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Para uma pedagogia da mensagem da morte: a produção artística dos séculos XIV aoXVII

Autor(es): Eusébio, Fátima

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

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MÁTHESIS 8 1999273-296

PARA UMA PEDAGOGIA DA MENSAGEM DA MORTE: A PRODUÇÃO ARTÍSTICA DOS

SÉCULOS XIV AO XVII

FÁTIMA EUSÉBIO

A conSClenCla do potencial pedagógico da produção artística determinou que as esferas política, religiosa e cultural intentassem a sua instrumentalização em prol da transmissão e afIrmação dos seus princípios orientadores. Esta subserviência artística tem particular evidência no âmbito da temática da morte, relativamente à qual, através de uma iconografIa controlada se preconizou a divulgação das atitudes do Homem perante este fenómeno e do pensamento escatológico defendido pela Igreja. A imagem, na sua função didáctica e catequética, mais do que estética, revelava-se um meio privilegiado de comunicação com as massas, maioritariamente analfabetas e carentes de um signifIcado orientador relativamente a este destino implacável.

Em múltiplas obras, particularmente de escultura, pintura e iluminura, presenciamos o domínio da iconografIa da morte através de alegorias, símbolos e temáticas diversas, veiculando as concepções coevas e constituindo-se como enquadramento do pensamento e conduta do Homem. Na generalidade, a descodificação das representações correspondia aos preceitos bíblicos, pelo que para a sua compreensão "é de teologia mais do que de sociologia ou de economia que devemos, por consequência, informar-nos"!.

Desde os tempos medievais ao período barroco a morte marca presença ao nível da produção artística, de forma implícita ou explícita, pelo que intentamos proceder à sua leitura em apenas alguns dos múltiplos espécimes existentes, com particular incidência na sua componente significante.

A presença desta temática na arte, particularmente nos séculos XIV ao XVII, resulta de um contexto de contacto permanente e directo do Homem com esta realidade. A Idade Média e a Época Moderna foram períodos cujo ritmo demográfIco se qualificava por

1 DUBY, Georges (1980) 101.

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uma grande instabilidade alicerçada em altas taxas de mortalidade e uma curta esperança de vida, mercê de múltiplos factores estruturais como a falta de higiene, deficiente alimentação, ineficác ia da medicina, etc. Estes dois vectores característicos da estrutura demográfica eram agravados pelas constantes catás trofes conjunturais desencadeadas pelas fomes, pestes e guerras. Numerosas representações pictóricas fazem a transcrição plástica da elevada mortalidade desencadeada por este trio fatídico: Os Coveiros de Tournai, iluminura de 1350; A Peste de Asdod, de Nicolas Poussin e As Misérias da Guerra, de Jacques Callot, ambas do século XVII. Neste contexto, a morte consti tuía-se como um elemento permanentemente presente no quotidiano do Homem, determinante no seu enquadramento vivencial.

Esta realidade traduziu-se figurativamente em representações onde o carácter efémero da v ida e a iminência da morte eram destacadas. Hans Baldung Grien, na pintura intitulada As Idades e a Morte, representa as três etapas fundamentais da vida humana - a infância, a idade ad ulta e a velhice - sempre acompanhadas pela morte, figurada sob a forma de um esqueleto que, embora se posicione mais próx imo da mulher idosa, está sempre presente, podendo pór términus à vida a qualquer momento, mercê do seu carácter surpreendente.

Fig. l-As Idades e a .Worle. Hans Baldung: Grien. Museu do Prado, Madrid.

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A proximidade do Homem com a morte e o seu entendimento enquanto destino colectivo inevitável determinou que, nos finais da Idade Média, ela fosse encarada de uma forma pacífica, sem receios nem dramatismos, como um acontecimento familiar'- A Igreja Católica ratificava este conceito de que o indivíduo era prisioneiro da vida terrena, podendo ser resgatado a qualquer momento pela morte'­Este pensamento escatológico enforrnou as representações das danças macabras, a primeira pintada em 1424 no Cemitério dos Inocentes em Paris', e o tema teve rápida difusão. Num ambiente sem horrores, antes pacifista, aos pares, os vivos são encaminhados pelos mortos, figurados sob a forma de cadáveres de pele ressequida, projecção do futuro de cada ser humano, desenrolando-se uma dança contínua, sendo que embora se denote uma certa resistência na prossecução do percurso, devida ao apego aos bens terrenos, não se verifica grande agitação e dramatismo.

