Parecer - Bercovici e Nohara
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GILBERTO BERCOVICIProfessor Titular de Direito Económico e Economia Política da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo
IRENE PATRÍCIA NOHARAProfessora Livre-Docente em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo
A FISCALIZAÇÃO DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO:
COMPETÊNCIA E DEVIDO PROCESSO LEGAL
Gilberto Bercovici Sociedade de AdvogadosAvenida Angélica. 2582 - 4D andar - cj. 42 - Edifício Pedras Altas
CEP 01228-200 - Higienópolis - São Paulo/SP - BrasilTel: [55] (11) 3459.8460 Fax: [55] (11) 3459.8415 e-maíI: ei[berto.bercoviciágmai
GILBERTO BERCOVICIProfessor Titular de Direito Económico e Economia Política da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo
IRENE PATRÍCIA NOHARAProfessora Livre-Docente em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo
CONSULTA
 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS INCORPORADORAS IMOBILIÁRIAS(ABRAINC), por intermédio de seu ilustre Advogado TÉCIO LlNS E SlLVA,
honra-nos com a presente consulta para elaboração de parecer jurídico sobre
questões de Direito Administrativo e de Direito Constitucional referentes à
constitucionalidade e à legalidade de inclusão da empresa no Cadastro de
empregadores que teriam submetido trabalhadores a condições análogas à de
escravo nos termos da Portaria Interministerial n° 2, de 12 de maio de 2011.
A presente consulta foi assim formulada:
a. A inclusão do Cadastro de Empregadores que tenham
submetido trabalhadores a condição análogas à de escravo nos
moldes estabelecidos pela Portaria Interministerial n° 2, de 12 de
maio de 2011, é um ato que compete ao Ministro de Estado do
Trabalho e Emprego ou ao Secretário de Fiscalização do Trabalho?
b. A capitulação contida nos autos de infração com base em
dispositivo legal da Consolidação das Leis do Trabalho, sem qualquer
menção à Portaria Interministerial n° 2, de 12 de maio de 2011, é
suficiente para assegurar o devido processo legal, contraditório e
ampla defesa no que toca à inscrição da empresa no Cadastro de
Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condição
análoga à de escravo?
c. À luz da Portaria Interministerial n° 2, de 12 de maio de
2011, haveria a necessidade de um ato administrativo formal e
específico, posterior à decisão final prevista no artigo 2°, que
determine a inclusão da Empresa no Cadastro de Empregadores que
tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo?
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d. Haveria a necessidade de um ato administrativo formal e
específico para comunicar ou intimar à empresa de que ela seria
incluída no Cadastro de Empregadores que tenham submetido
trabalhadores a condições análogas à de escravo por força de
interpretação conferida pela fiscalização trabalhista?
e. Compete ao agente fiscalizador, ao julgar os autos de
infração com capitulação apenas nas normas trabalhistas, imputar à
Empresa, por analogia, a prática de trabalho escravo nos moldes da
Portaria Interministerial n° 2, de 12 de maio de 2011, sem que a
autuada se defenda e tenha conhecimento da possibilidade de
inclusão no Cadastro de Empregadores?
f. Haveria a necessidade de um processo específico para esse
tipo de imputação, de forma a garantir ao particular o contraditório
e a ampla defesa, de acordo com a Portaria Ministerial n° 2, de 12 de
maio de 2011?
g. A condenação final em processo administrativo decorrente
de autos de infração que têm por objeto apenas infrações
trabalhistas, com aplicação de multa, pode resultar na inclusão do
nome do Cadastro de Empregadores que tenham submetido
trabalhadores a condições análogas à de escravo, a teor do que
dispõe a Portaria Interministerial n° 2, de 12 de maio de 2011?
h. Na ausência de atribuição de competência específica para
a prática do ato formal de inclusão de nome no Cadastro de
Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições
análogas à de escravo, responderá pelas ilegalidades o Ministro de
Estado do Trabalho e Emprego? y
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Gilberto Bercovicí Sociedade de AdvogadosAvenida Angélica. 2582 - 4" andar - cj. 42 - Edifício Pedras Altas
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PARECER
I. FISCALIZAÇÃO DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO: COMPETÊNCIA ELEGALIDADE
O valor social do trabalho é um dos fundamentos da República (artigo
1°, IV) e da ordem económica constitucional (artigo 170, caput)1, inserido no
contexto de proposta de estruturação de uma sociedade de bem-estar da
Constituição de 19S8. Vinculado à valorização do trabalho humano, o
princípio da busca do pleno emprego (artigo 170, VIII) é também,
indiretamente, uma garantia para o trabalhador, refletindo efeitos em relação
ao direito social ao trabalho (artigo 6° da Constituição). O direito ao trabalho
consiste em -um marco na luta por direitos sociais desde os debates da
Revolução de 1848, que terminaram por excluir a previsão do direito ao
trabalho do texto constitucional francês2, mas não do centro da disputa
política e jurídica que irá servir de fundamento para o chamado
"constitucionalismo social" do século XX. O significado do artigo 170, VIII,
assim, adquire ainda maior importância, pois determina a necessidade,
inclusive constitucional, de estruturação de um modelo de desenvolvimento
que assegure também a inclusão por meio do trabalho3. Em virtude da
centralidade da questão do trabalho e do direito ao trabalho neste
"constitucionalismo social", António Cântaro, inclusive, o denominará de
"costituzioni dei lavoro", cujo ápice se dará com a Constituição da Itália de
1947 e sua proclamação de que "a Itália é uma República democrática
1 Fábio Konder COMPARATO, "Ordem Económica na Constituição Brasileira de 1988", Revistade Direito Público n° 93, janeiro/março de 1990, pp. 269-270.2 Sobre o debate de 1848, vide Carlos Miguel HERRERA, "Estado, Constitución y DerechosSociales", Revista Derecho dei Estado n° 15, 2003, pp. 7S-SO e António CÂNTARO, H SacolaLungo: Lavoro e Dirilli Sociali nella Storia Europea, Roma, Ediesse, 2006, pp. 52-54 e 151-152.11 Mareio POCHMANN, O Emprego no Desenvolvimento da Nação, São Paulo, BoitempoEditorial, 2008, pp. 9-4-6 e 65-79.
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fundada sobre o trabalho" (artigo 1° da Constituição Italiana)4, cujo texto
correlato na Constituição de 19SS é a proclamação do valor social do trabalho
corno fundamento da República e da ordem económica constitucional.
A importância dada ao trabalho e às condições de trabalho é tanta no
texto constitucional de 1988, que além da competência federal exclusiva para
legislar sobre direito do trabalho (artigo 22, I), foi explicitada dentre as
competências materiais da União a inspeçao do trabalho (artigo 21, XXIV):
Artigo 21, XXIV da Constituição de 19S8: "Compete à
União: XXIV ~ organizar, manter e executar a inspeçao do
trabalho".
Esta competência constitucional da União é atribuída legalmente ao
Ministério do Trabalho e Emprego, pelo artigo 27, XXI, 'c* da Lei n° 10.683, de
28 de maio de 20035;
Artigo 27, XXI, 'c' da Lei 11° 10.683/2003: "Os assuntos que
constituem áreas de competência de cada Ministério são os
seguintes:
XXI - Ministério do Trabalho e Emprego:
a) política e diretrizes para a geração de emprego e renda e
de apoio ao trabalhador;
b) política e diretrizes para a modernização das relações de
trabalho;
•i António CÂNTARO, // Secolo Lungo: Lavoro e Diritti Sociali nella Storia Europea cit., pp.54-75 e 161-172. Vide, por todos, o clássico texto de Costantino MORTATI, "II Lavovo nellaCostituzione" m II Diritto dei Lavoro, 1954,1, pp. 149-212.5 A competência do Ministério do Trabalho para a fiscalização das condições de trabalho já Mlera prevista no artigo 39 do Decreto-Lei n° 200, de 25 de fevereiro de 1967 e no artigo 2" daLei n° 6.036, de 1° de maio de 1974.
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c) fiscalização do trabalho, inclusive do trabalho
portuário, bem como aplicação das sanções previstas_
em normas legais ou colelivas:
d) política salarial;
e) formação e desenvolvimento profissional;
f) segurança e saúde no trabalho;
g) política de imigração;
h) cooperativismo e associativismo urbanos"(grifos nossos).
Os Ministros de Estado exercem, auxiliando o Presidente da
República, a direção superior da Administração Pública federal (artigo 84, II
da Constituição e artigo 2° do Decreto-Lei n° 200/19676). O artigo 87 da
Constituição estrutura a função dos ministros de modo mais detalhado:
Artigo 87; "Os Ministros de Estado serão escolhidos dentre
brasileiros maiores de vinte e um anos e no exercício dos
direitos políticos.
Parágrafo único. Compete ao Ministro de Estado, além de
outras atribuições estabelecidas nesta Constituição e na lei:
I- exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos
e entidades da administração federal na área, de sua
competência e referendar os atos e decretos assinados pelo
Presidente da República;
6 Artigo 84, II da Constituição de 1988: "Competeprivativamente ao Presidente da República:H _ exercer, com o auxilio dos Ministros de Estado, a direção superior da administraçãofederal".Artigo 2D do Decreto-Lei n° 200/1967: "O Presidente da República e os Ministros de Estado Mexercem as atribuições de sua competência constitucional, legai e regulamentar com o auxíliodos órgãos que compõem a Administração Federal".
6Gilberto Bercovicí Sociedade de Advogados
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II - expedir instruções para a execução das leis, decretos e
regulamentos;
III - apresentar ao Presidente da República relatório anual
de sua gestão no Ministério;
IV - praticar os atos pertinentes às atribuições que lhe forem
outorgadas ou delegadas pelo Presidente da República".
Portanto, o Ministro do Trabalho e Emprego é a autoridade
administrativa competente para fiscalizar as condições de trabalho e aplicai-
as sanções legais pertinentes, de acordo com o artigo 21, XXIV da Constituição
e o artigo 27, XXI, 'c' da Lei n° 10.683/2003. Foi no exercício desta competência
constitucional e legal que o Ministro editou, em conjunto com a Ministra-
Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a
Portaria In ter ministerial n° 2, de 12 de maio de 2011, instituindo regras sobre
o Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a
condições análogas à de escravo.
A referida Portaria Interministerial n° 2/2011, embora tenha sido
voltada especialmente para o combate às condições de trabalho análogas à
escravidão no meio rural7, passou a organizar toda a fiscalização das
condições de trabalho com o objetivo de combater formas de exploração do
trabalho análogas à escravidão. Combate este extremamente relevante, não
apenas para coibir tal prática, como para poder pôr em prática o disposto no
7 O fundamento constitucional explicitado na Portaria Interministerial, além do artigo 87,parágrafo único, inciso II, é o artigo 186, II e III, dispositivos constitucionais referentes àsrelações de trabalho como elemento essencial da função social da propriedade agrária. Sobreo tema, vide Gilberto BERCOVICI, "Função Social da Propriedade Agrária - Possibilidadede Desapropriação para Fins de Reforma Agrária de Propriedade "Rural que Não CumpreTodos os Requisitos do Artigo 1S6 da Constituição de 198S", Revista Trimestral de Direito ..Civil, vol. 31, julho/setembro de 2007, pp. 259-265. D?
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artigo 243 da Constituição de 1988S. Da importância do combate ao trabalho
escravo, não há qualquer dúvida, trata-se, inclusive, de um dever
constitucional. O questionamento que se pode fazer é sobre a
constitucionalidade dos meios instituídos pela Portaria Interministerial n°
2/2011 para tanto.
A inclusão do nome de um eventual responsável por condições de
trabalho análogas à escravidão no Cadastro de Empregadores que tenham
submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo só pode ser
efetuada por decisão administrativa final relativa ao auto de infração:
Artigo 2° da Portaria Interministerial n° 2/2011: "A inclusão
do nome do infrator no Cadastro ocorrerá após decisão
administrativa final relativa ao auto de infração, lavrado
em decorrência de ação fiscal, em que tenha havido a
identificação de trabalhadores submetidos a condições
análogas à de escravo".
A Portaria Interministerial n° 2/2011 não explicita de quem seria a
decisão administrativa final, mas isto não seria necessário. A decisão
administrativa final em qualquer processo administrativo em um Ministério
é do Ministro responsável (artigo 87, parágrafo único, inciso I da Constituição
e artigos 19, 20, 25 e 26 do Decreto-Lei n° 200/1967). Neste mesmo sentido,
esclarece José Carlos Francisco:
8 Artigo 243 da Constituição (redação alterada pela Emenda Constitucional n" 81, de 05 dejunho de 2014); "As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde foremlocalizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo naforma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitaçãopopular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstasem lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5°. Parágrafo único. Todo e qualquer bemde valor económico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afinse da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial comdestinação específica, na forma da lei".
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"As expressões 'orientação, coordenação e supervisão'
sugerem superioridade do Ministro de Estado em relação
aos órgãos e entidades da administração federal na área de
sua competência. Ainda que não conste expressamente na
redação do art. 87, parágrafo único, I, do ordenamento de
1988, a estrutura hierarquizada do Poder Executivo leva à
conclusão de que o Ministro de Estado tem atribuições de
subordinação em relação aos órgãos e entidades da
administração federal na área de sua competência. Dessa
função hierárquica ou de subordinação de todos os
integrantes de seu Ministério, extrai-se a competência do
Ministro de Estado para fiscalizar, alterar, revogar, anular
e avocar quaisquer atribuições de seus subordinados, bem
como a função disciplinar ou punir integrantes da
administração direta, mantendo a unidade político-
administrativa da União. Os Ministros de Estado também
têm competências para conhecer de petições (artigo 5°,
XXXIV, 'a1, da Constituição) ou recursos em face dos órgãos
superiores da administração federal, pois as funções de
orientação, de coordenação e de supervisão dos órgãos e
entidades da administração federal levam aos denominados
recursos hierárquicos próprios, que podem ser apresentados
independentemente de previsão expressa em lei sempre que
houver coordenação e subordinação (vale dizer,
hierarquia)"9.
