Para estudar os mortos e ajudar os vivos

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MARÇO DE 2015 WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR IRRIGAÇÃO Esgoto tratado diminui uso de água e fertilizantes no campo ASTEROIDES Astrônomos mapeiam e estudam composição de objetos celestes que ameaçam a Terra CAMPOS RUPESTRES Plantas desenvolvem estratégias para absorver nutrientes escassos ENTREVISTA ETELVINO BECHARA A química em comum entre vaga-lumes e doenças mentais Para estudar os mortos e ajudar os vivos Laboratório com equipamento de ressonância inédito na América Latina investe na compreensão de doenças e em autópsias digitais

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Para estudar os mortos e ajudar os vivos

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março de 2015 www.revistapesquisa.fapesp.br

irrigaçãoEsgoto tratado diminui uso de água e fertilizantes no campo

asteroidesAstrônomos mapeiam e estudam composição de objetos celestes que ameaçam a Terra

campos rupestresPlantas desenvolvem estratégias para absorver nutrientes escassos

entrevistaetelvino bechara A química em comum entre vaga-lumes e doenças mentais

para estudar os mortos e

ajudar os vivosLaboratório com equipamento de

ressonância inédito na América Latina investe na compreensão de doenças e em autópsias digitais

Page 2: Para estudar os mortos e ajudar os vivos

Pesquisa Brasil traz notícias e entrevistas sobre ciência, tecnologia, meio ambiente e humanidades. Os temas são selecionados entre as reportagens da revista Pesquisa FAPESP.

A cada programa, dois pesquisadores falam sobre o desenvolvimento de seus trabalhos recentes – e ajudam a escolher a programação musical.

Você também pode baixar e ouvir o programa da semana e os anteriores na página de Pesquisa FAPESP na internet (www.revistapesquisa.fapesp.br).

Toda sexta-feira, das 13h às 14h, você tem um encontro marcado com a ciência na Rádio USP FM

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PESQUISA FAPESP 229 | 3

Rendilhado na florestaArildo Dias obteve esta imagem ao cortar o caule de uma liana (cipó)

e aplicar corantes em trabalho realizado durante seu doutorado em

biologia vegetal na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Em vermelho as fibras, que ajudam na sustentação, e elementos de

vaso do xilema, para transporte de água. Em azul o parênquima,

de armazenamento, e em maior quantidade o floema, que transporta

açúcares. Essa distribuição lhe permitiu comparar lianas e árvores de

florestas em Campinas e Ubatuba, respectivamente interior e litoral

de São Paulo. As lianas, em parte por se apoiarem nas árvores, podem

investir mais nos vasos em detrimento da sustentação, o que as torna

mais eficientes onde há menos chuva.

FotolAb

Foto enviada pelo biólogo Arildo Dias

Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para [email protected], com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

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4 | março DE 2015

CAPA14 Plataforma com aparelho de ressonância inédito na América Latina vai estudar cadáveres para avançar no diagnóstico e na compreensão de doenças

ENTREVISTA22 Etelvino BecharaQuímico elucidou a ação de compostos muito reativos, os radicais livres, nas células

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

30 CientometriaEstudo indica que bolsistas cujos projetos são selecionados por avaliação por pares publicam mais em revistas com maior impacto

34 DifusãoTV Cultura e FAPESP lançam o programa SP Pesquisa

36 Acervos científicosHerbários virtuais facilitam análises sobre a biodiversidade

CIÊNCIA

40 AstronomiaPesquisas brasileiras com asteroides podem ajudar a estimar risco de colisões com a Terra

46 FísicaPesquisadores criam modelo de fenômeno atmosférico luminoso

50 Cartografia planetáriaFerramentas matemáticas ajudam a identificar crateras em Mercúrio e Marte

53 ObituárioAlejandro Szanto de Toledo ajudou a formar uma geração de físicos nucleares no país

54 BotânicaEspecializações nas raízes permitem que plantas vivam no ambiente infértil dos campos rupestres

60 EcologiaCutias criadas em cativeiro se adaptam à vida na floresta e se reproduzem

62 GenéticaResíduos da melanina formados horas após exposição ao sol podem danificar o DNA e provocar câncer de pele

TECNOLOGIA

64 Engenharia agrícolaIrrigação com água tratada de esgoto diminui a retirada dos mananciais

70 Engenharia da computaçãoEmpresa desenvolve software para treinamento virtual de vigilantes

72 Pesquisa empresarialOpto, de São Carlos, desenvolve e produz lasers para a área médica

76 BiofísicaDispositivo usa ultrassom e laser juntos para reabilitar pacientes

humANIdAdES

78 FilosofiaPesquisadores estudam manuscritos da fase intermediária de Wittgenstein

82 HistóriaProjeto evidencia a importância da ideia profética de “esperança” no século XVII

86 EducaçãoFerramenta digital revela estrutura dos textos

4488

março n.229

62

SEçÕES

3 Fotolab5 Cartas6 On-line7 Carta do editor8 Dados e projetos9 Boas práticas10 Estratégias12 Tecnociência88 Memória90 Arte93 Resenha94 Ficção96 Carreiras98 Classificados

FOtO DA CAPA LéO RAMOsMiLEnA CELy MODOLO sAnTOs E REnATA DE CAssiA ARRuDA, TéCniCAs DO pROjETO pisA, nO MAgnETOM 7T MRi

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PESQUISA FAPESP 229 | 5

Não sei se esse material ainda existe. Houve tentativas da Finep e do CNPq de apoiar a recuperação desse material, mas a direção da Biblioteca Nacional não se interessou pelos apoios que fo-ram oferecidos. Sei disso porque estive envolvido no processo.Roberto de Andrade Martins

IFSC-USP e UFSCar

Campinas, SP

USP 80 anosFoi com muita tristeza, indignação e re-volta que li o suplemento especial “USP 80 Anos”. Sequer foi mencionada a Fa-culdade de Medicina Veterinária, como uma das instituições fundamentais na trajetória desses 80 anos da universi-dade! Situada na rua Pires da Mota, na capital paulista, essa renomada institui-ção foi uma das pioneiras a instalar seus departamentos de Fisiologia, Histologia, Parasitologia e Farmacologia no então recém-inaugurado campus na Cidade Universitária. O campus avançado da FMV-USP em Pirassununga, por meio de seu Instituto de Zootecnia, respon-sável pela formação de milhares de pro-fissionais nas áreas de pesquisa, ensino e treinamento, também foi ignorado, assim como seus diretores e professores, como Orlando de Paiva Neto, Ernesto Matera, Antônio Guimarães Ferri, José de Fatis Tabarelli Neto, Dinoberto Chacon de Freitas e tantos outros.Francisco de Assis Martins

Médico veterinário

Campinas, SP

CorreçãoNa reportagem “Um segredo da paterni-dade” (edição 228), a foto no alto da pá-gina 52 é do mico-leão-da-cara-dourada e não do mico-leão-da-cara-preta. No infográfico, a figura do macaco-de-cheiro foi trocada com a do macaco-prego.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected] ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

CARtAS [email protected]

MedicinaBoa edição a de nº 228. Em relação à reportagem “Arte de parar em pé”, só não gostei quando se diz: “Os robôs funcio-nam como fisioterapeutas automáticos, corrigindo os movimentos”. Acho que um robô precisaria fazer muito mais para se tornar um autômato de fisioterapeuta. Comparativamente, um robô que avalias-se alguns parâmetros clínicos e prescre-vesse medicamentos não se tornaria um “médico automático”.Luiza Caires

São Paulo, SP

Elson LongoDevido à entrevista com Elson Longo (edição 228), entrei no site de Pesquisa FAPESP e digitei “entrevista” na busca. Achei histórias incríveis e inspiradoras daqueles que possibilitaram estarmos hoje fazendo pesquisa no Brasil!Eduardo Antonelli

São José dos Campos, SP

Journal des SçavansAo ler a reportagem “Os primeiros jour-nals” (edição 227) lembrei que a única coleção do Journal des Sçavans exis-tente no Brasil estava, antigamente, na Biblioteca Nacional, sem acesso e sem catalogação, na “coleção paralela” (um eufemismo) que ficava escondida no po-rão, em torno de 1990. Era um conjunto de mais de 50 mil volumes, em grande parte constituída por livros dos séculos XVIII e XIX, que depois foram desalo-jados do porão e levados para um pré-dio em ruínas no cais do porto, no Rio.

CONtAtOS

Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra. No site também estão disponíveis reportagens traduzidas e as edições internacionais da revista em inglês, francês e espanhol.

Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação pelo e-mail [email protected] ou para a rua Joaquim Antunes, 727 – 10º andar CEP 05415-012 São Paulo, SP

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Edições anteriores Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Envie e-mail para [email protected]

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6 | março DE 2015

youtube.com/user/PesquisaFaPesP

on-linEw w w . r e v i s t a P e s q u i s a . F a P e s P. b r

xum mecanismo de sobrevivência bastante eficiente e usado por muitas espécies de aranhas, lagartixas e opiliões parece ser comum também entre escorpiões: a capacidade de soltar partes do corpo como meio de defesa contra predadores. Num estudo publicado na PLoS One, pesquisadores do instituto de biociências da usP observaram que ao segurar a cauda de escorpiões do gênero Ananteris com uma pinça os animais se desprendiam delas. No caso desses artrópodes, perder a cauda, com o ferrão na ponta, significa ficar sem parte do sistema digestivo e o ânus.

xum trio internacional de pesquisadores apresentou num estudo da revista Nature Physics a evidência mais convincente até o momento de que o interior da galáxia onde está a terra também abriga algo difuso e invisível: a matéria escura, cuja presença já foi confirmada em outras regiões do universo. o trabalho dos físicos é o primeiro a assegurar que as estrelas da região estudada giram mais depressa do que seria esperado se não houvesse ali a presença da força gravitacional da matéria escura, substância desconhecida cinco vezes mais abundante que a matéria comum.

Exclusivo no site

Vídeos do mês

Perda de vegetação nativa pode representar uma das principais ameaças às serpentes do Brasil

Fósseis indicam que um braço do mar cobria partes do Brasil há cerca de 550 milhões de anos

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NeRoberta Heringer Strobel_ minha

filha nasceu com 2,850 kg de 40 semanas e teve um médico que queria marcar cesárea para 37/38 semanas. Fico pensando como seria! (Antes da hora)

Jefferson Banderó_ muitas áreas do brasil já estiveram submersas, em cáceres (mt) há conchas marinhas sobre um morro dos mais altos na serra. vimos isso nas aulas de solos da uFmt. (vídeo O último litoral de Minas)

Marcos Fernandes_ este kit mudou minha vida. Decidi ser economista matemático por causa dele. (Ciência ao alcance das mãos)

Lúcia Schirmer_ Parabéns aos pesquisadores! temos mentes brilhantes no brasil. (vídeo Pele artificial)

nas redes

sacrifício pela sobrevivência: segurados com uma pinça, escorpiões se desprendem da cauda, abrindo mão do ferrão e de parte de seu abdome

Assista ao vídeo:

Assista ao vídeo:

Pediatra fala sobre os riscos das cesarianas desnecessárias para os bebês

Rádio

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PESQUISA FAPESP 229 | 7

cArtA d0 EdItor

Um aparelho de ressonância mag-nética a ser inaugurado na Facul-dade de Medicina da Universi-

dade de São Paulo (FM-USP) neste mês representa um estímulo extra aos que estudam a saúde humana. Com o novo equipamento, será possível ter um ní-vel de sensibilidade e detalhamento ex-traordinário para se obter informações estruturais e funcionais do corpo. A má-quina, que será usada principalmente em cadáveres, entusiasma os pesquisadores da área médica pelo leque de possibilida-des que oferece à investigação científica.

O laboratório em que está instalado o Magnetom 7T MRI é a Plataforma de Imagem na Sala de Autópsia (Pisa) e foi construído no subsolo da FM-USP. É o primeiro equipamento de ressonância magnética da América Latina para corpo inteiro com campo de 7 Tesla, que pro-duz imagens melhores que as máquinas convencionais. À primeira vista, o fato de a máquina não estar liberada para uso clínico pode causar certa estranheza. No entanto, é precisamente a pesquisa em cadáveres que fará avançar as ciências que tratam da saúde humana. O equipa-mento deverá melhorar o diagnóstico por imagem, levar à criação de novas abor-dagens para o estudo de doenças, per-mitir autópsias minimamente invasivas e aprimorar setores do ensino médico.

Na cidade de São Paulo são realiza-das 14 mil autópsias por ano relativas a mortes naturais, o que faz do Serviço de Verificação de Óbitos da Capital (SVOC) o maior do gênero no mundo. A USP é a mantenedora do SVOC. A aquisição do Magnetom 7T MRI ocorre em um am-biente fértil para pesquisas com mor-tos cujo objetivo primordial é entender o organismo dos vivos. Na reportagem de Fabrício Marques (página 14) estão todos os detalhes dos principais usos

potenciais da máquina e o passo a passo de sua delicada instalação no subsolo da Faculdade de Medicina.

Entre as várias reportagens desta edi-ção que me chamaram a atenção destaco mais duas. Em tempos difíceis é comum ouvir, quase como um consolo, que a ad-versidade traz consigo oportunidades. No caso da crise hídrica que atinge os estados do Sudeste, essa sentença tor-nou-se verdadeira – pelo menos para a irrigação. Pesquisas independentes das três universidades estaduais pau-listas e da Embrapa Informática Agro-pecuária, de Campinas, mostraram que o uso do esgoto doméstico tratado para irrigação,pode ser uma alternativa para o campo porque diminui a retirada de água limpa dos mananciais e economiza fertilizantes. A reportagem de Evanildo da Silveira (página 64) relata como ocor-reram esses trabalhos em comum, que se tornam mais significativos quando sabemos que, no Brasil, 72% da água é usada no campo.

Outro destaque desta edição refere--se à coincidência entre o entrevistado do mês e uma reportagem sobre um de seus trabalhos recém-publicados. Carlos Fioravanti entrevistou o químico Etelvi-no Bechara (página 22) e, quando o texto já estava finalizado, foi avisado por ele que deveria sair um artigo científico na revista Science de 19 de fevereiro. Nesse estudo, Bechara e sua aluna de doutora-do Camila Mano, em colaboração com pesquisadores do exterior, mostravam como o DNA poderia ser danificado mais de três horas após a exposição direta à luz do sol. Fioravanti pediu o artigo e escreveu também a reportagem (pági-na 62). Foi uma boa oportunidade para o serviço completo: a entrevista com a trajetória do cientista e o relato sobre seu trabalho mais recente.

Para ajudar quem está vivoNeldson Marcolin | editor-chefe

celso laferPresidente

eduardo Moacyr Kriegervice-Presidente

coNSElho SUPErIor

celso lafer, eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, horácio lafer Piva, joão grandino rodas, Maria josé soares Mendes giannini, Marilza vieira cunha rudge, josé de souza Martins, Pedro luiz Barreiros Passos, suely vilela saMPaio, yoshiaKi naKano

coNSElho técNIco-AdMINIStrAtIvo

carlos henrique de Brito cruzdiretor científico

joaquiM j. de caMargo englerdiretor AdministrAtivo

coNSElho EdItorIAlcarlos henrique de Brito cruz (Presidente), caio túlio costa, eugênio Bucci, fernando reinach, josé eduardo Krieger, luiz davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo leite, Maria hermínia tavares de almeida, Marisa lajolo, Maurício tuffani, Mônica teixeira

coMItê cIENtíFIcoluiz henrique lopes dos santos (Presidente), adolpho josé Melfi, carlos eduardo negrão, douglas eduardo zampieri, eduardo cesar leão Marques, francisco antônio Bezerra coutinho, joaquim j. de camargo engler, josé arana varela, josé roberto de frança arruda, josé roberto Postali Parra, lucio angnes, luis augusto Barbosa cortez, Marcelo Knobel, Marie-anne van sluys, Mário josé abdalla saad, Marta teresa da silva arretche, Paula Montero, roberto Marcondes cesar júnior, sérgio luiz Monteiro salles filho, sérgio robles reis queiroz, Wagner do amaral caradori, Walter colli

coordENAdor cIENtíFIcoluiz henrique lopes dos santos

EdItor-chEFE neldson Marcolin

EdItorES fabrício Marques (Política), Marcos de oliveira (Tecnologia), ricardo zorzetto (Ciência); carlos fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe ciais); Bruno de Pierro e dinorah ereno (Editores-assistentes)

rEvISão daniel Bonomo, Margô negro

ArtE Mayumi okuyama (Editora), ana Paula campos (Editora de infografia), Maria cecilia felli e alvaro felippe jr. (Assistente)

FotógrAFoS eduardo cesar, léo ramos

MídIAS ElEtrôNIcAS fabrício Marques (Coordenador) INtErNEt Pesquisa FAPESP onlineMaria guimarães (Editora)rodrigo de oliveira andrade (Repórter)

rádIo Pesquisa BrasilBiancamaria Binazzi (Produtora)

colAborAdorES alexandre affonso, ana lima, daniel Bueno, evanildo da silveira, fábio zimbres, juliana sayuri, igor zolnerkevic, ivan vilela, loredano, luisa gleiser, Márcio ferrari, Maria hirszman, Mauro de Barros, Pablo nogueira, Pedro hamdan, valter rodrigues, veridiana scarpelli, yuri vasconcelos

é ProIbIdA A rEProdUção totAl oU PArcIAl dE tExtoS E FotoS SEM PrévIA AUtorIzAção

PArA FAlAr coM A rEdAção (11) [email protected]

PArA ANUNcIAr Midia office - júlio césar ferreira (11) 99222-4497 [email protected] Classificados: (11) 3087-4212 [email protected]

PArA ASSINAr (11) 3087-4237 [email protected]

tIrAgEM 43.700 exemplaresIMPrESSão Plural indústria gráficadIStrIbUIção dinaP

gEStão AdMINIStrAtIvA instituto unieMP

PESQUISA FAPESP rua joaquim antunes, no 727, 10o andar, ceP 05415-012, Pinheiros, são Paulo-sP

FAPESP rua Pio Xi, no 1.500, ceP 05468-901, alto da lapa, são Paulo-sP

secretaria de desenvolviMento econôMico,

ciência e tecnologia govErNo do EStAdo dE São PAUlo

issn 1519-8774

fundação de aMParo à Pesquisa do estado de são Paulo

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8 | março DE 2015

DaDos E projEtos

temáticos investigação dos efeitos insulinotrópicos, insulinomiméticos e endoteliais da taurina em células/tecidos submetidos à restrição in vitro de aminoácidos: uma abordagem integrada e multifocalPesquisador responsável: Everardo Magalhaes Carneiroinstituição: Instituto de Biologia/UnicampProcesso: 2014/01717-9Vigência: 01/02/2015 a 31/01/2019

consequências ecológicas da defaunação na mata AtlânticaPesquisador responsável: Mauro Galetti Rodrigues instituição: Instituto de Biociências de Rio Claro/UnespProcesso: 2014/01986-0

temáticos e JoVem PesquisAdor recentesProjetos contratados em janeiro e fevereiro de 2015

Vigência: 01/02/2015 a 31/01/2019

Valor nutritivo e qualidade higiênico-sanitária de plantas e grãos de milho sob efeito de estratégias de ensilagemPesquisador responsável: Luiz Gustavo Nussioinstituição: Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz/USPProcesso: 2014/06819-4Vigência: 01/02/2015 a 31/01/2019

devil (promovendo segurança alimentar com disponibilidade restrita de terra). (FAPesP-Belmont Forum)Pesquisador responsável: Jean Pierre Henry Balbaud Omettoinstituição: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais/MCTI

Fonte: National Science Foundation, National Center for Science and Engineering Statistics, Higher Education Research and Development Survey, FY 2013

disciplinas us$ milhões %

Ciências 52.765,52 78,55

Engenharia 10.737,84 15,99

Outras 3.670,06 5,46

ciências us$ milhões %

Ciências da Vida 37.631,31 7 1,32

Ciências Físicas 4.664,31 8,84

Ciências do Ambiente 3.208,98 6,08

Ciências Sociais 2 .175,7 7 4,12

Ciência da Computação 2.073,18 3,93

Outras Ciências 1.179,79 2,24

Psicologia 1.157,50 2,19

Matemáticas 674,69 1,28

recursos para P&d nas universidades norte-americanasInvestimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D) em instituições de ensino superior por fonte e disciplina nos Estados Unidos (2013)

investimento em P&d us$ milhões %

Governo federal

39.535,20 58,86

Recursos institucionais

15.0 11 ,61 22,35

Organizações sem fins lucrativos

3.874,14 5,77

Governos locais e estaduais

3.666,94 5,46

Setor privado

3.505,55 5,22

Todas as outras fontes

1.579,98 2,35

total 67.173,42 100,00

Processo: 2014/50627-2Vigência: 01/01/2015 a 31/12/2018

JoVem PesquisAdorHippo-YAP como uma via de convergência dos sinais bioquímicos e mecânicos provenientes da matriz extracelular durante a morfogênese da glândula mamária e a progressão do câncer de mamaPesquisador responsável: Alexandre Bruni Cardosoinstituição: Instituto de Química/USPProcesso: 2014/10492-0Vigência: 01/11/2014 a 31/10/2018

Vida sem carnosina: desenvolvimento e

caracterização de um modelo de rato nocaute para estudo do papel fisiológico da carnosina e suas implicações para o exercício físico e metabolismo muscularPesquisador responsável: Guilherme Giannini Artioliinstituição: Escola de Educação Física e Esporte/USPProcesso: 2014/11948-8Vigência: 01/02/2015 a 31/01/2019

Biodiversidade e processos microbianos em ecossistemas aquáticosPesquisador responsável: Hugo Miguel Preto de Morais Sarmentoinstituição: Centro de Ciências Biológicas e da Saúde/UFSCarProcesso: 2014/14139-3Vigência: 01/02/2015 a 31/01/2019

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Diretrizes ampliadas

Boas práticas

Uma suspeita de má conduta científica, que desde 2011 repercute na comunidade acadêmica da Dinamarca, sofreu uma reviravolta em fevereiro, quando a Justiça do país inocentou a fisiologista Bente Klarlund Pedersen, pesquisadora da Universidade de Copenhague, da acusação de conduta desonesta. A agência governamental que investiga fraudes científicas, os Danish Committees on Scientific Dishonesty (DCSD), foi condenada a pagar US$ 61 mil dos custos judiciais do processo. Em 2013, o órgão concluiu que Bente agiu “de forma negligente”, caracterizando “desonestidade científica”, ao reutilizar dados de experimentos em vários artigos e falhar em detectar manipulações de imagens em microscopia cometidas por uma pesquisadora que ela orientava. A Alta Corte do Leste da Dinamarca, porém, considerou que a pesquisadora não agiu de forma desonesta.

O caso levou à retratação de três artigos publicados pelo grupo de Bente e à publicação de uma correção num quarto artigo. Comprovou-se que ela reutilizou resultados de biópsias musculares em vários papers, sem indicar que as informações não eram inéditas, e mesclou os resultados de dois grupos que participavam de ensaios clínicos com protocolos distintos. Ela também era acusada de ser negligente com uma manipulação de imagens feita por sua orientanda Milena Penkowa, escândalo que deu início à investigação. Milena deixou a Universidade de Copenhague em 2010. A acusação levou Bente a deixar a função de editora de duas revistas científicas e de conselheira de uma instituição de pesquisa

biomédica. Ela admitiu problemas em alguns artigos, mas sempre argumentou que não agiu de má-fé e o expediente de reutilizar os resultados de biópsias musculares é prática considerada normal entre seus pares.

Os estudos de Bente abordam os efeitos do exercício sobre a fisiologia dos músculos e buscam mecanismos capazes de acelerar a recuperação muscular. Ela era consultada com frequência pela imprensa dinamarquesa em reportagens sobre os benefícios do exercício físico.

O advogado da pesquisadora, Eigil Lego Andersen, disse à revista Nature que a decisão judicial “manda uma mensagem forte” para a DCSD mostrando que nem todos os erros ou imperfeições de uma pesquisa podem ser classificados como desonestidade. “Eles precisam ter uma definição mais precisa

As Academias Nacionais dos Estados Unidos, que reúnem várias instituições representativas da comunidade científica norte-americana, publicarão ainda neste semestre um novo conjunto de recomendações para promover a integridade científica. O documento, fruto de um trabalho de dois anos, vai atualizar as diretrizes que vigoram desde 1992. Um dos novos temas contemplados será a abertura dos dados de pesquisa que abastecem os artigos científicos e a criação de softwares que facilitem o compartilhamento desses dados.

Segundo a revista Chemistry World, o comitê responsável pela revisão deverá expandir a definição de má conduta, considerando as responsabilidades não só dos pesquisadores, mas também das agências de fomento, instituições de pesquisa e periódicos. “É equivocado pensar que as adversidades podem ser resolvidas apenas afastando os indivíduos problemáticos”, afirma Paul Root Wolpe, especialista em bioética da Emory University, um dos integrantes do comitê. Evidências de que os casos de má conduta vêm sendo subestimados levaram à rediscussão das diretrizes.

do que é ou não desonestidade”, afirma. Henrik Gunst Andersen, que presidiu a DCSD durante a investigação do caso, disse que o governo dinamarquês está trabalhando para reformular os regulamentos da agência e acredita que a decisão da Justiça sobre o caso será considerada nessa revisão.

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o limite entre o erro e a desonestidade

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10 | março DE 2015

Estratégias

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) divulgou uma carta sugerindo mudanças no projeto de lei sobre biodiversidade e recursos genéticos aprovado na Câmara dos Deputados no dia 10 de fevereiro. Agora ele será apreciado pelo Senado. No documento, a entidade critica o cerceamento de direitos de certos grupos na repartição de benefícios resultantes do acesso ao conhecimento ligado ao patrimônio genético. “O projeto reconhece o direito de populações indígenas, comunidades tradicionais e pequenos agricultores de participar da tomada de decisões, mas isenta, em muitos casos, empresas e pesquisadores da obrigação de repartir os benefícios, que é a compensação econômica ao detentor do conhecimento tradicional associado à biodiversidade”, explica Helena Nader, presidente da SBPC. De acordo com o deputado federal Alceu Moreira (PMDB-RS), relator do projeto, as reuniões que antecederam à votação na Câmara tiveram a participação de entidades representativas, como

SBPC critica projeto

a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). “Não fizemos uma assembleia aberta por se tratar de um tema técnico”, diz. Outro aspecto destacado na carta da SBPC é que a repartição dos benefícios só será aplicada sobre a comercialização de produtos acabados – o que isenta empresas e pesquisadores de darem compensações antes de se chegar a um produto comercial. A SBPC questiona ainda um tópico da lei que dá a instituições estrangeiras acesso à biodiversidade brasileira, para fins de pesquisa, sem precisar se associar a uma instituição nacional, como prevê a legislação. “Isso é preocupante”, diz Helena Nader.

Benefícios da parceria

Alunos de doutorado da África que têm a oportunidade de obter duplo diploma em parcerias com universidades europeias multiplicam suas chances de publicar mais artigos científicos, diz um estudo publicado na revista PLoS Medicine. A pesquisa também mostra que as colaborações melhoram os procedimentos administrativos das instituições envolvidas. Para chegar a tais conclusões, foi

analisado um acordo de cooperação na área da saúde firmado entre a Universidade Makerere, em Uganda, e o Instituto Karolinska, na Suécia. De acordo com o estudo, a parceria permitiu a troca de experiências em colaborações científicas e em procedimentos para facilitar o apoio à pesquisa, além de inspirar mudanças em políticas de saúde em Uganda. Stefan Peterson, professor do Instituto Karolinska e coautor do trabalho, disse ao site SciDev.net que a cooperação não gerou fuga de cérebros, isto é, todos os alunos africanos que estiveram no país europeu retornaram para casa. Em 10 anos, a parceria formou 44 doutores e levou à publicação de mais de 500 artigos científicos – a maioria com um ugandense como primeiro autor.

Alunos da Universidade

Makerere e do Instituto

Karolinska: colaboração

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PESQUISA FAPESP 229 | 11

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O presidente da Universidade Tsinghua, de Pequim, Chen Jining, foi escolhido para o posto de maior destaque no Partido Comunista vinculado ao Ministério de Proteção Ambiental na China. A nomeação sinaliza que ele deve assumir o comando do ministério em março, quando o titular, Zhou Shengxian, vai se aposentar. Caso seu nome seja confirmado, Jining colocará sua experiência em pesquisa ambiental a serviço de um dos maiores desafios da China: reduzir massivamente a poluição do ar, da água e do solo, agravada nas últimas décadas pela forte industrialização do país. Professor do Departamento de Ciência e Engenharia Ambiental em Tsinghua, suas áreas de pesquisa são política ambiental, manejo de bacias hidrográficas e

cidades sustentáveis. A China tem feito movimentos dúbios no campo do meio ambiente. Em 2008, transformou sua agência de proteção ambiental em ministério e vem criando parâmetros mais rígidos para o controle da poluição. Mas tais regulações são frequentemente ignoradas pelas indústrias. Para Ma Tianjie, diretor do Greenpeace para a Ásia Oriental, Jining é uma boa escolha para o ministério. “Há uma ânsia dos chineses por respirar um ar mais limpo”, diz. Segundo ele, Jining tem consistência científica e deve conseguir resultados.

Mutirão contra crise hídrica

Os reitores das universidades de São Paulo (USP), Estadual Paulista (Unesp), Estadual de Campinas (Unicamp), Federal de São Paulo (Unifesp), Federal de São Carlos (UFSCar) e Federal do ABC (UFABC) criaram um fórum com o objetivo de reunir pesquisas e desenvolver novas tecnologias para enfrentar a crise hídrica na região Sudeste do país. Em carta, os reitores colocam à disposição dos governos municipal, estadual e federal a experiência dos pesquisadores que se dedicam, nessas universidades, ao estudo dos recursos

Miudezas da viagem à lua

Uma bolsa usada pelo astronauta norte--americano Neil Armstrong em sua his-tórica viagem à Lua, em julho de 1969, foi apresentada ao público no mês pas-sado. O objeto foi encontrado em um armário pela viúva de Armstrong, Carol, após a morte dele em 2012. O conteúdo da sacola, que incluía uma câmera fo-tográfica, fios elétricos, correias e fer-ramentas, foi analisado por curadores

do Smithsonian National Air and Space Museum em Washington, Estados Uni-dos. A conclusão dos especialistas é de que a bolsa acompanhou mesmo Arms-trong no módulo lunar Eagle, que pousou na superfície lunar. Armstrong, que via-jou com os astronautas Buzz Aldrin e Michael Collins a bordo da Apollo 11, foi o primeiro homem a pisar na Lua. Trans-crições de uma conversa entre Arms-

trong e Collins na época ajudaram a confirmar a autenticidade do material: “Aquilo é apenas um monte de lixo que queremos levar de volta – peças do mó-dulo lunar e miudezas”, disse Armstrong. Um consultor em assuntos espaciais ouvido pela rede de televisão CBS, Bill Harwood, afirmou que somente a câme-ra alcançaria US$ 1 milhão em leilões de relíquias históricas.

hídricos, para melhor planejar a adaptação às ações gerais de contingência. “Ressaltamos o papel de nossas instituições frente à atual crise hídrica e declaramos que estamos articulados e mobilizados para propor ações conjuntas que visam enfrentar os cenários que se desenham em curto, médio e longo prazos”, diz a carta. Os reitores propõem a criação do Painel Técnico-acadêmico de Recursos Hídricos, para trabalhar em conjunto com governos, nos moldes do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC).

Ar fresco na China

Chen jining: pesquisador cotado para o Ministério de Proteção Ambiental

objetos guardados por

Armstrong: a câmera

pode valer US$ 1 milhão

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3

Page 12: Para estudar os mortos e ajudar os vivos

12 | março DE 2015

370 quilômetros. Coube ao foguete norte-americano Falcon 9 levar o cubesat dentro da cápsula espacial Dragon, junto com mais de 250 experimentos científicos e suprimentos, à ISS em 10 de janeiro. A missão do AESP-14, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico por meio de bolsas de pesquisa e pela Agência Espacial Brasileira (AEB) no valor total de R$ 400 mil, é validar subsistemas eletrônicos e mecânicos desenvolvidos por alunos de graduação e pós-graduação do ITA (ver Pesquisa FAPESP nº 219). Trinta minutos após o lançamento do cubesat, um modem a bordo foi ativado para transmitir mensagens gravadas por cientistas brasileiros e captadas na frequência de radioamadores.

O arquipélago de Fernando de Noronha é um paraíso natural a 360 quilômetros da costa de Pernambuco. Mas a eletricidade que move a comunidade do arquipélago vem sobretudo de poluentes geradores a diesel. Sol e vento são fontes de energia abundantes por ali, porém indomadas. Não há motivo para que sejam. A velocidade dos ventos e a radiação solar estão correlacionadas por um índice que persiste na escala de tempo anual, de acordo com análises estatísticas feitas durante o mestrado de Priscilla Sales dos Anjos sob orientação da física sérvia Tatijana Stosic, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (Physica A, abril). Elas encontraram uma alternância entre a persistência do vento e da radiação solar, que

A dança do sol e do vento

tornaria produtivo o uso de equipamentos que combinem as duas fontes de energia. O resultado vem de dados coletados de 2004 a 2013, uma série temporal inédita para análise conjunta desses dois fenômenos, que também mostrou que os ventos mantêm uma persistência mais forte ao longo do tempo, em comparação com a radiação solar. Para explicar a ligação entre as variáveis, os autores sugerem que a radiação solar está por trás da formação de ventos por meio do aquecimento do solo, do mar e do ar, produzindo um gradiente de pressão que gera o vento. Este também afeta a disposição das nuvens, que modulam a luz solar que chega à Terra. Novos estudos devem avaliar o potencial de energias alternativas.

Inpe e ITA desenvolveram

nanossatélite que foi lançado

da estação espacial ISS

TEcnociência

Cubesat entra em órbita

O cubesat AESP-14, nanossatélite em forma de cubo com 10 centímetros de aresta – medida que engloba altura, largura e profundidade – e cerca de 1 quilo de peso, desenvolvido em parceria entre o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), foi lançado no espaço no dia 5 de fevereiro por meio de um braço robótico japonês a partir da Estação Espacial Internacional (ISS), plataforma que fica em órbita a uma altura de

Fernando de Noronha: física em busca de fontes de energia

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Page 13: Para estudar os mortos e ajudar os vivos

PESQUISA FAPESP 229 | 13

Mapa da chuva em São Paulo

Os pontos coloridos na tela indicam a tão esperada chuva que os paulistanos esperam nos últimos meses. A imagem que todos podem acessar no endereço www.chuvaonline.iag.usp.br é um trabalho realizado entre a Universidade de São Paulo (USP) e a empresa de meteorologia Climatempo. Por meio de dois minirradares meteorológicos, um instalado na Cidade Universitária e outro na USP Leste, nos extremos da cidade, é possível ver em que local está chovendo a cada 5 minutos em grande parte da Região Metropolitana de São Paulo. A resolução da imagem

é de 90 metros, a maior do país. “Essa resolução indica um nível de detalhamento em que, se chove forte num ponto de uma rua, a 90 metros na mesma via é possível distinguir se chove fraco lá ou não”, diz o professor Carlos Morales, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, coordenador do projeto Chuva Online. Ele conta que os radares foram comprados de uma empresa italiana e cada um custou R$ 300 mil (um pago pela USP e outro pela Climatempo). Morales explica que na USP foi desenvolvido o software que faz a análise dos dados

Vacina para tratar Chagas

Um composto desenvolvido no Brasil e candidato à vacina terapêutica contra a doença de Chagas protegeu 80% dos camundongos contaminados pelo parasita que a causa. Os animais tratados apresentaram a mesma longevidade dos animais sem a enfermidade (PLoS Pathogens, 24 de janeiro). Em contrapartida, todos os roedores que fizeram parte de um terceiro grupo – infectados, mas não tratados – morreram no fim dos 250 dias do experimento. A vacina também diminuiu em cinco vezes a carga parasitária dos roedores infectados e reduziu para 33% a incidência de arritmia cardíaca, que em geral afeta 100% dos animais com o parasita. Coordenado por Maurício Martins Rodrigues, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o estudo inclui um grupo do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Vacinas (INCTV), do qual participa a biofísica Joseli Lannes-Vieira, autora principal do artigo.

principalmente em relação aos eventos do tempo como níveis de chuva, granizo, e que possibilita o cruzamento de dados com alagamentos e inundações. Os dois radares já estão conectados com os sistemas de monitoramento e defesa civil da cidade e serão importantes também no ensino de meteorologia e na previsão de chuvas em curtíssimo prazo. Um terceiro radar já está previsto para ser instalado no Parque da Água Funda, em frente ao zoológico de São Paulo, onde o IAG mantém uma estação meteorológica.Fo

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Imagem de uma tarde chuvosa: a gradação mostra a intensidade entre as cores azul, fraca, e vermelho, forte

o lado medicinal das frutas

Açaí, acerola, cajá, goiaba, graviola, man-ga, abacaxi, tamarindo. O Brasil tem frutas para todos os gostos, mas outros atributos também são importantes nes-ses tempos em que se valorizam as pro-priedades funcionais dos alimentos. Em seu doutorado na Universidade Federal do Ceará, com um período no Instituto Politécnico do Porto, em Portugal, Mário Paz testou as atividades antioxidante e antibacteriana da polpa dessas oito fru-tas (Food Chemistry, abril de 2015). A acerola e o açaí foram as campeãs em propriedades antioxidantes, que podem ser importantes na proteção contra doen-ças cardiovasculares e certos tipos de câncer, por exemplo. Nessa categoria, o abacaxi e o tamarindo foram as frutas menos bem cotadas. As posições nessa classificação foram invertidas quanto à atividade antibacteriana, que pode am-

pliar a durabilidade do alimento: o tama-rindo apresentou boa ação contra todas as bactérias testadas, inclusive Salmo-nella e Escherichia coli, importantes agen-tes de infecções alimentares, e o açaí teve ação fraca contra microrganismos. Não é o caso de se transformar a frutei-ra em farmácia, mas o estudo sugere que o tamarindo deveria ser mais estudado para entrar na composição de alguns medicamentos contra doenças humanas e de animais.

