,sabertrabalharcomcomputadores)queexcedemashabilidadesdaforçade

trabalhoexistenteeosinvestimentoseminfraestruturasocialnecessáriosparacriá-las;aproduçãode

uma insegurança crônica no emprego e crises cada vez mais profundas de desproporcionalidade

provocadas pelo desenvolvimento irregular das capacidades tecnológicas entre diferentes setores;

mudançasdramáticasnasrelaçõesespaçotemporais(inovaçõesnotransporteenascomunicações)que

levamauma revolução totalnapaisagemglobaldaprodução edo consumo; acelerações súbitasna

circulação do capital (o uso de computadores para realizar operações nomercado financeiro pode

criarsériosproblemas,comovimos);eassimpordiante.E,sim,háocasiõesemqueumacomposição

crescentedevalordocapitalpodeserdetectadacomconsequênciasparaoslucros.

6)APERDADECONTROLECAPITALISTASOBREOPROCESSODETRABALHO

Marx faz um grande esforço para enfatizar que a criação de mais-valor repousa na habilidade do

capitalistadecomandarecontrolarotrabalhadornochãodefábrica,ondeovaloréproduzido.Esse

comandoeessecontrolesobreo“fogoconformador”doprocessodetrabalhosãosemprecontestados.

O “despotismo” do controle do trabalho depende de certa mistura de coerção e persuasão, assim

como de uma organização bem-sucedida da estrutura hierárquica de autoridade nas relações de

trabalho. É claro que qualquer rompimento nesse controle pressagia uma crise, eMarx enfatiza o

poder implícito dos trabalhadores de romper, sabotar, desacelerar ou simplesmente interromper a

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produçãode valordaqualdependenecessariamenteo capitalista.A recusa a se sujeitar ao aparato

disciplinardocapital,opoderdesenegaratrabalharsãoextremamenteimportantesnadinâmicada

lutadeclasses.Issopode,porsisó,forçarumacrise(comoenfatizamteóricosmarxistasdatradição

“autonomista”,comoTrontieNegri).Obviamente,essepoderdotrabalhadorélimitado,nosentido

dequeostrabalhadorestêmdevivere,semsalário,elestambémsofrerão,anãoserquedisponhamde

outromeioqualquerde subsistência (comoo cultivoda terra).No entanto, o limitepotencial que

existenacirculaçãodocapital,nopontodaprodução,enopróprioprocessodetrabalhonãopodeser

ignorado.Porisso,tantooscapitalistasindividuaisquantoaclassecapitalistatomammuitocuidado

emgarantiradisciplinaeformasadequadasdecontroledotrabalho.

7)OPROBLEMADAREALIZAÇÃOEDADEMANDAEFETIVA

Osétimoobstáculopotencial apareceno fimda sequência, quando anovamercadoria ingressano

mercado e realiza seu valor como dinheiro mediante troca. A transição M-D é sempre mais

problemática do que a transição do universal (o dinheiro) para o particular (a mercadoria), pelas

razõesapresentadasnocapítulo2.Paracomeçar,énecessárioqueumnúmerosuficientedepessoas

precise,queiraoudesejeamercadoriaproduzidacomovalordeuso.Seumacoisaé inútil, elanão

temvaloralgum,dizMarx.Mercadoriasinúteissedesvalorizam,eoprocessodecirculaçãodocapital

chega a um emperramento fatal. Assim, a primeira condição para a realização do valor é prestar

atençãoàsnecessidadesedesejosdapopulação.Emnossaépoca,emcomparaçãocomadeMarx,há

umenormeesforço–queincluiacriaçãodetodaumaindústriadepublicidade–paramanipularas

necessidadeseosdesejosdapopulaçãoegarantirmercadoparaosvaloresdeuso.Masoqueestáem

jogo aqui é mais do que simplesmente a publicidade. O que se exige é a formação de toda uma

estruturaeprocessodevidacotidiana(ofatordereprodução-da-vida-cotidiana,expostonanota89

docapítulo13)quenecessitadaabsorçãodeumcertoconjuntodevaloresdeusoparasesustentar.

Considere,por exemplo,odesenvolvimentodenecessidades edesejos associados ao surgimentode

umestilodevidasuburbanonosEstadosUnidosapósaSegundaGuerraMundial.Estamosfalandoda

necessidade não apenas de carros, gasolina, autoestradas e casas suburbanas, mas também de

cortadores de grama, geladeiras, ares-condicionados, cortinas, móveis (de interior e exterior),

equipamentosdeentretenimento(televisão)etodaumasériedecoisasparasuprirodiaadia.Avida

no subúrbio requeria o consumo de tudo isso. O desenvolvimento de subúrbios garantiu uma

demanda cada vez maior para esses valores de uso. Assim, “criar uma nova necessidade”, como

predisseMarx, torna-se uma precondição essencial para a continuidade da acumulação do capital

(180).Comotempo,aspolíticasdecriaçãodenecessidadestornaram-se,emsimesmas,cadavezmais

importantes, ehojeentende-sequeo“sentimentodoconsumidor”éumelemento fundamentalno

estímuloàacumulaçãoilimitadadocapital.

Masdeondevemopoderaquisitivoparacomprartodosessesvaloresdeuso?Devehaver,nofim

desseprocesso,umaquantiaextradedinheiro,guardadaporalguémemalgumlugar,para facilitar

essacompra.Senão,háumafaltadedemandaefetivaeoresultadoéaquiloquechamamosdecrise

de“subconsumo”–quandonãohádemandasuficienteparaabsorverasmercadoriasproduzidas(veja

ocapítulo3).Abarreiracriadapelafaltademercado“porondeescoarosprodutos”(522)temdeser

transposta.Emparte,ademandaefetivaéexpressapelostrabalhadoresquegastamseussalários.Maso

capitalvariávelésempremenordoqueocapitaltotalemcirculação,demodoqueaaquisiçãodebens

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desubsistência(mesmonumestilodevidasuburbano)jamaisésuficienteparaarealizaçãodofluxo

totaldevalor.Contudo, e essa éumaquestãoque surgenoLivro IId’Ocapital, reduziros salários

comopressupõeaanálisedoLivroIcriaapenastensõesmaisprofundasnopontoderealizaçãoepode

ser,emsimesmo,umcomponenteimportantenacriaçãodecrisesdesubconsumo.Foiporissoquea

política do NewDeal, numa época de crise que muitos consideram essencialmente uma crise de

subconsumo,apoiouasindicalizaçãoeoutrasestratégias(comobenefíciosdaseguridadesocial)para

estimularademandaefetivaentreasclassestrabalhadoras,efoiporissotambémque,em2008,numa

situação de estresse econômico, o governo dos EstadosUnidos abateu 600 dólares do imposto da

maioria dos contribuintes para aumentar a demanda efetiva dos consumidores.Aumentar o salário

realdotrabalho(contrariandoassimatendênciadeempobrecimentocrescentedoproletariado)pode

ser necessário para estabilizar a acumulação contínua de capital, mas, por razões óbvias, a classe

capitalista(paranãodizerocapitalistaindividual)podenãoestardispostaaencararaimplementação

radicaldessetipodesolução.

Maséóbvioqueademandadostrabalhadores,emborasejaumabaseimportante,nãopodeirtão

longeapontoderesolveroproblemadarealização.RosaLuxemburgodedicougrandeatençãoaisso.

Primeiro,tratoudapossibilidadedeademandaextrasurgirdoaumentodaofertadeouro(ou,nos

diasatuais,daemissãodemaisdinheiropelosbancoscentrais).Aindaqueissosejadealgumaajuda

nocurtoprazo(injetarliquidezsuficientenosistema,comosefeznacrisefinanceirade2008,éuma

ferramentacrucialparaestabilizaresustentaracirculaçãoeaacumulaçãocontinuadasdocapital),é

óbvioque,nolongoprazo,oefeitoseráacriaçãodeoutrotipodecrise:ainflação.AsoluçãodeRosa

Luxemburgo foi pressupor a existência de uma demanda latente e mobilizável fora do sistema

capitalista. Isso significaacontinuaçãodaacumulaçãoprimitivapormeiode imposiçõesepráticas

imperialistasemsociedadesqueaindanãoforamabsorvidaspelomododeproduçãocapitalista.

Na transição para o capitalismo, e na fase da acumulação primitiva, os estoques de riqueza

acumuladanaordemfeudalpuderamdesempenharessepapel,juntamentecomorouboeosaquede

riqueza do resto domundo pelo capital comercial. Com o tempo, é claro, aquilo que poderíamos

chamarde“reservasdeouro”dasclassesfeudaisforamconsumidas,eacapacidadedocampesinato

de gerar poder de consumo por meio de uma tributação que visava sustentar o consumismo da

aristocraciaruraltambémseesgotou.ÀmedidaqueocapitalismoindustrialseconsolidavanaEuropa

enaAméricadoNorte, o saquede riquezas da Índia, daChina ede outras formações sociais não

capitalistas já desenvolvidas tornava-se cada vez mais predominante, em particular da metade do

séculoXIXemdiante.EsseperíodofoimarcadoporumaimensatransferênciaderiquezadoLestee

doSuldaÁsiaemparticular,masemalgumamedidatambémdaAméricadoSuledaÁfrica,paraa

classe industrial-capitalista localizada nos países capitalistas centrais. À medida que o capitalismo

cresciaeseespalhavageograficamente,acapacidadedeestabilizarosistemaporessesmeiostornava-

se cada vez menos plausível, ainda que nunca tenham sido inteiramente suficientes (o que é

duvidoso)duranteafasedoaltoimperialismodofimdoséculoXIX.Nãohádúvidadeque,desdeo

início dos anos 1950, mas sobretudo a partir da década de 1970, a capacidade das práticas

imperialistas de cumprir o papel de grande estabilizador, abrindo novos campos (novosmercados)

paraarealizaçãodocapital,diminuiuseriamente.

