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93 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 PARADIGMA INDICIÁRIO, LÍNGUA-CONCHA, RECORTE E FUNCIONAMENTO: A METODOLOGIA EM AD Lucília Maria Abrahão e Sousa 1 USP Dantielli Assumpção Garcia ** Daiana de Oliveira Faria *** Resumo: Este artigo traz uma reflexão sobre a metodologia da Análise de Discurso. Mobilizando as noções de paradigma indiciário (Ginzburg, 1989), escriturística (De Certeau, 1999), e recorte (Orlandi, 1984), as autoras propõem a noção de língua-concha, a qual remete aos indícios, aos furos, às contradições, às falhas, às dobras, às frestas do imenso mar do discurso. Abstract: This article presents a reflection on the methodology of Discourse Analysis. Mobilizing the notions of evidential paradigm (as in Ginzburg, 1989), scripturistics (as in De Certeau, 1999), and cut (as in Orlandi, 1984), the authors propose the notion of shell-language, which refers to the evidence, the holes, the contradictions, the failures, the folds, the cracks in the vast sea of discourse. “Enxuta, a concha guarda o mar/ No seu estojo” Chico Buarque A concha seca, alguns grãos de areias, os restos de um mergulho que já não há, o mar ausente no de-dentro dela, a concha, a língua: há quem diga ser possível até mesmo ouvir o gemido de mar dentro de uma

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PARADIGMA INDICIÁRIO, LÍNGUA-CONCHA, RECORTE E

FUNCIONAMENTO: A METODOLOGIA EM AD

Lucília Maria Abrahão e Sousa1

USP

Dantielli Assumpção Garcia**

Daiana de Oliveira Faria***

Resumo: Este artigo traz uma reflexão sobre a metodologia da Análise

de Discurso. Mobilizando as noções de paradigma indiciário

(Ginzburg, 1989), escriturística (De Certeau, 1999), e recorte

(Orlandi, 1984), as autoras propõem a noção de língua-concha, a qual

remete aos indícios, aos furos, às contradições, às falhas, às dobras, às

frestas do imenso mar do discurso.

Abstract: This article presents a reflection on the methodology of

Discourse Analysis. Mobilizing the notions of evidential paradigm (as

in Ginzburg, 1989), scripturistics (as in De Certeau, 1999), and cut (as

in Orlandi, 1984), the authors propose the notion of shell-language,

which refers to the evidence, the holes, the contradictions, the failures,

the folds, the cracks in the vast sea of discourse.

“Enxuta, a concha guarda o mar/ No seu estojo”

Chico Buarque

A concha seca, alguns grãos de areias, os restos de um mergulho que

já não há, o mar ausente no de-dentro dela, a concha, a língua: há quem

diga ser possível até mesmo ouvir o gemido de mar dentro de uma

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concha. Emprestamos a metáfora para tomar aqui a língua como concha

que manifesta marcas de rolamentos, de navegação, de rachaduras e de

trincados que o analista do discurso precisa escutar. Estamos no campo

da metodologia de Michel, cujo cerne não é desenhado pela

compreensão de uma mensagem ou conteúdo por meio de “modelos

prontos, definidos anteriormente a seus objetos, que podem nos levar a

uma análise conteudística, onde o que temos a dizer serve apenas para

comprovar uma conclusão pré-estabelecida” (LAGAZZI, 1988, p.51),

mas pela escuta dos modos de inscrição de posições discursivas na

ossatura da língua-concha, nosso alicerce, nosso chão, sempre o mar.

Materialidade linguística – de língua-concha – que o analista do

discurso coloca na orelha, escuta, desdecifra (e devora); entre ruídos e

silêncio se constituem pistas e indícios do discurso. Silêncio que ecoa,

que é efeito e que não pode ser apreendido, se não por seus ecos. A

língua-concha dá corpo a registros e marcas por onde escorrem efeitos

de sentidos, rabiscando regularidades, repetições e desvios, sendo esses

nossos objetos de interesse e estudo. Para pensar à moda de Pêcheux,

faremos um percurso nos seguintes termos: i. definição de paradigma

indiciário; ii. anotações sobre o modo discursivo de pensar a língua

como concha; iii. noção de recorte e funcionamento discursivo.