Açaí: bom antioxidante, mau bactericida

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14 | março DE 2015

Imagens de ressonância 7 Tesla (abaixo) e o equipamento da FM-USP: ambiente fértil para pesquisa

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PESQUISA FAPESP 229 | 15

Plataforma com aparelho de ressonância

inédito na América Latina vai estudar

cadáveres para avançar no diagnóstico e

na compreensão de doenças

A morteexplica

a vida

cAPA

No início da tarde do dia 13 de março, uma nova research facility da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) será inau-gurada, no intervalo de um encontro científico internacional sobre mapeamento cerebral. Bati-

zado de Plataforma de Imagem na Sala de Autópsia (Pisa), o laboratório foi instalado numa construção subterrânea de 500 metros quadrados, escavada num terreno contíguo à sede da FM-USP, e abriga o Magnetom 7T MRI, primeiro equipamen-to de ressonância magnética para corpo inteiro com campo de 7 Tesla da América Latina. O equipamento será utilizado principalmente no estudo de cadáveres recebidos pelo Ser-viço de Verificação de Óbitos da Capital (SVOC), que é man-tido pela USP e realiza em torno de 14 mil autópsias por ano relativas a mortes naturais (as mortes violentas estão a cargo do Instituto Médico Legal). Um dos objetivos das pesquisas é desenvolver técnicas de diagnóstico por imagem que ajudem a identificar a causa da morte de modo menos invasivo do que uma autópsia convencional. Os estudos com os mortos prome-tem ajudar os vivos, ao propiciar avanços em diagnóstico e na compreensão de doenças. “Na área de diagnóstico, devemos ter retorno imediato”, diz Paulo Hilário Saldiva, professor titular de Patologia da FM-USP e coordenador do projeto. Fo

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Fabrício Marques

Page 16: Para estudar os mortos e ajudar os vivos

16 | março DE 2015

Acesso ao

Serviço de

verificação de

Óbitos da

capital (Svoc)

MAgNEtoM 7t

Plataforma de Imagem na Sala de Autópsia (Pisa)

o equipamento foi instalado numa sala com blindagem de cobre e aço silício

A sala do Magnetom 7T MRI

bobINASSão responsáveis por

emitir e receber os

sinais de radiofrequência

dos tecidos

MESAMove-se com

baixa velocidade

para não danificar

a eletrônica e

reduzir efeitos

de vertigem

nos voluntários

ProjEção dE IMAgENSUtilizada para estudos

de ressonância

magnética funcional

com pacientes vivos

blINdAgENSTeto, piso e paredes da

sala são revestidos com

placas de cobre, que

bloqueiam a interferência

de ondas de rádio vindas

do ambiente externo.

Atrás do equipamento

a parede tem proteção

extra de aço silício

tUbo dE QUENchServe para escape

do gás hélio, em

caso de emergência

SAlAS dE ENtrEvIStAFamiliares das pessoas

mortas fornecem

informações e

assinam termo de

consentimento para

exames de imagem

SAlA dE PrEPAroos cadáveres são

preparados para os

exames de imagem.

Também pode ser usada

para treinamento de

médicos e estudantes

Túnel de

acesso ao

Hospital das

clínicas

SAlA dE PESQUISAPesquisadores usarão as bancadas

desta sala para desenvolvimento

de novos instrumentos para a

ressonância, como suas bobinas

ExPErIMENtAção ANIMAlÁrea para manejo e controle

fisiológico de animais

de laboratório utilizados

em pesquisas na sala

de ressonância

SAlA dE coMANdoLocal de onde o

equipamento de

ressonância magnética

é controlado

SAlA MUltIFUNcIoNAlreceberá parte do staff do

laboratório e, eventualmente,

se transformará em sala de aula

o novo laboratório, que abriga a primeira ressonância magnética 7 Tesla da América Latina, foi construído numa área de 500 metros quadrados

n circulação livre

n Acesso do staff e pesquisadores, com treinamento básico em segurança

n Acesso restrito a profissionais com treinamento avançado em segurança e no uso do equipamento

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5 5

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1 Máquinas; 2 rack; 3 depósito; 4 Elétrica; 5 Sanitários; 6 vestiários; 7 Sala técnica; 8 recepção

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PESQUISA FAPESP 229 | 17

Saldiva se refere a doenças que atingem órgãos difíceis de estudar enquanto o paciente está vivo, uma vez que a retirada de tecidos é arriscada. “Nunca se fez tanta quimioterapia como hoje e alguns pacientes acabam apresentando proble-mas cardíacos, porque há drogas tóxicas para o coração. Uma ideia é submeter pessoas que mor-reram desses problemas cardíacos a uma autópsia minimamente invasiva e obter amostras pontuais de tecidos do coração. Esse trabalho pode ser fei-to rapidamente, em 15 ou 20 minutos, atrasando pouco a liberação do corpo para a família.”

Entre as possibilidades que se abrem, Saldiva também cita pesquisas sobre os chamados nódulos pulmonares solitários que apare-

cem isoladamente em exames de diagnóstico, mas sobre os quais se sabe pouco, pois na maior parte das vezes não há indicação de biópsia. Os pacientes têm que fazer exames de controle. Será possível retirar amostras desses nódulos em au-tópsias minimamente invasivas e gerar informa-ção sobre suas características. O diretor do SVOC, Carlos Augusto Pasqualucci, que é professor do Departamento de Patologia da FM-USP, ressalta as múltiplas abordagens do projeto. “Nossa ex-pectativa é de que promova um aperfeiçoamen-to da investigação da causa das mortes naturais e torne mais sensíveis exames de diagnósticos de doenças”, diz. “A ideia é utilizar as imagens de ressonância obtidas para que os radiologistas compreendam melhor a natureza de alterações em órgãos e tecidos e façam diagnósticos melhores.”

“Vamos trabalhar com as famílias um outro con-ceito de doação, a de conhecimento, mostrando a importância do estudo de cadáveres para avançar na compreensão de doenças”, afirma Paulo Saldi-va. “Há outros equipamentos de 7 Tesla no mun-do, mas nenhum opera num ambiente fértil para pesquisa como o nosso.” O diretor da Faculdade de

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Como funciona a ressonância magnética de 7 Tesla

bobINAS dE grAdIENtEo gradiente é responsável

por codificar espacialmente

o sinal para identificar a

informação em cada região

EMISSão dE oNdASBobinas transmissoras

são responsáveis

por emitir ondas

de radiofrequência

de 300 MHz que

excitam os átomos

de hidrogênio

do tecido humano

1 2 3colEtA dA INForMAçãoos átomos de

hidrogênio absorvem

energia e a reemitem.

A bobina receptora

detecta o sinal e envia

para computadores

na sala técnica

ProcESSAMENto E gErAção dAS IMAgENSo sinal é processado

matematicamente

e as imagens

enviadas para os

computadores

da sala de comando

locAlIzAção

Túnel de exames com 3,2 m

PISA

Faculdade de Medicina

Avenida dr. Arnaldo

rua dr. Eneas de carvalho Aguiar

3tesla 7 testla

A quantidade de prótons do

tecido humano que contribuem

para gerar imagens aumenta

conforme a intensidade

do campo magnético. Por isso,

o 7 Tesla tem maior detalhamento

para medidas estruturais e

funcionais do organismo humano

Page 18: Para estudar os mortos e ajudar os vivos

18 | março DE 2015

Medicina da USP, José Otávio Costa Auler Junior, define o Pisa como “um projeto inovador, compe-titivo, multidisciplinar e de convergência tecno-lógica, com aspecto multiusuário, já que agrega diferentes grupos de pesquisa em torno do mesmo objetivo”. Segundo ele, a iniciativa permitiu a in-tegração com estruturas do Hospital das Clínicas (HC) e se tornou modelo de gestão para futuros projetos do sistema acadêmico da FM-USP e do HC. “Pesquisadores, técnicos e administradores de várias unidades e instituições trabalharam juntos e arduamente para desenvolver o Pisa, financiado com recursos públicos”, afirma.

o custo do equipamento foi de U$ 7,695 mi-lhões e envolveu recursos da FAPESP, da USP e da Fundação Faculdade de Medici-

na. Fabricado na Alemanha e na Inglaterra, o Mag-netom 7T MRI é um equipamento de ultra-alto campo que oferece maior nível de sensibilidade e detalhamento para medidas estruturais e funcio-nais do organismo humano com ressonância mag-nética, tecnologia de diagnóstico por imagens que possibilita identificar propriedades de uma subs-tância do corpo humano de modo não invasivo. As bobinas do aparelho interagem com os tecidos, em seu interior, utilizando ondas eletromagnéticas. Em seguida, são construidas as imagens, decodifi-cando o sinal recebido dos átomos de hidrogênio da água que compõe o corpo humano. Tesla (ho-menagem a Nikola Tesla, inventor que fez grandes

contribuições para a utilização da eletricidade e do magnetismo) é uma unidade de medida do campo magnético. A precisão das imagens geradas por um equipamento 7 Tesla, traduzida na resolução e na capacidade de discernir alterações, é mais de 5,4 vezes superior à de equipamentos 3 Tesla e 21 vezes superior à de aparelhos 1,5 Tesla utilizados em hospitais. Um aumento de duas vezes no campo magnético quadruplica a precisão das imagens. O padrão 7 Tesla ainda não foi liberado para fins clí-nicos, mas já está sendo usado em vários centros de pesquisa no mundo. O Magnetom 7T MRI foi adquirido no âmbito do Programa Equipamentos Multiusuários (EMU) da FAPESP, voltado para a compra de equipamentos de última geração que se tornam disponíveis para um amplo número de pesquisadores, de instituições do Brasil e até do exterior, cujos projetos são selecionados segundo critérios rigorosos.

Num primeiro momento, mais de 20 proje-tos de pesquisa se beneficiarão da nova facility – alguns deles estão em andamento e utilizam imagens feitas por um equipamento de tomo-grafia computadorizada instalado no SVOC. O conjunto será composto também por ultrassom e raios X. O tomógrafo foi adquirido com recur-sos da Pró-reitoria de Pesquisa dentro do projeto do Núcleo de Pesquisa Integrada em Autópsia e Imagenologia (Nupai). Um dos projetos mais am-biciosos talvez seja o Brazilian Imaging and Au-topsy Study (Bias), coordenado por Saldiva, que

o Magnetom 7T MrI: fabricado na Alemanha

e na Inglaterra pela Siemens, ainda não teve

uso clínico autorizado

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PESQUISA FAPESP 229 | 19

busca criar alternativas para autópsias invasivas utilizando o diagnóstico por imagem. O trabalho de validação de novos métodos vai se basear em estudos comparativos. A estratégia é, com o con-sentimento da família do paciente morto, subme-ter o cadáver à ressonância magnética e depois à autópsia convencional, e comparar resultados dos dois procedimentos. Um dos projetos interna-cionais a que o equipamento dará suporte é o da autópsia verbal, programa de compu-tador que busca esclarecer as causas da morte de um indivíduo fazendo um con-junto de perguntas a seus fa-miliares. “É um recurso que está sendo usado em lugares remotos, onde não há médi-cos para verificar a causa de uma morte natural”, explica Saldiva. Os resultados des-se questionário também se-rão comparados às imagens de ressonância e à autópsia convencional, para avaliar até que ponto ajudam a de-terminar a causa da morte.

Paulo Saldiva conta que o Ministério da Saúde planeja ampliar a oferta de serviços de verificação de óbitos no Brasil, de forma a ter um deles para cada grupo de 3 milhões de habitantes. “Uma limitação é a falta de patologistas”, diz. “Fazer autópsia não é um trabalho muito atraente para os médicos: é preciso estudar bastante, o trabalho toma tempo e não é bem remunerado.” Melhorar a qualida-de da assistência por meio de técnicas de ima-gem ajudaria a amenizar o problema. “Há mais tomógrafos que salas de autópsia em hospitais, assim como é comum haver mais radiologistas disponíveis do que patologistas”, pondera Saldi-va. Os pesquisadores não vão partir do zero. Esse trabalho vem sendo desenvolvido no tomógrafo computadorizado disponível no SVOC, onde 900 exames post mortem foram realizados, sendo 300 deles com angiografia do corpo inteiro, técnica por meio da qual se injeta líquido de contraste na circulação sanguínea do cadáver em busca de evidências que ajudem a definir a causa da morte.

Os estudos comparativos, observa Saldiva, po-dem ajudar no controle de qualidade hospitalar. “Uma pesquisa feita sobre a acurácia dos atesta-dos de óbito mostrou que há taxa de desconformi-dade de 20%, ou seja, em 20% dos casos a causa da morte apontada não é a real. O conhecimen-to gerado pela plataforma Pisa poderá ajudar a determinar se o atendimento hospitalar fez tudo o que poderia fazer pelo paciente que morreu.”

Os projetos de pesquisa em curso que se bene-ficiarão com a nova plataforma envolvem estudos de doenças cardiovasculares, pulmonares, oncoló-gicas, neurológicas e obstétricas e a investigação de técnicas de imagem avançadas. “Em comum, todos esses projetos trabalham com imagens post mortem e validação de técnicas de diagnóstico microscópicas e macroscópicas”, afirma Edson

Amaro Júnior, professor do Departamento de Radiologia da FM-USP e um dos mem-bros do comitê gestor da ini-ciativa. A equipe do proje-to Pisa vai atuar em parce-ria com pesquisadores dos Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, Holanda e Israel, que formaram uma rede glo-bal interligada virtualmen-te. As colaborações incluem, por exemplo, Kamil Uludag, professor do Departamento de Neurociência Cognitiva da Universidade de Maas-tricht, na Holanda, cujo la-boratório também trabalha com imageamento cerebral com ressonância 7 Tesla. Ou ainda os alemães Waldemar Zylka, professor da Univer-sidade de Ciências Aplicadas

de Gelsenkirchen, que há tempos colabora com a USP, e Harald H. Quick, professor da Universida-de de Duisburg-Essen, um dos primeiros centros a utilizar equipamentos de 7T de corpo inteiro. Peter Morris, da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, é um dos parceiros de pesquisadores do Instituto de Física da USP em São Carlos e da Universidade Estadual de Campinas no desenvol-vimento de bobinas para o equipamento 7 Tesla.

h á dez anos a FM-USP mantém o que se tor-nou o maior banco de cérebros do mundo, com mais de 3 mil órgãos. Cerca de 350

são coletados a cada ano por meio de doações. O neurocientista alemão Helmut Heinsen, da Uni-versidade de Würzburg, veio em outubro do ano passado para o Brasil trabalhar no banco de cé-rebros durante dois anos. Ele utiliza uma técnica que mergulha o órgão numa substância chamada celoidina, derivada da celulose, que ganha uma consistência plastificada. Depois, ele é seccionado em fatias de menos de 1 milímetro de espessura que abastecem estudos sobre doenças neuroló-gicas e degenerativas. Também esse projeto terá uma interface com a plataforma Pisa: antes de se-rem seccionados, os cérebros serão submetidos à ressonância 7 Tesla, e as imagens produzidas serão comparadas com as obtidas pelo uso da celoidina.

“vamos trabalhar com o conceito de doação de conhecimento, mostrando como o estudo do cadáver ajudará a entender doenças”, diz Saldiva

1

38 tÉ o peso do equipamento magnetom 7T

14milautópsias são realizadas por ano no Serviço de Verificação de Óbitos da Capital (SVoC)

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20 | março DE 2015

O projeto terá outras vertentes, como a do en-sino médico. “O impacto dessas imagens na for-mação dos médicos será grande, num momento em que o currículo da FM-USP está sendo re-novado e há uma convergência progressiva en-tre a patologia e a radiologia”, diz Edson Amaro Júnior. A produção de material didático, como novos atlas de anatomia, e a possibilidade de comparar imagens de órgãos ou tecidos sadios e alterados prometem melhorar a formação dos profissionais de medicina.

A planta do laboratório foi desenhada para viabilizar todas as atividades previstas. Depois da recepção, há duas pequenas

salas, destinadas à realização de entrevistas com familiares do indivíduo morto para coleta de infor-mações e obtenção do consentimento para a par-ticipação em pesquisas (ver infográfico na página 16). Em outra entrada, há uma sala para prepara-ção do cadáver. Ao lado da sala do equipamento de ressonância magnética há um espaço destinado à experimentação animal – painéis instalados na parede construídos de forma a não comprometer a blindagem da sala vão intercambiar dados com experimentos feitos do lado de fora.

As instalações contam também com um es-paço maior para treinamento – que poderá fun-cionar para aulas –, uma sala de comando e di-versas outras para acondicionar equipamentos de apoio, como o ar-refrigerado, e os chillers, aparelhos que fornecem de maneira contínua água gelada para o resfriamento do hélio gaso-

so e de outros instrumentos do equipamento de ressonância magnética. O hélio precisa ser mantido em estado líquido, a 269 graus Celsius negativos, para garantir propriedades super-condutoras à bobina do equipamento e gerar o campo magnético.

A plataforma Pisa começou a nascer em 2009, quando Paulo Saldiva e Edson Amaro Júnior, nu-ma conversa casual, cogitaram trabalhar juntos fazendo pesquisa com imagens de mortos. Sal-diva tomou a iniciativa de procurar a direção da FM-USP e pedir algum tomógrafo que estivesse sendo desativado para usar no SVOC. Conseguiu. Depois apresentou um projeto ao Programa Equi-pamentos Multiusuários para a aquisição de uma máquina de ressonância magnética moderna, campo de 3 Tesla. A FAPESP aprovou o projeto. O interesse de diversos grupos da faculdade em participar da iniciativa levou a uma reavaliação de seu escopo – e surgiu a ideia de trabalhar com um equipamento 7 Tesla. “Pedimos contrapartidas maiores da USP e da faculdade e as coisas foram se viabilizando”, lembra Edson Amaro. Um con-vênio entre a FAPESP, a FM-USP e a Fundação Faculdade de Medicina foi celebrado em 2012.

Em maio de 2012 foi definido o projeto arqui-tetônico da plataforma, num terreno que servia de estacionamento e de passagem de pedestres atrás da sede da FM-USP. Por se tratar de uma área tombada, a opção foi construir um laborató-rio subterrâneo, que teria um ano para ser cons-truído, conforme previsto num cronograma feito pela Siemens. “Fazíamos reuniões semanais para

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PESQUISA FAPESP 229 | 21

a obra não atrasar”, lembra Marina Caldeira, gerente de inovação da FM-USP e responsável pelo acompa-nhamento do projeto. Uma empresa de gerenciamento foi contratada para monito-rar a construção e algumas mudanças no projeto foram necessárias. As instalações da plataforma Pisa ficam ao lado do SVOC e a ideia era conectar o novo laboratório ao túnel subterrâneo que li-ga o Hospital das Clínicas ao SVOC, por onde as pessoas que morrem no hospital são transportadas. Descobriu-se que o túnel estava mais próximo da superfície que o imaginado e a planta foi adaptada.

Enquanto o prédio ia sendo construído, o se-tor de importação da FAPESP organizou os trâmites para a aquisição do equipamento,

uma das compras de valor mais elevado já feitas pela Fundação. A tarefa de comprar os equipa-mentos e trazê-los para São Paulo foi coordenada por Rosely Aparecida Figueiredo Prado, a Rose, gerente de importação e exportação da FAPESP. A negociação do contrato, feita no segundo se-mestre de 2012, durou alguns meses. “Algumas cláusulas do contrato da Siemens não se aplica-vam a uma instituição como a FAPESP e tiveram de ser modificadas”, diz Rose. O início formal do processo ocorreu em 12 de novembro de 2012.

O equipamento foi fabricado pela Siemens em dois países: o magneto veio da Inglaterra e o con-junto da ressonância, da Alemanha. O desafio foi tentar combinar os prazos para fabricação e trans-porte com o cronograma de construção das ins-talações do laboratório. Rose queria embarcar as duas partes do equipamento num mesmo navio, mas isso se mostrou inviável.

Os dois navios com os equipamentos chegaram ao porto de Santos com poucos dias de diferença. Enquanto o conjunto alemão zarpou no dia 6 de

outubro de 2014 e chegou a Santos no dia 23, o magneto deixou a Inglaterra no dia 2 e desem-barcou no dia 29. No dia 3 de novembro, a carga já estava desembaraçada, mas se optou por dei-xá-la mais alguns dias nos armazéns da empresa Deicmar, em Santos, porque faltava blindar a sala onde o equipamento seria montado.

Faltavam poucos meses para a chegada dos equipamentos quando se iniciou o processo de importação de matéria-prima para blindagem, composta de placas especiais de cobre, lã de ro-cha e aço silício. A fornecedora escolhida foi a

ETS Lindgren, dos Estados Unidos, ao custo de US$ 123 mil. Para agilizar o transpor-te, optou-se por trazer todo o material por avião. Em 8 de novembro, quatro cami-nhões subiram a serra com o equipamento de ressonância desmontado e o entregaram na FM-USP. Um grande teste viria nesse dia A estiagem em São Paulo em 2014 ajudou na construção do laboratório, mas a primeira grande chuva colocou à prova o sistema de escoamento. A água chegou a invadir a plataforma, mas foi contida e o problema so-lucionado. Quatro dias de-

pois o material para blindagem, desembarcado no Aeroporto de Viracopos, chegava à faculdade.

O içamento do Magnetom 7T MRI aconteceu no dia 25 de novembro. Como o espaço para manobra ao redor da FM-USP é pequeno, foram necessários dois guindastes para levantar o aparelho e colocá-lo dentro da plataforma através de um vão aberto no teto, tampado em seguida. A cada etapa do proces-so as pessoas envolvidas discutiam as dificuldades que teriam pela frente – e o professor Saldiva en-cerrava a conversa com um bordão: “Vamos rezar para a Nossa Senhora Desatadora de Nós”. No dia do içamento alguém se lembrou de colocar uma imagem da Virgem, alvo de culto numa igreja ale-mã há mais de 300 anos, dentro do equipamento de ressonância. Às vésperas da inauguração da plataforma, Saldiva comentava que o percurso foi longo, mas as circunstâncias jogaram a favor da iniciativa. “Todas as pessoas a quem mostramos o projeto deram apoio e concordaram que a ideia era boa. Em vez de colocar obstáculos, propunham soluções. Isso é raro acontecer”, afirma. n

ProjetoPlataforma de Imagem na Sala de Autópsia (n. 2009/54323-0); Mo-dalidade Programa Equipamentos Multiusuários; Pesquisador respon-sável Paulo Hilário Saldiva (FM-USP); Investimento r$ 10.352.243,31 (FAPESP).Fo

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na sequência, o equipamento no porto de Santos; sua chegada à FM-USP; blindagem da sala de exames com aço silício; três momentos do içamento da máquina para instalação no laboratório; a colocação do teto; e o acabamento final da sala

A produção de material didático, como novos atlas de anatomia, promete melhorar a formação dos médicos

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entrevista

Carlos Fioravanti

Foto Léo ramos

Enquanto aguardava a resposta a seu pedido de rein-gresso no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), Etelvino Bechara dizia que estava sem laboratório, sem dinheiro para fazer pesquisa e sem

estudantes com quem pudesse dividir o trabalho. Ele nunca deixou, porém, de explorar os caminhos que se abriam à sua frente – desde que deixou Caparaó, vilarejo de Minas Gerais onde nasceu e aprendeu a ler e escrever, em uma escola no-turna, com adultos, à luz de lampião. Muitos anos mais tarde, no início de fevereiro, ele fazia a revisão final em um artigo publicado duas semanas depois na revista Science mostrando como compostos químicos muito reativos, chamados radicais livres – neste caso formados a partir da fragmentação do pig-mento da pele, a melanina –, contribuem para a continuidade dos danos ao DNA mesmo depois de horas de exposição direta ao sol (ver reportagem na página 62).

Bechara trabalha com radicais livres desde o doutorado, conduzido sob a orientação do químico italiano Giuseppe Cilento, uma das referências da excelência científica da USP na década de 1970. Aos poucos Bechara verificou que os ra-dicais livres participavam de fenômenos biológicos fascinan-tes, como os cupinzeiros luminosos do Parque das Emas, em Goiás, e ajudavam a causar ou agravar várias doenças. “Me inspiro com as coisas que vejo nos jornais ou nas conversas

Etelvino José Henriques Bechara

idade 70 anos

espeCiaLidade Químio e bioluminescência; radicais livres

Formação Instituto de Química (IQ) da Universidade de São Paulo (graduação e doutorado), Universidades Johns Hopkins e Harvard (pós-doutorado)

instituição Instituto de Química da USP (1971-2008), Universidade Federal de São Paulo (2008-14)

produção CientíFiCa 175 artigos científicos, 1 livro e 10 capítulos de livros

sobre vaga-lumes e doenças mentaisQuímico elucidou a ação de compostos muito

reativos, os radicais livres, nas células, em distúrbios

psiquiátricos e em cupinzeiros luminosos

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com as pessoas”, diz ele. O fascínio pe-lo desconhecido o motivou a fazer ou acompanhar trabalhos de campo na Vila Parisi, em Cubatão, um dos lugares mais poluídos do mundo na década de 1970, depois em hospitais psiquiátricos, em fábricas de sapatos e de baterias para carros e, recentemente, em um centro de reabilitação de adolescentes em confli-to com a lei de Bauru, interior paulista, associando a intoxicação por chumbo – mais uma vez por meio dos radicais livres – a problemas mentais.

Pai de quatro filhos e avô de quatro netos, Bechara foi professor da USP por 37 anos, coordenou o planejamento e a implantação de cursos de graduação e de pós-graduação na unidade de Dia-dema da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e teve de se aposentar do serviço público ao completar 70 anos, em de-zembro de 2014. Agora, pre-tende voltar à USP como pro-fessor sênior para não deixar de fazer pesquisa e conviver com os colegas e os estu-dantes. Bechara é o primei-ro nome de seu avô materno, libanês que chegou ao Brasil em 1905. Henriques é do pai português.

Ao rever sua trajetória pessoal e profissional no es-critório de seu amplo aparta-mento no bairro da Lapa, em São Paulo, de onde se pode ver ao longe os prédios e as árvores da Cidade Universi-tária, cercado por sua cole-ção de pinturas de artistas populares que ele comprou ou ganhou em viagens, quem primeiro lhe vem à mente é uma antiga professora, Ilza Campos Sad.

Quem foi Ilza Sad?Foi uma maravilhosa professora de gi-násio em uma escola pública de Ma-nhuaçu, interior de Minas, limite com Espírito Santo. Dona Ilza dava aula de ciência e de geografia, foi ela que des-pertou em mim o interesse pela nature-za e pelo homem, nas aulas de geografia humana e econômica, e tudo de modo muito natural, coletando latinhas para fazer um alambique e construindo pe-quenos objetos de madeira para provar as leis da física. Ela era tão espetacu-

lar que organizou um jornal chamado A hora do estudante na rádio da cidade, e durante uma hora a gente conversava com outros moradores sobre literatura, ciências, sobre tudo. Foi um primeiro momento em que fui despertado para o mundo. Depois, viajei muito, e sempre mandava um cartão-postal de onde eu estava para ela, contando o que estava fazendo. Ela fundou em Manhuaçu a Casa de Cultura e me contaram que ela expunha lá todos os cartões que mandei. Antes disso, quando terminei o ginásio, parei de estudar, porque não havia cur-so científico na cidade. À noite eu fazia um curso técnico de contabilidade. Um ano depois, em 1961, passei no exame para o curso técnico agrícola em Viçosa [MG]. Era um curso integral. Tive sorte,

porque os professores eram também da universidade federal, na época Univer-sidade Rural do Estado de Minas Gerais, hoje Federal de Viçosa. Minha família já tinha migrado para São Paulo. Eu ti-nha quatro irmãos, cada um com seu emprego e contribuíam para o sustento da família. Quando vim também, fui tra-balhar como peão em um laboratório de química em uma fábrica em Ermelino Matarazzo. Minha sorte é que o chefe do laboratório, Alexander Dubson, ti-nha sido professor em universidades de Moscou, Roma e Pequim. Quando per-cebeu meu interesse, ele se apropriou de mim como aluno, deu vazão a toda a frustração de não ser mais professor e de estar trabalhando numa indústria

e me ensinou muita química. No início eu fazia controle de qualidade, mas dois meses depois de chegar, com a ajuda de-le, fui para a pesquisa de métodos que a fábrica poderia utilizar para analisar ácido sulfúrico e outras matérias-pri-mas, usadas na produção de papel ce-lofane. Quando desisti da fábrica, entrei no curso de química na USP. Em 1965 ainda era na alameda Glete, no centro da cidade, e depois, de 1966 até 1968, já era no Instituto de Química, na Cidade Universitária.

Como foi o curso?Ótimo e me apetrechou para uma série de coisas. Eu me apaixonei pela química orgânica, acho que por causa da minha formação, sempre gostei muito de his-

tória natural, tinha uma co-leção de cristais, e gostava de botânica, zoologia e química. Nessa época eu já ouvia falar muito do Giuseppe Cilento, o professor com maior renome internacional. Ele tinha feito o pós-doc em Harvard, era mais conhecido no exterior do que aqui. Desisti da orgâ-nica e fui fazer o doutorado com ele porque nessa épo-ca, fim dos anos 1960, acon-teceu uma minirrevolução científica. Estavam tentando compreender os mecanismos de formação de ATP [ade-nosina trifosfato] na cadeia respiratória. Era um grande mistério. Como o que come-mos se converte em forma de energia no nosso corpo,

que é o ATP? Se queremos contrair um músculo, pensar ou fazer qualquer coisa, usamos o ATP, é nossa moeda corrente de energia. Era um tema candente, fiquei muito impressionado e pedi para fazer o doutorado com ele.

Como foi a conversa com Cilento?Foi meio complicada. Durante o cur-so de química, que era integral, tinha aula até sábado de manhã. Eu tinha de ganhar dinheiro, dava aula no curso do grêmio da Faculdade de Filosofia, depois no Equipe Vestibulares e era ativista do movimento estudantil, eu era do par-tido trotskista, a 4ª Internacional. Fui presidente do centro acadêmico, acabei preso no congresso de Ibiúna, em 1967,

eu dependia da ciência para sobreviver e tinha de ajudar em casa, meu pai era alfaiate

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e processado pelo Segundo Exército. Ao começar a pós-graduação, procurei o Ci-lento. Ele disse que tinha informações sobre mim que o impediam de me acei-tar como estudante. Mas eu tinha sido um dos melhores estudantes dele. E ele era assim, queria gente que trabalhasse, que produzisse resultados em projetos bons e em ótimos artigos. O resto não interessava. Ele me aceitou como estu-dante, mas com a condição de que eu não falasse de política no laboratório. Fechei negócio com ele imediatamente e cumpri minha promessa. Dentro do laboratório nunca falei de política, embora fora eu continuasse muito ativo.

Fazendo o quê?Minha casa era aparelho [local que abri-gava grupos políticos clandestinos du-rante a ditadura], eu ajudava a escon-der pessoas, transportar documentos, o que precisasse. Fui preso pela Oban [Operação Bandeirantes], fiquei um dia lá. Não sei como consegui convencer o responsável na época que meu negócio era ciência. Eu dependia da ciência para sobreviver. Durante todo esse tempo ti-ve que ajudar a manter meu pai, que era alfaiate, e minha mãe, dona de casa. Na época, ser cidadão brasileiro, na minha concepção, era trabalhar contra a dita-dura, contra o obscurantismo, contra a violência e a tortura. Mesmo na univer-sidade, não fugi da rinha.

E o trabalho com Cilento?Comecei com ele, em 1969, a trabalhar com oxigênio e luz, dois temas que me perseguem até hoje. Foi aí que Alberto Carvalho da Silva, então diretor cientí-fico da FAPESP, em 1969, assinou minha primeira bolsa. Comecei, no doutorado, com uma pesquisa de síntese de ATP na cadeia respiratória. Cilento falou que ha-via no mundo uma competição enorme para entender como o ATP era formado na mitocôndria, um dos compartimen-tos da célula. Trabalhei em uma das três abordagens, a chamada hipótese quími-ca. Ela postulava que no metabolismo se formam compostos ricos em energia, mas não conseguia resolver todos os problemas, porque o composto rico em energia que era proposto era instável na água e não poderia ser isolado e todos os experimentos-modelo em laboratório eram realizados em meio aquoso. Então não havia chance de se formar ATP, o composto seria morto pela água. Qual foi a ideia do Cilento? Fazer a operação em meio não aquoso, em piridina. Quando usei piridina, consegui sintetizar 26% de ATP. Sem mitocôndria, sem nada. Cilento tinha me avisado que o proje-to era muito difícil e que estava sendo disputado no mundo inteiro. Ele sem-pre dizia que preferia dar um projeto difícil para um aluno bom, em vez de dar um projeto apenas bom. Ele acom-panhava, mas se arriscava a dar com os burros n’água, não importava. Eu tinha

trabalhado com ele um ano inteiro em uma hipótese parecida, mas joguei os dados todos no lixo, porque não deu cer-to. Naquela época se fazia pesquisa para comprovar suas ideias, produzir conhe-cimento novo e, se isso acontecesse, nós publicávamos o artigo numa boa revista. Não se trabalhava para publicar, mas para produzir conhecimento novo – a publicação seria uma consequência do processo da pesquisa. Fui contratado como professor auxiliar da USP em 1971 e no ano seguinte, depois de defender o doutorado, como professor doutor, e compartilhei o laboratório com Cilento até a morte dele, em 1994. Os trabalhos com ATP me levaram até o radical su-peróxido, que por sua vez me levou até os radicais livres.