A resposta mais importante, que Rosa Luxemburgo não vê, mas que deriva logicamente do

argumentodeMarx(emboraelenãoaarticulediretamente,porqueopressupostodoLivroIexcluio

problema das crises potenciais de realização), é que a solução está no consumo capitalista. Como

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vimos,hádoistiposdeconsumocapitalista:umapartedomais-valoréconsumidacomorenda(por

exemplo,artigosdeluxo),masaoutraédestinadaàexpansãodaproduçãopormeiodeestratégiasde

reinvestimento que aparecem (e uso essa palavra no sentido de Marx) como impelidas pelas leis

coercitivasdaconcorrência.EncontramosaquianecessidadedaquiloqueMarxchamade“consumo

produtivo”comoumelonoprocessoderealização.Issosignificaqueaproduçãodemais-valortemde

interiorizarsuaprópriademandamonetária.Ademandadoprodutoexcedentedeontemdependeda

expansão da produção de mais-valor de amanhã! O consumo capitalista de hoje, alimentado pelo

excedenteganhoontem,criaomercadoparaoprodutoexcedenteeomais-valordeontem.Oque

issofazétransformaroqueaparececomoumacrisepotencialdesubconsumocausadapelafaltade

demanda efetiva numa falta de oportunidades ulteriores de investimentos lucrativos. Em outras

palavras, a solução para os problemas de realização encontrados no fim do processo de circulação

dependede retornarmos ao início e obtermos uma expansão aindamaior.A lógica do crescimento

compostoconstantepassaapredominar.

8)OSISTEMADECRÉDITOEACENTRALIZAÇÃODOCAPITAL

Para que a circulação do capital complete seu curso, duas condições fundamentais têm de ser

realizadas.Primeiro,oscapitalistasnãopodemconservarodinheiroqueganharamontem.Elestêm

derecolocá-loimediatamenteemcirculação.Mas,comoafirmaMarxemsuacríticaàleideSay,não

háumanecessidadeabsolutadequeM-D,porexemplo,tenhaimediatamentedeserseguidodeD-

M,enointeriordessaassimetriaencontra-seapossibilidadeconstantenãotantodecrisesmonetárias

efinanceiras,masdosurgimentodeumobstáculoàrealizaçãodomais-valorpelaausênciadegastos.

No capítulo 2, examinamos várias circunstâncias em que faria todo o sentido poupar dinheiro, ao

invésdegastá-lo, e énessepontoqueopensamentodeMarxedeKeynes sobreapossibilidadede

crisesdesubconsumoconverge.Keynestentoucontornaresseobstáculoapelandoparaumconjunto

deestratégiastécnicasdegerenciamentofiscalemonetárioconduzidaspeloEstado.

A segunda condição é que o lapso entre hoje e ontem seja remediado pela garantia de uma

circulaçãocontínua.Esselapsopodeserremediado,comoMarxmostranocapítulo3,peloaumento

docréditoepelousododinheirocomomeiodepagamento.Emsuma,osistemadecrédito,como

relação organizada entre credores e devedores, entra no processo de circulação para exercer uma

funçãovital.Comooutrasopçõessãoexcluídas,essesetornaoprincipalmeioderesolveroproblema

dademandaefetivadeummodoqueéinternoàcirculaçãodocapital.Mas,comisso,osistemade

créditoreclamasuapartedoexcedentenaformadojuro.

Em várias passagens, mesmo no Livro I d’O capital, Marx reconhece implicitamente o papel

crucialdo sistemadecrédito,mas,parapreservaraquiloqueele consideraocernedoproblemada

relação capital-trabalho na seção VII, ele acredita que é necessário excluir da análise os fatos da

distribuição (renda, juro, tributos, lucro sobre o capital comercial). Ainda que ajude a revelar e

esclarecer certos aspectos importantes da dinâmica capitalista, isso faz com que um traço

fundamental do processo de circulação do capital seja deixado de lado. E, infelizmente, Marx

continuaaignorá-loaolongodegrandepartedoLivroII(emborareconheçasuapresençacrucialna

relação,porexemplo,comacirculaçãodosinvestimentosemcapitalfixodelongoprazo),oquetorna

absolutamente correta a afirmação de Rosa Luxemburgo de que o esquema de acumulação

apresentadono fimdoLivro IInão resolveoproblemada realização edademandaefetiva.Émais

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tarde,noLivroIII,queMarxcomeçaaexaminaropapeldosistemadecrédito,mas,paraserfranco,

esses capítulos, embora apresentem insights sugestivos, são uma confusão (tentei quanto pude – e

confessoqueatentativaquasemeenlouqueceu–expô-losdemaneiraordenadanoscapítulos9e10

demeu livroOs limites do capital).NosGrundrisse, no entanto, ele afirma que o “inteiro sistema de

créditoeocomércioespeculativo,asuperespeculaçãoetc.aeleassociadosbaseiam-senanecessidade

deestenderetransporosobstáculosdacirculaçãoedaesferadatroca”

[b]

.

Seéacontinuidadedaexpansãodocapitalismoquecriaademandaparaoprodutoexcedentede

ontem, isso significaqueoproblemada realizaçãonãopode ser resolvido, sobretudonas condições

atuaisdodesenvolvimentocapitalistaglobalizado,semaconstruçãodeumvibranteeextensosistema

de crédito para remediar o lapso entre o produto excedente de ontem e a absorção desse produto

excedente amanhã. Essa absorção pode ocorrer ou pela expansão da continuidade da produção de

mais-valor(reinvestimento),oupeloconsumocapitalistadosganhosobtidos.Éfácildemonstrarque,

nolongoprazo,oconsumodosganhosobtidoslevaráàestagnação(esseéomodeloda“reprodução

simples”,doqualMarxfalanocapítulo21).Apenasacontinuidadedaexpansãodageraçãodemais-

valor funcionará no longo prazo, e é isso que torna a necessidade social de aumento contínuo das

taxasdecomposiçãoumacondiçãodesobrevivênciadocapitalismo.

Se tivesse chegado a esse ponto, Marx certamente teria dito que as leis coercitivas da

concorrênciasãoumameraferramentaparaasseguraressacondiçãoabsolutamentenecessáriaparaa

sobrevivênciadocapitalismo.Emoutraspalavras,asobrevivênciadocapitalismorequeramanutenção

dasleiscoercitivasdaconcorrênciaafimdemanteraexpansãodaproduçãodemais-valordeamanhã

como um meio de absorção dos excedentes produzidos ontem. Segue-se disso que qualquer

diminuição dos poderes coercitivos, por exemplo por uma monopolização excessiva, bastará para

produzirumacrisenareproduçãocapitalista.ÉexatamenteesseoargumentodeBaraneSweezyem

Capitalismomonopolista

[c]

(escritonosanos1960,quandomonopólioscomoodasBigThree

[d]

,astrês

grandes companhias automobilísticasdeDetroit, eramcada vezmais significativos).A tendência à

monopolizaçãoecentralizaçãodocapitalproduziunecessariamente,comoBaraneSweezyclaramente

previram, a crise de estagflação (desemprego crescente, acompanhado de alta inflação) que tanto

assombrou os anos 1970. A resposta a essa crise foi a contrarrevolução neoliberal, que não apenas

esmagouopoderdo trabalho,mas também liberouas leis coercitivasda concorrência,outorgando-

lhes o poder de “executoras” das leis do desenvolvimento capitalista por meio de todo tipo de

estratagemas(comércioexteriormaisaberto,desregulamentação,privatizaçõesetc.).

Mas esse processo tem algumas complicações potenciais. Para começar, presume que todas as

outras barreiras (por exemplo, a relação com a natureza) à expansão da produção de mais-valor

amanhã são não operantes e há espaço suficiente para o aumento da produção. Isso implica, por

exemplo, um tipo diferente de imperialismo, que não opera por roubo de valores e pilhagem de

recursosdorestodomundo,masusaorestodomundocomolocaldeaberturadenovasformasde

produçãocapitalista.Aexportaçãodecapital,maisdoquedemercadorias,torna-secrucial.Essaéa

grande diferença entre a Índia e a China do século XIX, cujas riquezas foram pilhadas pela

dominaçãocapitalistadeseusmercados,eosEstadosUnidose,emcertamedida,aOceaniaepartes

daAméricaLatina,ondeumirrestritodesenvolvimentocapitalistaocorreurapidamente,criounova

riquezae,comisso,abriuumcampodeabsorçãoerealizaçãodoprodutoexcedentegeradoemoutros

centrosdocapitalismo(porexemplo,aGrã-BretanhaexportoucapitalemaquinariaparaosEstados

Unidos e a Argentina no século XIX). Em tempos recentes, é claro, a China absorveu grande

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quantidade de capital estrangeiro no desenvolvimento de sua produção e, dessemodo, gerouuma

enorme demanda efetiva não apenas de matérias-primas, mas também de maquinaria e outros

insumos.

