Para o meu grupo de companheiros mais velhos, Walter Sokel ...

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Para o meu grupo de companheiros mais velhos,que me privilegiam com a sua amizade,

partilham comigo as inevitáveis perdas ediminuições da vida e continuam a oferecer-meapoio e sabedoria para a vida da mente: Robert

Berguer, Murray Bilmes, Martel Bryant, DagfinnFøllesdahl, Joseph Frank, Van Harvey, Julius

Kaplan, Herbert Kotz, Morton Lieberman,Walter Sokel, Saul Spiro e Larry Zaroff.

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Do mesmo Autor:

Quando Nietzsche Chorou (2005), 7ª ediçãoMentiras no Divã (2007), 2ª ediçãoDe Olhos Fixos no Sol (2008), 1ª edição

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Agradecimentos

Este livro teve uma longa gestão e estou muito grato a todas as pessoas que me apoiaram. Aos editores que me ajudaram nesta estranha mistura de ficção, psico-biografia, psicologia e pedagogia da psicoterapia: Marjorie Braman (enorme apoio e orientação na HarperCollins) e Kent Carroll. E aos meus maravilhosos editores domésticos: o meu filho, Ben, e a minha mulher, Marilyn. Também aos amigos e colegas que leram trechos ou todo o original e deram sugestões: Van e Margaret Harvey, Walter Sokel, Ruthel-len Josselson, Carolyn Zaroff, Murray Bilmes, Julius Kaplan, Scott Wood, Herb Kotz, Roger Walsh, Saul Spiro, Jean Rose, Helen Blau, David Spiegel. Agradeço ao meu grupo de apoio formado por colegas terapeutas, que du-rante toda a execução deste projecto me ofereceram uma amizade e suporte irrestritos. E ainda ao meu incrível e multi-talentoso agente literário, Sandy Dijkstra, que, entre outras opiniões, sugeriu o título (como fez com o meu livro anterior, The Gift of Therapy). Por fim, agradeço ao meu assistente de investigação, Geri Doran.

Grande parte da correspondência de Schopenhauer continua não tra-duzida ou mal traduzida para o inglês. Preciso de agradecer aos meus assis-tentes de investigação alemães, Markus Buergin e Felix Reuter, pelas tradu-ções e pela assistente pesquisa em bibliotecas. Walter Sokel deu uma óptima orientação e ajudou a traduzir para o inglês os aforismos do início de cada capítulo, que reflectem bem a prosa lúcida e vigorosa de Schopenhauer.

Neste livro, como em todos os outros, a minha mulher, Marilyn, foi uma base de apoio e amor.

Vários óptimos livros me ajudaram. Estou imensamente grat à exce-lente biografia de Rudiger Safranski, Schopenhauer and the Wild Years of Philosophy (Harvard University Press, 1989), e à longa e generosa conversa que o autor teve comigo num café de Berlim. A ideia de uma bibliotera-pia (curar-se lendo todas as obras de filosofia) veio do excelente livro de Byran Magee, Confessions of a Philosopher (Nova Iorque: Modern Library, 1999). Outros livros que consultei foram: The Philosophy of Schopenhauer, de Byron Magee (Oxford: Clarendon Press, 1983, revisto em 1997); Scho-penhauer: The Human Character, de John E. Atwell (Filadélfia: Temple Uni-versity Press, 1990); Schopenhauer, de Christopher Janeway (Oxford, Ingla-terra: Oxford Press University Press, 1994; The Philosophers: Their Lives and the Nature of their Thought, de Ben-Ami Scharfstein (Nova Iorque: Oxford

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University Press, 1989); Schopenhauer, de Patrick Gardiner (Saint Augus-tine’s Press, 1997); The Philosophy of Disenchantment, de Edgar Saltus (Nova Iorque: Peter Eckler Publishing Co., 1885); The Cambridge Companion to Schopenhauer, de Christopher Janeway (Cambridge, Inglaterra: Cambridge University Press, 1999); Schopenhauer, de Michael Tanner (Nova Iorque: Routledge, 1999); Arthur Schopenhauer: Philosopher of Pessimism, de Fred-erick Copleston (Andover, Inglaterra: Chapel River Press, 1946); The Con-solations of Philosophy, de Alain de Botton (Nova Iorque: Vintage, 2001); Philosophical Counseling, de Peter Raabe (Westport, Conn.: Praeger); Phi-losophy Practice: An Alternative to Counseling and Psychotherapy, de Shlo-mit C. Schuster (Westport, Conn.: Praeger, 1999); Plato Not Prozac, de Lou Marinoff (Nova Iorque: HarperCollins, 1999); Philosophy As a Way of Life: Spiritual Exercices from Socrates to Foucault, de Pierre Hadot e Arnold I. Davidson, eds. (trad. De Michael Chase, New Haven: Blachwell, 1995) The Therapy of Desire, de Martha Nussbaum (Princecton, N.J.: Princeton Uni-versity Press, 1994); Philosophy for Counseling and Psychotherapy: Pythago-ras to Postmodernism (Londres: Macmillan, 2000).

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Cada vez que respiramos, afastamos a morte que nos ameaça. (...) No fim, ela vence, pois desde o nascimento é esse o nosso destino e ela brinca um pouco com a sua presa antes de a comer. Mas continuamos a viver com grande interesse e inquietação durante o máximo tempo possível, do mesmo modo que sopramos uma bola de sabão até esta ficar bastante grande, embora tenhamos a certeza absoluta que vai rebentar.

Como toda a gente, Julius conhecia as homilias a respeito da vida e da mor-te. Concordava com os estóicos, que diziam: “Começamos a morrer quando nascemos”, e com Epicuro, que reflectia: “Onde estou, a morte não está, e onde ela está, não estou. Então, porque temê-la?” como médico e psiquiatra, tinha dito, baixinho, estas palavras de consolo ao ouvido de doentes graves.

Embora acreditasse que essas sombrias reflexões fossem úteis para os seus pacientes, Julius jamais pensou que tivessem algo a ver com ele. Até ao momento em que enfrentou uma situação muito difícil, ocorrida há quatro semanas e que mudou para sempre a sua vida.

Foi durante o exame médico anual de rotina. O seu médico, Herb Katz — um velho amigo e colega de curso na Faculdade de Medicina —, acabou de o examinar e, como sempre, pediu a Julius para se vestir e voltar ao gabi-nete, para uma conversa.

Herb sentou-se à secretária e disse, olhando para as fichas de Julius:— No geral, estás muito bem para um indivíduo de 65 anos. A prós-

tata está um pouco aumentada, mas também a minha está. Os exames de sangue, colesterol e os níveis de lípidos estão bons, prova de que os remé-dios e a dieta estão a fazer efeito. Eis a receita para o Lipitor, que juntamen-te com as corridas reduziram bastante o teu colesterol. Portanto, podes comer um ovo de vez em quando. Eu como dois ao pequeno-almoço de Domingo. E esta é a receita para o Synthyroid. Aumentei um pouco a dose. A tiróide está a diminuir aos poucos, as células boas estão a morrer e a

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ser substituídas por matéria fibrosa. Uma situação perfeitamente benigna, como sabes. Acontece com toda a gente, também eu estou a tomar remé-dio para a tiróide.

— É assim, Julius, nenhuma parte de nós escapa à velhice. Além da tiróide, as cartilagens dos joelhos estão gastas, os folículos capilares estão a morrer e os discos lombares superiores já não são o que eram. A pele tam-bém piora de forma evidente: as células epiteliais estão pura e simplesmente a acabar-se, basta reparar nessas ceratoses senis na tua cara, essas manchas lisas, castanhas.

Agarrou num pequeno espelho para Julius olhar.— Deve ter aparecido mais uma dúzia, desde a última vez que te exa-

minei. Quanto tempo tens passado ao sol? Usas um chapéu de abas largas, como te recomendei? Quero que consultes um dermatologista sobre isto. Bob King é um bom especialista. Fica no prédio aqui ao lado. Tens aqui o telefone dele. Conhece-lo?

Julius assentiu com a cabeça.— Ele pode queimar-te as manchas mais evidentes com umas gotas

de nitrogénio líquido. Tirou-me várias, no mês passado. É rápido, só uns cinco a dez minutos. Muitos médicos também fazem isso, agora. Há uma mancha nas tuas costas que quero que seja vista por ele: não a consegues ver, está, mesmo por baixo da omoplata direita. Parece diferente das outras, tem pigmentação desigual e as bordas não são nítidas. Não deve ser nada, mas é melhor que ele a veja. Está certo, amigo?

“Não deve ser nada, mas é melhor que ele a veja.” Julius notou o tom tenso e forçadamente informal na voz de Herb. Mas, sejamos francos, a fra-se “tem pigmentação desigual e as bordas não são nítidas”, dita de um mé-dico a outro, era alarmante. O código para um provável melanoma, e, pen-sando nisso depois, Julius marcou aquela frase, aquele exacto momento, como sendo o instante em que a vida despreocupada terminou, e a morte tinha chegado para ficar, nunca mais saiu do lado dele, e todos os horrores que se seguiram foram pós-escritos previsíveis.

Anos antes, Bob King tinha sido doente dele, como também muitos médicos de S. Francisco. Julius imperava na comunidade psiquiátrica há trinta anos. Como professor de Psiquiatria na Universidade da Califórnia, tinha preparado levas de estudantes e, cinco anos antes, tinha sido eleito presidente da Associação Americana de Psiquiatria.

A fama dele? De médico dos médicos. Terapeuta de ponta, um bruxo sagaz e disposto a fazer tudo para ajudar o paciente. Foi por isso que, dez anos antes, Bob King o procurou para tratar o seu velho vício em Vicodan, a droga que viciava os médicos porque era muito fácil de conseguir. Na época, King estava com muitos problemas. Tinha aumentado muito a sua

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necessidade de consumir a droga, pois o casamento estava a desfazer-se, o consultório ia mal e ele precisava do remédio todas as noites para dor-mir.

Bob King tentou tratar-se, mas todas as portas se fecharam para ele. Os terapeutas que consultou insistiam para que fizesse um programa de recu-peração para médicos, ideia que não aceitou porque não queria comprome-ter a sua privacidade frequentando grupos de terapia com colegas viciados. Os terapeutas não iam fazer nada. Se tratassem um médico viciado e em actividade, sem usar o programa oficial de recuperação, arriscavam-se a ser punidos pelo Conselho de Medicina ou processados (caso, por exemplo, o paciente cometesse um erro médico).

Como último recurso antes de largar o consultório e se ir tratar como anónimo noutra cidade, Bob King procurou Julius, que assumiu o risco e confiou que Bob conseguiria largar o Vicodan. Embora a terapia tivesse sido difícil, como sempre acontece com os viciados, Julius tratou o colega du-rante três anos, sem ajuda de qualquer programa de recuperação. E foi um daqueles segredos que qualquer psiquiatra guarda, um sucesso terapêutico que não podia de maneira nenhuma ser discutido em congresso, nem pu-blicado em livro ou revista especializada.

Depois de sair do consultório de Herb Katz, Julius sentou-se no carro. O coração batia com tanta força que o carro parecia balançar. Respirou fun-do para dominar o medo crescente, tomou fôlego outra vez e ainda outra, abriu o telemóvel e, com mãos trémulas, marcou uma consulta urgente para Bob King.

— Não gostei — disse-lhe Bob na manhã seguinte, enquanto exami-nava as costas de Julius com uma grande lupa redonda. — Pegue na lupa, quero que veja, podemos olhar através de dois espelhos.

Bob pôs Julius ao lado do espelho de parede e colocou um grande espelho manual junto à mancha. Julius olhou para o dermatologista pelo espelho: era louro, de rosto corado, óculos grossos sobre um nariz compri-do e imponente. Lembrou-se de Bob lhe contar que, na infância, as outras crianças o provocavam, chamando-lhe “nariz de pepino”. Não tinha muda-do muito em dez anos. Parecia ansioso, como na época em que foi paciente de Julius — agitado, chegando sempre uns minutos atrasado. Julius lembra-va-se sempre da frase do Coelho, em Alice no País das Maravilhas. “Estou atrasado, atrasado para um encontro importante”, quando Bob entrava a correr no seu consultório. Tinha engordado, mas continuava miúdo. Pare-cia mesmo um dermatologista. Há alguém que conheça um dermatologista grande? Julius olhou para os olhos dele. — Oh, Oh, pareciam apreensivos —, as pupilas estavam bastante dilatadas.

— É isto, aqui. — Julius olhou pelo espelho enquanto Bob apontava

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com uma caneta com uma ponta de borracha. — Este sinal por baixo do ombro esquerdo sob a omoplata. Está a ver?

Julius concordou.Pegando numa pequena régua, continuou: — O diâmetro é inferior a

um centímetro. Lembra-se, com certeza, da prática lei ABCD da cadeira de Dermatologia, na faculdade...

Julius interrompeu-o: — Não me lembro de nada de Dermatologia na faculdade...

— Certo. ABCD. A de assimetria: olhe para aqui — passou a caneta por cima da lesão. — Não é bem redonda, como todas as outras nas suas costas, repare nesta aqui e nesta — disse, apontando para duas pequenas manchas próximas.

Julius tentou quebrar a tensão, respirando fundo.— B de bordas, olhe para aqui, sei que está difícil de ver. — Veja, a

parte de cima tem a borda definida mas o centro não, vai desaparecendo na pele. C de cor. Aqui, deste lado, repare que é castanho-clara. Se eu am-pliar com a lupa, há um tom de vermelho, um pouco de preto, talvez até de cinza. D de diâmetro, digamos, menos de dois centímetros. É de tamanho razoável, mas não sabemos há quanto tempo a tem, isto é, com que rapidez está a crescer. Herb Katz diz que não havia mancha nenhuma quando o examinou no ano passado. Finalmente, se olharmos com a lupa, o centro está ulcerado.

Pondo o espelho de lado, pediu: — Vista a camisa.Depois de Julius acabar de se abotoar, Bob sentou-se no banquinho da

sala de exame e começou: — Bom, Julius, você conhece a literatura médica sobre o tema. O caso é preocupante, claro.

— Escute, Bob. Sei que o nosso anterior relacionamento faz com que esta situação se torne difícil para si, mas, por favor, não me peça para fa-zer o seu trabalho. Não pense que percebo alguma coisa disso. Lembre-se que estou apavorado, quase em pânico. Quero que assuma a situação, seja absolutamente honesto comigo e trate de mim. Exactamente como eu fiz consigo. E, Bob, olhe para mim! Se evita o meu olhar, como fez agora, fico assustado como tudo.

— Tem razão, desculpe — olhou Julius de frente. — Tratou muito bem de mim. Vou fazer o mesmo. — Pigarreou: — Olhe, na minha opinião, é um melanoma.

Notando que Julius titubeou, acrescentou: — Mas o diagnóstico em si pouco diz. Lembre-se que a maioria dos melanomas, eu disse a maio-ria, é facilmente tratável, mas alguns são uma chatice. Precisamos de saber umas coisas através do patologista: é mesmo um melanoma? Se for, qual a profundidade? Aumentou? O primeiro passo é a biopsia e uma amostra

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do tecido para o patologista. Assim que terminarmos, vou chamar um ci-rurgião para extirpar a lesão. Vou ficar ao lado dele. A seguir, o patologista fará o exame de uma parte que foi congelada e, se o resultado for negativo, óptimo, paramos por aí. Se acusar positivo e for um melanoma, removemos o nódulo mais suspeito e, se necessário, fazemos uma ressecção múltipla do nódulo. Não é preciso hospitalização, é tudo feito no centro cirúrgico. Tenho a certeza de que não será preciso enxerto de tecido e você perde, no máximo, um dia de trabalho. Mas vai sentir um incómodo durante uns dias no local da cirurgia. Não há mais que dizer, até conhecermos o resultado da biopsia. De acordo? A minha enfermeira liga-lhe mais tarde dando-lhe todos os detalhes quanto à hora, local e cuidados preparatórios. Está bem?

Julius concordou. Levantaram-se os dois.— Desculpe, gostaria de o poupar a tudo isto, mas não posso — disse

Bob, entregando-lhe um folheto. — Sei que não quer, mas dou sempre mais informações aos pacientes nesta situação. Alguns sentem-se seguros, outros preferem não saber e atiram o folheto fora quando saem do consultório. Depende da pessoa. Espero que, após a cirurgia, lhe possa dizer algo mais animador.

Mas não houve mais nada animador; as notícias posteriores foram ainda piores. Três dias após a biopsia, encontraram-se outra vez. — Quer ler isto? Perguntou Bob, com o diagnóstico final do patologista na mão. Como Julius não quis, Bob deu uma outra vista de olhos ao papel e disse: — Certo, vamos pôr isto de lado. Preciso de lhe dizer que as notícias não são boas. É um melanoma com diversas, como dizer, características de re-alce: é profundo, cerca de quatro milímetros, ulcerado e com cinco nódulos positivos.

— O que significa isso? Vamos, Bob, deixe-se de rodeios. “De realce”, quatro milímetros, ulcerado, cinco nódulos? Seja claro, fale-me como se eu fosse um leigo na matéria.

— Significa más notícias. É um melanoma de tamanho considerável e espalhou-se pelos nódulos. O perigo está em espalhar-se mais, o que só sa-beremos depois da tomografia computorizada que marquei para amanhã, às oito.

Dois dias depois, continuaram a conversa. Bob informou-o que a to-mografia deu negativo, não havia provas que o melanoma se tivesse espa-lhado por qualquer outra parte do corpo. Essa foi a primeira boa notícia. — Mesmo assim, Julius, este melanoma é grave.

— Grave até que ponto? Do que é que estamos a falar? Qual é o índice de sobrevivência? — perguntou Julius, com a voz a falhar.

— O Julius sabe que só podemos responder em termos de estatística. As pessoas são toda diferentes. Mas para um melanoma ulcerado, de quatro

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milímetros de profundidade, cinco nódulos, as estatísticas apontam para uma sobrevivência de menos de vinte e cinco por cento.

Julius ficou vários minutos com a cabeça caída, o coração a bater pe-sadamente, lágrimas nos olhos, antes de pedir: — Pode continuar. Está a ser objectivo. Preciso de saber o que dizer aos meus pacientes. Como vai progredir a doença? O que vai acontecer?

— É impossível precisar, pois nada mais lhe vai acontecer até que o melanoma apareça noutra parte do corpo. Se isso acontecer, principalmente se houver metástase, o processo pode ser rápido, talvez semanas ou meses.

Quanto aos seus pacientes, é duro de dizer, mas seria razoável pensar que vai ter mais um ano de saúde.

Julius assentiu lentamente, de cabeça baixa.— Onde está a sua família, Julius? Não devia ter vindo cá com al-

guém?— Acho que sabe que a minha mulher faleceu há dez anos. O meu

filho mora na costa leste e a minha filha, em Santa Bárbara. Ainda não lhes disse nada, achei que não valia a pena complicar-lhes a vida sem necessida-de. De qualquer maneira, sou do género de encarar as tristezas sozinho, mas tenho a certeza de que a minha filha virá assim que eu lhe contar.

Julius, lastimo ser obrigado a dizer-lhe tudo isto. Quero terminar com uma pequena boa notícia. Há muita investigação a ser feita, talvez uma dú-zia de laboratórios de investigação muito eficientes a trabalhar, cá e no es-trangeiro. Por motivos desconhecidos, nos últimos dez anos a incidência de melanomas aumentou, quase duplicou, por isso há muita investigação nessa área. Em breve deve aparecer uma cura.

Julius passou a semana num torpor. A filha, Evelyn, professora de hu-manidades, cancelou as aulas e veio imediatamente passar vários dias com ele. Julius conversou muito com ela, com o filho, com a irmã, o irmão e os amigos íntimos. Passou a acordar assustado às três da manhã, gritando e com falta de ar. Cancelou as consultas de doentes individuais e do grupo de terapia por duas semanas e passou horas a pensar em como e quando lhes ia dar a notícia.

O espelho dizia-lhe que não parecia um homem que tinha chegado ao fim da vida. Os seus nove quilómetros diários de corrida mantiveram o cor-po jovem e com elasticidade, sem qualquer gordura. Havia rugas em volta dos olhos e da boca, mas não muitas; o pai morreu sem nenhuma. Tinha olhos verdes, dos quais sempre se orgulhou. Olhos firmes e sinceros, nos quais se podia confiar e que conseguiam encarar qualquer pessoa. Olhos jovens, do Julius de dezasseis anos. O homem que ia morrer e o rapaz de dezasseis anos viam-se no espelho fora as décadas.

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Olhou para a boca. Lábios carnudos e simpáticos que, mesmo naquele momento de desespero, estavam prontos a dar um sorriso caloroso. A cabe-ça estava coberta de cabelos negros e rebeldes, a ficar grisalhos apenas nas têmporas. Quando era adolescente na Bronx, o velho barbeiro anti-semita de cabelos grisalhos e cara vermelha, que ficava entre a loja de doces de Meyer e o talho de Morris, gozava com os cabelos rebeldes quando os pu-xava com um pente de metal e os cortava rente. E agora Meyer, Morris e o barbeiro estavam mortos e o jovem Julius de dezasseis anos estava na lista de espera da morte.