Como foi essa ligação?Na hora de descrever a reação de síntese de ATP, eu tinha de falar de um radical livre chamado superóxido. Só poderia explicar os resultados se houvesse a in-termediação do superóxido. Mas não ha-via reagente, não tinha como testar essa hipótese. Em 1969 é que se descreveu a enzima superóxido dismutase pelo Irwin Fridovich, da Universidade Duke [EUA]. A superóxido dismutase destrói o supe-róxido, mas não tínhamos como preparar aquela enzima. Como lidar com o proble-ma? Cilento convidou o Vincent Massey, da Universidade de Michigan em Ann Arbor [EUA], para passar uma tempo-

Na formatura em Viçosa, 1963 (Bechara é o terceiro da esquerda para a direita). Abaixo, em Harvard, 1974

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rada na USP. Ele era um dos papas na área de flavinas, participantes da cadeia respiratória, veio em 1971 e me ensinou a preparar a superóxido dismutase. A gen-te preparava a partir de sangue de boi. Pegamos seis baldes de sangue de boi em um matadouro de Osasco, levamos para o laboratório e preparamos vários miligramas da enzima pura. A enzima era conhecida como estocadora de co-bre nas membranas das células. O cobre é muito tóxico, mas essa habilidade de destruir o radical livre superóxido só foi elucidada pelo Fridovich. Até então falar de radical livre em células era um tabu, porque ele é geralmente muito reativo. Como se poderia imaginar que o corpo está preparando radical livre? Seria um suicídio, mas se demonstrou que havia essa enzima nos tecidos e, como ela é es-pecífica para destruir esse radical livre, demonstrava-se que o corpo fabricava radicais livres. Hoje sabemos que os ra-dicais livres fazem parte do metabolismo normal do organismo, mas podem ser tóxicos e desencadear doenças quando são produzidos em excesso. Numa etapa seguinte, Cilento começou a perceber que muitas reações de radicais livres eram quimioluminescentes, emitiam luz. A energia era convertida em fótons em vez de calor. Trabalhei com ele em algumas dessas reações. Nessa época, uma das maiores autoridades em quimio-luminescência era Emil White, da Uni-versidade Johns Hopkins, em Baltimore

[EUA]. Cilento e White imaginaram que essas reações que emitiam luz poderiam transmitir energia para outras moléculas e, assim, efetuar uma fotoquímica sem luz, uma fotoquímica no escuro. Eles propuseram em 1974 várias substâncias que, sob a ação de enzimas, poderiam gerar um produto excitado, da mesma maneira que a luz. Assim poderia haver uma reação tipicamente fotoquímica na raiz de uma planta ou no seu fígado, que não recebem luz.

Essas enzimas já eram conhecidas ou eram apenas uma hipótese?Aí entra o Cilento. Ele descobriu que al-gumas enzimas chamadas peroxidases poderiam fazer isso. Comecei a estudar essas reações com ele, como a peroxida-se de raiz-forte. A raiz-forte é como um rabanete, um tempero japonês. Depois, já nos anos 1990, fiz trabalhos impor-tantes sobre fotoquímica no escuro, com Alicia Kowaltowski e Anibal Vercesi. Mostramos que a degradação da mito-côndria, causada pelo fosfato, decorre da formação de formas muito reativas de oxigênio, chamadas compostos car-bonílicos tripletes. Tem a ver com qui-mioluminescência. Agora em 2014, Paolo Di Mascio e eu publicamos um trabalho com a Camila Mano, doutoranda, mos-trando in vitro que essa espécie excitada, além de emitir luz e fazer fotoquímica, pode transferir energia para o oxigênio, formando o oxigênio singlete, muito re-

ativo, associado à destruição de células e tecidos. Cilento ficaria feliz em ver es-ses trabalhos.

Conte sobre seu trabalho com os cupin-zeiros luminosos. Como começou?Quando eu estava em Harvard, de junho de 1975 a maio de 1976, trabalhando com quimioluminescência, alguns pesquisa-dores de lá não se conformavam que eu não conhecesse Cleide Costa, do Museu de Zoologia da USP, que estuda os cupin-zeiros luminosos de Goiás. Voltando ao Brasil, em 1976, procurei Cleide. Ela fi-cou muito impressionada e disse que ia me ajudar. Paulo Vanzolini, diretor do museu, deu autorização para usar as de-pendências da instituição para fazer a minha pesquisa. Comecei a trabalhar no Parque Nacional das Emas. Cheguei lá, tinha caçador clandestino, pista de pouso e o parque estava às moscas. Ajudei a tra-zer o parque para a mídia, dei entrevistas sobre os cupinzeiros, que saíram na Folha de S.Paulo e no Estadão, Fantástico, Globo Rural e Globo Ciência. A bioluminescência nada mais é que quimioluminescência, mas que ocorre dentro do vagalume, que é catalisada por uma enzima, a luciferase, que é uma peroxidase. Quando fui lá pela primeira vez, me apaixonei pelos vaga-lumes, que me traziam a lembrança da infância em Caparaó, onde nasci. A gente não tinha brinquedo e brincava com va-galumes e outros besouros. Caparaó era um vilarejo, não tinha mil habitantes. No início eu mantinha os vagalumes no Mu-seu de Zoologia, mas depois o trabalho se expandiu muito e montei o laboratório de bioluminescência no Instituto de Quími-ca. Foi de lá que saiu Vadim Viviani, que ainda trabalha com vagalumes na Univer-sidade Federal de São Carlos [UFSCar], no campus de Sorocaba. Aliás, sempre procurei orientar para formar gente me-lhor do que eu. E sempre disse a eles que não se assustassem com possibilidades estranhas ou difíceis que aparecessem no caminho. Eles têm de abrir muitas portas para, através delas, ver as oportunidades e fazer as escolhas. Têm de ser ousados.

Como funciona um cupinzeiro luminoso?O vagalume se instala no cupinzeiro e desenvolve uma rede de túneis que são independentes das câmaras e dos túneis dos cupins. Essa rede é escavada a cerca de 1 a 10 centímetros da superfície do cupinzeiro. Durante as chuvas, as lar-

Em 2003, na mesma sala da escola em Manhuaçu em que havia estudado muitos anos antes

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vas dos vagalumes põem a cabecinha e o tórax brilhante em janelas abertas pa-ra o exterior, atraindo insetos. Agora, na estação das chuvas, no fim da tarde, fica uma nuvem, um enxame de insetos rode-ando os cupinzeiros que estão emitindo luz verde. São pontinhos verdes de cada lanterna de larva. São 200 ou 300 larvas por cupinzeiro. Fica como uma árvore de Natal, e são centenas de cupinzeiros. Os insetos atraem escorpiões, lacraias e sapos, que, por sua vez, atraem corujas e outros pássaros noturnos. Eles defe-cam perto do cupinzeiro dispersando sementes. Delas, nascem plantas. Com raízes ali perto, vêm tatus e roedores. Como tem cupim e formiga, vem tam-bém o tamanduá. O cupinzeiro é como se fosse um grande hotel, que serve a vá-rios comensais um grande banquete à noite.

Os cupins ganham algo com isso?Esta é uma ótima pergunta, que ainda não foi respondi-da. Não podemos esquecer que os cupins formam uma sociedade de castas: rainha, rei, operárias e soldados. Os cupins soldados são mui-to agressivos, não admitem outras espécies por perto, mas não atacam a larva do vagalume, que vive em es-paços independentes. Ao contrário. A presa prefe-rencial da larva é o cupim, porque o cupim adulto, o siriri, também está voando ali naquela nuvem de inse-tos. Cada larva chega a pegar de 10 a 12 cupins por noite. Quando fizemos a mol-dagem de um cupinzeiro, injetando po-liestireno nos túneis, vimos que a larva constrói uma sala de jantar a 1 centíme-tro da superfície. Quando ela morde, já regurgita o líquido digestivo, que a gente estudou com Walter Terra, do Instituto de Química. Tal como a aranha, a larva do vagalume morde e já pré-digere a presa, é uma digestão externa. Depois ela vai se alimentar daquela sopa que já está preparada, já quebraram as moléculas grandes em moléculas menores.

O senhor destruiu cupinzeiros do parque?Não! Poupei o Parque Nacional das Emas exatamente porque tínhamos de abrir os

cupinzeiros para coletar as larvinhas. Trabalhávamos na fazenda Santo An-tônio, na confluência de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás, próxima ao parque, e ficávamos hospedados em um hotelzinho em Costa Rica, no Mato Grosso do Sul. As matas da fazenda desa-pareceram. Todos os cupinzeiros foram derrubados para plantar soja. Um pós--graduando da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e eu fizemos um projeto de construção de um laboratório avançado de estudo da bioluminescência, com pesquisadores de diversas áreas, mas tinha de haver uma contrapartida, que seria a área, e o dono da fazenda não liberou. Apelei para o Congresso Nacio-nal, as secretarias de Turismo, as prefei-turas das cidades próximas, mas nunca

tive nenhum apoio, nenhuma resposta. Fiz o que pude, mas não consegui.

Existem outros cupinzeiros luminosos no Brasil?Poucos, muito poucos. Ainda tem uns cupinzeiros com luminescência lá na região, em capões com buritis. Meu ex--aluno Vadim Viviani, hoje professor na UFSCar em Sorocaba, está iniciando a pesquisa de cupinzeiros luminosos em clareiras da Floresta Amazônica.

Em 1978, o senhor foi à Vila Parisi, em Cubatão. Por quê?Foi uma vertente de pesquisas com ra-dicais livres que se abriu depois de eu voltar de Harvard. Alguns colegas me

criticavam porque eu ficava pulando de galho em galho e fazia muitas coisas ao mesmo tempo, mas é o meu estilo, vou atrás do que me interessa, não da moda. Vila Parisi chamou a atenção de toda a população mundial, e Cubatão era tida como a cidade mais poluída do mundo nos anos 1970. Li num jornal que o Pau-lo Naum, biólogo da Universidade Es-tadual Paulista [Unesp] de São José do Rio Preto, tinha medido um alto grau de meta-hemoglobina no sangue das pesso-as da Vila Parisi. Meta-hemoglobina é a hemoglobina em que o ferro não é o ferro 2, é o ferro 3, oxidado, que não é capaz de transportar oxigênio, o que é ruim. Não foi fácil coletar sangue dos moradores daquela localidade para fazer as análi-ses. Foi Marisa Medeiros quem coletou,

como trabalho de mestrado de-la. Fomos lá, dei uma palestra no salão paroquial. Expliquei o que queríamos fazer e pedi a colaboração de todos. Com todas as pessoas com quem tra-balhamos, o pessoal de Cuba-tão, os empregados da fábrica de baterias Saturno, os meni-nos da Febem, hoje Fundação Casa, explicávamos e pedíamos o consentimento deles. É tam-bém uma questão de respeito e de ética. A pessoa precisa saber por que está doando sangue e para que vai ser usado. Com-parando Cubatão com dois lu-gares próximos não poluídos, Mogi das Cruzes e São José do Rio Preto, vimos que havia uma relação entre poluição do ar e meta-hemoglobina. Liguei pa-

ra Paulo porque ele tinha descoberto a meta-hemoglobina e eu talvez soubesse a razão disso. Pensei que, se havia meta--hemoglobina, teria de haver superóxido.

Por quê?Na presença de alguns poluentes, o ferro 2 da hemoglobina transfere elétron para o oxigênio e ela fica com ferro 3+ e libe-ra superóxido. Para proteger a pessoa, o superóxido induz a formação de superó-xido dismutase, que ajuda o organismo a evitar eventuais danos gerados pelo ex-cesso de superóxido. É uma resposta do organismo, adaptativa. Publicamos juntos os resultados, em 1976, no Archives of En-vironment Health. Já não se chama mais o superóxido de espécie tóxica, porque já

sempre disse para os estudantes verem resultados estranhos como oportunidades. têm de ser ousados

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se viu que pode ter outras funções, como na fecundação do óvulo pelo espermato-zoide e na defesa contra bactérias.

Depois o senhor começou a estudar doen-ças causadas por radicais livres, certo? Comecei a me interessar pela patologia dos radicais livres nos anos 1980. Eu já tinha esse sentimento genuíno na im-portância dos radicais livres, porque o oxigênio tem duas formas principais de reagir. Ou reage por radicais livres ou por excitação eletrônica, o chamado oxigênio singlete, energizado. Quem energiza o oxigênio são, por exemplo, os corantes. Você pega um herpes labial ou uma mi-cose e coloca ali violeta genciana ou azul de metileno. O corante absorve a luz so-lar, se excita e transfere essa energia pa-ra o oxigênio, formando esse oxigênio siglete, excitado ele-tronicamente. Ele é muito re-ativo, provoca lesão de DNA, mata a célula imediatamen-te. Comecei então a ver que danos à saúde os radicais li-vres poderiam provocar. Mi-nha inspiração veio de Adolf Michelson, do Instituto de Biologia Físico-Química, de Paris, que já tinha feito vários trabalhos mostrando o papel tóxico do oxigênio em mui-tas doenças, principalmente doenças psiquiátricas, como esquizofrenia, paranoias e transtorno bipolar. Michel-son passou um tempo com a gente no Brasil e fiquei mui-to entusiasmado com o tra-balho dele, principalmente com doenças mentais. Pensei se não po-deríamos desenvolver alguns trabalhos com outras doenças mentais que ainda não tivessem sido estudadas. Imaginei a porfiria aguda intermitente, uma doença genética que se manifesta em geral de-pois da adolescência, principalmente na mulher, e causa dores abdominais mui-to fortes, alterações psiquiátricas e até alucinações. Foi o mestrado de Marisa Medeiros e o primeiro trabalho de um grupo de brasileiros associando radicais livres e porfiria, publicado na Clinical Chemistry em 1982.

Por que porfiria?Por causa de um colega médico do Hos-pital das Clínicas da USP, Paulo Mar-

chiori, que passou pelo meu laboratório e trabalhava com porfirias inatas, que são doenças ligadas ao metabolismo da he-moglobina do sangue. Michelson nunca tinha trabalhado com isso. Como os da-dos do Michelson sobre esquizofrenia e transtorno bipolar eram muito genéricos, refletiam uma amostra muito heterogê-nea, sugeri a Dulcineia Abdalla, minha aluna de doutorado na época, que estu-dássemos isso de forma rigorosa. Cole-tamos sangue de pessoas com esquizo-frenia tratadas no Hospital das Clínicas e com transtorno bipolar no Hospital Psiquiátrico do Juquery e fizemos um estudo sistemático. Elaboramos a hipó-tese de que um composto específico, a hidroxidopamina, é que estaria envol-vido com as alterações neurológicas da

esquizofrenia e distúrbio bipolar. Para testar essa hipótese, injetamos intrate-cal, uma substância que, a partir de do-pamina, forma a hidroxidopamina, que é neurotóxica em ratinhos. Vimos que o sangue era parecido bioquimicamente com o que já tínhamos visto em pesso-as com esquizofrenia e bipolar. Havia formação de superóxido dimutase, de catalase e de glutationa peroxidase, que são as três enzimas que controlam a to-xicidade do oxigênio. O trabalho parou aí, Dulcineia foi contratada na Facul-dade de Farmácia e mudou de linha de pesquisa, mas, depois, essa hipótese que levantamos foi constatada em muitos artigos científicos de grupos de outros países. Mais tarde fomos alertados para

o fato de indivíduos expostos a chumbo também terem distúrbios de comporta-mento, inclusive alucinações. A intoxi-cação por chumbo é um tipo de porfiria adquirida. Comecei a ler na Folha e no Estadão sobre intoxicação de sapateiros em fábricas de sapato em Franca [SP]. Sapateiro segura a tachinha de chumbo com os dentes, na boca, e se contamina. Li também sobre a contaminação por chumbo na Saturna, uma fábrica de bate-ria de carro em Sorocaba, e tive apoio da Fiesp-Sesi e da Fundacentro para testar o envolvimento de radicais livres na saú-de dos trabalhadores. O trabalho sobre contaminação por chumbo me tomou 20 anos, porque fui desde o trabalho bioquí-mico, elucidando mecanismos de reação, e rastreei trabalhadores em fábricas de

porcelana, fios elétricos, ba-terias de carro. Tudo tem a ver com radicais livres.

Em 2002 o senhor disse que estava interessado na tera-pia antioxidante, que pode-ria amenizar os efeitos dos radicais livres no organis-mo. O que aconteceu?Foi uma grande fria. Logo de-pois da descoberta de superó-xido dismutase e da compro-vação da produção de radical superóxido nas células, houve um boom de trabalhos explo-rando a chamada atividade tóxica do oxigênio. Muitos pesquisadores começaram a testar a produção de supe-róxido em várias situações, inclusive eu: na Vila Parisi,

intoxicação por chumbo, esquizofrenia, porfirias. Propuseram o uso de superó-xido dismutase para doença de Peyronie, câncer, doença de Crohn, doenças men-tais e muitas outras. Depois se viu in vi-tro que as vitaminas e outros compostos também tinham potencial para controlar o nível desses radicais livres. Vitamina E, vitamina C, caroteno, N-acetilcisteína, um número enorme de substâncias naturais e sintéticas. Elas atuariam como as enzi-mas, embora com menos eficácia, dando cabo dos radicais livres.

Parte dos médicos se aproveitou dis-so, não é?A comunidade médica arregalou o olho e disse: “Vamos dar megadoses dessas subs-

temos de alertar para os efeitos da intoxicação por chumbo. os danos são irreversíveis

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tâncias para curar ou prevenir doenças”. O problema é que os médicos brasileiros têm uma formação muito fraca em bioquí-mica, diferentemente dos Estados Unidos e Europa. De repente, tínhamos muitos médicos fazendo cursinhos de dois dias sobre como usar antioxidantes. Surgiu a chamada medicina ortomolecular, que começou a ser adotada por médicos es-pecialistas, até com injeção de dimetil-sufóxido nas articulações, um absurdo. Foi um campo fácil para a proliferação de profissionais desonestos. Um desses, no Rio de Janeiro, dava pílulas de superóxido dismutase por via oral. Ora, se a enzima é uma proteína, ao chegar no estomago é hidrolisada, não tem jeito. Eu e outros colegas da USP ficamos empolgados e nos associamos a um grupo de médicos de uma associação de medicina ortomolecular, mas depois vi-mos que a maioria deles que-ria apenas ganhar dinheiro. Quanto dar de vitamina? Não estavam nem um pouco preo-cupados em aprender as ba-ses moleculares das doenças. Nos afastamos, principalmen-te depois de vermos que o su-peróxido não era necessaria-mente tóxico, era vital para muitas funções do organismo. A superdosagem é um proble-ma, e não só nas doenças de estresse oxidativo. Recente-mente, ajudei Álvaro Pereira, um dos editores do Fantásti-co, a desmascarar vários des-ses médicos.

Um de seus trabalhos recen-tes tratou de contaminação de chumbo em crianças e adolescentes.Foi um trabalho que começou na Fe-bem, hoje Fundação Casa, e terminou em um bairro de Bauru, que era vizinho da fábrica Ajax, que contaminou toda a região com chumbo. A aluna que me procurou propondo esse trabalho, Kelly Kaneshiro Olympio, é dentista formada em Bauru e hoje professora da Faculda-de de Saúde Pública da USP. Ela soube do meu trabalho de intoxicação com chumbo. Aceitei e fizemos uma parceria com a professora Wanda Ghunter, da Saúde Pública, e Pedro de Oliveira, quí-mico analítico do Instituto de Química da USP. Kelly levava um consultório portátil, retirava uma amostra minúscu-

la do esmalte da pessoa e depois o dente já era obturado na hora. Em troca, ela fazia uma limpeza dentária e um diag-nóstico da saúde bucal do voluntário. Nossa amostragem foi uma bola de ne-ve. Perguntávamos se conheciam quem morava em lugar próximo da região da fábrica Ajax, e foi chegando gente. Kelly examinou cerca de 400 crianças e ado-lescentes. Víamos alto teor de chumbo e tentávamos relacionar com compor-tamento agressivo, comparando com os indivíduos com baixo teor de chum-bo. Usamos um questionário validado, que afastava os fatores que poderiam confundir os resultados, como proble-mas familiares ou histórias pessoais muito tumultuadas, e hierarquizava os comportamentos em brandos, médios

e graves e a frequência com que eles eram cometidos e os tipos, que iam de bullying a assassinato. Demonstramos que os adolescentes que tinham sido expostos a chumbo durante a infância tinham probabilidade maior de desen-volver alterações de comportamento. Foi um trabalho que uniu bioquímica e comportamento, saiu na Neurotoxi-cology and Teratology em 2009.

E mudou algo em Bauru?Não, está tudo igual. Apesar de termos a licença do supervisor das Febem e do secretário de Justiça da época, o diretor local nos impediu de continuar a pes-quisa. Não entendo até hoje. Na defesa de tese de Kelly, um advogado falou so-

bre o desconforto com que o Judiciário trataria dessa questão, de questões do tipo Chambinho, que matou aquele ca-sal jovem [Liane Friedenbach e o na-morado]. Se você demonstra que o me-nino foi contaminado por chumbo e teve alterações cerebrais por causa dis-so, como lidar judicialmente com esse problema? Como cientista, penso que o que não se pode fazer é esconder os resultados do trabalho científico. Todos os artigos terminamos alertando para os perigos dessa intoxicação. Até veli-nhas de aniversário do tipo estrela têm chumbo, alguns fitoterápicos têm chum-bo, carne de caça, utensílios de cerâmi-ca ou soldados e tinta de parede conti-nuam tendo chumbo e temos que edu-car as pessoas e prevenir, porque depois

de feito o dano, são especial-mente os danos cerebrais, não tem como voltar atrás.

Como é que o senhor formou sua coleção de quadros?Nas viagens para coletar vagalumes, conheci pinto-res e comecei a colecionar pinturas. Umas eu ganha-va, outras comprava. Já nos anos 1960 participava das passeatas, porque era líder estudantil, vivia correndo da polícia, e o meu refúgio era Embu das Artes, cidade da Grande São Paulo. Lá eu conheci Solano Trindade, o escultor Assis e vários pin-tores da região. Fui viajan-do e aumentando a coleção. Cheguei a 90 quadros pri-

mitivos e naïf. Quando conheci os tra-balhos da Isabel de Jesus, achei que era Chagall, bonito demais. Contei para ela dos cupinzeiros luminosos, que ela nunca viu, mas pintou para mim um quadro. Aqui está o cupinzeiro, cada pontinho é uma larva de vagalume. La-craia, escorpião, aranha que estão se alimentando, a coruja e uns animais estranhos, porque a Isabel de Jesus é famosa mundialmente por ser surrea-lista. Quando contei que era triste ver os bichinhos todos esturricados, ela fez outro quadro, que é o incêndio do Par-que Nacional das Emas, muito sensível, ela não os pintou carbonizados, mas de cabeça para baixo. Ela mora em Franco da Rocha, aqui pertinho de São Paulo. n

Como cientista, penso que o que não se pode fazer é esconder o resultado do trabalho científico

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30 z março DE 2015

Estudo indica que bolsistas cujos projetos são

selecionados por avaliação por pares publicam

mais em revistas com maior fator de impacto

Um estudo publicado na edição de ja-neiro da revista Scientometrics, rea-lizado pelo Grupo de Estudos sobre Organização da Pesquisa e da Ino-vação (Geopi), do Instituto de Geo-

ciências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mensurou o impacto de diferentes mecanismos de seleção praticados por agências de fomento no Brasil sobre o desempenho de seus bolsistas. A principal conclusão do estudo, com base em dados de um projeto que avaliou os programas de bolsas da FAPESP, é que bolsistas brasileiros de iniciação científica, mestrado e doutorado cujos projetos foram aprovados depois de passar por uma avaliação individual feita por membros da comunidade científica – o sistema conhecido como avaliação por pares, como acon-tece na FAPESP – publicaram mais em revistas com maior fator de impacto do que aqueles que, tendo suas solicitações de bolsa recusadas pela FAPESP, receberam o benefício por meio de quo-tas de bolsas para universidades disponibilizadas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento

Bruno de Pierro

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Desempenhos

comparados

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Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Coorde-nação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). No entanto, o estudo também observou que os desempenhos de ambos os gru-pos tendem a se aproximar ao longo dos cinco anos após a conclusão do doutorado, à medida que passam a produzir pesquisa autonomamente.

O trabalho mostra que alunos de doutorado apoiados pela FAPESP publicaram em média 37% mais artigos do que candidatos cujos pro-jetos foram recusados pela instituição e que re-ceberam outro tipo de bolsa no mesmo período. “Uma hipótese é que o modelo de avaliação por pares representa um filtro acadêmico clássico no momento de avaliar projetos de pesquisa”, expli-ca Sérgio Salles-Filho, um dos autores do artigo e coordenador adjunto de Programas Especiais da FAPESP. O estudo avaliou cerca de 55 mil artigos publicados por mais de 8.500 pesquisadores que receberam bolsas de iniciação científica, mestra-do e doutorado da FAPESP, CNPq e Capes entre 1995 e 2009. Para fazer a análise, os autores avalia-ram a trajetória acadêmica dos bolsistas com base

30 z março DE 2015

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PEsQUisa FaPEsP 229 z 31

desempenho dos alunos, em relação

ao número de artigos publicados,

antes e depois do ano de conclusão do

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desempenho dos alunos, em relação ao fator de impacto das revistas em que publicaram artigos, antes e depois do ano de conclusão do doutorado

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Bolsistas FaPEsP (avaliação por pares)

Grupo de controle (modelo institucional)

avaliação por pares versus modelo institucional

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na Plataforma Lattes, do CNPq, e em respostas a questionários on-line especialmente preparados para essa avaliação. Esse contingente foi dividido em dois grupos: de um lado, os candidatos cujos projetos foram aprovados por avaliadores da FAPESP e, de outro, o grupo de controle, for-mado por aqueles cujas solicitações de bolsas fo-ram denegadas pela Fundação, mas contempladas por uma agência federal. A comparação entre os dois grupos foi possível graças à utilização de uma metodologia para aproximar características dos grupos de tratamento e controle em um desenho quase-experimental (ver Pesquisa FAPESP nº 224).

O efeito do sistema de avaliação por pares na produção científica foi observado em diferentes áreas do conhecimento. No

mestrado, os bolsistas da FAPESP publicaram 24% mais artigos em ciências agrárias e 25% nas engenharias. Nas demais áreas não houve dife-renças estatisticamente significativas em termos de quantidade de publicação. Considerando as diferenças de fator de impacto das revistas, os ex-bolsistas de mestrado da FAPESP publicaram 13% mais em periódicos de maior impacto, ten-do como destaque as áreas de ciências agrárias (24% a mais) e biologia (16% a mais).

Em relação ao doutorado, o número de publi-cações também foi maior entre os ex-bolsistas da FAPESP em quase todas as áreas (ver gráfico ao lado). Entretanto, no que se refere ao fator de impacto das revistas, apenas a área de humanida-des apresentou superioridade (87% mais artigos). Nas demais áreas, não houve diferença significa-tiva, com exceção de ciências sociais, na qual os ex-bolsistas da FAPESP publicaram em revistas de menor impacto quando comparados com o grupo de controle, cerca de 67% a menos.

De acordo com o estudo, a trajetória profis-sional dos doutores em ciências sociais teve um comportamento peculiar. “Como vimos no es-tudo, esses pesquisadores apresentaram menor inclinação para o pós-doutorado e maior taxa de empregabilidade do que em outras áreas, apre-sentando um menor envolvimento com o mundo da pesquisa”, diz Adriana Bin, também professora da Unicamp e autora principal do artigo.

Os autores do estudo observaram que após a conclusão do doutorado, os dois grupos de pes-quisadores tendem a produzir segundo padrões similares, levando-se em conta o número de ar-tigos e o fator de impacto das revistas científicas nas quais publicam. Para isso, foram analisados os cinco anos anteriores ao ano da defesa da tese e os cinco anos posteriores (ver gráfico na página 31). Um dado que chamou a atenção foi o fato de os bol-sistas da FAPESP apresentarem um aumento das taxas de publicação logo após a obtenção do título de doutor, enquanto o grupo de controle teve uma

pequena queda do número de artigos publicados. “Uma das hipóteses que explicam esse fenômeno é que os bolsistas da FAPESP envolvem-se de for-ma mais rápida em atividades de pesquisa após o doutorado”, explica Adriana. Dos pesquisadores que tiveram bolsa da FAPESP, cerca de 40% vincu-laram-se ao pós-doutorado assim que concluíram o doutorado. Entre os que receberam outras bol-sas, o índice foi de 30%. Para Rogério Meneghini, coordenador científico da biblioteca virtual SciE-LO Brasil, essa é uma informação surpreendente. “No Brasil, a grande maioria dos pesquisadores não faz pós-doc logo depois do doutorado, e com o aumento do número de universidades públicas criadas nos últimos anos grande parte dos douto-res está se dedicando ao ensino”, diz.

DOis PEsOsConhecido como modelo institucional, o siste-ma usado pelas agências federais baseia-se no desempenho de cada instituição numa classi-ficação nacional de programas de pós-gradua-ção – instituições com os programas mais bem avaliados recebem mais bolsas. Cabe ao próprio programa de pós-graduação ou à universidade decidirem como as bolsas serão distribuídas, e isso é feito utilizando critérios que variam caso a caso, como o currículo do candidato, sua con-dição socioeconômica, uma avaliação do projeto ou uma combinação de todos eles. Já a revisão por pares, adotada pela FAPESP, também po-de levar em conta indicadores de desempenho, mas avalia individualmente e em profundidade o perfil do candidato e a qualidade do projeto, além da experiência do orientador ou supervi-sor. A diferença essencial entre os dois sistemas, diz Salles-Filho, é que no de avaliação por pares a agência que concede as bolsas tem o domínio

FOntE GEopi/unicamp

Efeitos das bolsas por área*artigos publicados a mais por bolsistas de doutorado da FapEsp, em comparação com o grupo de controle, entre 1995 e 2009

ciências biológicas

ciências básicas

Humanidades

ciências da saúde

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Engenharias

ciências agrárias + 71%

+ 61%

+ 34%

+ 34%

+ 34%

+ 27%

+ 37%

*as áreas de ciências sociais e multidisciplinares não apresentam dados estatisticamente significativos

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do processo de avaliação dos projetos, por meio de pesquisadores qualificados, que emitem pare-ceres orientando a instituição a conceder ou não a bolsa. Já no outro sistema, a decisão é descen-tralizada. O modelo institucional também se vale de uma forma particular de avaliação por pares. “Não se pode afirmar que a avaliação por pares garante necessariamente a seleção do melhor candidato. No entanto, esse processo de seleção é o método canônico da ciência e segue sendo o modelo mais respeitado”, afirma Salles-Filho.

O s primeiros programas de bolsas para pós--graduação começaram a surgir nos Esta-dos Unidos e na Europa após a Segunda

Guerra Mundial, numa época de expansão da in-terferência do Estado no financiamento da pesqui-sa científica, associado a altos investimentos em tecnologia e inovação. Desde o início, o principal mecanismo usado para a concessão de bolsas era baseado na avaliação por pares. Um artigo publi-cado na revista Science em 1977, por pesquisadores da Universidade de Columbia, destacava a im-portância desse modelo para a National Science Foundation (NSF), principal agência de fomento à pesquisa básica dos Estados Unidos, já naquela época. O artigo rebate uma crítica da época, se-gundo a qual os avaliadores davam preferência para projetos de pesquisadores de renome e que publicavam mais. Os autores argumentam que não havia dados empíricos atestando que a avalia-ção por pares praticada pela NSF fosse subjetiva.

O sistema seguiu prestigiado dentro da comu-nidade científica, adotado por outras importantes instituições de apoio, como os Institutos Nacionais

de Saúde (NIH), principal agência de fomento à pesquisa biomédica dos Estados Unidos, e os Re-search Councils do Reino Unido. Algumas dessas instituições incluíram em suas avaliações internas estudos para verificar os impactos da revisão por pares na produção científica de seus bolsistas. Em 2002, por exemplo, a NSF avaliou seus programas de bolsas de pós-graduação e chegou à conclusão de que o sistema de revisão por pares tinha um efeito positivo na produção acadêmica de seus bolsistas. Em algumas áreas, como matemática e

economia, alunos agraciados com bol-sas da NSF chegaram a publicar cerca de três artigos científicos a mais do que o grupo de controle, formado por bol-sistas de agências que não utilizam o mecanismo de revisão por pares. Outros estudos, porém, mostram que é difícil confirmar a relação entre os sistemas de seleção de bolsistas e o rendimento deles em publicações científicas. Um deles foi publicado por John Rigby, professor da Universidade de Manchester, Inglaterra,

em 2013. Rigby afirma que a aceitação de um pro-jeto por uma agência de financiamento não prediz o impacto que a pesquisa poderá ter no futuro.

Manter um exército de avaliadores também é um desafio para as agências de fomento. Em 2009, o Research Assessment Exercise (RAE) fez um gran-de esforço de apreciação da qualidade da pesquisa no Reino Unido e substituiu seu método baseado primordialmente na avaliação por pares por um novo sistema, o Research Excellence Framework (REF), que, embora não abandone a avaliação por pares, faz uso maior de indicadores bibliométricos, como o número de citações das publicações feitas pelos cientistas (ver Pesquisa FAPESP nº 156). O objetivo do governo do Reino Unido foi reduzir custos e dar mais agilidade à avaliação. A mudan-ça dividiu a comunidade científica britânica. “To-madas de forma isolada, citações têm se mostrado repetidamente uma medida pobre da qualidade da pesquisa”, segundo publicou em editorial, na época, a revista Nature, sobre as mudanças anunciadas, citando um estudo de 1998 que comparou os resul-tados de duas análises de um conjunto de artigos sobre física, uma usando métricas como citações e outra baseada em avaliação por pares. As diver-gências atingiram 25% dos artigos analisados. “Os formuladores de políticas não têm outra opção a não ser reconhecer que a revisão de especialistas tem um papel indispensável na avaliação”, afirma o editorial da Nature. n

“a avaliação por pares é o método canônico da ciência e segue sendo o modelo mais respeitado”, diz salles-Filho

artigo científico

Bin, a. et al. What difference does it make? impact of peer-reviewed scholarships on scientific production. scientometrics. v. 102, n. 2, p. 1167-88. 2015.

PEsQUisa FaPEsP 229 z 33

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TV Cultura e FAPESP

lançam o programa

SP Pesquisa, série de

reportagens com

destaques da produção

científica de São Paulo

diFuSão y

Ciência na telinha

a TV Cultura estreou no dia 7 de março um novo programa que apresenta os bastidores da produção científica paulista

em diversas áreas do conhecimento. O SP Pesquisa é resultado de um termo de cooperação assinado entre a FAPESP e a Fundação Padre Anchieta, responsável pela TV Cultura. A produção leva ao ar o trabalho de pesquisadores que atuam em instituições paulistas e mostra re-lações entre as pesquisas e o cotidiano da população, esclarecendo, de forma simplificada e com recursos visuais, con-ceitos relacionados às áreas abordadas.

Foram produzidos 26 programas, cada um com 28 minutos de duração. Eles são exibidos na TV Cultura, aos sábados, e na Univesp TV, aos domingos e às quin-tas-feiras. A Univesp TV, canal digital aberto 2.2, integra a Universidade Vir-tual do Estado de São Paulo (Univesp). Para assistir ao canal, que faz parte da multiprogramação digital da TV Cultu-ra, é necessário televisor equipado com conversor digital.

Para Celso Lafer, presidente da FAPESP, a parceria evidencia o interesse co-mum das instituições envolvidas na ini-ciativa pelo desenvolvimento social por meio da ciência. “Uma das missões da FAPESP é divulgar ao público os re-sultados da pesquisa que apoia e, nes-se processo, destacar a importância do conhecimento no encaminhamento dos problemas da sociedade”, diz. “Conside-ramos muito importante esse programa no âmbito das atividades da Fundação Padre Anchieta por dar densidade a essa vertente da missão da FAPESP.”

Cientistas protagonistasOs 26 programas produzidos contem-plam diferentes áreas do conhecimento. A abordagem escolhida prioriza o traba-lho dos pesquisadores e sua rotina nos locais em que as pesquisas são realiza-das, com reportagens em laboratórios e nas ruas.

A cada programa, os próprios cientis-tas falam de suas pesquisas e de como elas podem impactar na vida cotidiana.

Diego Freire, da Agência FAPESP

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pesQUisa Fapesp 229 z 35

corpo humano ou por que as bactérias são importantes para a digestão e outras funções do organismo.

Todas as explicações foram elabo-radas com a colaboração de pesquisa-dores consultados pelo programa. Os cientistas também participam da con-cepção dos recursos visuais utilizados para garantir que sejam fiéis às ideias abordadas, mesmo que com certa liber-dade artística.

Além de tratar, de forma elucidativa, dos mistérios científicos que as pesqui-

sas apresentadas tentam desvendar, o programa busca desmitificar o próprio trabalho dos cientistas. O quadro “Profis-são” acompanha a rotina de profissionais dos grupos responsáveis pelas pesquisas abordadas pelo programa, esclarecendo o que fazem e como conduzem seus estu-dos nos laboratórios e em outros espaços.

Os pesquisadores também abordam conquistas recentes das pesquisas na área em que atuam e comentam artigos científicos publicados em periódicos de alto impacto.