Fig. 2 - A Dança da Morte5.

2 ARIÉS, Philippe (1988) 40. 3 D'ARAÚJO, Ana Cristina Bartolomeu ([989) 134. 'ROSMANINHO, Nuno ([986) 40. s Gravura in MARTINS, Mário (1969).

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A consciência do carácter inexorável desta etapa final da vida do Homem desencadeou a emergência de cenários onde se patenteava o triunfo da morte com objectivos moralizadores. Pieter Brueghel-o­Velho potenciou o valor simbólico da cor para configurar um cenário horripilante, palco perfeito para a actuação da morte que, com a foice na mão e o carro, vai apagando a vida dos Homens, independentemente da sua idade, sexo ou condição social. O mesmo conceito se presencia numa pintura executada por Juan de Valdés Leal para a igreja do Hospital da Caridade de Sevilha, datada de 1672: a morte, munida de uma gadanha e um caixão, ceifa com rapidez vidas humanas.

Neste quadro de familiaridade com o fenómeno da morte a Igreja perspectivou a correcta preparação dos cristãos para esta etapa final, por forma a que os seus pecados fossem purgados e a transição para a nova condição existencial ocorresse serenamente. Com esse intento socorreu-se de obras literárias, livros de devoção muito difundidos no século XV - Ars Moriendi ou Arte de Morrer, dos sermões e da produção artística. Segundo a concepção escatológica coeva, o acto de morrer revestia-se de crucial importância, de uma boa morte dependia em grande parte a salvação do Homem: no leito do moribundo desenrolava-se uma luta entre São Miguel, o anjo de Deus e do Bem, e o Demónio, o representante do Mal, pela apropriação da alma, vulgarmente configurada sob a forma de uma criança, duelo no qual o cristão devia ter força para repelir as tentações do Mal e, assim, alcançar a salvação eterna.

A transcrição plástica deste imaginário evidenciou-se em numerosas obras desde o século XIII6

• Hieronymus Bosch, numa obra intitulada A Morte do Avarento representa o agonizante deitado no leito, na presença de vários diabos e do anjo protector, os primeiros estendem-lhe um saco com ouro e procuram focalizar a sua atenção nos trajes e armas de cavaleiro, símbolos dos bens terrenos de que teria de abdicar, o segundo procura concentrá-lo nos bens espirituais, materializados no crucifixo e no rosário. Nas obras sobre a Arte de Morrer o anjo sai vitorioso nesta luta e conduz a alma para o Paraíso, mas nesta representação o pintor não explícita esse fim, antes sublinha a incerteza do destino do defunto.

6 ROSMANINHO, Nuno (1986) 42.

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Fig. 3 - A Morle do Avarento. Hieronymus Bosch. National Gallery af An.

Fig. 4 - O agOlzlzal/re dita as suas últimas l'ul/fades ao IlOuíno - ilulllinur:t. <,éc. X IV, Códice Latino de Direito Civi l.

Para que a morte ocorresse sem percalços ou surpresas o moribundo devia providenciar atempadamente a elaboração do testamento, componente indispensável pela sua função marcadamente

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espiritual, mais do que material, nele se assentavam as missas a serem proferidas pela salvação da sua alma, as condições da sepultura e a composição do cortejo fúnebre. Nas pinturas e iluminuras dos séculos XIV e XV é frequente a representação do agonizante a ditar as suas últimas vontades ao notário (fig.4).

A execução do túmulo e a selecção do local onde seria colocado eram objecto de especial cuidado por parte do futuro defunto, particularmente entre os altos dignatários do clero e da nobreza e dos monarcas. A disposição dos túmulos no espaço interno dos templos preconizava garantir a proximidade de Deus, sustentáculo para a salvação eterna.