9 José Carlos FRANCISCO, "Artigo 87" m José Joaquim Gomes CANOTILHO; GilmarFerreira MENDES; Ingo Wolfgang SÂELET & Lenio Luiz STRECK (coords.), Comentários àConstituição do Brasil, São Paulo, Saraiva/Álmedina, 2013, p. 1297.
9Gilberto Bercovicl Sociedade de Advogados
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IRENE PATRÍCIA NDHARAProfessora Lívre-Docente em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade
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A competência funcional sempre é atribuída por lei, não se
"conquista", nem se presume10. Esta é uma garantia fundamental dos
administrados, a garantia de que há uma prévia ordenação constitucional
e/ou legal de competências decisórias dos vários órgãos da Administração
Pública. Afirma, neste sentido, Norbert Achterberg:
"Considerando-se que a competência funcional decorre de
uma regra abstraia e geral, neste sentido deve-se, em
primeiro lugar, considerar o órgão legislador e apenas então
a função a ser executada em razão da autorização
realizada"11.
Também compartilha deste entendimento Ruy Cirne Lima:
"Competência 'lato sensu' se denomina, em direito público,
a medida do poder que a ordem jurídica assina a uma
pessoa determinada. (...) Inversamente, no direito público,
dentre os poderes atribuídos às pessoas administrativas,
nem todos constituem- manifestação de um direito subjetivo
ou de uma relação de administração: são de direito objetivo.
Daí que, a esses, seja necessário fixar-lhes, também, por via
objetivat a exata medida. Daí, portanto, a noção de
competência" n.
10 Eduardo GARCIA DE ENTERRÍA & Tomás-Ramón EERNÁNDEZ, Curso de DerechoAdministrativo, 15a ed, Madrid, Civitas, 2011, vol. l, pp. 472-477 e Ruy Cirne LIMA,Princípios de Direito Administrativo, 5a ed, São Paulo, RT, 1982, pp. 139-145. Vide tambémPaulo OTERO, Legalidade e Administração Pública: O Sentido da VinculaçõoAdminislraLiva à Juridicidade, Coimbra, Álmedina, 2003, pp. S75-S76 e 8S7.11 "/si sie fdie Funktionskompetenz] durch abslrakt-generelle Regelung wahrzunehmen, sókommi hierfúr zunãchst ein Organ der Gesetzgebung und erst aufgrund einer durch diesevorgenommene Ermãchtigung ein solches der vollziehenden Fuktion in Betracht" in NorbertACHTERBERG, Allgemeines VerwaHungsrecht: Ein Lehrbuch, 2" ed, Heidelberg, C. F.Múller Juristischer Verlag, 19S6, p. 234.12 Ruy Cirne LIMA, Princípios de Direito Administrativo cit., pp. 139-140.
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A mesma interpretação é reforçada, ainda, por Eduardo Garcia de
Enterría e Tomás-Ramón Fernández;
"Todo poder atribuído por Ia Ley ha de ser en cuanto a su
contenido un poder concreto y determinado; no caben
poderes inespecíficos, indeterminados, totales, dentro dei
sistema conceptual de Estado de Derecho abierto por Ia
Revolución francesa, en cuyo seno vivi?nos. La justificación
de este aserto no es difícil. Desde unpunto de vista abstracto
un poder jurídico indeterminado es dificilmente concebible,
o más claramente, es una contradicción con el sistema de
Derecho, para el cual es consubstanciai Ia existência de
limites (de los derechos de unos con los de otros, de los de
cada uno con los de Ia colectividad, de los de esta con los
derechos de los ciudadanos, especialmente con los
fundamentales o constitucionalmente declarados). En
términos más simples, un derecho ilimitado pondría en
cuestión Ia totalidad dei ordenamiento, porque esa
ilimitaciÓ7i destruiria todos los demâs derechos, los haría
imposibles. El segundo argumento para excluir poderes
indeterminados es de pura técnica organizativa: toda
organización y más aún a medida que aumenta en
complejidad, se edifica sobre una distribución de funciones
y de competencias en un conjunto de órganos. No puede
haber un órgano que disponga de, todas Ias competencias a
Ia vez, por más que siempre existiria alguno que tenga
alguna eminência sobre todos y aun que vigile el
funcionamiento dei conjunto. Así como antes arguimos que
desde el punto de vista intersubjetivo un poder ilimitado
11Gilberto Bercovici Sociedade de Advogados
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destruiria los derechos de Io demás sujetos, ahora desde Ia
perspectiva interna de Ia organización hay que decir que
una competência global y absoluta de un órgano destruirá
Ia organización entera, ai sustituirse en el conjunto general
de los órganos y ai excluir Ia existência de limites entre Ia
organización y sus miembros (que nuncapueden integrar en
una sola organización Ia totalidad de su vida y de sus
intereses, ni aun siquiera los de carácter colectivo o
social)'^.
A atribuição de competências, assim, sempre é expressa. O artigo 21,
XXIV da Constituição e o artigo 27, XXI, V da Lei n° 10.683/2003 atribuíram
a competência ao Ministro do Trabalho e Emprego. A delegação desta
competência até seria possível, mas não pode ser tácita ou subentendida:
Artigo 12 do Decreto-Lei n° 200/1967: "É facultado ao
Presidente da República, aos Ministros de Estado e, em
geral, às autoridades da Administração Federal delegar
competência para a prática de atos administrativos,
conforme se dispuser em regulamento.
Parágrafo único. O cito de delegação indicará com precisão
a autoridade delegante, a autoridade delegada e as
atribuições objeto de delegação".
Não há nada na Portaria Interministerial n° 2/2011 que retire ou
delegue a competência do Ministro do Trabalho e Emprego. Pelo contrário,
apesar da redação, o artigo 2° da Portaria Interministerial determina a
necessidade de manifestação da autoridade administrativa superior para a
13 Eduardo GÁRCÍA DE ENTERRÍÁ & Tomás-Ramón FBRNÁNDEZ, Curso de DerechoAdministrativo cit., vol. l, pp, 473-474.
12Gilberto Bercovicí Sociedade de Advogados
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inclusão de um eventual infrator no Cadastro de Empregadores que tenham
submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo. Esta inclusão só
pode ser efetuada após decisão administrativa final relativa ao auto de
infração, decisão administrativa que cabe ao Ministro do Trabalho e Emprego.
II. DEVIDO PROCESSO LEGAL E PROIBIÇÃO DE EXCESSO
As origens contemporâneas do devido processo legal ("dite process")
remontam ao texto da Constituição norte-americana de 1787, especificamente
à 5a Emenda à Constituição, que estabeleceu, entre outros temas, que
ninguém seria privado da vida, da liberdade ou da propriedade, sem o devido
processo legal. Já a 14a Emenda, de 21 de julho de 1868, acrescentou, ainda,
à exigência do devido processo legal para privar alguém da vida, da liberdade
e da propriedade, a igual proteção da lei (equal protection ofthe laio).
Numa fase inicial, denominada adjetiva e relacionada com o
procedural due process, o devido processo foi associado à garantia da
legalidade, a partir do desenvolvimento de formalidades e procedimentos
necessários para evitar prejuízos aos direitos individuais, sendo, por exemplo,
corolários desta noção: a vedação de autoincriminação forçada e a proibição
de ser duplamente apenado.
Com a substantivação do devido processo legal (substantive due
process), a cláusula ultrapassa o campo das garantias individuais e acaba
abarcando a proibição de restrição arbitrária e desarrazoada do gozo dos
direitos substanciais.
No Brasil, a exigência de devido processo legal está atualmente
insculpida no artigo 5°, LI.V, da Constituição, nos seguintes termos: "ninguém
será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal".
Também no direito pátrio, o devido processo legal possui tanto sentido
adjetivo como substantivo.
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Professor Titular de Direito Económico e Economia Política da Faculdade de Direito daUniversidade de São Paulo
IRENE PATRÍCIA NOHARAProfessora Livre-Docente em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade
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Enquanto o sentido adjetivo demanda o respeito a garantias
individuais, a noção de devido processo legal substantivo (substantive due
process) é associada, por sua vez, corn a proporcionalidade, considerada
exigência pressuposta do Estado Democrático de Direito.
Excessos de restrições na regulamentação têm potencial de aniquilar
direitos e, consequentemente, comprometer a própria noção de Estado
Democrático de Direito, sendo papel daquele que edita o ato normativo
compatibilizar as opções políticas do Poder Público com os direitos
assegurados constitucionalmente, o que não ocorreu no caso do mecanismo
previsto na Portaria Interministerial n° 2/2011, conforme será demonstrado.
A inclusão da empresa no Cadastro de Empregadores que tenham
submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo consiste em clara
violação ao juízo de proporcionalidade, dada a inadequação dos meios
adotados aos fins pretendidos (combate às condições de trabalho análogas à
escravidão). Não se pode esquecer que a proporcionalidade vincula todas as
espécies de atos dos poderes públicos, seja o legislador, a administração ou a
jurisdição. Como afirma Canotilho, trata-se de uma "medida de racionalidade
regulativa", que não pode ser invocada por si só, mas sempre deve se referir a
situações jurídicas concretas14. Em sentido amplo, a proporcionalidade,
segundo Canotilho, é o mesmo que a proibição do excesso (UbennassverboL)15.
14 José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, T ed,Coimbra, Livraria Almedina, 2004, p. 272. Apesar da costumeira referência a "princípio daproporcionalidade", não se trata de um verdadeiro princípio, mas, na definição de HumbertoÁvila, de um postulado normativo, ou seja, uma norma que estrutura a interpretação eaplicação de outras normas mediante a exigência de relações entre determinados elementoscom base em critérios definidos. Cf. Humberto ÁVILA, Teoria dos Princípios: Da Definição àAplicação dos Princípios Jurídicos, 11a ed, São Paulo, Malheiros, 2010, pp. 144-145 e 184.Em sentido próximo, vide Eobert ALEXY, Theorie der Grundrechte, 2" ed, Frankfurt amMain, Suhrkamp, 1994, pp. 100-101.16 José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição cit.,pp. 266-268, Canotilho, ainda, equipara o conceito de proporcionalidade/proibição do excessoalemão com o conceito inglês de reasonableness, o conceito francês de dêtournement du A t J
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Universidade de São Paulo
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A noção de proporcionalidade exige a relação de causalidade entre os
meios e os fins16. A proporcionalidade é composta por três elementos, que
devem ser observados em sua aplicação. A pertinência ou adequação
(Geeignetheit) consiste em analisar se determinada medida efetivamente é o
meio certo para se chegar a um fim fundado no interesse público. A
necessidade (Erforderlichkeit ou Notwendigkeit) entende que a medida não
pode exceder os limites indispensáveis para a conservação do fim que almeja.
Para ser admissível, a medida precisa ser necessária, devendo ser escolhida a
medida com menor ingerência possível, menos onerosa aos interesses dos
cidadãos. Finalmente, a proporcionalidade em sentido estrito
(Verhãltnismãfigkeit) diz respeito aos meios que devem levar em conta todos
os interesses em jogo. A proporção adequada é condição da legalidade,
devendo os meios de que se dispõem ser adaptados aos fins que se buscam e
aos efeitos de seus atos17.
pouvoir e o conceito italiano de eccesso di potere. Vide, ainda, sobre a proibição do excessoP éter LERCHE, Ubermass und Verfassungsrecht: Zur Bindung dês Gesetzgebers an dieGrundsãtze der Verhãltnismã/3igkeit und der Erforderlichkeit, 2a ed, Goldbach, Keip Verlag,1999, pp. XI-XXIX, 50-53, 51-97, 134-161 e 315-349 e Lenío Luiz STRGCK, "Da Proibição deExcesso (Úbermassverbof) à Proibição de Proteção Deficiente (Untermassverbot): De ComoNão Há Blindagem Contra Normas Penais Inconstitucionais", Revista do Instituto deHermenêutica Jurídica, vol. l, n" 2, 2004, pp. 243-283. Humberto Ávila, no entanto, consideraa proibição de excesso um postulado distinto da proporcionalidade, justificando sua posiçãocom base na argumentação de que a aplicação da proibição de excesso não pressuporia aexistência de relação de causalidade entre um meio e um fim, como na proporcionalidade.Vide Humberto ÁVILA, Teoria dos Princípios cit., pp. 147-152.1B Konrad HESSE, Grundzúge dês Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deulschland, 20a
ed, Heidelberg, C.F. Miiller Verlag, 1999, pp. 28, 84 e 142-143; Humberto ÁVILA, Teoria dosPrincípios cit., pp. 163-167 e 185; André Ramos; TAVARES, Curso de Direito Constitucional,10a ed, São Paulo, Saraiva, 2012, pp. 772-779 e 783-788 e Gilmar Ferreira MENDES & PauloGustavo Gonet BRANCO, Curso de Direito Constitucional, 8a ed, São Paulo, Saraiva, 2013,pp. 217-233.17 Peter LERCHE, Ubermass und Verfassungsrecht cit., pp. VIII-XI, 19-23, 29-31 e 162-257;Robcrt ALEXY, Theorie der Gmndrechte cit., pp. 101-104; Paulo BONAVIDES, Curso deDireito Constitucional, T ed, São Paulo, Malheiros, 1998, pp. 360-369; José Joaquim GomesCANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição cit., pp. 269-270; HumbertoÁVILA, Teoria dos Princípios cit., pp. 167-175, André Ramos TAVARES, Curso de DireitoConstitucional cit., pp. 780-783 e Gilmar Ferreira MENDES & Paulo Gustavo GonetBRANCO, Curso de Direito Constitucional cit, pp. 225-227.