Há,noentanto,doisproblemasinerentesaessasolução,eambospodemcriarnovosobstáculosà

continuidade da acumulação do capital no próprio ato de tentar superá-los. O primeiro problema

deriva do simples fato de que o processo de circulação torna-se especulativo por definição: ele se

baseia na crença de que a expansão de amanhã não encontrará nenhum obstáculo (nem o da

continuidadeda realização),demodoqueo excedentedehojepode ser efetivamente realizado.O

elemento especulativo, que, mais do que excepcional ou excessivo, é fundamental, significa que

antecipações e expectativas, como Keynes entendeu muito bem, são fundamentais para a

continuidadedacirculaçãodocapital.MarxreconheceissotacitamentenoLivroIII,quandoobserva

que a expansão capitalista é, como ele diz,muito “protestante”, porque se baseiamais na fé e no

crédito do que no “catolicismo” do ouro, a verdadeira base monetária. Qualquer queda nas

expectativas especulativas será, portanto, autorrealizável [self-fulfilling] e provocará uma crise.Nesse

sentido,é interessante releraTeoriageraldeKeyneseobservarqueas soluções técnicasdapolítica

monetária e fiscal ocupam apenas uma parte minoritária do argumento, em comparação com a

psicologiadas expectativas e antecipações.A féno sistema é fundamental, e a perdade confiança,

comoocorreuem2008,podeserfatal.

Osegundoproblemasurgenointeriordoprópriosistemamonetárioedecrédito.Apossibilidade

de crises financeiras e monetárias “independentes” – queMarx apresenta no capítulo 3, mas não

desenvolve–éonipresente.Oproblemasubjacenteresidenascontradiçõesdaprópriaforma-dinheiro

(o valor de uso como a representação do valor, o particular [concreto] como representação do

universal[abstrato]eaapropriaçãoprivadadopodersocial–vejaocapítulo2).QuandoMarxdiscute

a leideSay, apontaparao fatodequeháuma tentaçãopermanentede reterodinheiroe,quanto

maisaspessoascedemaela,maioréoobstáculoàcontinuidadedacirculação.Masporqueaspessoas

retêmodinheiro?Umadasrazõeséqueodinheiroéumaformadepodersocial.Elepodecomprar

consciênciaehonra!NosManuscritoseconômico-filosóficosde1844,Marxdizque,se“soufeio,[...]posso

comprar para mim a mais bela mulher”

[e]

(ou o mais lindo dos homens); se sou estúpido, posso

comprarapresençadepessoas inteligentes; se soualeijado,posso terpessoasparamecarregarpara

onde eu quiser. Pense em tudo que você pode fazer com todo esse poder social! Portanto, existem

excelentesrazõesparaqueaspessoasqueiramreterodinheiro,particularmentediantedaincerteza.

Colocá-loemcirculaçãopara termaispoder socialexigeumatode fé,ouacriaçãode instituições

seguraseconfiáveis,nasquaisvocêpodeguardarseudinheiro,enquantooutroagenteocolocaem

circulaçãoparafazermaisdinheiro(queé,evidentemente,oqueosbancoscostumamfazer).

Masas ramificaçõesdesseproblemaseespalhampor todoocampoderepresentações,emquea

perdadeconfiançanossímbolosdodinheiro(nopoderdoEstadodegarantirsuaestabilidade)ouna

qualidadedodinheiro(inflação)dãolugaraconsideraçõesmaisdiretamentequantitativas,taiscomo

a “escassez monetária” ou, como ocorreu no outono de 2008, o congelamento dos meios de

pagamento.

Aindahápouco,oburguês[leia-seWallStreet],comatípicaarrogânciaqueacompanhaaprosperidadeinebriante,declaravaodinheiro

comouma vã ilusão.Apenas amercadoria é dinheiro.Mas agora grita-se por toda parte nomercadomundial: apenas o dinheiro é

mercadoria!Assim comoo veado anseia por água fresca, sua alma clamapor dinheiro, a única riqueza.Na crise, a oposição entre a

mercadoriaesuafigura-valor,odinheiro,élevadaatéacontradiçãoabsoluta.(211)

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Quermelhordescriçãodasúbitacrisede2008!

No cerne do sistema de crédito há uma série de aspectos técnicos e legais (muitos dos quais

podem falhar ou ser gravementedistorcidos simplesmente emvirtudede suas regras de operação),

associadosaexpectativaseantecipaçõessubjetivas.E,àmedidaqueocapitalismoseexpande,opapel

do sistema de crédito como uma espécie de sistema nervoso central que direciona e controla a

dinâmica global da acumulação do capital torna-se cada vez mais importante. Isso implica que o

controle sobre os meios de crédito é crucial para o funcionamento do capitalismo – uma

posicionalidadequeMarxeEngelsreconhecemnoManifestoComunista,fazendodacentralizaçãodos

meiosdecréditonasmãosdoEstadoumadesuasprincipaisreivindicações(pressupondo-se,éclaro,

ocontroledoEstadopelaclassetrabalhadora).Quandoissoéacrescentadoaopapelfundamentaldo

Estado na garantia da qualidade da cunhagem dasmoedas e, aindamais importante, dasmoedas

simbólicas(papelreconhecidonocapítulo3),pareceinevitávelquehajaalgumtipodefusãoentreo

Estado e os poderes financeiros. Essa fusão contraditória foi estabelecida pela criação de bancos

centraiscontroladospeloEstadoecompoderesdereservailimitadossobreodesembolsodosmeiosde

créditoparatomadoresprivados.

Domesmomodoqueo capitalpodeoperarnosdois ladosdademandaedaofertada forçade

trabalho(vejaocapítulo8),eletambémpodeoperarpormeiodosistemadecréditonosdoisladosda

relaçãoprodução-realização.NosEstadosUnidos, por exemplo, a oferta cada vezmais generosa de

crédito nos últimos anos a prováveis proprietários de imóveis juntou-se a uma oferta igualmente

generosa de crédito a empresários do ramo da construção civil para estimular um boom no

desenvolvimento imobiliário e urbano. Imaginou-se que, com isso, o problemada realização estaria

resolvido.Adificuldadesurgiuporqueossaláriosreaisnãoaumentaramnamesmaproporção(comoa

análisedoLivroIpoderiaprever,dadaapredominânciadaspolíticasneoliberaisapartirde1980,que

fez com que os ganhos obtidos com o aumento da produtividade não fossem repartidos, mas

concentradosinteiramentenasclassesmaisaltas),eissodiminuiuacapacidadedosproprietáriosde

saldar dívidas cada vez maiores. A quebra do mercado imobiliário resultante dessa política era

absolutamenteprevisível.

Mas uma análise dessa quebra sugere outro papel crucial do sistema de crédito. Assim como,

apontouMarx,ocrédito(eausura)teveseupapelnaextraçãoderiquezadossenhoresfeudaispor

meiodaacumulaçãoprimitiva,osistemadecréditotambémestábemposicionadoparavisareextrair

riquezadosrecursosdaspopulaçõesvulneráveis.Práticaspredatóriasdeempréstimo–umaformade

acumulação por desapossamento – resultaram com frequência em execuções hipotecárias e

permitiramquerecursosfossemadquiridosabaixocustoetransferidosinteiramenteparaalimentara

riqueza de longo prazo dos interesses de classe capitalistas. A onda de execuções hipotecárias que

começou em 2006 acarretou uma enorme perda de recursos em várias camadas vulneráveis da

população, principalmente as afro-americanas. Esse segundo momento da “acumulação por

desapossamento”por intermédiodosistemadecréditotemgrandesconsequênciasparaadinâmica

docapitalismo.Nacrisede1997-1998,porexemplo,elefacilitouumaimensatransferênciaderiqueza

doLesteedoSudestedaÁsiaparaWallStreet,nomomentoemqueumcongelamentodeliquidez

empurravafirmasviáveisparaafalência–queentãopuderamsercompradasapreçosmaisbaixospor

investidoresestrangeirosedepoisrecuperadasevendidascomlucrosimensos.Demodosemelhante,

os ataques à agricultura familiarqueocorreramemondasnosEstadosUnidosdesdeos anos1930,

tambémbaseadosnocrédito,concentraramariquezaagrícolanasmãosdoagronegócio,àcustados

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pequenosproprietários,queforamobrigadosavendersuasterrasporumpreçoextremamentebaixo

medianteexecuçãohipotecária.Alutadeclasseseaacumulaçãodopoderdaclassecapitalistaabrem

caminhoporqualquercanalpossívelnolabirintodeinstrumentosdecréditosquehojeexistem.