O paradigma indiciário começou a ser esboçado por Ginzburg

(1989) ao observar os estudos do final do século XIX. A pergunta que

se fazia então era a seguinte: como uma tela poderia ser identificada se

a sua data e autor eram desconhecidos? E no caso de uma incerteza,

como afirmar com precisão quem foi o pintor da obra, como reconhecer

certa dose de pertença/pertencimento nesse caso? As características da

escola artística não se mostravam suficientes para solucionar impasse

desse tipo, tampouco respondiam à questão de situar pintor e obra.

“É necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis” (op.

cit., p.144) adverte Ginzburg, o qual sinaliza também como o

considerado pequeno e desprezível pôde ser anotado nos trabalhos de

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Morelli que, nas obras de arte, atentava para detalhes como o formato

das unhas, o tamanho do lóbulo da orelha e a forma dos dedos das mãos

e dos pés, inaugurando uma interpretação a partir de elementos tidos

como marginais, simulando a postura de um detetive que, diante de uma

obra de arte, precisa atiçar os olhos para perceber a grandiosidade de

detalhes, o minúsculo em movimento, a erva daninha pouco reparada

na imensidão de corpos.

Esse exemplo ilustra uma postura indagadora (e por que não dizer

científica?) que, segundo Ginzburg (op.cit., p.151-152), revisita alguns

outros períodos históricos. Em vários momentos, o homem comportou-

se dessa forma para resolver questões cotidianas, muito embora esse

saber nunca tenha chegado ao estatuto científico. O homem como

caçador de pistas, como olheiro dos objetos do mundo incógnitos e

tantas vezes hostis, como construtor de um meio para sistematizar seus

desconhecidos diante do enigma de estar no mundo.

Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições,

ele aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas

invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de

esterco, tufos de pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados.

Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas

infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações

mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso

bosque ou numa clareira de ciladas (...) Decifrar ou ler as pistas dos

animais são metáforas (GINZBURG, 1989, p.151-152).

Ele ainda o completa apontando como as práticas divinatórias e a

leitura dos astros encerram esse tracejado de invencionices e

interpretações destinadas ao resto, à sobra de algo que não está presente,

mas presentificado na marca deixada para trás, ao sinal que ficou... Uma

pegada que iremos tomar para nós como analistas do discurso... Os

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astros no céu de então, quando lidos nos detalhes de seus arranjos,

apontavam previsões sobre mudanças no clima e no desenvolvimento

da agricultura, por exemplo. A análise de vestígios dos rastros de

animais também implica momentos de defesa humana, sobrevivência

ou indiciava a proximidade com o horror da morte; ler sinais e pistas

deixadas no oco ausente/presentificador para sobreviver... Perceber a

fundura e a umidade da pata no barro, a grossura do pelo deixado na

árvore, o tamanho da plumagem derramada no chão, o tamanho da

mordida no corpo do animal estraçalhado: “por trás desse paradigma

indiciário ou divinatório, entrevê-se o gesto talvez mais antigo da

história intelectual do gênero humano: o do caçador agachado na lama,

que escuta as pistas da presa” (GINZBURG, op.cit., p.154).

Anota o autor italiano que a medicina também bebeu nessa fonte, ao

observar fezes, suores e toda espécie de secreções de pacientes,

passando do sintoma ao diagnóstico da doença e à cura num pulo

indiciário. Ler os indícios no/do(r) corpo exige perscrutar o detalhe, o

sinal, a minúcia que apenas o olhar refinado para o indício, a pista e o

sinal pode perceber. Nesses termos todos nós, que trabalhamos com a

metodologia da teoria discursiva francesa, encontramo-nos debruçados

diante do texto como caçadores de pegadas do sujeito, de secreções de

sentidos e de vestígios da estrutura e do acontecimento, tocando os

suores do enunciado pelo que escorrega às margens. Não nos interessa

a mensagem como bloco fechado, mas as fissuras que ela conserva, o

minúsculo de um pêlo esquecido em um passo de equívoco, em uma

troca de palavra e de som, em um caco de desarranjo que reclama

acuidade de escuta.