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Ao analisar os elementos do juízo de proporcionalidade e aplicá-los a
qualquer eventual caso concreto, pode-se perceber facilmente a absoluta
discrepância entre os meios que podem ser adotados e os fins almejados, com
a violação explícita do juízo de proporcionalidade.
Afinal, mesmo amparado em interesses públicos, o Estado não pode
se exceder na imposição de deveres, porque, ao agir dessa forma, acaba
violando garantias individuais. Ademais, necessidade, como um subitem da
proporcionalidade, implica, ainda, na indagação acerca do grau de restrição
do meio escolhido em relação aos demais direitos fundamentais tutelados no
ordenamento jurídico.
Violar a proporcionalidade neste caso significa também violar a
própria legalidade. Viola a proporcionalidade, do ponto de vista da
necessidade, uma medida que não seja exigível, "havendo meio alternativo
menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação de
excesso)"18.
No caso da inclusão em Cadastro de Empregadores que tenham
submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo, conforme dispõe
a Portaria Interministerial n° 2/2011, são inúmeras as inconstitucionalidades:
em primeiro lugar, haveria de existir um ato formal e específico diante do qual
seriam assegurados tanto o contraditório como a ampla defesa, como
expressão do devido processo legal adjetivo, haja vista a operacionalização de
uma "nova sanção" de acentuada gravidade.
Ainda, a imposição de inscrição da Empresa neste Cadastro de
Empregadores deveria ser alicerçada em lei formal, sendo violador à reserva
legal que alguém sofra uma pena sem prévia cominação legal, tendo em vista
18 Luís Roberto BARROSO, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os Conceitos A\Fundamentais e a Construção cio Novo Modelo, São Paulo, Saraiva, 2009. p. 305.
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a exigência de previsão legal da pena, conhecida na máxima do nullum
crimen, nulla poena sine lege. Tal hipótese não permitiria, reitere-se, que
houvesse pena estabelecida em ato infr alegai, como ocorreu no caso da
Portaria Interministerial n° 2/2011.
O Ministro do Trabalho e Emprego como agente público está
submetido ao regime juridico-administrativo. Em um Estado Democrático de
Direito, a atuação estatal se pauta pela legalidade, em todas as suas
dimensões, estatuída de acordo com a hierarquia normativa estabelecida pela
Constituição19. A legalidade, princípio constante, entre outros, do artigo 37,
caput da Constituição de 19S820, é, na feliz expressão de Celso António
Bandeira de Mello, o "princípio capital para a configuração do regime
jurídico-administratiuo"21.
No entanto, quando se fala em legalidade e em lei, a primeira
distinção necessária que se deve fazer é a entre lei em sentido formal e lei em
sentido material. Esta distinção foi criada no século XIX pelo publicista
alemão Paul Laband, como fornia de solucionar o conflito constitucional que
durou de 1861 a 1866 entre o Rei da Prússia e o Parlamento prussiano sobre
a natureza jurídica do orçamento e, consequentemente, sobre os poderes do
Parlamento em aprovar a lei orçamentaria e controlar, assim, as finanças
estatais. Para resolver o conflito constitucional prussiano, Laband
19 Holger Martin MEYER, Vorrang der privaten Wirtschafts- und SozialgestaltungRechtsprinzip: Eine Systematisch-axiologische Analyse dei' Wirtschaftsuerfassung dosGrundgesetzes, Berlin, Duncker & Humblot, 2006, pp. 308-315.20 Artigo 37, caput da Constituição de 19SS: "A administração pública direta e indireta dequalquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedeceráaos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também,ao seguinte: (...)".21 Celso António BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo, 31a ed, São Paulo,Malheiros, 2014, p. 103. Vide, ainda, Maria Sylvia Zanella Dl PIETRO, DireitoAdministrativo, 27a ed, São Paulo, Atlas, 2014, pp. 64-65. A\7
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desenvolveu a teoria dualista da lei, que seria adotada pela maioria dos
publicistas posteriores22.
De acordo com a teoria dualista da lei, as leis podem ser leis em
sentido material e leis em sentido formal. Â lei em sentido material é
sinónimo de norma jurídica, podendo ser estatuída pelos mais variados
órgãos, desde que dotados de poder normativo para tanto. Já a lei em sentido
formal é a lei propriamente dita, a lei como ato promulgado pelo Poder
Legislativo, fruto do processo legislativo23.
No caso brasileiro, o artigo 0°, II da Constituição de 1988, que repete
a clássica expressão "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude de lei", está tratando da lei em sentido material, da
sujeição à norma jurídica em geral, ao ordenamento jurídico. A necessidade
expressa de lei em sentido formal surge de fornia destacada em outros
dispositivos do texto constitucional, como, por exemplo, o artigo 5°, XXXIX,
22 Paul LABÁND, Das Budgetrecht nach den Bestimmungen der Preussischen Vsrfassungs-Urkunde unter Beriicksichtigung der Verfassung dês Norddeutschen Bundes, Berlin, Verlagvon J. Guttentag, 1871, pp. 3-11; Paul LABÁND, Das Staatsrecht dês Deutschen Reiches,reimpr. da 5a ed., Goldbach, Keip Verlag, 1997, vol. 2, pp. 1-23 e 61-S4 e Georg JELLINBK,Gesetz und Verordnung: Staatsrechtliche Uniersuchungen auf rechtsgeschichtlicher undrechtsvergleichender Grundlage, reimpr. da ed. de 1SS7, Aalen, Scientia Verlag, 1964, pp.226-261. Especificamente sobre esta distinção em Paul Laband e em Georg Jellinek, videBrnst-Wolfgang BÕCKENFÕRDE, Gesetz und gesetzgebende Gewalt: Von denAnfãngen derdeutschen Staatsrechtslehre bis zur Hõhe dês staatsrechtlichen Positiuismus, 2a ed, Berlin,Duncker & Humblot, 1981, pp. 226-253; Manuel Afonso VAZ, Lei e Reservo da Lei: A Causada Lei na Constituição Portuguesa de 1976, reimpr., Porto, Faculdade de Direito daUniversidade Católica Portuguesa, 1996, pp. 125-139 e Luís S. Cabral de MONCADA, Lei eRegulamento, Coimbra, Coimbra Ed., 2002, pp. 71-33 e SS-11Õ. Para uma crítica de umcontemporâneo de Laband a esta distinção, vide Otto MAYER, Deutsches Verwaitungsrecht,reimpr. da 3a ed, Berlin, Duncker & Humblot, 2004, §6, nnl, pp. 64-67.23 Miguel Seabra FAGUNDES, O Controledos Aios Administrativos pelo Podar Judiciário, 5a
ed, Rio de Janeiro, Forense, 1979, pp. 20-25; Victor Nunes LEAL, "Lei e Regulamento" inProblemas de Direito Público, Rio de Janeiro, Forense, 1960, pp. 60-66; José Afonso daSILVA, Processo Constitucional de Formação das Leis, 2a ed, São Paulo, Malheiros, 2006, pp.25-28; Manuel Afonso VAZ, Lei e Reserva da Lei cit., pp. 17-31 e Hartmut MAURER,Allgemeines Verwaitungsrecht, 16" ed, Munclien, Verlag C. H. Beck, 2006, pp. 65 e 68-69.
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que determina que não há crime sem lei anterior que o defina, ou o artigo 150,
I, que trata da legalidade tributária24.
Os regulamentos e atos normativos expedidos por órgãos do Poder
Executivo, como decretos, resoluções, portarias, são, neste sentido, lei em
sentido material, que se distinguem da lei em sentido formal não pelo seu
conteúdo ou efeito vinculativo, mas pelo órgão elaborador das normas. Como
foram promulgados por órgãos do Poder Executivo, atuam com base em uma
lei em sentido formal, dependem de uma lei em sentido formal para serem
válidos, vigentes e eficazes. Afinal, se o poder regulamentar não for limitado
pela Constituição, alerta Forsthoff, corre-se o risco de se esvaziar o princípio
da subordinação da Administração Pública à lei25. Nas palavras de Renato
Alessi:
"// fondamento, pertanto, delia potestà regolamentare vá
ricercato in una attribuzione dipotestà normativa materiale
daparte delpotere legislativo ali'autorità'^.
A adoção de uma Constituição rígida reforça o regime da legalidade,
pois implica na adoção de um sistema de hierarquia das fontes jurídicas. A
Constituição, como norma de hierarquia mais alta que a da lei ordinária
significa que o Poder Legislativo está subordinado ao Poder Constituinte.
Geralmente, a Constituição é mais genérica que a lei ordinária, que é mais
genérica do que os regulamentos ou outros atos normativos de hierarquia
w Manoel Gonçalves FERREIRA Filho, Do Processo Legislativo, 3a ed, São Paulo, Saraiva,1995, pp. 200-201 e Eros Roberto GRAU, "Crítica da 'Separação dos Poderes': As FunçõesEstatais, os Regulamentos e a Legalidade no Direito Brasileiro. Ás T.eis-Medida1" in O DireitoPosto e o Direito Pressuposto, T ed, São Paulo, Malheiros, 2008, pp. 246-247.<25 José Afonso da SILVA, Processo Constitucional de Formação das Leis dl., pp. 33-36; ErnstFORSTHOFF, Lehrbuch dês Verwaliangsrechts, 9n ed, Munchen, Verlag C. H. Beck, 1966,vol. l, pp. 120-124 e 129-130; Renato ALESSI, Prindpi di Diritto Amininistrativo, Milano,Giuffrè, 1966, vol. l, p. 419 e Hartmut MAURER, Allgemeines Verwaltungsrecht cit., pp. 69-
71- Ai26 Renato ALESSI, Prindpi di Diriiío Amministrativo cit., vol.-1, p. 418. O J-
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inferior, ou seja, há uma série escalonada de atos juridicamente relevantes
que parte da Constituição, passa pela lei e pelos regulamentos até chegar aos
atos meramente executivos. Como destaca Âdolf Merkl, a Administração
Pública se encontra envolvida de tal forma neste escalonamento de funções
jurídicas que todas as ações administrativas são ações dentro desta estrutura
escalonada e hierarquicamente estruturada27.
Otto Mayer, em seu clássico Direito Administrativo Alemão
(Deutsches Verwaltungsrecht}, cuja primeira edição é de 1895, foi pioneiro era
destacar as duas dimensões da legalidade: a supremacia da lei (Vorrang dês
Gesetzes) e a reserva da lei (Vorbehalt dês Gesetzes). A primeira dimensão da
legalidade, diretamente vinculada à hierarquia das fontes jurídicas, é a da
primazia ou supremacia da lei. Para Otto Mayer, a supremacia da lei é um
ato de vontade estatal jurídica que implica na força da lei. A primazia da lei
significa que a Administração Pública é obrigada a agir de acordo com a lei,
ou seja, proíbe infrações ou violações às leis existentes28. Nas palavras de
Victor Nunes Leal:
"Entre o regulamento e a lei, como acertadamente observou
Duguit, não há diferença substancial, mas formal, não há
diferença de natureza, mas de grau ou, hierarquia. O
regulamento, exatamente como a lei, é um ato de natureza
normativa; a distinção reside na subordinação do
27 Ádolf MERKL, Teoria General dei Derecho Administrativo, Granada, Editorial Gomares,2004, pp. 219-223; Victor Nunes LEAL, "Lei e Regulamento" cit., pp. 62-63; ErnstFORSTHOFF, Lehrbuch dês Vcrwaltungsrechts cit., vol. l, pp. 118-120 e HartmutMAURER,Allgemeines VerwaHungsreckt cit., pp. 63-67.2s Otto MAYER, Deutsches Verwaltungsrecht cit., §6, n° 2, pp. 6S-69; Hartmut MAURER,Allgemeines Verwaltungsrecht cit., p. 115 e Fritz OSSENBÚHL, "Vorrang und Vorbehalt dêsGesetzes" in Josef ISENSEE & Paul KIRCHHOF (orgs.), Handbuch dês Staatsrechts derBundesrepublik Deutschland, 3a ed, Heidelberg, C. F. Míiller Verlag, 2007, vol. õ, pp. 184-187.
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regulamento à lei. Mas o regulamento não é mera
reprodução da lei. É um texto mais minucioso, mais
detalhado, que completa a lei, a fim de garantir a sua exata-f
e fiel execução. E fundamental, entretanto, que nesta sua
função de complementar a lei, não a infrinja'29.