O sepulcro tem como fundamento a morte; porém, nos tempos medievais e modernos ele cumpria uma função mais profunda, constituía-se como suporte para uma iconografia antecipadamente definida com simbologia específica.

No século XIV, o jacente é representado com os olhos abertos, o pregueado disposto como se estivesse em pé e não deitado, e segura na mão objectos alusivos à sua vida - báculos, cruzes, espadas, livros, etc. P. Ariés, considera que "esses jacentes não são nem mortos nem vivos cuja semelhança se deseja conservar, claro que são identificáveis, mas já não como homens da terra: são beati, bem aventurados ( ... )".7 Este modelo de representação do jacente corresponde à posição adoptada pelo defunto quando, serenamente, esperava a morte no leito de rosto direccionado para o céu, mãos postas ou cruzadas sobre o peito. Embora nos túmulos mais eruditos, esta tipologia desapareça no século XIV, aparece em muitos outros até ao século XVII.

Um exemplo desta tipologia é o túmulo da Rainha Santa Isabel, obra de Mestre Pêro. O jacente possui os olhos abertos e o pregueado do seu hábito das clarissas cai de forma rígida, as mãos cruzadas repousam sobre um livro de orações alusivo à sua fé na salvação. A cabeça é protegida por um baldaquino, típico das esculturas colocadas na vertical. A arca feral tem as faces divididas em edículas, preenchidas numa por Cristo e os Apóstolos e na outra por um coro de clarissas em oração pela alma da jacente. Na facial da cabeceira, um anjo segura a alma da rainha e descreve-se a cena da crucificação de Cristo.

7 ARIÉS, Philippe ( 1988) 282.

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Fig.5 - Túmulo da Rainha Santa Isabel. c. 1330. Mestre Pêro. Igreja do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, Coimbra.

A proximidade da morte e as frequentes catástrofes desencadeadas pelo trio fatídico (fomes, pestes e guerras), enformaram a concepção relativa ao destino de toda a humanidade que vigorou nos finai s dos tempos medievais, período em que o tempo, "marcadamente escatológico, está conforme à teologia: teve um princípio e terá um fim"', começou com a Criação do Mundo e terminará com O fim do Mundo" Esta percepção colectivista do ciclo da vida traduziu-se imageticamente em pinturas com finalidades moralistas: a Criação no Paraíso, a vivência em pecado e o Céu ou o Inferno como estádio final. Pinturas como o Jardim das Delícias e O Carro de Feno de H. Bosch reflectem este entendimento da natureza humana, sendo notória uma maior tendência para o homem se "afundar ao nível dos animais do que ascender aos anjos"'O

O tríptico do Jardim das Delícias evidencia esta visão pessimista sobre a existência da humanidade, ao apresentar a salvação como algo muito difícil de alcançar, sendo que o destino reservado à maioria dos Homens é o Inferno, mercê da vivência em pecado. No primeiro painel ilustra-se o jardim do Paraíso, no qual teve lugar a Criação, figurada no registo inferior, Adão e Eva posicionados ao lado da árvore em cujo tronco se enrosca a serpente, referência do Mal; num

8 ROSMANINHO, Nuno (1986) 42. 9 Na Antiguidade Clássica dominava uma concepção cíclica do tempo,

pressupondo sempre a existência do relorno. Cf. ROSMANINHO, Nuno (1986) 42. 10 BOSING, Walter (I 991) 25.

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plano superior está a Fonte da Vida, assente num amontoado de pedras preciosas que são inalcançáveis, alud indo à possibilidade de haver tentações no Paraíso. No painel central desenrolam-se as práticas humanas pecaminosas, é o Jardim das Delícias, oposto ao Paraíso, onde se destacam os prazeres carnais materializados em frutos gigantescos, na época assoc iados ao acto sexual por influência do pecado original ; as fi guras encontram-se nuas, sublinhando a perversidade. Esta vivência de vícios tem como corolário a condenação ao Inferno que é representado no terceiro painel, onde se ev idencia o sofrimento infligido aos pecadores por uma fauna infernal, os quais são crucificados em in slrumentos musicais gigantescos, símbolos do amor e da luxúria. No conjunto o tríptico apresenta uma linguagem enigmática de intenção panfletária: a humanidade está sujeita a numerosas tentações, berços do pecado que conduzem à condenação ao Inferno.