Uma tarde, tentou controlar um pouco o problema lendo a literatura sobre melanomas na biblioteca da Faculdade de Medicina, mas não adian-tou, foi inútil: fez com que as coisas ficassem mais horrendas. Quando se apercebeu do verdadeiro horror que era a sua doença, passou a pensar no melanoma como um animal voraz, cravando as garras negras na sua carne. Era incrível pensar que, de repente, ele já não era a forma superior de vida. Pelo contrário, era comida, alimento para um organismo com células de-voradoras que se multiplicavam com enorme rapidez, um organismo que atacava e anexava os protoplasmas próximos e que, naquele momento, es-tava a preparar bandos de células para entrarem na corrente sanguínea e invadirem órgãos distantes, talvez o seu silencioso e indestrutível fígado, os seus esponjosos e labirínticos pulmões.

Julius pôs de lado a leitura. Tinha passado mais de uma semana e pre-cisava de seguir em frente. Ver o que estava realmente a acontecer.. — Sen-ta-te Julius — ordenou para si mesmo. — Senta-te e pensa na morte. — Fe-chou os olhos.

Quer dizer que finalmente a morte entrou em cena, pensou. Mas não foi uma entrada banal: o pano fora aberto por um dermatologista gordu-cho, com nariz de pepino, lupa na mão e bata branca de hospital, com o nome bordado à mão em letras azuis escuras no bolso do peito.

E a cena final, como seria? Tinha todas as possibilidades de ser tam-bém banal. O figurino dele seria o amachucado pijama às riscas dos New York Yankees, com o número cinco do jogador DiMaggio nas costas. O ce-nário? A mesma cama grande na qual dormia há trinta anos, roupas empi-lhadas na cadeira ao lado e, na mesa-de-cabeceira, um monte de romances que ignoravam que jamais seriam lidos. Um final frustrante, choramingas. Certamente, pensou, a gloriosa aventura da sua vida merecia algo mais... mais... mais o quê?

Lembrou-se de uma cena que viu alguns meses antes, nas férias passa-das no Havai. Ao fazer uma longa caminhada, chegou por acaso a um gran-de centro de meditação budista e viu uma jovem andando num labirinto circular feito com pequenas pedras de lava. Ao chegar ao centro do labirin-

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to, a jovem parou e ficou a meditar de pé. A reacção imediata de Julius a esse tipo de ritual religioso não era muito complacente; costumava ficar entre a zombaria e a repulsa.

Mas agora, ao pensar na jovem a meditar, sentiu algo mais terno, uma onda de compaixão por ela e por todos os demais humanos que eram viti-mas daquela excêntrica reviravolta da evolução que permite ter consciência de si mesmo, mas não as ferramentas psicológicas necessárias para lidar com a dor da existência transitória. E assim, por anos, séculos e milénios fora, construímos sem parar negações paliativas da finitude. Será que nós, será que algum de nós, jamais deixará de procurar um poder superior no qual nos possamos fundir e existir para sempre, deixar de querer manuais de instruções dados por um Deus, de querer um desígnio maior, de procu-rar rituais e cerimónias?

Apesar disso, considerando que o seu nome estava na lista da morte, Julius pensou que uma cerimónia discreta não seria má ideia. Afastou a ideia como se esta queimasse, já que durante toda a vida fora profundamen-te contra rituais. Sempre detestou as formas que as religiões usam para tirar a razão e a liberdade dos seus seguidores: os trajes cerimoniais, o incenso, os livros sagrados, os cantos gregorianos com o seu som hipnótico, os ta-petes para ajoelhar, os mantos e solidéus, as mitras e os bastões dos bispos, as hóstias e os vinhos bentos, as cabeças a abanar e os corpos a balançar ao ritmo de velhas cantilenas. Considerava tudo isso uma parafernália da mais poderosa e duradoura vigarice, que fortalecia os líderes e satisfazia o desejo de submissão da comunidade.

Mas naquela altura, com a morte ao lado, Julius notou que a sua vee-mência tinha perdido a força. Talvez apenas não gostasse do ritual imposto. Talvez fosse possível elogiar uma cerimónia discreta e criativa. Ficou sen-sibilizado com a cena que os jornais descreveram dos bombeiros no local do atentado ao World Trade Center, em Nova Iorque, todos de pé, tirando os capacetes em homenagem aos mortos, à medida que os corpos eram trazidos à superfície. Não havia nada de errado em homenagear os mortos, não, os mortos não, mas a vida daqueles que morreram. Ou seria algo mais do que homenagear, mais do que santificar? O gesto, o ritual dos bombeiros, não tinham também um sentido de ligação? Reconhecendo que estavam ligados, que formavam uma unidade com cada uma das vítimas?

Dias após a fatídica consulta ao dermatologista, Julius sentiu um sabor de ligação, ao encontrar o seu grupo de apoio formado por colegas médicos. Todos ficaram pasmados quando ele contou aquilo do melanoma. Depois de o incentivarem a falar, cada um demonstrou o seu choque e tristeza, Ju-lius não conseguiu dizer mais nada, nem ninguém. Por duas vezes, alguém começou a falar e parou, depois foi como se o grupo concordasse tacita-

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mente que as palavras eram desnecessárias. Nos vinte minutos finais, fica-ram todos em silêncio. Esses silêncios prolongados em grupo costumam ser estranhos, mas aquele foi diferente, quase consolador. Julius não conseguia admitir, ainda que para si mesmo, que o silêncio parecia sagrado. Mais tarde, achou que as pessoas estavam a demonstrar não só tristeza, mas também a tirar os seus capacetes, atentos, participando e homenageando a vida dele.

“E talvez fosse uma forma de homenagear a vida deles mesmos”, pen-sou Julius. O que mais temos? O que mais senão aquele abençoado e mi-lagroso intervalo de ser e estar consciente? Se algo deve ser homenageado e abençoado, deveria ser apenas isso, a incalculável dádiva do mero existir. Viver desesperado porque a vida acaba ou porque não tem outra finalidade maior ou desígnio intrínseco, é pura ingratidão. Pensar num criador om-nisciente e dedicar a vida a um ajoelhar-se sem fim, parece não ter sentido. Além de um desperdício: porquê todo este amor a um fantasma, quando há tão pouco amor em volta da Terra? É melhor aceitar a sugestão de Einstein e Spinoza: inclinar apenas a cabeça e tocar no chapéu para as elegantes leis e mistérios da natureza, mas tratar de viver.

Essas ideias não eram novas para Julius. Ele sempre soube da finitude e da evanescência da consciência. Mas há saber e saber. Não que tivesse ficado mais sábio, mas a falta de outras coisas — ambição, desejo de sexo, dinheiro, prestígio, aplausos, publicidade — proporcionava uma visão mais pura. Não foi esse desprendimento a verdade pregada por Buda? Talvez fos-se, mas ele preferia o caminho dos gregos: tudo pela moderação. Grande parte da graça da vida perde-se se nunca tirarmos os nossos mecanismos de protecção e partilharmos a alegria. Porquê correr para a porta de saída antes da hora de fecho?

* * *

Alguns dias depois, quando se sentiu mais calmo, com menos ondas de pânico, começou a pensar no futuro. Bob King tinha dito: “Um ano, seria razoável pensar em pelo menos um ano de boa saúde.” Mas como passar esse ano? Julius decidiu que a maneira era não deixar que aquele único ano fosse mau por ser apenas um.

Certa noite, sem conseguir dormir e precisando de se animar um pou-co, foi remexer nos livros da biblioteca. Não encontrou nada na sua área que pudesse, mesmo remotamente, aliviar a situação, nada que dissesse como deveria viver uma pessoa, ou encontrar sentido nos dias de vida que lhe res-tam. Viu então um exemplar bastante manuseado de Assim falou Zaratustra, de Nietzsche. Conhecia bem aquele livro: décadas antes, tinha-o estudado muito, quando escrevia um livro sobre a grande, mas não reconhecida, in-

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fluência de Nietzsche sobre Freud. Considerava Zaratustra um livro corajo-so, que, mais que qualquer outro, ensina como reverenciar e celebrar a vida. Sim, podia ser a resposta. Ansioso demais para ler com método, percorreu as páginas aleatoriamente e leu algumas linhas que estavam sublinhadas.

“Mudar ‘foi assim’ para ‘eu quis assim’ é o que chamo redenção.”Entendeu que as palavras de Nietzsche significavam que era preciso

escolher a sua vida — tinha que a usufruir em vez de ser “usufruído” por ela. Por outras palavras, tinha que amar o seu destino. E, acima de tudo, havia a pergunta que Zaratustra fazia sempre — se gostaríamos de repetir a mesma vida eternamente. Uma ideia curiosa e, quanto mais Julius pensava nela, mais seguro se sentia: a mensagem de Nietzsche para nós era viver de forma a querer sempre a mesma vida.

Continuou folheando as páginas e deteve-se em dois trechos subli-nhados a tinta cor-de-rosa. “Completa a tua vida.” “Morre na altura certa.”

Isso mesmo. Vive o melhor possível e, só então, morre. Não deixes nada por viver. Julius costumava comparar as ideias de Nietzsche a um teste de Rorschach, pois tinham tantos pontos de vista opostos que a con-clusão dependia de quem lesse — ou, no teste, de quem olhasse. Naquele instante, leu de uma forma bastante diferente. A presença da morte inci-tava a uma leitura diferente e mais ampla: página após página, ele aper-cebeu-se de uma ligação panteísta que não tinha visto antes. Por mais que Zaratustra exaltasse, glorificasse até, a solidão, por mais que exigisse o isolamento para poder pensar, ainda assim, estava preocupado em amar e exaltar os outros, em os ajudar a aperfeiçoar-se e exceder-se, em partilhar com eles a sua maturidade. Partilhar a sua maturidade — isso era com ele, pensou Julius.

Colocou o livro de novo na estante, sentou-se às escuras e ficou a olhar para os faróis dos carros que atravessavam a ponte Golden Gate, pensando nas palavras de Nietzsche. Passados alguns minutos, conseguiu: descobriu o que fazer e como passar o seu último ano de vida. Iria viver exactamente da mesma maneira que o anterior e o antes do anterior. Gostava de ser tera-peuta, gostava de se ligar a outras pessoas e trazer algo à vida. Talvez o seu trabalho fosse uma sublimação da ligação que tinha com a mulher. Talvez precisasse dos aplausos, da ratificação e da gratidão daqueles a quem ajuda-va. Mesmo assim, mesmo se houvesse motivos latentes, ele estava grato pela função que tinha. Abençoada seja ela!

Julius foi até à parede dos arquivos, abriu uma gaveta cheia de fichas e de transcrições de sessões gravadas há vários anos com doentes. Olhou para os nomes: cada ficha era um monumento a um pungente drama humano que um dia se desenrolara naquela mesma sala. Enquanto olhava para as

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folhas, a maior parte dos rostos veio-lhe imediatamente à memória. Alguns rostos desapareceram, mas, após ler poucos parágrafos das anotações, tam-bém voltavam. Outros foram realmente esquecidos, rostos e histórias per-didos para sempre.

Como a maioria dos terapeutas, Julius tinha dificuldade em lidar com os repetidos ataques ao campo da terapia. Os ataques vinham de várias di-recções: de empresas farmacêuticas e de seguros de saúde que financiavam pesquisas superficiais para provar a importância das drogas e das terapias mais curtas; ataques dos meios de comunicação, que não se cansavam de ri-dicularizar os terapeutas; dos behavioristas; dos milhares de oradores sobre motivação; das hordas de curandeiros e de seitas da Nova Era, competindo todos para cativar quem tem algum problema. E, claro, havia dúvidas que vinham da própria medicina, como as suscitadas pelas incríveis descobertas neurobiológicas sobre moléculas, relatadas cada vez com maior frequência e fazendo até os terapeutas mais experientes questionarem a importância do seu trabalho.

Julius não era imune a esses ataques e muitas vezes duvidava da efi-cácia do tratamento que oferecia. Claro que era um psicanalista eficiente. Claro que ele oferecia algo de valor para a maior parte dos seus pacientes, talvez até para todos. Mas a dúvida continuava: Será que foste realmente, verdadeiramente, útil aos teus pacientes? Talvez só tenhas ajudado os que iam melhorar de qualquer maneira.

Não. Errado! Não fui eu que aceitei os maiores desafios?Brrrr, já chega! Qual foi a última vez que realmente te esforçaste, que

chegaste a um flagrante limite no tratamento? Ou enfrentaste um caso de esquizofrenia bipolar?

Continuou a mexer em velhas fichas e surpreendeu-se com a quan-tidade de informação pós-terapia que tinha, obtida através de eventuais contactos depois da análise terminada, consultas de reciclagem, encontros casuais com ex-pacientes ou recados trazidos por novos pacientes, indica-dos pelos antigos. Mesmo assim, será que ele teria originado uma grande diferença naquelas pessoas? Talvez os resultados fossem evanescentes. Tal-vez muitos dos seus pacientes bem sucedidos tivessem tido uma recaída e não lhe tivessem contado por pura bondade.

Tinha também consciência dos seus fracassos com as pessoas que não estavam preparadas para o seu avançado estilo de tratamento.”Espera aí, Julius”, pensou ele. “Como sabes que foram realmente fracassos? Fracassos para sempre? Nunca mais viste os pacientes. Toda a gente sabe que muitas pessoas amadurecem tarde.”

Bateu com os olhos na pilha de fichas de Philip Slate. “Por falar em fra-cassos”, pensou, “este foi um.” Fracasso antigo e de dimensão razoável. Philip

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Slate. Fora há mais de vinte anos, mas a imagem dele continuava nítida. Os cabelos castanhos-claros penteados para trás, o nariz fino e elegante, as maçãs salientes que lhe davam um toque de nobreza ao rosto, e aqueles agi-tados olhos verdes que lembravam o mar das Caraíbas. Pensou em quanto detestava tudo nas sessões com Philip. Excepto uma coisa: o prazer de olhar para aquele rosto.

Philip Slate era tão alienado de si mesmo que nunca pensou em olhar para dentro, preferindo surfar na superfície da vida e dedicar toda a sua energia ao sexo. Graças à sua bela estampa, não lhe faltavam parceiras. Julius abanou a cabeça ao passar os olhos pela ficha de Philip: três anos de trata-mento, todo aquele envolvimento, apoio e afecto, todas aquelas interpreta-ções sem uma gota de progresso. Incrível! Talvez ele não fosse o psiquiatra que pensava ser.

“Bem, não tires conclusões”, pensou. Porque faria Philip um tratamen-to de três anos, se não recebesse nada? Porque continuaria a gastar todo aquele dinheiro por nada? E Deus sabe que Philip detestava gastar dinhei-ro. Talvez as sessões tivessem mudado Philip. Talvez fosse uma pessoa que amadurece tarde, um daqueles pacientes que precisam de tempo para dige-rir o alimento dado pelo analista, daqueles que guardam a boa comida do terapeuta e levam-na para casa, como um cão que esconde um osso para roer depois, sozinho.

Depois de ter pensado em Philip Slate, Julius já não o conseguiu tirar da cabeça. Era como se Philip tivesse cavado um buraco e criado raízes lá dentro. Exactamente igual ao melanoma. O seu fracasso com Philip trans-formou-se no símbolo de todos os fracassos na terapia. O caso de Philip tinha qualquer coisa de peculiar. Onde ia ele arranjar aquela força? Olhou para a ficha e leu a primeira anotação, feita vinte e cinco anos antes.

PHILIP SLATE — 11 de Dezembro de 1980

Vinte e seis anos, solteiro, branco, químico, trabalha na DuPont — cria novas formulas de pesticidas —, muito bonito, veste-se em estilo casual mas sofisticado, formal, senta-se direi-to, poucos gestos, não demonstra sentimentos, sério, ausência de humor, não ri nem sorri, só negócios, nenhuma relação social relatada. Recomendado pelo médico dele, Dr. Wood.

MAIOR QUEIXA: “Sou dominado, contra a minha vonta-de, por impulsos sexuais.”

Porque resolveu tratar-se agora? A gota de água foi há uma semana, facto relatado como se fosse decorado.

“Cheguei de avião a Chicago para uma reunião de traba-

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lho, saí do avião, procurei o primeiro telefone e consultei a minha lista de mulheres na cidade com quem pudesse ter relações sexu-ais nessa noite. Estava com pouca sorte! Tinham todas compro-missos. Claro: era sexta-feira à tarde. Eu sabia que ia a Chicago, podia ter telefonado antes, semanas antes, até. Depois de falar com o último nome da agenda, desliguei e pensei: ‘Óptimo, assim posso dormir bem, que era o que realmente queria fazer.’”

Paciente diz que ficou toda a semana assustado com aque-la frase, aquela contradição: “O que realmente queria fazer”, que é o motivo específico para procurar tratamento. “É o que quero ver na terapia”, diz ele. “Dr. Hertzfeld, se o que realmente quero é dormir bem, porque não posso, não o consigo fazer?”

Aos poucos, Julius lembrou-se de mais detalhes da análise de Philip Slate. Tinha ficado intelectualmente intrigado com o paciente. Na época da primeira consulta, Julius estava a escrever um livro sobre análise e vontade, e a pergunta de Philip — “Porque não consigo fazer o que realmente que-ro?” — era uma óptima abertura para o texto. Além do mais, lembrou-se da incrível imutabilidade de Philip: após três anos de tratamento, parecia não ter sido afectado, nem ter mudado nada. E estava mais dominado pelo sexo que nunca.

Que fim teria tido Philip Slate? Não teve mais notícias desde que o pa-ciente interrompeu de repente o tratamento, há vinte e dois anos. Mais uma vez, Julius perguntou-se se, sem saber, teria sido útil a Philip. Subitamente, precisou de saber isso, parecia uma questão de vida ou morte. Pegou no telefone e marcou “informações de números de telefone”.

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Êxtase no acto da cópula. É isso! É essa a verdadeira essência e cerne de tudo, a meta e a finalidade de toda a existência.

— Está? É Philip Slate?— Sim, é ele.— Daqui fala o Dr. Hertzfeld. Julius Hertzfeld.— Julius Hertzfeld?— Uma voz do seu passado.— Passado distante. Período Plistoceno. Julius Hertzfeld. Incrível,

quantos anos devem ter passado? No mínimo, vinte. E a que devo o seu telefonema?

— Bem Philip, estou a ligar-lhe por causa de um pagamento. Acho que ficou a dever-me a última sessão.

— Como, a última sessão? Mas tenho a certeza de que...— Estou a brincar, Philip. Desculpe, há coisas que não mudam, aqui

este velho continua animado e irreprimível. Agora vou falar a sério. Resu-mindo, estou a ligar-lhe porque estou com problemas de saúde e penso reformar-me. Enquanto amadurecia esta ideia, fui tendo uma necessidade irresistível de encontrar alguns ex-pacientes, só para acompanhar os casos, satisfazer a minha curiosidade. Posso explicar-lhe melhor depois, se quiser. Então pergunto: Poder-se-ia encontrar comigo? Conversar durante uma hora? Rever o nosso tratamento e dizer-me o que tem feito? Será interes-sante para mim e vai ajudar-me. Quem sabe? Talvez também o seja para si.

— Hum, uma hora. Porque não? Suponho que sem cobrar?— Sim, a não ser que seja o Philip a querer cobrar, estou a pedir-lhe o

seu tempo. Pode ser no final desta semana? Digamos, na sexta à tarde?— Sexta? Óptimo. combinado. Concedo-lhe uma hora, às treze. Não

precisa de pagar, mas desta vez vamos encontrar-nos no meu consultó-rio. Fica na Union Street, 431. perto da Franklin. Procure o número do

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consultório no quadro da portaria, estou em Dr. Slate. Agora também sou terapeuta.

Julius sentiu um arrepio ao desligar o telefone. Girou a cadeira e esticou o pescoço para dar uma olhadela à ponte Golden Gate. Depois daquela cha-mada, precisava de ver alguma coisa bonita. E de sentir um pouco de calor nas mãos. Encheu de tabaco Balkan Sobranie o seu cachimbo de espuma do mar, acendeu um fósforo e tragou. Ah, que delícia, pensou Julius, aquele sabor cálido de terra no fumo da Latakia, aquele delicioso cheiro a mel não tinha igual no mundo. É difícil de acreditar que não fumava há tantos anos. Entrou num devaneio e pensou no dia em que deixou de fumar. Devia ter sido logo a seguir àquela consulta ao dentista, seu vizinho de consultórios, o velho Dr. Denboer, que morreu há vinte anos. Vinte anos, será possível? Julius ainda era capaz de ver muito bem a cara comprida de holandês e os óculos de aros ondulados. O velho Dr. Denboer estava debaixo da terra há vinte anos. E ele, Julius, continuava cá em cima. Por enquanto.