Da mesma maneira que os atos normativos do Executivo, em virtude
da hierarquia das fontes jurídicas e da supremacia da lei, não podem revogar
ou derrogar as leis ordinárias precedentes, assim como normatizar para além
do que determinou a lei ordinária que os fundamenta, a matéria tratada pelos
atos normativos do Executivo, como os regulamentos e similares,
hierarquicamente inferiores perante à lei, também não pode ser matéria
reservada à disciplina legislativa formal (reserva de lei)30. Esta é a segunda
dimensão da legalidade, a da reserva de lei31. Este tema, o da reserva de lei,
foi muito debatido na doutrina alemã pós-Segunda Guerra Mundial. As
discussões sobre a reserva de lei foram travadas entre os defensores de uma
reserva total legislativa, concretamente irrealista, e a corrente majoritária,
adepta de uma reserva de lei parcial. O Tribunal Constitucional Federal
alemão chegou, inclusive, a criar uma teoria, a chamada "Teoria da
Essencialidade" ("Wesentlichkeitstheorie"), que entendia que todas as
matérias que fossem significativas para a liberdade e a existência dos
indivíduos deveriam ficar reservadas à lei em sentido formal, debatida e
29 Victor Nunes LEAL, "Delegações Legislativas" in Problemas de Direito Público cit., p. 99,grifos meus.30 Renato ALESSI, Principi di Diritto Amministrativo cit., vol. l, p. 421. Vide também MariaSylvia Zanella Dl PIETRO, Direito Administrativo cit., pp. 94-90.31 Otto MAYER, Deutsches Verwaltuugsrecht cit., §6, n" 3, pp. 69-73; Manuel Afonso VAZ, LeiG Reserva da Lei cit., pp. 31-37 e 139-145; Hartmut MAURER, Allgemeines Verwaltungsrecht Jci£., pp. 115-126 e Luís S. Cabral de MONCADA, Lei e Regulamento cit., pp. 83-88. Ml
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aprovada pelo Parlamento32. No nosso sistema constitucional, a reserva de
lei, ou seja, o domínio exclusivo da lei ordinária deve ser constitucional m ente
definido, afinal, trata-se de quais decisões políticas do Estado vão ganhar
dignidade legislativa para obterem uma especial força jurídica33.
Estas considerações sobre as dimensões da legalidade, da supremacia
e da reserva de lei, são extremamente úteis para que se possa traçar os
contornos e os limites do poder normativo atribuído ao Ministério do Trabalho
e Emprego. No caso, a situação veicula restrição pela via da portaria emanada
por dois Ministros de Estado. Trata-se, assevere-se, de medida de grande
impacto à imagem de uma empresa a inclusão de seu nome no Cadastro de
Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à
de escravo.
Tal conduta é, indiscutivelmente, capaz de provocar graves danos à
empresa. Quando se aplica, com base em ato infralegal, uma sanção dessa
natureza, sem que seja resguardado o contraditório, além da violação ao
devido processo legal no sentido adjetivo, também há simultânea violação ao
devido processo legal substantivo (substantive due process}, tendo em vista o
excesso dos meios escolhidos em relação aos objetivos que se quer alcançar
corn a política pública, bem como a existência de meios menos gravosos para
se alcançar o resultado desejado (o que fulmina a necessidade, como subitem
da proporcionalidade).
A forma de implementação de tal política é claramente excessiva e
arbitrária, o que representa um grande risco à imagem das empresas do setor
32 Fritz OSSENBÚHL, "Vorrang und Vorbehalt dês Gesetzes" dt., pp. 1SS-220. Para umaanálise sobre o debate alemão em torno do tema da reserva de lei, vide Luís S. Cabral deMONGADÁ, Lei e Regulamento dt., pp. 168-296. jM Manoel Gonçalves FERREIRA Filho, Do Processo Legislativo dt., pp. 201-202 e Luís S. J'Cabral de MONCADA, Lei e Regulamento dt., p. 264.
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e, por consequência, ao seu património. Segundo expõe Recaséns Siches,
teórico do logos do razoável, "o emprego de meios perversos a serviço de fins
justos priva os fins de sua bondade originária e os prostitui'^.
O Estado, de acordo com Eduardo Garcia de Enterría e Tomás-Ramón
Fernández, é uma pessoa jurídica única que realiza múltiplas funções35. A
Administração Pública, consequentemente, deve atuar de modo harmónico, a
partir da definição de competências no texto constitucional e na legislação
ordinária. Deste modo, são atribuídas aos vários órgãos administrativos
competências específicas, tanto aos integrantes da Administração Direta
quanto aos da Administração Indireta36.
Como chefe do Ministério do Trabalho e Emprego, portanto,
integrante da Administração Direta da União, o Ministro do Trabalho e
Emprego exerce função administrativa, ou seja, o seu poder não é exercido por
interesse próprio ou exclusivamente próprio, mas por interesse público. O
Ministro atua tendo por finalidade o exercício de uma função pública, ou seja,
tem o dever de realizar o interesse público, não o seu. Deste modo, não pode
atuar de acordo com a autonomia da vontade, buscando atingir interesses e
objetivos em proveito próprio. Não há autonomia da vontade para quem
exerce função pública, pois estão submetidos aos objetivos determinados
34 Luis Recaséns SICHES, Introducción ai Estúdio dei Derecho, 2a ed, México, Porrúa, 1972,p. 257.35 Eduardo GARCÍÁ DE ENTERRÍA £ Tomás-Ramón FERNÁNDEZ, Curso de DerechoAdministrativo cit., vol. l, pp. 389-391. Sobre o debate em torno da concepção depersonalidade jurídica do Estado, vide, por todos, Gilberto BERCOVICT, Soberania eConstituição: Para uma Crítica do Constitucionalismo, 2" ed, São Paulo, Quartier Latin,2013, pp. 242-282. Outros autores, como Paulo Otero, destacam a chamada "administraçãopolicêntrica". Vide Paulo OTERO, Legalidade G Administração Pública cit., pp. 148-150 e 315-317. Massimo Severo Giannini vai além e descreveu a "desagregação da AdministraçãoPública", entendendo o Estado como um ente administrativo complexo sem centro. Cf.Massimo Severo GIANNINI, II Pubbiico Potere; Stati e Amministrazioni Pubbliche, reimpr.,Bologna, IlMulino, 2001, pp. 7S-S7.™ Neste mesmo sentido, vide Eduardo GARCÍA DE ENTERRÍA & Tomás-RamónFERNÁNDEZ, Curso de Derecho Administrativo cit., vol. l, pp. 451-452.
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previamente na Constituição e nas leis, possuindo o dever de preservar o
interesse público, não o interesse exclusivo da entidade estatal ou os
interesses privados de seus dirigentes. Por este motivo, são criados, mantidos
e obtêm poderes e recursos por meio do ordenamento jurídico. O seu poder é
atribuído, por lei, para a realização dos seus deveres, de suas finalidades,
também legalmente fixados. Na concepção que é utilizada pela melhor
doutrina publicista brasileira, o ente público é dotado de "dever-poder", pois é
um instrumento que deve cumprir a finalidade para a qual foi instituído37. No
mesmo sentido, afirmam Eduardo Garcia de Enterría e Tomás Ramón
Fernández:
"El principio de legalidad de Ia Administración, con el
contenido explicado, se expresa en un mecanismo técnico
preciso: Ia legalidad atribuye potestades a Ia
Administración, precisamente. La legalidad otorga
facultades de actuación, definiendo cuidadosamente sus
limites, apodera, habilita a Ia Administración para su
acción confiriéndola ai efecto poderes jurídicos. Toda acción
administrativa se nos presenta así como ejercicio de un
poder atribuído previamente por Ia Ley y por ella delimitado
y construído. Sin una atribución legal previa de potestades
Ia Administración no puede actuar, simplemente^.
í" Ruy Cirne LIMA, Princípios de Direito Administrativo ciL, pp. 20-22 e 51-60 e CelsoAntónio BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo cit., pp. 71-73 e 100-102.Vide, ainda, Eduardo GAECÍA DE ENTERRÍA & Tomás-Ramón FERNÁNDEZ, Curso deDerecho Administrativo cit., vol. l, pp. 465-471. Sobre as relações jurídicas administrativas,vide, por todos, Norbert ACHTERBERG, Allgemeines Verwaltungsrecht ciL, pp. 367-397,especialmente pp. 381-387 e 391-394 e Eduardo GÁRCÍA DE ENTERRÍA & Tomás-Ramón JFERNÁNDEZ, Curso de Derecho Administrativo cit., vol. l, pp. 50-55. *y3« Eduardo GARCIA DE ENTERRÍA & Tomás-Ramón FERNÁNDEZ, Curso de Derecho MlAdministrativo cit., vol. l, p. 465.
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 finalidade de qualquer agente público, assim, é obter um resultado
de interesse público, decorrente explícita ou implicitamente da lei. Isto quer
dizer que a finalidade é condição obrigatória de legalidade de qualquer
afruação administrativa, marcada, segundo Celso António Bandeira de Mello,
pela ideia de função. Quem define a finalidade da atuação dos agentes e
órgãos da Administração Pública é o legislador, não as próprias autoridades
administrativas. Na possibilidade de se ver infringida, direta ou
indiretamente, a finalidade legal, como o atendimento de um fim particular
em detrimento do interesse público, ou, na feliz expressão de Caio Tácito, "a
aplicação da competência para fim estranho ao estabelecido em lei", estará
ocorrendo desvio de finalidade ou desvio de poder39.
39 O excesso de poder ("détournement depouvoir") é uma criação jurisprudencial do Conselhode Estado francês no final do século XIX, sendo o desvio de poder (ou desvio de finalidade)uma de suas formas possíveis de manifestação. Hauriou, por exemplo, chega a identificar odesvio de finalidade com a ilegalidade e com a violação da moralidade administrativa. Cf.Maurice HAURIOU, Précis de Droit Administratif et de DroiL Public, 10a ed, Paris, Sirey,1921, p. 424. Vide, ainda, Henry BERTHÉLEMY, Droit Administratif, 9" ed, Paris, Rousseau,1920, pp. 1042-1054; Walter JELLINEK, Verwaltun-gsrecht, 3" ed, Berlin, Verlag von JuliusSpringer, 1931, pp. 274-277; Fritz FLEINER, Lês Príncipes Gênêraux du Droit AdministratifAllemand, Paris, Libraírie Delagrave, 1933, pp. 95-97 e 162-164; Ernst FORSTHOFF,Lehrbuch dês Verwaltungsrechts cit., vol. l, pp. 92-93 e Michel STASSINOPOULOS, Traitêdês ActesAdministratifs, Athènes, Institut Français d'Athènes, 19S4, pp. 216-218. No direitopúblico brasileiro, a doutrina do desvio de finalidade foi introduzida a partir dasconsiderações de Miguel Seabra Fagundes, Victor Nunes Leal (que, embora favorável à tese,buscou, corretamente, restringir a possibilidade de análise judicial sobre o mérito e adiscricionariedade dos atos administrativos, tentando evitar, assim, que o legislador fossesubstituído pelo juiz) e Caio Tácito. Vide Miguel Seabra FAGUNDES, O Controle dos AtosAdministrativos pelo Poder Judiciário cit., pp. 71-73; Victor Nunes LEAL, "PoderDiscricionário e Ação Arbitrária da Administração" in Problemas de Direito Público, Rio deJaneiro, Forense, 1960, pp. 278-294; Caio TÁCITO, "O Abuso do Poder Administrativo noBrasil" in Temas de Direito Público (Estudos e Pareceres), Rio de Janeiro, Renovar, 1997, vol.l, pp. 39 e 52-53; Caio TÁCITO, "O Desvio de Poder em Matéria Administrativa" in. Temasde Direito Público cit,, vol. l, pp. 74-75, 89-92, 101-103 e 157-158 e Caio TÁCITO, "Teoria ePrática do Desvio de Poder" in Temas de Direito Público cii., vol. l, pp. 162-168 e 178-180.Para o debate na doutrina brasileira recente, vide Celso António BANDEIRA DE MELLO,Discricionariedade e Controle Jurisdicional, 2" ed, São Paulo, Malheiros, 1996, pp. 53-83;Celso António BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo cit., pp. 109-110,409-412 e 997-1000; Maria Sylvía Zanella Dl PIETRO, Direito Administrativo cit., pp. 218-219, 229, 251-252 e 254-255; Régis Fernandes de OLIVEIRA, Ato Administrativo, 3" ed, São
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Há, no desvio de finalidade, uma incompatibilidade objetiva, ainda
que possa ser disfarçada40, entre a finalidade legal que deveria ser atendida
e a intenção particular de finalidade do ato praticado pela autoridade
administrativa. No caso de desvio de finalidade, não haveria sequer a
possibilidade, caso se tratasse de ato administrativo, de convalidação, pois o
ato seria nulo41.
A exigência de equilíbrio no poder de polícia já era reconhecida nos
Tribunais Superiores desde a década de 1960 no Brasil, tendo em vista o
conteúdo de três súmulas do Supremo Tribunal Federal, ainda hoje em vigor,
quais sejam: a Súmula n° 70, de 1963, segundo a qual: "é inadmissível a
interdição de estabelecimento para cobrança de tributo"; a Súmula n° 323, de
1963, que determina que "é inadmissível a apreensão de mercadorias como
meio coercitivo para pagamento de tributos", e a Súmula n° 547, de 1969, de
acordo com a qual: "não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em
débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça
suas atiuidades profissionais".
Ora, com base no mesmo substrato de argumento sintetizado pelas
súmulas n" 70, 323 e 574, o Estado age de forma excessiva quando, em
fiscalização, lavra auto com capitulação em artigos trabalhistas, depois soma
as infrações sem a mínima base legal que garanta ao particular segurança
jurídica, concluindo, sem o devido processo legal adjetivo, que o conjunto das
infrações constitui um quadro degradante que se equipara, sem a garantia de
Paulo, RT, 1992, pp. 93-96 e Irene Patrícia NOHARA, Limites à Razoabilidade nos AtosAdministrativos, São Paulo, Atlas, 2006, pp. 173-1S7.40 Miguel Seabra Fagundes fala explicitamente em "burla da intenção legal". Cf. MiguelSeabra FAGUNDES, O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário cit., p. 72,•u Oswaldo Aranha BANDEIRA DE MELLO, Princípios Gerais de Direito Administrativo, Riode Janeiro, Forense, 1969, vol. l, pp. 576-5S6; Celso António BANDEIRA DE MELLO, Cursode Direito Administrativo cit., p. 4S6; Maria Sylvia Zanella Dl PIETRO, DireitoAdministrativo cit, pp. 255-257 e 260 e Weida ZANCANER, Da Convalidação e da AuInvalidação dos Aios Administrativos, 2a ed, São Paulo, Malheiros, 1993, p. 76. "
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reserva legal, a trabalho em condições análogas à de escravo, para depois
incluir, novamente sem contraditório, em um Cadastro de Empregadores que
submetem trabalhadores a condição análoga à de escravo, sendo este ato
expressão de uma nova sanção, de acentuada e desnecessária gravidade.