Fig. 6· O Jardim das Delícias - painel do Paraíso Terreno. Hieronymus Bosch. Museu do Prado.

o mes mo conceito presidiu à execução de outra obra do mes mo autor, O Carro de Feno , inspirada num provérbio flamengo, segundo

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O qual "o mundo é um carro de feno do qual cada um tira o que d ,,11

po e . No pensamento escatológico dos finais da Idade Média verifica­

se também a progressiva emergência da visão do Juízo Final. Na acepção de Nuno Rosmaninho a iconografia relativa a esta temática afirmou-se a partir do século xm l2

, ligada à concepção de que a salvação eterna não é garantida a todos, apenas contemplará os que seguirem os trilhos da Lei Divina, materializada na Bíblia. O Juízo Final era percepcionado como um tribunal, presidido por Deus, no qual a biografia vivencial de cada pessoa era objecto de apreciação, determinando-se o peso das boas e das más acções praticadas, cujo resultado se traduzia na eleição para o Paraíso ou na condenação ao Inferno. De acordo com a profecia de Cristo, os benditos serão conduzidos para o reino que lhes está destinado desde a criação do Mundo, enquanto os malditos serão condenados ao fogo eterno preparado pelo Demónio e seus anjos13.

O Juízo Final correspondia à segunda fase das três que o ser humano tinha que enfrentar após a morte: a ressurreição do corpo, o julgamento e a separação dos justos dos condenados 14. A Igreja Católica, através dos sermões, dos livros e das representações artísticas diligenciava alertar os fiéis para a importância do Dia do Julgamento, pelo que "ensinava aos crentes os caminhos a seguir para terem acesso à felicidade eterna; alertava os pecadores e os indiferentes para os castigos horríveis que os esperariam se não se

. . ,,15 pemtenczassem . Nas representações pictóricas a distinção dos dois universos - o

Paraíso e o Inferno - é sublinhada através dos aspectos compositivos e da paleta: os eleitos figuram vestidos, ordenados, emanando paz e serenidade, num ambiente de tons claros, particularmente o azul celeste e o amarelo claro; em contraste os condenados surgem nus, num ambiente de caos, onde predominam os tons fortes como os vermelhos e castanhos, exaltando o sofrimento que domina neste espaço.

11 sÁNCHEZ, Alfonso E. Pérez (s/d.) 194. 12 ROSMANINHO, Nuno ( 1986) 44. 13 Mateus 24:34-41. 14 ROSMANINHO, Nuno (1986) 45. 15 BOSING, Walter (1991) 33.

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No Juízo Final fruto dos pmcéis dos irmãos Van Eyck, de c. 1420-25, evidencia-se este contraste de "mundos": na parte superior posiciona-se Deus rodeado de anjos, dispondo-se os eleitos, vestidos e ordenados, emanando paz e calma; na parte central, divisória dos dois espaços, opõem-se as duas figuras que lutam pela posse das almas dos defuntos - o anjo S. Miguel e o Demónio - este último com a forma de esqueleto, cujos braços e pernas abertas se alongam para circunscrever o seu reino, povoado de corpos nus e monstros, num caos que sublinha o sofrimento. O objectivo era alertar os fiéis para os horrores e torturas de que iriam ser objecto caso não se guiassem pelos regras religiosas. A inexistência da perspectiva reforça o carácter transcendental da cena.

Fig. 7 - O Juizo Final, 1420-25. Hubert e/ou Jan Van Eyck. Metropolitan Museum of Art, Nova York.

H. Bosch também vai transcrever pictoricamente esta concepção do Juízo Final, num tríptico com uma orientação compositiva sequencial, que tem o seu início num momento crucial para a história da humanidade: o delito de Adão e Eva e a consequente expulsão do Paraíso, momento a partir do qual os conceitos de pecado e justiça divina passarão a marcar a vivência humana. No primeiro painel, no

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plano inferior, é representada a criação de Eva, no registo central, a tentação do casal que segura no fruto proibido, acto pecaminoso que vai desencadear a sua expulsão do Paraíso, que provoca a queda de anjos rebeldes que se transformam em demónios.