No que toca ainda um pouco mais o pensamento de Carlo Ginzburg,

De Certeau (1999, p.247-248) fala do mesmo lugar ao refletir sobre a

escriturística. Ao fazer um passeio pela obra de Daniel Defoe, relaciona

as metáforas da ilha, do cachorro, do Sexta-feira e do protagonista

Robison Crusoé com a escriturística, ou seja, com a prática do texto

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escrito (e poderíamos ampliar aqui com a prática metodológica do

analista do discurso).

Robison Crusoé já indicava como é que uma falha se introduz em

seu império escriturístico. Durante algum tempo, seu

empreendimento é como efeito interrompido, e habitado, por um

ausente que volta ao terreno da ilha. Trata-se da impressão (print)

de um pé descalço de homem na areia da praia. Instabilidade da

demarcação: a fronteira cede ao estrangeiro. Nas margens da

página, o rastro de um invisível fantasma (na apparition) perturba

a ordem construída por um trabalho capitalizador e metódico (...)

Na página escrita aparece então uma mancha – como as garatujas

de uma criança no livro que é a autoridade do lugar. Insinua-se

na linguagem do lapso. O território da apropriação se vê alterado

pelo rastro de alguma coisa que não está lá e não ocupa lugar

(CERTEAU, 1999, p. 247-248).

De Certeau (op. cit.) enuncia poeticamente o que nos parece uma

contribuição ao conceito de indício: anota o que vai além da fronteira e

demarcação das palavras do enunciado, o que é puro discurso, curso de

sentidos em movimentos, o ausente que presentifica um modo de

sustentar o dizer, a pegada que coloca sentidos em possibilidade de

leitura. Investe atenção na linguagem do desvio, da falha e do vacilo,

daquilo que re(in)siste, como coloca Pêcheux:

As resistências: não entender ou entender errado; não “escutar”

as ordens; não repetir as litanias ou repeti-las de modo errôneo,

falar quando se exige silêncio; falar sua língua como uma língua

estrangeira que se domina mal; mudar, desviar, alterar o sentido

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das palavras e das frases; tomar os enunciados ao pé da letra;

deslocar as regras na sintaxe e desestruturar o léxico jogando com

as palavras... (PÊCHEUX, 1990, p.17).

Preocupa-se com o que não está “escrito e visível”, sai em busca do

rastro (da pegada) “do estrangeiro”, melhor dizendo, do sujeito

enquanto posição discursiva. Da mesma forma, Tfouni (1992, p.205-

224) sublinha esse mapeamento das pistas e indícios na materialidade

linguística, colocando tal enfoque como decisivo para a compreensão

da linguagem.

Para Carlo Ginzburg, as ciências humanas sempre se debateram

(e isso é histórico) entre a adoção de um método galileano,

experimental, que considera o dado como fato objetivo,

quantificável, de um lado, e um paradigma científico segundo o

qual ‘o conhecimento é indireto, indiciário, conjetural’. (...) Para

aqueles que pesquisam a linguagem, seguir o paradigma

galileano significa, ainda segundo Ginzburg efetuar uma

‘progressiva desmaterialização do texto, continuamente

depurado de todas as referências sensíveis’. Em contraparte,

seguir o paradigma indiciário significa restituir ao texto suas

qualidades individuais, restituir-lhe os contextos em que foi

produzido, a(s) história(s) de suas condições de produção

(TFOUNI, 1992, p.205-224).

Anotando que quando falamos em condições de produção, temos

imbricados sujeito e situação, em sentido estrito e em sentido lato,

funcionando conjuntamente: contexto imediato e contexto sócio-

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histórico ideológico mais amplo não podem ser dissociados

(ORLANDI, 2006).

Chartier (2001, p.167-168) também faz referência ao trabalho de

Ginzburg e compreende o ganho científico de “tornar visível uma série

de fatos ocultados no curso das investigações de história social clássica:

vinculações, negociações, conflitos, elementos que geralmente não se

vêem em uma escala mais ampla”. Comprometido com a acuidade do

olhar do pensador italiano, ele faz a seguinte síntese:

Para Ginzburg, o importante é a anomalia, o que se pode ver por

meio de uma situação excepcional (...) utiliza referencialmente

uma nova técnica de classificação, de identificação (...) que

apesar dos traços visíveis das espécies reconstrói as famílias a

partir de uma série de traços que podem ser completamente

invisíveis e que pertencem à anomalia (...) Assim, os animais que

pareciam próximos por suas formas ou sua aparência, são

separados e colocados em outras famílias (...) Ginzburg é um

desafio aos historiadores mais apegados às descontinuidades,

variações, discrepâncias e defasagens, pois propõe uma espécie

de retorno ao antropológico no sentido do universal e reformula

assim uma questão clássica: como pode-se entender-se com o

passado ou o outro, o estranho e o alheio, se não há algo comum

que permita essa compreensão? Se temos alguma possibilidade

de reconstruir estas diferenças é porque há algo compartilhado

(CHARTIER, 2001, p.167-168).