— Essa bolha no céu-da-boca parece ser um problema qualquer. Va-mos precisar de uma biopsia — disse o Dr. Denboer, abanando ao de leve a cabeça. E, embora o resultado da biopsia fosse negativo, chamou a atenção de Julius porque na mesma semana fora ao enterro de Al, o seu velho parceiro de ténis, tabagista, morto pelo cancro de pulmão. Também influiu o facto de estar a ler Freud, Vida e Morte, de Max Schur, médico de Freud, que contava como o cancro, causado por fumar charuto, devorou aos poucos o palato, o maxilar e, finalmente, a vida de Freud. O médico prometeu ajudar Freud a morrer quando chegasse a hora e, no dia em que finalmente Freud disse que tinha tantas dores que já não fazia sentido continuar a viver, Schur mostrou ser homem de palavra. Aplicou-lhe uma dose fatal de morfina. Aquilo é que era um médico. Hoje, onde é que se vai encontrar um Dr. Schur?

Mais de vinte anos sem fumar e também sem comer ovos, queijos ou gorduras animais. Abstinência com saúde e alegria. Até ao dia daquele maldito exame clínico. Agora, podia tudo: fumar, comer sorvetes, comer costeletas de porco, ovos, queijo, tudo. Que diferença fazia? Que diferença fazia qualquer coisa? Dentro de um ano Julius Hertzfeld estaria enterrado, as moléculas dispersas, à espera da próxima tarefa. E mais cedo ou mais tar-de, dentro de alguns milhões de anos, todo o sistema solar estaria acabado.

Sentindo que a cortina do desespero estava a começar a descer, Julius começou a pensar no telefonema a Philip Slate. Philip, terapeuta? Como era possível? Lembrava-se dele como um homem frio, insensível, indiferente aos outros. A julgar pelo telefonema, continuava o mesmo. Julius segurou o cachimbo e abanou a cabeça em silenciosa surpresa, enquanto abria a ficha de Philip e continuava a ler as anotações transcritas da primeira sessão.

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PROBLEMA ACTUAL: Dominado pelo sexo desde os tre-ze anos — masturbação compulsiva da adolescência até hoje (às vezes, quatro a cinco vezes por dia), obcecado por sexo, mastur-ba-se para se acalmar. Passou a maior parte da vida fixado em sexo: “No tempo que gastei a correr atrás de mulheres, poderia ter feito doutoramentos em filosofia, chinês em dialecto manda-rim e astrofísica.”

RELACIONAMENTOS: Solitário. Mora com um cão numa casa pequena. Nem contacto com conhecidos do passado, do colégio, da faculdade, do doutoramento. Muito isolado. Nun-ca teve um relacionamento duradouro com uma mulher. Evita relações que durem (prefere sair uma só noite). Às vezes chega a ver uma mulher durante um mês — em geral, a mulher termina, porque quer mais dele ou irrita-se por estar a ser usada ou por-que ele arranja outras. Deseja novidade (gosta da caçada sexu-al), mas nunca se sacia. Às vezes, quando viaja, atrai uma mu-lher, faz sexo, livra-se dela e uma hora depois sai do hotel à caça, outra vez. Mantém registo das parceiras que teve; nos últimos doze meses fez sexo com noventa mulheres. Diz tudo isto sem qualquer emoção — nem vergonha, nem vanglória. Fica ansioso se não tem um encontro à noite. Sexo costuma fazer o efeito de um Valium. Depois do sexo, fica calmo o resto da noite e pode ler tranquilamente. Sem actividades ou fantasias homossexuais.

COMO É UMA NOITE TÍPICA? Sai cedo, atrai uma mu-lher num bar, vai para a cama (prefere antes de jantar), livra-se da mulher o mais rápido possível, sem ter que lhe pagar o jantar, mas em geral acaba por ser obrigado. Importante ter o máximo tempo possível para ler antes de adormecer. Não vê televisão, não vai ao cinema, não tem vida social, não pratica desporto. O úni-co lazer é ler e ouvir música clássica. Leitor voraz dos clássicos, História e Filosofia; nada de ficção, nada actual. Queria falar nos filósofos Zeno e Aristarco, seus actuais interesses.

PASSADO: Nasceu em Connecticut, filho único, classe mé-dia-alta. Pai banqueiro que se suicidou quando Philip tinha tre-ze anos. Não sabe das circunstancias ou dos motivos do suicídio, vaga ideia de que o pai piorou com as críticas contínuas da mãe. Amnésia da infância — lembra-se pouco dos primeiros anos e

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nada do funeral do pai. Mãe casou-se de novo quando ele tinha vinte e quatro anos. Solitário na escola, estudioso fanático, nunca teve amigos chegados e depois de entrar para Yale, aos dezassete anos, afastou-se da família. Fala com a mãe pelo telefone uma ou duas vezes por ano. Não conhece o padrasto.

TRABALHO: Químico de sucesso — criou novos pesticidas à base de hormonas, para a DuPont. Trabalha das oito às dezas-sete, sem grande interesse pela área. De há uns tempos para cá tem-se aborrecido. Mantém-se informado das investigações na sua área, mas só dentro do horário de trabalho. Alto salário e possui acções na bolsa de valores. Retentivo, gosta de verificar as aplicações e controlar os investimentos, almoça sempre sozinho, estudando os movimentos das bolsas.

IMPRESSÃO: Esquizóide, compulsivo sexual — muito dis-tante / não olhou para mim / impressão de nada pessoal entre nós —, não demonstra relacionamentos pessoais. Respondeu à pergunta sobre que impressão teve de mim com cara de surpre-sa, como se estivesse a falar catalão ou suaíli. Parecia irritado e fiquei pouco à vontade com ele. Sem qualquer senso de humor. Nada. Muito inteligente, articulado, mas de poucas palavras — faz-me trabalhar a sério. Muito preocupado com o preço do tra-tamento (embora possa pagar sem problemas). Pediu desconto no preço, recusei. Pareceu insatisfeito por eu recusar começar com um pouco de atraso; perguntou logo se podia compensar o atraso no final da sessão, para não ter prejuízo. Perguntou por duas vezes com que antecedência tinha de cancelar uma sessão para não precisar de a pagar.

Fechando a pasta, Julius pensou: “Agora, vinte e cinco anos depois, Philip é terapeuta. Existe alguém no mundo menos adequado para esse trabalho? Ele parece o mesmo: sem sentido de humor, preocupado com o dinheiro (se calhar eu não devia ter tido aquela brincadeira da falta de pagamento). Um terapeuta sem sentido de humor? E uma pessoa tão fria... E aquela exigência de marcar o encontro no consultório dele.” Julius sentiu outro arrepio.

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A vida é uma coisa miserável. Decidi passar a vida a pensar nisso.

A Union Street estava ensolarada e animada. O tilintar dos talheres e o som alegre das conversas do almoço vinha das mesas apertadas das es-planadas dos restaurantes (Prego, Betelnut, Exotic Pizza e Perry’s). Balões azuis e vermelhos amarrados aos parquímetros avisavam da liquidação de fim-de-semana no passeio. Enquanto ia para o consultório de Philip, Julius mal olhou para as pessoas a almoçar, nem para as tendas com pi-lhas de roupa de marca do Verão. Também não olhou para nenhuma das suas montras preferidas, a loja de móveis japoneses antigos e a loja tibetana Asian Treasures, com o alegre telhado colorido do século XVIII mostrando uma incrível mulher guerreira, que ele jamais deixara de admirar quando passava por lá.

Também não pensou na morte. As dúvidas em relação a Philip Slate fizeram com que não pensasse naquelas coisas inquietantes. Primeiro, a dú-vida em relação à própria memória: como conseguiu lembrar-se de Philip com tanta clareza? Onde ficaram escondidos o rosto, o nome e a história de Philip durante todos aqueles anos? Era difícil acreditar que a lembrança de toda a sua relação com Philip era um processo neuro-químico localiza-do nalgum ponto do córtex cerebral. Era provável que o paciente estivesse numa intrincada rede “Philip” de neurónios concentrados que, quando ac-cionados pelos neuro-transmissores certos, entravam em acção e projecta-vam uma imagem de Philip num ecrã no seu córtex visual. Achou incrível pensar que tinha um pequeníssimo robô projeccionista dentro do cérebro.

Mais intrigante ainda, era o enigma de querer encontrar Philip. De to-dos os antigos pacientes, porque escolheu aquele para levantar todo o seu arquivo de memória? Seria apenas porque o tratamento fora tão mal suce-dido? Certamente, era mais que isso. Afinal, havia muitos outros pacien-tes que não tinha conseguido ajudar. Mas quase todos os rostos e nomes

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dos fracassados tinham desaparecido sem deixar vestígios. Talvez porque a maioria dos fracassos tivesse deixado logo o tratamento. Philip era um fra-casso incomum, que tinha insistido. Bolas, como insistiu! Em três frustran-tes anos, nunca faltou a uma sessão. Nunca chegou um minuto atrasado, era caro demais para se desperdiçar. Até que um dia, sem qualquer aviso prévio, anunciou de forma simples e definitiva, no fim da sessão, que aquela era a última.

Mesmo quando Philip interrompeu a análise, Julius ainda o conside-rou tratável, mas sempre achou que toda a gente o era. Porque fracassou? Philip tinha a intenção de resolver os seus problemas, era desafiador, in-teligente, com cabeça para pensar. Embora Julius raramente aceitasse um paciente do qual não gostasse, não havia nada de pessoal em não gostar de Philip: ninguém gostaria dele. Bastava lembrar que nunca teve amigos.

Embora pudesse não gostar de Philip, adorava o enigma intelectual que ele representava. A sua maior reclamação (“Porque não posso fazer o que realmente quero?”) era um óptimo exemplo de paralisia da vontade. E o tratamento podia não ter sido útil, porém foi muito bom para os textos de Julius, teve muitas ideias a partir das sessões usadas no seu elogiado artigo O Terapeuta e a Vontade, e no livro Desejar, Querer e Agir. Achou de repen-te que talvez tivesse explorado Philip. Talvez naquele momento, na posse de um senso de maior ligação, pudesse redimir-se, pudesse conseguir o que não tinha conseguido antes.

O número 431 de Union Street era um modesto prédio de esquina, de dois andares, com tijolos de imitação. No alpendre, Julius viu o nome afixado na parede: “Philip Slate, ph.D., Orientação Filosófica”. Orientação filosófica? Que diabo seria aquilo? Daqui a pouco, ironizou Julius, teremos barbeiros a oferecer terapia “tonsorial” e vendedores de verduras a anunciar aconselhamento “verdurial” e “leguminal”. Subiu a escada e tocou à campai-nha.

Soou um besouro enquanto o trinco da porta se abria com um clique e Julius entrou para uma saleta de espera de paredes nuas, com apenas um sofá de vinil preto de dois lugares, pouco convidativo. Philip estava à porta do consultório propriamente dito e, sem se aproximar, fez sinal a Julius para entrar. Não estendeu a mão para o cumprimentar.

Julius comparou Philip com a imagem que tinha na memória. Com-binava bastante. Não tinha mudado muito nos últimos vinte e cinco anos, excepto por algumas rugas e uma certa flacidez no pescoço. O cabelo casta-nho-claro continuava penteado para trás, os olhos verdes ainda eram pro-fundos, ainda arredios. Julius lembrava-se que raras vezes os seus olhos se tinham encontrado com os de Philip, em todos aqueles anos juntos. Philip lembrava um daqueles colegas muito arrogantes, que passavam a aula toda

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sem tirar apontamentos, enquanto ele e todos os outros queriam apanhar tudo o que pudesse aparecer depois, num exame.

Ao entrar no consultório, Julius pensou dizer uma piada sobre aqueles móveis espartanos: uma mesa usada e atulhada de coisas, duas cadeiras de-sirmanadas, com cara de desconfortáveis, uma parede enfeitada só com um diploma. Mas pensou melhor, sentou-se, empertigado, na cadeira que Philip lhe indicou e aguardou o seu comando.

— Bom, quanto tempo. Muito tempo — Philip falava com voz formal, profissional, e não demonstrou nervosismo ao liderar a entrevista e assim trocar de papel com o seu antigo terapeuta.

— Vinte e dois anos. Consultei os meus arquivos.— E qual o motivo para me procurar, Dr. Hertzfeld?— Quer dizer que não vamos ter dois dedos de conversa antes? —

perguntou Julius, ao mesmo tempo que pensou “não, esquece!”, lembran-do-se que Philip não tinha senso de humor.

Philip parecia não se ter perturbado. — Essa é uma técnica elementar de entrevistas, Dr. Hertzfeld. O senhor sabe como é. Dar as coordenadas. Já marcámos dia e local (aliás, a minha sessão é de sessenta minutos, não os cinquenta habituais) e o preço, no caso, a ausência de cobrança. Assim, o próximo passo é a meta. Estou a tentar colocar-me à sua disposição, Dr. Hertzfeld, para que a sessão seja o mais eficiente possível para o senhor.

— Certo, Philip. Agradeço. A pergunta que fez, “porquê agora?”, é sempre boa, uso-a sempre. Foca a sessão. Vai directo ao assunto. Como lhe disse pelo telefone, estou com problemas de saúde, graves, por isso tive vontade de ver e avaliar o meu trabalho com os pacientes. Talvez seja a idade, a altura de fazer um balanço de vida. Acho que, quando tiver ses-senta e cinco anos, vai compreender.

— Quanto ao balanço de vida, tenho de acreditar no que diz. Não percebi bem o motivo por que me quer ver ou a qualquer dos seus pa-cientes, nem tenho interesse nisso. Os meus clientes pagam-me uma quantia e eu dou-lhes a minha orientação especializada. A nossa troca termina aí. Quando terminamos, eles sentem que valeu o dinheiro, eu sinto que fiz o melhor que pude. Nem me passa pela cabeça vê-los algum dia, no futuro. Mas estou à sua disposição. Por onde começar?

Julius não costumava alongar-se nas entrevistas. Era um dos seus pontos fortes; as pessoas achavam que ele acertava logo. Mas, naquele dia, obrigou-se a ir devagar. Estava pasmado com os modos bruscos de Philip, mas não tinha ido lá para lhe dar conselhos. Queria apenas a versão honesta do trabalho que fizeram juntos e quanto menos Julius comentasse sobre o seu estado psicológico, melhor. Se Philip soubesse do desespero, da procura de sentido, da necessidade que Julius estava

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a sentir de ter tido algum papel duradouro na vida do outro, poderia, sem ser por pena, dizer exactamente o que Julius queria ouvir. Ou talvez, devido ao seu espírito antagonista, Philip pudesse fazer exactamente o contrário.

— Bom, começo por lhe agradecer a boa vontade em aceitar encon-trar-se comigo. O que quero é, primeiro, a sua opinião sobre o nosso traba-lho conjunto, como o ajudou ou não. Segundo — e este é um pedido mais difícil —, gostaria muito de ter um resumo da sua vida desde a última vez em que nos encontrámos. Gosto de saber o final das histórias.

Se ficou surpreendido com o pedido, Philip não o demonstrou. Calou--se durante alguns minutos, de olhos fechados, apoiando as mãos na pon-ta dos dedos. Numa voz cuidadosamente medida, começou: — A história ainda não está no fim; na verdade, a minha vida mudou tanto nos últimos anos, que é como se estivesse agora a começar. Mas vou fazer uma crono-logia a partir da terapia. Garanto-lhe desde já que a terapia foi um absoluto fracasso. Uma perda de tempo e de dinheiro. Acho que cumpri o meu papel como paciente. Pelo que me lembro, cooperei bastante, trabalhei muito, não faltei às consultas, paguei, lembrei-me dos sonhos, segui tudo o que disse. Concorda?

— Se concordo que foi um paciente participante? Totalmente. Diria até mais, foi dedicado.

Olhando outra vez para o tecto, Philip concordou e prosseguiu: — Pelo que me lembro, vi-o durante três anos inteiros. E grande parte desse tempo, duas vezes por semana. São muitas horas, pelo menos duas mil. Cerca de vinte mil dólares.

Julius quase reagiu. De todas as vezes que um paciente dizia uma coi-sa daquelas, o reflexo dele era acrescentar: “um buraco no bolso”. E depois demonstrar que os temas tratados na análise tinham dificultado a vida do paciente durante tanto tempo, que não podiam mudar de um momento para o outro. Costumava dar também um dado pessoal: que a sua análise didáctica tinha sido cinco vezes por semana, durante três anos, somando mais de sete mil horas. Mas Philip, naquele momento, não era paciente dele e Julius não estava lá para o convencer de nada. Estava para ouvir. Mordeu o lábio em silêncio.

Philip prosseguiu. — Quando comecei o tratamento consigo, eu estava no fundo do poço, na sarjeta, para ser mais exacto. Trabalhando como quí-mico e criando novas formas de matar insectos, entediado com a profissão, entediado com a vida e com tudo o resto, excepto com a leitura de Filosofia e a reflexão sobre os grandes enigmas da História. Mas procurei-o por causa do meu problema sexual. Lembra-se disso, não é verdade?

Julius concordou.

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— Eu estava descontrolado. Só queria sexo. Estava obcecado. Queria seduzir o maior número possível de mulheres. Após o coito, a compulsão dava-me uma breve trégua, mas depressa o desejo voltava.

Julius reprimiu um sorriso por Philip usar a palavra coito e pensou no estranho paradoxo de ele mergulhar na carne, mas evitar qualquer pa-lavrão.

— Era só nesse curto período, logo após o coito, que eu conseguia vi-ver plena e harmoniosamente, quando me conseguia concentrar nos gran-des pensadores do passado.

— Lembro-me de si com os filósofos Aristarco e Zeno.— Sim, esse e muitos outros, desde então, mas as tréguas, os espaços

não-compulsivos eram curtos demais. Agora estou livre. Agora estou sem-pre num plano superior. Mas vou continuar a recapitular a minha análise consigo. Não é essa a função principal?

Julius concordou.— Lembro-me de ter ficado apegado à nossa análise. Tornou-se outra

compulsão, mas infelizmente não substituiu a sexual, apenas coexistiu com ela. Lembro-me de esperar por cada sessão com ansiedade e de terminar desapontado. É difícil lembrar-me de muita coisa que fizemos, acho que tentámos compreender a minha compulsão a partir da minha história de vida. Entender, tentávamos sempre entender. Mas todas as sessões me pare-ciam suspeitas. Nenhuma tese era bem argumentada ou bem estruturada e, pior, nenhuma teve o menor efeito sobre a minha compulsão.

»E era uma compulsão. Eu sabia que era. E que precisava de acabar com aquilo. Demorei, mas acabei por concluir que o senhor não sabia como me ajudar e perdi a confiança no nosso trabalho conjunto. Lembro-me que perdeu um tempo enorme a explorar o meu relacionamento com os outros e principalmente consigo. Isso, para mim, nunca fez sentido. Não fazia sen-tido nessa altura e continua a não fazer. Com o tempo, tornou-se doloroso encontrar-me consigo, doloroso ficar a explorar o nosso relacionamento como se ele fosse real ou duradouro ou qualquer outra coisa, menos o que realmente era: a compra de um serviço.»

Philip parou e olhou para Julius com as mãos espalmadas para cima, como quem diz: “O senhor perguntou, aí está a resposta.”

Julius estava pasmado. Uma voz, que não parecia ser a dele, disse: — Perfeito, óptimo. Obrigado, Philip. Agora, o resto da sua história. O que fez desde então?

Philip juntou as palmas das mãos, encostou o queixo nos dedos, olhou para o tecto, para se concentrar, e continuou: — Bom, vejamos. Vou come-çar pela área do trabalho. A minha capacidade de criar agentes hormonais para impedir a reprodução de insectos foi óptima para a empresa e o meu

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salário foi aumentando. Mas eu estava muito enfastiado com a Química. Então, aos trinta anos, venceu um dos seguros que o meu pai tinha feito em meu nome. Foi a dádiva da liberdade. Eu tinha como me sustentar duran-te vários anos, então cancelei as assinaturas de publicações sobre Química, deixei o trabalho e passei a dar atenção ao que eu realmente queria na vida: ter cultura.

»Eu continuava mal, ansioso, obcecado por sexo. Tentei outros analis-tas, mas nenhum me conseguiu ajudar mais que o doutor. Um deles, que tinha estudado com Jung, disse-me que, para um viciado como eu, a maior esperança de libertação estava na conversão espiritual. Essa sugestão levou--me à Filosofia de Religião, principalmente às ideias e costumes do Extre-mo Oriente, os únicos que faziam algum sentido. Todos os demais sistemas religiosos não conseguiam abordar as questões filosóficas fundamentais e usavam Deus para evitar a verdadeira análise filosófica. Cheguei a passar algumas semanas em centros de meditação. Foi interessante. Não aplacou a minha obsessão, mas tive a impressão de que ali havia alguma coisa interes-sante. Só que eu ainda não estava preparado para ela.

»Enquanto isso, excepto pelo período de castidade forçada no ashram, no centro de meditação, consegui descobrir algumas portas corrediças, e continuei a caçada sexual. Como sempre, fiz sexo com muitas mulheres, às dúzias, às centenas. Às vezes, duas por dia, em qualquer lugar, a qualquer hora que conseguisse, exactamente como quando me estava a tratar con-sigo. Sexo uma vez, às vezes duas com a mesma mulher, depois passava à seguinte. Após a primeira vez, nunca era excitante; deve conhecer o velho ditado que diz: “Só se pode ter sexo pela primeira vez, com a mesma miúda, uma vez.”»