No painel central, é ilustrado o Juízo Final: na parte inferior, com tonalidades mais escuras, que sugestionam um ambiente sombrio e obscuro, estão as catástrofes universais; na superior, num espaço diminuto, que se demarca pela cor azul, Deus aplica a sua justiça, sendo o número de eleitos para a glória eterna muito reduzido, pois a maioria dos homens viveu em pecado. No terceiro painel representa­se o Inferno, também com uma paleta de tons escuros, particularmente os vermelhos e castanhos alusivos ao fogo, povoado de abomináveis monstros que atacam os condenados pelo pecado, nus e vítimas de sofrimentos - fogo, torturas, cozedura em caldeiras, etc.

Fig. 8 - U Jui::.o Fillol. paint:l cCJlIral. I-l icronyrnus Bosch. Viena.

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Fig. 9 - O Juízo Final, volante direito - U II/femo. Hieronymus Bosch. Viena.

A preocupação com aJuízo Final também se reflectiu na representação iconográfica da tumulária, como exemplificam os túmulos de D. Pedro e D. Inês de Castro (Mosteiro de Alcobaça), da segunda metade do século XIV. Ambos os jacentes dormem com a cabeça apoiada numa dupla almofada e com as mãos cruzadas sobre o peito, os corpos são guardados por seis anjos, prontos a ampará-los e a conduzi-los ao espaço celeste. D. Inês está coroada como rainha e um dos anjos eleva a sua cabeça em direcção ao Céu. Nas faces laterais da sua arca são ilustradas cenas da vida de Cristo, desde o nascimento até à morte: na facial da cabeceira foi lavrada a cena da crucificação de Cristo, que morreu devido aos pecadores, tal como D. Inês de Castro; na face oposta desenrola-se a cena do Juízo Final, onde Cristo sentado no trono, ladeado por anjos, pelos Apóstolos e pela Virgem, preside ao julgamento das almas que se dividem em dois caminhos, o do Bem, pelo qual sobem os eleitos, e O do Mal, pelo qual descem os condenados, cujo destino é o Inferno, simbolizado por uma grande boca, na qual prolifera o sofrimento. Em baixo, dos túmulos saem os mortos que irão ser submetidos à justiça divina. No túmulo de D. Pedro destacam-se as faces menores da arca, na do topo está ilustrada a Roda da Fortuna preenchida por episódios dos dois amantes, D. Pedro figura sentado no trono como rei e no ponto oposto da roda aparece como morto, o que se coaduna com a ideia de que todos os homens, por mais

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poderosos que sejam, morrem e são submetidos equitativamente à alçada da justiça divina. Na facial dos pés encontra-se representada a mOl1e de D. Pedro, rodeado de familiares e amigos e preparando-se para a transição que ia sofrer, tal como êra dindgado na ~poca .

Fig. 10 - Tlllllulo de 1) . 11lc-. de ( ;1-.(1\1, 1360). Igreja do

Fig. 11 - Túmulo tIL' D. Pedro. f:!C' i:d cb l': l bl.:c~ jI:1 (c . 1 :'61 - 1367). Igreja do Mosteiro de Alcobaça.

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A crença de que todos os homens após a morte seriam submetidos a este tribunal divino e as consequentes representações do Juízo Final, mantiveram-se ao longo da Época Modema. Uma obra portuguesa do século XVI (1536-1538), de Mestre desconhecido, que se encontra no MNAA representa o Julgamento das Almas. Ressalta o contraste de tonalidades entre a parte inferior e a superior, reforçando a distinção dos dois mundos: o Inferno, mais escuro e o Paraíso, mais claro. Lateralmente, as almas vêm do Purgatório e são disputadas pelo anjo S. Miguel e pelo Diabo; porém, contrariamente à obra de Bosch, nesta os eleitos são a maioria, apenas um homem idoso, portador de um tinteiro e um porta penas - alusivos à sua intelectualidade, cai na alçada do Diabo, representando um dos humanistas a que a Igreja se opunha no século XVI.