A inclusão no cadastro, disciplinado por portaria, sem regras
procedimentais específicas, provoca gravíssimos efeitos nas atividades das
empresas, pois, além de manchar a imagem do estabelecimento, implica na
suspensão dos financiamentos públicos da empresa pelo prazo de dois anos, o
que pode ser fatal ao próprio desenvolvimento das atividades empresariais.
Trata-se, portanto, de medida que tem impactos no exercício das
atividades empresariais, a pretexto do combate do emprego do trabalho
escravo, feito a partir de conclusões retiradas de outro procedimento, com
outro propósito, e com amplitude genérica dada à equiparação feita.
A propósito da proibição do aniquilamento de direitos, deve-se
ressaltar que, já em 1951, em voto do Supremo Tribunal Federal, no RE n°
18.331/SP, de relatoria do Ministro Orozimbo Nonato, houve a aplicação da
teoria do desvio de finalidade ao controle dos atos políticos, tendo sido
afirmado que: "o poder de taxar não pode chegar à medida do poder de
destruir", frase inspirada em decisão do Juiz Marshall, da Suprema Corte
norte-americana, que, em 1819, no caso MacCulloch contra Maryland,
afirmou: "thepower to tax is thepower to keep alive".
Bilac Pinto também havia dado ênfase a tal possibilidade, pois
elogiava as jurisprudências norte-americana e argentina por estabelecerem
como critério definidor da legitimidade do exercício do poder de polícia e do
poder fiscal: os limites de razoabilidade, "entendendo que quando tais limites
são ultrapassados, eles se desnaturam e se transformam, para assumir as
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características de confisco, o que torna inconstitucionais e inoperantes as
manifestações abusivas daqueles poderes"42.
Não é demais dizer que no marco económico da sociedade capitalista,
a imagem da empresa faz parte de seu património. Esse processo de
demonstra que as empresas estão se orientando a compartilhar da
responsabilização social, tendo em vista sua funcionalização43. Â empresa
também precisa legitimar-se perante a opinião pública. Para tanto, cresce a
preocupação das empresas com práticas ou produtos que possam gerar efeitos
colaterais de potencial prejuízo à sua imagem, o que pode afetar, inclusive,
além de processos judiciais ou perda de prestígio, efetiva depreciação da
marca e perda de espaço no mercado.
A Portaria Interministerial n° 2/2011, utiliza-se de mecanismo que
acaba violando a proteção à confiança, bem como o devido processo legal. As
empresas recebem a notificação nos termos dos autos, lavrados com base em
capitulação restrita de normas trabalhistas para apresentar sua defesa ou
efetuar o pagamento da multa com desconto autorizado pela CLT
(Consolidação das Leis do Trabalho - Decreto-Lei n° 5.452, de 1° de maio de
1943), no que elas promovem o ajuste da irregularidade apontada ou efetuam
o pagamento, tendo em vista o oferecimento de desconto (sendo corrente que
os recursos apresentados sejam conhecidamente julgados improcedentes). O
Ministério do Trabalho e Emprego tout court assume tal postura como uma
42 Francisco Bilac PINTO, "Ementa e Referenda dos Atos Legislativos - Confisco e Garantiado Direito de Propriedade - Conceito de Taxa e de Imposto - Princípios da Anualidade,Unidade e Universalidade do Orçamento — Inconstitucionalidade do Dec.-Lei n° S.946, de1946" in Estudos de Direito Público, Rio de Janeiro, Forense, 1903. p. 100.4:1 Sobre a função social da empresa, vide Fábio Konder COMPAHATO, "Função Social daPropriedade dos Bens de Produção", Revista de Direito Mercantil n" 63, julho/setembro de1986, pp. 71-79; Fábio Konder COMPARÁTO, "Estado, Empresa e Função Social", Revistados Tribunais n" 732, outubro de 1996, pp. 33-46 e Ana Frazão de Azevedo LOPES, Empresa AÍ le Propriedade: Função Social e Abuso de Poder Económico, São Paulo, Quartier Latin, 2006.
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"confissão" da matéria de fato ou como uma "procedência" da acusação,
visando incluir o nome da empresa no referido Cadastro.
Não se pode admitir diante de uma imputação distinta, que haja uma
presunção, sem contraditório, de confissão ou de procedência de uma dada
acusação, até porque a outra capitulação demandaria abertura de um novo
contraditório.
III. O DIREITO AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA
Como o pagamento da multa com desconto é opção pragmaticamente
viável para as empresas, sobretudo porque lhes fornece a vantagem da
regularização de certidão negativa de débito (CND) previdenciária, e os
recursos administrativos são no mais das vezes, de praxe, julgados
improcedentes, não se afigura lícito presumir que as empresas assumam a
procedência da acusação. Esta é uma postura incompatível com as exigências
de contraditório e ampla defesa, de acordo com a determinação contida no
artigo õ°, LV, da Constituição, "aos litigantes, em .processo judicial ou
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a
ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".
A observância de contraditório exige a bil a ter ali d a de do processo,
sintetizada na expressão latina audiatur et altera pars (ouça-se também a
outra parte), compreendendo a oportunidade de se conhecer aquilo que é
imputado e também de reagir, ou seja, de responder. Tal exigência é
concentrada no binómio: informação e reação.
A aplicação da sanção da Portaria Interministerial de inclusão da
empresa no Cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores
a condições análogas à de escravo da forma como aplicada, com base no seu
artigo 2°, é absolutamente inconstitucional, pois não só não garante a correta
informação sobre os efeitos das medidas para regularização das falhas
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identificadas em fiscalização, que seriam o ajuste da conduta apontada ou o
pagamento de multa com desconto, como; ainda, não dá oportunidade de a
empresa reagir ou responder antes da inserção de seu nome no Cadastro de
Empregadores que submetem trabalhadores a condição análoga à de escravo.
De acordo com a exigência de devido processo legal, conforme visto, o
Estado deve fornecer instrumentos para que os particulares, diante da
pretensão de restrição estatal de seus bens e liberdade, tenham ampla
possibilidade de conhecer da acusação, defender-se de seus termos, produzir
provas, discutir a adequação das medidas estatais e ter acesso à motivação
dos atos administrativos, para que não haja arbítrio ou injustiça.
Ora, não se pode pressupor que alguém que promova os meios de
regularização da conduta e pague utilitariamente uma sanção esteja
assumindo uma culpa pela prática de uma conduta mais grave do que
condutas que isoladamente constavam em autos de infração, lavrados em
decorrência de diversas ações fiscais, ainda mais diante do reiterado
indeferimento de pleitos administrativos e, repita-se, da opção do pagamento
com desconto, sendo esta última uma solução pragmaticamente adotada pelas
empresas para evitar qualquer risco de suspensão de financiamentos públicos
recebidos.
No entanto, não é o que costuma acontecer. As empresas
pragmaticamente ajustam sua conduta ou pagam a multa com desconto e essa
atitude é presumida como "auto incrimina dor a", sem a oportunidade de
defesa. Pior, tudo isso ocorre no seio de um ato que descende diretamente de
um procedimento com finalidade distinta do fim de enquadramento em
Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições
análogas à de escravo, que tem impactos negativos sobre a imagem da
empresa.
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Dar oportunidade de a empresa tomar uma medida para não sofrer as
consequências desfavoráveis aos seus interesses empresariais e ainda
interpretar a atitude da empresa como "auto incriminação" capitulada em tipo
genérico e distinto, qual seja, emprego de trabalhadores a condições análogas
à de escravo, sem abrir um procedimento próprio para que a empresa, com
plena paridade de armas, possa apresentar a sua versão dos fatos, é uma
atitude absolutamente violadora do princípio do contraditório.
Ressalte-se que na ausência de procedimento específico, a solução
técnica no âmbito administrativo federal é, sem dúvida, a aplicação
subsidiária da Lei de Processo Administrativo, conforme o artigo 69 da Lei n°
9.784, de 29 de janeiro de 1999.
Segundo Caio Tácito, que presidiu a comissão responsável pela
elaboração da lei de processo administrativo federal, a lei objetivou firmar
"comoparâmetros básicos daproposição, os ditames da atual Constituição que
asseguram, a aplicação, nos processos administrativos, dos princípios do
contraditório e da ampla defesa, bem como reconhecem a todos o direito de
receber informações dos órgãos públicos em matéria de interesse particular ou
coletivo"4*.
Trata-se de direito do administrado, positivado no ai-tigo 3°, I da Lei
n° 9.784/1999 "ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que
deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas
obrigações". Ao concluir que o cumprimento de uma obrigação imposta pelo
Poder Público significa, sem que haja contraditório, uma espécie de
"confissão" que, em conjunto com outras circunstâncias genéricas, implica de
forma extensiva no reconhecimento da prática de sujeição de trabalhadores a
condições análogas de escravo, o Ministério do Trabalho e Emprego, no
44 Caio TÁCITO, "Notas e Comentários", Revisto, de Direito Administrativo, vol. 205,julho/setembro de 1996, p. 349.
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mínimo, viola o direito do administrado de ter "facilitado" o cumprimento de
suas obrigações.
Além de violação do contraditório, conforme exposto, tal postura
administrativa contempla um patente desrespeito ao princípio da segurança
jurídica em sua vertente subjetiva. A proteção à confiança, derivada da boa-
fé e da segurança jurídica, veda o comportamento contraditório da
Administração Pública, com base na proibição do venire contra factum
proprium.
As relações entre as pessoas pressupõem um mínimo de confiança (de
confiança na outra parte e confiança nas circunstâncias do negócio e nas
aparências) sem a qual não seriam possíveis. A tutela da confiança tem dois
componentes inseparáveis: um componente ético-jurídico e outro de
segurança no seu exercício. Como afirma Pedro Pais de Vasconcelos:
"quando umapessoa actua ou celebra certo acto, negócio ou
contrato, tendo confiado na atitude, na sinceridade ou nas
promessas de outrem, ou confiando na existência de
estabilidade de certas qualidades das pessoas ou das coisas,
ou das circunstâncias envolventes, o direito não pode ficar
absolutamente indiferente à eventual frustração dessa
confiança"45.
A segurança necessária ao normal desenvolvimento do exercício
jurídico exige que as aparências fundadas sejam respeitadas. Também a
confiança na estabilidade de certas circunstâncias que tenham fundado uma
atuação jurídica é digna de proteção jurídica. Nesta perspectiva, é uma razão
pragmática, de utilidade prática e de funcionalidade do sistema que o exige,
como novamente observa Pedro Pais de Vasconcelos. Para o renomado
45 Pedro Pais de VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, 4a ed, Coimbra, Almedina,2007, p. 19. A I
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civilista, "o direito não tolera que alguém construa expectativas e venha depois
a atuar em sentido contrário e se beneficia dessa atuação contraditória"46.
Isto pressupõe que tenha ocorrido uma situação de confiança, que essa
confiança seja justificada, que tenha efetivamente existido um investimento
nessa circunstância de confiança e que ela seja imputável a quem vier a ser
atingido ou prejudicado concretamente em consequência da tutela da
confiança. O reconhecimento da confiança, como valor jurídico, é fruto de
longa construção histórica. É certo que esta afirmação histórica apoia-se,
sobretudo, na evolução da dogmática e doutrina do direito contratual, embora
a ele não se restrinja'17.
Amoldo Wald, em síntese sobre o tema48, afirma que o respeito à
confiança passou a ser considerado apenas recentemente como um princípio
jurídico, incidente tanto nas relações privadas como na seara pública. Dito de
forma simples, o assim chamado princípio da confiança demanda
previsibilidade da conduta de todos os integrantes do convívio social, inclusive
do Estado, das empresas e das pessoas em suas relações com as demais. É um
princípio incidente sobre as mais diversas relações estabelecidas entre os
atores sociais. É com base na confiança depositada em outrem que, em certos
casos, se justifica a irretratabilidade das decisões administrativas.
Tutela da confiança, boa-fé objetiva, e a proibição de comportamento
contraditório participam, portanto, de um mesmo campo semântico. Ao dever
de atuar com boa-fé corresponde o direito de outrem de ver realizada sua
46 Pedro Pais de VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil cit., p. 21.'I7 Para uma análise comparativa da jurisdicização da tutela da confiança, vide ReinhardZIMMERMANN, Good Faith in European Contract Law, Cambridge/New York, CambridgeUniversity Press, 2000.48 Amoldo WÁLD, "Princípio da Confiança" in Ricardo Lobo TORRES; Eduardo TakemiKATAOKA & Flávio GALDINO, Dicionário de Princípios Jurídicos, Rio de Janeiro, Elsevier,2011, pp. 173-187.
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expectativa legítima. No campo das relações privadas119, no qual a reflexão
sobre a confiança se desenvolveu e se consolidou, observa Amoldo Wald que
"a confiança legítima é considerada criadora de um direito subjetivo, fazendo
prevalecer a vontade declarada sobre a vontade real. (...) Na realidade,
desloca-se, com essa nova fonte das obrigações, o foco que o direito tinha em
relação à responsabilidade, vinculando-a tradicionalmente ao comportamento
do responsável, ou seja, do devedor. No caso da aplicação do princípio da
confiança, enfatiza-se o direito do credor à segurança, ou seja, ao cumprimento
das promessas por ele deduzidas do comportamento alheio em virtude da
relação de confiança'^.