Philip tirou as mãos do queixo e virou-se para Julius.— Esse ditado era para fazer humor, Dr. Hertzfeld. Lembro-me que

disse uma vez que era interessante que eu, em todas as horas que passámos juntos, nunca contei uma piada.

Julius, que naquele momento não estava com disposição nenhuma para parvoíces, forçou-se a sorrir, embora sabendo que tinha sido ele que contara aquela piada a Philip. Pensou em Philip como sendo um grande bo-neco mecânico com uma chave para lhe dar corda no alto da cabeça. Estava na altura de lhe dar corda outra vez. — E então, o que aconteceu?

Olhando para o tecto, Philip continuou: — Então, um dia tomei uma decisão. Já que nenhum terapeuta me tinha conseguido ajudar e, desculpe, inclusive o senhor, Dr. Hertzfeld.

— Já percebi isso — interrompeu Julius e acrescentou, rapidamente: — Não precisa de se desculpar. Está apenas a responder às minhas pergun-tas com sinceridade.

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— Desculpe, não tive a intenção. Continuando: como a terapia não me tinha dado uma resposta, resolvi curar-me, fazer uma biblioterapia, um tratamento através dos livros, assimilando o pensamento dos maiores sá-bios que já existiram. Assim, comecei a ler Filosofia com método, desde os pré-socráticos até Popper, Rawls e Quine. Após um ano de estudo, a minha compulsão sexual não tinha melhorado, mas cheguei a algumas conclusões importantes: estava no caminho certo e a Filosofia era o meu destino. Esse foi um grande passo; lembro-me de termos comentado que eu não me sen-tia à vontade em lugar nenhum.

Julius concordou: — Sim, também me lembro disso.— Resolvi que, como eu ia passar alguns anos a ler Filosofia, podia

transformar aquilo numa profissão. O meu dinheiro não duraria eterna-mente. Então, fiz um mestrado em Filosofia, na Columbia. Estive bem, de-fendi tese e cinco anos depois fiz o doutoramento. Comecei a dar aulas e, há dois anos, interessei-me pela filosofia clínica. E cá estou.

— Não acabou de me contar acerca da cura.— Bom, na Columbia, nas minhas leituras, conheci um psicanalista, o

analista perfeito, que me deu o que ninguém tinha conseguido.— Ele é de Nova Iorque, não? Como se chama? Mesmo na Columbia?

A que sociedade psicanalítica pertence?— Chama-se Arthur — Philip parou e ficou a olhar para Julius, com

um meio sorriso. — Arthur?— Arthur Schopenhauer, o meu terapeuta.— Schopenhauer? Está a brincar comigo, Philip.— Nunca falei tão a sério.— Conheço mal Schopenhauer, apenas os clichés sobre o seu enorme

pessimismo. Nunca ouvi o nome dele citado no contexto da terapia. Como é que ele o conseguiu ajudar? O que...

— Detesto ter que o interromper, Dr. Hertzfeld, mas tenho um cliente a chegar e até hoje não me consigo atrasar para um compromisso, isso não mudou. Por favor, dê-me o seu cartão de visita. Numa outra ocasião conto--lhe mais sobre ele, o terapeuta feito para mim. Não exagero ao dizer que devo a vida ao génio de Arthur Schopenhauer.

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Talento é quando um atirador atinge um alvo que os outros não con-seguem. Génio é quando um atirador atinge um alvo que os outros não vêem.

1787 — O GÉNIOCOMEÇO DIFÍCIL E FALSO INÍCIO

Começo difícil: o génio tinha apenas dez centímetros de comprimento quando houve a tempestade. Em Setembro de 1787, o mar amniótico que o envolvia encapelou-se, atirando-o de um lado para o outro e ameaçando a frágil ligação com a praia uterina. A água do mar recendia a raiva e medo. Ele foi invadido pelos amargos ácidos da nostalgia e do desespero. Acaba-ram-se para sempre os suaves e doces dias a flutuar. Sem ter para onde ir e sem esperança de sossego, os seus pequenos impulsos neurais dilataram e dispararam em todas as direcções.

O que se aprende quando pequeno, aprende-se melhor. Arthur Scho-penhauer nunca esqueceu as suas primeiras lições.

Falso início (ou como Arthur Schopenhauer quase foi inglês): — Ar-thurrrr. Arthurrrr. Arthurrrr — Heinrich Florio Schopenhauer escandia cada sílaba com a língua. E era um excelente nome para o futuro chefe da importante empresa comercial Schopenhauer.

Estava-se no ano de 1787 e Johanna, a jovem esposa de Heinrich, estava grávida de dois meses, quando este resolveu: se o filho fosse rapaz, chamar-se-ia Arthur. Homem honrado, Heinrich não permitia que nada se sobrepusesse ao dever. Tal como os seus antepassados lhe entregaram a direcção da grande casa comercial Schopenhauer, ele passá-la-ia ao des-cendente. Os tempos estavam difíceis, mas Heinrich tinha a certeza que o seu futuro filho iria dirigir a empresa rumo ao século XIX. Arthur era um nome perfeito para o cargo. Escrevia-se da mesma maneira nas principais

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línguas europeias, passaria com facilidade por todas as fronteiras do país. Mas, acima de tudo, era um nome inglês!

Durante séculos, os antepassados de Heinrich dirigiram os negó-cios com grande eficácia e sucesso. O avô hospedou Catarina, a Grande, da Rússia e, para garantir o seu conforto, mandou deitar conhaque no pavimento de todos os aposentos da hóspede e deitar-lhe fogo, para que ficassem secos e perfumados. O pai de Heinrich recebeu a visita de Fre-derico, rei da Prússia, que passou horas a tentar inutilmente convencê-lo a mudar a empresa de Danzig, na Polónia, para a Prússia. A direcção da grande casa comercial estava agora nas mãos de Heinrich, que garantia que um Schopenhauer com o nome de Arthur levaria a empresa a um brilhante futuro.

A Schopenhauer vendia cereais, madeira e café, e era, há muitos anos, uma das maiores empresas de Danzig, a respeitável cidade han-seática que dominava o comércio no Báltico. Mas os tempos difíceis ti-nham chegado à grande cidade livre. Com a Prússia a ameaçar a oeste, a Rússia pelo leste e a polónia franca, incapaz de continuar a garantir a soberania da cidade, Heinrich tinha a certeza de que os tempos de liber-dade e estabilidade comercial de Danzig estavam perto do fim. A Europa estava mergulhada em distúrbios políticos e financeiros, à excepção da Inglaterra. A Inglaterra era o rochedo. Era o futuro. A empresa e a família Schopenhauer teriam um porto seguro na Inglaterra. Mais do que um porto seguro, a empresa iria prosperar, se o futuro dirigente fosse nascido lá e tivesse nome inglês. Herr Arthur Schopenhauer, ou melhor, Mister Arthurrr Schopenhauer, um inglês a dirigir a empresa, era essa a senda para o futuro.

Assim, sem dar ouvidos aos protestos da esposa grávida, que era quase adolescente e implorava por ter o primeiro filho na presença tran-quilizante da mãe, Heinrich partiu com ela a reboque, na longa viagem rumo à Inglaterra. A jovem Johanna ficou consternada, mas teve que obedecer à vontade irredutível do marido. Depois de se terem instalado em Londres, ela reatou o seu temperamento extrovertido, e o seu encanto depressa conquistou a sociedade. Escreveu no seu diário de viagem, que recebeu muito apoio dos novos e simpáticos amigos ingleses e que logo se sentiu cheia de atenções.

Atenção e carinho demais para o casmurro Heinrich, cujo ciúme depressa se transformou em pânico. Nervoso, sentindo uma tensão que queria rebentar-lhe no peito, tinha que fazer alguma coisa. Então, saiu de Londres de rompante, levando a mulher grávida de quase seis meses de volta para Danzig num dos Invernos mais rigorosos do século. Anos depois, Johanna escreveu como se sentiu ao ser arrancada de Londres:

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“Ninguém me ajudou, tive de vencer sozinha o sofrimento. O homem arrastou-me através de metade da Europa para conseguir controlar a própria inquietação.”

Foi esse, portanto, o tempestuoso ambiente de gestação do génio: um casamento sem afecto, uma mãe assustada e revoltada, um pai ciumento, duas viagens pela Europa no Inverno.

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Uma vida feliz é impossível. O máximo que se pode ter é uma vida heróica.

Julius saiu atordoado do consultório de Philip. Desceu a escada apoiado ao corrimão, trôpego, e cambaleou ao sair para a luminosidade do dia. Fi-cou à frente do prédio, sem saber se virar para a esquerda ou para a direi-ta. A liberdade de uma tarde sem compromissos trouxe-lhe confusão em vez de alegria. Julius foi sempre uma pessoa ocupada. Quando não estava a atender pacientes, tinha projectos e actividades (escrever, dar aulas, jogar ténis, investigar) que exigiam a sua atenção. Mas, naquele dia, nada parecia importante. Desconfiava que nunca nada tivera importância, a cabeça deu importância a coisas e depois, esperta, apagou-lhes os rastos. Naquele dia, enxergou através do emaranhado de uma vida. Não tinha nada de impor-tante para fazer e caminhou lentamente, sem rumo, pela Union Street.

Quase no fim da zona de escritórios, depois da Gillmore Street, uma velha aproximou-se, empurrando ruidosamente um andarilho. “Safa, que figura!”, pensou Julius. Virou a cara para o lado, depois olhou para trás, para avaliar. As roupas da mulher (Várias camisolas por baixo de um enorme casacão) não eram para um dia quente como aquele. A mulher tinha cara de esquilo e mexia a boca sem parar, certamente para segurar a dentadura. Mas o pior era aquela bola de carne numa das narinas, uma verruga rosada e transparente, do tamanho de um bago de uva, com vários pêlos duros e compridos.

“Velha idiota”, pensou novamente Julius. E acrescentou de imediato: “Não deve ser mais velha do que eu. Na verdade, ela sou eu amanhã, com a verruga, o andarilho, a cadeira de rodas.” Ao aproximar-se dela, ouviu-a resmungar: — Vamos ver o que há nessas lojas aí da frente. O que haverá? O que é que lá vou encontrar?

— Não faço a menor ideia, minha senhora, estou apenas a dar uma volta por aqui — gritou-lhe Julius.

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— Não estava a falar consigo.— Não há mais ninguém por perto.— Isso não significa que esteja a falar consigo.— Se não era comigo, com quem era? — Julius pôs as mãos em concha

por cima da testa e fingiu procurar para cima e para baixo na rua vazia.— Isso é da sua conta? Malditos malucos de rua — resmungou a mu-

lher, batendo com o andarilho no chão e continuando.Julius sentiu um calafrio. Olhou em volta para ver se alguém tinha vis-

to a cena. “Bolas”, pensou, “perdi as estribeiras; que merda estava eu a fazer? Ainda bem que não tenho pacientes esta tarde. Não haja dúvida que ver Philip Slate não me fez nada bem.”

Virou-se na direcção do inebriante cheiro a café da Starbucks e resol-veu que uma hora com Philip lhe dava direito a um expresso duplo. Sen-tou-se numa cadeira à janela e ficou a assistir às pessoas que passavam pelo passeio. Nenhum velho à vista, nem dentro, nem fora do café. Com sessenta e cinco anos, era a pessoa mais velha por ali, o mais velho dos velhos, en-velhecendo ainda por dentro, à medida que o melanoma continuava a sua silenciosa invasão.

Duas empregadas de balcão mais ousadas namoriscavam com alguns clientes da loja. Eram daquelas miúdas que nunca olhavam para ele, jamais namoriscaram com ele quando era jovem, nem trocaram olhares depois de ter envelhecido. Estava na altura de perceber que a sua vez nunca chegaria, que aquelas jovens casadoiras e de peito farto, com cara de Branca de Neve, jamais chegariam junto dele para perguntar com um sorriso tímido: “Olá, não tem aparecido por aqui. Como vão as coisas?” Tal nunca iria acontecer. A vida era bastante linear e irreversível.

Já basta! Basta de ter pena de si mesmo. Sabia o que dizer aos queixo-sos: esforce-se por olhar para fora, por sair de dentro de si mesmo. Sim, era essa a maneira de descobrir como transformar aquela merda em ouro. Por-que não escrever sobre o tema? Talvez sob a forma de diálogo ou de blog. Depois, qualquer coisa mais visível (o quê, por exemplo?), talvez um arti-go no Journal of the American Psychiatric Association, sobre O Psiquiatra Face à Morte. Ou algo comercial para o New York Times. Podia ser. Porque não um livro? Qualquer coisa como Autobiografia de uma Morte. Nada mal! Às vezes, quando o título é forte, o livro vai-se escrevendo sozinho. Pediu um café expresso, pegou na caneta e desdobrou um saco de papel que encontrou no chão. começou a rabiscar, a boca num meio sorriso, pensando na origem humilde do seu grande livro.

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Sexta-feira, 2 de Novembro de 1990, 16 dias após o DDM (Dia da Descoberta da Morte)

Sem sombra de dúvida, procurar Philip Slate foi má ideia. Má ideia pensar que poderia conseguir alguma coisa dele. Má ideia encontrar-me com ele. Philip, terapeuta? Inacreditável, um terapeuta sem empatia, sem sensibilidade, sem afecto. Disse-lhe pelo telefone que estava com problemas de saúde e que esse era, em parte, o motivo por que queria falar com ele. E ele nem me perguntou o que é que eu tinha. Nem sequer um aperto de mão. Frio. Desumano. Manteve-se a vinte passos de distância. Dei-lhe tudo a ele. O melhor que eu tinha. Ingrato dum raio!

Ah, sim, sei o que diria ele. Consigo até ouvir aquela voz precisa e sem alma: — Nós fizemos uma transacção comercial: eu dei o dinheiro e o senhor deu os seus serviços especializados. Paguei todas as horas de consulta. A transacção terminou. Esta-mos quites, não lhe devo nada.

Então acrescenta: — Devo menos que nada Dr. Hertzfeld, pois o senhor ficou com o melhor da nossa troca. Recebeu o pa-gamento completo, enquanto eu não recebi nada.

O pior é que ele tem razão. Não me deve nada. Costumo dizer a brincar que a psicanálise é uma vida de serviço. Serviço feito com amor. Não tenho saldo nenhum com ele. Porque es-perar retribuição? De qualquer maneira, seja o que for que eu esteja a querer, ele não tem nada para me dar.

“Não tem para dar”, quantas vezes disse eu isso aos meus pacientes, referindo-me a maridos, mulheres, pais e mães. Mes-mo assim, não posso deixar Philip, esse homem inexorável, em-pedernido, egoísta. Será que estou a fazer uma ode à obrigação que, anos depois, os pacientes têm para com os seus terapeutas?

E porquê tanto interesse? Porque, de entre os meus pacien-tes, escolhi falar com ele? Continuo sem saber. Encontrei uma pista na minha pasta de anotações: procurei-o por achar que estava a falar com o meu fantasma quando jovem. Talvez haja em mim mais de um vestígio de Philip, o eu que nos meus dez, vinte, trinta anos ficou escondido nas minhas hormonas. Pensei que sabia o que ele ia fazer, pensei que tinha uma pista para o curar. Por isso insisti tanto? Porque lhe dei mais atenção e mais energia a ele do que a quase todos os meus pacientes juntos? Em qualquer consultório de terapeuta, há sempre um paciente que consome uma quantidade enorme de energia e atenção. Para mim, Philip foi esse paciente durante três anos.

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Naquela tarde, Julius voltou para uma casa escura e fria. O filho, Larry, tinha passado o fim-de-semana com ele, mas fora-se embora na segunda--feira de manhã, para Baltimore, onde fazia investigação neuro-biológica no Hospital Johns Hopkins. Julius quase que ficou aliviado com a partida do filho, pois o olhar angustiado e os esforços carinhosos, porém desajeita-dos, para o confortar motivaram-lhe mais tristeza do que serenidade. Julius pegou no telefone, começou a marcar o número de Marty, um dos colegas do grupo de apoio, mas estava muito desanimado. Pousou o telefone e ligou o computador para copiar as notas feitas no saco amachucado da Starbu-cks. Uma notícia saudou-o no ecrã: “Tem um e-mail” e, para surpresa sua, a mensagem era de Philip.

Leu rapidamente:

No final da nossa conversa de hoje, perguntou-me sobre Schopenhauer e como é que a filosofia dele me ajudou. Também deu a entender que gostaria de saber mais sobre ele. Talvez seja do seu interesse a minha palestra no Coastal College, na próxima segunda-feira, à 19 horas. (Sala Toyon, na Fulton Street, 340.) Estou a ministrar um curso sobre filósofos europeus e na segun-da-feira farei uma breve dissertação sobre Schopenhauer (tenho que cobrir dois mil anos em doze semanas). Talvez possamos conversar um pouco depois da palestra, Philip Slate.

Julius respondeu de imediato: “Obrigado, lá estarei.” Abriu a agenda na Segunda-feira seguinte e escreveu a lápis: “Sala Toyon, Fulton Street, 340, 19 horas.”

Às segundas-feiras, Julius atendia um grupo de terapia das quatro às seis. Antes disso, naquele dia, tinha estado a pensar se devia falar sobre a sua doença ao grupo. Tinha resolvido adiar a notícia para os doentes individu-ais até se reequilibrar, mas com o grupo levantava-se um problema dife-rente: os participantes costumavam falar nele, era bem possível que alguém notasse uma mudança de comportamento e comentasse.

Mas as preocupações resultaram sem fundamento. O grupo aceitou a desculpa da constipação para que ele cancelasse as duas sessões anteriores e passou a tratar das duas últimas semanas da vida de cada um. Stuart, um pediatra baixo e atarracado, que parecia sempre distraído como se estivesse com pressa para atender o cliente seguinte, parecia oprimido e pediu para falar. Foi um pedido totalmente fora do comum; num ano de grupo, Stuart raramente pedira ajuda. Tinha entrado no grupo por pressão da mulher,

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que lhe enviou um e-mail dizendo que, se não fizesse uma terapia e mudas-se muito, deixava-o. Disse também que mandava uma mensagem electró-nica porque ele dava mais atenção ao contacto por computador do que a qualquer coisa dita directamente. Na semana anterior, a mulher tinha sido radical saindo do quarto do casal, e grande parte da sessão foi passada a ajudar Stuart a avaliar os seus sentimentos naquela situação.

Julius gostava muito do grupo. Ficava muitas vezes impressionado com a coragem das pessoas quando assumiam novas atitudes e grandes riscos. Aquela sessão também foi assim. Todos apoiaram Stuart por mostrar que estava vulnerável, e a sessão passou-se depressa. No fim, Julius estava muito melhor. Ficou tão ligado ao tema que, durante hora e meia, esqueceu o seu próprio desespero. Isso era normal acontecer. Qualquer terapeuta de gru-po sabe das grandes propriedades curativas de um grupo. Muitas e muitas vezes, Julius tinha entrado inquieto numa sessão e saído bastante melhor, embora sem ter, é claro, abordado nenhum problema próprio.

Mal teve tempo para um rápido jantar no We Be Sushi, que ficava per-to do consultório. Ia sempre lá e, ao sentar-se, foi cumprimentado pelo chefe dos sushi-men, Mark. Quando não estava acompanhado, preferia ficar ao balcão, pois, como todos os seus pacientes, não se sentia à vontade sozinho à mesa dum restaurante.

Julius pediu o mesmo de sempre: rolinhos da Califórnia, enguia ao vapor e um sortido de maki vegetariano. Gostava muito de sushi, mas evi-tava o peixe cru com medo dos parasitas. Naquela altura, toda essa bata-lha contra invasores externos parecia uma piada. Que se lixe! Julius pôs as preocupações de lado e pediu um ahi sushi ao surpreendido chefe. Comeu com enorme prazer, antes de correr para a sala Toyon e para o seu primeiro encontro com Arthur Schopenhauer.

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A sólida base da nossa visão do mundo, bem como o grau da sua pro-fundidade, são formados na infância. Essa visão é depois elaborada e aperfeiçoada, mas, na essência, não se altera.

PAI E MÃE SCHOPENHAUER — ZU HAUSE

Que tipo de pessoa era Heinrich Schopenhauer? Duro, rígido, reprimido, inflexível, orgulhoso. Conta-se que, em 1783, cinco anos antes no nascimen-to de Arthur, os prussianos impuseram um bloqueio à cidade de Dantzig e havia pouca comida e pouco feno para os animais. Os Schopenhauer fo-ram obrigados a aceitar que um general inimigo se instalasse na sua casa de campo, como retribuição, o oficial prussiano concedeu a Heinrich o privi-légio de receber feno para os seus cavalos. Mas este respondeu: — Os meus estábulos têm feno suficiente, e quando se acabar a comida para os cavalos, mando abatê-los.

E como era Johanna, a mãe de Arthur? Romântica, delicada, criati-va, alegre, sedutora. A família dela, os Troiseners, era de origem modesta e sempre admirou os arrogantes Schopenhauer. Assim, quando Heinrich, aos trinta e oito anos, começou a cortejar Johanna, de apenas dezassete, os pais ficaram muito satisfeitos e Johanna aceitou a escolha deles.