Os programas tratam de pesquisas fei-tas no estado de São Paulo com resulta-dos importantes em diversos campos – entre eles, física das partículas sub-atômicas, astrofísica, geofísica do sub-solo brasileiro, nanomateriais, paleon-tologia, urbanismo, oceanografia, bio-diversidade, etanol, aquecimento global, agricultura, vacina contra a Aids e saúde em geral.

As pautas foram definidas em con-junto entre a Univesp TV e a produtora contratada pelas instituições, a Itine-rante Filmes, com base no trabalho de divulgação científica desenvolvido pela FAPESP. “Acompanhamos o trabalho da revista Pesquisa FAPESP e da Agência FAPESP para chegar aos temas de in-teresse e aos pesquisadores que seriam consultados”, diz a diretora dos progra-mas, Valesca Dios.

Aos sábados, o programa SP Pesquisa vai ao ar às 16 horas, pela TV Cultura. Na Univesp TV, o programa será exibi-do às 19 horas aos domingos e às 21h30 às quintas. n

>Mais informações em http://univesptv.cmais.com.br/

“A ideia é estabelecer um diálogo entre o pesquisador e o telespectador, desmis-tificando a percepção de que o público costuma ter da ciência e dos cientistas”, diz Valesca Canabarro Dios, diretora do programa.

O primeiro episódio da série apre-sentou pesquisas feitas na Universida-de Estadual de Campinas (Unicamp) e na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) sobre a microbiota intestinal e sua relação com a obesidade e outras doenças. Pesquisadores das duas institui-ções, médicos e outros profissionais rela-cionados à área compartilharam olhares científicos sobre o tema e resultados de seus trabalhos, enquanto o programa detalhou a atividade da flora intestinal e sua importância para o funcionamento do organismo.

Quadros com recursos visuais e lin-guagem acessível a diferentes públicos ajudam a explicar os conceitos aborda-dos nos estudos. No quadro “Grifo nos-so”, o jornalista Salvador Nogueira conta, por exemplo, como agem as vacinas no Fo

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a abordagem prioriza o trabalho dos pesquisadores e sua rotina nos locais em que as pesquisas são realizadas

Cenas de dois dos programas do SP Pesquisa

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Um ramo de batata-doce

colhido em Anavilhanas,

Amazônia, em 1991: mantido

no Jardim Botânico de

Nova York

36 z março DE 2015

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Herbários virtuais reúnem

informações de coleções mantidas

em outros países e facilitam análises

sobre a biodiversidade brasileira

Em duas viagens previstas para este ano, Sergio Ro-maniuc Neto, do Instituto de Botânica de São Paulo, pretende refazer as expedições de coleta de plantas realizadas pelo naturalista francês Auguste de Saint--Hilaire em 1819 e 1822 ao longo do litoral, entre São

Paulo e Rio de Janeiro, e pelo interior paulista. Romaniuc Neto sabe exatamente que plantas procurar porque, além de ter visto as amostras, mantidas no Museu de História Natu-ral de Paris, foi um dos coordenadores da montagem da ver-são on-line da coleção de plantas e dos cadernos de campo de Saint-Hilaire (hvsh.cria.org.br), em operação desde 2009. Em fase de expansão no Brasil, os chamados herbários vir-tuais reúnem informações e milhares de imagens detalhadas de coleções de plantas brasileiras, organizadas por botânicos estrangeiros ou brasileiros, que antes as guardavam apenas em armários de suas instituições. A síntese on-line facilita o trabalho dos pesquisadores, amplia o número de usuários e permite novos tipos de análise sobre a diversidade biológica do país, impensáveis até poucos anos atrás.

“Antes, tínhamos de fazer longas viagens para ver as coleções em outros países, sem saber o que poderíamos encontrar”, diz Rafaela Forzza, pesquisadora do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. “Agora, com os herbários virtuais, podemos planejar

Acervos cieNtíficos y

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Milhões de plantas on-line

pesQUisA FApesp 229 z 37

Page 38: Para estudar os mortos e ajudar os vivos

38 z março DE 2015

1850 em Santarém (PA), está guardada no herbário de Paris, mas pode ser vista em detalhes por meio do Reflora.

Desde 2014 o Reflora está incorpo-rando o acervo digitalizado de plantas mantidas em 11 herbários de universi-dades, museus ou centros de pesquisa da Bahia, Sergipe, Rio Grande do Norte, Ceará, Distrito Federal, Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. “Os herbá-rios virtuais não reduzem a necessidade e o espaço do acervo físico, mas são uma salvaguarda dos materiais e facilitam a consulta e a formulação de estratégias para a conservação da flora brasileira”, diz Rafaela. As informações dos herbá-rios virtuais devem servir para a elabo-ração de um documento detalhado sobre a situação das 45.941 espécies de plantas brasileiras, que deve estar concluído até 2020, como estipulado na Convenção so-bre Diversidade Biológica, um acordo in-ternacional do qual o Brasil é signatário.

o Centro de Referência em Infor-mação Ambiental (Cria), de Cam-pinas, é o responsável pelo de-

senvolvimento e manutenção da rede speciesLink, outra base de informações sobre a biodiversidade do país. A rede speciesLink (splink.cria.org.br) comparti-lha mais de 7,2 milhões de registros sobre 103 mil espécies de animais, fósseis, mi-crorganismos, plantas e fungos, mantidas em acervos físicos de 123 instituições de todos os estados do país e 11 centros de pesquisa do exterior. A rede speciesLink é a base de informações do Instituto Na-cional de Ciência e Tecnologia (INCT) – Herbário Virtual da Flora e dos Fungos (inct.florabrasil.net), que reúne 152 acer-vos, 5 milhões de registros e 900 mil ima-gens de 77,5 mil espécies distintas. “Cada herbário envia as informações que podem ser de acesso público”, diz Dora Canhos, diretora associada do Cria. “Agora, não só os grandes, mas também os herbários pequenos, distantes das regiões metropo-litanas, estão sendo digitalizados e têm a oportunidade de colocar seus acervos a serviço da comunidade.”

A equipe do Cria começou a ganhar experiência nessa área em 2000, ao de-senvolver o SinBiota, sistema para in-tegrar e gerenciar as informações dos levantamentos de plantas, animais e mi-crorganismos realizados pelos pesqui-sadores paulistas ligados ao Programa

o primeiro registro botânico da

mandioca: amostra coletada em 1850

em santarém e guardada no

herbário de Paris

melhor e selecionar o que queremos es-tudar antes de viajar.” Rafaela coordena o Reflora (www.reflora.jbrj.gov.br), progra-ma de repatriação de informações sobre plantas brasileiras iniciado em 2010, com apoio do governo federal, fundações de apoio à pesquisa e empresas. O Reflora liberou para acesso público on-line cerca de 100 mil imagens de plantas brasileiras do Jardim Botânico de Kew, próximo a Londres, e outras 75 mil do Museu de História Natural de Paris.

As duas instituições enviaram as ima-gens das plantas e a equipe do Jardim Bo-tânico analisou as etiquetas de cada amos-

tra, escritas em francês, inglês, alemão ou latim, para retirar os chamados metadados, com o nome do coletor, data e local de coleta e outros detalhes que completam a identi-ficação. Segundo Rafaela, diariamente, sua equipe de 70 bolsistas e funcio-nários distribuídos por várias instituições captu-ram, examinam e tratam as informações de cerca de 750 imagens que che-gam de herbários de ou-tros países e outras 750 do herbário virtual do próprio Jardim Botâni-co. “Hoje é rotina: ne-nhuma planta vai para o acervo físico do herbário sem antes ser fotografada e depositada no acervo on-line”, diz ela.

Por meio de acordos estabelecidos no final de 2014, herbários de outros países começaram a enviar as imagens de plantas brasileiras mantidas em suas coleções. O Jardim Botânico de Nova York enviou 52 mil das 320 mil ima-gens previstas. O Jardim Botânico da Uni-versidade de Missouri, também nos Esta-dos Unidos, mandou 17 mil, de um total estimado em 170 mil. Em breve começarão a chegar milhares de imagens também de museus de Viena e de Estocolmo. Tais imagens ajudam a conhecer os primei-ros registros, as chamadas espécies-tipo, fundamentais para os pesquisadores sa-berem se as plantas supostamente novas que eles coletaram são realmente novas. A espécie-tipo da mandioca (Manihot es-culenta), por exemplo, foi coletada em

1

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pesQUisA FApesp 229 z 39

Biota-FAPESP. O species-Link ganhou forma logo depois, com informações sobre a biodiversida-de paulista e mais tarde também de outros esta-dos. Em 2006, o Cria lan-çou a versão eletrônica da Flora Brasiliensis (flo-rabrasiliensis.cria.org.br), com 15 volumes e 22.767 espécies descritas, pro-duzida entre 1840 e 1906, e começou a colaboração com instituições de ou-tros países – principal-mente, os jardins botâ-nicos de Nova York e de Missouri – para repatriar as informações de plan-tas coletadas no Brasil.

Um dos projetos mais recentes foi a produção do Her-

bário Virtual Saint-Hi-laire, com cerca de 9 mil registros e quase 4.500 espécies-tipo. O natura-lista francês foi o primei-ro a descrever, em 1816, logo depois de chegar ao

Brasil, a erva-mate (Ilex paraguariensis), de uma fazenda próxima a Curitiba, e o pequizeiro (Caryocar brasiliense), en-contrado em Minas Gerais. Até voltar à Europa, em 1822, ele percorreu também Rio de Janeiro, Goiás, São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e trechos da Argentina e do Paraguai. Seus 10 cader-nos de campo, agora no herbário virtual, além de descrições das coletas, contêm comentários sobre os costumes dos mora-dores das localidades que ele visitava. Por

sempre-viva (Comanthera nivea):

em kew desde 1887, revisada por

botânicos da UsP em 1993 e pelo

reflora, em 2011. Abaixo, uma pasta

com amostras de plantas coletadas

em campo: acervo físico

essa razão, diz Dora, “é uma ferramenta também para historiadores e sociólogos”.

Os relatos foram publicados em li-vros, oferecendo vívidos retratos das paisagens, como no Segunda viagem a São Paulo e quadro histórico da provín-cia de São Paulo. “Admirei sobretudo a brilhante iluminação da igreja do Car-mo”, ele anotou ao chegar em São Paulo em 1822. “As ruas se achavam cheias de povo, que passeava, de igreja em igreja, mas unicamente para vê-las sem a menor aparência de devoção. Vendedoras de confeitos e doces sentavam-se no chão, à porta das igrejas, e as pessoas do povo compravam as guloseimas para oferecer às mulheres com quem passeavam.”

Romaniuc Neto manuseava os cadernos de Saint-Hilaire enquanto fazia o dou-torado no Museu de História Natural de Paris, de 1996 a 1999. De volta a São Pau-lo, ele fez um projeto de digitalização das plantas e dos cadernos de campo, com apoio da FAPESP e da Fundação Vitae formalizou o acordo de cooperação entre o museu de Paris, o Instituto de Botâni-ca e o Cria e voltou a Paris em busca das plantas coletadas por Saint-Hilaire, dis-persas na coleção de 12 milhões de amos-tras, para dar forma ao herbário virtual.

Agora, seu plano é usar essas informa-ções em análises espaciais e históricas. “Estamos mesmo perdendo biodiversi-dade? Quanto e como? Podem ter sur-gido outras espécies no mesmo espaço das anteriores, mantendo a diversidade. Devemos proteger espaços ou espécies? Somente a análise histórica e espacial da biodiversidade pode nos ajudar a respon-der a estas questões”, diz ele. Rafaela, do Jardim Botânico, acrescenta: “Para avan-çar, precisamos do passado”. Os botânicos estão satisfeitos, ao verem um de seus so-nhos antigos, os herbários on-line, tomar forma, mas também preocupados, por temerem que a dificuldade em obter fi-nanciamentos de longa duração possa pre-judicar a continuidade dessas bases com informações sobre as plantas do Brasil. n

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ProjetoHerbário virtual saint-Hilaire (nº 2006/57363-4); Moda-lidade Auxílio à Pesquisa; Pesquisador responsável sergio romaniuc Neto (instituto de Botânica-sP); Investimento r$ 160.123,56 (fAPesP).

Artigo científicoPiGNAl, m. et al. saint-Hilaire virtual herbarium, a new upgradeable tool to study Brazilian botany. Adansonia. v. 35, n. 1, p. 7-18. 2013.

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Pesquisas brasileiras com asteroides

próximos podem ajudar a estimar risco de

colisões com a Terra

ciência asTronomia y

Perigo na vizinhança

no último dia 26 de janeiro, o noticiário estampou uma manchete que se repete quase todos os anos: “Asteroide passa perto da Terra”. Naquele dia, um corpo rochoso chamado de 2004 BL86, com 325

metros de comprimento, chegou a cerca de 1,2 milhão de quilômetros (km) de distância do planeta, para depois se afastar e prosseguir sua órbita ao redor do Sol. Os astrôno-mos jamais haviam observado um asteroide desse tamanho se aproximar tanto, ainda que essa distância fosse três vezes maior do que a que separa a Terra da Lua. Parece uma dis-tância segura, mas não é. Todo asteroide com mais de 150 metros de comprimento que chega a menos de 7,5 milhões de km da órbita da Terra é catalogado pela União Astronômica Internacional como “potencialmente perigoso”. O termo soa alarmante, mas não é motivo para pânico. Significa apenas que há algum risco, ainda que pequeno, de esses objetos colidirem com a Terra nas próximas centenas de anos. Uma equipe de astrônomos da Universidade Estadual Paulista (Unesp) vem realizando cálculos e observações inéditas para descobrir de que são feitos esses asteroides próximos e quanto tempo ficam na vizinhança da Terra.

igor Zolnerkevic

40 z março DE 2015

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pESQUiSa FapESp 229 z 41

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ameaça vigiada: mapa da trajetória de cerca

de 1.400 asteroides com mais de 140

metros que cruzam a órbita da Terra

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42 z março DE 2015

reconstituição artística do primeiro

sistema triplo de asteroides

descoberto: o maior, sylvia, tem 270 km

12 de fevereiro de 2008 13 de fevereiro de 2008O impacto de um asteroide com o tamanho do 2004 BL86 liberaria uma energia equivalente à de dezenas de bombas atômicas. Não seria su-ficiente para causar a extinção da vida na Terra – para tanto, seria necessário um asteroide com alguns quilômetros de extensão, semelhante ao que caiu há 65 milhões de anos onde hoje é o golfo do México e teria extinto os dinossauros. Dependendo de onde caísse, porém, um aste-roide poderia destruir cidades inteiras. Mesmo um objeto celeste bem menor pode causar da-nos sérios. Em fevereiro de 2013, um asteroide de apenas 20 metros de diâmetro explodiu a 29 km de altura sobre a cidade de Chelyabinsky, na Rússia. Ninguém morreu durante o evento, mas a onda de choque gerada pela explosão feriu cerca de 1.500 pessoas e danificou milhares de edificações. Alguns pesquisadores estimam que impactos como o de Chelyabinsky aconteçam de uma a três vezes a cada século, mas o fato é que ainda se sabe muito pouco sobre os objetos pequenos (com dezenas a centenas de metros) para que se tenham cálculos precisos.

dE olho no ESpaçoOs Estados Unidos e alguns países europeus vêm investindo nas últimas duas décadas em progra-mas de observação de asteroides potencialmente perigosos. Segundo um relatório publicado pela Nasa em setembro passado, já foram descobertos 867 dos estimados mil asteroides com mais de um 1 km de comprimento que passam perto da Terra. Felizmente, nenhum deles deve oferecer risco ao planeta nos próximos séculos. O problema, segundo o relatório, são os asteroides menores, com menos de 150 metros. Teorias e observações astronômicas sugerem que existem milhões des-ses corpos rochosos nas proximidades da Terra, mas apenas 10% foram descobertos.

Mas projetos de monitoramento como os fi-nanciados pela Nasa não são suficientes. Eles varrem o céu inteiro várias vezes por noite para identificar novos objetos celestes potencialmente perigosos, mas não conseguem determinar com precisão a trajetória desses corpos. Só se consegue determinar com rigor a órbita desses asteroides por meio de observações por períodos mais lon-gos, como as que vêm sendo feitas pelo projeto Impacton, sigla de Iniciativa de Mapeamento e Pesquisa de Asteroides nas Cercanias da Terra no Observatório Nacional. Os pesquisadores do Impacton projetaram e construíram um obser-vatório em Itacuruba, no sertão de Pernambuco (ver Pesquisa FAPESP nº 156). Com espelho de 1 metro de diâmetro, o telescópio do Impacton funciona desde 2011 ajudando a determinar a órbita, o tamanho e a forma de asteroides pró-ximos à Terra.

Enquanto a equipe do Impacton se ocupa de observações, a especialidade de Othon Winter e seus colegas da Faculdade de Engenharia da Unesp em Guaratinguetá são os estudos teóri-cos, baseados em simulações em computador. Winter quer entender a dinâmica de duplas e trios de asteroides perigosamente próximos à Terra. Recentemente, ele e a astrônoma Rosana de Araújo, que realiza pós-doutoramento com o grupo da Unesp, calcularam quanto tempo esses sistemas podem permanecer perambulando pe-la vizinhança terrestre sem se fragmentarem – terminando, às vezes, por colidir com o planeta.

Grupos internacionais que haviam estudado a órbita dos asteroides que circulam entre Mer-cúrio, Vênus, Terra e Marte, os planetas mais internos do sistema solar, haviam estimado que nenhum corpo pequeno – seja ele asteroide, seja cometa; os primeiros são mais densos e se for-mam mais próximos ao Sol, enquanto os últimos, além de menos densos, contêm mais água e ele- im

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o sistema triplo de asteroides 2001

sn263: imagens de radar mostram

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pESQUiSa FapESp 229 z 43

mentos químicos voláteis – consegue permanecer em uma órbita estável nessa região por mais de 10 milhões de anos. A órbita deles se desestabi-liza em algum momento, quando se aproximam de algum desses planetas. Como consequência, o pequeno corpo celeste pode co-lidir com o Sol, com os planetas ou suas luas, ou ainda ser ejetado para longe, em direção aos confins do sistema solar.

Esse resultado gerou uma dú-vida. Se os asteroides deveriam permanecer na vizinhança da Ter-ra por apenas alguns milhões de anos, por que a maioria deles ain-da não desapareceu, dado que o sistema solar tem estimados 4,5 bilhões de anos? Uma possível explicação para a existência de tantos asteroides por aqui é que algum processo estaria constan-temente repovoando o espaço em torno da Terra.

Os astrônomos em geral acredi-tam que a maioria dos asteroides que circulam nessa região do sis-tema solar se originou no chamado cinturão de asteroides, uma enor-me faixa entre Marte e Júpiter que abriga meio milhão de asteroides com mais de 500 metros de com-primento e incontáveis asteroides menores. Mas não é qualquer asteroide do cinturão que é ca-paz de migrar para perto da Terra. Só são lança-dos para a região mais interna do sistema solar os asteroides pertencentes a certos grupos – as

chamadas famílias de as-teroides – com trajetórias e composição rochosa se-melhantes, cujas órbitas sentem de maneira mais intensa perturbações dos planetas Júpiter e Satur-no. Essas perturbações, somadas à irradiação do calor que absorvem do Sol, fazem esses corpos celestes migrarem para mais perto de Marte e o planeta vermelho pode então lançá-los para fora do sistema solar ou para perto da Terra.

Com base na composi-ção mineral da superfície dos asteroides, é possível agrupar esses corpos em famílias. A superfície do 2004 BL86, por exemplo,

contém basalto, rocha rica em ferro e magnésio típica dos asteroides que integram a família do Vesta, o segundo maior asteroide do cinturão. Essa composição, no entanto, não garante que o 2004 BL86 seja um fragmento do Vesta. Ele pode ter se originado de outro asteroide maior que já foi destruído.

Enquanto o tempo de vida de um asteroide solitário na vizinhança da Terra é da ordem de 10 milhões de anos, o estudo de Rosana e Win-ter publicado em 2014 na revista Astronomy & Astrophysics sugere que sistemas formados por pares de objetos celestes duram ainda menos. Dependendo de como suas órbitas cruzam a da Terra, as duplas de asteroides não existiriam por mais de 2,2 milhões de anos.

Esses cálculos estão ajudando a situar no tempo a origem de um dos corpos celestes mais estra-nhos que já se observaram no espaço próximo à Terra: o sistema triplo de asteroides 2001 SN263. Por ser triplo, ele teria se mudado há bem menos tempo para a vizinhança da Terra.

Trio ESpEcialA história do 2001 SN263 lembra a da espaço-nave alienígena do romance de ficção científica Encontro com Rama, de Arthur Clarke. O que é apenas um novo ponto luminoso no céu no início do livro se revela um corpo celeste cada vez mais intrigante à medida que se aproxima da Terra. Quando o 2001 SN263 foi descoberto em 2001 pelo projeto de monitoramento Linear, da Nasa, parecia apenas mais um asteroide com mais de 1 km de comprimento que se aproximava da Ter-ra o suficiente para ser classificado como quase perigoso. A surpresa veio em 2008, quando o as-

Vindos do cinturão entre marte e Júpiter, asteroides solitários permaneceriam até 10 milhões de anos próximos à Terra

o previsto e o observadonúmero de asteroides com menos de 100 metros já detectados próximos ao planeta é bem menor do que o que se calcula existir

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teroide se aproximou mais e imagens do radiote-lescópio Arecibo, em Porto Rico, revelaram que se tratava de um sistema de três objetos muito próximos: os dois menores – Beta, de 1,1 km de extensão, e Gama, de 400 m – orbitam o maior, Alfa, com 2,8 km de comprimento. Além desse, só existe outro sistema triplo de asteroides pró-ximo à Terra, o 1994CC. Mas o 2001 SN263 é o mais peculiar. “Diferentemente da meia dúzia de sistemas triplos de asteroides conhecidos do sistema solar, o 2001 SN263 é o único em que os três corpos do sistema possuem tamanho seme-lhante”, explica Winter. “Nos outros casos um corpo do sistema é bem maior que os outros dois.”

origEm EnigmáTicaA origem da maioria dos sistemas triplos é uma colisão. Ela arranca pedaços de um asteroide maior, que, posteriormente, passam a orbitá-lo como duas pequenas luas. “Não existe uma teoria simples para explicar como se forma um sistema triplo com asteroides de tamanhos comparáveis”, diz Winter. “Para quebrar um asteroide maior em três pedaços grandes, o impacto deve ter sido significativo, mas os pedaços não deveriam estar próximos uns dos outros.”

Uma possível explicação é que três asteroides do 2001 SN263 seriam os pedaços de um asteroi-de maior que teria sofrido um efeito semelhante ao que ocorreu com o cometa Shoemaker-Levy 9. Em 1992, o núcleo de gelo e poeira do cometa pas-sou próximo demais do planeta Júpiter e a força gravitacional do planeta fez o corpo do cometa se desmanchar em quase duas dúzias de fragmentos. “É uma possibilidade, mas ela só poderia ter ocor-rido se a estrutura do asteroide que originou o sis-tema 2001 SN263 fosse frágil e porosa, como a de um cometa”, explica Winter. “É o que chamamos de asteroide tipo ‘pilha de escombros’, um aglo-merado de rochas meio soltas, com muito espaço vazio entre elas.”

O 2001 SN263 é o alvo escolhido por Winter para uma primeira missão espacial interplanetária totalmente planejada no Brasil. A ideia da Missão Aster, como ficou conhecido o projeto, nasceu de um desafio informal que Winter fez a seu colega Elbert Macau, engenheiro aeroespacial do Ins-tituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), logo após a descoberta de que o 2001 SN263 era um sistema triplo. O projeto envolve cerca de 50 pesquisadores de instituições brasileiras, incluin-do USP, Unesp, Unicamp, UFABC, Inpe e Escola de Engenharia Mauá, além da colaboração com pesquisadores do Instituto Russo de Pesquisas Espaciais, e tem por objetivo enviar uma pequena sonda espacial e equipamentos para dois expe-rimentos adicionais – um de geofísica espacial e outro de astrobiologia –, todos com tecnologia brasileira, aos asteroides do sistema 2001 SN263.

A sonda levaria a bordo três instrumentos para investigar a superfície dos asteroides: uma câmera de alta resolução, um espectrógrafo infraverme-lho, para analisar a composição de seus minerais, e um laser, para medir distâncias. Depois, se tu-do der certo, a sonda se jogaria sobre o asteroide alfa, caindo em sua superfície e realizando mais observações. “É um projeto concreto, totalmen-te factível”, afirma Winter. Ainda assim a missão segue sem garantia de verba para sua execução, que deve custar cerca de US$ 40 milhões, valor considerado baixo em comparação com o de mis-

rastro no céu de chelyabinski, rússia,

feito por fragmentos de asteroide do tipo “pilha de escombros”, como o

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pESQUiSa FapESp 229 z 45

sões espaciais europeias ou norte-americanas. A equipe da Missão Aster espera obter esses re-cursos em breve, para aproveitar a aproximação máxima do 2001 SN263 com a Terra, em 2022. Depois disso, será necessário aguardar mais três anos, até que o asteroide dê outra volta em torno do Sol e se aproxime da Terra novamente.

maTErial primordialMesmo que a missão não saia, Winter já realizou bastante ciência em função de seus preparativos. Em 2010, ele recebeu em Guaratinguetá o astrô-nomo italiano Davide Perna, do Observatório de Paris, especialista em asteroides próximos à Terra e um dos pesquisadores envolvidos no projeto NEOShield, financiado pela Comissão Europeia para ava-liar as opções que a humanidade teria para desviar um asteroide em rota de colisão com a Terra. Perna liderou o trabalho de um grupo de pesquisadores de ins-tituições europeias, do ON e da Unesp que observou o 2001 SN263 com o telescópio VLT, do Obser-vatório Europeu do Sul, em Cerro Paranal, no Chile – a equipe con-seguiu tempo no VLT em caráter emergencial, pois os asteroides só estariam ao alcance do telescópio novamente daqui a muitos anos.

E o 2001 SN263 surpreendeu mais uma vez. A análise das ob-servações, publicada em 2014 na Astronomy & Astrophysics, determinou que a su-perfície dos asteroides desse sistema possui o tom de cor azul mais escuro já observado em um corpo pequeno do sistema solar. Os pesquisadores su-gerem que essa cor é um forte indicativo de que esses asteroides sejam ricos em matéria orgânica

e minerais contendo água. “O 2001 SN263 seria feito de um material muito antigo, remanescente da formação dos primeiros corpos rochosos do sistema solar, há 4 bilhões de anos”, diz Winter.

Esse trabalho também sugere que os asteroi-des do sistema 2001 SN263 são feitos de grãos de tamanho e composição variados, o que favorece a ideia de que seriam “pilhas de escombros”. Estudos do projeto NEOShield indicam que os asteroides desse tipo estariam entre os mais pe-rigosos, pois mesmo um foguete com ogiva nu-clear não seria capaz de desviá-lo se estivesse em rota de colisão com a Terra. Menos denso, o asteroide abrigaria gases que seriam capazes de absorver a energia da explosão, sem desmanchá--lo ou alterar sua rota. “O sucesso dos métodos para desviar asteroides em rota de colisão com a Terra depende de saber do que eles são feitos, de sua rigidez e porosidade”, explica Winter. Daí a importância de missões como a Aster, ou a missão Osiris ReX, da Nasa, a ser lançada em 2016 para visitar um asteroide potencialmente perigoso: o Bennu, cuja composição parece ser semelhante à do 2001 SN263. “Se o 2001 SN263 for mesmo três fragmentos de um objeto maior que se rompeu, a Missão Aster poderia obter informações únicas”, diz Winter. “Seria como observar o interior de um asteroide maior, algo que nunca foi feito.” n

ProjetoDinâmica orbital de pequenos corpos (n. 11/08171-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável othon cabo Winter (unesp/Guaratinguetá); Investimento r$ 560.886,80 (FaPesP).

artigos científicosPerna, D. et al. The triple near-earth asteroid (153591) 2001 sn263: an ultra-blue, primitive target for the aster space mission. Astronomy & Astrophysics. v. 568. 15 ago. 2014.araÚJo, r. a. n. e WinTer, o. c. near-earth asteroid binaries in close encounters with the earth. Astronomy & Astrophysics. v. 566. 2 jun. 2014.

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asteroides do sistema triplo 2001 Sn263 parecem ser ricos em matéria orgânica e minerais que contêm água

cratera de barringer, nos estados unidos,

gerada pela queda de um corpo compacto e denso semelhante ao

asteroide lutetia

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Com bolhas de sabão e uma ponteira

a laser, pesquisadores criam modelo

de fenômeno atmosférico luminoso

Sol de laboratório

Com água, detergente para lavar louça e uma ponteira a laser, daquelas usadas em palestras, o casal de físicos Adriana e Alberto

Tufaile criou um modelo experimental e forneceu uma nova explicação para um fenômeno natural que fascina a humani-dade há pelo menos 2,3 mil anos, desde os tempos de Aristóteles: o aparecimento de um conjunto de efeitos luminosos em torno do Sol denominado tecnicamente parélio. Em zonas frias, a luz solar interage com pequenos cristais de gelo em suspen-são na atmosfera e, sob certas condições, faz surgir pares de manchas brilhantes (os chamados falsos sóis ou cães de Sol), um halo (círculo parélico) e linhas retas (pilares do Sol) ao redor do astro. Em oca-siões ainda mais raras, essas formações também ocorrem nos arredores da Lua.

Os professores do Laboratório de Ma-téria Mole da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universida-de de São Paulo (USP), campus da zona leste, realizavam em meados de 2013

ensaios sobre o espalhamento da luz em espuma formada por sabão, um dos seus campos de estudo, quando se depararam com essa mesma série de figuras proje-tadas ao fundo do experimento. “Não tínhamos ideia do que poderia ser”, diz Alberto. “Fizemos uma longa pesquisa e o único fenômeno semelhante era o parélio, que não conhecíamos.” A des-coberta foi relatada em artigo publicado em 9 de dezembro na versão eletrônica da revista científica Physics Letters A. “Até hoje as explicações para o fenômeno atmosférico só levaram em conta a ótica geométrica, que trata a luz como partícu-la e segue as ideias de Newton”, afirma Adriana. “Mas nosso estudo sugere que o círculo parélico é fruto principalmen-te da característica ondulatória da luz.”

As figuras praticamente análogas às manchas brilhantes, linhas retas e círcu-lo que se formam ao redor do Sol foram observadas em laboratório quando os físicos iluminaram com o feixe de la-ser a chamada borda de Plateau, exa-

Marcos Pivetta

Laser em bolhas de sabão gera padrão luminoso similar ao parélio solar: manchas, círculo e linhas retas

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PESQUISA FAPESP 229 z 47

tamente o ponto de contato entre três finos filmes de bolhas de detergente. A região de intersecção recebe esse nome em homenagem ao físico belga Joseph Plateau. No século XIX, ele observou que as bolhas sempre se encontram em trios e formam uma espécie de quina, que sustenta suas tênues paredes. Mu-dando o ângulo de incidência da luz sob a borda de Plateau, formada no interior de uma caixa de acrílico fechada (célula de Hele-Shaw) que abriga uma solução de água e detergente, Adriana e Alberto notaram que apareciam mais ou menos figuras, de diferentes tamanhos e com distinta nitidez. Intrigada com o padrão luminoso gerado pelo laser no experi-mento feito na USP Leste, Adriana re-solveu um dia tentar reproduzir o ensaio em casa. Botou água com sabão em um pires, agitou a mistura para formar bo-lhas e apontou uma ponteira de laser na direção da borda de Plateau, o ponto de encontro de três filmes de espuma. Não deu outra: as manchas luminosas, as li-lé

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48 z março DE 2015

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nhas e o círculo surgiram na parede de sua casa. “Em ambiente aberto, a borda de Plateau se desfaz mais rapidamente”, explica a física. “Por isso usamos a célula de Hele-Shaw.”

Uma das chaves para entender a simila-ridade entre os dois fenômenos, o atmos-férico e o das bolhas de sabão, está ligada à simetria extremamente parecida dos cristais de neve e das bordas de Plateau, segundo a dupla da USP, cujos estudos fa-zem parte do Instituto Nacional de Ciên-cia e Tecnologia de Fluidos Complexos (INCT-FCx), financiado pela FAPESP e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Os cris-tais têm formato hexagonal e as bordas são triangulares. Essas duas figuras geo-métricas exibem uma íntima relação: um hexágono regular pode ser visto também como a junção de seis triângulos equiláte-ros. Portanto, ao incidir sobre essas duas estruturas, a luz do Sol ou a do laser se espalha de acordo com o mesmo princí-pio. “É muito difícil estudar em detalhes a formação das imagens nesse raro fenô-

meno atmosférico”, explica Alberto. “E capturar os cristais de gelo envolvidos no fenômeno é praticamente impossível.” Como tinham identificado um análogo do parélio do Sol em seus ensaios com bolhas de detergente e laser, o casal de pesquisadores decidiu investigar a fundo o mecanismo por trás da formação desse padrão de imagens luminosas.

Depois de repetir o experimento várias vezes no laboratório, usan-do inclusive lasers de três cores

diferentes (verde, azul e vermelho) para se certificar de que o comprimento de onda de luz não interferia no resultado, e estudar a literatura científica sobre o fenômeno atmosférico, Adriana e Al-berto chegaram à conclusão de que a explicação das figuras formadas passa-va essencialmente pelo caráter ondula-tório da luz. Mais especificamente eles acreditam que, ao se chocar com o ponto de encontro das três bolhas de sabão, o feixe de laser espalha a luz por meio de dois processos similares, interferência e difração, em especial o segundo. A di-fração é um fenômeno visto durante a propagação de diferentes tipos de ondas, como as sonoras, as eletromagnéticas e até as formadas na água. Ocorre quando o som ou a luz encontra um obstáculo ou uma fenda de dimensões diminutas, mais ou menos do mesmo tamanho do seu comprimento de onda, e esse cho-que altera o seu ângulo de propagação. O resultado da difração é provocar um desvio no caminho do feixe de ondas ou o seu espalhamento. O fenômeno é mais fácil de ser observado com as ondas so-noras, maiores do que as da luz visível.

Quadro Vädersolstavlan, de 1535: tela retrata o parélio nos céus de Estocolmo

físicos da UsP dizem que círculo e

linhas retas do padrão luminoso se

devem ao caráter ondulatório da luz

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PESQUISA FAPESP 229 z 49

Projetoinstituto Nacional de Ciência e Tecnologia de fluidos Com-plexos (iNCT-fCx) (nº 2008/57685-7); Modalidade Pro-jeto Temático – iNCT; Pesquisador responsável antônio martins figueiredo Neto (if-UsP); Investimento (em todo o iNCT): 2.522.238,07 (faPEsP) e 2,5 milhões (CNPq).

artigo científicoTUfailE, a. e TUfailE, a. P. B. Parhelic-like circle from light scattering in Plateau borders. Physics Letters A. 4 dez. 2014.

No caso do laser que ilumina as bolhas de sabão, o feixe de luz incide sobre a borda de Plateau, uma região de alguns nanômetros de comprimento que for-ma um pequeno tubo triangular capaz de espalhar a luz. A luz chega no ponto de junção das três bolhas na forma de um único feixe de laser, reto e concen-trado. Depois de se chocar com o tênue obstáculo, ela dá origem a uma série de feixes menos potentes e mais finos que vão formar o padrão luminoso associado ao fenômeno. Uma parte do laser inicial praticamente passa reto pela borda e origina, numa superfície branca situa-da atrás do experimento, um ponto lu-minoso mais forte, o equivalente ao Sol original que se vê na versão atmosférica do fenômeno. A luz dessa mancha se re-flete nas bolhas de sabão e produz duas ou quatro imagens espelhadas, menos vigorosas que a original, os tais falsos sóis no caso da ocorrência celeste. “É interessante notar que esses pontos lu-minosos sempre se formam sobre a linha que delimita o círculo”, afirma Adriana.

a té esse ponto, a explicação da du-pla de brasileiros é mais ou menos igual às ideias de outros pesquisa-

dores para dar conta do parélio solar. Sua contribuição ganha importância quando eles introduzem a questão da difração da luz causada por finos filmes de espuma. As linhas retas, em geral três, que cortam o ponto principal, o “sol original” do ex-perimento, são formadas pela difração de parte da luz que incide na estrutura triangular da borda de Plateau. É como se a parede de cada uma das três bolhas que se encontram encostadas umas nas outras desse origem a uma linha reta. Para que também o halo do fenômeno se forme, é necessário um requisito extra: o laser tem de incidir de forma oblíqua na borda de Plateau. Dessa forma, outra fração da onda de luz difratada se espa-lha num formato cônico, formando assim um círculo perfeito. “Nossa explicação é mais simples do que as outras teorias que usam apenas reflexão e refração da luz, e não seu caráter ondulatório, para explicar o fenômeno atmosférico”, diz Alberto.