Marxnãoinvestigouosistemadecréditosuficientementeafundoparaenfrentaroproblemada

realizaçãoemtodasuacomplexidade.EsseéumdositensinacabadosdeMarxquerequeremumaboa

dosede trabalhopara ser completados, sobretudoquando se consideraa complexidadedomercado

financeiroedecrédito,cujofuncionamentoéobscuromesmoparaquemoadministraeusa.Maso

que é interessante no argumento do Livro I é queMarx, ao tratar da transição da circulação de

mercadorias para a circulação de capital, vê-se obrigado a tratar das relações entre credores e

devedoresedousodedinheiroreguladopeloEstadocomomeiodepagamento.Eletambémtratada

estrutura temporal dos processos de produção e dos pagamentos como um problema crucial da

circulaçãomonetária,queprecisadecréditoparaalcançaranecessáriacontinuidadedacirculaçãoe

daacumulaçãodocapital.“Amoedadecrédito”,dizele,“surgediretamentedafunçãododinheiro

comomeiodepagamento”(213).É issoaquemerefiroquandodigoqueumestudocuidadosodo

argumentodoLivroInosensinamuitosobreoquevempelafrentenorestodaanálisedeMarx.Ele

tambémnosajudaadescobriroquefaltaeoqueaindaprecisaserinvestigadomaisprofundamente.

ACIRCULAÇÃODOCAPITALCOMOUMTODO

Quando a circulação é considerada como um todo, torna-se evidente que as muitas barreiras

potenciais ao fluxo livre e contínuo do capital em todos os seus momentos não são nem

independentes umas das outras nem sistematicamente integradas. Elas são construídas como um

conjuntodemomentosdistintivosnointeriordatotalidadedoprocessodecirculaçãodocapital.No

entanto,nocursodahistóriadateorizaçãomarxianasobreascrises,houveumatendênciaabuscar

umaexplicaçãodominanteeexclusivadapropensãodomododeproduçãocapitalistadegerarcrises.

Ostrêsgrandescampostradicionaisdopensamentosãoacompressãodolucro,aquedadecrescente

dataxade lucroeas teoriassubconsumistas,easeparaçãoentreelescostumaser forteosuficiente

para impedir qualquer aproximação. O próprio termo “subconsumista” é visto, em certos círculos,

comoumpalavrão (significa que você é keynesiano, e não um “verdadeiro”marxista); já os fãs de

RosaLuxemburgoficamofendidoscomopoucocasoque fazemdesuas ideiasaquelesquepõemo

argumento da taxa decrescente de lucro no centro de suas teorias. Nos últimos anos, por razões

óbvias,deu-semuitomaisatençãoaosaspectosambientaisefinanceirosdaformaçãodascrises,ena

primeiradécadadoséculoXXIessesaspectosestiveramemalta.

Pensoqueémaiscoerente,seguindooespíritodaanálisedoLivroIeadiscussãoextremamente

interessante das relações entre os limites e as barreiras nosGrundrisse (“Cada limite aparece como

barreiraasersuperada”

[f]

),pensartodosos limitesebarreirasdiscutidoscomopontospotenciaisde

bloqueio,cadaqualpodendodesacelerarouromperacontinuidadedo fluxodecapitale,comisso,

criar uma crise de desvalorização. Penso que também é importante entender a potencialidade de

deslocamento de uma barreira por outra.Medidas para aliviar uma crise de oferta de trabalho por

meiodageraçãodeumamplodesempregopodem,porexemplo,criarproblemasdeinsuficiênciade

demanda efetiva.Medidaspara resolveroproblemadademanda efetivapormeioda ampliaçãodo

sistemadecréditoentreasclassestrabalhadoraspodemprovocarcrisesdeconfiançanaqualidadedo

dinheiro (como as registradas pelas crises inflacionárias, pelo encolhimento repentinode oferta de

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créditoepeloscolapsosfinanceiros).Tambémpensoqueestámaisdeacordocomafrequentemenção

de Marx ao caráter fluído e flexível do desenvolvimento capitalista reconhecer o rápido

reposicionamentodeumabarreiraàcustadeoutrae,assim,reconhecerasmúltiplasformasemqueas

crisespodemserregistradasemdiferentessituaçõeshistóricasegeográficas.

Em resumo, as barreiras potenciais são as seguintes: (1) incapacidadede reunir capital original

suficienteparamovimentaraprodução(problemasde“barreirasdeentrada”);(2)escassezdetrabalho

ou formas recalcitrantes de organização laboral que podem produzir compressões de lucro; (3)

desproporcionalidades e desenvolvimento irregular entre setores na divisão do trabalho; (4) crises

ambientais causadas por predação de recursos e degradação da terra e do meio ambiente; (5)

desequilíbrios e obsolescência prematura causados por mudanças tecnológicas irregulares ou

excessivamente rápidas, estimuladas pelas leis coercitivas da concorrência e contra-atacadas pelo

trabalho;(6)recalcitrânciaouresistênciadostrabalhadoresdentrodeumprocessodetrabalhoquese

realiza sob o comando e o controle do capital; (7) subconsumo e demanda efetiva insuficiente; (8)

crisesmonetáriase financeiras(armadilhasda liquidez, inflaçãoedeflação)queocorremnoâmbito

de um sistema de crédito que depende de instrumentos sofisticados de crédito e poderes estatais

organizados,alémdeumclimadeféeconfiança.Emcadaumdessespontosinternosdoprocessode

circulaçãodocapitalexisteumaantinomia,umantagonismopotencial,quepodeirrompercomouma

contradiçãoaberta(parausaralinguagemqueMarxempregacomfrequêncian’Ocapital).

Essenãoéo fimdaanáliseda formaçãoe resoluçãodascrisesnocapitalismo.Antesde tudo,a

dinâmicadodesenvolvimento geográfico irregular, juntamente comoproblemadodesdobramento

espaçotemporal do desenvolvimento capitalista no cenáriomundial, é extremamente complexa, na

medidaemqueocapitalprocuracriarumapaisagemgeográfica(deinfraestruturasfísicasesociais)

apropriada à sua dinâmica num dado momento apenas para destruí-la e recriar outra paisagem

geográficanummomentoposterior.Adinâmicamutáveldaurbanizaçãonocenáriomundialéuma

ilustração dramática desse processo. Os conflitos geopolíticos (inclusive guerras catastróficas) são

abundantese,comotêmsurgidodasqualidadespeculiaresdopoderterritorializado(queexigemuma

teorização adequada do Estado, um conjunto de instituições e práticas que é mencionado com

frequêncianoLivroI,porémnãoédevidamenteteorizado,comoosistemadecrédito),seguemuma

lógicaquenãoseencaixaplenamentenasexigênciasdacirculaçãoeacumulaçãocontínuasdocapital.

A história recente das mudanças globais na produção e na desindustrialização teve como

consequênciaumaimensadestruiçãocriativa,implementada,emgrandeparte,emmeioacrises,às

vezeslocais,mas,emoutroscasos,deproporçõescontinentais(comoaquelaqueatingiuoLesteeo

SudesteAsiáticoem1997-1998).Alémdisso,nãopodemosexcluirapossibilidadedechoquesexternos

(inclusive furacõese terremotos)comodesencadeadoresdecrises.Quandoaatividadequaseparou

nosEstadosUnidos,sobretudoemNovaYork,apósosataquesde11deSetembro,ainterrupçãoda

circulação foi tão assustadora que, em uma semana, os poderes públicos saíram em campo para

incentivarapopulaçãoapegarseuscartõesdecréditoeiràscompras!

Acreditoqueumespíritodeinvestigaçãomarxianadahistóriarecentedascrisesdeveriaseabrira

todasessaspossibilidades.Keynesmeparececertoeminterpretaracrisedosanos1930basicamente

comoumacrisedeinsuficiênciadedemandaefetiva(aindaque,porrazõesdeclasseprovavelmente,

nãotenhachamadoaatençãoparaadesigualdadederenda–historicamenteinéditaatéépocasmais

recentes – que explodiu nos anos 1920 em consequência do arrocho salarial). O quadro piorou

quando as pessoas perderam a confiança na capacidade da acumulação sustentada e, por isso,

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começaramareterdinheiro.E,quantomaispessoasretinhamdinheiro,maisosistemaenfraquecia.

Keynes chamou isso de armadilha da liquidez. Era preciso encontrar meios de liberar o dinheiro

retido, e uma resposta foram os gastos governamentais, financiados por dívidas, para revigorar a

circulaçãodo capital (outra resposta foi a guerra).Poroutro lado, achoqueAndrewGlyn eoutros

estavam certos em ver um forte elemento de compressão do lucro nas dificuldades que os países

capitalistas avançados enfrentaram no fim dos anos 1960, onde a escassez de trabalho e a forte

organização do trabalho puseram claramente um freio na acumulação. Ao mesmo tempo, a

monopolização excessiva ajudou a desacelerar a produtividade, e isso, juntamente com uma crise

fiscaldoEstado(associadaàguerraqueosEstadosUnidostravavamnoVietnã),iniciouumalonga

fasedeestagflaçãoquesópôdeserresolvidacomodisciplinamentodotrabalhoealiberaçãodasleis

coercitivasda concorrência.Nesse caso, a crisepassoudeumobstáculoparaoutro, retornandoem

seguida para os obstáculos anteriores. A relação com a natureza também afeta a lucratividade,

sobretudo se a renda (umacategoriaque, comoo juro,não é tratadanoLivro I) sobreos recursos

naturaisaumentadrasticamente.