Consideraria Johanna que o seu casamento era um erro? Leia-se o que escreveu anos depois, quando dava conselhos às raparigas casadoiras: “Toda a mulher que pensa em casar-se, é atraída pelo esplendor, pela distinção e pelos títulos obtidos através dos laços matrimoniais (...) um erro que terá como consequência um duro castigo pelo resto da vida.”

“Um duro castigo pelo resto da vida” — duras palavras, as da mãe de Arthur. Nos seus diários, confidenciou que, antes de ser cortejada por Heinrich, teve um jovem amor que o destino afastou e ela, então, aceitou o pedido de casamento de Heinrich. Terá tido escolha? É muito provável que

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não. Esse típico casamento por conveniência do século XVIII foi acertado pelos pais dela, por questões de posses e posição social. Haveria amor? Não se falou de amor entre Heinrich e Johanna. Nunca. Mais tarde, nas suas memórias, esta escreveu: “Eu não fingia um amor ardente, nem ele o exigia.” Também não havia muito amor para outras pessoas — nem para o peque-no Arthur, nem para a irmã Adele, nascida nove anos depois dele.

O amor dos pais gera amor pelos filhos. Às vezes, ouve-se falar de pais que se amam tanto, que consomem todo o amor disponível na casa, deixan-do apenas cinzas de carinho para os filhos. Mas esse modelo económico, de amor zero, não faz muito sentido. O inverso parece verdadeiro: quanto mais se ama, mais isso se reflecte nos filhos e nos outros, de forma afectuosa.

A falta de amor na infância teve graves implicações no futuro de Ar-thur. As crianças que não recebem carinho materno costumam não se sen-tir seguras para gostarem de si mesmas, para acreditarem que os outros vão gostar deles ou para gostarem de viver. Na idade adulta, tornam-se distan-tes, recolhidas em si mesmas, e têm uma relação difícil com os outros. Foi esse o cenário psicológico que formou a visão do mundo de Arthur.

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Se olharmos a vida nos seus pequenos detalhes, tudo parece muito ridículo. É como uma gota de água vista ao microscópio, uma só gota cheia de protozoários. Achamos muita graça a como eles se agitam e lutam tanto entre si. Aqui, no curto período da vida humana, essa actividade febril produz um efeito cómico.

Quando faltavam cinco minutos para as dezanove horas, Julius bateu a cin-za do seu cachimbo de espuma e entrou na Sala Toyon. Sentou-se na quinta fila do lado direito e olhou para o auditório: trinta filas, a partir do estrado onde seria dada a palestra. A maior parte dos duzentos lugares estava vazia; havia umas trinta cadeiras partidas e cobertas com plástico amarelo. Dois mendigos com as suas colecções de jornais espalhavam-se pelas cadeiras da última fila. Cerca de trinta lugares estavam ocupados por alunos desleixa-dos, espalhados pelo auditório, com excepção das três primeiras filas, que continuavam vazias.

Exactamente como um grupo de terapia, pensou Julius, ninguém se quer sentar perto do orientador. Até no seu grupo, naquela tarde, os lugares dos dois lados ficaram vazios para os que chegassem atrasados, e ele brin-cou dizendo que ficar ao seu lado parecia ser um castigo pelo atraso. Julius pensou na terapia de grupo e no seu folclore a respeito dos lugares na sala: as pessoas mais dependentes sentam-se à direita do orientador, enquanto que os mais paranóicos ficam mesmo à frente dele. Mas, pela sua experiên-cia, a relutância em se sentar ao lado do orientador era a única regra sempre confirmada.

O mau estado e os estragos da Sala Toyon era típicos do campus do Coastal College da Califórnia, que tinha começado como escola comercial vespertina, depois foi ampliada e funcionou durante pouco tempo como escola de administração à tarde, e naquele momento estava numa fase de decadência. No caminho para a sala, passando pelo insípido quarteirão dos hotéis, restaurantes e esquadras de polícia, Julius quase não conseguiu di-

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ferenciar os estudantes desleixados dos mendigos que viviam por ali. Que professor não se sentiria desmoralizado num sitio como aquele? Julius co-meçou a compreender porque é que Philip queria mudar de profissão e trabalhar num consultório.

Olhou para o relógio. Sete horas em ponto e, pontualmente, Philip en-trou na sala, com uniforme profissional de calças de caqui, camisa de xadrez e casaco de veludo grosso, com cotoveleiras de cabedal. Tirando as notas para a palestra de uma pasta adequadamente gasta, e mal olhando para a assistência, começou:

Este é um resumo da filosofia ocidental, palestra dezoito, sobre Arthur Schopenhauer. Hoje, vou fazer de maneira dife-rente e aproximar-me da minha presa de forma mais indirecta. Se parecer sem método, peço compreensão, prometo voltar logo ao assunto em sumário. Vamos começar por falar sobre os grandes começos da história.

Philip passou os olhos pela assistência, procurando algum sinal de compreensão e, não o encontrando, apontou para um estudante sentado mais perto dele e indicou-lhe o quadro. Depois, soletrou e definiu três pala-vras e-r-r-a-d-i-o, c-o-m-p-r-e-e-n-s-ã-o e d-é-b-u-t-s, que o aluno copiou para o quadro. Qundo o rapaz ia voltar para o lugar, Philip indicou-lhe uma cadeira na primeira fila e disse-lhe que ficasse lá.

Quanto aos grandes começos, fiquem descansados, vão en-tender aos poucos porque começo assim a palestra. Imaginem Mozart encantando a corte imperial vienense ao tocar espineta com perfeição, aos nove anos. Ou, se o nome de Mozart não lhes diz grande coisa (neste ponto, um leve sorriso do orador), pensem em algo mais próximo de vós, os Beatles, aos dezanove anos, cantando as suas músicas para o público de Liverpool.

Outros incríveis começos incluem o extraordinário Jo-hann Fichte. (Sinal para o estudante escrever F-i-c-h-t-e no quadro). Alguns de vós lembram-se deste nome, da última pa-lestra, quando discuti os grandes filósofos idealistas alemães que se seguiram a Kant, nos finais do século XVIII e inícios do século XIX, Hegel, Schelling e Fichte? De entre estes, a vida e o começo de Fichte foram os mais interessantes, pois ele era um pobre e analfabeto pastor de gansos em Rammenau, pequena aldeia alemã cuja única fama eram os inspirados sermões do padre, aos domingos.

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Bem, certo domingo, um rico aristocrata chegou à aldeia muito atrasado para ouvir o sermão. Ficou do lado de fora da igreja, desapontado, até que um velho aldeão se aproximou dele e lhe disse para não se preocupar, que o pastor de gansos, o jovem Johann, lhe poderia repetir todo o sermão. O aldeão chamou o rapaz, que, realmente, repetiu tudo, literalmente. O barão ficou tão impressionado com a incrível memória do ra-paz, que patrocinou a educação deste e conseguiu que frequen-tasse o Pforta, famoso colégio interno por onde mais tarde pas-saram pensadores alemães famosos, inclusive o tema da nossa próxima palestra, Friedrich Nietzsche.

Johann teve excelente desempenho no colégio e depois na universidade, mas, quando o seu mecenas morreu, não se pôde sustentar e aceitou o emprego de tutor numa residência. Foi contratado para dar lições a um jovem sobre a filosofia de Kant, que ele ainda não tinha lido. De imediato se encantou pela obra do divino Kant...

Philip de repente olhou para as suas notas e depois para a assistência. Não vendo qualquer sinal de interesse, perguntou, baixinho:

Olá, há alguém na assistência? Kant, Emmanuel Kant, Kant, lembram-se? (Fez sinal ao rapaz do quadro para escrever K-a-n-t.) Na semana passada, falámos nele durante duas horas. Kant, que, ao lado de Platão, formam a dupla de maiores filóso-fos do mundo. Garanto-vos uma coisa: Kant será tema no fim do curso. Ah, ah, vejo sinais de vida na assistência, movimento, alguns olhos a abrir-se, uma caneta a entrar em contacto com o papel.

Então onde é que eu ia? Ah, sim. O pastor de gansos. A seguir, Fichte recebeu um convite para ser tutor particular, em Varsóvia, na Polónia, e, sem um tostão, foi a pé até a esta cidade. Como estava a poucos quilómetros de Königsberg, a cidade natal de Kant, resolveu conhecer o mestre em pessoa. Cami-nhou durante dois meses e, ousado, foi direito à casa de Kant, bateu à porta, mas não foi recebido. Kant era metódico e não recebia estranhos. Na semana passada, falei-vos da monotonia dos seus horários, tão rígidos, que os habitantes da cidade po-diam acertar os relógios quando o viam sair para o seu passeio diário.

Fichte considerou que não tinha conseguido falar com o

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filósofo porque não tinha cartas de recomendação, e resolveu escrever. Num extraordinário ataque de energia criativa, escre-veu o seu primeiro texto, o famoso Ensaio de uma crítica a toda a revelação, que usava a visão de Kant sobre a ética e o dever, conforme interpretados pela religião. Kant ficou tão im-pressionado com o texto, que não só acedeu a receber Fichte, como incentivou a publicação do mesmo.

Devido a um mal entendido, talvez um golpe de marke-ting do editor, a Crítica saiu anónima. Era um trabalho tão brilhante que os críticos e os leitores pensaram que fosse uma nova obra de Kant. O filósofo acabou por ter que fazer uma declaração pública de que o autor daquele excelente texto não era ele, mas sim um jovem muito talentoso chamado Fichte. O elogio de Kant garantiu o futuro de Fichte na filosofia, e, ano e meio depois, este foi convidado para dar aulas na Universidade de Jena.

— Isto — disse Philip, levantando os olhos das notas, absorto, e dando depois um soco no ar, numa esquisita demonstração de entusiasmo —, isto é o que eu chamo um começo!

Nenhum estudante olhou ou deu sinal de notar a breve e estranha de-monstração de entusiasmo. Se ficou frustrado com a falta de reacção da assistência, não o demonstrou, e, sem se alterar, continuou:

Agora, pensem em algo próximo de vós: o começo de grandes atletas. Quem pode esquecer Chris Evert, Tracy Aus-tin ou Michael Chang, que venceram torneios profissionais de ténis aos quinze ou dezasseis anos? Ou os prodígios adoles-centes do xadrez Bobby Fischer e Paul Morphy ou José Raul Capablanca, que ganhou o campeonato nacional de xadrez de Cuba, aos onze anos?

Por fim, quero falar num começo literário, o mais brilhan-te de todos os tempos, o de um rapaz de vinte e poucos anos que brilhou na literatura com um romance fantástico...

Nesse ponto, Philip parou para fazer suspense e olhou para o ar, com o rosto a brilhar de segurança. Tinha segurança no que fazia, isso era eviden-te. Julius olhou, sem acreditar. O que estava Philip a querer? Que os alunos ficassem sentados na borda das cadeiras, trémulos de curiosidade, pergun-tando-se quem era esse prodígio literário?

Da sua cadeira na quinta fila, Julius virou a cabeça, para examinar a

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assistência: os estudantes, de olhos parados, esparramados nas cadeiras, ra-biscavam ou olhavam para jornais, fazendo palavras cruzadas. À esquerda dele, um aluno tinha-se esticado sobre duas cadeiras e dormia. À direita, na ponta da fila, um casal de alunos trocava um longo beijo. Na fila mesmo à frente, um rapaz acotovelava outro e olhavam de esguelha para o fundo da sala. Julius ficou curioso, mas não se voltou para ver o que era, devia ser alguma saia de mulher, e centrou a sua atenção em Philip, que insistia:

E quem foi esse prodígio? O seu nome era Thomas Mann. Com a vossa idade, isso mesmo, com a vossa idade, começou a escrever uma obra-prima, um maravilhoso romance chamado Os Buddenbrooks, que publicou quando tinha apenas vinte e seis anos. Thomas Mann, que espero que conheçam, tornou--se uma das maiores figuras do mundo literário do século XX, tendo ganho o Nobel da Literatura. (Neste ponto, soletrou M-a-n-n e B-u-d-d-e-n-b-r-o-o-k-s para o seu escriba no qua-dro.) Lançado em 1901, o livro conta a vida de quatro gerações de uma família burguesa alemã e todas as suas vicissitudes.

E o que tem isso a ver com filosofia e com o tema da pa-lestra de hoje? Conforme vos prometi, desviei-me um pouco do tema central para voltar com mais força ainda.

Julius ouviu um movimento na plateia e o som de passos. Os dois ra-pazes que se tinham acotovelado, mesmo na frente dele, juntaram os seus pertences com estardalhaço e saíram da sala. O casal que se beijava no ex-tremo da fila tinha-se ido embora, e até o estudante do quadro tinha desa-parecido.

Philip continuou:

Para mim, os trechos mais marcantes de Os Budden-brooks estão no fim do romance, quando o protagonista, o velho patriarca Thomas Buddenbrooks, está a morrer. É sur-preendente que um escritor com vinte e poucos anos tivesse tal noção e tal sensibilidade em relação ao fim da vida. (Um leve sorriso nos lábios e Philip pegou no livro com páginas marcadas.) Recomendo essas páginas a qualquer pessoa que pretenda morrer.

Julius ouviu o riscar de fósforos; eram dois estudantes que acendiam os cigarros ao sair do auditório.

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Quando a morte o veio buscar, Thomas Buddenbrooks fi-cou confuso e desesperado. Nada daquilo em que acreditava o consolava: nem a religião, que há muito tinha deixado de satis-fazer as suas necessidades metafísicas, nem o seu cepticismo e a sua inclinação pelo materialismo de Darwin. Nada, nas pala-vras de Mann, conseguia oferecer ao doente grave uma só hora de calma, ao aproximar-se dos olhos penetrantes da morte.

Neste ponto, Philip olhou para o ar. — O que ocorre a seguir é de gran-de importância e, aqui, começo a aproximar-me do tema da nossa palestra desta noite.

No seu desespero, Thomas Buddenbrooks viu por acaso na sua estante um livro de filosofia barato e mal encadernado, que tinha comprado havia anos, numa tenda. Começou a ler e sentiu um conforto imediato. Ficou maravilhado, como diz Mann, como “uma mente mestra se poderia apoderar dessa coisa cruel e irónica chamada vida”.

A extraordinária clareza de visão do livro de filosofia en-cantou o doente e as horas passaram sem que ele parasse de ler. Até chegar ao capítulo intitulado Sobre a morte e a sua relação com a nossa imortalidade e, inebriado pelas palavras, conti-nuou, como se lesse para viver. Ao terminar, Thomas Budden-brooks havia-se transformado num homem que encontrou o conforto e a paz que precisava.

O que descobriu o doente? (De repente, Philip usou uma voz de oráculo.) Ouça bem Julius Hertzfeld, porque isto pode ser útil para a sua prova final na vida...

Chocado por alguém se dirigir directamente a si numa palestra, Julius endireitou-se na cadeira. Olhou em volta, nervoso, e surpreendeu-se ao ver que a plateia estava vazia, tinham-se todos ido embora, até os dois mendi-gos.

Mas Philip, imperturbável com a sua plateia ausente, continuou, cal-mo:

— Vou ler um trecho de Os Buddenbrooks. (Abriu uma brochura em mau estado.) O senhor deve ler este livro, principalmente o capítulo nove, com muita atenção. Será de imenso valor para si, muito mais do que tentar encontrar sentido nas lembranças de pacientes de há muitos anos atrás.

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Será que eu queria continuar vivo no meu filho? Numa personalidade ainda mais fraca, insegura e medrosa do que a minha? Cego e pueril engano! O que pode o meu filho fazer por mim? Onde estarei depois de morto? Ah, é tão brilhante-mente claro. Estarei em todos aqueles que já disseram, dizem ou dirão “eu”, principalmente naqueles que o dizem com mais segurança, força e alegria! (...) Será que alguma vez detestei a vida, esta pura, forte e implacável vida? Loucura e engano! De-testei-me apenas a mim mesmo por não a conseguir suportar. Amo-vos a todos vós, abençoados, e em breve, muito em bre-ve, deixarei de estar separado de vós por um cárcere apertado; dentro em breve, aquela parte de mim que vos ama libertar-se--á e estará convosco e entre vós, convosco e entre todos vós.

Philip fechou o livro e voltou aos apontamentos.

Quem era o autor do texto que tanto transformou Thomas Buddenbrooks? Mann não o revela no romance, mas, quarenta anos depois, escreveu um excelente ensaio onde dizia que o autor era Arthur Schopenhauer. E conta que, aos vinte e três anos, teve a grande alegria de ler Schopenhauer pela primeira vez. Ficou encantado, não só com o som das palavras, que des-creve como “tão perfeitas e consistentemente claras, tão har-moniosas, com uma apresentação e uma linguagem tão fortes, tão apaixonadamente brilhantes, tão magníficas e alegremente severas como nenhum outro escritor na filosofia alemã”, mas também com a essência do pensamento de Schopenhauer, que descreve como “emocional, empolgante, jogando com contras-tes enormes, entre instinto e mente, paixão e redenção”. Mann concluiu que descobrir Schopenhauer era uma experiência preciosa demais para a guardar só para si e usou-a imediata-mente de forma criativa, oferecendo o filósofo ao sofrido herói do romance.

Não só Thomas Mann, mas também outras grandes in-teligências admitiram a sua dívida para com Schopenhauer. Tolstoi chamou-lhe “génio por excelência”. Para Richard Wag-ner, “ele foi uma dádiva do céu”. Nietzsche disse que a sua vida nunca mais foi a mesma depois de ter comprado um gasto exemplar de Schopenhauer numa tenda de Leipzig e, como disse, deixou “aquele génio dinâmico e lúgubre agir na minha mente”. Schopenhauer mudou para sempre o mapa intelectual

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do Ocidente e, sem ele, Freud, Nietzsche, Hardy, Wittgenstein, Backett, Ibsen, Conrad, seriam muito diferentes e menos for-tes.

Philip pegou num relógio de bolso, consultou-o por um instante e, muito solene, informou:

Aqui termina a minha introdução a Schopenhauer. A sua filosofia tem tal amplidão e profundidade que um resumo não comporta. Por isso, preferi despertar a sua curiosidade, na es-perança de que leia atentamente o capítulo, que tem sessenta páginas. Prefiro dedicar os últimos vinte minutos da palestra para as perguntas da assistência e para debate. A assistência tem alguma pergunta, Dr. Hertzfeld?

Sem se alterar com o tom de voz de Philip, Julius mais uma vez passou os olhos pela plateia vazia, depois perguntou com delicadeza: — Philip, será que não compreendeu que a sua assistência se foi embora?

— Que assistência? Eles? Os alunos, digamos assim? — Philip fez um gesto de menosprezo com a mão, para mostrar que não mereciam a sua atenção, chegarem ou saírem não teve qualquer importância para ele. — Hoje, Dr. Hertzfeld, o senhor é a minha assistência. Fiz a palestra só para si — disse Philip, sem demonstrar qualquer estranheza por conversar com uma pessoa a nove metros de distância, num auditório deserto e escuro.

— Está bem, vou responder. Porque sou hoje a sua assistência?— Pense um pouco, Dr. Hertzfeld.— Gostaria que me tratasse por Julius, uma vez que eu o trato por

Philip e suponho que goste, então é no mínimo adequado que me trate por Julius. Ah, também já tratámos disso, lembro-me perfeitamente que há uns anos atrás lhe pedi, por favor, para me tratar pelo nome próprio, porque não somos estranhos.

— Não costumo tratar os meus clientes pelo nome próprio, sou um consultor profissional e não um amigo deles. Mas, já que quer ser tratado dessa maneira, que assim seja. Vou começar de novo. O senhor pergunta porque é a minha assistência. A resposta é que estou apenas a atender ao seu pedido de ajuda. Pense, Julius, o senhor procurou-me, querendo uma entrevista, e, dentro desse pedido, havia outros.

— Oh.— Sim. Vou debruçar-me sobre o tema. Primeiro, a sua voz tinha um

toque de pressa. Era muito importante para si encontrar-se comigo. Obvia-mente, o seu pedido não era motivado pela simples curiosidade de saber

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como estou. Não, o senhor queria mais. Referiu-se a que a sua saúde estava ameaçada e, com sessenta e cinco anos, o senhor deve estar perante a morte. Portanto, eu só podia concluir que o senhor estava assustado e à procura de algum tipo de consolo. A minha palestra de hoje é uma resposta ao seu pedido.

— Uma resposta por vias travessas, Philip.— Não tão travessas quanto o seu pedido, Julius.— De acordo! Mas, pelo que me lembro, jamais deu importância às

vias travessas.— Mas agora sinto-me à vontade. O senhor pediu-me ajuda e eu dei-

-lha, apresentando-lhe o homem que, mais do que qualquer um, lhe pode ser útil.

— Então a sua intenção era consolar-me, mostrando-me como a per-sonagem doente de Mann obteve consolo de Schopenhauer?

— Exactamente. E ofereci-lhe apenas um aperitivo, uma amostra do que o senhor pode ter. Há muita coisa que eu, como seu guia no pensamen-to de Schopenhauer, lhe posso oferecer e gostaria de lhe fazer uma propos-ta.

— Proposta? Philip, continua a surpreender-me. Agora estou com curiosidade.