Nesse mapa de pistas e sinais à mostra, a língua-concha indicia. Nos

seus relevos, irrompem rotas seguras e reviravoltas cheias de surpresas.

Os indícios que nos interessam emergem na materialidade linguística,

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em (des)arranjos de língua, em marcas deixadas pelo sujeito após

fal(h)ar e depositar na areia do dizer as pegadas de seus pés andarilhos.

Quando falamos em materialidade linguística, apontamos para o que dá

forma aos indícios e marcas discursivas. Vale ressaltar que não se trata,

apenas, de um suporte ou de algo acabado. Pela via do materialismo

histórico-dialético, de onde emerge essa noção na teoria do discurso, o

mundo não pode ser considerado um complexo de coisas acabadas, mas

um processo onde as coisas e os conceitos estão em incessante

movimento (ORLANDI, 2012, p. 73). É nessa direção que falamos em

materialidade, como processo em que estão imbricados sujeito e

condições de produção, processo que se materializa na língua. Nesse

sentido, a língua é concebida enquanto lugar material em que se

realizam os efeitos de sentidos, dá as condições materiais de base do

processo discursivo (ORLANDI, 2012). Com isso, materialidade

discursiva é o nível de existência sócio-histórica que remete às

condições verbais de existência dos objetos (PÊCHEUX, 2011).

Indursky (1997, p.22-23) desenvolve um pouco mais esse pressuposto

da língua nos seguintes termos:

Examinar o mesmo pronome e seu funcionamento no discurso

coloca o analista diante de um dado lingüístico e a seu

funcionamento discursivo (...) A AD busca, pois, detectar um

conjunto de elementos estruturados para verificar o modo de

organização do discurso (INDURSKY, 1997, p.22-23).

A língua como dado funciona de modo a fechar o cerco do sentido

(a interpretação não pode ser qualquer uma nem toda), de um sentido

marcado por certas condições de produção; assim, a língua é indício,

primeiro e sempre passo de nossa metodologia discursiva. Vale aqui

anotar que as palavras não estão congeladas em estado de dicionário,

mas sempre em jogo tenso e deslocante; sobre isso, Orlandi (1988, p.54)

anota que: “a relação entre as marcas e o que elas significam é (...)

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indireta. No domínio discursivo não se pode, pois, tratar as marcas ao

modo positivista, como na linguística”. Segundo Marx (1988), toda

ciência seria supérflua se as formas de manifestação, as marcas, os

indícios e a essência das coisas coincidissem imediatamente. É, pois,

nessa instância que o método discursivo (ORLANDI, 1991) se pauta,

ou seja, nos movimentos que culminam em marcas, indícios. Essa tensa

contradição da impossibilidade de coincidência e de relação direta entre

as coisas do mundo e suas representações é o lugar teórico-

metodológico da Análise do Discurso. Num movimento de interpelação

ideológica, o sujeito é fisgado pela ilusão de que pode haver uma

relação direta e efetiva entre o pensamento, a linguagem e o mundo, de

tal maneira que torna evidente que o que foi dito só podia ser dito com

aquelas palavras e não com outras. Esse processo cria o almejado efeito

de clareza, completude e evidência tamponando as brechas do fal(h)ar,

que se dá de uma maneira possível, apagando outras e, assim, deixando

de dizer de outros modos tantos. Tal movimento é definido por Pêcheux

como esquecimento nº 2

(...) “esquecimento” pelo qual todo sujeito-falante “seleciona” no

interior da formação discursiva que o domina, no sistema de

enunciados, formas e seqüências que nela se encontram em

relação de paráfrase – um enunciado, forma ou seqüência, e não

um outro, que, no entanto, está no campo daquilo que poderia

formulá-lo na formação discursiva considerada (PÊCHEUX,

1988, p.173).