Meuobjetivoaquinãoé tentarescreverumahistóriadascrises,mas sugerirqueos insightsque

temos ao estudar as obras de Marx precisam ser usados de modo flexível e contingente, e não

formalístico. Minha visão a respeito da dinâmica interna da teoria da crise (oposta às lutas

geopolíticasqueocorremdemodoindependente,masnãosemrelaçãoentresi)baseia-senaanálise

dosvárioslimiteseobstáculosencontradosnoprocessodecirculação,noestudodasváriasestratégias

de superaçãoou tangenciamentodesses limites ebarreiraspormeiospolíticosou econômicos eno

cuidadosomonitoramentodomodocomobarreirasjátranspostasoucontornadasnumpontolevama

novasbarreirasemoutrospontos.Odesdobramentocontínuoearesoluçãoparcialdastendênciasde

crisedocapitalismotornam-seoobjetodainvestigação.

Por trás disso, encontra-se um problema mais profundo. A acumulação pela acumulação, a

produção pela produção e a necessidade perpétua de ter uma taxa composta de crescimento

funcionaram muito bem enquanto o núcleo do capitalismo industrial se constituiu de atividades

realizadas nas 40 milhas quadradas ao redor de Manchester e em outros poucos centros do

dinamismocapitalista,comoeraocasoporvoltade1780.Masoqueestamosanalisandoagoraéa

possibilidadedeumataxacompostadecrescimentode3%aoano,digamos,enumespaçoqueinclui

aChinaeorestodoLesteedoSudesteAsiático,umaexpansãodaatividadenaÍndia,naRússiaena

EuropaOriental,aseconomiasemergentesdoOrienteMédioedaAméricaLatinaefocos intensos

de desenvolvimento capitalista tanto na África quanto em centros tradicionais do capitalismo na

AméricadoNorte,naEuropaenaOceania.Amassadeacumulaçãoedemovimentofísiconecessária

paramanter essa taxa compostade crescimentonospróximos anos teráde sernadamenosdoque

assombrosa.

Vejoascrisescomoerupçõessuperficiaisprovocadaspordeslocamentostectônicosprofundosna

lógica espaçotemporal do capitalismo. Neste momento, as placas tectônicas estão acelerando seu

deslocamento, aumentando a probabilidade de crises mais frequentes e violentas. É praticamente

impossívelpreveramaneira,aforma,aespacialidadeeomomentodaserupções,maséquasecerto

queocorrerãocommaisfrequênciaecommaisforça,efarãooseventosde2008pareceremnormais,

senãotriviais.E,jáqueessastensõessãointernasàdinâmicacapitalista(oquenãoexcluiumevento

disruptivoaparentementeexterno,comoumpandemiacatastrófica),queargumentomelhorpoderia

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haver,comodisseMarxcertavez,paraocapitalismo“seretirarecederespaçoaumestadosuperior

deproduçãosocial”

[g]

?

Masémaisfácildizerdoquefazer.Éclaroqueissopressupõeaconstruçãodeumprojetopolítico.

Enãopodemosesperarparasabertudooqueprecisamossaber,oumesmoentendertudooqueMarx

tem para dizer. No Livro I, Marx apresenta um espelho da nossa realidade, de modo a criar um

imperativoparaaação,edeixaclaroqueapolíticadeclasse,a lutadeclasses, temde serocentro

daquilo que fazemos. Em si, isso não soa particularmente revolucionário.Mas, ao longo do último

quarto de século, cansamos de ouvir que as classes são irrelevantes, que a própria ideia de luta de

classesé tãoantiquadaquenãopassadepastoparadinossaurosacadêmicos.Masbastauma leitura

séria d’O capital para mostrar irrefutavelmente que não chegaremos a lugar nenhum se não

escrevermos“lutadeclasses”nasnossasbandeiraspolíticasenãomarcharmosaotoquedoseutambor.

Noentanto,precisamosdefinirmelhoroqueexatamenteissopodesignificarparanossomundoe

nosso tempo.Emsuaépoca,Marxmuitasvezes tevedúvidas sobreoque fazer,que tipodealiança

política seria razoável, queobjetivos e reivindicaçõesdeviam ser articulados.Masoque elemostra

também é que,mesmo entre incertezas, não podemos deixar de agir. Cínicos e críticos costumam

objetarqueoquesetentafazeréreduzirquestõesdenatureza,gênero,sexualidade,raça,religiãoetc.

a termos de classe, e isso é inaceitável.Minha resposta é: de modo algum. Essas outras lutas são

importantesetêmdeserconsideradasemsimesmas.Contudo,diriaeu,éraroquenãotragamemsi

uma forte dimensão de classe, cuja solução é condição necessária, embora jamais suficiente, para,

digamos,umapolíticaantirracistaouambientalistaadequada.

Basta considerarmos, por exemplo, o impacto da chamada crise do subprime na cidade de

Baltimore. Um número desproporcional de famílias negras e famílias sustentadas por um único

progenitor(sobretudomulheres)foidestituídodeseusdireitosdemoradiae,emalgunscasos,deseus

recursosnodecorrerdeumaperversaguerraclassistadeacumulaçãopordesapossamento.Nessetipo

de situação, não podemos fugir da categoria de classe e negar sua relevância. Temos de perder o

medodefalaremtermosdeclassesedemobilizarestratégiaspolíticasemtornodasnoçõesdeguerra

declasses.

Mas há, é claro, uma razão para que o silêncio seja desejável. Classe é uma categoria que os

poderesinstituídosnãoqueremqueninguémleveasério.OWallStreetJournalironizaqualquercoisa

que se pareça comuma guerra de classes por considerá-la algo gratuitamente divisor, agora que a

nação tem de se manter unida para enfrentar suas dificuldades. A elite dominante jamais quer

admitirabertamente,emuitomenosdiscutir,aquiloqueconstituioobjetivocentraldesuaação:a

estratégiadeclasseparaaumentarsuariquezaeseupoder.

Uma coisa em queMarx insiste é que o conceito de classe, em toda a sua glória ambígua, é

indispensável tantopara a teoria quantopara a ação.Masmuita coisa deve ser feita para que essa

categoriafuncione.Porexemplo,umadasquestõesquesurgemdaleiturad’Ocapitaléoquedizerdas

relaçõesentreaslutasemtornodaacumulaçãoprimitivaedaacumulaçãopordesapossamento,por

um lado, e as lutas de classe travadas tipicamente em tornodo local de trabalho enomercadode

trabalho, por outro.Nem sempre é fácil unir essas duas formas de luta.Mas acho difícil ignorar o

amplolequedelutasquesetravamnomundointeirocontraodesapossamento,mesmoquemuitas

sejamapenasumaformadepolítica retrógradadotipo“nãonomeuquintal”.Adivisãoentreessas

duasgrandesformasdelutadeclassesdóipoliticamente.Masocapítulod’Ocapitalsobre“Ajornada

detrabalho”nosensinaquealiançassãoimportanteseédifícilchegaraalgumlugarsemelas,porque

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a classe capitalista acumula capital porqualquermeiodisponível, o que significa que ela faz isso à

custadetodosnós.Oscapitalistastornam-seriquíssimos,enquantoosoutrosestagnamoupadecem.

Esseprivilégioeessepoderdeclasse,dizMarx,têmdesercombatidosedestruídosparadarlugara

outromododeprodução.

MasoLivroItambémnosensinaqueodeslocamentodeummododeproduçãoporoutroéum

processo complexo e demorado. O capitalismo não suplantou o feudalismo com uma clara

transformação revolucionária. Ele teve de crescer nos interstícios da velha sociedade e suplantá-la

pouco a pouco, às vezes pela força, pela violência, pela predação e pelo confisco de recursos,mas

outraspelologroepelaastúcia.Ecomfrequênciaperdeubatalhascontraaantigaordem,aindaque,

nofim,tenhaganhadoaguerra.Numprimeiromomento,eletevedeconstruirsuaalternativacom

base em tecnologias, relações sociais, concepções mentais, sistemas de produção, relações com a

naturezaepadrõesdevidacotidiana,taiscomohaviamsidoconstituídosnoseiodaordemanterior.

Somentedepoisdeumacoevoluçãoeumdesenvolvimentoirregulardessesdiferentesmomentosno

interior da totalidade social (veja terceiro item do capítulo 4), ele encontrou não apenas sua base

tecnológica única, mas também seus sistemas de crenças e concepções mentais, sua configuração

instável–masclaramenteclassista–derelaçõessociais,seuscuriososritmosespaçotemporaiseseus

modos igualmenteestranhosdevidacotidiana,paranãomencionarseusprocessosdeprodução.Só

entãopodemos falarverdadeiramentedecapitalismo,mesmoqueeleestejaemconstantemudança

pararesponderasuasprópriascontradiçõesinevitáveis.