— Fiz o curso de orientação e cumpri todas as exigências para obter o registo do estado, mas faltam-me as duzentas horas de supervisão por um profissional. Posso continuar a praticar como filósofo clínico, área que não está regulamentada pelo estado, mas o registo como orientador tem diver-sas vantagens, inclusive seguro contra tratamento inadequado de paciente e licença para divulgar melhor o meu serviço. Ao contrário de Schopenhauer, não tenho um suporte financeiro nem qualquer apoio académico. O senhor viu o desinteresse pela filosofia demonstrado pelos idiotas dos alunos desta porcaria de universidade.

— Philip, porque temos que conversar aos berros? A palestra termi-nou. Não prefere sentar-se e continuar a discussão mais à vontade?

— Claro. — Philip juntou os apontamentos, enfiou-os na pasta e sen-tou-se numa cadeira da primeira fila. Embora mais próximos, ainda esta-vam separados por quatro filas de cadeiras e Philip era obrigado a virar a cabeça para ver Julius.

— Acho que está a propor-me uma troca: eu faço a sua supervisão e o Philip dá-me aulas sobre Schopenhauer? — Perguntou Julius, agora em voz baixa.

— Isso mesmo! — Philip virou a cabeça, mas não o bastante para en-carar Julius.

— E pensou como seria, na prática, o nosso acerto?

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— Pensei e muito. Na verdade, Dr. Hertzfeld...— Julius.— Sim, sim, Julius. Eu ia dizer que pensei durante semanas em lhe

telefonar para pedir a sua supervisão, mas fui adiando, principalmente por motivos financeiros. Então, fiquei impressionado com a incrível coincidên-cia de o senhor me ter ligado. Na prática, sugiro um encontro semanal e di-vidir a nossa consulta: durante meia hora dá-me orientação sobre os meus pacientes e noutra meia hora eu oriento-o sobre Schopenhauer.

Julius fechou os olhos e ficou a pensar.Philip esperou dois minutos e perguntou: — O que acha da minha

proposta? Embora eu tenha a certeza de que nenhum aluno irá aparecer, tenho uma aula depois da palestra, por isso tenho de voltar para o bloco pedagógico.

— Bem, Philip, não é uma proposta que se receba todos os dias. Preci-so de tempo para pensar. Vamos encontrar-nos de novo esta semana. Tenho as tardes de quarta-feira livres, está disponível às quatro horas?

Philip concordou: — Às quartas acabo às três. Pode ser no meu con-sultório?

— Não, no meu. Fica na minha casa, na Pacific Avenue, 249. Perto do meu antigo consultório. Olhe, tome o meu cartão de visita.

Trechos diários de Julius

Fiquei pasmado com a proposta de Philip após a palestra. A rapidez com que uma pessoa entra na área de outra! Parecem as lembranças que surgem nos sonhos, em que o cenário mostra que uma pessoa já esteve naquele local noutros sonhos. Passa-se o mesmo com a marijuana, duas ou três passas e de repente está-se num lugar conhecido, pensando em coisas que só surgem sob o efeito da erva.

Com Philip é a mesma coisa. Basta falar um bocadinho com ele e pronto, voltam as velhas lembranças que tenho, aliadas a um efeito-Philip. Como é arrogante, quanto desprezo! Está-se nas tintas para os outros. Mesmo assim, havia qualquer coisa forte (o que seria?) que me atraía nele. Seria a inteligência? Seria a arrogância e o desprendimento aliados a uma tremenda inge-nuidade? Não mudou nada em vinte e dois anos. Não, mudou sim! Está livre da compulsão por sexo, já não precisa de farejar pitinhas. Vive nas esferas mais altas do intelecto, como sempre desejou. Mas o seu espírito manipulador continua lá, muito ób-vio; ele nem percebe como é evidente, pensou que eu ia aceitar

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de imediato a proposta, que daria duzentas horas do meu tempo em troca do que me iria ensinar sobre Schopenhauer. Ainda teve o descaramento de falar como se a sugestão fosse minha, como se fosse eu que quisesse e precisasse. Não nego que tenho um cer-to interesse por Schopenhauer, mas passar duzentas horas com ele para aprender sobre o filósofo não faz parte, por agora, das minhas prioridades. E aquele trecho que leu do Buddenbrooks doente é um bom exemplo do que Schopenhauer me pode ofe-recer, isso deixa-me gelado. A ideia de me reintegrar na unidade universal sem qualquer interferência minha ou das minhas re-cordações é um gélido consolo. Não, nem chega a ser consolo.

E qual a atracção que exerço sobre ele? Essa é outra pergun-ta a ser feita. Com aquela agressão que me fez no outro dia, dos vinte mil dólares que gastou comigo em análise, talvez esteja a querer um retorno do investimento.

Supervisionar Philip? Fazer com que ele seja um terapeuta legítimo, juramentado? Será que o quero patrocinar? Como lhe dar a minha bênção, se acredito que uma pessoa que odeia (e ele odeia) não pode ajudar ninguém a crescer?

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A religião tem todas as coisas a seu favor: a revelação feita por Deus aos homens, as profecias, a protecção do governo, das figuras mais respeitáveis e mais importantes. Mais que isso, o enorme privilégio de poder gravar a sua doutrina na mente das pessoas quando são crian-ças e, com isso, as ideias tornam-se quase congénitas.

TEMPOS FELIZES DA INFÂNCIA

Johanna anotou no seu diário que quando Arthur nasceu, em Fevereiro de 1788, ela, como todas as mães jovens, gostava de brincar com o seu “boneco novo”. Mas os bonecos novos depressa se tornam antigos, e poucos meses depois já estava cansada do brinquedo e começou a sentir-se aborrecida em Dantzig. Algo novo surgia nela, um vago sentimento de que a maternidade não era o seu verdadeiro destino, que havia outro futuro à sua espera. Os Verões passados na casa de campo da família eram particularmente difíceis. Embora Heinrich, acompanhado de um padre, ficasse os fins-de-semana com ela, o resto do tempo passava-o sozinha com o bebé e as criadas. Mo-tivado pelos seus enormes ciúmes, Heinrich proibiu a esposa de receber os vizinhos ou sair de casa, fosse qual fosse o motivo.

Quando Arthur tinha cinco anos, a família sofreu um grande trauma. A Prússia anexou a cidade de Dantzig e logo a seguir as tropas prussianas fi-caram sob o comando do mesmo general a quem Heinrich, anos antes, dera uma resposta ríspida. Então, a família, em 1797, mudou-se para Hamburgo e aí, numa cidade estranha, Johanna deu à luz Adele e sentiu-se mais presa e angustiada ainda.

Heinrich, Johanna, Arthur e Adele: pai, mãe, filho e filha, os quatro jun-tos, mas não ligados.

Para Heinrich, Arthur era uma crisálida que se transformaria no futuro chefe da casa comercial Schopenhauer. Heinrich era o pai tra-dicional, que tratava dos negócios e não pensava no filho; só iria entrar

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em acção e assumir os seus deveres paternos quando Arthur saísse da infância.

E a esposa, que planos tinha para ela? Era a chocadeira dos Schopen-hauer. Mas tinha muita vida, o que era um perigo, por isso precisava de ser contida, protegida e reprimida.

Johanna, o que pensava? Tinha caído numa armadilha! O seu marido e provedor tinha sido um erro mortal, o seu triste carcereiro, que lhe consu-mia a energia. E o filho, Arthur? Não fazia parte da armadilha, não era ele a tampa da sua urna mortuária? Talentosa, Johanna queria cada vez mais ex-pressar-se e realizar-se. E Arthur seria, infelizmente, uma triste recompensa para a auto-renúncia dela.

A filha mais pequena, Adele? Recebia pouca atenção do pai, teve um papel secundário na cena familiar e iria passar toda a vida como assistente da mãe.

Assim, cada um tomou o seu rumo.O pai, cheio de ansiedade e angústia, procurou a morte dezasseis anos

após o nascimento de Arthur. Subiu ao último andar do armazém da casa comercial e, de lá saltou para as águas gélidas do Canal de Hamburgo.

Graças a esse salto, a mãe escapou da armadilha matrimonial, tirou a poeira de Hamburgo dos sapatos e foi, rápida como o vento, para Weimar, onde logo inaugurou um dos mais animados salões literários da Alemanha. Tornou-se grande amiga de Goethe e de outros letrados importantes, es-creveu uma dúzia de livros românticos que venderam muito, vários deles tendo por tema mulheres obrigadas a casar contra-vontade, mas que se re-cusavam a ter filhos e continuavam a querer amar.

E o jovem Arthur? Seria um dos maiores sábios que já existiram. E um dos mais desesperados, que detestava a vida, e aos cinquenta e cinco anos escrevia:

Poderíamos pensar que, às vezes, as crianças parecem ino-centes prisioneiros, condenados não à morte, mas à vida, sem terem ainda consciência do que essa sentença significa. Mesmo assim, todo o homem deseja chegar à velhice, época em que se pode dizer: “Hoje está mau e cada vez vai ser pior, até o pior acontecer.”

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Num espaço infinito, inúmeras esferas luminosas em volta das quais giram dezenas de outras menores, quentes no centro e cobertas por uma casca dura e fria, onde uma névoa bolorenta originou a vida e os seres conhecidos. Esta é a realidade, o mundo.

A espaçosa casa de Julius em Pacific Heights era muito maior do que qual-quer uma que ele pudesse comprar agora: ele foi um dos afortunados milio-nários de S. Francisco que teve a sorte de comprar uma casa, trinta anos an-tes. A compra fora feita graças à herança de trinta mil dólares que a mulher, Miriam, recebeu e, ao contrário de qualquer investimento feito pelo casal, o valor da casa subiu como um foguete. Após a morte de Miriam, Julius pen-sou em vender a casa, que era grande demais para uma pessoa, mas acabou por transferir o consultório para o primeiro andar.

Quatro degraus levavam da rua ao patamar onde havia uma fonte re-vestida de azulejos azuis. À esquerda, uma pequena escada dava acesso ao consultório de Julius; à direita, uma escada maior ia para a casa. Philip che-gou exactamente à hora. Julius cumprimentou-o à porta, acompanhou-o até ao consultório e indicou-lhe um sofá de couro castanho.

— Toma um café ou um chá?Philip não olhou em volta quando se sentou e, ignorando a pergunta

de Julius, disse: — Estou à espera da sua resposta sobre a supervisão.— Ah, mais uma vez, vai directo ao assunto. Estou com dificuldades

para resolver isso. Muitas dúvidas. Há algo no seu pedido, uma enorme contradição que me intriga muito.

— Claro, quer saber porque peço a sua supervisão depois de ficar tão insatisfeito consigo como terapeuta, não é?

— Exactamente. Numa linguagem bastante clara, disse que o nosso tratamento foi um fracasso total, a perda de três anos e de muito dinheiro.

— Não há contradição no meu pedido — replicou Philip, de imediato. — É possível ser um terapeuta e um supervisor competente, mesmo falhan-

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do com determinado paciente. As investigações demonstram que o trata-mento não faz efeito em cerca de um terço dos pacientes. Além disso, tive, sem dúvida, uma participação importante no fracasso da terapia, por ser teimoso, inflexível. O seu único erro foi escolher para mim a terapia errada e insistir nela durante demasiado tempo. Mas reconheço o seu esforço e até o seu interesse em me ajudar.

— Ainda bem, Philip. Parece razoável. Mesmo assim, é estranho pedir a supervisão de um terapeuta que não lhe deu nada. Se fosse eu, procurava outro. Tenho a impressão de que existe mais qualquer coisa que você não me diz.

— Talvez eu deva fazer uma pequena correcção. Não é verdade que não recebi nada. Disse-me duas coisas que me marcaram e podem ter ser-vido para eu melhorar.

Por um instante, Julius ficou furioso por ser obrigado a pedir detalhes. Pensaria Philip que ele não queria saber? Seria assim tão desligado? Por fim, desistiu e perguntou: — Quais foram essas duas coisas?

— Bem, a primeira não parece muito importante, mas teve uma cer-ta força. Eu tinha-lhe falado numa das minhas noites típicas: atrair uma mulher, levá-la a jantar, fazer a cena de sedução no meu quarto, seguindo a mesma sequência e com a mesma música para criar ambiente. Lembro-me de lhe perguntar o que pensava da minha noite, se a achava desagradável ou imoral.

— Não me lembro do que respondi.— Disse que não a achava nem desagradável nem imoral, apenas

aborrecida. Tive um choque ao pensar que a minha vida era entediante, monótona.

— Ah, interessante. Essa foi uma coisa. E a outra?— Estávamos a falar em frases tumulares. Não me lembro porquê, mas

acho que falei na frase que escolheria.— É muito provável, pergunto sempre isso quando estou num impasse

e preciso de uma intervenção de impacto. Então?— Bom, sugeriu que o meu epitáfio fosse: “Ele gostava de fornicar” e

que a frase podia servir também para a lápide do meu cão (podia usar a mesma para os dois).

— Duro.— Se o foi ou não, não interessa. O importante é a eficácia e a adequa-

ção. Muito mais tarde, uns dez anos depois, aproveitei isso.— São as intervenções de efeito retardado! Sempre achei que são mais

importantes do que se pensa. E sempre quis estudar isso. Mas voltando aos motivos por que estamos hoje aqui, porque não quis contar isso no nosso último encontro, reconhecer que, apesar de pouco, fui útil para si?

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— Julius, não sei se é importante para o nosso assunto, que é saber se quer ou não ser meu terapeuta supervisor. Em troca, eu seria o seu orienta-dor sobre Schopenhauer.

— O facto de você não achar importante faz com que se torne mais importante. Olhe, não vou usar meias palavras. Eis o que acho, cara a cara: não sei se tem condições para ser terapeuta e por isso não sei se faz sentido essa supervisão.

— Disse se tenho condições? Explique-se melhor, por favor — pediu Philip, sem qualquer sinal de constrangimento.

— Bem, digamos que sempre considerei a psicoterapia mais como uma vocação do que como uma profissão, adequada a pessoas que se interessam e se importam com os outros. Não vejo isso em si. O bom psicanalista quer aliviar o sofrimento, quer ajudar as pessoas a crescerem. Mas, em si, só vejo desdém pelos outros: pense em como dispensou e insultou os seus alunos. O terapeuta tem que interagir com os pacientes, mas, você, pouco se impor-ta com os sentimentos dos outros. Pense na nossa situação. Disse-me que, pelo que lhe contei ao telefone, eu estava com uma doença fatal. Mesmo assim, não me dirigiu uma só palavra de consolo ou de solidariedade.

— Será que iria ajudar se resmungasse uns disparates solidários? Eu dei-lhe mais, muito mais. Preparei e fiz uma palestra inteira para si.

— Agora percebo isso. Mas foi feito de uma forma tão indirecta, Philip, que me senti usado e não acolhido. Teria sido melhor para mim, muito me-lhor, se fosse directo, se tivesse enviado uma mensagem do seu afecto para o meu. Nada de muito grande, talvez só algumas perguntas sobre a minha situação e como me estou a sentir, ou, porra, podia ter dito: “Só lastimo sa-ber que está a morrer.” Seria difícil?

— Se eu estivesse doente, não gostaria de ouvir isso. Teria preferido as ferramentas, as ideias, a visão de Schopenhauer em relação à morte. E foi o que lhe fiz a si.

— Até agora, Philip, nem sequer se incomodou em confirmar se estou com uma doença mortal.

— Eu estava enganado?— Vamos, Philip. Diga tudo, não me vai magoar.— Disse-me que estava com problemas graves de saúde. Pode dizer-

-me um pouco mais?— Muito bem, Philip, começou bem, uma pergunta directa é muito

melhor. — Julius parou para pensar e ver até que ponto podia contar com Philip. — Bem, há poucas semanas soube que estava com um tipo de can-cro de pele chamado melanoma maligno, que é muito perigoso, embora os médicos me garantam que estarei bem durante um ano.

— Ainda tenho mais a certeza que a visão de Schopenhauer dada na

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minha palestra lhe seria muito útil. Lembro-me que, na nossa análise, me disse uma vez que a vida é uma situação temporária que tem uma solução permanente. Isso é Schopenhauer puro.

— Philip, isso foi uma piada.— Bem, nós sabemos o que o seu guru Sigmund Freud pensava a res-

peito de piadas. Continuo a achar que a sabedoria de Schopenhauer tem muita coisa útil para si.

— Não sou seu supervisor, isso ainda está para ser resolvido, mas vou dar-lhe a primeira aula de terapia, grátis. Não são as ideias, nem a visão, nem as ferramentas que realmente interessam na psicanálise. Se, no final de um tratamento, perguntar ao paciente qual foi o processo de análise, do que se lembra ele? Nunca das ideias e sempre do relacionamento com o terapeuta. Raramente se lembram de uma conclusão importante do terapeuta, mas lembram-se do carinho da relação. E arrisco-me a dizer que isso também serve para si. Porque se lembra tão bem de mim e valoriza tanto o que acon-teceu entre nós, a ponto de agora, tantos anos depois, querer que eu seja seu supervisor? Não é por causa daqueles dois comentários que fiz, por mais interessantes que fossem. Não, é por alguma ligação que tem comigo. Acho que deve ter um grande afecto por mim e que o nosso relacionamento, por mais difícil que tenha sido, foi significativo. Por isso está-me a procurar de novo, na esperança de receber algum tipo de afecto.

— Totalmente errado, Dr. Hertzfeld.— Sim, tão errado que a mera menção da palavra “afecto” o faz correr

para trás de títulos formais.— Totalmente errado, Julius. Primeiro, aviso-o para não cometer o erro

de pensar que a sua visão é verdadeira, a res naturalis. E que a sua função é impor essa visão aos outros. O senhor precisa e valoriza os relacionamentos e conclui que eu, ou melhor, toda a gente deve fazer o mesmo, e, se eu dis-cordo, é porque estou a reprimir a minha necessidade de relacionamento.

» É provável que, para uma pessoa como eu, um enfoque filosófico seja muito preferível. A verdade é que nós os dois somos muito diferentes. Eu jamais tive prazer na companhia dos outros, nas parvoíces que dizem, nas exigências que fazem, nos seus esforços insignificantes e efémeros. As suas vidas sem sentido são um aborrecimento e um obstáculo para a mi-nha comunhão com os inúmeros grandes pensadores do mundo com algo importante a dizer.»

— Então, porque quer ser terapeuta? Porque não fica com os grandes pensadores do mundo? Porque se incomoda em oferecer ajuda a essas vi-das sem sentido?

— Se, como Schopenhauer, eu tivesse uma herança para me sustentar, garanto-lhe que não estaria hoje aqui. É só uma questão de necessidade

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financeira. As despesas com os estudos reduziram a minha conta bancária, recebo uma miséria pelas aulas, a faculdade está quase na falência e acho que não me vai renovar o contrato. Preciso de poucos clientes por semana para pagar as minhas despesas, levo uma vida muito sóbria, não preciso de nada, excepto da liberdade de ter o que realmente é importante para mim: ler, pensar, meditar, ouvir música, jogar xadrez e passear com Rugby, o meu cão.

— Ainda não respondeu à minha pergunta: porque me procurou, se é obvio que trabalho de uma maneira completamente diferente da que quer? Também não respondeu à minha hipótese de que algo no nosso relaciona-mento passado o faz procurar-me.

— Não lhe respondi porque se afasta do assunto. Mas, já que parece importante para si, vou continuar a avaliar a sua tese. Não vá pensar que es-tou a questionar a existência de necessidades interpessoais básicas. Schope-nhauer disse que os bípedes – termo dele — precisam de se juntar em volta do lume para se aquecer. Mas alertou quanto ao perigo de se chamuscarem por ficarem muito tempo perto do lume. Ele gostava dos porcos-espinhos, que se encostam para se aquecerem, mas usam os espinhos para manter as distâncias. Schopenhauer valorizava muito o seu isolamento, dependia apenas de si mesmo para ser feliz. Nesse ponto, não estava sozinho, outros grandes homens, como Montaigne, por exemplo, concordavam com essa ideia.

— Eu também temo os bípedes e concordo que o homem feliz é o que consegue evitar quase toda a gente. E como não concordar que os bípedes criam o inferno cá na Terra? Schopenhauer dizia: “Homo homini lúpus”, o homem é o lobo do homem. Tenho a certeza de que ele inspirou o livro Entre Quatro Paredes, de Sartre.

— Certo, Philip. Mas confirma o que eu penso: que não está preparado para trabalhar como terapeuta. A sua visão das coisas não comporta espaço para amizades.

— De cada vez que me aproximo de alguém, acabo por ficar com me-nos para mim. Não tive uma única amizade na idade adulta, nem me preo-cupo em tê-la. Deve lembrar-se que fui uma criança solitária, a minha mãe não se interessava por mim e o meu pai era tão infeliz, que acabou por se matar. Para ser sincero, jamais encontrei uma pessoa com qualquer coisa interessante para me oferecer. Não que não tenha procurado. Cada vez que tentei ser amigo de alguém, tive a mesma experiência que Schopenhauer, que disse só ter encontrado pessoas infelizes, de inteligência limitada, mau coração e más intenções. Falo de pessoas vivas, não de grandes pensadores do passado.