A proibição do comportamento contraditório, ou teoria dos atos
próprios, comumente expressa pelo brocardo latino nemo potest venire contra
factum proprium51, ou simplesmente "venire" é a resposta direta à tutela da
boa-fé objetiva. É importante ressaltar que, ao contrário do que afirmam
alguns autores, a proibição do comportamento contraditório não é princípio
geral do direito, já que são numerosas as hipóteses em que nosso ordenamento
tolera a contradição. O princípio do nemo potest venire contra factum
proprium, deve ser compreendido como uma expressão concretizante da
cláusula geral da boa-fé objetiva e da tutela da confiança, atendidos certos
requisitos. Consiste, assim, em um princípio que proíbe comportamentos
4!í Vide igualmente: Giancarlo SCALESE, Diritto dei Trattati e Dovere di Coerenza nellaCondotta: Nemo Potest Venire Contra Factum Proprium, Napoli, Edizione Scientifica, 2000;Francesco ASTONE, Venire Contra Factum Proprium: Divieto di Contraddizione e Dovere diCoerenza nei Rapporti Lra Priuati, Napoli, Jovene, 2006 e Marcelo J. López MESA & CarlosRogel VIDE, La Doctrina de los Actos Propios: Doctrina y Jurisprudência, Madrid, Réus,2005.60 Amoldo WALD, "Princípio da Confiança" cií., p. 175.51 Á consolidação do brocardo na terminologia contemporânea resulta da obra do civilistaalemão Erwin Riezler. O jurista, em obra dedicada à interpretação do artigo 242 do BGB(Código Civil alemão), resgata a antiga expressão dos glosadores medievais para conceituara teoria dos atos próprios desenvolvida pela jurisprudência alemã da época. Erwin RIEZLER, »Venire contra factum proprium - Studien im rõmischen, englischen und deutschen Civilrccht, ^Leipzig, Duncker & Humblot, 1912. l M f
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contraditórios, apenas na medida em que tais comportamentos possam
romper a legítima confiança depositada por terceiros na conservação de um
comportamento inicial. Anderson Schreiber52 compulsa os elementos
essenciais à aplicação do princípio nemopotest venire contra factum proprium:
"1) O factum proprium, isto é, uma conduta inicial; 2) a
legítima confiança de outrem na conservação do sentidoobjetivo desta conduta, 3) um comportamento contraditório
com este sentido objetivo e, por isto mesmo, violador da
legítima confiança, 4) um dano, ou no mínimo, um potencial
de dano apartir da contradição."
O primeiro destes elementos, o factum proprium, isto é, o
comportamento inicial, é, a princípio, não vinculante. Caso o comportamento
contraditório viole uma conduta vinculada, há uma sanção previamente
estabelecida no ordenamento jurídico. No caso das relações privadas, é o caso
de responsabilidade obrigacional, e no direito público, de um ato puramente
ilegal. Invocar o princípio do venire é justamente tutelar hipóteses auto-
vinculadas e não aquelas cuja vinculação se dá por imposição de lei. Para
estas últimas, a sanção decorre especificamente do desatendimento ao
princípio da legalidade. A tutela da confiança em comportamentos não
vinculados contribui para a segurança do sistema jurídico53.
Em segundo lugar, atribui-se legitimidade à confiança em sentido
objetivo, isto é, como mera adesão à expressão exterior do factum proprium,
servindo como indícios, entre outros, a celebração de negócios jurídicos
52 Anderson SCHREIBER, A Proibição de Comportamento Contraditório: Tutela daConfiança e Venire Contra Factum Proprium, Rio de Janeiro, Renovar, 2005, p. 271.53 E, portanto, incorreto o afastamento da tutela da confiança entro particulares e aAdministração Pública com base na Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal, de 1969, quese aplica estritamente aos atos ilegais: "Á administração pode anular seus próprios aios, \Jquando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos ou , ̂ >revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e £Ai'ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial".
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motivados pelo factum proprium, ou sua abstenção, com base na expectativa
depositada a partir do comportamento inicial exteriorizado.
Quanto ao terceiro requisito, qual seja, a contradição do factum
proprium, é irrelevante a intencionalidade ou culpa do agente. O nemo potest
venire contra factum proprium é estritamente objetivo, fundado na proteção
do destinatário do comportamento inicial. Neste ponto, observa Schreiber que
"o comportamento contraditório configura sempre um comportamento
aparentemente lícito, que somente vem a ser tido como inadmissível face à
presença dos demais pressupostos de incidência do venire. Vale dizer: se a
conduta incoerente for, por si só, ilícita, porque contrária à lei ou a um ato
vinculante, a invocação da tutela da confiança se mostra desnecessária e até
inadequada"54.
Em relação ao quarto requisito, basta a potencialidade de surgimento
de dano, de ordem material ou moral, para que a parte que tenha suas
expectativas legítimas frustradas possa se valer do princípio do venire. Sob a
argumentação da proibição de comportamento contraditório, pode-se pleitear
a reparação do dano ou, ainda, o desfazimento ou impedimento de atos lesivos.
Em suma, nas palavras de Menezes Cordeiro55:
"a confiança exprime a situação em que uma pessoa adere,
em termos, de atividade ou de crença, a certasrepresentações passadas, presentes ou futuras, que tenhapor efetiva e é protegida quando, da sua preterição, resulte
atentado ao dever de atuar de boa fé ou se concretize um
abuso de direito".
M Anderson SCHREJBER, Á Proibição de Comportamento Contraditório cif., p. 273.55 António Manuel da Rocha e MENEZES CORDEIRO, Da Boa Feno Direito Civil, Coimbra,Álmedina, 2001, pp. 1234 e ss.
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É pacífico na doutrina e na jurisprudência que a teoria dos atos
próprios também se aplica às relações entre os particulares e a
Ádministração5íi. Judith Martíns-Gosta afirma que, na esfera do direito
público:
"o Direito Administrativo e o Direito Tributário constituem
férteis campos de aplicação do venire contra factum
proprium, uma vez que a Administração, valendo-se (por
vezes de forma inadmissível) de sua posição de
superioridade e da presunção de legalidade dos atos
administrativos, fere direitos subjetivos dos particulares ou
atropela as legítimas expectativas dos particulares que
confiaram, justamente, naquela presunção de legalidade,daí a necessidade, também nessa seara, da proteção à boa-
féW.
Devemos ressaltar, também, a necessidade de observância do
princípio da boa-fé da Administração Pública. O princípio da boa-fé, em seu
conteúdo essencial, é decorrência do princípio da moralidade e do regime
republicano, pois versa sobre a confiança do cidadão no Estado Democrático
de Direito, em qualquer de suas manifestações, seja no administrador, seja no
legislador ou no julgador. A Administração Pública tem o dever de lealdade e
respeito aos atos administrativos anteriores, visando a proteção da confiança
legítima dos administrados na própria Administração58.
5fi Vide, por todos, António Junqueira de AZEVEDO, "Nulidade Parcial de Ato Normativo.Certeza e Segurança Jurídica diante de Alteração de Jurisprudência Consolidada. Aplicaçãoda Boa-Fé Objetiva ao Poder Público" in Paulo de Barros CARVALHO et ai., Crédito-Prêmiode IPI: Estudos e Pareceres III, Barueri, Manole, 2005, pp. 64-68.57 Judith H. MART1NS-COSTA, "A Ilicitude Derivada do Exercício Contraditório de umDireito: O Renascer do Venire Contra Factum Proprium" in Miguel REALE; Miguel REALEJúnior & Eduardo Reale FERRARI (coords.), Experiências do Direito, Campinas, Millenium,2004, p. 40.58 Sobre o princípio da boa-fé como confiança do cidadão no Estado, vide Fritz FLEINER, LêsPríncipes Gcnéraux du .Droit Administratif ÁHemand ciL, pp. 126-132; Celso AntónioBANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo dt., pp. 122-123; Francesco
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Aldemiro Rezende Dantas Júnior59 ressalta que a observância da boa-
fé pela Administração — e os princípios dela decorrentes — é um comando que
se encontra positivado em nosso ordenamento, particularmente nos
dispositivos da Lei n° 9.784/1999, que, em seu artigo 2°, parágrafo único,
determina que nos processos administrativos devem ser observados, entre
outros parâmetros, os padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé. Egon
Bockmann Moreira expressamente menciona o princípio do nemopotest uenire
contra factum proprium como aplicável à Administração em decorrência do
princípio da moralidade e da boa-fé objetiva, no que o secundam Odete
Medauar, Sérgio Ferraz e Adilson de Abreu Dallari60.
MÁNGANARO, Principio di Buona Fede eAttivitã delle Amministrazioni Pubbliche, Napoli,Edizioni Scientificbe Italiane, 1995, pp. 51-72 e 113-174; Juarez FREITAS, "Repensando aNatureza da Relação Jurídico-Administrativa e os Limites Principio! ógicos à Anulação dosAtos Administrativos" in Estudos de Direito Administrativo, São Paulo, Malheiros, 1990, pp.9-30; Juarez FREITAS, O Controle dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais,São Paulo, Malheiros, 1997, pp. 72-75; Federico A. Castillo BLANCO, La Protección deConfianza em el Derecho Administrativo, Madrid, Marcial Pons, 199S, pp. 271-276; MarceloFIGUEIREDO, O Controle da Moralidade na Constituição, São Paulo, Malheiros, 1999, pp.104-107; Javier Garcia LUENGO, El Principio de Protección de Ia Confianza em el DerechoAdministrativo, Madrid, Civitas, 2002, pp. 121-128; José Guilherme GIACOMOZZI, AMoralidade Administrativa e a Boa-Fé da Administração Pública: O Conteúdo Dogmático daMoralidade Administrativa, São Paulo, Malheiros, 2002, pp. 227-242 e 250-272; Hans J.WOLFF; Otto BACHOF & Rolf STOBER, Direito Administrativo, Coimbra, FundaçãoCalouste Gulbenkian, 2006, vol. l, pp. 199-200, 343 e 619. Vide, ainda, a posição crítica deErnst FORSTHOFF, Lehrbuch dês Verwaltungsrechts cit., vol. l, pp. 252-255.5a Aldemiro Rezende DANTAS Júnior, Teoria dos Atos Próprios no Princípio da Boa Fé,Curitiba, Juruá, 2007, p. 149. Vide, ainda, Javier Garcia LUENGO, El Principio de Protecciónde Ia Confianza em el Derecho Administrativo cit., pp. 12S-137 e Pedro José JorgeCOVIELLO, La Protección de Ia Confianza dei Administrado: Derecho Argentino y DerechoComparado, Buenos Aires, Aheledo-Perrot, 2004, pp. 409-417.60 Egon Bockmann MOREIRA, Processo Administrativo: Princípios Constitucionais e a. Lei9.784/99, São Paulo, Malheiros, 2000, p. 90: "O princípio da boa-fé objetiva deriva, quandomenos, o seguinte: a) (...); b) proibição do uenire contra factum proprium (condutacontraditória, dissonante do anteriormente assumido, ao qual se havia adaptado a outra partee que tinha gerado legitimas expectativas)". Vide também Sérgio FERRAZ & Adilson AbreuDALLARI, Processo Administrativo, São Paulo, Malheiros, 2001, p. 66 e Odete MEDAUAR,A Processualidade no Direito Administrativo, 2" ed, São Paulo, RT, 2008, p. 94. Vide, ainda,José Guilherme GIACOMOZZI, A Moralidade Administrativa e a Boa-Fê da AdministraçãoPública cit., pp. 242-246 e 250-254.
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A jurisprudência dos tribunais superiores entende que não se pode
autorizar à Administração Pública que adote conduta contraditória depois de
criar justas expectativas nos administrados, mediante a auto-vinculação a
compromisso público, frustrando estas expectativas legítimas. Neste sentido,
decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
"Memorando de entendimento. Boa-fé. Suspensão doprocesso. O compromisso público assumido pelo Ministro da
Fazenda, através de 'memorando de entendimento', parasuspensão da execução judicial de divida bancária de
devedor que se apresentasse para acerto de contas, gera no
mutuário a justa expectativa de que essa suspensão
ocorrera, preenchida a condição. Direito de obter asuspensão fundado no principio da boa-fé objetiva, queprivilegia o respeito a lealdade. Deferimento da liminar que
garantiu a suspensão pleiteada. Recurso improvido. STJ~
4" Turma - RMS 6.183/MG - Rei. Min. Ruy Rosado deAguiar -Ac. unânime -j. em 14.11.1995-DJ 18.12.1995-p.
44578"61.