ComeceiestelivroinstigandovocêatentarlerMarxnosprópriostermosdeMarx.Obviamente,

minhavisãopessoalarespeitodesses termos, sejamquais forem,desempenhouumpapelcrucialno

mapamentalque tentei construirparaguiá-lo.Meupropósitonão era convencê-lodeque tenhoa

linhadeinterpretaçãocorreta,aleituracorreta,masabrirumcaminhoparaquevocêpossaconstruir

seupróprioentendimentoeinterpretação.Seiquemuitaspessoasrejeitarãominhaleitura,comovocê

tambémpoderáfazê-lo,notodoouemparte.Paramim,asegundatarefacrucialéabrirumespaçode

diálogoediscussãoparatrazeravisãomarxianadomundodevoltaàcena,tantointelectualquanto

politicamente. As obras de Marx têm muito a dizer sobre os perigos de nossos tempos para que

possamos jogá-las na laxa de lixo da história. Depois dos acontecimentos de 2007, deveria ser

evidentequeprecisamospensar“foradacaixa”dossaberes recebidos.“Oseventos”,escreveuHenri

LefebvreemseulivrinhoTheExplosion,que tratadoseventosde1968,“desmentemasprevisões;na

medidaemquesãohistóricos,surpreendemoscálculos.Podematémesmoderrubarasestratégiasque

tornaram sua ocorrência possível”.Os eventos “tiramos teóricos de seus confortáveis assentos e os

lançam num turbilhão de contradições”

[2]

. Não hámelhormomento para estudar emminúcias as

contradiçõesinternasdocapitalismoeasobrasdessedialéticograndiosoquetantofezparatorná-las

tãoluminosamentetransparentes!

Mesmoqueasconcepçõesmentaisnãopossammudaromundo,as ideiassão,comoobservouo

próprioMarx, uma forçamaterial na história. Ele escreveuOcapital para nos equiparmelhor para

travar essa luta. Mas aqui também não existe caminho fácil, tampouco uma “estrada real para a

ciência”.ComoBertoltBrechtescreveucertavez:

Muitascoisassãonecessáriasparamudaromundo:

Raivaetenacidade.Ciênciaeindignação,

Ainiciativarápida,alongareflexão,

Afriapaciênciaeainfinitaperseverança,

Acompreensãodocasoparticulareacompreensãodoconjunto:

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Somenteasliçõesdarealidadepodemnosensinaratransformararealidade.

[h]

[1]AndrewGlyneBobSutcliffe,BritishCapitalism,WorkersandtheProfitsSqueeze[Capitalismobritânico,trabalhadoresecompreensãode

lucro](Harmondsworth,Penguin,1972).

[a]KarlMarxeFriedrichEngels,ManifestoComunista,cit.,p.43.(N.T.)

[b]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.340.(N.E.)

[c]PaulA.BaranePaulM.Sweezy,Capitalismomonopolista:ensaiosobreaordemeconômicaesocialamericana(3.ed.,RiodeJaneiro,Zahar,

1978).(N.T.)

[d]TheBigThree–assimsãochamadasastrêsmaiorescompanhiasautomotivasdosEstadosUnidos:Ford,GeneralMotorseChrysler.

(N.T.)

[e]KarlMarx,Manuscritoseconômico-filosóficos(SãoPaulo,Boitempo,2004),p.159.(N.E.)

[f]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.332.(N.E.)

[g]Ibidem,p.627.(N.E.)

[2]HenriLefebvre.TheExplosion:MarxismandtheFrenchRevolution(trad.AlbertEhrenfeld,NovaYork,MonthlyReviewPress,1969),p.

7-8.

[h]BertoltBrecht,DasBadenerLehrstück vomEinverständnis [edição inglesa:TheDidactic Play of Baden: onConsent (Londres,Methuen,

1997,CollectedWorks),v.3,p.84].(N.T.)

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Índice

11deSetembro

18debrumáriodeLuísBonaparte,O(Marx)

1848,Revoluçõesde

1929,colapsode

abstinência

acumulação

eentesouramento

pordesapossamento

primitiva

acumulaçãodocapital,A(RosaLuxemburgo)

África

afro-americanos

agronegócio(EUA)

agricultura

esínteseindustrial

mercantilização

subsistência

Alemanha

dialéticahegelianana

filosofiacríticana

trabalhoetecnologiana

trabalhomilitar

AlemanhaOcidental

algodão

Allende,Salvador

Amazônia

AméricaCentral

AméricadoNorte

AméricadoSul

AméricaLatina

destruiçãoeconômicarural

expropriaçãocamponesa

ourona

produçãoatualna

Page 238: Para Entender o Capital de Marx - edisciplinas.usp.br · Prefácio Quando se tornou público que o curso que leciono anualmente sobre O capital de Marx (Livro I) seria oferecido on-line

produçãoimperialistana

TeologiadaLibertação

anarquismosocial(Kropotkin)

AnistiaInternacional

antissemitismo

Aprèsmoiledéluge!

áreasnãocultivadas(greenfieldsites)

Argentina

Aristóteles

Arkwright,Richard

armadilhadaliquidez

Ásia

crescimentoatual

crisedeliquidez(1997-1998)

expropriaçãona

gangsystem(sistemadeturmas)

imperialismona

LeviStrauss(&Co)na

movimentosindicalna

proletarizaçãona

assistentessociais

Austrália

automóvel

companhias(Detroit)

indústria(Japão)

indústrias(França)

autonomista,tradição

Babbage,Charles

Babeuf,Graco

Bacon,Francis

Baltimore,Maryland

Balzac,Honoréde

BancoMundial

Bangladesh

Baran,PaulA.

Baviera

BeecherStowe,Harriet

BengalaOcidental

Bentham,Jeremy

BethlehemSteel

BigThree(companhiasautomobilísticas)

biopirataria

Birmingham,Inglaterra

Blanqui,August

BlessedUnrest(Hawken)

Bonaparte,Luís

burguesia

educaçãofilantrópicapela

liberdades/legalizaçãodedireitos

sobreaorigemdocapitalismo

versusaristocraciafundiária

boiardos

Brasil

Lula(LuizInácio“Lula”daSilva)

Mendes,Chico

milagreeconômico

MovimentodosTrabalhadoresRuraisSem-Terra(MST)noBrasil

PT(PartidodosTrabalhadores,Brasil)

Braverman,Harry

Page 239: Para Entender o Capital de Marx - edisciplinas.usp.br · Prefácio Quando se tornou público que o curso que leciono anualmente sobre O capital de Marx (Livro I) seria oferecido on-line

Brecht,Bertolt

Brenner,Robert

Bright,John

Bristol,Inglaterra

BritishCapitalism,WorkersandtheProfitsSqueeze(GlyneSutcliffe)

Budd,Alan

Bush,GeorgeW.

cabanadopaiTomás,A(Stowe)

Cabet,Étienne

CaliforniaOccupationalSafetyandHealthAdministration

CâmaradosLordes

caminhodoargumento(diagrama)

CanaldaMancha,túneldo

capitalindustrial,origensdo.Vertambémacumulação

capitalsocial

CapitalismNatureSocialism(revista)

capitalismoglobal.Verdívida;neoliberalismo

Capitalismomonopolista:ensaiosobreaordemeconômicaesocialamericana(BaraneSweezy)

capitalista(indivíduoversusclasse)

capturaregulatória(regulatorycapture),223.VertambémEstado

Carey,Henry

cartista,movimento

catolicismo

centralização(concentração)

Chamberlain,Joseph

Chaplin,Charlie

Chile

China

contemporânea

importaçõesda

modelododeltadoRiodasPérolas

pilhagemda

pratada

proletarizaçãona

salários

trabalho

zonaseconômicasespeciaisna

circuitoM-D-M

classeversusindivíduo(capitalista)

Cleaver,Harry

Cobden,Richard

Cohen,G.A.,22

Colombo,Cristóvão

colonialismo

CombinationLaws

comédiahumana,A(Balzac)

composição(orgânica,técnica,devalor)

composiçãoorgânica

compressãodolucro,teoriada

concentração(centralização)

Condillac,ÉtienneBonnotde

Considérant,Victor

consumo

consumoracional

Contribuiçãoàcríticadaeconomiapolítica(Marx)

CoreiadoSul

CornLaws(leisdoscereais)

corpodotrabalhador

comoapêndicedocapital

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forçadetrabalhono

nocircuitoM-D-M

relaçãodialéticacomanatureza

corveia,sistemade

crédito

comoauxiliardaacumulação

edemandaefetiva

operadorasdecartãodecrédito

papeldo

sistemade

crescimento.Vertambémacumulação

crianças

CríticadafilosofiadodireitodeHegel(Marx)

Cuba

D-M-D

ΔD

formadecirculação

mais-valorderivadode

processo

Darwin,Charles

darwinismosocial

DeclaraçãoUniversaldosDireitosHumanos

Defoe,Daniel

desconstrução

desindustrialização.Verneoliberalismo

Deleuze,Gilles

demanda(efetiva)

DengXiaoping

Derrida,Jacques

Descartes,René

desemprego

comoprodutodaacumulação

gerenciamentodo(reservasflutuantes)

insegurançanoempregocomodisciplina

Desenvolvimentodesigual:natureza,capitaleaproduçãodeespaço(NeilSmith)

desqualificação

determinismo

Detroit,Michigan

diagrama(s)

cadeiadeargumentaçãodialética

caminhodoargumento

estruturadovalor

inter-relaçãodoselementos

dialéticacampo-cidade

Dickens,Charles

diggers

dinheiro,basemetálicado

direitos

comuns

concepçãoburguesa

liberaisversuseconômicos

políticadedireitoshumanos

propriedade.Vertambémleidapropriedade

direitoscomunais.Verleidecercamento

direitoshumanos.Vertambémdireitos

Disraeli,Benjamin

dívida

dividirparagovernar

divisãodotrabalho

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duquesadeSutherland

“economiamoral”(Thompson)

Eden(comentadordoséculoXVIII)