— O Philip conheceu-me.

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— Esse era um relacionamento profissional. Estou a falar em relações sociais.

— Nota-se isso no seu comportamento. Com o desprezo que sente e a incapacidade de se relacionar motivada por esse desprezo, como vai intera-gir com os outros de forma terapêutica?

— Nesse ponto, estamos de acordo: tenho que conseguir relacionar--me socialmente. Schopenhauer disse que, usando um pouco de amizade e afecto, é possível manipular as pessoas do mesmo modo que é preciso aquecer a cera para a usar.

Julius levantou-se, abanando a cabeça. Serviu-se de um café e começou a andar de um lado para o outro. — A cera não é apenas uma má metáfora, é uma das piores metáforas para a psicanálise que já ouvi. Aliás, é a pior. Não está, sem dúvida, a usar a sua inteligência. Nem está a conseguir que eu aprecie o seu amigo e terapeuta Arthur Schopenhauer.

Julius sentou-se de novo, bebeu um sorvo de café e disse: — Não lhe vou perguntar outra vez se quer café, pois concluí que a única coisa que quer é a resposta para a supervisão. Parece muito decidido, Philip, por isso vou ser simpático e ir directamente ao assunto. Sobre a supervisão, decidi que...

Philip, que, durante toda a conversa, evitou olhar para Julius, encarou--o pela primeira vez.

— ... o senhor é muito inteligente, Philip. Sabe muita coisa. Talvez en-contre uma maneira de usar o seu conhecimento na terapia. Talvez acabe por contribuir para ela. Espero que sim. Mas não está preparado para ser um terapeuta. Nem para ter uma supervisão. As suas qualidades, sensibi-lidade e consciência precisam de ser trabalhadas. Mas quero ser-lhe útil. Falhei uma vez e agora tenho outra oportunidade. Consegue ver-me como seu aliado, Philip?

— Respondo à sua pergunta depois de ouvir a sua proposta, que ima-gino vir a seguir.

— Bolas! Está bem, eis a proposta. Eu, Julius Hertzfeld, concordo em ser supervisor de Philip Slate com a única e exclusiva condição de ele fre-quentar o meu grupo de terapia como paciente.

Desta vez, Philip ficou assustado. Não tinha previsto aquela proposta de Julius.

— Está a brincar.— Nem um bocadinho.— Depois de tantos anos a patinar na lama, consegui finalmente orien-

tar a minha vida. Quero sustentar-me como terapeuta e para isso preciso de um supervisor, mais nada. Mas está a oferecer-me o que não quero e não posso pagar.

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— Repito que não está preparado para uma supervisão nem para ser terapeuta, mas acho que essa terapia de grupo pode começar a suprir as suas falhas. São essas as minhas condições. Primeiro, uma terapia de grupo, e só depois faço a sua supervisão.

— Quanto custa a terapia de grupo?— Não muito. Setenta dólares a sessão de noventa minutos. Aliás, pa-

gos mesmo quando não comparecer.— Quantos pacientes há no grupo?— Tento manter uma média de sete.— Sete vezes setenta são quatrocentos e noventa dólares por uma hora

e meia. É um bom negócio. E qual é o objectivo da sua terapia de grupo?— O objectivo? Do que é que estávamos a falar? Olhe, Philip, vou ser cla-

ro: como pode ser terapeuta se não sabe que merda há entre si e os outros?— Não, não. Eu percebi esse objectivo. A minha pergunta foi mal for-

mulada. Nunca fiz terapia de grupo e queria saber como funciona. Que vantagem tenho eu em ouvir as pessoas a falar das suas vidas e dos seus problemas? Só de pensar que nesse coro de infelicidades já me sinto assus-tado, mas, como diz Schopenhauer, é sempre um prazer saber que os outros sofrem mais do que nós.

— Ah, está a pedir-me uma explicação. É pertinente. Informo sempre o paciente que começa sobre o funcionamento deste método de terapia. Todo o terapeuta o deve fazer. Pois vou dizer-lhe. Primeiro, o meu enfoque é o relacionamento entre as pessoas e tenho por hipótese que, se elas estão ali, é por dificuldades em manter relações duradouras.

— Mas não é esse o meu caso. Não quero, nem preciso.— Eu sei, eu sei. Pode rir-se do que eu disse, Philip. Disse apenas que

suponho que existam tais dificuldades, pode concordar ou não. Quanto ao meu objectivo no grupo, serei muito claro: é ajudar cada pessoa a entender o melhor possível como se relaciona com cada um no grupo, inclusive com o terapeuta. Mantenho um enfoque de “aqui e agora”, um conceito essencial para o Philip ter como analista. Por outras palavras, o grupo trabalha sem conotação de tempo. Focamos o agora, não é preciso investigar muito o passado de cada um do grupo. Focamos o presente e o aqui, esqueça o que as pessoas dizem que não correu bem noutros relacionamentos. Acredito que as pessoas têm no grupo o mesmo comportamento que lhes criou pro-blemas na vida. Acredito também que vão usar o que aprenderam dos rela-cionamentos no grupo, nos relacionamentos fora dele. Está claro? Se quiser, posso dar-lhe algumas notas.

— Está claro. Quais são as regras do grupo?— A primeira é discrição absoluta. Não se comenta com ninguém de

fora sobre os integrantes do grupo. Segunda, procurar mostrar-se e ser sin-

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cero nas suas impressões sobre os outros e o que se sente por eles. Terceira: tudo se deve passar dentro do grupo. Se as pessoas têm contacto fora da sessão, isso depois deve ser trazido para o grupo.

— Só assim aceita fazer a minha supervisão?— Só. Se quiser que eu o prepare, é essa a condição.Philip ficou em silêncio, de olhos fechados, a cabeça apoiada nas mãos.

Abriu os olhos e disse: — Vou aceitar a sua ideia apenas se considerar as sessões no grupo como de supervisão.

— Isso é um exagero, Philip. Consegue imaginar o dilema ético que isso me levanta?

— Pode imaginar o dilema em que a sua proposta me coloca? Dar atenção às minhas relações com os outros, quando eu não quero que nin-guém seja nada para mim. Além disso, não disse que, melhorando o meu desempenho social, vou ser um terapeuta mais eficiente?

Julius levantou-se, levou a chávena de café para o lava louça, abanou a cabeça, a pensar no que se tinha metido, e voltou para a sua cadeira. Expi-rou devagar e disse: — Está bem, eu considero as horas de terapia de grupo como sendo de supervisão.

— Outra coisa: não discutimos a logística da minha orientação sobre Schopenhauer.

— Seja como for, teremos de esperar, Philip. Outra recomendação na terapia: evite relacionamentos dúbios com os pacientes, porque interferem no tratamento. Estou a falar de qualquer tipo de relacionamento: amoroso, de negócios e até de professor/aluno. Por isso e por si, prefiro que o nosso relacionamento seja claro e definido. Também por isso, sugiro que come-cemos com o grupo e depois, no futuro, passemos a uma relação de super-visão e, depois ainda, talvez (não estou a prometer) uma orientação sobre filosofia. Embora, de momento, eu não tenha muita vontade de estudar Schopenhauer.

— Mesmo assim, podemos estabelecer uma quantia.— Continua a surpreender-me, Philip. As merdas que o preocupam! E

as que não preocupam.— Mesmo assim, quanto cobrar?— Costumo cobrar pela supervisão o mesmo que pela análise indivi-

dual, com desconto para estudantes que estão no começo.— Certo — disse Philip, concordando com a cabeça.— Espere aí, Philip. Quero ter a certeza de que me ouviu dizer que essa

orientação sobre Schopenhauer não é muito importante para mim. Quan-do falámos nisso pela primeira vez, eu apenas demonstrei um certo interes-se em saber como o filósofo o tinha ajudado tanto. O Philip foi em frente e pensou que tínhamos combinado uma coisa.

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— Espero aumentar o seu interesse pelo trabalho dele. Ele tinha muito a dizer sobre a nossa área. E antecipou Freud em muitas coisas, que usou todo o trabalho dele sem sequer o reconhecer.

— Vou ficar atento, mas repito: grande parte do que disse não aumenta o meu interesse em conhecer melhor o trabalho dele.

— Inclusive o que eu disse na palestra sobre a sua visão da morte?— Principalmente. Pensar que um dia me juntarei a uma vaga e etérea

força universal não me traz qualquer consolo. Se a consciência não per-manece, que consolo há? Do mesmo modo, pouco me consola saber que as moléculas do meu corpo se dispersarão no espaço e que o meu ADN acabará a fazer parte de uma qualquer outra forma de vida.

— Gostaria que lêssemos juntos os seus ensaios sobre a morte e sobre a permanência do ser. Se fizermos isso, tenho a certeza que...

— Agora não, Philip. De momento, estou mais interessado em viver o mais plenamente possível e não em pensar na morte. É só isso.

— A morte está sempre presente, é o horizonte de todas as preocu-pações. Sócrates foi bastante claro: “Para aprender a viver bem, é preciso aprender a morrer bem.” E Séneca: “Só quem aceita a morte e está pronto para morrer pode sentir o verdadeiro sabor da vida.”

— Sim, sim, conheço essas frases. Pode ser que, no fundo, sejam ver-dade. E não tenho qualquer problema em juntar a sabedoria da filosofia à psicoterapia. Sou inteiramente a favor. Sei também que Schopenhauer lhe foi útil a si de várias maneiras. Mas não em todas: talvez precise de ajuda e é nesse ponto que entra o grupo. Espero-o aqui na sua primeira sessão, segunda-feira às quatro e meia.

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Na infância, o aparelho sexual ainda está inactivo, enquanto o cé-rebro funciona plenamente; por isso, essa é a época da inocência e da felicidade, o paraíso perdido do qual sentimos falta pelo resto da vida.

OS ANOS MAIS FELIZES DA VIDA DE ARTHUR

Quando Arthur fez nove anos, o pai concluiu que estava na altura de tratar da educação do rapaz. O primeiro passo foi mandá-lo passar dois anos no porto francês do Havre, em casa de um colega de negócios, Gregories de Blesimaire. Aí, Arthur teve de aprender francês, à vontade social e, como disse Heinrich, “escolarizar-se nos livros do mundo”.

Uma criança expulsa de casa, separada dos pais aos nove anos? Quan-tas crianças não consideraram esse exílio como um marco dramático na vida? Porém, mais tarde, Arthur considerou esses dois anos como “os mais felizes da sua infância”.

Algo importante ocorreu no Havre: talvez pela única vez na vida Ar-thur se sentiu amado e gostou de viver. Passou anos a lembrar-se com pra-zer do simpático casal Blesimaire, com o qual conheceu qualquer coisa pa-recida com o amor de pai e mãe. As cartas que escreveu para casa elogiavam tanto o casal que a mãe de Arthur precisou de lhe lembrar as qualidades e a generosidade do pai: “Não te esqueças que o teu pai te deixou comprar aquela flauta de marfim que custou uma moeda de ouro.”

Outro facto importante durante a estadia no Havre foi que Arthur ar-ranjou um amigo, um dos poucos que teve na vida. Anthime, filho dos Ble-simaire, era da mesma idade, e os dois aproximaram-se e trocaram algumas cartas depois de Arthur voltar para Hamburgo.

Anos mais tarde, quando tinham vinte anos, reencontraram-se e saí-ram algumas vezes em busca de aventuras amorosas. Depois, os caminhos e interesses mudaram. Anthime tornou-se comerciante e desapareceu da

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vida de Arthur durante trinta anos, quando se voltaram a corresponder. Ar-thur queria conselhos sobre finanças e Anthime respondeu-lhe que poderia administrar os bens do amigo em troca de algum pagamento, mas Arthur, de repente, deixou de escrever. À época, ele suspeitava de toda a gente, não confiava em ninguém. Pôs de lado a carta de Anthime e escreveu nas costas do envelope uma frase cínica de Graciano, filósofo espanhol que o pai ad-mirava muito: “Entra nos negócios do outro para tratar dos seus.”

Arthur e Anthime viram-se pela última vez dez anos depois, num estranho encontro em que não conseguiram arranjar muito de que falar. Arthur disse que o seu amigo de tantos anos se tornara “um velho insupor-tável” e escreveu no diário que “o encontro de dois amigos após uma vida inteira é um desapontamento com a própria vida”.

A estadia no Havre foi marcada por outro facto: Arthur foi apresenta-do à morte. Enquanto morava em França, um colega de infância, Gottfried Janish, faleceu em Hamburgo. Embora Arthur parecesse não se ter pertur-bado e dissesse que nunca mais tinha pensado no colega, parece que jamais se esqueceu dele, nem do choque do seu primeiro contacto com a morte, pois trinta anos depois anotou no diário um sonho que teve: “Eu estava num país desconhecido, havia um grupo de homens num campo e um de-les, alto e esguio, não sei porquê apresentou-se como sendo Gottfried Janish e deu-me as boas vindas.”

Arthur não teve muita dificuldade em interpretar o sonho. Na época, morava em Berlim, onde havia uma epidemia de cólera. Assim, resolveu escapar à morte saindo imediatamente de Berlim. Foi para Frankfurt e lá viveu trinta anos, principalmente por considerar que a cidade não poderia ser atingida pela doença.

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A maior sabedoria é ter o presente como o objecto maior da vida, pois este é a única realidade, tudo o mais é imaginação. Mas poderí-amos também considerar isso a nossa maior maluquice, pois aquilo que existe só por um instante e desaparece, não merece um esforço sério.

PRIMEIRA SESSÃO DE PHILIP NO GRUPO

Philip chegou quinze minutos adiantado para a primeira sessão de terapia de grupo, usando a mesma roupa dos dois encontros com Julius: a amachu-cada e desbotada camisa de xadrez, as calças de caqui e o casaco de veludo. Impressionado com a indiferença de Philip por roupa, pelos móveis de es-critório e pela plateia de estudantes, ou, aparentemente, por qualquer pessoa com quem se relacionasse, Julius mais uma vez pôs em dúvida a sua ideia de o convidar para participar no grupo. Terá sido uma avaliação profissional correcta ou era a velha ousadia descarada a mostrar a carantonha outra vez?

Ousadia descarada, que em yiddish era chutzpah, palavra sem corres-pondência exacta noutras línguas, mas bem definida na história do rapaz que matou os pais e depois pediu clemência aos jurados por ser órfão. Julius lembrava-se sempre dessa palavra quando pensava em como enfrentava a vida. Talvez ele estivesse com chutzpah desde que nasceu, mas resolveu adoptar esse comportamento no Outono em que fez quinze anos e se mu-dou com os pais do Bronx, em Nova Iorque, para Washington, D.C.. O pai sofreu um revés financeiro e instalou a família no noroeste da cidade, numa das pequenas casas iguais da Farragut Street. As dificuldades financeiras paternas não eram para ser comentadas, mas Julius sabia que estavam rela-cionadas com as pistas de corridas de Aqueduct e com uma égua chamada She’s All That, que o pai tinha em sociedade com Vic Vicello, um dos seus parceiros de póquer. Vic era um indivíduo difícil de definir, que usava lenci-

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nho rosa choque no bolso do casaco desportivo amarelo e não entrava em casa deles se a mãe lá estivesse.

O novo emprego do pai era como gerente de uma loja de bebidas que pertencera a um primo, que tinha morrido do coração aos quarenta e cinco anos (coração, esse inimigo soturno, que tinha lesado ou matado uma ge-ração inteira de judeus asquenazitas cinquentões, criados com creme azedo e fatias de carne do peito). O pai detestava o novo emprego, mas conseguiu manter as contas da família em dia; para além de o salário ser bom, as lon-gas horas de funcionamento da loja mantinham-no longe de Laurel e de Pimplico, as pistas de corridas mais próximas.

Em Setembro de 1955, no seu primeiro dia na escola Roosevelt High, Julius tomou uma grande decisão: ia reinventar-se. ninguém o conhecia em Washington, era uma alma livre e sem passado. Os três anos que passou na Public School 1.126, no Bronx, não eram motivo de orgulho para ninguém. Jogar era muito mais interessante do que as outras actividades escolares, pelo que ele passava as tardes todas na pista de bowling a receber apostas nele ou no seu parceiro Marty Geller, grande jogador canhoto. Julius man-tinha também um pequeno posto onde aceitava apostas de dez para um a quem marcasse três jogadores de basebol que fizessem seis lances no dia que o apostador escolhesse. Fosse qual fosse o nome que os otários esco-lhessem (Mantle, Kaline, Aaron, Vernon ou Stan “the Man” Musial, acerta-vam no máximo uma em cada vinte ou trinta apostas. Julius andava com valentões da mesma laia, ganhou fama de brigão na rua, para intimidar pro-váveis caloteiros; nas aulas, fazia-se passar por burro, porque gostava disso, e faltava a muitas aulas à tarde para ir ver Mantle jogar no campo do Yankee Stadium.

Tudo mudou no dia em que os pais foram chamados ao director, que lhes apresentou o livrinho de apostas que Julius procurava sem descanso havia dois dias. O castigo foi duro: não sair à noite durante dois meses, não ir ao bowling nem ao Yankee Stadium, não praticar desporto depois das aulas, ficar sem mesada. Julius reparou que o pai não estava a dar muita importância ao facto, estava era intrigado com o facto de três jogadores acertarem seis lances. Apesar de tudo, Julius gostou do director e ficou tão assustado por ser considerado mau aluno, que resolveu emendar-se. Mas como isso era querer demais, o máximo que conseguiu foi chegar ao dez, o que já era uma melhoria. Não conseguiu fazer novos amigos: estava preso ao papel que lhe tinham destinado e ninguém conseguia ver nele o rapaz que tinha decidido ser.

Por causa disso, mais tarde Julius teve uma estranha sensibilidade para com o fenómeno do papel que se destinou: viu muitos pacientes mudarem completamente, mas continuarem a ser vistos da mesma maneira pelo gru-

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po. Isto também ocorre nas famílias. Muitos pacientes passavam por maus bocados ao irem a casa dos pais: tinham de ficar atentos para não serem atirados para o velho papel que as famílias lhes tinham reservado e preci-savam de muito esforço e energia para convencer os pais de que realmente tinham mudado.

O grande teste de Julius na reinvenção de si mesmo começou com a mudança de família. Aquele primeiro dia de aulas em Washington, D.C., de-correu numa suave manhã de Verão. Julius pisou o chão coberto de folhas de plátanos e entrou pela porta da frente da Roosevelt High pensando num bom plano de mudança. Reparou nos cartazes do lado de fora do auditório que anunciavam os candidatos a presidente da associação de estudantes e teve uma boa ideia. Antes mesmo de saber onde ficavam os sanitários dos rapazes, já ele se tinha candidatado.

O candidatar-se foi uma jogada ambiciosa, mais do que isso, foi como querer sair da fossa apostando nos incompetentes jogadores de basebol do Washington Senators, equipa que pertencia ao avarento Clark Griffith. Ju-lius não sabia nada sobre a escola e não conhecia um único colega de turma. Ter-se-ia o velho Julius do Bronx candidatado? De modo nenhum. Mas era por isso mesmo, exactamente por isso, que o novo Julius aceitou o desafio. O que poderia acontecer de pior? O seu nome estaria lá e todos reconhe-ceriam Julius Hertzfeld como uma força, um líder potencial, um tipo em quem se pensar. Além do mais, adorava provocar agitação.

Claro que os adversários o iriam rejeitar, como uma piada de mau gos-to, um mosquito, um desconhecido, um nada. Sabendo que essas críticas iriam ser feitas, Julius preparou-se e pensou em argumentar que um recém-chegado podia descortinar erros invisíveis para aqueles que estão muito de perto. Ele tinha a vantagem da boa lábia, aperfeiçoada em muitas horas de pistas de bowling e a convencer os tansos nos jogos. O novo Julius não ti-nha nada a perder e, destemido, procurou os grupinhos de alunos para se apresentar: — Olá, sou Julius, novo na zona, espero que votem em mim para presidente da associação de estudantes. Não percebo nada de políti-ca estudantil, mas por vezes uma visão nova é a melhor visão. Além disso, sou totalmente independente, nem sequer tenho equipa, pois não conheço ninguém.

O facto é que Julius não só se reinventou, mas venceu as eleições. A Ro-osevelt High tinha uma equipa de futebol que perdeu dezoito jogos segui-dos e uma equipa de basquetebol quase tão má como isso; portanto, estava desmoralizada. Os outros dois candidatos podiam ser derrotados: Catheri-ne Schumann, a inteligente filha de um pastor baixinho e de cara comprida, que iniciava a reza antes de cada assembleia da escola, era afectada e impo-pular. Já Richard Heishman, era bonito, de cabelo ruivo e pescoço vermelho,

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defesa central da equipa de futebol, mas com alguns inimigos. Julius liderou os votos da oposição. Além disso, para sua própria surpresa, foi de imediato apoiado por todos os alunos judeus, que eram trinta por cento da escola e, até então, tinham mantido uma participação discreta e apolítica. Estes ado-raram-no com aquele amor que os tímidos, indecisos e indiscretos judeus que viviam abaixo da linha divisória Mason-Dixon tinham pelos decididos e arrojados judeus de Nova Iorque.