As pistas da língua podem passar imperceptíveis à primeira vista,

por isso mesmo cabe-nos olhar e retornar a olhar para elas com

insistência, anotando como os efeitos são produzidos, de que forma

se repetem, cristalizam-se e se rompem sentidos em uma dada

posição-sujeito, e se há repetições ou deslocamentos em curso, e

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como a língua funciona, como vale e como faz jogo disso tudo.

Segundo Lagazzi (1988, p.61):

A partir das marcas lingüísticas que se sobressaem, configurando

as pistas para a análise, é que começarão a delinear o caminho

que levará o analista ao processo discursivo, possibilitando-lhe

explicar o funcionamento do discurso (LAGAZZI, 1988, p.61).

Nessa perspectiva, o processo metodológico da AD, indiciário no

exercício, está às voltas com

essa relação tensa, isto é, de contradição na constituição do

sujeito (...) A partir da consideração social dos interlocutores,

podemos dizer que os conhecimentos podem ser ‘comuns’ mas

não são ‘iguais’. Há desigualdade na distribuição de

conhecimentos, não há partilha. Essa desigualdade é jogada na

interlocução (ORLANDI, 1984, p.13).

Desse modo, ao estudar o discurso, é necessário pensar a contradição

e o sujeito, mantendo os ouvidos sempre colados na língua-concha,

tratando-a não como unidade revestida de informação, como superfície

precisa a ser decodificada, como transparência e completude, mas

considerando que ela funda uma superfície furada e opaca, a qual

chamamos texto, “o todo em que se organizam os recortes” (op. cit.,

p.14). A autora (op. cit, p.14) define que “recorte é um fragmento da

situação discursiva”, “recorte é naco, pedaço, fragmento. Não é

segmento mensurável na linearidade” (op. cit., p.16).

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Com o gesto de recortar, o analista visa analisar o funcionamento

discursivo do texto, buscando compreender o estabelecimento de

relações significativas entre os elementos significantes da língua-

concha. Como a teoria discursiva considera a incompletude e a

opacidade constitutivas da linguagem, não se tem a ilusão de abarcar ou

produzir uma análise de todo o texto, esgotando-o por completo, mas

tomando recortes dele e estabelecendo aí “um começo, um lugar na

incompletude” (op. cit., p.17). Tais recortes representam o

envolvimento do analista que se posiciona diante dos dados,

escolhendo-os (e sendo escolhido por eles...), já implicado pelo seu

objeto, muitas vezes efeito dele, haja visto que “a defesa da análise do

discurso como prática interpretativa não se dá sem que se coloque como

condição indispensável a explicitação do lugar de onde o analista fala”

(TEIXEIRA, 2005, p.196-197).

Ao analisar os discursos, explicita Orlandi (2002, p.77-78), concebe-

se um lugar para a descrição das sistematicidades linguísticas, isto é,

busca-se descrever o modo como o linguístico aparece no discurso.

Além disso, o que analisamos é o estado de um processo discursivo. Há,

assim, a passagem da superfície linguística (o material de linguagem

bruto, o texto) para o objeto discursivo, em que se faz funcionar o

esquecimento número 2 (da instância da enunciação). Nesse momento,

desfaz-se a ilusão de que “aquilo que foi dito só poderia sê-lo daquela

maneira. Desnaturaliza-se a relação palavra-coisa”. Aponta-se, dessa

forma, para um funcionamento da língua-concha, no qual a abertura

para o múltiplo se instaura, o não-dito se faz presente, o confronto entre

diferentes formações discursivas, constitutivamente frequentadas pelo

seu outro, intervém, fazendo as palavras ecoarem sentidos no grande

mar do discurso. A partir do objeto discursivo, o analista vai relacionar

as distintas formações discursivas em confronto – que como ondas

fazem os sentidos se moverem e circularem nas margens, nas marés,

nas areias, nas ressacas da linguagem – com a formação ideológica que

rege essas relações: “Aí é que ele atinge a constituição dos processos

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discursivos responsáveis pelos efeitos de sentidos produzidos naquele

material simbólico, de cuja formulação o analista partiu” (ORLANDI,

2002, p.78). Ainda nos dizeres de Orlandi (2002, p.68):