A divulgação dos horrores a que estariam condenados os pecadores, traduziu-se também na representação pictórica do Inferno, com pretensões pedagógicas. Também no MNAA se encontra uma pintura de Mestre desconhecido que ilustra essa temática com um claro domínio dos tons negros e vermelhos, característicos das trevas, numa exaltação directiva dos sofrimentos de que irão ser vítimas os condenado. Ao centro, num caldeirão são cozidos os prevaricadores, entre os quais alguns frades; lateralmente, num assador estão pendurados vários corpos nus, cujo tormento é reforçado pelo facto do sofrimento ser contínuo, não acabar, pois os corpos não ficam calcinados. Todo este cenário horripilante é presidido com satisfação por Lúcifer sentado no trono.

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Fig. 12 - O JulgamenlO das A/mas, Cc. 1536-1538). Mestre Desconhecido. MNAA.

Fig. 13 - O Inferno (c. J 515). Mestre Desconhecido. MNAA.

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As temáticas do Juízo Final e do Inferno continuaram a marcar presença na arte ao longo da Época Modema e acompanharam o crescente dramatismo com que a morte era encarada. O movimento da Contra-Reforma contribuiu para a manutenção e reforço deste imaginário, intensificando o discurso sobre a importância de uma vida orientada pela égide divina, tendo omnipresente a ideia da morte. Para os Jesuítas e seus seguidores a "imagem da morte é o mais eficaz antídoto contra a vaidade do mundo,,!6. Estas orientações têm correspondência com as determinações emanadas a partir do Concílio de Trento (1545-1563), no qual se procedeu a uma releitura da morte e da sua celebração, reforçando-se o papel e valor da liturgia fúnebre!7 e a importância da mobilização dos meios intencionalmente expressivos, capazes de capitalizarem o mundo sensorial dos fiéis na captação e interiorização dos conceitos cristãos relativos à morte.

Assiste-se a um intensificar do discurso de que a morte era comum a todos os homens, marcando a passagem para uma nova fase existencial, pelo que o homem se devia preparar para que ela fosse de felicidade e não de sofrimento.

Concomitantemente à iconografia do Juízo Final, a Igreja Católica, desde os tempos medievais, perspectivou a divulgação dos pecados condenatórios do Homem com objectivos pedagógicos. Progressivamente aSSIstiU-se à desvalorização do carácter determinante que a hora mortis tinha na salvação, em favor da importância atribuída aos actos praticados ao longo da vida!8. O julgamento realizado após a morte contemplava os méritos individuais de cada um, os pecados mortais e veniais, determinantes no castigo ou recompensa que iria receber!9.

Através dos sermões proferidos nas celebrações litúrgicas, das publicações e das representações artísticas, a Igreja exaltou a importância das boas acções para a salvação, enquanto os pecados capitais conduziriam à condenação suprema.

Um dos exemplos mais elucidativo é a Mesa dos Pecados Mortais (Museu do Prado), também fruto da criatividade de H. Bosh, realizada nos finais do século XV. Organiza-se a partir de um círculo dividido em sete partes, correspondendo cada uma a um pecado

16 SEBASTIÃN, Santiago (1981) 94. 17 GADOW, Marion Reder (1991) 397. 18 XAVIER, Pedro do Amaral (1991) 31. 19 MATIOSO, José (1995) 136.

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mortal - a Gula, a Preguiça, a Luxúria, a Soberba, a Ira, a Avareza e a Inveja - todos observados pelo olho de Deus figurado ao centro, no seio do qual Cristo se ergue do sepulcro, expondo as suas chagas ao Mundo; a envolvê-lo, numa inscrição, a advertência aos pecadores -Cuidado, cuidado, Deus vê. A forma circular adoptada pelo pintor sublinha a generalização dos pecados a todo mundo. Laterais ao círculo, nos ângulos da mesa, dispõem-se os Quatro Novíssimos, indicadores dos destinos do homem: a Morte, O Juízo Final, o Céu e o Inferno.

Fig. 1-' - (Js S('/c /Icc(/(lvs Mortais e os {lI/afro i\'O\"/.\.\illlO.\ do Homem

(tampo de mesa). Hieronymus Bosch. Museu do Prado.