édito(Rússia)

educação.VertambémEstado

acessoà

demandaefetiva

elite(intelectual)

Engels,Friedrich.VertambémManifestoComunista;AsituaçãodaclassetrabalhadoranaInglaterra

entesouramento.Veracumulação

Epicuro

Escandinavos,Estados

Escócia

espaço-tempo

geográfico

relação

Espinosa,Baruch

EssayonTradeandCommerce,An(Anônimo)

EssaysinBiography(Keynes)

Estado

aparatoregulatório

apoioàproletarização

comocentralizadordosmeiosdecrédito

educação

economistaspolíticosclássicoseo

naÁsia

nosanos1930

EstadosUnidos

agronegócio

apósaSegundaGuerraMundial

apóso11deSetembro

áreasnãocultivadas(greenfieldsites)

choqueVolcker

destruiçãodaagriculturafamiliar

eopetróleodoOrienteMédio

etrabalhomexicano

empresaseregulamentações

escaladerenda

escassezdetrabalho

escravidão

execuçãohipotecária

fundosdeprivate-equity

leisdeimigração

NewDeal

noVietnã

ofertadecrédito(dívida)

origensdocapitalistaindustrial

PartidoRepublicano

salários(desde1970)

seguridadesocial

trabalhomilitar

trabalhoporto-riquenhonos

tradiçõespolíticaselaborais

estatísticas

eforçadetrabalho

epolíticaenergética

FederalReserve

gerenciamentodosistemamonetário

legislaçãoantitruste

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Leisfabris

NewDeal

políticasdeimigração

políticasdeinfraestrutura

trabalhomilitar

sistemascoloniais

estagflação

estilodevidasuburbano

ÉticaaNicômaco(Aristóteles)

EugêniaGrandet(Balzac)

Europa

escravagista,comércio

escravidão.Vertrabalho

evolucionistas(russos)

exércitodereserva.Vertrabalho

Explosion,The(Lefebvre)

fábuladasabelhas,A(Mandeville)

Fausto(Goethe)

fetichismo

feudalismo

ecomércioescravagista/colonialismo

terraversusdinheiro

transiçãoparaocapitalismo

Feuerbach,LudwigAndreas

Fielden,John

Filosofiadodireito(Hegel)

Filosofiagrega

fisiocratas

Forbes,lista

forçadetrabalhomédica

Ford,Henry

fordista,sistema/técnicasdeprodução

forma-dinheiro(mercadoria)

epoderestatal,fusão

origemeprocessoda

podersocialda

trêspeculiaridadesda

velocidadeda

FórumSocialMundial

Foucault,Michel

Fourier,Charles

Fowkes,Ben

França

economistaspolíticosclássicos

gangsystem(sistemadeturmas)na

impactodaleifabrilinglesana

indústriasautomobilísticasna

semanadetrabalhode35horas

socialistasutópicosda

trabalhomilitar

Franklin,Benjamin

Friedman,Milton

Friedman,Thomas

FundoMonetárioInternacional(FMI)

Gaia,hipótesede(Lovelock)

gangsystem(sistemadeturmas)

GapInc.

gentrificação(NovaYorkeLondres)

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Gifford,KathyLee

Giuliani,Rudy

globalização,noManifestoComunista

Glyn,Andrew

Goldsmith,Oliver

Grã-Bretanha

aristocraciaversusburguesia

comércioescravagista

economistaspolíticosclássicos

exportaçãodecapital/maquinaria

indústriaalgodoeira

Japão,indústriaautomobilísticano(anos1980)

Parlamento

planosdecolonizaçãodeWakefield

socializaçãodotrabalhoassalariado(IdadeMédia)

transiçãoparaocapitalismo

Gramsci,Antonio

GrandeDepressão

“grandetraição”(ReformAct)

Gray,John

grevesdemineiros

Grundrisse(Marx)

“anulaçãodoespaçopelotempo”

sobreacompetição

sobreaforçadetrabalho

sobreataxadecrescentedelucro

sobreacumulaçãoprimitiva

sobredinheirocomocomunidade

sobreosistemadecrédito

limitesebarreiras

panoramadoestudosobreOcapital

prescriçõesmetodológicasdos

GuerraCivil(EUA)

GuerraFranco-Prussiana(1870-1871)

GuerrasdoÓpio

Guantánamo,Baíade

Guatemala

GuilhermedeOrange

Harvey,David,obras

limitesdocapital,Os

Neoliberalismo:históriaeimplicações

novoimperialismo,O

Paris:CapitalofModernity

SpacesofCapital

SpacesofGlobalCapitalism

Hawken,Paul

Hayek,Friedrich

Heath,Edward

Hegel,G.W.E

hegemonia(Gramsci)

HenriqueVII(rei)

Hobbes,Thomas

Holloway,John

HomesteadAct(EUA)

Honduras

HongKong

Horner,Leonard

humanistas(séculoXVIII)

Hume,David

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icarianos

imigração,políticasde.Vertambémtrabalho;Estado

imigrantes

imigrantesirlandeses

ImmigrationandCustomsEnforcement(ICE)

ImpérioRomano

indústriadepublicidade

Índia

expansãoimperialistana

neoliberalismona

ópioda

proletarizaçãoda

VertambémGrã-Bretanha

zonaseconômicasespeciaisna

ÍndiasOcidentais

individualismo.Vertambémdireitos

indivíduoversusclasse(capitalista)

Indonésia

indulgências,vendade

infraestrutura

centralização(estatal)e

comoabsorçãodeexcedente

financiamentoprivadoversusestatalda

interesseindustrialem

necessidadede

nomodelobase-superestrura

padrõesvariáveisde

social(treinamentodetrabalhadores)

inspetoresdefábrica

inter-relaçãodoselementos(diagrama)

InventionofCapitalism,The(Perelman)

Inglaterra

acumulaçãoprimitivana

censo(1861)

saláriosemcomparaçãocomaAméricadoNorte

VertambémGrã-Bretanha

Iowa,frigorífico(2008)

Itália

Itoh,Makoto

Iugoslávia

Japão,

crescimentono

estrutura“just-in-time”

indústriaautomobilística

karoshi(sobretrabalho)

JohnsHopkins,universidade

jovenshegelianos

“just-in-time”,sistemas

Kant,Immanuel

KarlMarx’sTheoryofHistory(Cohen)

karoshi(sobretrabalho)

Keynes,JohnMaynard

armadilhadaliquidez(liquiditytrap)

demandaefetiva

Estadodebem-estarsocial(welfarestate)

sobreantecipaçãoeexpectativa

teoriasubconsumista

Kropotkin,Piotr

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LigadasNações

Leeds,Inglaterra

Lefebvre,Henri

leidapropriedade

daproduçãodemercadorias

princípiolockianoda

privada

Leidas10Horas

leidecercamento

leiislâmicasobreojuro

Leisdoscereais(Cornlaws)

LeidosPobres

Leibniz,Gottfried

Leisfabris

capitalistasversusEstado

clausulassanitáriaseeducacionais

dosanos1800

vantagemcompetitivadas

Lenin,Vladimir

levellers

liberalismo.Verneoliberalismo

Lichnovski,KarlMax

limitesdocapital,Os(DavidHarvey)

liquidez,crisesde

Liverpool,Inglaterra

Locke,John

lockiana,teoria

Londres,Inglaterra

“Loucuraecivilização”(Foucault)

Lovelock,James

ludista,movimento

Lula(LuizInácio“Lula”daSilva)

Luxemburgo,Rosa

edesapossamento(contemporâneo)

sobreimperialismoedemandaefetiva

magrebinos

mais-valor

coberturalegaldo

eabstinência

problemadeabsorçãodo

transformaçãodo

Malthus,Thomas

eDarwin

sobreademandaefetiva

sobreapopulação

Manchester,Inglaterra

EscoladeManchester

industriais

industrializaçãode

influênciadeMarx

versusomodelodeBirmingham

Mandeville,Bernard

ManifestoComunista(MarxeEngels)

descriçãodaglobalização

Friedmaneo

sobreadissoluçãofeudal

sobreaproduçãocontínua

sobreocontroleestataldocrédito

sobreosutopistas

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MaoTsé-tung

máquinaavapor

maquinaria.Vertambémtecnologia

Marx,Karl,obras

18debrumáriodeLuísBonaparte,O

Contribuiçãoàcríticadaeconomiapolítica

CríticadafilosofiadodireitodeHegel

Grundrisse.VerGrundrisse

ManifestoComunista

Manuscritoseconômico-filosóficosde1844

“Paraumacríticaimpiedosadetudooqueexiste”

Teoriasdomais-valor

macarthismo

Manuscritoseconômico-filosóficosde1844(Marx)

MecanismoEuropeudeTaxasdeCâmbio

Médici,EmílioGarrastazu

Meidner,Rudolf

Meidner,plano

meiosdeprodução,setorde

Mendes,Chico

MenênioAgripa,fábulade

“MerrieEngland”

método(deMarx)

métododialético

descrição

diagrama

dialéticainternaversusdialéticaexterna

ematerialismohistórico

México

MiguelArcanjo,festadeSão

microcrédito,instituiçõesde

Mill,JohnStuart

MiniCooper(automóvel)

miséria.Veracumulação

MollFlanders(Defoe)