Fatos vividos reclamam sentidos e os sujeitos se movem entre o

real da língua e o da história, entre o acaso e a necessidade, o

jogo e a regra, produzindo gestos de interpretação. De seu lado,

o analista encontra, no texto, as pistas dos gestos de

interpretação, que se tecem na historicidade. Pelo seu trabalho de

análise, pelo dispositivo que constrói, considerando os processos

discursivos, ele pode explicitar o modo de constituição dos

sujeitos e de produção dos sentidos. Passa da superfície

linguística (corpus bruto, textos) para o objeto discursivo e deste

para o processo discursivo. Isso resulta, para o analista, com seu

dispositivo, em mostrar o trabalho da ideologia. Em outras

palavras, é trabalhando essas etapas de análise que ele observa os

efeitos da língua na ideologia e materialização desta na língua.

Ou, o que, do ponto de vista do analista, é o mesmo: é assim que

ele aprende a historicidade do texto.

O importante é esgotar, tanto quanto possível o recorte, verificando

como “entre os vários sentidos, um (ou mais) se tornou dominante”

(ORLANDI, 1984, p.23). Do texto ao recorte, da polissemia a um

sentido possível, da sequência discursiva ao processo discursivo

sustentado pelas condições de produção, da (e na) língua-concha ao mar

do discurso: nosso trabalho insistente e cheio de dobras e frestas, nossa

peleja por estar (e teimar em continuar) nas margens, no sem-categoria

que nos lança a navegar com uma cartografia que é construída a cada

passo dado (e também a cada aborto de passo). Com um mapa tal como

coloca Deleuze-Guatarri:

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(...) o mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões,

desmontável, reversível, suscetível de receber modificações

constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a

montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo,

um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa

parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma

ação política (...) (DELEUZE-GUATTARI, 1995, p.21).

O que nos cabe escutar de novo (e com a polissemia dessa expressão,

novamente e de novidade) na metodologia discursiva e nos nossos

exercícios de análise(s), é a (nossa) condição da língua-concha, ou seja,

escutar os espaços porosos, vazados, abertos que constituem uma

ausência que é casco e borda, que emblematiza oco e palavra em torno.

E só o fazemos na língua que nos falta, aquela da concha muito vazia e

tão cheia de ar.

O novo, nessa perspectiva, não é exclusividade do foco nem

precisa ter lugar em um segmento de linguagem. É intervalar. É

o resultado de uma situação discursiva, margem de enunciados

efetivamente realizados, essa margem, este intervalo, não é um

vazio, é o espaço ocupado pelo social. Efeito de sentido.

Multiplicidade (ORLANDI, 1984, p.13).

A lida com algo sempre escapante que está dentro, e também fora, e

se manifesta como puro intervalo entre mar e areia, onda e pedra; que

pode receber preenchimentos imprevisíveis de terra e ar permanecendo

vazia; que sempre nos remete a margens de mar, marés, ondas,

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movimentos de ondulações e ressacas em cascalhos, areias e pedras;

que no seu de-dentro reserva espaço consagrado ao vazio, e por isso se

faz busca e pôde ser cuspida do oceano, ressecar até a última gota, virar

canção na voz de Buarque e mote para este texto. Margens que se

estiram no dizer do sujeito – na tentativa, sempre vã – de preencher,

(re)emendar, coser com os objetos de pesquisa e com as metodologias

inventadas, algo que lhe falta, o ausente da (sua) concha. O furo que

gesta e que coloca palavras e métodos em discurso, no concurso do

faltoso que todo oceânico encerra, no que de falha é duração de

continuidade, em nossa condição, também de concha.

Notas

1 Docente com dedicação exclusiva da Universidade de São Paulo. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Discurso e memória: movimentos do sujeito” (CNPQ) e do “E-L@DIS, Laboratório Discursivo - sujeito, rede eletrônica e sentidos em movimentos” (FAPESP). ** Pós-Doutoranda na Universidade de São Paulo. *** Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão da Universidade de São Paulo.

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Lucília Maria Abrahão e Sousa, Dantielli Assumpção Garcia r Daiana de Oliveira Faria

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Palavras-chave: língua-concha; Análise de Discurso; metodologia

Keywords: shell-language; Discourse Analysis; methodology

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