Concomitantemente às obras relativas ao Juízo Final e aos pecados, surgem outras laudatórias dos bons cristãos, homens que pelo mérito das sua acções terrenas, chaves para abrir as portas do Céu, irão obter a salvação eterna. O El1Ierro do Conde de Orgaz (1586), da autoria de EI Greco, dos finais do século XVI, é uma pintura comemorativa de um enterro que já tinha ocorrido há 250 anos, encomendada pela Igreja de S. Tomé, situada em Toledo, pois a sua reconstrução no século XIV tinha sido financiada por este conde. A representação baseia-se numa lenda, segundo a qual nas exéqu ias fúnebres do conde, dois santos -Santo Estevão (morto em 35 e primeiro mártir cristão) e Santo Agostinho (354-430) - desceram do Céu e depositaram o corpo do conde na sepultura, cuja alma é levada pelo anjo e recebida no céu pela Virgem e S. João Baptista, que pedem por ela a Cristo Juiz, ladeado por São Pedro, que sustenta as chaves que abrem as portas do céu.

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Fig. 15 - O En/erro do Conde de Orgaz. El Greco. Igreja de São Tomé. Toledo.

Fig. 16 - Túmulo conjugal de D. João I e D. Filipa de Lencastre (c. 1434). Capela do Fundador do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, Batalha.

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A importância da biografia vivencial da cada ser humano traduziu-se na crescente personalização do sepulcro. Nessa individualização verificou-se o recurso à heráldica, aos epitáfios e às vestes. Este aspecto está patente no túmulo conjugal de D. João I e D. Filipa de Lencastre, que se encontra na Capela do Fundador do Mosteiro da Batalha. As efígies trajam roupa de cerimónia que assinala a sua condição social; na arca tumular, de faces lisas, estão descritos os feitos do monarca, conferindo-lhe um cariz biográfico que visa reforçar a salvação da sua alma.

Na mesma linha insere-se o túmulo de Diogo de Azambuja, obra do século XVI (1518), executada por Diogo Pires-o-Moço (Convento de Nossa Senhora dos Anjos - Montemor-o-Velho), que representa o jacente em repouso, calmo, com a cabeça assente numa dupla almofada e envergando a armadura que, juntamente com os quatro negros esculpidos no centro do frontal da arca, são uma referência à sua acção militar e ao Castelo de S. Jorge da Mina que ele fundou; na arca tumular dois escudos reforçam a sua individualização.

Estas obras reflectem a mudança de atitude, que se intensificou ao longo da Época Moderna, do homem perante a morte, que passa a ser percepcionada com algum dramatismo, pois cada vez mais as faltas cometidas vão ser determinantes na existência post mortem. A individualidade, tão prezada pelo Renascimento, passa a ocupar um lugar fulcral no acto de morrer. A tradicional serenidade é substituída pelo receio, pela angústia fomentada pelos medos disseminados pela Igreja.

Integrada neste pensamento escatológico presencia-se a emergência da temática vanitas na produção artística a partir do século XVI, com ampla expansão no curso da centúria de seiscentos, vindo a desaparecer no século xvm20

, com objectivos didácticos e moralistas, numa denúncia dos prazeres e vaidades humanas, contrapostas ao carácter efémero da vida e à certeza da morte. Nas representações pictóricas assiste-se à integração de vários elementos simbólicos alusivos à fragilidade da existência terrena - a ampulheta, a caveira, as bolas de sabão, a flor - em paralelo com componentes identificativos das vaidades humanas - jóias, dados, espadas, cartas de jogo, etc.

20 XAVIER, Pedro do Amaral (1991) 22.

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A caveira é um dos símbolos mais marcantes nesta iconografia, desde a Idade Média que marca presença nas temáticas de cariz macabro" pela sua identificação directa com a morte. A partir do século XVI a sua representação adquire um significado mais abstracto, a piedade e a meditação. A necessidade das pessoas reflectirem sobre a morte, converteu-a numa fonte de reflexão. Deste âmbito é a obra de Dürer, que representa a figura contemplativa de São Jerónimo (1521), com o rosto marcadamente pensativo e com a mão sobre a cavei ra, na qual procura inspiração e orientação para a sua meditação.