O Sol e suas réplicas de menor intensi-dade são uma ocorrência celeste que tem fascinado o homem há tempos, de acordo com registros escritos e até representa-ções pictóricas desse evento. No século

IV a. C., Aristóteles faz referência a esse tipo de evento no livro Meteorologica. Considerado como a primeira represen-tação de Estocolmo, o quadro Vädersols-tavlan, de 1535, retrata o fenômeno em sua plenitude nos céus da capital sueca. Ainda no século XVI, o dramaturgo in-glês William Shakespeare faz referên-cia ao parélio na terceira parte da peça Henrique VI. O francês René Descartes foi a Roma em 1629 para ver o fenômeno e também escreveu a respeito dele. Em alguns momentos, certas culturas che-garam a associar a ocorrência do parélio com a iminência de guerra. Adriana e Alberto, quando viram a versão a laser e com bolhas de sabão do fenômeno em seu laboratório na USP Leste, avaliaram que estavam diante de um interessante – e milenar – tema de pesquisa. n

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50 z março DE 2015

Ferramentas matemáticas ajudam

a identificar de forma automática crateras

e redemoinhos em Mercúrio e Marte

CartograFia planetária y

Olhar eletrônico

marte pode até ser desabitado, mas está longe de ser um lu-gar tranquilo. Sua superfície é frequentemente varrida por

poderosos redemoinhos, os dust devils, que alcançam dimensões até 100 vezes maiores do que os redemoinhos regis-trados na Terra. Em Marte, eles chegam a ter 2 quilômetros de raio e 20 quilô-metros de altura. Visíveis da órbita do planeta, deixam atrás de si rastros com quilômetros de extensão e modelam a paisagem marciana.

Até agora os pesquisadores interes-sados em estudar o fenômeno têm sido obrigados, na maioria das vezes, a pro-curar seus rastros examinando manual-mente uma a uma as imagens da super-fície marciana. Mas um novo método, desenvolvido por brasileiros e portu-gueses, promete facilitar a pesquisa ao permitir a detecção automática tanto do traçado quanto de outras características dos dust devils. O método já apresentou uma acurácia de 92% e continua sendo aperfeiçoado.

Pablo Nogueira

ima

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Marte, depois da Terra, é o planeta mais bem estudado da história. Já recebeu a vi-sita de 15 sondas espaciais, que fizeram so-brevoos ou entraram em sua órbita. “Uma única câmera, de uma única sonda, chega a produzir 2 mil imagens de cada região de Marte”, diz o engenheiro cartógrafo Thia-go Statella, professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Ma-to Grosso, em Cuiabá. Statella trabalhou sob a orientação do engenheiro cartógrafo Erivaldo Antônio da Silva, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Presidente Prudente, e de Pedro Pina, do Instituto Superior Técnico (IST), da Universida-de de Lisboa, no desenvolvimento de um programa capaz de fazer a detecção auto-mática dos rastros dos dust devils.

O programa usa ferramentas da mor-fologia matemática, uma técnica de pro-cessamento digital que extrai informa-ções de imagens, neste caso, feitas por câmeras a bordo das sondas orbitais Mars Global Surveyor (MGS) e Mars Reconaissance Orbiter (MRO). Criada nos anos 1960 na França pelos matemá-

ticos Georges Matheron e Jean Serra, a morfologia matemática foi empregada inicialmente para extrair informações de imagens de microscopia de rochas e metais por meio da análise de suas es-truturas geométricas. Aos poucos, seu uso foi extrapolando para outras áreas até chegar à cartografia. Hoje ela auxilia na identificação de estruturas em outros planetas, a chamada cartografia planetá-ria. “Nosso grupo já usava a morfologia matemática em trabalhos de mapeamen-to da superfície terrestre, o que no início não era algo muito comum. Foi isso que despertou o interesse dos pesquisadores de Portugal em colaborar”, conta Silva.

O processamento de imagens baseado na morfologia matemática permite ma-nipular a tonalidade dos pixels e, assim, realçar ou eliminar determinadas carac-terísticas da imagem. Com essa estraté-gia, limpa-se da imagem o que não inte-ressa – por exemplo, vales, rochas, dunas e sombras – e restam apenas os rastros dos dust devils. O resultado é uma ima-gem com tons muito claros, plasmados

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PesQUisa FaPesP 229 z 51

Mapa da superfície de Marte, com a

região analisada (em destaque); ao lado, dust devil flagrado

em 2012 pela câmera da sonda Mars

reconnaissance orbiter

sobre um fundo escuro, que oculta as de-mais características da imagem original.

Os pesquisadores usaram a técnica para tratar 200 imagens de cinco regiões de Marte captadas pelas sondas MGS e MRO e compararam os resultados com a análise visual feita por um expert. O índice de acertos do programa variou de 69% a 99%, dependendo da imagem. A média foi de 92%.

O ladO dO veNtOA detecção dos rastros também pode for-necer informações sobre o funcionamento da atmosfera do planeta. Os dust devils se formam pela movimentação dos gases na atmosfera marciana. A luz solar que inci-de sobre o solo aquece os gases próximos à superfície, que ascendem e empurram as camadas mais superiores da atmosfera para o alto. À medida que sobem, essas camadas resfriam e descem, gerando um movimento contínuo conhecido como cé-lula de convecção. Rajadas de vento po-dem deslocar o ar quente na horizontal e alterar a direção da célula de convecção,

Statella, Silva e Pina também desen-volveram um programa que, a partir dos rastros detectados na imagem, calcula a direção preferencial dos ventos. Os resultados obtidos por essa estratégia foram semelhantes aos de uma análise feita manualmente e aos do GCM, segun-do estudo publicado em 2014 na revista Advances in Space Research.

“Uma das maneiras de aferir as previ-sões do GCM são as observações feitas pelas sondas que pousaram no planeta. Mas essas observações muitas vezes são pontuais”, diz Statella. “A detecção au-tomática da direção dos dust devils pode

originando os dust devils. Por essa razão, seus rastros podem guardar informação sobre a direção em que o vento soprava no momento em que foram formados.

Essas informações são importantes para aperfeiçoar o Modelo de Circula-ção Geral de Marte (GCM, na sigla em inglês), que vem sendo desenvolvido pela agência espacial norte-americana, a Na-sa, desde os anos 1960 com o objetivo de descrever o funcionamento da atmosfera do planeta e sua influência sobre o clima. Atualmente o GCM é capaz de predizer o comportamento esperado dos ventos nas diversas regiões marcianas.

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ciano. Ele pretende agora formar um banco de dados com o maior número possível de registros de dust devils para inferir quais os tipos mais comuns nas diferentes regiões do planeta e em quais períodos costumam ocorrer.

meNsageirO de mercúriOA equipe de Silva e Pina também usa ferramentas da morfologia matemáti-ca e outras técnicas de processamento de imagens para identificar crateras em Mercúrio, o planeta mais próximo ao Sol. Miriam Pedrosa, aluna de douto-rado na Unesp, vem desenvolvendo um programa para analisar as imagens feitas pela sonda Messenger. A sonda obteve as primeiras imagens da superfície de Mercúrio em sobrevoos feitos em 2008 e 2009 – desde que entrou na órbita do planeta em 2011, ela continua a enviar imagens com maior resolução.

Em seu mestrado, sob a orientação de Silva, Miriam havia desenvolvido um programa para a detecção automática de crateras em imagens de Marte. Para Mercúrio, o programa foi aprimorado por causa da menor resolução espacial das imagens obtidas pela Messenger. “Marte já recebeu a visita de diversas sondas. Por isso estão disponíveis ima-gens com ótima resolução, em algumas delas cada pixel representa uma área de 25 centímetros quadrados”, conta Mi-riam. “Já no caso de Mercúrio, a melhor resolução disponível tem em torno de 16 metros e, em alguns casos, não passa de 250 metros.” Isso significa que uma cra-tera com 100 metros de diâmetro pode desaparecer na foto. Além da resolução,

projetoDesenvolvimento de metodologia para a extração de feições cartográficas a partir de imagens digitais das superfícies dos planetas terra, Marte e Mercúrio (n. 2014/08822-2); Modalidade auxílio à pesquisa – re-gular; Pesquisador responsável erivaldo antonio da silva (Unesp); Investimento r$ 60.850,00 (Fapesp).

artigos científicosstatella, t.; pina, p.; silVa, e. a. automated determination of the orientation of dust devil tracks in Mars orbiter images. Advances in Space Research. v. 53, p. 1822-33. 2014.statella, t.; pina, p.; silVa, e. a. image processing al-gorithm for the identification of Martian dust devil tracks in MoC and Hirise images. Planetary and Space Science. v. 70, p. 46-58. 2012.

fornecer informações globais sobre a di-reção do vento numa determinada região.”

Essa estratégia, porém, fornece apenas a direção predominante dos ventos – a do maior número de rastros. O proble-ma é que uma única imagem pode exi-bir rastros com mais de uma orientação, gerados por dust devils que percorreram a região em diferentes momentos, sob regimes de vento distintos.

Statella testou três abordagens pa-ra estimar a direção predominante dos ventos em 190 imagens feitas pela MGS e pela MRO. A mais eficaz apresentou uma acurácia de 86,3%, quando com-parada com um gabarito produzido por um especialista. Em 100% dos casos a abordagem de Statella coincidiu com as previsões feitas pelo GCM em dife-rentes períodos para a região conhecida como Argyre, no hemisfério Sul mar-

características da superfície do planeta, sua proximidade do Sol e a qualidade dos detectores das câmeras também dificul-tam o uso do programa.

Miriam já analisou 47 imagens de três regiões – as bacias de Mozart, Rachma-ninoff e Raditladi – do planeta. O grau médio de acerto na identificação das crateras foi de 87%, quando comparado com a identificação feita por um espe-cialista. “O programa usa imagens com qualidade e resolução muito diferentes”, diz Miriam. “Os melhores resultados fo-ram obtidos com as de maior resolução.”

No caso de Mercúrio, no entanto, hou-ve um número expressivo de falsos posi-tivos – feições que o programa, equivo-cadamente, considerou como crateras. A fim de solucionar o problema, ela incluiu no método uma etapa em que informa características de feições que, embora pareçam crateras, não são. “Essa é uma nova tendência na detecção automáti-ca: fornecer ao classificador exemplos de feições que estão presentes na ima-gem analisada e não são crateras”, conta. “Dessa forma, o programa vai ‘aprenden-do’ a discriminar, até se tornar capaz de fazer a análise em fotos com caracterís-ticas muito distintas”, explica.

Poucos grupos trabalham com car-tografia planetária no Brasil, que deve sediar o próximo congresso da Inter-national Cartographic Association em agosto, com uma sessão dedicada ao tema. O da Unesp é um dos poucos que aplicam a morfologia matemática aos estudos na área. “Temos alguns resul-tados interessantes”, diz Silva. “A maior parte dos pesquisadores busca crateras com raio superior a 1 quilômetro, nós conseguimos detectar crateras com es-sas dimensões e estamos trabalhando para detectar crateras ainda menores.” n

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À caça dos dust devils: o programa analisa cada pixel da imagem original, realça os que integram formas pré-estabelecidas (traços alongados) e esmaece os demais; depois, converte os pixels realçados em branco e os demais em preto, gerando uma imagem em negativo e facilitando o estudo de propriedades dos redemoinhos

1200 m

Mercúrio: crateras detectadas corretamente (verde); erroneamente (vermelho) e não detectadas (azul)

2

antes depois

3

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pESQUISA FApESp 229 z 53

Alejandro Szanto de

Toledo ajudou a formar

uma geração de físicos

nucleares no país

Pouco antes do Carnaval de 1964 o físico Oscar Sala fazia a manu-tenção de um gerador de Van de Graaff, o equipamento mais avan-

çado que existia à época no país para ace-lerar partículas a velocidades muito eleva-das, quando um calouro que visitava seu laboratório na Universidade de São Paulo (USP) perguntou se poderia trabalhar ali com física nuclear. “Apareça na terça às 7 da manhã que você está engajado”, foi a resposta de Sala ao novato, que, aos 19 anos, só iniciaria a graduação semanas mais tarde. “Apareci no dia combinado e nunca mais saí [da universidade]”, con-tou Alejandro Szanto de Toledo em uma entrevista a colegas do Instituto de Física da USP, em 2012, onde trabalhou por mais de 50 anos. Alex, como o chamavam os amigos, morreu em São Paulo no dia 21 de fevereiro, em decorrência de um câncer de intestino. Tinha 69 anos e era casado com a física e professora Eloisa Madeira Szanto, com quem teve uma filha.

A mesma ousadia que o levou a abor-dar Sala, um físico renomado, permitiu a Szanto de Toledo construir uma carreira que lhe garantiu reconhecimento inter-nacional em física de baixas energias e a estabelecer no Brasil um dos poucos gru-pos que atuam em física de altas energias. Filho de pai húngaro e mãe espanhola, Szanto de Toledo nasceu em Tanger, no Marrocos, e migrou para o Brasil ainda criança. Estudou no Liceu Pasteur em São Paulo e, em 1963, prestou vestibular para física e para engenharia eletrônica na USP.

obiTuário y

Szanto de Toledo: habilidoso em

instrumentação e na realização de

experimentos

Por três anos, cursou ambos, até que abriu mão do segundo para se dedicar à pesqui-sa em física nuclear no grupo de Sala, seu orientador no mestrado e no doutorado.

Interessado por instrumentação, Szanto de Toledo identificou nos primeiros meses de trabalho vulnerabilidades que atrapa-lhavam o funcionamento do gerador de Van de Graaff. “Como eu já era presunçoso na época, falei ao Sala: ‘Olha, isso aqui tá tudo errado, tem de colocar um sistema de pro-teção’. E o Sala disse: ‘Então faz’”, contou certa vez. Seu empenho e habilidade em so-lucionar esses desafios levaram Sala, ex-di-retor científico da FAPESP, a encarregá-lo mais tarde de projetar e construir o equi-pamento – a fonte de íons – que forneceria as partículas usadas em um acelerador da geração seguinte, o Pelletron, inaugurado em 1972 para realizar experimentos que não podiam ser feitos com o Van de Graaff.

Foi no Pelletron que Szanto de Toledo e seus alunos realizaram experimentos que demonstraram que o choque de núcleos atômicos nem sempre os leva a se fundir completamente porque um deles pode se romper antes do impacto. Esses resultados corroboravam a hipótese do break up nu-clear, proposta nos anos 1980, e tornaram o grupo conhecido internacionalmente.

paixão pela física e pela fotografia

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“Esse resultado é importante para enten-der o que se passa no interior das estrelas e gerou toda uma linha de pesquisa”, conta o físico Jun Takahashi, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um dos discípulos de Szanto de Toledo.

Em meados dos anos 1990, Szanto de Toledo decidiu enveredar por uma no-va área de pesquisa. Enviou três de seus orientandos, Takahashi, Marcelo Mu-nhoz e Patrícia Facchini, para trabalha-rem em aceleradores mais potentes nos Estados Unidos e iniciarem os trabalhos em física de altas energias. Esses traba-lhos os levaram mais tarde a participar de um dos experimentos no Large Ha-dron Collider (LHC). “Uma das caracte-rísticas do Alex era seu entusiasmo pela física”, diz Munhoz, professor da USP.

Em dezembro de 2012, Szanto de To-ledo, que era membro do conselho su-perior da FAPESP, revelou outra de suas paixões: a fotografia. Lançou o livro Face a face: uma jornada pelos povos do mun-do, com 350 fotos de pessoas de dife-rentes etnias, resultado de suas viagens aos locais mais remotos do planeta. Nos últimos tempos, ele trabalhava em um novo livro, de retratos de crianças, que deve ser publicado em breve. n

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54 z março DE 2015

Especializações nas raízes permitem que plantas

vivam no ambiente infértil dos campos rupestres

botânica y

Estratégias subterrâneas

tExto Maria Guimarães

Fotos Rafael Oliveira

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menos de 1% do território brasileiro:

vegetação nasce na rocha em serras

de minas Gerais, bahia e Goiás

paisagem típica de campo rupestre

na serra da canastra

serra do cabral

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Quando partiram para examinar com olhar botânico a vegetação da serra do Cabral, em Minas Gerais, o biólogo Ra-fael Oliveira, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e seus alunos

estavam preparados para surpresas. Nesse ambien-te em que as plantas crescem sobre rochas ou em meio a uma areia tão branca que parece sal, e por isso conhecido como campo rupestre, é surpreen-dente que elas encontrem maneiras de sobreviver. Conseguem graças a um arsenal de truques que os pesquisadores mal começaram a desvendar. E a variedade também surpreende: um levantamento ainda não publicado, liderado pelo biólogo Fernando Silveira, da Universidade Federal de Minas Gerais, estima que há cerca de 11 mil espécies (um terço da biodiversidade vegetal brasileira) numa área que não chega a 1% do território nacional, salpicada principalmente ao longo da serra do Espinhaço. “Ainda estamos longe de entender os mecanismos evolutivos que geram e mantêm essa diversidade”, afirma Oliveira, que participou do levantamento.

À primeira vista, a equipe da Unicamp reparou que apenas quatro espécies eram comuns nas áreas de areia, solo quase desprovido de água e nutrientes,

e que uma delas aparecia sempre perto de uma planta diferente, entre outros acha-dos. “Tinha que haver algo especial para possibilitar essa existência”, relembra Oliveira. Uma dessas soluções, comum nos campos rupestres, é ser carnívora. A delicada Philcoxia minensis mantém suas minúsculas folhas grudentas enterradas na areia, onde captura e digere vermes subterrâneos, conforme mostra artigo publicado em 2012 na PNAS, resultado do trabalho de iniciação científica do bió-logo Caio Pereira (ver Pesquisa FAPESP nº 194). É a primeira vez que se identifica a capacidade de consumir animais numa espécie da família das plantagináceas, ampliando o alcance conhecido dessa estratégia. Mas a paisagem guardava ou-tras novidades. Ao desenterrar cactos da espécie Discocactus placentiformis, uma esfera espinhuda que deixa apenas a par-te de cima exposta, eles viram curiosas raízes revestidas da fina areia. “Mesmo quando lavamos, a areia não sai”, conta Oliveira.

Investigar que substância essas raízes estão liberando, e que função ela cum-pre, foi o trabalho de mestrado de Anna Abrahão e exigiu uma solução pouco or-todoxa: cultivo hidropônico na casa de vegetação do Laboratório de Ecologia Funcional de Plantas, coordenado por Oliveira. A ideia de manter submersas em água as raízes de plantas que normalmen-te mal se regam foi vista com descrédito por colegas, mas era a única maneira de controlar a quantidade de nutrientes dis-ponível. “No solo nunca sabemos quanto

1 neblina: fonte de umidade

2 pico das almas, na bahia

3 sempre-viva: Actinocephalus polyanthus

4 Drosera prestes a almoçar uma mosca

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pESQUISA FApESp 229 z 57

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fica disponível para a planta, porque as substâncias formam compostos difíceis de quebrar”, explica o biólogo.

Mais uma surpresa: a água em excesso não se revelou um problema, mas a quan-tidade de nutrientes era um fator mais crítico do que eles imaginavam. Numa tentativa anterior de cultivar plantas de campos rupestres em laboratório, Oli-veira diluiu pela metade o fertilizante comercial, levando em conta a pobreza de nutrientes do ambiente natural em que vivem. Todas morreram intoxicadas pelo excesso. “Só conseguimos quando o composto de nutrientes estava com um décimo da concentração original.”

Com o artifício de manter as raízes desenterradas, foi possível enxergar a formação dos aglomerados de pelos ra-diculares que secretam substâncias co-nhecidas como carboxilatos e mantêm a areia grudada neles. Esses carboxilatos quebram os compostos de fósforo, alu-mínio e ferro presentes na areia, nesse formato indisponíveis para as plantas. Assim elas conseguem absorver o fósfo-ro, essencial para diversas funções vitais (como fazer fotossíntese e construir o material genético) e escasso nesse solo formado a partir de quartzo. “Essa se-creção é uma inovação impressionante”, explica Oliveira. “Ela manipula o solo quimicamente, outras plantas não con-seguiriam sobreviver nessas condições.”

Com isso, as raízes conseguem mobi-lizar não apenas o fósforo, mas também outros micronutrientes importantes para o desenvolvimento e o crescimento. Es-

sas substâncias são tão raras nesses solos que chega a ser difícil detectá-las pelos métodos habituais. O manganês, porém, mostrou-se mais comum nas folhas de espécies com especializações nas raízes, a ponto de ser um possível indicador desse tipo de estratégia, conforme artigo de feve-reiro deste ano na Trends in Plant Science.

o experimento com os cactos, cujos resultados foram publicados em outubro de 2014 na revista Oeco-

logia, também mostrou que quando há mais fósforo no solo as raízes respon-dem fabricando menos carboxilatos. “As plantas têm uma série de estratégias nu-ma escala bem pequena, com soluções adaptativas mais diversas do que imagi-namos”, diz o pesquisador da Unicamp.

A descoberta de que os Discocactus usam esse artifício para obter nutrien-tes também foi surpreendente porque os cactos são uma família conhecida por fa-zer associações com fungos em suas raí-zes, as chamadas micorrizas, que trans-ferem fósforo para a planta e ganham carbono dela. “O editor do artigo achou que fosse impossível, já que é uma famí-lia micorrízica”, lembra Oliveira. Para ele, trata-se de um indício de como o ar-senal diverso das plantas é ignorado em grande escala, sobretudo nas condições extremas dos campos rupestres, cuja fa-ma ainda não se espalhou pelo mundo.

A investigação dessa região permitiu a Oliveira pôr à prova um modelo teórico desenvolvido pelo biólogo holandês Hans Lambers, radicado na Universidade da

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58 z março DE 2015

Austrália Ocidental. Em artigo publicado em 2008 na revista Trends in Ecology and Evolution, ele mostrou que nos solos an-tigos, pobres em nitrogênio e fósforo, as micorrizas não são a estratégia mais co-mum. Nesses ambientes o fósforo é uma limitação mais forte que o nitrogênio, ao contrário do que acontece em solos mais jovens. Em seu lugar, surgiriam as mo-dificações de raízes como aglomerados de pelos e secreção de carboxilatos. A sugestão se baseou em estudos feitos em duas regiões com características muito semelhantes às dos campos rupestres: os fynbos, na África do Sul, e o kwongan, no sudoeste da Austrália. Fascinado com o artigo, Oliveira, que estava no início de um projeto para avaliar as estratégias de obtenção de água pelas plantas dos cam-pos rupestres, aproveitou para incluir os nutrientes nos estudos.

Com isso conseguiu fazer o primeiro teste da teoria de Lambers – que nesse processo se apaixonou pelos campos ru-pestres e iniciou uma parceria de pesqui-sa com o grupo da Unicamp, onde dará cursos em visitas de um mês ao longo dos próximos três anos. Uma análise do solo da serra do Cabral e de 50 das es-pécies de plantas mais importantes por ali indica que o campo rupestre é de fato

1 a estudar: tufos nas raízes de Syngonanthus niveus

2 raízes de Actinocephalus cabralensis revestidas de areia

3 Discocactus placentiformis: das poucas espécies que vivem na areia

4 orquídea: exemplo da diversidade deslumbrante de flores

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pESQUISA FApESp 229 z 59

projetomudanças climáticas em montanhas brasileiras: respos-tas funcionais de plantas nativas de campos rupestres e campos de altitude a secas extremas; Modalidade auxílio à pesquisa – regular; Pesquisador responsável rafael silva oliveira (Unicamp); Investimento r$ 569.639,14 (FapEsp).

artigos científicosabrahÃo, a. et al. convergence of a specialized root trait in plants from nutrient-impoverished soils: phos-phorus-acquisition strategy in a nonmycorrhizal cactus. Oecologia. v. 176, n. 2, p. 345-55. out. 2014. LambErs, h. et al. Leaf manganese accumulation and phosphorus-aquisition efficiency. Trends in plant Science. v. 20, n. 2, p. 83-90. fev. 2015.mULEr, a. L. et al. does cluster-root activity benefit nutri-ent uptake and growth of co-existing species? Oecologia. v. 174, n. 1, p. 23-31. jan. 2014.oLiVEira, r. s. et al. mineral nutrition of campos rupestres plant species on contrasting nutrient-impoverished soil types. New phytologist. v. 205, n. 3, p. 1183-94. fev. 2015.pErEira, c. G. et al. Underground leaves of Philcoxia trap and digest nematodes. pNAS. v. 109, n. 4, p. 1154-8. 24 jan. 2012.

semelhante aos fynbos e ao kwongan no que diz respeito à escassez de nutrien-tes, sobretudo do fósforo. Também na obtenção de nutrientes mais por meio de especializações das raízes do que de associação com micorrizas, conforme mostra artigo que resultou do mestrado de Hugo Galvão e foi publicado na New Phytologist de fevereiro deste ano.

Uma das observações feitas pela es-tagiária Ana Luíza Muler em viagens à serra mineira também rendeu um teste independente. Num período que passou na Austrália, ela estudou duas plantas que costumam viver próximas uma da outra, como é o caso de uma espécie da família das iridáceas que costuma estar

associada a uma sempre-viva na serra do Cabral. No caso australiano era uma Banksia attenuata, cujas raízes formam aglomerados que liberam carboxilatos e extraem o fósforo do solo, e uma Scholtzia involucrata, que não tem a especialização. Num experimento relatado em artigo de 2014 na Oecologia, ela mostrou que esta segunda planta cresce melhor na pre-sença da outra espécie, sugerindo que ela aproveita os nutrientes que se tor-nam disponíveis pela alteração quími-ca do solo. Resta estudar o quanto isso acontece e como essas plantas distintas convivem entre si.

Os paralelos entre os continentes é um resquício de um passado muito dis-

tante em que eles estiveram próximos, no supercontinente Gondwana. As fa-mílias vegetais que protagonizam essas descobertas são, em grande parte, re-presentantes de famílias que já existiam nesse período remoto: as proteáceas, cujas raízes especializadas conhecidas nos outros continentes levaram o grupo de Oliveira a procurar semelhanças por aqui, e as veloziáceas (canelas-de-ema) e eriocauláceas (sempre-vivas), ambas com uma diversificação maior no Brasil do que nos outros países. Os segredos que elas escondem na areia prometem mostrar que os mecanismos conhecidos em florestas tropicais não são a regra, além de pôr os campos rupestres na li-nha de frente dessa nova compreensão de como plantas podem lidar com situa-ções extremas. n

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Cutias criadas em cativeiro se adaptam

à vida na floresta e se reproduzem

as cutias estão de volta ao Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro. O retorno desses roe-dores a uma das mais extensas

florestas urbanas brasileiras é resultado de um projeto de reintrodução conduzido por biólogos e veterinários do Rio. Aris-cas e frágeis, as cutias haviam começado a rarear nessa área de 4 mil hectares de Mata Atlântica encravada na capital flu-minense nos anos 1970 e chegaram a ser consideradas localmente extintas. De lá para cá houve ao menos uma tentativa de recuperar no parque a população desses roedores, que desempenham um papel importante na dispersão de sementes. Dessa vez, a experiência parece ter dado certo, ao menos no curto prazo. Os ani-mais que começaram a ser reintroduzidos em 2010 mostraram-se à vontade na mata em pouco tempo, alimentando-se sozi-nhos e caminhando por áreas distantes do lugar de soltura. Oito meses depois foi avistado o primeiro filhote nascido na natureza.

eCologia y

Em liberdade

Esse sucesso inicial na reintrodução das cutias (Dasyprocta leporina) em seu ambiente nativo se deve a um processo de soltura gradual adotado pelo biólo-go Bruno Cid, integrante da equipe de Fernando Fernandez na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A estratégia incluiu duas fases – uma de quarentena e outra de aclimatação – an-tes da soltura. Na primeira etapa, cutias nascidas e criadas em um parque do cen-tro do Rio foram levadas para o zoológi-co da cidade, onde foram alimentadas e examinadas por biólogos e veterinários por, em média, dois meses. Na segunda etapa, os animais saudáveis foram en-viados para um período de aclimatação em uma área cercada em meio à mata no Parque da Tijuca. Durante a aclimatação os pesquisadores acrescentaram à dieta das cutias frutos e sementes daquela es-tação que poderiam encontrar na flores-ta. Três semanas depois de transferidos para a mata, em média, os animais foram soltos na floresta.

Rodrigo de Oliveira Andrade

Onze cutias foram reintroduzidas e se adaptaram bem à vida em liberdade. Outras 10 morreram antes de serem sol-tas por causa de brigas entre os machos ou ataque de cachorros que invadiram o cercado durante a aclimatação. Moni-torando o deslocamento dos roedores, os pesquisadores constataram que dias depois da soltura a maioria das cutias se alimentava sozinha, sobretudo do fruto da cutieira e do palmito-juçara, consu-mido também por aves da Mata Atlân-tica. O maior sinal de sucesso, porém, é que as cutias conseguiram se reproduzir: 234 dias depois de solta uma das cutias foi vista com um filhote. Desde então, os pesquisadores já avistaram outros 10 filhotes perto da área de aclimatação. Estima-se que o número de cutias no parque hoje seja de 45 indivíduos, ainda insuficiente para repovoar toda a região.

Até pouco tempo atrás consideradas extintas no parque, as cutias podem aju-dar a preservar a floresta. Estudos têm mostrado que esses roedores contribuem

De volta à floresta: cutia reintroduzida

no Parque da Tijuca,

acompanhada de filhote nascido

na natureza

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pESQUISA FApESp 229 z 61

para a dispersão de sementes de diver-sas espécies de plantas. As cutias que se adaptaram à vida livre enterravam sementes de espécies nativas da Mata Atlântica, como a cutieira, e de espécies exóticas, como a jaqueira. “A reintrodu-ção de animais dispersores de sementes pode ser uma importante ferramenta de recuperação de trechos degradados de Mata Atlântica”, diz Bruno Cid.

Como outros animais, as cutias comem algumas sementes e enterram outras para os períodos de escassez. Como se movem constantemente pela floresta, elas esquecem as sementes, que germi-nam e dão origem a novas plantas. “Essas sementes enterradas têm mais chances de germinar”, diz o biólogo Caio Kenup, aluno de mestrado na UFRJ que estuda a dinâmica populacional das cutias no Parque da Tijuca. Às vezes, as cutias tam-bém roubam sementes umas das outras, ampliando a dispersão. “Basta o solo apa-rentar ter sido remexido para as cutias procurarem por sementes no local”, con-

ta o biólogo Paulo Roberto Guimarães, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que há mais de 10 anos estuda a disper-são de sementes por cutias.

REtORnO dIFícIlMesmo a experiência no Parque da Ti-juca reforça a ideia de que não é fácil fazer animais silvestres nascidos em ca-tiveiro ou nascidos na natureza e depois aprisionados se adaptarem à vida em liberdade. Colocados de volta em seu ambiente natural, alguns não conseguem se alimentar sozinhos, perdem peso e se tornam presas fáceis para predadores. Outros não conseguem voltar aos es-paços em que viviam antes da captura. Uma das razões é que as áreas florestais estão encolhendo, sobretudo próximo às grandes cidades.

O fato é que as tentativas de reintrodu-ção de que se tem notícia no Brasil apre-sentam alta taxa de insucesso — com exceção do caso do mico-leão-dourado, cuja população em áreas de preservação

aumentou como resultado de es-forços de conservação.

Ainda que, por ora, expli-quem o bem-sucedido retorno das cutias ao Parque da Tijuca, a reintrodução em etapas ain-da precisa ser aprimorada, se-gundo Bruno Cid. O período de aclimatação, por exemplo, pode ser estressante para os animais, mas ainda assim é necessário. “Se queimarmos alguma etapa, o ris-co de o animal não se adaptar à vida em liberdade aumenta. O importante é definir um protoco-lo com o tempo que os indivíduos devem passar em cada etapa”, afirma Cid, que desenvolve seu doutorado sob a orientação de Fernando Fernandez no Labora-tório de Ecologia e Conservação de Populações da UFRJ. Fernan-dez e seu grupo pretendem usar a mesma estratégia na reintrodu-ção de bugios no Parque da Tiju-ca e de antas em uma área a ser definida, como parte do projeto Refauna, que tenta restabelecer interações ecológicas e restaurar populações perdidas pela defau-nação na Mata Atlântica.

Em Minas Gerais, pesquisa-dores estão avaliando a eficácia da adaptação gradativa na rein-

trodução de mutuns-do-sudeste (Crax blumenbachii), ave da Mata Atlântica ameaçada de extinção. Desde 1990, eles já transferiram 78 animais com 2 anos de idade, quando estão atingindo a maturi-dade sexual, para uma área de floresta, como parte de um projeto coordenado pela fundação Crax Brasil e pela empresa Cenibra. “Todos passaram por exames médicos veterinários e ficaram de quatro a nove meses em um viveiro de aclimata-ção antes de serem soltos”, explica Joana Carvalhaes Borba de Araújo, mestranda responsáv el pela pesquisa coordena-da pelo professor Adriano Chiarello, da Universidade de São Paulo (USP) em Ri-beirão Preto. O objetivo agora é avaliar o sucesso da reintrodução desses animais 25 anos após o seu início. n

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artigo científicoCiD, B. et al. Short-term success in the reintroduction of the red-humped agouti Dasyprocta leporina, an important seed disperser, in a Brazilian atlantic Forest reserve. Tro-pical Conservation Science. v. 7, n. 4, p. 796-810. 2014.

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Resíduos da melanina formados horas

após exposição ao sol podem danificar

o DNA e provocar câncer de peleSob a ação da luz solar, o pigmen-to da pele, a melanina, pode se fragmentar e formar compostos químicos muito reativos que

podem danificar a estrutura da molé-cula de DNA, mantida no núcleo das células, e provocar o desenvolvimento de câncer de pele, de acordo com um estudo publicado na revista Science de 20 de fevereiro, com a participação de pesquisadores brasileiros. Segundo esse trabalho, o ataque ao DNA pode persistir por mais de três horas após a exposição direta à luz do sol, indicando mais uma limitação da ação dos cremes protetores aplicados à pele para proteger contra os efeitos prejudiciais da radiação ultravio-leta da luz solar.

“O protetor solar não vai prevenir to-talmente os danos ao DNA, que conti-nuam mesmo depois da exposição ao sol”, diz o químico Etelvino Bechara, professor sênior da Universidade de São Paulo (USP), um dos autores do estudo, pesquisador responsável por vários pro-jetos temáticos financiados pela FAPESP sobre os impactos de radicais livres (ver entrevista na página 22). Este trabalho está ligado também ao Instituto Nacio-nal de Ciência de Tecnologia (INCT) de Processos Redox em Biomedicina, coordenado por Ohara Augusto, do Ins-tituto de Química da USP, com apoio da FAPESP e do governo federal.

Com base nesse trabalho, Bechara recomenda ainda mais cuidado com o bronzeamento artificial e alerta para a necessidade urgente de formulações, na forma de cremes, que possam impe-dir a formação dos compostos lesivos ao DNA mesmo depois da exposição ao sol. Uma possibilidade de reduzir esse tipo de dano, apresentada no estudo, é o

GeNéticA y

Ataque no escuro

uso de ácido sórbico, um aditivo de ali-mentos, embora sua eficácia, dosagem e forma de aplicação ainda não tenham sido estabelecidas. Outra possibilidade de minimizar as lesões solares, além de filtros de radiação ultravioleta, é utilizar a vitamina E, já empregada em alguns cosméticos.