More,Thomas

MovimentodosTrabalhadoresRuraisSem-Terra(MST)noBrasil

mulheres

mundoéplano,O(Friedman)

Nandigram,BengalaOcidental

nascimentodaclínica,O(Foucault)

NationalLaborRelationsBoard

Negri,Toni

neoliberalismo

acumulaçãoprimitiva

condiçõesdetrabalho

deReagan/Thatcher

descrição

euniversidades

excessodecrédito

níveisdedesigualdadesocial

noMéxico

taxadecrescimento

Neoliberalismo:históriaeconsequências(DavidHarvey)

NewDeal

Newgate,prisão

Newton,Isaac

Nike

NobeldeEconomia,prêmio

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noblesseoblige

Norwich,Inglaterra

NovaYork,cidade

NovaYork,Estado

novoimperialismo,O(DavidHarvey)

Observer(jornal)

obrigaçõesdedívidascolateralizadas(CDOs)

OccupationalSafetyandHealthAdministration

Oceania

O’Connor,Jim

ofertaedemanda

interessedostrabalhadorese

leida

limitaçãoda

razãomercadoria-troca

OliverTwist(Dickens)

Ollman,Bertell

ONGs,relatórios

OrganizaçãodasNaçõesUnidas(ONU)

OrienteMédio

origemdasespécies,A(Darwin)

Orshansky,Mollie

ouro

Owen,Robert

panóptico

“Paraumacríticaimpiedosadetudooqueexiste”(Marx)

Paris

Paris:CapitalofModernity(DavidHarvey)

Parlamento(Britânico)

PartidoComunista(China)

PartidodosTrabalhadores(PT)(Brasil)

PartidoRepublicano(EUA)

patologiaindustrial

petróleo(OrienteMédio)

Petty,William

Péreire,irmãos

Perelman,Michael

Pinochet,Augusto

população

flutuante.Vertambémtrabalho

estagnada

excedentede.Vertambémtrabalho

latente

porto-riquenho,trabalho

Portugal

prata

PrimeiraInternacional(anos1860)

Princípiosdeeconomiapolítica(Malthus)

Private-equity,fundosde(EUA)

privatização

proletarização

atual

processohistóricode

protestantismo

Proudhon,Pierre-Joseph

Marxe

sobredireitos/legalidade

sobreoempregodasmulheres

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utopismo

quakers,ideologiados

Quesnay,François

“RadicalJoe”

razão(capital/valor)

ReadingCapitalPolitically(Cleaver)

Reagan,Ronald

ReformAct(1832)

reformismo(burguês)

Règlementorganique

reprodução

davidacotidiana

dascondiçõessociais

docapital

RevoluçãoGloriosade1688

revoluções(1848)

Ricardo,David

damicroteoriaàmacroteoria

ealeideSay

sobreaquedadolucro

sobreconsumidoresnãoprodutivos

sobreocomércioexterior

tempodetrabalhocomovalor

teoriadaquantidadedemoeda

RiodasPérolas,deltado

RobinHood

Robinson,Joan

RobinsonCrusoé(Defoe)

Roemer,John

Romantismo

Rothschild,família

Rousseau,Jean-Jacques

RoyalMint

RussellSageFoundation

Rússia

Saint-Simon,Henride

salários

comorepresentação

diferençasnacionaisentreos

esindicatos

flutuaçãodos

individualversusfamiliar

naChina

nosEUAapartirdosanos1970

Say,J.B.

Say,leide

Say’sLaw(Sowell)

SegundaGuerraMundial

segundanatureza.Verinfraestrutura

SegundoImpério(França)

seguridadesocial(EUA)

“seiselementosconceituais”(Marx)

Senior,NassauW.

sergenérico

servos(russos)

Seul,CoreiadoSul

Shenzhen,China

Silício,Valedo

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sindicatos

áreasnãocultivadas(greenfieldsites)e

controladoresdetráfego-aéreo(EUA)

comoestabilizadorparaocapitalismo

comoforçapolítica

como“violação”

eCombinationLaws

eleisdaimigração

esalários

naÁsia

naSuécia(PlanoMeidner)

Thatchere

thinktanksantissindicalistas

Sismondi,JeanCharlesLeonardde

situaçãodaclassetrabalhadoranaInglaterra,A(Engels)

Slim,Carlos

Smith,Adam

ateoriadeWakefielde

Marxe

sobreadivisãodotrabalho

sobreofuncionamento(amãoinvisível)domercado

sobreMandeville

sobreopapeldoEstado

sobreasorigensdaclassetrabalhadora

Smith,Neil

socialização.Verproletarização

socialismoutópico

Soros,George

Sowell,Thomas

SpacesofCapital(DavidHarvey)

SpacesofGlobalCapitalism(DavidHarvey)

Steuart,James

Stowe,HarrietBeecher

subclasse

subconsumo

subprime,crisede

Suécia

Sutcliffe,Bob

Sutherland,duquesade

Sweezy,PaulM.

taxadecrescentedelucro

taylorismo

tecnologia

algodão

comodisciplinadotrabalho

composiçãotécnicada

comunicaçãoetransporte

edesindustrialização

ferramentasversusmáquinas

fetichismo

históriada

inovação

interiorizaçãoda

tempo

apropriação

cronoanálise(time-and-motionstudies)

determinaçãosocialdo

relaçãoespaço-tempo

Temposmodernos(filme)

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Teoriageraldoemprego,dojuroedamoeda(Keynes)

Teoriasdomais-valor(Marx)

TerceiraItália

TerrasAltas

terrasdaCoroa

terrasdaIgreja

Thatcher,Margaret

“TheWorldisRound”(Gray)

Thompson,E.P.

tories(Inglaterra)

trabalho

coletivo

condiçõesde

desqualificação

disciplinadotempo

divisãodo

Engelseo

estagnado

exércitodereserva

flutuante

forçadetrabalho

Fouriereo

imigração

intensificação

latente

mental(intelectual)

militar

naChina

políticadeofertadetrabalho

porto-riquenho

qualificadoedesqualificado

servil

sistemadecorveia

sistemafamiliar

sistemasdetrabalhoemcompetição

Smitheo

visãodeLocke

Trabalhoecapitalmonopolista:adegradaçãodotrabalhonoséculoXX(Braverman)

Tristan,Flora

Tronti,Mario

Turgot,A.R.J.

Turquia

UniãoSoviética

UnitedAirlines

UnitedFarmWorkers

universidades

Ure,Andrew

vadios(Mandeville)

valor

composiçãodevalor

diagrama

forçadetrabalhoversusteoriado

vampiro,metáforado

Vaticano

Vaucanson,Jacquesde

Vico,Giambattista

Vietnã

Vigiarepunir(Foucault)

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Volcker,choque

Wakefield,EdwardGibbon

Walkley,MaryAnne

WallStreet

ecriseasiática(1997-1998)

eexecuçõeshipotecárias

táticapredatória

WallStreetJournal(jornal)

Walmart

eimportaçõesdaChina

fábricasclandestinas

formaorganizacional

impactosobreaforçadetrabalho

Watt,James

Weber,Max

Wedgwood,Josiah

Wilson,WilliamJulius

Wilson,Woodrow

Yangtze,rio

zapatistas

zonaseconômicas.Veráreasnãocultivadas(greenfieldsites)

zonaseconômicasespeciais

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Estelivrocomeçouaserimpressonodia11demarçode2013,exatos

165anosapósKarlMarxtersidoeleitopresidentedoComitêCentral

daLigadosComunistas, emParis.

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Copyright©DavidHarvey,2010

Copyrightdestatradução©BoitempoEditorial,2013

TraduzidodooriginaleminglêsACompaniontoMarx'sCapital(Londres/NovaYork,Verso,2010)

Coordenaçãoeditorial

IvanaJinkings

Editora-adjunta

BibianaLeme

Assistênciaeditorial

AlíciaToffanieLiviaCampos

Preparação

MarianaEchalar

Diagramação

CrayonEditorial

Capa

AntonioKehl

sobreesculturadeCélioMonteverde

Produção

LiviaCampos

Versãoeletrônica

Produção

KimDoria

Diagramação

SchäfferEditorial

CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

SINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ.

H271p

Harvey,David,1935-

ParaentenderOcapital[recursoeletrônico]/DavidHarvey;[traduçãodeRubensEnderle].-SãoPaulo,SP:Boitempo,2013.

recursodigital

Traduçãode:AcompaniontoMarx'sCapital

Formato:ePub

Requisitosdosistema:AdobeDigitalEditions

Mododeacesso:WorldWideWeb

Incluiíndice

ISBN978-85-7559-323-3

1.Marx,Karl,1818-1883.2.Capitalismo.3.Capitalismo-Filosofia.4.Socialismo.I.Título.

13-0950.

CDD:330.122

CDU:330.85

Évedadaareproduçãodequalquer

partedestelivrosemaexpressaautorizaçãodaeditora.

Estelivroatendeàsnormasdoacordoortográficoemvigordesdejaneirode2009.

1

a

edição:marçode2013

BOITEMPOEDITORIAL

www.boitempoeditorial.com.br

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RuaPereiraLeite,373

05442-000SãoPauloSP

Tel./fax:(11)3875-7250/3872-6869

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FranciscodeOliveira

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JulianAssangecomJacobAppelbaum,AndyMüller-MaguhneJérémieZimmermann

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