A eleição foi a viragem na vida de Julius. Foi tão recompensado pelo atrevimento, que reformulou toda a sua identidade com base no puro chut-zpah. Passou a ser disputado pelas três fraternidades judaicas da escola, que o consideravam um tipo com coragem e personalidade, o indefinível San-to Graal da adolescência. Em pouco tempo, estava rodeado de colegas no café e, depois da escola, era visto de mão dada com a encantadora Miriam Kaye, editora do jornal da escola e única aluna com inteligência suficiente para competir com Catherine Schumann como oradora oficial no fim do ano. Julius e Miriam tornaram-se inseparáveis. Ela apresentou-o à arte e à estética, e ele nunca conseguiu fazer com que ela entendesse o alto nível de dramatismo contido num lance de bowling ou de basebol.

Sim, ele foi longe, graças ao chutzpah. Julius continuava ousado, orgu-lhava-se disso e, mais tarde, gostava de ser definido como um sujeito original, um independente, o terapeuta que tinha coragem de aceitar pacientes que tinham derrotado outros terapeutas. Mas o chutzpah tinha o seu lado mau: a megalomania. Julius errou algumas vezes ao querer fazer mais do que podia ser feito, pedindo a pacientes que mudassem mais do que podiam, ou dei-xando outros numa longa terapia que acabava por não dar resultado.

Portanto, terá sido por compaixão ou por simples insistência clínica que considerou ser ainda possível recuperar Philip? Ou foi por muito chut-zpah? Sinceramente, não sabia. Ao conduzir Philip para a sala de terapia de grupo, lançou um longo olhar ao seu relutante paciente. Philip estava com o cabelo castanho-claro penteado para trás, sem risco, a pele tensa nas maçãs salientes, os olhos atentos, o andar pesado como se estivesse a ser levado para o cadafalso.

Julius sentiu uma onda de compaixão e ofereceu consolo com a voz mais suave e reconfortante que conseguiu: — Sabe, Philip, os grupos de te-rapia são muito complexos, mas têm uma característica inteiramente pre-visível.

Se Julius esperava uma pergunta sobre qual era essa característica in-teiramente previsível, não mostrou sinais de desapontamento com o silên-cio de Philip. Continuou a falar como se o outro tivesse demonstrado a esperada curiosidade. — É que a primeira sessão num grupo de terapia é mais agradável e mais acolhedora do que os novos integrantes esperam.

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— Estou bem, Julius,— Então, guarde apenas o que eu lhe disse e consulte-o no caso de

ficar nervoso.Philip parou à porta do escritório onde ele e Julius tinham estado uns

dias antes, mas Julius tocou-lhe no braço e conduziu-o pelo corredor até à porta seguinte, que dava para uma sala com três paredes cobertas de estan-tes, do chão ao tecto. Na quarta parede, três janelas com caixilhos de madei-ra abriam-se para um jardim japonês com pinheiros anões, dois montes de pequenos seixos e um lago estreito de dois metros de comprimento, onde deslizavam carpas douradas. Os móveis da sala eram simples e funcionais: apenas uma pequena mesa ao lado da porta e sete confortáveis cadeiras de vime dispostas em círculo, com mais duas de reserva, nos cantos.

— Chegámos. Esta é a sala da minha biblioteca e do grupo. Enquanto esperamos pelos outros, vou dar-lhe as coordenadas de funcionamento da casa. Às segundas-feiras, destranco a porta da frente uns dez minutos antes da hora da sessão, e as pessoas entram para esta sala. Chego às quatro e meia e começamos, terminando às seis. Para facilitar o controle, o pagamento é feito no fim de cada sessão; basta deixar um cheque na mesa ao lado da porta. Alguma dúvida?

Philip abanou a cabeça e olhou para a sala, respirando fundo. Foi di-reito às estantes, enfiou o nariz junto dos livros encadernados a couro e respirou outra vez, demonstrando grande prazer. Continuou aí e percorreu, atento, os títulos

Logo a seguir, chegaram cinco pessoas e cada uma olhou para as costas de Philip antes de se sentar. Apesar da agitação que causaram, Philip não voltou a cabeça. Nem interrompeu a tarefa de examinar os livros de Julius.

Nos seus mais de trinta e cinco anos de terapeuta de grupos, Julius tinha visto chegar muita gente. A situação era previsível: o novo integrante está bastante apreensivo e comporta-se de maneira respeitosa com os ou-tros, que lhe dão as boas vindas e se apresentam. De vez em quando, num grupo recém-constituído, alguns enganam-se, pensando que os benefícios da terapia são directamente proporcionais à atenção que recebem do tera-peuta, podendo haver uma certa má vontade com novos contactos. Mas em grupos já formados, as pessoas são simpáticas: acham que o grupo comple-to é bom para a eficácia da terapia.

Por vezes, o recém-chegado entra directamente na discussão, mas, em geral, fica em silêncio durante quase toda a primeira sessão, enquanto tenta descobrir quais são as regras, e espera que alguém o convide a participar. Mas um novo membro tão indiferente, que fica de costas e ignora os ou-tros? Julius nunca tinha visto uma coisa daquelas. Nem em grupos de pa-cientes psicóticos, na enfermaria de psiquiatria.

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“Sem dúvida” pensou Julius, “tinha sido disparate trazer Philip para o grupo.” Naquela sessão, tinha de falar do seu cancro, o que era mais que suficiente para a agenda do dia. Sentiu um peso por ter de se preocupar com Philip.

“O que se estaria a passar com Philip? Estaria apenas a morrer de medo e tímido? Não, devia estar irritado com a minha insistência em fazer terapia e, no seu estilo passivo-agressivo, estava a mandar o grupo e a mim à merda. Deus do Céu! Gostaria de o pendurar num arame da roupa, a secar. Não fazer nada. Deixá-lo afundar-se ou que nade. Seria um prazer sentar-se e apreciar o ataque feroz que o grupo certamente lhe iria fazer.”

Julius não costumava reter o final das piadas, mas lembrou-se de uma que ouvira uns anos antes. Um filho diz para a mãe — Hoje não quero ir à escola.

— Porquê? — pergunta a mãe.— Porque detesto os alunos e eles detestam-me a mim.— Pois tens de ir por dois motivos — diz a mãe —, primeiro, tens qua-

renta e cinco anos, e segundo, és o director da escola.Sim. Julius era adulto. E o terapeuta do grupo. O seu trabalho consis-

tia em integrar os novos membros, protegê-los dos outros e deles próprios. Nunca era o primeiro a falar numa sessão, preferia incentivar os integrantes a isso, mas naquele dia não tinha escolha.

— Quatro e meia, vamos começar. Philip, sente-se numa cadeira. — Philip virou-se para olhar para ele, mas fez menção de não se sentar em lado nenhum. “Se calhar ficou surdo”, pensou Julius. “Será que o tipo é um idiota social?” Só depois de Julius fazer sinais enfáticos com os olhos indicando-lhe uma cadeira vazia, Philip se sentou.

Então Julius disse-lhe: — Este é o nosso grupo. Falta uma pessoa, Pam, que está de viagem durante dois meses. — Voltando-se para o grupo, in-formou: — Comentei há algumas sessões que talvez trouxesse uma pessoa nova. Estive com Philip na semana passada e ele começa hoje. (“Claro que começa hoje”, pensou Julius. “Estúpido, comentário estúpido. Pronto, chega de levar o outro pela mão. Ele que se afunde ou que nade.”)

Nesse momento, entrou na sala Stuart, correndo da do serviço de pediatria do hospital, ainda de bata branca, resmungou uma desculpa e afundou-se numa cadeira. Então olharam todos para Philip e quatro pes-soas apresentaram-se e deram-lhe as boas-vindas: — Chamo-me Rebecca. Tony. Bonnie. Stuart. Olá. Prazer em conhecê-lo. Seja bem-vindo. É bom que esteja aqui connosco. Precisamos de sangue novo, quer dizer, de novas contribuições.

O integrante que ficou por falar era um rapaz bonito, com a cabeça precocemente calva e um halo de cabelo castanho-claro no alto, um corpo

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forte de árbitro de futebol de meia-idade que, numa voz calma, disse: — Olá, o meu nome é Gill. Espero, Philip, que não pense que o estou a ignorar, mas hoje preciso muito de falar. Nunca precisei tanto do grupo como agora.

Nenhuma reacção de Philip.— De acordo, Philip?Assustado, Philip arregalou os olhos e concordou com a cabeça.Gill virou-se para os rostos familiares do grupo e começou: — acon-

teceram muitas coisas e tudo culminou esta manhã, depois de uma sessão com o psicanalista da minha mulher. Nas últimas semanas, contei-vos que o analista de Rose lhe deu um livro sobre abusos sexuais de crianças e ela convenceu-se que foi vítima de abuso quando era pequena. Isso transfor-mou-se numa ideia fixa dentro da cabeça dela, como é que se diz, uma ideia fixada? Perguntou Gill a Julius.

— Uma idée fixe — interveio Philip, com uma perfeita pronúncia francesa.

— É isso, obrigado — disse Gill, que deu uma olhadela para Philip e acrescentou, baixo: — Bolas, essa foi rápida — e, voltou à sua história. — Bem, Rose tem a ideia fixa de que, quando pequena, foi molestada pelo pai. Não consegue pensar noutra coisa. Ela lembra-se de algum abuso sexu-al? Não. Tem alguma testemunha? Não. Mas o analista acha que, se ela está deprimida, com medo de sexo, tem lapsos de atenção e emoções descon-troladas, principalmente raiva dos homens, então foi vítima de abuso. É o que diz o maldito livro. E o analista jura que é isso mesmo. Assim, há meses, como já contei até enjoar, não falamos noutra coisa. A psicanálise da minha mulher é a nossa vida. Não há espaço para mais nada. Não há outro assunto. A nossa vida sexual está morta e enterrada. Nada. É para esquecer. Há duas semanas, pediu-me para ligar para o pai, pois não fala com ele, e convidá-lo para uma sessão de análise. Queria que eu também fosse, por protecção, conforme disse.

»Então liguei e ele concordou de imediato. Ontem, apanhou um au-tocarro em Portland e apareceu na sessão de hoje com uma maleta coçada na mão, uma vez que depois voltava directamente para a gare rodoviária. A sessão foi um desastre. Um horror. Rose descarregou simplesmente tudo no pai, sem parar. Sem limites, sem uma palavra de agradecimento por o velho ter viajado centenas de quilómetros por causa dela e dos seus noventa mi-nutos de sessão. Acusou-o de tudo, de convidar os vizinhos, os parceiros de póquer, os colegas de trabalho no Corpo de Bombeiros (ele foi bombeiro), para fazerem sexo com ela, quando criança.»

— Qual a reacção do pai? — perguntou Rebecca, uma mulher alta e esguia, de quarenta anos, muito bonita, que estava inclinada para a frente, ouvindo, atenta, o relato de Gill.

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— Foi equilibrado e sensato. É um óptimo sujeito, de uns setenta anos, simpático, carinhoso. Foi a primeira vez que o vi. Ele foi incrível, bolas, gostaria de ter um pai assim. limitou-se a ficar ali sentado, ouvindo, e disse a Rose que, se ela estava com tanta raiva, seria melhor deitá-la para fora. Negou, calmo, todas as loucas acusações e supôs (acho que tinha razão) que ela lhe tinha raiva porque abandonou a família quando Rose tinha doze anos. Disse que a raiva fora adubada (palavra dele, que tem hoje uma quinta) pela mãe, que, desde pequena, tinha envenenado a cabeça da filha contra ele. Disse que teve que acabar com o casamento, estava deprimido com a vida que levava com a mulher e teria morrido se continuasse lá. Vou-vos dizer uma coisa, conheço a mãe de Rose e ele acertou. Acertou em cheio.

»Então — continuou Gill —, no final da sessão ele pediu-me boleia até À gare rodoviária e, antes de eu responder, Rose disse que não se sentia segura ao entrar no mesmo carro que ele. “Percebi”, disse ele, e foi-se embora com a maleta.

»Bem, dez minutos depois, Rose e eu passávamos de carro pela Ma-rket Street e vi aquele velho grisalho e curvado, com uma mala. Estava a começar a chover, e pensei: “Que porcaria.” Perdi a calma e disse a Rose que ele viera de Portland por causa dela, para a sessão de análise dela, estava a chover e, possa, eu ia levá-lo à gare rodoviária. Parei junto ao passeio e ofereci-lhe boleia. Rose fuzilou-me com os olhos e disse que, se ele entrasse, saía ela. Mandei-a fazer o que muito bem entendesse. Indiquei-lhe a loja da Starbucks e disse-lhe para esperar lá por mim, que eu voltava logo a seguir. Ela saiu, irritada, e, cinco horas depois, ainda não tinha aparecido na Starbu-cks. Fui de carro para o Golden Gate Park e fiquei a andar sem parar. Estou a pensar em nunca mais voltar para casa.»

Depois de dizer isto, Gill recostou-se na cadeira, exausto.Todo o grupo (Tony, Rebecca, Bonnie e Stuart) aprovou em coro. —

Muito bem, Gill... já era altura... Safa, conseguiu... Fez muito bem. — E Tony acrescentou: — É difícil expressar a alegria que sinto por você se livrar dessa cabra. — E Bonnie: — Se precisar de um sítio para dormir, tenho um quarto vago — disse, nervosa, passando a mão pelos cabelos castanhos e crespos e ajustando os óculos de armação amarela. — Não se preocupe, sou muito mais velha que você e a minha filha está em casa — acrescentou, com uma pequena gargalhada.

Julius não estava satisfeito com a pressão que o grupo estava a exercer, tinha visto vários pacientes saírem de grupos por medo de desapontar os restantes. Assim, fez a sua primeira intervenção: — Está a receber bastante apoio, Gill. Como se está a sentir?

— Óptimo. Muito bem, mesmo. Só que não quero desapontar as pes-

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soas. Está a ir tudo tão depressa, aconteceu esta manhã, estou confuso, não sei o que vou fazer.

— Quer dizer que não quer substituir as exigências da sua mulher pe-las exigências do grupo — disse Julius.

— Sim, acho que sim. Percebo o que quer dizer. Certo. Mas é uma coisa confusa, eu preciso, preciso mesmo desse apoio, obrigado, preciso de ajuda, isto pode ser uma mudança na minha vida. Toda a gente falou, menos o Julius. E, claro, o novo colega de grupo. Chama-se Philip, não é?

Philip concordou.— Philip, sei que não conhece o meu caso. — Gill voltou-se, para en-

carar Julius — Mas o senhor conhece. O que acha? O que acha que eu devia fazer?

Sem querer, Julius encolheu-se e esperou que ninguém tivesse percebi-do. Como quase todos os terapeutas, detestava aquela pergunta, a maldita “o que faço, o que não faço”. Tinha percebido que ia ser feita.

— Gill, não vai gostar da minha resposta. Não lhe posso dizer o que fazer: essa é uma decisão sua, e não minha. Um dos motivos para estar neste grupo é aprender a confiar na sua própria avaliação. Outro motivo para a minha resposta é que só sei de Rose e do seu casamento através daquilo que me diz. E é difícil não me dar uma informação tendenciosa. A única coisa que posso fazer é ajudá-lo a ver como contribuir para a vida que tem. Não podemos entender ou mudar Rose, aqui quem importa é você, os seus sen-timentos, o seu comportamento, porque é isso que você pode mudar.

Fez-se silêncio. Julius tinha razão: Gill não gostou da resposta. Nem o resto do grupo.

Rebecca tirou os dois ganchos e abanou os longos cabelos negros, an-tes de os prender de novo e quebrar o silêncio, dirigindo-se a Philip: — É novo aqui, não sabe tudo o que sabemos. Mas, por vezes, da boca de um bebé recém-nascido...

Philip ficou quieto. Não se conseguia saber sequer se tinha ouvido o que fora dito.

— Tem algum comentário a fazer sobre isto, Philip? — perguntou Tony numa voz suave, o que não era costume nele. Tony era moreno, tinha muitas marcas de acne no rosto e um corpo esguio e atlético, valorizado pela T-shirt preta dos San Francisco Giants e pelos jeans apertadas.

— Tenho uma observação e um conselho — disse Philip, com as mãos entrelaçadas, a cabeça para trás e os olhos no tecto da sala. — Nietzsche escreveu uma vez que a maior diferença entre o homem e a vaca era que a vaca sabia como existir, como viver sem angústia (isto é, sem medo) no bendito presente, sem o peso do passado e a preocupação com os horrores do futuro. Mas nós, infelizes humanos, somos tão perseguidos pelo passado

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e pelo futuro, que só podemos passar rapidamente pelo presente. Sabe por-que sentimos tanta saudade da maravilhosa infância? Segundo Nietzsche, porque foi a única época despreocupada, ou seja, sem preocupações, antes de termos recordações tristes e graves do lixo do passado. Permita-me que acrescente uma coisa: estou a falar num ensaio de Nietzsche, mas essa ideia não era dele. Como tantas outras, Nietzsche tirou-a de Schopenhauer.

Fez uma pausa. Caiu um pesado silêncio sobre o grupo. Julius mexeu-se na cadeira. “Ah, merda, eu devia estar louco quando resolvi trazer este sujeito para cá. Foi a pior e a mais estranha forma que já vi de um paciente entrar num grupo”, pensou.

Bonnie quebrou o silêncio. Olhando directamente para Philip, disse: — Muito interessante, Philip. Sei que vivo a lamentar a infância perdida, mas nunca percebi que esta parece livre e maravilhosa porque não tem o peso do passado. Obrigada, não vou me esquecer disso.

— Nem eu. Muito interessante. Mas disse que tinha um conselho para mim? — perguntou Gill.

— Tenho, é o seguinte. — Philip falava sem alterar a voz e sem olhar ainda para ninguém. — A sua mulher é uma daquelas pessoas particular-mente incapazes de viver no presente, porque está sobrecarregada de pas-sado. É um navio a afundar-se. Aconselho-o a saltar do navio e afastar-se a nado. A sua mulher vai causar uma onda enorme, quando se afundar, por isso, sugiro que nade o mais rapidamente e para o mais longe que puder.

Silêncio. O grupo parecia pasmado.— Safa, ninguém o pode acusar de não replicar. Perguntei-lhe uma

coisa, respondeu. Obrigado, gostei muito. Seja bem-vindo ao grupo. Qual-quer outro comentário que tenha, quero ouvi-lo — disse Gill.

— Bom — disse Philip, continuando a olhar para o tecto. — Nesse caso, vou acrescentar uma coisa. Kierkegaard dizia que algumas pessoas têm du-plo desespero, isto é, estão desesperadas, mas nem o sabem. Você deve estar nesse desespero duplo. Quero dizer o seguinte: grande parte do sofrimento duma pessoa vem por sentir desejo, realizá-lo, ter um instante de saciedade que logo se transforma em tédio e, por sua vez, é interrompido pelo surgi-mento de outro desejo. Schopenhauer considerava que era essa a condição humana universal: desejar, saciar-se, entediar-se e desejar outra vez.

»Voltando a si: não sei se já pensou nesse ciclo de desejos sem-fim. talvez esteja tão preocupado com os desejos da sua mulher que não vê os próprios, não? Não foi por isso que as pessoas o cumprimentaram hoje, aqui? Não foi por finalmente não se querer definir pelos desejos dela? Por outras palavras, pergunto se não adiou ou fez o que precisava de fazer em si, por estar preocupado em atender os desejos dela?»

Gill ouviu, boquiaberto, de olhar fixo em Philip. — Profundo. Isso que

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disse tem algo de profundo e importante, essa ideia do desespero duplo, mas não estou a perceber muito bem.

Todos olhavam para Philip, que continuava a só ter olhos para o tecto. Rebecca acabou de colocar os ganchos no cabelo e perguntou: — Philip, disse que a terapia de Gill só vai começar quando ele se livrar da mulher?

E Tony: — Ou a relação impede que ele veja como está tramado? Sei disso pela minha relação com a terapia. Esta semana, concluí que fico tão preocupado por me envergonhar de ser carpinteiro, operário, ganhar pou-co, ser rejeitado, que não trato do verdadeiro problema que deveria estar aqui a tratar.

Julius observou, perplexo, o grupo sedento das palavras de Philip, con-cordando. Apercebeu-se de uma vontade de competir a surgir dentro de si, mas conteve-se dizendo para si mesmo que as metas do grupo estavam a ser atingidas. Calma, Julius, o grupo precisa de ti. Não te vão deixar para ficarem com Philip. É óptimo o que está a acontecer aqui, eles estão a assi-milar o novo membro e também a levantar temas para futuras sessões.

Tinha pensado em falar, naquele dia, sobre a sua doença. De certa for-ma, era obrigado a isso, pois já tinha falado do melanoma com Philip e, para não dar a impressão de uma relação especial com ele, tinha de avisar o grupo. Mas foi tomado por outros assuntos. Primeiro, pela urgência de Gill falar, e depois, pela total fascinação do grupo por Philip. Faltavam dez minutos para a sessão terminar. Não havia tempo. Resolveu que começaria a próxima sessão com a má notícia. Ficou em silêncio e deixou correr o relógio.