Bechara recebeu no início de 2012 um e-mail de Douglas Brash, da Universi-dade Yale, perguntando se ele poderia colaborar na solução de alguns proble-mas relacionados a danos ao DNA de melanócitos, as células produtoras de melanina. Os danos estavam associados ao desenvolvimento de melanoma, uma forma agressiva de câncer. Como as dú-vidas e o assunto estavam relacionados ao doutorado de Camila Mano, sob sua orientação, no Instituto de Química da USP, ele pediu para ela entrar no traba-lho e, logo depois, para se preparar para ir a Yale. Camila, também coautora do artigo publicado na Science, foi no final de 2012 e ficou quase seis meses, até fe-vereiro de 2013. Sua primeira tarefa foi

Carlos Fioravanti

conhecer melhor o problema que não conseguiam resolver.

“Eles viam alterações no DNA que pa-reciam geradas pela radiação solar, mas ocorriam depois da radiação”, diz Cami-la. Depois de entender o problema, ela aprendeu a lidar com células de camun-dongos e começou a fazer os experimen-tos que poderiam dar uma resposta. Os primeiros testes não deram certo, mas depois ela concluiu que a própria me-lanina poderia estar gerando as altera-ções no DNA.

Controle de QuAlidAdeNormalmente, nas células produtoras de melanina, a radiação ultravioleta do sol forma os chamados dímeros (compostos químicos com duas unidades) de timina e citosina, dois componentes básicos do DNA. Os dímeros podem alterar o fun-cionamento do DNA no momento da multiplicação celular. Por sorte existe um controle de qualidade rigoroso, que desfaz parte dos dímeros. Já durante a replicação do DNA, algumas proteínas

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– as enzimas de reparo – verificam se a cópia saiu de acordo com o original, co-mo um corretor ortográfico que substitui as letras trocadas tão logo as palavras terminam de ser escritas. Outras enzi-mas permanecem em alerta para soldar o DNA nos pontos em que se romper.

“O estudo é muito interessante e pro-vocativo”, disse David Fisher, biólogo especializado em câncer de pele do Massachusetts General Hospital, em Boston, EUA, que não estava envolvido no trabalho, em um comentário à revista The Scientist. “Ele salienta ainda mais o que sabíamos: que a bioquímica da me-lanina é uma espada de dois gumes.” A melanina, o pigmento escuro da pele, pode impedir a formação dos dímeros. Pode também, como se mostrou nesse estudo, levar a um efeito oposto, indu-zindo a formação de dímeros de pirimi-dina (timina e citosina) por pelo menos três horas após a exposição direta à ra-diação ultravioleta do sol, desse modo reduzindo a eficácia dos mecanismos de reparo da molécula de DNA e facilitan-

do a propagação de mutações genéticas prejudiciais.

Por meio de experimentos feitos em Yale e na USP, os pesquisadores verifica-ram que a radiação ultravioleta dispara a produção de uma série de enzimas, que vão gerar espécies reativas de oxigênio, como o superóxido e o óxido nítrico. Es-tes últimos se combinam e formam pe-roxinitrito, um composto reconhecida-mente reativo, que degrada as moléculas com que interage no interior das células. A reação entre peroxinitrito e a melani-na ou seus precursores gera compostos de alta energia, que é transferida para o DNA, formando os dímeros.

“A radiação ultravioleta apenas inicia essas reações, que podem prosseguir por horas, mesmo depois de apenas 10 minu-tos de exposição das células ao ultraviole-ta”, diz Camila. Ela observa que a forma-ção de compostos reativos é mais intensa com o precursor da melanina chamado feomelanina, encontrado nas células de pessoas ruivas ou loiras, do que com o eumelanina, que forma a melanina das

peles negras. Esse resultado explicaria por que as pessoas de pele clara são mais suscetíveis ao câncer de pele. Nesse ex-perimento, os pesquisadores verificaram também que os dímeros de pirimidina formados na ausência de luz compõem cerca de 50% dos dímeros responsáveis por possíveis alterações no DNA.

Esse tipo de fenômeno é chamado de fotoquímica no escuro e, enfatiza Be-chara, havia sido proposto na década de 1970 por Emil White, da Universidade Johns Hopkins, e por Giuseppe Cilento, do Instituto de Química da USP. “A fo-toquímica no escuro amplia as reações lesivas ao DNA iniciadas pela radiação ultravioleta”, diz ele. Segundo o pesqui-sador, esse tipo de reação tem sido iden-tificado em fenômenos biológicos, me-diados por compostos químicos de alta energia, em raízes de plantas e órgãos internos de animais.

A melanina também absorve luz visí-vel e depois transfere parte de sua ener-gia para moléculas de oxigênio, gerando formas altamente reativas, o chamado oxigênio singlete. O oxigênio excitado pode reagir com moléculas como o DNA e organelas (compartimentos) das célu-las, danificando-as, conforme estudo re-cente de pesquisadores de São Paulo e do Paraná (ver Pesquisa FAPESP nº 227). n

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Projetoespécies excitadas tripletes em sistemas biológicos (09/02062-8); Modalidade Bolsa no País – doutorado; Pesquisador responsável etelvino José Henriques Be-chara (usP e unifesp); Bolsista camila Marinho Mano (iQ-usP); Investimento R$ 156.227,65 (FAPesP).

Artigo científicoPReMi, s. et al. chemiexcitation of melanin derivatives induces DNA photoproducts long after uV exposure. science. v. 347, n. 6224, p. 842-47. 2015.

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tecnologia EngEnharia agrícola y

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irrigação com água tratada de esgoto diminui a retirada

dos mananciais e economiza fertilizantes

a contribuição do campo

evanildo da Silveira

Desde quando a crise hídrica se tornou mais grave, em meados do ano passado, tem se falado que dentre as atividades humanas a agricultura é a que mais

consome água doce. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), 70% do total disponível – que já não é muito, apenas 3% da água existente no planeta – usada para irrigação. No Brasil, esse índice chega a 72%. Só na cana-de-açúcar, uma das maiores culturas do país e da qual o estado de São Paulo é responsável pela metade da produção na-cional, são necessários pelo menos 1.500 litros por metro quadrado de área cultivada por ano. Diante desse quadro e da maior seca dos anos recentes que os paulistas enfrentam, e mesmo antes de es-se problema aparecer de forma mais dramática, pesquisadores das três universidades estaduais desenvolvem pesquisas em busca de alternativas. A mais promissora é o uso do esgoto doméstico tratado para irrigação. Chamada de água de reúso, essa opção aumenta a produtividade da cana e traz ganhos ambientais, porque deixa de ser jogada nos rios e em outros mananciais.

Um desses projetos é desenvolvido pela equi-pe do engenheiro agrônomo Edson Eiji Matsura,

professor da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Nosso objetivo principal era saber como poderíamos produzir cana-de-açúcar com ajuda da irrigação de forma sustentável, conside-rando os aspectos econômico, ambiental e social, porque toda a sociedade ganha com a diminuição do consumo de água”, explica. O resultado indicou que a redução da utilização de água em um plan-tio de cana experimental foi de 50%. “O princi-pal desafio foi utilizar água de reúso proveniente de um tratamento do esgoto doméstico da nossa própria faculdade.”

Para fazer o experimento, a equipe da Unicamp armazena o esgoto da Feagri e faz três tipos de tratamento, o primeiro em reatores anaeróbi-cos (tanques fechados com bactérias), depois com plantas macrófitas aquáticas que possuem grandes sistemas de raízes que filtram o esgoto. Por último, o líquido passa por filtros de areia. Depois, a água residuária é transportada até a lavoura por meio de bombas e tubulações. Em seguida, ela é distribuída na plantação por tubos gotejadores, enterrados em profundidades de 20 centímetros (cm) ou 40 cm, técnica chamada

irrigação por aspersão: volume grande de gasto com água na agricultura

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de irrigação subsuperficial ou subterrânea. “É a forma mais segura de fazer a irrigação com esse material, porque evita a contaminação das pes-soas e da própria planta acima do solo”, explica Matsura. “Além disso, também é a mais eficiente, porque não há perda por evaporação.”

o experimento foi realizado com o plantio de cana numa área de meio hectare, equi-valente a 5 mil metros quadrados (m2), no

campo experimental da Feagri, que tem no total cerca de 10 hectares. A cultura da cana começa com um plantio, que é colhido 18 meses depois. Uma pequena parte da planta cortada é deixada na lavoura e brota. Desde então, já foram realiza-das três colheitas. Numa boa plantação comercial pode haver até sete delas. Depois, a lavoura de-ve ser refeita, com novo plantio. Com irrigação de água residuária, Matsura espera chegar a 10.

O otimismo vem da eficiência da irrigação com esgoto doméstico testado em blocos na área de cul-tivo da Feagri, com nove tipos de tratamento: sem irrigação, irrigação com esgoto aplicado a 20 cm de profundidade com e sem fertirrigação, quando há acréscimo de adubos químicos à água residuária, esgoto a 40 cm com e sem fertirrigação, irrigação com água de reservatório superficial (lago ou rio) a 20 cm e água de reservatório a 40 cm. Para ca-da um foi avaliado, entre outros parâmetros, pro-dutividade, desenvolvimento vegetativo, trocas gasosas, diagnóstico nutricional das folhas e dos

colmos e fertilidade do solo na primeira e segunda co-lheitas”, explica Ivo Zuiton, orientando de Matsura, em sua tese de doutorado de-fendida na Feagri, no início de fevereiro.

Entre os principais re-sultados do projeto está a economia em fertilizan-tes. A concentração de nutrientes nos efluentes permitiu a redução de até 100% na necessidade do uso de nitrogênio e fósfo-ro na segunda colheita, e mais de 50% para o fósfo-ro, nitrogênio e potássio na primeira em compara-ção com os tratamentos ir-rigados com a água de re-servatório. Quanto à pro-dutividade, ela chegou a mais de 200 toneladas por hectare nas parcelas irri-gadas com esgoto, o dobro das sem irrigação, apenas com a água da chuva.

Segundo Matsura, em todos os tratamentos ir-rigados a pegada hídrica, que é o volume total de água consumido direta e indiretamente no processo de produção de bens e serviços, foi inferior ao não irrigado. Isso acontece porque a irrigada gasta me-nos água proporcionalmente, já que produz mais cana. Assim, ao se dividir a produção pelo consumo de água, a pegada hídrica é menor na irrigada. No caso da irrigação com esgoto e fertirrigação, a re-dução chegou a mais de 50% em comparação com a área não irrigada. “A pegada hídrica da cana nos cultivos irrigados foi inferior à estimada nos cul-tivos não irrigados, com redução variando de 35,3 metros cúbicos (m³) a 23,1 m³ por tonelada para os tratamentos com esgoto e fertirrigação e águas de rios e lagos sem esse adicional de adubo”, diz Matsura. “Os resultados confirmam a proposição da irrigação por gotejamento subsuperficial em redu-zir a pegada hídrica no cultivo de cana-de-açúcar.”

O trabalho de Matsura é uma continuidade de uma outra pesquisa coordenada pelo profes-sor Adolpho José Melfi, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Uni-versidade de São Paulo (USP), em Piracicaba. Os pesquisadores liderados por Melfi também testaram, entre 2005 e 2010, o uso de esgoto do-méstico tratado na irrigação de cana-de-açúcar (ver Pesquisa FAPESP nº 166). Um dos principais resultados obtidos foi um aumento de 60% na produtividade da cultura. “Além disso, demons-tramos que é possível, dependendo do manejo da

Estação de tratamento de esgoto em Piracicaba. Quanto mais perto da lavoura, melhor o aproveitamento

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peSQUiSa FapeSp 229 z 67

irrigação, proporcionar o fornecimento completo de nitrogênio, potássio e cálcio em atendimento à necessidade da cana”, conta Melfi. “A irrigação com efluentes tratados se mostrou uma prática viável para a agricultura, do ponto de vista eco-nômico, com a redução do uso de fertilizantes minerais, e ambiental, ao propiciar uma melhor gestão dos recursos hídricos”, diz Célia Regina Montes, pesquisadora do Centro de Energia Nu-clear na Agricultura (Cena) da USP, que também participou do trabalho. “Outra vantagem é que em épocas de estiagem a cultura não sofreria com a falta de umidade, porque o esgoto é produzido continuamente e poderia ser utilizado.”

Matsura começou a trabalhar com água de reúso em 1999. “O objetivo era estudar a utiliza-ção de água residuária tratada por meio de leitos cultivados com plantas macrófitas e seu impacto sobre o sistema solo-planta, além da irrigação por aspersão, gotejamento superficial e subter-râneo. Depois de 12 anos, no entanto, percebi que pouco tínhamos evoluído em termos de uso e de legislação adequada no emprego desse material na agricultura.” A situação começou a mudar em

2010, quando ele recebeu um convite para conhe-cer o projeto coordenado pelo professor Melfi, em Piracicaba. “Nesse momento compreendi a possibilidade de retomarmos os estudos ante-riores e ampliarmos os conhecimentos na área, principalmente em sistemas produtivos sustentá-veis”, conta. “Além disso, com a cana-de-açúcar, podíamos explorar a tecnologia existente na pro-dução de etanol, o que facilitaria o uso de esgoto tratado por não ser alimento.”

em linha de pesquisa semelhante, mas com outra planta, o pesquisador Rogério Fa-ria, da Faculdade de Ciências Agrárias e

Veterinárias do campus de Jaboticabal da Uni-versidade Estadual Paulista (Unesp), estudou o uso dos efluentes domésticos com fertirrigação no cultivo da Brachiaria brizantha, uma gramí-nea perene originária da África que se adaptou ao Brasil e é usada na alimentação animal. “O aumento populacional concentrado em áreas urbanas incrementa significativamente a pro-dução de esgoto”, diz Faria. “Devido ao custo elevado dos sistemas de tratamento da água, há

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etapas do tratamentocombinação de bactérias, plantas e filtros torna a água de esgoto apta para irrigação

Fonte Edson matsura E ivo zuiton /unicamP

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para a irrigação

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foi utilizado o esgoto

da própria faculdade

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consomem matéria orgânica da

água, sem consumo de oxigênio

macróFitaSPlantas com denso sistema de raízes

que resistem a ambientes com água,

absorvendo o excesso de nutrientes

do esgoto para evitar que estes

causem intoxicação à cana

Filtro De areiaFiltra as últimas partículas

existentes na água.

tratado, o esgoto é

transportado e bombeado

por motobombas elétricas

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irrigaçãoa água de reúso é distribuída

no campo por meio

de finos canos gotejadores

enterrados no solo

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necessidade de se promover o uso do esgoto.” Por isso, segundo ele, a utilização desse material para irrigação é uma alternativa cada vez mais atraente. A aplicação de águas residuárias por meio da fertirrigação supre as necessidades hí-dricas da cultura, irrigando e aplicando os resí-duos com alta taxa de micro e macronutrientes. “No nosso trabalho, o efluente de esgoto tratado forneceu até 1.000 quilos por hectare (kg/ha) de nitrogênio e até 600 kg/ha de potássio por ano, além de outros nutrientes essenciais para a for-rageira”, explica. Esse suprimento corresponde às quantidades de fertilizantes minerais que o agricultor pode economizar, diminuindo o custo de produção. Constatou-se também aumento da receita bruta da cultura, uma vez que a braquiária apresentou aumento de produção de forragem em cerca de 60%.

Irrigação com esgoto domés-tico tratado não é a única forma de reduzir o consumo de água na agricultura brasileira, principal-mente no setor sucroalcooleiro. É o que mostra um trabalho rea-lizado pelos pesquisadores Fá-bio César da Silva, da Embrapa Informática Agropecuária, uma unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, de Cam-pinas, e Alexei Barban do Patrocí-nio, da Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo, de Pira-cicaba. Realizada em quatro usi-nas – três de São Paulo e uma do Paraná, – a pesquisa demonstrou que algumas tecnologias simples como a limpeza a seco da cana para a queima da palha nas cal-deiras de alta pressão fazem o consumo de água diminuir entre 11% e 13%, em relação à lavagem úmida usual. “Outra medida, a substituição do spray (sistema de refrigeração por aspersão) pela torre de resfriamento reduziria as perdas de 5% a 8% para 1,5% a 3%, no total do balanço hídri-co”, diz Silva.

c om essas ações, as quatro usinas em con-junto, que têm capacidade de processar 2.400 toneladas de cana por hora, pode-

riam economizar, em números absolutos, 32.895 m³ de água por dia. Segundo Silva, os critérios da certificação internacional das usinas estabelecem hoje que o consumo seja inferior a 20 litros por quilo de açúcar produzido e 30 litros por quilo de etanol. “Os valores obtidos no nosso trabalho demonstram que existe a possibilidade de se ob-ter um consumo hídrico menor que 10 litros por quilo de açúcar”, diz. “Por isso, os resultados da pesquisa auxiliam no desenvolvimento de solu-

ções sustentáveis para as pro-duções de etanol e de açúcar.”

Além dos ganhos econômi-cos, esses estudos mostram os benefícios ambientais que as alternativas apontadas nos trabalhos podem trazer. Um deles é a preservação dos la-gos, rios e outros reservató-rios, além das águas subter-râneas, porque o esgoto usado na irrigação deixa de ser lan-çado nesses mananciais. “Isso significa utilizar essas fontes para usos mais nobres, como o consumo humano e animal, dado que essas águas estão fi-cando mais escassas.”

Apesar dos bons resultados obtidos experimentalmente

até agora e das perspectivas que eles abrem, ainda há alguns obstáculos para a utilização em larga escala do esgoto doméstico tratado na irrigação – nenhum deles intransponível. Melfi lembra, por exemplo, que os efluentes podem conter em sua composição metais pesados, organismos pa-togênicos, alta quantidade de sódio e nitrogênio. “Tratando-se de esgotos domésticos, no entanto, os metais pesados não impedem sua utilização na irrigação, porque os teores, quando presentes, estão abaixo dos valores restritivos impostos pela legislação e pela Organização Mundial da Saúde [OMS]”, garante.

Em relação aos riscos com organismos pato-gênicos, Melfi diz que eles podem ser minimiza-dos se forem escolhidas culturas para irrigação que sejam processadas industrialmente, como é o caso da cana-de-açúcar. Para outras culturas há a possibilidade de desinfetar o esgoto tratado antes de sua utilização na irrigação com cloro, por exemplo. “Quanto ao sódio, no nosso projeto

o esgoto tratado na irrigação ajuda a preservar lagos, rios e águas subterrâneas

produtividade da cana

100toneladas

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Fonte FEagri

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verificamos que a alta concentração deste ele-mento, que pode causar efeitos negativos sobre as propriedades físicas do solo, foi naturalmente reversível após períodos de chuva”, conta. “Além disso, é possível, se necessário, escolher manejos para correção do solo com a aplicação do gesso agrícola. Com relação ao nitrogênio, adequar às lâminas de irrigação, ou seja, fornecer a quantida-de exata exigida pela cultura, evita, principalmen-te, a lixiviação de nitrato para o lençol freático.”

Um obstáculo mais sério é a inexistência de uma legislação específica que regulamen-te o assunto. O que existe hoje é apenas a

Resolução nº 375, de 29 de agosto de 2006, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que trata do lodo de esgoto doméstico, que é a parte sólida, subproduto do tratamento, além da Resolução 121/2010 do Conselho Nacional de Re-cursos Hídricos (CNRH), que estabelece as dire-trizes e os critérios para a prática de reúso direto de água não potável para as modalidades agrícola e florestal. “O Brasil tem pouca experiência com a utilização de efluentes em irrigação, por isso a legislação não é específica”, diz Faria. Ele acredita que esses estudos servem de base para a elabo-ração de uma legislação específica, assim como para a instalação de protótipos em cidades-teste.

“O protótipo seria testado em estações de tra-tamento de esgoto de cidades pequenas e médias,

com até cerca de 500 mil habitantes, evitando o escoamento dessa água para os mananciais”, explica. “Em cidades médias e pequenas essa questão pode ser facilmente resolvida preven-do-se a incorporação de áreas para aplicação do efluente junto ao projeto das futuras estações de tratamento, uma vez que a área demandada é pe-quena.” Assim, numa cidade de cerca de 80 mil habitantes, como Jaboticabal, no interior paulista, o volume de efluentes gerado possibilitaria irri-gar 240 a 320 hectares, enquanto para a vizinha Ribeirão Preto, de cerca de 600 mil habitantes, a área irrigada seria de 1.800 a 2.400 hectares. n

na primeira colheita de um cultivo de cana irrigada com água de reúso, a necessidade de adubação foi, no mínimo, menor em 50% em fósforo, nitrogênio e potássio

Projetos1. uso de efluentes de esgotos tratados por processos biológicos (lagoas de estabilização e reatores uasb/lodos ativados) em solos agrícolas (nº 2004/14315-4); Modalidade Projeto temático; Pes-quisador responsável adolpho José melfi (usP); Investimento r$ 1.055.509,45 e us$ 227.031,64 (FaPEsP).2. impacto da aplicação de esgoto tratado via gotejamento subsu-perficial sobre a nutrição e fisiologia da cultura da cana-de-açúcar (nº 2012/03588-6); Modalidade Bolsa de doutorado (ivo zution gonçalves); Pesquisador responsável Edson Eiji matsura (unicamp); Investimento r$135.512,52 (FaPEsP). 3. aplicação de esgoto tratado em sistema de irrigação subsuperficial na cultura da cana-de-açúcar (nº 2011/07301-0); Modalidade auxílio à Pesquisa – regular; Pesquisador responsável Edson Eiji matsura (unicamp); Investimento r$ 158.751,89 e us$ 65.387,10 (FaPEsP).4. Efeitos da aplicação de efluente de esgoto tratado, via fertirrigação, no solo e no cultivo de Brachiaria (nº 2012/12923-3); Modalidade auxílio à Pesquisa – regular; Pesquisador responsável rogerio teixeira de Faria (unesp); Investimento r$ 67.686,75 (FaPEsP).

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os simuladores eletrônicos estão pre-sentes há muitos anos na aviação para treinamento de pilotos. Recentemente, tratores, guindastes e tanques de guerra

também ganharam esse tipo de equipamento. Com o avanço nas tecnologias de reconhecimento de voz e imagem 3D, os simuladores estão agora adentrando a área de segurança no treinamen-to de vigilantes e policiais. De forma interativa, com projeção de imagens e som, treina-se o uso progressivo da força, em que o tiro é o último recurso, e uma boa abordagem inicial dos assal-tantes é essencial. Esse sistema, que em alguns momentos mais parece um jogo eletrônico, já está disponível no país. A empresa brasileira Cientistas Desenvolvimento Tecnológico, de São Carlos, no interior paulista, em 2014 fez a primeira grande venda do equipamento com oito unidades para a Brink’s, multinacional da área de transporte de valores que opera em mais de 100 países e no Brasil tem 8 mil funcionários divididos em 63 filiais. Os dois primeiros equipamentos foram vendidos, também em 2014, para uma empresa de formação de seguranças de Belém, no Pará.

Chamado de Treinamento Interativo de Segu-rança (TIS), o sistema é composto de software, sen-sor de movimento, microfones sem fio, emissores de laser, câmeras de captura de imagem, caixas de som e projetores. Equipamentos similares existem em outros países e as inovações da Cientistas, que

EngEnharia da computação y

depositou duas patentes no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), são relativas ao sis-tema de captação de voz e de reconhecimento do movimento do corpo do vigilante. “Começamos a desenvolver o TIS em 2003 com uma proposta de projeto do Pipe [Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas da FAPESP] que foi aprovada em 2002 com o valor de R$ 62 mil”, diz Antônio Va-lério Netto, sócio da Cientistas, que foi fundada em 2003 para executar esse projeto do Pipe. Depois, entre 2007 e 2009, a empresa recebeu mais aporte financeiro, dessa vez da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), dentro do programa Subvenção Econômica, no valor de R$ 500 mil. Formado em Ciência da Computação na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) com mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo (USP), Valério conta que precisou de muita persistência até chegar ao produto final em 2011.

“Com o avanço e barateamento tecnológico conseguimos montar o sistema. Em 2012, lan-çamos uma forte campanha na área de vendas focando empresas e instituições de segurança privada e pública”, diz Valério. Embora tenha agradado algumas polícias civis, guardas mu-nicipais e empresas de segurança no estado de São Paulo, as primeiras vendas vieram somente em 2014. Além dos oito já adquiridos, a Brink’s assumiu um compromisso de compra de mais dois em 2015 e dois em 2016.

Simulador de abordagemEquipamento para treinamento virtual

de vigilantes desenvolvido por

pequena empresa é vendido para a Brink’s

Marcos de Oliveira

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pESQUISA FApESp 229 z 71

Suspeitos virtuais respondem conforme a

abordagem. na simulação de tiro, abaixo, laser na ponta do cano

da arma

A Brink’s já utilizava simuladores nos Estados Unidos, país-sede da empresa, Canadá, México e Chile e estudava a utilização de um equipamento adequado às suas atividades no Brasil. Foram pro-curados sistemas fora do país, mas esses tinham aparelhos sem integração. “O produzido aqui é um aparelho único e mais resistente, o que facilita o transporte entre as filiais, além de ter a assistência técnica no Brasil”, diz Rosana Alcine, gerente de treinamento e desenvolvimento da Brink’s. A em-presa testou primeiro o sistema e depois o aprovou para compra. Em uso operacional na empresa des-de abril do ano passado, o simulador já apresentou benefícios. Segundo Rosana, alguns pontos foram observados, como a melhor postura do vigilante na chamada “força de presença”. O desempenho no simulador melhorou o treinamento de tiro real, realizado fora da empresa em local adequado, e deu maior confiança ao profissional. “Em relação ao de-sempenho profissional de um grupo de vigilantes que analisamos, a melhora foi de 18% em relação ao acerto de tiros, além da melhora de percepção dos vigilantes”, diz Rosana.

Entre as vantagens apontadas pela empresa também estão a redução no tempo no estande de tiro real, aumento da quantidade de horas de treinamento e variedade de cenários produzidos. O papel do profissional no simulador é ganhar percepção e reagir conforme as situações de ata-que com foco somente em pessoas que apresen-

tem risco. Após a conclusão, um instrutor mostra os resultados alcançados e analisa os pontos que podem melhorar e o segurança refaz o exercício. A voz do vigilante também é analisada, se forte e assertiva ela impactará no comportamento dos personagens virtuais. Da mesma forma, os movi-mentos do corpo do vigilante são analisados pelo sistema que reage conforme a entrada de infor-mações. Se a simulação não ocorrer dentro dos parâmetros corretos de abordagem, o vigilante pode “virtualmente” ser atingido por um tiro.

SIStEMA pOrtátIlAlém de um melhor treinamento para o funcio-nário, a empresa reduz a necessidade de deslo-camento deles para o estande de tiro, diminuin-do gastos em horas extras e transporte. Assim, o treinamento com o simulador é feito nas sedes da própria Brink’s e complementa o treinamento prático. Outra redução de gastos acontece na di-minuição em 50% do uso de munição no tiro real. Cada disparo custa R$ 2,00. Para funcionar, o sis-tema, que é portátil, necessita apenas de uma sala com paredes brancas e energia elétrica. A evolução do equipamento, conta Valério, aconteceu com a leitura de vários documentos sobre segurança e a colaboração dos especialistas para quem mostrava o sistema em funcionamento. “Parti de um sistema apenas para treino de tiro para outro mais avan-çado e atual, que privilegia a abordagem de quem faz a segurança”, diz Valério. Ele já apresentou o equipamento, que custa em torno de R$ 70 mil, para várias guardas municipais que manifestaram interesse, contudo os governos locais alegam falta de financiamento dos governos federal e estaduais para a realização das compras. n

projetoSistema interativo para treinamento na área de segurança (nº 02/12914-2); Modalidade pesquisa inovativa em pequenas Empresas (pipe); Pesquisador responsável antonio Valério netto (cientistas); Investimento r$ 62.789,15 (FapESp).

FOtO

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72 z março DE 2015

Opto, de São Carlos,

desenvolve e produz lasers

para a área médica, além

de dispositivos ópticos

para a defesa e câmeras

para satélites

Com atuação nas áreas médica, industrial, de compo-nentes ópticos e sistemas aeroespacial e de defesa, a Opto Eletrônica, de São Carlos, no interior paulis-ta, nasceu em 1985 por iniciativa de pesquisadores e ex-alunos do Instituto de Física de São Carlos da

Universidade de São Paulo (IFSC-USP). Ao longo de 30 anos a empresa desenvolveu e produziu equipamentos de lasers como leitores de códigos de barra, sensores para mísseis, aparelhos para diagnóstico e cirurgia, principalmente em oftalmologia, além de lentes e câmeras para satélites. Um portfólio tecnoló-gico que fez a Opto atingir o faturamento de R$ 80 milhões em 2010, com 450 funcionários, dos quais 85 dedicados à pesquisa e desenvolvimento (P&D). Mas, logo em seguida, as dificulda-des começaram a bater à porta da empresa. Em 2014, a Opto faturou R$ 21 milhões, ficou com 150 funcionários, sendo 22 na área de P&D, e, em dezembro, entrou em recuperação judi-cial, medida jurídica formal para evitar a falência, preservar os

Leque de inovações

Dinorah Ereno e Marcos de Oliveira

peSquiSa empreSarial y

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pESQUISA FApESp 229 z 73

continuados e assim, aliado à falta de planejamento financeiro para os diver-sos investimentos realizados, houve um estrangulamento, em que a empresa per-deu o capital de giro necessário para a operação normal de suas atividades”, diz Gustavo Henrique Rodrigues, diretor--presidente da Opto. Ele foi contratado pelos sócios em 2012 para gerir e buscar investidores e capital para a empresa. “A dívida bancária e trabalhista da Opto é de R$ 35 milhões”, diz Rodrigues. Ele também lembra que os sócios investiram R$ 75 milhões entre 2005 e 2012 para construir uma infraestrutura de equi-pamentos e máquinas dentro da Opto. “Junto com os funcionários, esse é nosso

equipamentos, facilitar o pagamento de dívidas e reorganizar a gestão do negó-cio. “A redução do faturamento ocorreu por uma conjunção de fatores, sendo o principal a interrupção de programas go-vernamentais na área de espaço e defesa”, diz Mário Stefani, diretor de pesquisa e desenvolvimento da Opto e um dos cin-co sócios-fundadores que até hoje estão na empresa. Depois das câmeras para o programa Satélite Sino-brasileiro de Recursos Terrestres (Cbers 3 e 4), que já estão no espaço, nenhum outro proje-to governamental teve prosseguimento.

“Desenvolvemos muitos projetos e produtos para as áreas de espaço e de-fesa, mas infelizmente eles não foram

maior capital”, diz Gustavo. “Em média, sempre investimos entre 10% e 16% do que faturamos em P&D”, conta Stefani. A infraestrutura da empresa está dividi-da entre a fábrica de São Carlos, onde se concentram os projetos e produtos para as áreas médica, de defesa e espaço, e outras três, em São Paulo, Porto Alegre e Fortaleza, que produzem lentes antir-reflexo, feitas com filmes finos.

prIMEIrO chOQUE“A empresa foi criada originalmente para produzir laser de hélio-neônio, fabrica-do na época por poucas companhias no mundo”, relata Stefani. “A produção do laser foi o primeiro choque entre a visão acadêmica e a empresarial.” A tão espe-rada fila de compradores para o produto nunca apareceu e hoje ele pode ser visto no acervo do Memorial Opto, uma sala que conta a trajetória da empresa por meio da exposição de produtos que fo-ram – ou não – bem-sucedidos comer-cialmente. Foi necessária uma mudan-ça de visão e a equipe se voltou para a criação de produtos que usassem aquela tecnologia. “Logo de início o laser de hélio-neônio foi modificado para um produto que geraria uma linha-guia pa-ra o corte de chapas de metal, madeira e mármore.” Um dispositivo derivado desse laser original, para alinhamento dos trilhos de trem que transportavam minério em Carajás (PA), da Vale, tam-bém está exposto no memorial.

“Participamos de uma licitação inter-nacional para fornecer o sistema de ali-nhamento para a Estrada de Ferro Carajás e competimos com empresas do porte da alemã Siemens”, conta Stefani, de 53 anos, graduado em engenharia mecânica e ele-trônica pela Escola de Engenharia de São Carlos da USP e com mestrado e doutora-do em física na área de óptica, pelo IFSC. Por conta do peso do minério carregado pelos trens, o trilho desalinhava e acon-teciam atrasos na entrega do produto aos navios no porto de Itaqui, em São Luís, no Maranhão. “Ganhamos a concorrência porque tínhamos vantagem tecnológica, e não pelo preço.” Pelas condições climá-ticas, com altas temperaturas e sol muito forte, o sistema da Siemens não conseguia detectar o sinal do laser. “Concebemos uma forma de processamento de sinal capaz de discernir a luz do laser da luz do sol, técnica que foi patenteada.” Entre 1988 e 1989 a empresa vendeu 16 sistemas lé

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EMprESA

OptO ElEtrônIcA

Centro de P&D São Carlos, Sp

Nº de funcionários 150

Áreas de atuação médica, industrial,

componentes ópticos

e sistemas aeroespacial

e de defesa

mário Stefani (primeiro à esquerda), diretor de p&D, e pesquisadores da sua equipe na sede da empresa em São Carlos

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74 z março DE 2015

para a Vale, no valor de US$ 650 mil, que garantiram o futuro da empresa do inte-rior paulista.

Em outro projeto, feito em parceria com a Itautec entre 1986 e 1989, foi de-senvolvido o primeiro leitor de código de barras para supermercados do Brasil. Foi um sucesso que não resultou em ganhos financeiros. As vendas ao longo dos anos não se concretizaram como previsto. As-sim que ficou pronto, o leitor foi instalado no supermercado Real de Porto Alegre (RS). No entanto, um selo de segurança com as palavras “radiação laser, cuidado”, traduzido da norma norte-americana, resultou em grande confusão e prejuízo para a empresa. Uma funcionária grávi-da fez uma denúncia ao Ministério do Trabalho por acreditar que a luz emitida iria prejudicar o feto – e o supermercado foi interditado. “Fomos inovadores, mas não existia ainda no Brasil a cultura de utilização do produto.”

Outros horizontes foram se abrindo para a Opto. Um dos sócios-fundadores, o professor do Instituto de Física da USP Jarbas Caiado de Castro Neto, na época presidente da empresa, teve a ideia de

1 montagem de telescópio para identificação de alvo

2 alinhamento de objetivas usadas em câmeras de satélites

3 montagem de dispositivo para ativar mísseis

Mário Stefani, diretor de P&D uSp graduação, mestrado e doutorado

Alessandro Damiani Mota, gerente de Projetos de Produtos Médicos

uSp graduação e mestrado

Paulo Aneas Lichti, gerente de Certificações uFSCar graduação e mestradouSp doutorado

Alexandre Soares, gerente de Projetos de Espaço uSp graduação

começar a representar algumas empre-sas norte-americanas de lasers para ci-rurgias oftalmológicas, o que se mostrou uma excelente oportunidade de negócio. E na área industrial, em decorrência do projeto da Vale, surgiram iniciativas para desenvolvimento de medidores de distân-cia. Uma delas, um sistema de medição de distância e espessura sem contato, feito para a indústria da borracha, tema da tese de doutorado de Stefani, foi patenteada pela Opto e chamou a atenção da equipe do major-brigadeiro Hugo de Oliveira Piva, da Aeronáutica, que convidou a em-presa para participar do desenvolvimento de um míssil ar-ar (armamento de aviões para serem usados contra outros aviões) para o Iraque. O projeto não foi adiante por conta da Guerra do Golfo e da invasão norte-americana naquele país no início de 1991. Em 1993, por iniciativa de Piva, uma equipe de engenheiros que estavam no Iraque fundou a empresa Mectron – e novamente a Opto foi convidada para tra-balhar em outro projeto de míssil, dessa vez para a Força Aérea Brasileira (FAB). “Dessa forma, entramos no mercado da defesa do espaço aéreo trabalhando no

olho do míssil, um dispositivo óptico que permite ao laser enxergar o alvo pelo ca-lor, e no sensor de proximidade do alvo.”