G1 No voto do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, relator, lê-se que: "o compromisso públicoassumido pelo Governo, através do seu Ministro da Fazenda, o condutor da política financeiradopais, e com a assistência dos estabelecimentos de crédito diretamente envolvidos, presume-se execuções de créditos do Banco do Brasil seriam suspensas por noventa dias, desde que odevedor se dispusesse a um acarto de contas, é razoável pensar que esse seria o comportamentofuturo do credor, pelo simples respeito à palavra empenhada em documento público, levadoao conhecimento da Nação. No direito civil, desde os estudos de Jhering, admite-se que docomportamento adotado pela parte, antes de celebrado o contrato, pode decorrer efeitoobrigacional, gerando a responsabilidade pré-contratual. O princípio geral da boa-fé veiorealçar e deu suporte jurídico a esse entendimento, pois as relações humanas devem pautar-se pelo respeito à lealdade. O que vale para a autonomia privada vale ainda mais para aadministração pública e para a direçãq das empresas cuio capital é predominante público,nas suas relações com os cidadãos. E inconcebível que um Estado democrático, que aspire arealizaria íustica, esteia fundado no princípio de que^o^çompr omisso público assumido pelosseus^governantes não tem valor, não tem significado, não tem eficácia. Especialmente quandoa Constituição da República consasra o princípio da moralidade administrativa. Tenho queo 'Memorando de Entendimento', embora não seja uma lei, nem mesmo possa ser definidocomo contrato celebrado diretamente entre as partes interessadas, criou no devedor a justa. ,expectativa de que, comparecendo ao estabelecimento oficial de crédito a fim de fazer o acerto ^yde contas, teria o prazo de suspensão de 90 dias, para o encontro de uma solução extrajudicial. £yv
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A concepção da boa-fé da Administração Pública está também
estreitamente vinculada à segurança jurídica em matéria económica, fundada
no princípio da confiança legítima ("Vertrauensschutz"). Afinal, o direito é um
elemento constitutivo do modo de produção capitalista. O direito do modo de
produção capitalista é racional e formal, caracterizando-se pela
universalidade abstrata das formas jurídicas e pela igualdade formal perante
a lei, refletindo a universalidade da troca mercantil e buscando garantir a
previsão e a calculabilidade de comportamentos. O direito é também uma
condição de possibilidade do sistema capitalista, não é um elemento externo.
O mercado não é uma "ordem espontânea", natural, embora o discurso liberal
sustente essa visão, mas é uma estrutura social, fruto da história e de decisões
políticas e jurídicas que servem a determinados interesses, em detrimento de
outros62.
A partir do pressuposto de que se pode e se deve confiar no Estado (boa-
fé da Administração Pública), os particulares se organizam e investem a
partir de determinadas regras estabelecidas, confiando na estabilidade
daquelas regras por um determinado período de tempo, ou seja, buscam a
garantia da continuidade do sistema constitucional económico. A modificação
repentina destas regras abala a confiança dos particulares na Administração
Pública. Obviamente, não se questiona o direito e o dever da Administração
Havia, portanto, o direito do executado de obter a suspensão do processo de execução,demonstrando ter se apresentado para o acerto de contas. Não se trata de hipótese legal desuspensão, mas de obrigação publicamente assumida pela parte, de que teria aquela conduta,cumprindo ao juiz lhe dar eficácia" (grifos meus).62 António José Avelãs NUNES, Noção e Objecto da Economia Política, Coimbra, LivrariaAlmeclina, 199G, pp. 68-70 e Gérard FARJAT, "Observations sur Ia Sécurité Juridique, lêLien Social et lê Droit Économique" in Laurence BOY; Jean-Baptiste RACINE & FabriceSIIRIÁINEN (coords.), Sécurité Juridique et Droit Économique, Bruxelles, Éditions Larcier,200S, pp. 43-72. Sobre a ordem jurídica do capitalismo, vide, especialmente, Vital MOREIRA,A Ordem Jurídica do Capitalismo, 3a e d, Coimbra, Centelha, 1978, pp. 67-131. Para o debateem torno da natureza jurídica do mercado, vide Natalino IRTT, UOrdine Giuridico deiMercato, 4a ed, Roma/Bari, Laterza, 2001 e Marthe TORRE-SCHAUB, Essai sur IaConstruction Juridique de Ia Catêgorie de Marche, Paris, L.G.D.J., 2002.
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Pública alterar as regras quando for necessário para a preservação do
interesse público (artigo 2°, parágrafo único, inciso XIII da Lei n°
9.784/199963), mas a forma abrupta como isto foi realizado e a falta absoluta
de qualquer justificativa razoável em que se demonstrasse a preservação do
interesse público como objetivo ou motivação64.
É certo que nem toda conduta contraditória deve ser sancionada, nem
se pretende um dever absoluto de coerência. A tutela da confiança não busca,
primordialmente, a repressão à má-fé, mas sim a proteção à boa-fé daquele
que agiu com base em expectativas legítimas.
Quando a Administração oferece a possibilidade de regularização de
uma situação identificada durante um procedimento de fiscalização, seja pelo
ajuste da conduta ou pelo pagamento da multa, com desconto, ela cria no
particular a legítima expectativa de que, ao adequar sua conduta ao exigido
pelo Poder Público, ele irá se desvencilhar das imposições, jamais se podendo
daí concluir que isso implique na confissão da prática de uma conduta ainda
mais gravosa.
63 Artigo 2°, parágrafo único, inciso XIII da Lei n° 9.7S4/1999: "Parágrafo único - Nosprocessos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: XIII - interpretaçãoda norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do interesse público aque se dirige, vedada a_aplicaçãp,retroativa da nova interpretação" (grifo meu).84 Vide Pierre DELVOLVÉ, Droit Public de VÊconomie, Paris, Dalloz, 1998, pp. 201-211;Hartmut MAURER, Allgemeines Verwaltungsrechl cit., pp. 247-266; NorbertÁCHTERBERG, Allgemeines Verwaltungsrecht cit., p. 600; Eederico A. Castillo BLANCO, LaProtección de Confianza em el Derecho Administrativo cit., pp. 97-100 e 115-117; JavierGarcia LUENGO, El Principio de Protección de Ia Confianza em el Derecho Administrativocit., pp. 183-202; Jean-Yves CHÉROT, Droit Public Economique, 2a ed, Paris, Económica,2007, pp. 86-90; Pedro José Jorge COVIELLO, La Protección de Ia Confianza deiAdministrado cit., pp. 390-397 e 407-409; Holger Martin MEYER, Vorrang der privatenWirtschafts- und SozialgestaltungRechtsprinzip cit., pp. 310-322; Jean-Jacques SUEUR, "LaSécurité Juridique era Droit Publique Economique" m Laurence BOY; Jean-BaptisteEACINE & Fabrice SIIRIAINEN (coords.), Sécurité Juridique et Droit Economique cit., pp.456-459 e Rafael VALIM, O Princípio da Segurança Jurídica no Direito AdministrativoBrasileiro, São Paulo, Malheiros, 2010, pp. 111-131.
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No caso da aplicação da Portaria Interministerial n° 2/2011, parece
até que se utiliza de um ardil, isto é, uma espécie de "isca", para que se
presuma algo não integralmente comprovado com a fiscalização, a submissão
de trabalhadores à condição análoga à de escravo, o que não retrata uma
postura transparente por parte do Poder Público. Não se pode presumir que
ao se comportar como demanda o Poder Público, após uma ação íiscalizatória,
uma empresa irá ter prejudicada sua situação jurídica. O cumprimento com
suas obrigações, em vez de acarretar sua liberação, acaba, paradoxalmente,
por agravar sua situação, e isto sem que lhe seja garantido o contraditório.
Outra violação localiza-se no descumprimento do artigo 3°, III da Lei
n° 9.784/1999, que dispõe que o administrado tem os seguintes direitos, sem
prejuízos de outros que lhe sejam assegurados: "formular alegações e
apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração
pelo órgão competente".
Ao poder impor uma pena de inclusão no Cadastro após decisão de
auto de infração em fiscalização, sem um contraditório específico e anterior a
tal sanção, o Ministério do Trabalho e Emprego claramente não assegura o
direito positivado na lei de processo administrativo federal no sentido de
garantir que o administrado formule alegações e apresente documentos
"antes da decisão". Há, frise-se, em tal preceito a enunciação da dimensão
material ou substancial do contraditório, que, amparada na doutrina alemã,
compreende um terceiro aspecto de consideração65.
Dentro da visão mais afinada com o Estado Democrático de Direito, o
direito ao contraditório envolve não apenas: (1) o direito à informação, que
obriga a informar a parte dos atos praticados no processo e sobre os elementos
dele constantes; e (2) o direito à manifestação, que assegura a oportunidade
65 Argumento este desdobrado pelo Ministro Gilmar Mendes no MS n" 24.268/MG.42
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de reação por meio da manifestação sobre os elementos fáticos e jurídicos
constantes do processo; mas compreende, ainda, uma terceira dimensão: (3) o
direito de ver seus argumentos considerados, o que exige isenção de ânimo
para contemplar as razões apresentadas66.
Não é digno de um Estado Democrático de Direito, que reconhece a
existência de garantias constitucionais, a postura de órgãos públicos que de
antemão conduzem seus processos administrativos a resultados
predeterminados; ainda mais com base em estratégias que provocam uma
situação na qual o cumprimento de uma obrigação identificada em ação de
fiscalização irá implicar numa outra sanção ainda maior, aplicada sem
contraditório. Essas circunstâncias assemelham-se à sistemática não
recepcionada pela Constituição de "verdade sabida", em que, no âmbito de um
processo disciplinar, a autoridade competente toma conhecimento da infração
cometida e aplica a sanção sem dar qualquer oportunidade de contraditório.
A 'Verdade sabida" não foi recepcionada em nosso ordenamento
porquanto o artigo 5°, LV, da Constituição assegura aos acusados em processo
administrativo o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes67. Explana Celso António Bandeira de Mello68 que a exigência do
devido processo legal se incompatibiliza com a aplicação de sanções com base
na "verdade sabida", que tanto abrange o conhecimento direto da infração pelo
aplicador da sanção, como pela suposta notoriedade de um fato. Não é
compatível com o direito ao contraditório assumir algo como notório, sem que
se dê a oportunidade de contestação. Ainda segundo Celso António Bandeira
de Mello, a "verdade sabida" não pode ser aplicada em "qualquer modalidade
6fi Conforme voto do Ministro Gilmar Mendes no MS n° 24.26S/MG.fi7 Maria Sylvia Zanella Dl PT.ETRO, Direito Administrativo cit., p. 714.68 Celso António BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo cit., p. 876. <A( P
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de processo administrativo", não apenas aos processos disciplinares em
sentido estrito, sob pena de inconstitucionalidade69.
Também o Supremo Tribunal Federal possui decisão que determina
que: "a garantia do direito de defesa contempla, no seu âmbito de proteção,
todos os processos judiciais ou administrativos"70. Tal noção é desenvolvida
com percuciência por Romeu Felipe Bacellar Filho:
"Formou-se um consenso doutrinário acerca da
inconstitucionalidade da verdade sabida. A Constituição de
1988 exige, incondicionalmente, o processo (procedimento
em contraditório) para aplicação de sanção disciplinar de
qualquer espécie e seja qual for o conjunto probatório que a
administração pública disponhapara tanto'*11.
Acrescente-se, ainda, que para ganhar foros de efetividade, o direito
ao contraditório deve ser assegurado também substancialmente. Não basta,
conforme visto, apenas oferecer a oportunidade de o interessado formular
alegações e apresentar documentos, mas estes devem ser, nos termos do
artigo 3°, III da Lei n° 9.784/1999, "objeto de consideração pelo órgão
competente".
Enquanto o contraditório é um dos meios de se assegurar a garantia
de ampla defesa, esta é noção mais abrangente. O direito à ampla defesa
envolve a efetiva e plena possibilidade de os interessados sustentarem suas
razões, produzirem provas a partir de defesa técnica (quando indispensável),
serem submetidos a órgãos julgadores imparciais (ou seja, que respeitem,
69 Celso António BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo ciL, pp. 876-877. j70 ÁgRg no RE n" 488.443 (Rei. Mn. Gilmar Mendes), julgado em 9.10.2007. j/71 Romeu Felipe BACELLAR Filho, Processo Administrativo Disciplinar, 4a ed, São Paulo, AVrSaraiva, 2013, p. 68. o
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regras mínimas de suspeição e impedimento), bem como de observância do
devido processo legal em sentido substantivo.
Para Carmen Lúcia Antunes Rocha, o princípio da ampla defesa
contempla diversas garantias:
"O interessado tem o direito de conhecer o quanto se afirma
contra os seus interesses e de ser ouvido, diretamente e/ou
com patrocínio profissional sobre as afirmações, de tal
maneira que as suas razões sejam coerentes com o quanto
previsto no Direito. Para que a defesa possa ser preparada
com rigor e eficiência, há de receber o interessado todos os
elementos e dados sobre o quanto se ponha contra ele, pelo
que haverá de ser intimado e notificado de tudo quanto
sobre sua situação seja objeto de qualquer processo. Assim,
não apenas no início, mas no seguimento de todos os aios e
fases processuais, o interessado deve ser intimado de tudo
que concerne seus interesses cogitados ou tangenciados do
processo. Tem o direito de argumentar e arrazoar (ou
contra-arrazoar), oportuna e tempestivamente (e dizer,
antes e depois da apresentação de dados sobre a sua
situação jurídica cuidada na espécie), sobre o quanto contra
ele se alega e de ter levado em consideração suas razões"72-.
Em suma, ao manejar os processos administrativos, a Administração
Pública deve promover o impulso oficial com base em dois objetivos especiais
destacados no artigo 1° da Lei n° 9.784/1999: o melhor cumprimento dos fins
administrativos e ãproteção do direito dos administrados.
72 Carmen Lúcia Antunes ROCHA, "Princípios Constitucionais do Processo Administrativo . , ,no Direito Brasileiro", Revista de Direito Administrativo, vol. 209, julho/setembro de 1997, ov'pp. 208-209. Q
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Não há o respeito aos direitos e garantias individuais quando se afasta
o direito ao contraditório diante de sanção distinta das imposições decorrentes
do manejo da ação fiscalizatória trabalhista. Tampouco são atingidos fins
públicos ao se punir com sanção mais gravosa a empresa que toma as medidas
para a regularização de sua situação, conforme identificado por procedimento
fiscalizatório, promovendo desnecessária e excessiva penalidade. A única
finalidade no caso da Portaria Interministerial n° 2/2011 é, aparentemente, a
de prejudicar a imagem das empresas, comprometendo desnecessariamente o
desenvolvimento de suas atividades.