Fig.!? - São Jerónimo, ( 152 1). Dürer. MNAA.

Esta forma de entender a caveira foi divulgada pelos Jesuítas, através dos livros de meditação e de piedade que recomendavam a sua visão para est imular o pensamento". Um comentário dos Exercícios de Santo Inácio, de 1687, solicitava que a meditação se fizesse com as janelas fechadas e diante de uma caveira'3.

"SEBASTIÃN, Sanliago (1981) 100. 22 Idem. ibidem. 23 Idem, ibidel1l.

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Esta interpretação presidiu à elaboração de uma outra pintura por Zurbarãn, que representa Frei Gonçalo de Illescas (l638c 39) no seu scriptorum, em cuja secretária, por entre livros e tinteiros, se encontra a caveira e a ampulheta: fontes da meditação que o frade devia desenvolver sobre o deslino do homem.

Fig. 18 - Frei Goncalo de lfIescas (c. 1638-1639). Zubarãn. Sacristia do Mosteiro de Guadalupe, Cáceres.

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Fig. 19 - Po rll1~JlOJ du H('lúlm/o d(l.\ ,\111/(/.\, lah.:ral (IaJo do Evangelho), Igreja Matriz de Castro Daire.

Da mesma forma, lambém ao nível da talha se presencia a utilização da caveira como símbolo "abstracto e ascético .. 24

, no retábulo das Almas da igreja Matriz de Castro Daire, localizado na parede da nave, lado do Evangelho, por entre a túrgida amálgama de motivos naturalistas proliferam numerosas caveiras e líbias, que, se por um lado emprestam algum dramatismo ao conjunto relabular, simultaneamente constituem-se como ilustração das palavras habitualmente proferidas na Quarta-feira de Cinzas: Lembra-te que és pó e em pó re hás-de rornar'5

Em alguns espécimes pictóricos o tema vanilas enforma toda a iconografia da composição, como nos testemunham duas obras setecentistas de Harmen Steenwyck e de Juan de Valdés Leal. O primeiro elaborou uma natureza morta, na qual cada objecto tem um significado específico e intencional , com claras referências à morte e à fragilidade da vida: o sabre é uma alusão ao poder terreno, mas incapaz de vencer a morte; a flauta e a charamela encarnam os prazeres carnais (tradicionalmente a música faz parte do namoro); os livros estão associados à sabedoria, que pode conduzir a vaidades; a concha simboliza a riqueza mundana e o facto de já não resguardar

24 D' ARAÚJO. Ana CriSlina Bartolomeu ( (989) 136. 25 Génesis 3.19.

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uma vida alude à face finita da vida animal em paralelo com a humana; o cronómetro codifica os limites do tempo a que o homem está sujeito; a lamparina, que acabou de ser apagada, assinala a ruptura da vida humana, que corresponde ao corte com as vaidades. O centro da composição é destacado pela caveira, sobre a qual se projecta um feixe de luz que intensifica a presença da morte.

A mesma orientação se presencia na obra de Juan de Valdés Leal: em primeiro plano estão amontoados os objectos representativos dos bens e poderes terrenos - moedas, jóias, coroas reais, o ceptro, a mitra - sobre um livro repousa uma caveira coroada de loureiro, alegoria à vitória da morte sobre as vaidades terrenas; a fugacidade da vida humana é sublinhada pelas bolas de sabão feitas por um anjo, que depressa desaparecem, e por uma vela apagada; à direita, um anjo afasta a cortina para nos proporcionar a visão do quadro do Juízo Final, exaltando o desígnio de que todas as vaidades humanas serão julgadas por Cristo aquando da morte. à qual ninguém poderá fugir.

Fig. 20· Vanitas (1660). Juan de Valdés Leal. Warsworth Athenaeum, Hartford, Connecticut, E.U.A.

A produção artística constituiu-se, assim, como um instrumento privilegiado na afirmação e divulgação das mensagens relativas à morte, reOectindo o contexto em que se integra, pelo que se revela um documento singular no estudo desta temática.

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