Enquanto isso, a iniciativa de repre-sentação de empresas médicas atingiu um patamar de destaque. “Chegamos a ser o maior mercado fora dos Estados Unidos em vendas de lasers oftalmológi-cos”, diz Stefani. Em 1997, as estratégias da empresa tiveram que ser repensadas. Numa sexta à noite um fax recebido dos Estados Unidos cancelou a representação comercial dos brasileiros. Foi então que os sócios decidiram desenvolver seu pró-prio laser para a área médica. Para isso utilizaram parte do circuito da espole-ta do laser usado no míssil, que mede a distância para o alvo, método patentea-do pela Opto, para fazer o equipamento médico para cirurgias oftalmológicas. “Em seis meses conseguimos fabricar um equipamento a laser para cirurgias.” Foi o primeiro aparelho desenvolvido e certificado no Brasil para essa finalidade

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InStItUIçõES QUE FOrMArAM OS pESQUISADOrES DA EMprESA

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pESQUISA FApESp 229 z 75

em que ele trabalhou é o laser scanner de retina. Nesse caso o laser verde é usado com um scanner que consegue selecionar até 50 pontos a serem tratados. O projeto foi encerrado em 2011 e o produto, após validação, foi colocado no mercado.

cErtIFIcAçãO EUrOpEIA Atualmente, Mota trabalha em um equi-pamento de LED que emite luz ultra-violeta para tratamento do ceratocone, doença que deforma a córnea, em par-ceria com a Universidade Estadual Pau-lista (Unesp) de Araraquara, também com financiamento do Pipe. Foi com um sistema para tratamento do ceratocone baseado na interação de luz UV com a vitamina B (riboflavina), chamado de crosslinking, que a Opto obteve a primei-

e até hoje o modelo é fabricado pela Opto. A partir daí, a empresa começou a desen-volver equipamentos para a área médica, como microscópios, retinógrafos digitais e outros tipos de laser. “A FAPESP contri-buiu muito para esses desenvolvimentos, por meio do programa Pipe [Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empre-sas]”, diz Stefani. Hoje a empresa possui um portfólio de 25 produtos na área mé-dica, que com os acessórios chega a 100.

Alessandro Damiani Mota, de 34 anos, gerente de projetos de produtos médi-cos que começou a trabalhar na Opto em 2005 como estagiário, já participou do desenvolvimento de quatro projetos financiados pelo Pipe. O primeiro deles tinha como objetivo o desenvolvimento de um laser verde para cirurgia de retina, iniciado em 2006 e com lançamento em 2007. “É um produto de muito sucesso ainda hoje e é o líder de vendas na área de laser da Opto”, diz. O equipamento trata sangramentos provocados pela diabetes. “O projeto resultou em uma dissertação de mestrado e know-how para a equipe em outros equipamentos”, relata Mota, engenheiro eletrônico com mestrado na área de instrumentação oftalmológica, ambos pela USP de São Carlos. A dis-sertação resultou em um laser amarelo, também para tratamento de retina, com apoio da Financiadora de Estudos e Pro-jetos (Finep). “Por ter comprimento de onda mais adequado, o aparelho usa uma potência menor e, com isso, o efeito tér-mico na região tratada é mais localizado, resultando em maior preservação de cé-lulas sadias”, explica. Outro equipamento

ra certificação mundial na Europa. “Con-seguimos a certificação antes da concor-rência”, relata Paulo Aneas Lichti, de 46 anos, gerente da área de certificações.

Formado em engenharia de materiais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde fez o mestrado em ciên-cia e tecnologia, Lichti começou na em-presa em 1994. Inicialmente trabalhava no projeto de desenvolvimento de um sensor para míssil. Com o tempo, passou a atuar também na proteção do conhe-cimento gerado ao longo do processo de desenvolvimento de produtos e fez dois MBAs na Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo, um em gestão de projetos e outro em negócios. Ele res-salta ainda como conquista na sua área a viabilização da primeira certificação do Instituto Nacional de Metrologia, Qua-lidade e Tecnologia (Inmetro) no Brasil, de calibração para um equipamento laser infravermelho usado no tratamento de doenças que atacam a retina. “Não havia até aquele momento um padrão definido.”

A Opto participou do desenvolvimento e fabricação de duas das quatro câmeras que compõem a carga útil do Cbers 3 e 4, desenvolvido em parceria entre o Brasil e a China. A câmera multiespectral cha-mada MUX e a WFI (sigla em inglês para imageador de amplo campo de visada) possuem sensores que destacam, por meio de imagens de cores distintas, as áreas de desmatamentos e recursos hídricos. Alexandre Soares, de 37 anos, formado em engenharia elétrica pela USP de São Carlos em 1999, começou a trabalhar na Opto em 2000 no projeto da espoleta do míssil e depois no desenvolvimento do retinógrafo digital. Em 2004 participou dos projetos Cbers. “Trabalhei como en-genheiro do projeto, depois passei a coor-denar a equipe responsável pela eletrônica e em 2010 assumi a gerência de projeto da câmera MUX.” Soares também partici-pou, em 2009, da elaboração da proposta para o desenvolvimento do olho do míssil A-Darter, uma parceria entre o Brasil e a África do Sul. “Fizemos a câmera termal, o ‘olho’, que dá os parâmetros de guiamen-to para o míssil.” O projeto está em fase final de desenvolvimento. Enquanto o setor de P&D da empresa continua o tra-balho de alta tecnologia e sem comparação nesse setor no país, os dirigentes da Opto buscam entre as diversas alternativas um caminho para sanar as dificuldades finan-ceiras da empresa. nFO

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A empresa tem um convênio com a USp que resultou em 12 teses de doutorado e 28 dissertações de mestrado

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76 z março DE 2015

Dispositivo usa ultrassom e laser

simultaneamente para reabilitar

pacientes com artrose

a artrose, doença reumática que afeta as articulações do corpo provocando dor e limitando os movimentos, atinge cerca de

20% da população mundial. A incidência da enfermidade, conhecida nos meios médicos como osteoartrose ou osteoartri-te, aumenta com a idade e estima-se que atinja 85% da população até os 64 anos, tornando-se universal após os 85. Incu-rável, o tratamento consiste em aliviar a dor e melhorar o padrão funcional dos pacientes, com a recuperação ou manu-tenção dos movimentos. A boa notícia é que um grupo de cientistas da Univer-sidade de São Paulo (USP) e da Univer-sidade Federal de São Carlos (UFSCar) desenvolveu uma nova possibilidade te-rapêutica para a doença, conjugando o uso simultâneo do ultrassom e do laser. Estudos clínicos experimentais com o dispositivo envolvendo cerca de 80 mu-lheres com artrose nas mãos e nos joelhos mostraram resultados animadores. Uma patente do aparelho, que se encontra em fase de protótipo e precisa ser aprovado pelas autoridades sanitárias do país para ser usado comercialmente, foi depositada em março de 2014 no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).

Biofísica y

Dois em um

Os efeitos positivos do ultrassom e do laser na reabilitação de pacientes que sofrem de artrose e outros problemas nas articulações já são bem conhecidos de médicos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais. A novidade está na aplica-ção simultânea, a partir de um único apa-relho, das duas técnicas. “A metodologia que desenvolvemos é pioneira e combina os efeitos mecânicos do ultrassom com os efeitos fototerapêuticos do laser. Eles produzem um efeito sinérgico de con-siderável amplitude, aliviando a dor e acelerando a recuperação do estado de inflamação. Com isso, a tecnologia reduz o tempo do tratamento, acelera a reabili-tação física do paciente e agiliza seu re-torno às atividades cotidianas”, diz o físi-co Vanderlei Salvador Bagnato, professor do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP) e coordenador do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (CePOF), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP.

Bagnato explica que o ultrassom é uma forma de onda mecânica, por meio da qual a energia vibracional é transfor-mada em energia molecular e propicia diversos efeitos terapêuticos, entre eles

Yuri Vasconcelos

o aumento da vascularização e da síntese de colágeno, além de acelerar a diminui-ção do processo inflamatório levando à reparação tecidual. O feixe de laser é composto por ondas eletromagnéticas que, de alguma forma, geram efeitos mo-dulatórios e estimulantes, como alívio da dor e regeneração do tecido. “Como o ultrassom é um estímulo essencialmen-te mecânico, é preciso que o organismo responda a ele. Caso a região esteja mui-to debilitada, essa resposta é limitada. Assim, a estimulação a laser completa a ação terapêutica”, diz Bagnato, que também é coordenador da Agência USP de Inovação.

“O dispositivo que nosso grupo criou, associando o laser e o ultrassom em um único equipamento, potencializa o efei-to terapêutico, de maneira não invasiva e não farmacológica, o que é vantajoso nos casos de pessoas com doenças crô-nicas, idosos, adultos em idade produ-tiva ou atletas. Por essas características, pode ser associado a outros tratamentos existentes”, diz a terapeuta ocupacional Alessandra Rossi Paolillo, professora do Departamento de Terapia Ocupacional da UFSCar e integrante da equipe que desenvolveu a nova tecnologia. “Outras

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pESQUISA FApESp 229 z 77

Manopla com o emissor de ultrassom no centro e quatro emissores de laser. acima, a forma de aplicação e o gabinete do aparelho

de articular dos dedos simultaneamente ao uso de um acelerômetro posicionado no punho para mensurar aceleração, ve-locidade e quantidade de movimentos”, diz a terapeuta ocupacional.

REdUção do tEmpoAo final do tratamento, os pesquisadores avaliaram os limiares de dor e funciona-lidade das mãos das pacientes e consta-taram, por meio de um teste específico, que a redução do tempo de execução da atividade “pegar objetos pequenos” caiu de cerca de 11 segundos para 8 segundos. “Isso indica que as pacientes apresenta-ram maior coordenação motora fina e funcionalidade pela simulação de mo-vimentos e preensão de objetos de uso cotidiano. Também houve aumento sig-nificativo do limiar de dor para o grupo tratado com o equipamento, enquanto não houve diferenças significativas para o grupo placebo”, diz Alessandra.

Os bons resultados apresentados pe-lo dispositivo desenvolvido pelo gru-po de pesquisadores de São Carlos, do qual também fazem parte as fisiotera-peutas Jéssica Patrícia João e Fernanda Rossi Paolillo, o físico Herbert João e a aluna de graduação Daniela Frascá, do IFSC-USP, atraíram a atenção de em-presas. Segundo Vanderlei Bagnato, a MM Optics, companhia sediada no polo tecnológico de São Carlos, já demons-trou interesse em fabricar o dispositivo e disponibilizá-lo para os profissionais da saúde do Brasil. “Um valor estimado para o aparelho é de R$ 10 mil reais”, diz Bagnato. Os pesquisadores estimam que, dentro de um ano, os estudos estejam fi-nalizados e o equipamento possa estar pronto para ser colocado no mercado. n

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ProjetocePof – centro de Pesquisa em Óptica e fotônica (nº 2013/07276-1); Modalidade centros de Pesquisa, inova-ção e Difusão (cepid); Pesquisador responsável Vanderlei Bagnato (usP); Investimento r$ 8.287.218,51 e us$ 5.825.805,65 no período de 5 anos (faPesP).

artigo científicoPaoLiLLo, a. r. et al. synergic effects of ultrasound and laser on the pain relief in women with hand osteoarthritis. Lasers in medical Science. v. 30, p. 279-86. 2015.

vantagens do sistema são a característi-ca ergonômica e a portabilidade, o que permite sua utilização em atendimentos domiciliares ou ambulatoriais, tanto para a reabilitação física quanto para trata-mentos de estética corporal.”

Nas sessões terapêuticas realizadas experimentalmente com um grupo de 43 mulheres com idades ente 60 e 80 anos com artrose nas mãos, o protótipo foi aplicado em cinco pontos durante 15 minutos em cada mão, com movimentos circulares, lentos e suaves. As sessões foram realizadas uma vez por semana durante três meses. Segundo Alessandra, avaliações quantitativas e qualitativas ocorreram no período pré e pós-trata-mento. “Primeiro, realizamos exames de raios X para o diagnóstico da osteoar-trose. Em seguida, avaliamos a força de preensão com um dinamômetro de mão e fizemos avaliações com ajuda de um eletrogoniômetro para medir a amplitu-

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Wittgenstein por Loredano

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pESQUISA FApESp 229 z 79

Pesquisadores estudam manuscritos da fase intermediária

entre as duas obras mais conhecidas de Wittgenstein

Era como se o filósofo tivesse repentinamente, sem razões muito claras, passado a produzir uma filosofia oposta à primeira. “Isso é insustentável do ponto de vista biográfico e inadequado do ponto de vista conceitual”, afirma Cuter.

A abordagem começou a mudar no fim dos anos 1990 porque foi nessa época que passaram a ser publicados os manuscritos de Wittgenstein no período entre suas duas obras mais conhecidas. Esse é o material que constitui as fontes primá-rias utilizadas no projeto temático “Wittgenstein em transição”, coordenado por Cuter na FFLCH--USP, desde junho de 2012 e com data de conclu-são prevista para o dia 31 de maio próximo. Um dos aspectos interessantes do projeto é que ele se origina de debates iniciados na própria época

Ideias emmovimento

hUmAnIdAdES fiLosofia y

márcio Ferrari

Sobre o filósofo austríaco Ludwig Witt-genstein (1889-1951) não costuma haver dúvida de que foi autor de uma obra com duas fases bem distintas. O “pri-meiro Wittgenstein” se encontra no

Tractatus logico-philosophicus, publicado em 1921, e o “segundo” é representado pelas Inves-tigações filosóficas, publicadas postumamente em 1953. Apesar das três décadas que separam os dois momentos, “a passagem do Tractatus para as Investigações filosóficas era tratada, até o fim dos anos 1990, quase como a conversão de São Paulo ao cristianismo”, diz João Vergílio Gallerani Cuter, professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma-nas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

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80 z março DE 2015

da publicação dos manuscritos, em diálogo com os estudos que se desenvolviam simultaneamente em outras regiões do Brasil e no exterior.

“Já temos no país uma quantidade farta e boa de estudos sobre o período intermediário de Witt-genstein, variada e espalhada por várias regiões”, diz Bento Prado Neto, professor do Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências do Centro de Educação e Ciências Humanas da Universida-de Federal de São Carlos (UFSCar), que assumiu a coordenação do projeto em sua última fase e vem participando dos debates com Cuter desde suas origens. O primeiro passo foi o colóquio The Middle Wittgenstein, que propiciou a interação com pesquisadores estrangeiros e de outros esta-dos, como André Porto, da Universidade Federal de Goiás, e Luiz Carlos Pereira, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e da Pontifícia Uni-versidade Católica do Rio, a PUC-Rio, que coor-ganizaram as últimas edições do colóquio. “Era um colóquio regular, e a transformação no projeto temático foi o resultado natural de um projeto já estabelecido, agora com a vantagem de uma estrutura institucionalizada”, diz Prado Neto.

Vendo o projeto temático em retrospecto, os dois pesquisadores concordam que o ganho mais importante foi a possibilidade de, a partir do es-tudo sistemático dos textos intermediários, ilu-minar aspectos da obra dos “dois” Wittgenstein. Segundo Prado Neto, tradicionalmente havia um “consenso razoável sobre os significados dos aforismos do Tractatus” e também sobre sua fi-liação, importância no campo da lógica e origem das questões discutidas (encontradas em pensa-dores como Gottlob Frege e Bertrand Russell); mas sobre esse consenso de base se erigiram in-terpretações diametralmente opostas. A diver-gência é ainda mais acentuada nas leituras das Investigações filosóficas.

Diz Prado Neto que a leitura dos escri-tos intermediários permite colocar em novas bases o debate entre as diferentes tendências interpretativas. Quanto ao trabalho dos pesquisadores reunidos em torno dos colóquios e do projeto temáti-co nascidos na FFLCH, “conseguimos, num grupo de pessoas com formação bastante diferente, obter um mínimo de concordância que permitiu uma leitura conjunta extremamente proveitosa, sem prejuízo das diferenças de abordagem”, diz Prado Neto. “Em filosofia, um consenso mínimo nunca impede a variedade de interpretações; pelo con-trário, qualifica o debate.”

Para Cuter, os textos do período intermediá-rio deixam clara a necessidade de um estudo do estatuto dos fenômenos no Tractatus logico--philosophicus. Segundo ele, no início dos anos 1930, Wittgenstein começou a operar uma refor-

ma na análise dos fenômenos preconizada pela obra, “mas ainda era no campo privado que a linguagem deveria encontrar sua base”. Porém, por volta de 1936, isso começou a cair por terra, e o filósofo “desenvolveu uma crítica sistemática do próprio pensamento com argumentos contra a possibilidade lógica de uma linguagem privada”, devendo-se entender aqui por “linguagem priva-da” aquela cujo sentido seria logicamente inaces-sível a qualquer outra pessoa que não o falante.

Como se vê, mesmo o período intermediário de Wittgenstein está longe de ser homo-gêneo. O filósofo austríaco, que se mudou

para a Inglaterra para ser aluno de Bertrand Rus-sell em Cambridge, doou sua parte da herança de família, uma das mais ricas da Áustria, às irmãs, mais ou menos à mesma época da publicação do Tractatus. Passou então a dar aulas para crian-ças, renunciando à atividade filosófica. Mas, em 1929, com 40 anos, voltou a Cambridge, onde, em 1937, sucederia G. E. Moore na cátedra de filosofia. Renunciou à cátedra em 1947, quatro anos antes de morrer.

O projeto “Wittgenstein em Transição” se debruçou sobre os documentos do período que vai de 1929 até 1933, que incluem cerca de 3 mil páginas manuscritas, mais as notas das conver-sações com o Círculo de Viena, as notas tomadas por seus alunos durante os cursos dados entre 1930 e 1933, as anotações feitas por Moore (que serão publicadas este ano nos Estados Unidos), duas conferências e a parte da correspondência de Wittgenstein relativa ao período. “Wittgens-tein foi um filósofo no sentido tradicional da palavra, e não um filósofo universitário, ocu-pado com a solução de problemas específicos para publicar mais um artigo”, diz Cuter. Ele acrescenta não existir, apesar disso, “nenhuma

pretensão de sistematização em sua filosofia, a não ser no Tractatus, e mesmo assim num sen-tido muito especial”.

Todo o material intermediário amplia uma trajetória de questionamentos radicais. O im-pacto do pensamento de Wittgenstein – que le-vou seu mestre Russell a repensar as próprias conclusões no campo da filosofia da lógica – se deve em grande parte ao que Cuter qualifica de

O ganho mais importante do projeto foi a possibilidade de iluminar aspectos da obra dos “dois” Wittgenstein

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“uma ambição de tratar os problemas filosóficos tradicionais em bloco”. Segundo explica o pes-quisador, do começo até o fim de seu percurso filosófico, Wittgenstein sempre acreditou que os problemas filosóficos repousam num mau enten-dimento da “gramática” da linguagem. “Para o primeiro Wittgenstein, essa ‘gramática’ deveria ser buscada por intermédio de uma análise que nos levaria à exibição de um conjunto de pro-posições elementares, a partir das quais toda e qualquer proposição da linguagem poderia ser construída por meio de expedientes verifuncio-nais.” Sendo assim, a análise das proposições da linguagem poderia levar a três resultados: uma função de verdade usual das proposições elemen-tares, dotada de bipolaridade e inscrita, por isso, no domínio descritivo; uma tautologia ou contra-

dição, que nada dizem; ou ainda a constatação de que o processo de análise da suposta proposição nos conduz a um “beco sem saída”, o que reve-laria que a suposta proposição de que partimos era, na verdade, um contrassenso.

No período maduro, não existe mais es-se caminho único e predeterminado de análise nem a noção de uma linguagem

‘universal’ expressando um campo de sentido”, diz Cuter. “O único constrangimento lógico dado de antemão é o caráter necessariamente público dos critérios que utilizamos para aferir a corre-ção ou incorreção de uma sentença.” Isso vale para a avaliação do sentido e do valor de verdade das sentenças de uma linguagem e também para qualquer coisa que envolva a noção de “regra”. O importante, do ponto de vista de Wittgenstein, seria preservar a distinção entre as ocasiões em que uma regra estaria sendo seguida e aquelas outras em que ela foi apenas aparentemente se-guida. “Sempre que chamamos alguma coisa de regra, admitimos a possibilidade de alguém achar que a está seguindo sem estar. É exatamente isso que estaria excluído, por princípio, de um suposto domínio estritamente privado que só eu tenho a possibilidade lógica de acessar.”

“O projeto do Tractatus tem como escopo a clarificação lógica da linguagem”, diz Prado Ne-to. “Mantendo-se estritamente focado no escla-recimento da lógica – isto é, no esclarecimento

da ‘forma geral’ da proposição, excluindo seu ‘conteúdo’ – , a primeira obra parece reduzir a isso toda a reflexão filosófica digna desse nome e afastar temas como tempo, espaço, fenômeno etc.” Ao voltar para Cambridge em 1929, Witt-genstein irá se dedicar à “aplicação da lógica”, isto é, à análise lógica das proposições de nossa linguagem, e, a partir desse momento, o escla-recimento da linguagem, que continuava a ser o trabalho essencial da filosofia, já não poderia ser indiferente a esses conteúdos. “Essa recuperação de temas clássicos é um dos aspectos interessan-tes do período intermediário, na medida em que permite um confronto um pouco menos simplis-ta da filosofia de Wittgenstein com a tradição.”

Longe de esgotar – se é que isso é possível – as possibilidades de estudo e interpretação do

Wittgenstein intermediário, o proje-to dos pesquisadores se prolonga pela criação de um núcleo que já se incluía entre seus objetivos iniciais, com a par-ticipação, além dos pesquisadores bra-sileiros, de nomes consagrados como David Stern, da Universidade de Iowa, e Mathieu Marion, da Universidade de Quebec. Um dos pesquisadores estran-geiros que fizeram parte desde o início dos colóquios organizados por Cuter e

Prado Neto, o francês Ludovic Soutif, mudou-se para o Brasil – fez um pós-doutorado na USP e hoje é professor da PUC-Rio.

A rede internacional de estudos propiciou a realização de quatro colóquios internacionais, um deles na Universidade de Bordeaux, com aportes financeiros de agências francesas, e a publicação de um número especial da revista canadense Philosophiques. Um livro ainda sem título escrito a oito mãos – por Cuter, Prado Ne-to, Marcelo Carvalho, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e Mauro Engelmann, da Universidade Federal de Minas Gerais – com comentários analíticos às Philosophische Bemer-kungen (observações filosóficas), está prestes a ser lançado pela editora da Unifesp. Um segundo volume, exclusivamente sobre os capítulos de filosofia da matemática da mesma obra, encon-tra-se em preparação. Esse trabalho, segundo Cuter, está sendo feito por jovens pesquisadores que possuem uma boa formação em matemáti-ca e podem levar a pesquisa nessa área a bom termo. “Agora, temos resultados palpáveis que seriam impensáveis quando começamos a tra-balhar sozinhos, no Brasil, isolados do restante do mundo”, diz ele. n

ProjetoWittgenstein em transição (nº 2012/50005-6); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Bento Prado de almeida ferraz Neto (UfsCar); Investimento R$ 100.403,46 (faPEsP).

O filósofo austríaco sempre acreditou que os problemas filosóficos repousam num mau entendimento da “gramática” da linguagem

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82 z março DE 2015

Projeto evidencia a

importância da ideia

profética de “esperança”

nas relações entre

Portugal, Holanda e

Inglaterra no século XVII

Trama ultramarina

Era o despertar de um sonho. Um sonho im-pulsionado pelo padre português Antônio Vieira no século XVII: a esperança profé-tica de um “Quinto Império”, inspirada no

livro bíblico de Daniel, considerado apocalíptico por tratar dos acontecimentos relacionados ao fim do mundo. Vieira acreditava que, após os domínios dos assírios, dos persas, dos gregos e dos roma-nos, era o momento do último reino na Terra, o Império Português. A essa trama ultramarina se dedicou o historiador Luís Filipe Silvério Lima, professor de História Moderna desde 2007 na Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus de Guarulhos. “No século XVII ociden-

HISTÓRIA y

Juliana Sayuri

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Alegorias e símbolos da esperança deixaram seu registro na iconografia. A gravura em papel Esperança (c. 1559-1562), de Philips

Galle, a partir de um desenho de Brueghel, é uma das primeiras nas quais a âncora e o mar estão relacionados com a virtude da esperança em tempos turbulentos (225 mm × 293 mm, Rijksmuseum, Amsterdã)

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84 z março DE 2015

dominados pelo catolicismo, Amsterdã era uma das cidades onde se podia viver “publicamente” como judeu. “Era um porto relativamente seguro para quem quisesse professar a fé judaica. Muitos cristãos-novos portugueses foram para lá, fugidos ou não da Inquisição.”

O rabino Menasseh Ben Israel tornou--se uma referência para católicos e pro-testantes, reconhecido por seus conhe-cimentos bíblicos. Dialogou com outros expoentes da época, como o jesuíta An-tônio Vieira, com quem certa vez teve um encontro e uma longa conversa sobre o fim do mundo, um tópico dominante nas discussões vigentes. Menasseh ainda des-pertou interesse de importantes círculos políticos, como os de Vasco Luís da Gama, conde de Vidigueira, depois marquês de Nisa, descendente direto do almirante português que descobriu o caminho ma-rítimo para as Índias no século XV. Esses círculos estavam preocupados, entre ou-tras coisas, com o papel possível dos ju-deus para a restauração da independência de Portugal de 1640, com a nova dinastia de dom João IV de Bragança, destacando o impacto negativo dos tribunais do San-to Ofício contra os cristãos-novos, alguns deles importantes mercadores. “A questão tinha uma dimensão religiosa e teológica, mas também política”, pondera.

A partir de suas pesquisas nos arquivos de Amsterdã, Lisboa, Londres e Washing-ton, o historiador traçou conexões que permitem compreender as inquietações religiosas e políticas no século XVII, do-minadas por uma ideia principal: a espe-rança. Entre 1649 e 1650, Menasseh Ben Israel escreveu o pequeno tratado Miqveh Israel ou esperança de Israel, por conta do interesse de milenaristas ingleses na su-posta “descoberta”, relatada pelo cristão--novo Antonio de Montesinos, de uma das 10 tribos perdidas de Israel na América es-panhola, mais especificamente na Amazô-nia. Na interpretação das páginas bíblicas, indicaria a vinda do Messias, a instauração do Quinto Império e, assim, a iminência do fim do mundo. A “notícia” parece não ter comovido particularmente a comunidade dos judeus-portugueses na Holanda, mas mobilizou os protestantes na Inglaterra. O livro do rabino foi traduzido para o la-tim (Spes Israelis) e para o inglês (Hope of Israel). “A América era o novo mundo, uma terra ainda desconhecida que se ‘en-caixava’ perfeitamente na profecia. Quem eram esses americanos? Eram ou não des-

Além de Esperança de Israel, outros escritos se pautaram pela esperança profética, que se traduziram em projetos políticos diferentes

tal, principalmente europeu, o sonho era uma ideia muito poderosa para explicar o próprio mundo. Era uma metáfora do que é a vida. Diversos autores, entre dra-maturgos, filósofos, políticos, padres, pintores e poetas, usavam o sonho para dar sentido à realidade”, diz Lima.

Durante suas investigações, o pesqui-sador observou conexões entre a ideia de Quinto Império proposta por Portu-gal e a Quinta Monarquia idealizada na Inglaterra e partiu para um novo projeto de estudo sobre interpretações e leituras das profecias no século XVII. “Na época da elaboração do projeto, discutiam-se muito os limites metodológicos da his-tória comparada. Eram propostas outras abordagens que permitissem pensar para além das fronteiras nacionais, como as histórias conectadas, as histórias cruza-das, emaranhadas. Assim, a partir dessas perspectivas, pretendi identificar possi-bilidades de conexões entre Portugal e Inglaterra nesse período, em torno das expectativas proféticas e os projetos de Quinta Monarquia que, quase simultanea-mente, apareceram durante a Restauração Portuguesa e a Revolução Inglesa”, explica o historiador, autor de Padre Vieira: So-nhos proféticos, profecias oníricas. O tempo do Quinto Império nos sermões de Xavier Dormindo (Humanitas, 2004) e O império dos sonhos: Narrativas proféticas, sebastia-nismo e messianismo brigantino (Alameda, 2010), desdobramentos, respectivamen-te, de sua dissertação de mestrado e sua tese de doutorado, orientadas por José Carlos Sebe Bom Meihy e defendidas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

O rAbInO E O pAdrENesse contexto, Lima identificou a Holan-da como espaço privilegiado para vincular Portugal e Inglaterra. “O que é marcante, por exemplo, com o papel desempenha-do pelo rabino Menasseh Ben Israel, um judeu de origem portuguesa que viveu na primeira metade do século XVII”, ilus-tra. Menasseh era de família cristã-nova portuguesa, cristãos de origem judaica convertidos compulsoriamente ao catoli-cismo. Assim como muitos judeus radica-dos em países católicos, como Portugal e Espanha, Menasseh migrou para França e depois para a Holanda para se recon-verter ao judaísmo. Ali ajudou a fundar a Talmud Torá, também conhecida co-mo Sinagoga Portuguesa. Nos tempos

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historiador descobriu ainda alegorias, emblemas e símbolos para a esperança, intrinsecamente relacionados ao mar desbravado pelas navegações. Ao longo dos séculos XVI e XVII, a esperança era retratada com uma mulher e uma âncora, que simbolizariam um porto seguro e, ao mesmo tempo, uma bússola para atraves-sar os mares tempestuosos. “A esperança, afinal, era uma virtude que implicava a ‘espera’ de algo. Para os cristãos católi-cos e protestantes, era a espera pela se-gunda volta de Cristo, pela salvação ou pelo Juízo Final. Para os judeus, a vinda do Messias”, diz Lima. “Na bibliografia, muitas vezes os termos ‘messianismo’ e ‘milenarismo’ são usados indistintamen-te. Mas há diferenças”, diz o pesquisador. Por “messianismo” compreende-se a vol-ta do Messias. “Milenarismo” refere-se à volta de Jesus Cristo para um reino de mil anos na Terra, o millenium. No século XVII, os movimentos do Quinto Império português e da Quinta Monarquia inglesa se fundamentavam nesses pensamentos proféticos. Essas diferenças entre messia-

cendentes de judeus? Se a Bíblia tinha to-das as respostas, mas não tinha menções à América, quem eram então esses po-vos?”, diz o pesquisador, reverberando as questões que intrigavam os personagens daquele período. “Isso atraiu as atenções do mundo protestante, pois alguns mile-naristas ingleses pensavam que também seria possível que os índios do norte da América fossem descendentes das tribos judaicas, além dos supostamente encon-trados na Amazônia. Em parte devido a essas discussões, passou-se a reconsiderar a readmissão dos judeus na Inglaterra.”

ESpErAnçA Além do tratado Esperança de Israel im-presso na Holanda, outros escritos da época se pautaram pela esperança pro-fética, que se traduziram em projetos políticos diferentes. Em Portugal, a carta Esperanças de Portugal, escrita pelo pa-dre Antônio Vieira em 1659, consolando a rainha por conta da morte do rei dom João IV, anunciava sua ressurreição e o início do reino de Cristo na terra com o Quinto Império português. Na Inglater-ra, o panfleto Door of hope, documento de autoria desconhecida divulgado em 1661, anunciava o reino dos santos para derrubar o rei Carlos II, recém-restau-rado no trono inglês, conclamando um levante da Quinta Monarquia liderado pelo tanoeiro Thomas Venner.

Um ponto comum desses escritos era a fonte bíblica: as visões e os sonhos do livro de Daniel sobre os cinco reinos. Segundo Lima, porém, eram diferentes interpretações, que serviram para dife-rentes propostas e justificativas teórico--ideológicas para intervenções políticas. “A discussão teológica tinha um rebati-mento político muito forte. No fundo, a questão era: qual é o espaço da ação hu-mana para um projeto de Deus? Qual é o cálculo político possível? Parafraseando uma narrativa de Vieira: o capitão perdeu a hora e não chegou a tempo no porto, as-sim o navio demorou e a frota se atrasou, assim a esquadra não chegou a tempo na Índia e não conseguiu socorrer um forte, assim se perdeu o domínio do campo, se perdeu o dinheiro e, por fim, se perdeu o império. Isto é, o império seria um pro-jeto divino, mas a ação humana era im-portante para realizá-lo”, exemplifica.

Nos três casos – Portugal, Inglater-ra e Holanda –, a esperança era a pala-vra-chave. Na pesquisa iconográfica, o

ProjetoAs interpretações e leituras das profecias dos cinco reinos no século XVII (nº 09/53257-3); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Luís Fi-lipe Silvério Lima (EFLCH-Unifesp); Investimento R$ 93.023,00 (FAPESP).

nismo e milenarismo, no entanto, alerta o pesquisador, não são tão importantes ou operacionais para a pesquisa.

A partir desse projeto de estudo, en-cerrado em 2014, Luís Filipe Silvério Li-ma desdobrou outras iniciativas. Por um lado, pretende escrever um novo livro sobre as considerações já desenvolvidas. Por outro, na Unifesp, consolidou o Gru-po de Pesquisa CNPq Poder e Política na Época Moderna. O objetivo é estimular mais estudos e consolidar a área de His-tória Moderna no campus da universidade federal. Também desse projeto saiu um colóquio em 2012 sobre messianismo no mundo ibérico, que deve resultar em um livro publicado no exterior, organizado com a professora Ana Paula Megiani, da Universidade de São Paulo (USP). n

L’Espérance, gravura sobre papel

de Abraham Bosse (1636), publicada

por Hernan Weyen (7,3 x 4,6 cm,

Metropolitan). Na página ao lado,

fac-símile de Esperança de Israel

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86 z março DE 2015

Ferramenta digital revela estrutura

dos textos, permitindo o

aprimoramento do aprendizado

Compreensão conceitual

a dificuldade de expressão es-crita dos estudantes é um dos pontos mais problemáticos do ensino no Brasil (embora

não só aqui), como indicam numerosas avaliações nacionais e internacionais. Tendo essa questão como alvo, o pro-fessor Eliseo Reategui, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), num pro-jeto iniciado em 2010, criou com a ajuda de alunos uma ferramenta digital capaz de extrair automaticamente os conceitos principais de um texto e mostrar grafi-camente seu grau de importância e suas inter-relações. O processo é conhecido como mineração de texto.

A ferramenta, disponível em portu-guês e inglês, é chamada Sobek (nome de uma divindade egípcia que simboliza força, devastação e reconstrução) e po-de ser acessada gratuitamente no site da universidade (http://sobek.ufrgs.br/). Qualquer texto submetido a ela é de-

composto em seus conceitos principais, representados por meio de um grafo – diagrama formado por nodos (os con-ceitos isolados em quadros) e arestas (os traços de ligação). O método é estatísti-co, portanto a importância dos concei-tos é medida pelo número de vezes que uma mesma palavra é repetida no tex-to. Há filtros que descartam as palavras frequentes que, no entanto, não geram sentido isoladamente, como artigos e preposições.

O modelo utilizado para a extração de conceitos foi o do algoritmo de Schen-ker, criado em 2003. No entanto, a Sobek apresenta uma representação simplifi-cada que torna a leitura mais concisa e acessível. “O desenvolvimento da fer-ramenta teve sempre uma visão edu-cacional e foi adaptada para o apoio à prática de leitura e escrita, mesmo que possa servir a outros usos, inclusive co-merciais”, diz Reategui. “O ponto mais forte é a identificação do tema ou dos

No exemplo ao lado, esta reportagem é usada para mostrar

como o software Sobek extrai os conceitos principais do texto e

mostra graficamente seu grau de importância e suas inter-relações

principais temas que se encontram no texto.” Essa é a chave para a detecção de deficiências de coesão e unidade.

Nesse aspecto, a Sobek cria ambien-tes de aprendizado úteis para analisar textos produzidos pelos alunos assim como para trabalhar com textos já exis-tentes durante exercícios de leitura. A tarefa de avaliação e reorganização de conceitos pode ser feita pelos próprios alunos, professores ou em conjunto – possibilidades abertas pela adaptabili-dade da ferramenta em diferentes mo-mentos educacionais, desde o período de letramento (posterior à fase inicial da alfabetização) até as etapas da pós--graduação.

A interação do aluno com o sistema não começa só depois da geração do gra-fo, mas durante o processo funcional, quando o usuário seleciona e refina a base de conceitos – ao contrário do ha-bitual, uma professora de inglês pode, por exemplo, querer ver as preposições

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para avaliar o uso que seus alunos fazem dessas partículas – e depois, na etapa de ajuste do grafo, por meio da eliminação e inclusão de conceitos conforme sejam ou não relevantes, o que é feito manualmen-te. Essa fase permite ao usuário ajustar com maior precisão a análise do texto de acordo com suas finalidades especí-ficas. “Do ponto de vista educacional, se o primeiro grafo correspondesse in-tegralmente ao desejado, o processo não seria tão interessante”, diz Reategui. “Es-ses momentos de reflexão permitem ao aluno penetrar no texto de maneira mais profunda, construindo pouco a pouco a rede de relações necessárias para poder estruturar a própria escrita.”

Assim se estabelece um processo es-truturado e interativo que permite uma abordagem construtivista do aprendiza-do, em conformidade com a descrição do desenvolvimento intelectual humano introduzida por Jean Piaget (1896-1980). Para o psicólogo suíço, não se transmi-

tem conhecimentos. Quem aprende o faz pelo exame e reorganização de conheci-mentos diante de uma situação nova. “A prática da Sobek pretende não ser muito diretiva e baseia-se essencialmente na ação reflexiva do aluno, a partir de sua visão e de suas experiências”, explica Eliseo Reategui.

MInErAção dE tExtoSegundo o pesquisador, nos Estados Uni-dos o uso de diagramas e outros modos de organização gráfica em produção tex-tual costuma concentrar-se nas fases de estruturação e planejamento do texto, durante o processo considerado como pré-escrita. Isso se deve à ideia de que esse é o trabalho principal e conceitual-mente mais complicado da criação. Rea-tegui entende, no entanto, que a utili-zação usual no Brasil da mineração de texto, via Sobek, é mais dinâmica, por-que implica um “vaivém” que se traduz em engajamento por parte dos alunos.

A ferramenta vem sendo experimentada em várias áreas. Alunos participantes ou próximos do Centro In-terdisciplinar de Novas Tec-nologias em Educação (Cin-ted) da UFRGS estruturaram projetos-pilotos em escolas do estado. Há registros de atividades relacionadas ao letramento e à construção de textos, mas também como recurso, por exemplo, para compreensão conceitual em aulas de ciências (para a descrição da fotossíntese, por exemplo). “Os professo-res dessas escolas se tornam multiplicadores”, diz Reate-gui. “Não temos um acompa-nhamento sistematizado do que é feito, mas essa é uma etapa importante ainda a ser realizada. Um desejo nosso é criar uma comunidade de professores on-line para tro-ca de experiências.”

Por estar disponível sem restrições na internet, a utili-zação da Sobek é igualmente irrestrita. Recentemente, um estudante da Espanha entrou em contato com o Cinted pa-ra apresentar uma versão que ele desenvolveu capaz de mi-

nerar textos em idioma espanhol. E uma professora moçambicana, numa atividade voltada para a prática de narrativas com crianças das primeiras séries do ensino fundamental, teve a ideia de, em vez de trabalhar apenas com a geração de con-ceitos, usar a configuração da Sobek que busca também imagens na internet em tempo real. “A tecnologia digital faz parte do dia a dia e é fundamental para motivar as crianças”, diz Reategui. “Os professores precisam lançar mão de uma diversidade de estratégias, o tempo todo, para manter o interesse dos alunos.”

Atualizações e aperfeiçoamentos tam-bém modificam a própria Sobek. Um grupo de alunos-programadores traba-lha permanentemente nisso. Recente-mente toda a interface do ambiente foi reformulada para ficar mais dinâmica e em pouco tempo será lançado um apli-cativo para utilização da ferramenta em equipamentos móveis, mesmo não co-nectados à internet. n Márcio Ferrari

aluno

Sobek

conceitosdiz Reategui

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tempo

professores

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88 | março DE 2015

Carlos Fioravanti

O agrônomo Eurico Santos foi um divulgador da natureza brasileira durante 50 anos

memória

Entre os viajantes, padres ou naturalistas que escreveram para um público amplo sobre a natureza brasileira, é difícil encontrar quem tenha sido tão profícuo,

abrangente e entusiasmado quanto Eurico de Oliveira Santos. Agrônomo, nascido no Rio de Janeiro em 1883, Eurico Santos escreveu para jornais, criou quatro revistas de agronomia e publicou cerca de 50 livros sobre animais e plantas do Brasil, de 1910 até o final da década de 1960. Seu trabalho foi anterior ao de um divulgador da ciência mais conhecido, José Reis, médico carioca que escrevia inicialmente sobre doenças de aves na revista O Biológico, publicada pelo Instituto Biológico de São Paulo a partir de 1935, e depois sobre ciência em geral em jornais paulistas de grande circulação, em especial a Folha de S.Paulo.

Eurico Santos, como José Reis no Biológico, expressava satisfação em apresentar a natureza ao leitor, sem abdicar da precisão. Com um horizonte mais amplo que seu sucessor, Santos escreveu textos sobre domesticação de cães – tema do primeiro livro, de 1927 –, árvores do Brasil, hortas e pomares, doenças de frutas e, na linha que mais o tornou famoso, sobre a vida e os costumes de animais brasileiros –

Esquema do corpo de um inseto (gafanhoto), acima, e marimbondo do gênero Trypoxylon

Prazer em descrever

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PeSQUiSa FaPeSP 229 | 89

de Informação Agrícola do Ministério da Agricultura.

“Ele era de estatura baixa, prosador excelente e gourmet exigente. Foi uma satisfação trocar ideias com ele”, relatou Nomura em 2009, referindo-se ao encontro com Eurico Santos em 1959. Depois de ter sido reconhecido por diversas sociedades científicas e ganho um prêmio do presidente Juscelino Kubitschek, Eurico Santos morreu em 1968. Seu estilo de textos suaves, que qualquer um consegue entender, não pode ser esquecido, enfatiza Straube: “Autores antigos nos dão excelentes caminhos que podem e devem ser seguidos.” n

Eurico Santos, Pássaros do Brasil, da primeira professora de biologia no ensino médio, Zélia Arns, que era prima dele e irmã de dom Paulo Evaristo Arns e Zilda Arns.

Eurico Santos escreveu intensamente para jornais durante décadas. Em um deles, O Jornal, do Rio, ele criou em 1930 – e manteve por mais de 30 anos – a seção Vida dos Campos, de acordo com o ex-professor da Universidade de São Paulo (USP) Hitoshi Nomura, um dos estudiosos de sua obra. Na década de 1950, segundo Nomura, “praticamente todos os jornais brasileiros estampavam seus artigos”, distribuídos pelo Serviço r

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pássaros do Brasil (no sentido horário): tesoura (Muscivora tyrannus), cardeal (paroaria coronata), canário-da-horta (Sicalis flaveola flava) e lecre (Onychorhynchus c. coronatus). abaixo, uma formiga rainha pondo ovos

“Quelônio de

construção

encrencada e de

aspecto hediondo.

Parece alimária duma

fauna fantástica,

criada por um deus

brincalhão”

— Eurico Santos sobre

o matá-matá

anfíbios e répteis, peixes, moluscos, insetos, pássaros e mamíferos –, mais tarde reunidos e republicados pela editora Itatiaia. Ele sempre contava com o apoio e a ajuda de especialistas, que admiravam seu trabalho de levar o conhecimento científico a um público amplo. Por exemplo, Arthur Neiva, diretor do Instituto Biológico, é quem fez o prefácio de Pássaros do Brasil, de 1940.

Santos se pôs a escrever em linguagem simples por causa da convivência com jornalistas, enquanto estudava agronomia, e da escassez de livros sobre animais brasileiros, enquanto havia muitos sobre os de outros países. Seu papel como divulgador da ciência era trazer o conhecimento dos especialistas ao grande público, de modo panorâmico. “Quem divulga para difundir a ciência entre os não especializados não precisa ser profundo e até esta qualidade da não profundidade torna-se indispensável ao divulgador. O que ele precisa em primeiro lugar é ser leve, sintético, agradável”, ele argumentou no prefácio de Moluscos.

“Sua forma de escrever cativava”, comenta o ornitólogo paranaense Fernando Costa Straube, admirador da obra de Santos. “Crianças recém-alfabetizadas começaram a desenvolver o gosto pela pesquisa graças a seus livros, produzidos em linguagem clara e acessível.” Ele próprio já tinha lido Da ema ao beija-flor quando, aos 15 anos, ganhou outro livro de

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90 | março DE 2015

Artista ajudou a definir o caráter da produção brasileira

de artes plásticas da segunda metade do século XX

Estrutura tubular branca exposta no

Instituto Tomie Ohtake: linha como elemento capaz de

potencializar o espaço

sobre o crescente encastelamento em torno de um mercado em expansão, mas ainda tacanho, e a necessidade de se implementar políticas públi-cas de democratização do acesso à arte sem con-siderar seu anseio por produzir obras públicas?

Nascida em novembro de 1913 em Kyoto, no Japão, Tomie Nakakubo (seu nome de solteira) dizia gostar de desenhar desde criança. “Queria sair do Japão para pintar”, disse ela no filme To-mie, lançado por Tizuka Yamasaki no fim do ano passado. Naquela época, no entanto, o destino de toda jovem era o casamento. Sua chegada ao Bra-sil, para visitar um irmão, em 1936, foi impactante. “Tudo era amarelo, até o gosto”, relembrava ela ao descrever a paisagem que encontrou ao sair do navio. Não à toa essa cor, tão temida pelos pinto-res, é frequente em suas telas. A guerra e poste-

Maria Hirszman

Arte

toMie oHtAke1

Com a morte de Tomie Ohtake, no dia 12 de fevereiro, parece encerrar-se definitiva-mente um longo e fértil capítulo. A artista,

que chegou aos 101 anos ainda produzindo e se reinventando, protagonizou alguns dos momen-tos mais marcantes da cena nacional, ajudando a definir o caráter da produção brasileira da se-gunda metade do século XX. Como bem sinteti-zou Paulo Herkenhoff, “Tomie é um ponto pri-vilegiado a partir do qual podemos olhar a arte brasileira”. Em outras palavras, como discutir a força da abstração no caso brasileiro e refletir sobre o embate entre a criação lírica, gestual, e o rigor construtivo sem invocar sua obra? Seria possível estudar a importância dos fluxos migra-tórios e o papel da mulher na arte brasileira sem considerar sua trajetória? Faria sentido refletir

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PeSQUiSA FAPeSP 229 | 91

Acima, Tomie sobre sua obra instalada (e, depois, desaparecida) na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, em 1985. Abaixo, um dos últimos trabalhos em tela da artista

riormente o casamento com o engenheiro Al-berto Ohtake transfor-maram o que deveria ser uma rápida estadia em residência defini-tiva – formalizada em 1968, quando a já con-sagrada artista adotou a cidadania brasileira.

Apenas em 1952 o antigo desejo de pintar tornou-se realidade. No início a produção era fi-gurativa, sobretudo de paisagens. Tomie teve apenas um professor, Keisuke Sugano. Mas a vida toda mostrou-se atenta ao trabalho dos colegas, jovens e mes-tres. Dentre eles desta-ca-se o americano Mark Rothko (1903- 1970), que lhe mostrou o cami-nho da potência da cor. Autônoma por vocação, Tomie participou apenas de um coletivo de artistas, dentre os vários que agitavam a cena brasileira dos anos 1950: o grupo Seibi, que congregava outros destacados pintores da colônia japonesa, como Manabu Mabe e Fla-vio-Shiró. Apesar do forte viés abstracionista do grupo, Tomie contava que na verdade descobriu o caminho das formas não representativas ao tentar “reproduzir” detalhes de sua cozinha, transforma-da em ateliê. Sua transição para o abstracionismo ocorre na segunda metade dos anos 1960, período áureo do construtivismo no país. Mas Tomie ja-mais seguiu o caminho do rigor concretista, nem se encontrou na gestualidade fácil do tachismo.

Buscando estabelecer os laços, sutis porém intensos, entre a pintora e movimentos como o

neoconcretismo, em um dos últimos textos publi-cados sobre sua obra, por ocasião da mostra Tomie Ohtake – Gesto e razão geométrica, que encerrou as celebrações em torno de seu centenário, em 2013, Herkenhoff alerta para uma questão central na forma de pensar a arte de Tomie no contexto brasileiro: a necessidade de lutar “contra o re-ducionismo de confiná-la na rubrica de ‘artista nipo-brasileira’”.

É inquestionável a afirmação – reiteradamente repetida por quem se debruçou sobre sua obra – de que sua riqueza reside exatamente em uma capacidade impressionante de conciliar forças apenas aparentemente opostas, promovendo uma rica síntese entre Oriente e Ocidente, um encontro improvável e denso entre geometria e informalismo (nas palavras de Miguel Chaia), ou uma aproximação entre intuição e empirismo (co-mo diz Frederico Morais). Porém torna-se cada vez mais pertinente os esforços históricos e crí-ticos de pensar seu trabalho a partir das relações com o contexto maior em que ele foi produzido.

Tentar reduzi-la a um núcleo específico, iso-lando-a da efervescência miscigenada que marca o modernismo brasileiro, equivaleria, em última instância, a considerar Tomie exclusivamente co-mo uma pintora de formas geométricas simples, quando na verdade ela nem é só uma pintora, nem se pode considerar a sua arte – pictórica ou não – apenas como fruto do racionalismo cons-trutivo. Tomie foi, sim, japonesa e brasileira, da mesma forma que foi construtiva e lírica, formal e intuitiva. Fo

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Ela conseguiu não se ater à superfície plana, escapando da tela ou do papel para o espaço urba-no, público. A investigação da linha como elemento capaz de potencializar o espaço torna-se evidente, por exemplo, numa série de esculturas em ferro tu-bular branco que a artis-ta realizou nos anos 1990, exibida na 23a Bienal de São Paulo. E se faz sentir em trabalhos como o mo-numento em celebração ao centenário da imigração japonesa, uma estrutura gigantesca em aço verme-lho, com 15 metros de altu-ra e 100 toneladas de peso, que se insinua diante da paisagem marinha de Santos com a leveza de um desenho. Vinte anos antes, Tomie já havia participado da criação de um monumento em rememoração ao início do fluxo migratório do Japão ao Brasil, que naquela ocasião festejava 80 anos. Optou por figurar a re-lação entre suas duas pátrias por meio de quatro formas idênticas em concreto que remetem ao movimento do mar, o que lhes valeu o apelido de “ondas” da avenida 23 de Maio, em São Paulo. Há, ainda, uma espécie de encontro entre a sedução da cor e um tributo à concisa arquitetura moder-na nesse monumento, que tem as partes internas em concreto e as faces interiores coloridas, em uma afinada composição cromática.

iMPActoÉ em diálogo com a arquitetura de Oscar Nie-meyer que Tomie Ohtake realizou aquela que já indicou como sendo sua obra pública preferida. Trata-se da escultura concebida em 2004 para o hall interno do Auditório Ibirapuera, composta por uma sucessão de formas sinuosas em intenso tom de vermelho, que entram em rico contraste com o rigor da arquitetura modernista.

Outra peça de grande impacto foi a estrela instalada em 1985 na Lagoa Rodrigo de Freitas, que gerou polêmica no Rio de Janeiro. A obra teve um final misterioso – retirada para reparos após ter sofrido danos durante uma tempestade, a peça (20 metros de diâmetro e 17 toneladas de metal) simplesmente sumiu. Um comentário de Miguel Chaia condensa tanto a plasticidade como o destino dessa obra: “Sob suas mãos os planos descrevem curvas caprichosas e gráceis como se fossem construídos de matéria mole, como se estivessem sob a ação de uma intensa ventania”.

Ousada em suas intervenções urbanas, muitas vezes criticada por ter o apoio institucional que falta à grande maioria, Tomie costumava passar elegantemente por cima de polêmicas. Falava pouco, repetia as mesmas frases sucintas, vistas ora como enigmas, ora percebidas como ensina-mentos, dando a entender que apontava saídas, mas não revelava tudo. Quando lhe pediam um depoimento, dizia: “Prefiro pintar”. Gostava de deixar análises e interpretações sobre seu traba-lho aos muitos críticos amigos, que recebia pra-zerosamente, ao lado dos filhos Ruy (arquiteto, que projetou sua casa e seu instituto) e Ricardo (responsável pela coordenação da instituição agora responsável pela gestão de sua obra e me-mória). Impossível não ver em seus comentários a face zen, cósmica, facilmente identificável em suas obras. Preferia o silêncio, o exercício coti-diano de criar por meio de formas e cores, o em-bate entre controle e acaso, uma ação mental na dose certa, numa precisão sempre afinada, que poderíamos chamar de rara vocação. n

Acima, monumento à imigração japonesa

na avenida 23 de maio, em são Paulo. Abaixo, a escultura

no hall interno do Auditório Ibirapuera,

uma das peças preferidas da artista,

em diálogo com a arquitetura de Oscar

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dos discursos evolucionistas e/ou deterministas feitos sobre a música popular ao longo dos anos.

A partir de minuciosa análise de um vastíssimo repertório mostra como o samba constitui, em parte, uma manifestação em prol da manutenção de um modelo popular de valores e vida. Suas pes-quisas acabam por identificar a permanência de conceitos recorrentes no discurso popular como a solidariedade, a religiosidade, o respeito à hie-rarquia, a estrutura familiar, o uso da sabedoria popular expressa por ditados e ideias perpetuadas boca a boca e a ideia de grupo, de coletividade.

Pequenas adaptações da tese para o livro se-riam positivas. As diversas leituras sobre a cultura popular feitas por pesquisadores como Havelock, Olson, Zumthor, Goody e Ong poderiam ser re-sumidas com palavras do próprio autor. Extensas notas de rodapé poderiam também ser, na medida do possível, incorporadas ao texto.

O fato é que com este livro o samba cresce em importância ao olhar de todos realizando não só a função de cronista das realidades vividas por seus agentes, mas a de tornar-se, na visão de Ricardo Azevedo, um elemento de coesão e manutenção de valores que se dissipam atualmente pelas vias do consumo e de uma monocultura imposta pela mídia.

E sem medo se posiciona: “O discurso do samba é popular porque consegue tratar de temas humanos complexos por meio de uma linguagem pública e acessível, de forma a gerar identificação ou pelo menos sintonia em pretos, brancos, amarelos e mes-tiços; pobres e ricos; universitários e analfabetos; ateus e crentes; patrões e empregados; técnicos especialistas e paus pra toda obra; professores e alunos; crianças e adultos; modernos e tradicio-nais, em suma, em simplesmente todas as pessoas.

Desprezar ou dar-se o luxo de desconhecer as características de um discurso com tamanha en-vergadura e poder de penetração é inacreditável veleidade, preconceito e alienação. Certamente, em nada contribuirá nem para a compreensão da arte popular, nem da arte moderna e erudita, nem para a construção, no Brasil, de qualquer coisa que possa ser chamada de civilizada”.

É sabido que o samba foi, e ainda é, o ritmo mais gravado no Brasil ao longo dos tempos. Contribuíram para isso o seu surgimento no

Rio de Janeiro, então capital federal, e também o empenho do governo Getúlio Vargas na valori-zação de uma cultura urbana utilizando o rádio como artifício de difusão de suas ideologias. Soma--se a estes a permeabilidade musical desse ritmo que soube dialogar com outras músicas de origem afro-americanas como a dos Estados Unidos e com os diversos ritmos caribenhos que aportaram no Brasil no período da Segunda Grande Guerra.

O livro Abençoado & danado do samba, de Ri-cardo Azevedo, editado pela Edusp, busca um novo recorte na leitura da música popular. Pri-meiramente por não desprezar a importância que a cultura popular desempenha na estruturação da música popular brasileira, fato quase nunca relevado pelos estudiosos do segmento. Segundo, por se restringir à sua área de conhecimento, a literatura, não caindo no descuido de falar sobre a música sem ter conhecimentos específicos para tal. É uma pesquisa de vulto a que resultou neste livro; um doutorado realizado na área de Análise do Discurso, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Ricardo Azevedo é profundo e honesto em suas indagações. Honesto por reconhecer, acei-tar e se devotar à força de um segmento socio-cultural que certamente não é o de sua origem e por dar a suas análises um tom de empirismo que acaba por autenticar o seu posicionamento junto à cultura popular. Com uma escrita clara e tom coloquial, o autor consegue estabelecer um diálogo com diversas áreas do conhecimento para criar uma nova maneira de se olhar para o samba. Trata-se de um grande estudo da cultura popular manifesto na MPB pela via do samba.

Após levantar uma rápida história da música brasileira sob a visão de diversos autores, é mos-trado como se deu a construção de duas diferen-tes percepções de mundo a partir de um pensa-mento escrito, chamado por ele de hegemônico, moderno e escolarizado e de um pensamento oral, nomeado consciência popular. Neste último resi-de, em grande parte, o repertório de samba. No cerne de suas análises impera um olhar antropo-lógico que certamente ajuda na desconstrução

Samba como crônica social

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Ivan Vilela

Ivan Vilela é professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e autor de Cantando a própria história – música caipira e enraizamento (Edusp, 2013).

Abençoado & danado do sambaRicardo AzevedoEduspR$ 96,00 | 784 páginas

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minha esposa disse que eu deveria voltar a estudar. Disse que iria fazer bem, eu iria me atualizar, descobrir uma paixão nova

pelo trabalho. Já que eu lecionava História, por que não um mestrado na mesma área? Ela me abraçava com cheiro de shampoo promocional. Um mestrado aumentaria meu salário, ela e eu sabíamos disso. Um salário melhor talvez arran-jasse todos os outros problemas.

* *

Minha esposa disse que qualquer ideia seria boa. O que importava mais era o projeto, eu sabia. Uma bolsa seria o ideal, ou pelo menos ajuda de cus-to. Resolvi estudar a Segunda Guerra Mundial, porque era do que meus alunos mais gostavam. Prestavam atenção na destruição, nos documen-tários, sabiam curiosidades, traziam revistas com Hitler na capa. Esse tipo de destruição sempre chamou a atenção das pessoas.

* *

Minha esposa disse que gostava da minha empol-gação. Comemoramos mandando o Renato dormir na casa da namorada. A ausência do Renato não resolveu todos os outros problemas. Ela brincou com meu cabelo. Peguei no sono pensando em rever uma comparação que tinha feito entre Pu-tin e Stalin na minha bibliografia.

* *

Minha esposa disse que eu não tinha tempo para mais nada. Era a escola e a pesquisa, a escola e a pesquisa. Ela passou a mão no meu braço. Brincou que até me perdoava por receber bolsa-auxílio, mas eu devia sair um pouco dessa rotina maçan-te. Ela não queria que eu reencontrasse a paixão nova? Ela me cobrou de levar o Renato no jogo do Botafogo no outro final de semana. Levei o guri ao jogo. Ele não se importou, e eu tampouco.

Ele passou o tempo todo enfiado no celular, e eu passei o tempo todo enfiado na ideia de uma comemoração do aniversário da queda do Muro de Berlim. Mikhail Gorbachev falou em público. Me digam quem deixa Mikhail Gorbachev falar em qualquer circunstância? Eu sabia o que isso queria dizer.

* *

Minha esposa disse que não lembrava quem era Mikhail Gorbachev. Era o bêbado? Mikhail Gor-bachev disse que o mundo sempre estava à beira de uma nova Guerra Fria. Disse em público. Disse numa comemoração do aniversário da queda do Muro de Berlim. E minha esposa não sabia quem era Mikhail Gorbachev. Expliquei a ela minha pesquisa de novo. Palavra-chave por palavra-cha-ve. Segunda Guerra Mundial, Getúlio, Alemanha, política externa. Sentada do outro lado da mesa, ela perguntou o que isso tinha a ver com uma catástrofe nuclear. Eu estudava Segunda Guerra Mundial e não Guerra Fria. Apesar de trabalhar num hospital, ela nem tentava saber as diferenças básicas. Não tinha feito nenhum esforço.

* *

Minha esposa disse que Vladmir Putin nunca diria que poderia conquistar capitais europeias em dois dias. Eu disse que Putin era um Stalin de terno. Ela disse que eu esqueci o bigode. Ouvi a risada dela vir da sala. Ela e Renato, ouvindo o comentário esportivo do rádio, concordaram que eu deveria parar de assistir televisão. Eu disse que um novo líder estava em ascensão. Não entrei na sala de estar. Eles não enxergavam a realidade. Precisei mostrar a realidade à força.

* *

Minha esposa disse que não queria ouvir essa história de novo.

ficção

Terceira Guerra MundialLuisa Gleiser

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Luisa Gleiser é autora do romance Luzes de emergência se acenderão automaticamente (Alfaguara, 2014). Vencedora do Prêmio Sesc por duas vezes (com os livros Contos de mentira e Quiçá) e foi finalista do Prêmio Jabuti em 2012. Também foi incluída na antologia Granta: os melhores jovens escritores brasileiros.

mílias normais morriam nas primeiras quarenta e oito horas depois de um ataque nuclear russo.

* *

Minha esposa disse que não queria pensar nisso naquele momento. Eu disse que a gente precisa-va ficar junto. Ela perguntou por quê. Eu disse que gente que se prepara para a Terceira Guerra Mundial junto tem maior probabilidade de so-breviver. Ela disse que esse não era o motivo que ela estava esperando.

* *

Minha esposa ligou e deixou uma mensagem na caixa-postal. Eu não tinha pagado a pensão. Disse que teria que entrar na justiça. Eu mandei uma mensagem de texto explicando que estava deixando o maior dos bens para eles, a prote-ção, a comida, a água, o abrigo. Ela não me res-pondeu. Quando o advogado chegou à casa, não conseguiu nem abrir a porta empurrando alguns engradados de água.

* *

Minha esposa não disse nada durante a conver-sa com os advogados. O advogado dela falou, estendeu um contrato. Eu disse que contratos não importariam depois que o mundo entrasse em guerra e em colapso. Ele não sabia que os judeus enviados a Auschwitz tinham seus bens retirados deles e roubados? Por que ele achava que seria diferente? Putin só era o novo Hitler porque Putin, como Hitler, crescia sem oposição. Será que eles não viam? Eles iriam me agrade-cer, iriam sim. Eu poderia ter ensinado o Renato a atirar, eu disse.

* *

Minha esposa disse que era temporário. Eu pre-cisava conversar com os médicos. Precisava me comportar. Contou que tinham perguntado de mim na escola e que eu precisava melhorar para poder lecionar. Eu levava jeito com história, ela disse. Eu disse que não iria me comportar, não fazia sentido. Eu disse que a Rússia era uma amea-ça muito maior que o Estado Islâmico. Ninguém fazia nada a respeito? Ninguém conseguia ver? O Brasil é um país estratégico. Minha esposa le-vantou. Disse que voltaria no mesmo horário na semana que vem. Perguntou a alguém da minha dosagem e acenou com a cabeça. Ainda cheirava a shampoo barato, mas como se tivesse recém--entrado em um abrigo nuclear.

* *

Minha esposa disse que eu não precisava comprar tudo aquilo de enlatados. Eu nem sabia o quanto se usava em casa. Organizei as latas por datas de validade. Ela implicou que a gente nunca ia comer tanto milho. Era alguma atividade da escola? Eu disse que não. Uma luz esquisita entrava por uma janela da área de serviço. O guri ouvia um desses rocks no quarto. Não tinha preparo nenhum para o mundo real, criado em um apartamento e sem nem saber nem idiomas estrangeiros nem pegar numa arma. Seria um diplomata de merda e um soldado pior ainda. Não ia saber lidar com um exército invadindo o país. E a Ucrânia ameaçou reiniciar seu programa nuclear. Minha esposa disse que a gente precisava conversar.

* *

Minha esposa disse que queria fazer terapia de casal. Eu disse que não tínhamos dinheiro para isso. Ela disse que alguma coisa tinha que ser fei-ta. Ela poderia conseguir mais horas no hospital. Eu disse que a nossa sala estava despreparada. Sofás demais, esconderijos demais. Isso e a Po-lônia mais uma vez sem apoio dentro da Europa. Sabe como a Segunda Guerra Mundial acabou? Com uma bomba nuclear, isso mesmo.

* *

Minha esposa disse que eu estava obcecado. Disse que iria embora. Gritou comigo. Eu parei de mar-telar a proteção extra da janela. O que ela queria? Ela ainda cheirava ao shampoo da promoção. Ela disse que iria embora. Eu disse que seria uma a menos para proteger durante o caos nuclear. Ela disse que levaria o Renato. Eu disse que crianças sempre foram as mais fracas e só criavam pro-blemas. Ela disse que eu estava maluco. Eu disse que maluca era ela que não via um palmo à frente dela. A história se repete, entende? Se repete. Ela disse que queria ser uma família normal. As fa-FA

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carreiras

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O diretor científico e um dos sócios--fundadores da GranBio, empresa que inaugurou a primeira usina comercial de etanol de segunda geração do país, utilizando a palha da cana, é também professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), além de ter duas fazendas de cacau na Bahia, onde em uma delas fez experimentos científicos. Gonçalo Amarante Guimarães Pereira diz que essa trajetória não tradicional tem inspiração em seu pai, um comerciante na capital baiana. “Era um pequeno empresário que, mesmo sem o ensino fundamental completo, tinha uma visão de criar riqueza e valor”, diz Pereira. O pesquisador fez engenharia agronômica na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e, ao longo da carreira acadêmica, focou os estudos em organismos comerciais. Desde o ensino médio flertava com

a genética, área em que fez mestrado, na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo, e doutorado na Universidade de Düsseldorf, na Alemanha.

Em 1997, foi contratado pela Unicamp, passou a coordenar o Laboratório de Genômica e Expressão e a integrar o projeto Genoma Xylella fastidiosa, bactéria que provoca doença em citros. “Foi uma revolução, começamos a trabalhar não com um gene, mas com um conjunto deles”, diz Pereira. Em 2000, por meio de um amigo, soube da vassoura-de-bruxa, uma doença fúngica que atingia de forma severa a região cacaueira da Bahia. Resolveu estudar o assunto e, ao conhecer o sul da Bahia, se interessou em comprar uma fazenda de cacau. “Vendi tudo o que eu tinha, meu casamento quase acabou, mas comprei”, diz Pereira. Ele liderou uma rede de

pesquisadores e produtores de cacau para vencer o fungo da vassoura de bruxa e usou a própria propriedade para experimentação. Em um artigo científico mostrou as bases bioquímicas da doença e começou a montar um plano de manejo quando um produtor, Edvaldo Sampaio, desenvolveu uma forma de antecipar a poda e outros procedimentos (ver em Pesquisa FAPESP nº 128). A produção de cacau melhorou e Pereira resolveu comprar outra fazenda.

Gonçalo: ter tempo significa zero de burocracia

EmprEEndEdorismo

Múltiplas funçõesprofessor da Unicamp também é sócio de empresa de biotecnologia

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PESQUISA FAPESP 229 | 97

tEndência

Caminho profissionalJovens pesquisadores preferem carreira acadêmica a mercado

As entrevistas feitas pela analista de empreendedorismo Nathalia Dayrell Andrade na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), para a sua dissertação de mestrado “A universidade empreendedora no Brasil: uma análise das expectativas de carreira de jovens pesquisadores”, sugerem, a partir de uma amostra limitada, que a maioria dos doutorandos e pós-doutorandos não está interessada em criar a sua própria empresa e prefere dar sequência a uma trajetória acadêmica tradicional, como docente ou pesquisador. Em seu estudo de mestrado, desenvolvido no Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da universidade e defendido no ano passado, Nathalia investigou como o empreendedorismo acadêmico – que se apresenta como uma possível alternativa de carreira para recém-doutores – influencia a formação e a escolha profissional dos jovens pesquisadores.

Para o estudo de caso foram selecionados cinco grupos de pesquisa das áreas de biologia, física, tecnologia da informação (dois grupos) e biotecnologia.

Gonçalo Pereira também trabalhou no estudo de doenças do eucalipto, café e desenvolvimento de leveduras. Mas foi na liderança de um projeto com a Braskem, dentro do Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) da FAPESP, que ele sentiu a força das possibilidades em trabalhar diretamente com a iniciativa privada. Também ocorreu um reencontro. O presidente da empresa naquele momento era Bernardo Gradin, que havia sido seu colega no tempo do serviço militar na Bahia. O executivo, que é acionista do grupo Odebrecht, depois de sair da Braskem, procurou Pereira para conversar sobre biotecnologia e etanol de segunda geração. “Eu, Gradin e o Alan Hiltner [hoje vice-presidente de novos negócios da GranBio] nos reunimos e tracei um plano de como a futura empresa deveria agir no campo científico para atender seus objetivos”, diz Pereira, que foi convidado para ser sócio do empreendimento. “Foi um bom entendimento de cientista e empreendedores sentados lado a lado.” Além de cientista-chefe da empresa, Gonçalo ainda dirige a BioCelere, uma subsidiária que funciona como o centro de pesquisa em biologia sintética da GranBio. Aliado a essas responsabilidades, apenas na BioCelere comanda 23 pessoas, Pereira orienta atualmente 14 doutorandos e 7 mestrandos. Mas, como fazer para conciliar o tempo? “É muito simples, o mais importante é zero de burocracia. É preciso ter um gestor especialista nessa área, e só ter alunos excelentes que tenham a ambição de mudar o mundo”, diz. “Outra coisa, cientista não pode se envolver com finanças, não é a área dele.” n Marcos de OliveiraFO

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Foram entrevistados os 5 coordenadores dos grupos e 12 doutorandos e pós-doutorandos que trabalhavam em projetos colaborativos. Eles foram escolhidos pelo histórico de colaboração com a indústria ou de formação de empresas de base tecnológica.

O projeto teve como base um estudo anterior feito pelo seu orientador, professor André Luiz Sica de Campos, que trabalha na relação entre universidade e setor industrial há mais de 15 anos, desde o seu doutorado na Universidade de Sussex, na Inglaterra. “Lá, eles concluíram que os pesquisadores envolvidos em projetos colaborativos ampliavam sua perspectiva de carreira”, relata Nathalia. “Muitos deles conseguiam ter uma carreira híbrida ao desenvolver projetos da empresa dentro da universidade ou com a criação de suas próprias empresas.”

Ela ressalta que tanto na Europa como nos Estados Unidos existe uma saturação do mercado de trabalho acadêmico e por isso os jovens pesquisadores buscam o empreendedorismo como via alternativa. “No Brasil, como o ensino superior está em um momento de expansão, os doutores recém-formados estão mais interessados em continuar em uma carreira de pesquisa.” A pesquisadora ressalta também que a baixa demanda das empresas por pesquisas contribui para essa escolha. Ela cita como exemplo a entrevista feita com uma start-up que desenvolveu uma tecnologia que interessou a uma multinacional do setor aeroespacial dos Estados Unidos, mas que no Brasil não despertou atenção. n Dinorah Ereno

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• Lançamento do Volume de Síntese “SCOPE Bioenergy &

Sustainability: bridging the gaps”, resultado de uma análise global sobre a expansão

sustentável da bioenergia no mundo, conduzida por 136 pesquisadores de 81 instituições e 24 países

• Discussão dos desafios, lacunas no conhecimento e da ciência necessária para que os múltiplos benefícios

da bioenergia sejam alcançados

• Apresentação dos últimos desenvolvimentos ao longo de toda a cadeia de produção da bioenergia, desde o uso da terra e produção

de biomassa, até as tecnologias de conversão para combustíveis líquidos, bioeletricidade, biogás e calor

• Recomendações para políticas públicas, considerando-se os impactos social, econômico e ambiental, em face das mudanças climáticas, segurança energética, alimentar e dos ecossistemas

na transição para a bioeconomia

O relatório apresenta soluções tecnológicas e novos conhecimentos gerados em iniciativas de produção e uso da bioenergia, em vários contextos e regiões do mundo.

Este é o primeiro de uma série de simpósios regionais a serem realizados no Brasil,

América do Norte, Europa, África e Ásia para divulgar os resultados científicos, soluções

e recomendações do relatório.

OBJETIVOS

Comunidade científica, representantes de

governos e ONGs, indústria, agências de fomento,

parceiros dos programas FAPESP de pesquisa em biodiversi-

dade, bioenergia e mudanças climáticas,imprensa.

PÚBLICO-ALVO

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)

Rua Pio XI, 1500 – Alto da Lapa05468-901 – São Paulo, SP

Mais informaçõeswww.fapesp.br/eventos/scope

10h às 17h30, na FAPESP

QUANDO

14.4.2015

SIMPÓSIO DE LANÇAMENTO DO VOLUME DE SÍNTESE

Projeto FAPESP-SCOPE Bioenergia & Sustentabilidade