IV. DA NECESSIDADE DE ATO ADMINISTRATIVO FORMAL E ESPECÍFICO
Esses procedimentos ad hoc, sem base legal adequada, que se utilizam
de capitulação em artigos da CLT e normativos em fiscalizações para
enquadrar o conjunto de infrações cometidas em um "quadro de trabalho
degradante" equiparado ao trabalho em condições análogas de escravo
tampouco é correio do ponto de vista das exigências genéricas do processo
administrativo.
Trata-se de aplicação irrefletida do artigo 2° da Portaria
Inter ministerial n° 2/2011, que determina que: "a inclusão do nome do
infrator no Cadastro ocorrerá após decisão administrativa final relativa ao
auto de infração, lavrado em decorrência de ação fiscal, em que tenha havido
a identificação de trabalhadores submetidos a condições análogas à de
escravo".
Apesar do teor do artigo levar a crer que a inclusão será automática
após a ação físcalizadora, a exigência de contraditório e ampla defesa nos
processos administrativos impede que a auto executoriedade dos atos
administrativos seja acionada diretamente, tendo em vista que "ninguém será
privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" (artigo õ°, «f*A&r
LIV, da Constituição). ff46
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Reitere-se que Há a necessidade de observância das garantias
constitucionais antes que haja privação ou restrição de bens jurídicos
relevantes, isto é, a Administração Pública não pode fulminar a liberdade e o
património particular unilateralmente, sem conferir a oportunidade dereaçao
ou de comprovação de que as medidas tomadas são inadequadas.
Tal orientação encontra eco em diversas decisões do Supremo
Tribunal Federal, a exemplo do teor do seguinte recurso extraordinário:
"ATO ADMINISTRATIVO. REPERCUSSÕES.
PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE. SITUAÇÃO
CONSTITUÍDA. INTERESSES CONTRAPOSTOS.
ANULAÇÃO. CONTRADITÓRIO. Tratando-se de
anulação de ato administrativo cuja formalização haja
repercutido no campo de interesses individuais, a anulação
não prescinde da observância do contraditório, ou seja, da
instauração de processo administrativo que enseje a
audição daqueles que terão modificação a situação já
alcançada'^.
Também a Súmula Vinculante n° 3, de 30 de maio de 2007, dispõe que:
"Nos processos perante o Tribunal de Contas da União
asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da
decisão puder resultar anulação ou revogação de ato
administrativo que beneficie o interessado, excetuada a
apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de
aposentadoria, reforma e pensão".
Atualmente, além de objeto de súmula vinculante aplicável ao
Tribunal de Contas da União, o assunto foi alvo de repercussão geral
n° 158.543-9/RS (Rei. Min. Marco Aurélio).47
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reconhecida por decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao
apreciar o RE n° 594.296/MG (Rei. Min. Dias Toffoli), em relação ao seguinte
tema: "possibilidade, ou não de a Administração anular o ato administrativo,
cuja formalização repercutiu no campo de interesses individuais, sem que seja
instaurado o devido procedimento administrativo, o qual permita o
contraditório e a ampla defesa". Era 21 de setembro de 2011, o Plenário
reconheceu que qualquer ato administrativo que tiver o condão de repercutir
sobre a esfera de interesses do cidadão deverá ser precedido de prévio
procedimento em que se assegure ao interessado o efetivo exercício do
contraditório e da ampla defesa, conforme o teor da seguinte ementa:
"RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO
ADMINISTRATIVO, EXERCÍCIO DO PODER DE
AUTOTUTELA ESTATAL. REVISÃO DE CONTAGEM
DE TEMPO DE SERVIÇO E DE QUINQUÉNIOS DE
SERVIDORA PÚBLICA. REPERCUSSÃO GERAL
RECONHECIDA. 1. Ao Estado é facultada a revogação de
aios que repute ilegalmente praticados; porém, se tais aios
já decorreram efeitos concretos, sem desfazimento deve ser
precedido de regular processo administrativo. 2. Ordem de
revisão de contagem de tempo de serviço, de cancelamento
de quinquénios e de devolução de valores tidos por
indevidamente recebidos apenas pode ser imposta ao
servidor depois de submetida a questão ao devido processo
administrativo, em que se mostra de obrigatória
observância o respeito ao princípio do contraditório e da
ampla defesa. 3. Recurso extraordinário a que se nega
provimento".
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Na hipótese abordada, há ainda um agravante: o Ministério do
Trabalho e Emprego acaba se utilizando de diversas capitulações em
fiscalizações feitas para, somadas estas, procurar determinar, sem dar
qualquer oportunidade de defesa, a configuração de uma situação de trabalho
submetido a condições análogas à de escravo.
Para que fosse possível esse novo enquadramento, deveria ter sido
exarado um ato administrativo formal e específico, o que demandaria a
notificação da empresa sobre a pretensa inclusão no Cadastro, podendo esta,
então, se defender da acusação de submeter trabalhadores às condições
análogas à de escravo. Enquadramento este, ressalte-se novamente, que
significa um agravante bem maior do que as sanções referentes à capitulação
nas normas trabalhistas.
Em suma, se há uma nova capitulação, pelo princípio do contraditório
e da ampla defesa, a empresa deve ser informada da pretensão de incluir seu
nome no Cadastro. O ato formal deve ser antecedido de contraditório, pois
implica em garantia para que a empresa tenha, primeiro, conhecimento, e,
depois, possibilidade de se defender do ato que poderá lhe causar severos
danos patrimoniais e de imagem.
A exigência de anterioridade de ampla defesa é exposta nos seguintes
termos por Marcai Justen Filho:
"Também haveria frustração do princípio da ampla defesa
se a audiência do particular fosse posterior à prática do ato
estatal. Não existe ampla defesa Quando apenas se assegura
a garantia do recurso, sem oportunidade para manifestação
prévia. Ou seja, a participação do interessado tem de ser
efetiva e real. Isso não se passa quando a Administração já
formulou antecipadamente suas decisões e se restringe a
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conceder ao particular a oportunidade de manifestar-se
para manter uma aparência de impessoalidade"1^.
Trata-se de orientação que se encontra positivada no artigo 38 da Lei
n° 9.784/1999: "o interessado poderá, na fase instrutória e antes da tomada da
decisão, juntar documentos e pareceres, requerer diligências e perícias, bem
como aduzir alegações referentes à matéria objeto do processo". Ainda, a
empresa deve ser informada dos pressupostos de fato e de direito que
provocaram seu enquadramento específico na conduta de submeter
trabalhadores a condições análogas à de escravo, uma vez que o artigo 50, II
da Lei n° 9.784/1999, de aplicação subsidiária a todos os procedimentos
administrativos específicos do âmbito federal, estabelece que: "os atos
administrativos deverão ser motivados, com a indicação dos fatos e
fundamentos jurídicos, quando: II- imponham e agravem deveres, encargos e
sanções".
Diante do agravamento da situação jurídica da empresa, com a
aplicação da sanção de inclusão de seu nome no Cadastro, ela deve ser
informada do fundamento específico da capitulação legal, o que reitera nosso
entendimento no sentido da exigência de um ato administrativo formal e
específico75.
Mesmo que o Ministério do Trabalho e Emprego alegue estar atuando
dentro de sua margem de discricionariedade, Carlos Roberto de Siqueira
Castro enfatiza que: "a discricionariedade do ato não elide, em nosso sistema,
o controle jurisdicional da inexistência material e da inadequação jurídica de
seus motivos, assim como eventual desvio de finalidade"1^.
74 Marcai JUSTEN Filho, Curso de Direito Administrativo, 9a ed, São Paulo, .RT, 2013. p. 375.7t> Na realidade, seria conveniente um processo administrativo anterior ao ato administrativo \Jformal e específico, para que haja interlocução prévia. |J76 Carlos Roberto de Siqueira CASTRO, O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis Airna Nova Constituição do Brasil, Rio de Janeiro, Forense, 1989, p. 195. "
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Discricionariedade é a prerrogativa que tem a Administração Pública
para optar dentre duas ou mais soluções, todas válidas perante o
ordenamento jurídico, por aquela que, segundo critérios de conveniência e
oportunidade, melhor atenda ao interesse público. A discricionariedade é
frequentemente tida como um dos atributos do poder de polícia77.
Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro78, há dois fundamentos
básicos da discricionariedade: um de ordem prática e outro de ordem jurídica.
Pelo princípio da legalidade administrativa, a Administração só pode agir se
autorizada pela lei. Assim, ao ponto de vista prático, o legislador não é capaz
de traçar com precisão todas as decisões possíveis de serem tomadas pelos
agentes públicos para as variadas situações de gestão da coisa pública.
Expõe, ainda, Celso António Bandeira de Mello79 que a
discricionariedade acompanha a limitação (finitude) da mente humana que
não consegue identificar de forma objetiva todas as medidas normativas
idóneas para solucionar com clareza as múltiplas situações vivenciadas no
cotidiano administrativo. Ávida sempre oferece circunstâncias diferenciadas
que exigem do bom administrador ponderações ainda mais sofisticadas do que
aquelas que os standards normativos permitem extrair com clareza. Nesta
perspectiva, esclarece Genaro Carrió que: "não dispomos de um critério que
nos sirva para incluir ou excluir todos os casos possíveis, pela simples razão
de que não podemos prever todos os casos possíveis"80.
Do ponto de vista prático, o agente dispõe geralmente de uma margem
de opção, dentro das hipóteses legais, que não raro aponta para diversas
77 Maria Sylvia Zanella Dl PIETRO, Direito Administrativo cit., p. 127.78 Maria Sylvia Zanella Dl PIETRO, Discricionariedade Administrativa na Constituição de1988, 2a ed, São Paulo, Atlas, 2001, p. 70.79 Celso António BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo cit., p. 983.8(1 Genaro R. CARRIÓ, Notas sobre Derecho y Lenguage, 4" ed, Buenos Aires, Abeledo-Perrot,1990, P-36.
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decisões possíveis. Á Administração Pública deve atuar, portanto, tanto nos
casos de expressa e determinada previsão legal, quanto naqueles em que a lei
a autoriza agir de forma implícita. Em outros termos, explana Agustín
Gordillo81 que o Poder Público apenas pode agir, avançando sobre a esfera de
liberdade individual, quando a lei o autoriza, seja de forma vinculada ou
discricionária.
Do ponto de vista jurídico, a discricionariedade representa uma
decorrência do próprio ordenamento, sendo que a cada momento
interpretativo devem ser respeitados alguns limites impostos por uma norma
de grau superior, que em regra possui maior generalidade do que a norma de
grau inferior. O Chefe do Executivo quando elabora, por exemplo, um decreto
deve obedecer aos limites impostos pela lei que regulamenta e o
administrador, que segue tal regulamento, ao praticar atos, deve respeitar os
limites mais restritivos determinados no decreto; contudo, em regra, tanto
quem elabora o ato normativo subordinado à lei como aquele que executa
concretamente os parâmetros legais e regulamentares possui algum grau de
liberdade (discricionariedade) em sua atividade interpretativa.
Conforme se vai do mais genérico ao específico a operação
interpretativa torna-se mais determinada. Na realidade, ambos os tipos de
fundamentos, isto é, o prático e o jurídico, são intrinsecamente relacionados,
mas o fundamento jurídico aponta para o fato de que o legislador cria atos
normativos que possuem caráter genérico e o administrador edita, em geral,
atos de efeitos mais concretos.
Ocorre que a discricionariedade não é um poder autónomo, porque ela
implica na liberdade de atuação dentro da lei ou da moldura normativa (que
abrange regras e princípios) fornecida pelo ordenamento jurídico, ou seja, a
81 Agustín GORDILLO, Tratado de Derecho Administrativo, 5" ed, Belo Horizonte, Del Rey, x / y2003, tomo 2, pp. V-22. ^T
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Administração, ao exercer a discricionariedade, deve respeitar os limitas da
lei em que se fundamenta.
Diferenciam-se, pois, os conceitos de discricionariedade e arbítrio,
sendo que este último implica na invalidade ou ilegitimidade. Mesmo Hely
Lopes Meirelles, que não era dos intérpretes mais afinados com a restrição
máxima da discricionariedade, enfatizava que:
"Discricionariedade e arbítrio são atitudes inteiramente
diversas. Discricionariedade é liberdade de ação
administrativa, dentro dos limites permitidos em lei;
arbítrio é ação contrária ou excedente da lei. Ato
discricionário, quando autorizado pelo Direito, é legal e
válido; ato arbitrário é sempre ilegítimo e inválido'^-.
Em suma, é ultrapassado considerar que a discricionariedade seja
uma "carta em branco", ou seja, a um poder ilimitado ou incontrastável para
a prática cie atos:
"Erro é considerar-se o ato discricionário imune à
apreciação judicial, pois só a Justiça poderá dizer sobre da
legalidade da invocada discricionariedade e dos limites de
opção do agente administrativo. O que o Judiciário não
pode é, no ato discricionário, substituir o discricionarismo
do administrador pelo do juiz. Mas pode sempre proclamar
e coibir os abusos da Administração'^.
82 Hely Lopes MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, 19a ed, São Paulo, Malheiros, \J1994, p. 103. ^83 Hely Lopes MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro cit., pp. 104-105. Av
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Assegura também Di Pietro84 que quanto maior a extensão conferida
à discricionariedade, mais riscos correm as liberdades dos cidadãos, pois ela
é a chave do equilíbrio entre as prerrogativas públicas e os direitos
individuais, na medida em que a discricionariedade é limitada e submetida
não apenas a (1) aspectos formais, como competência e forma85, mas,
sobretudo a (2) aspectos: (a) materiais, que analisam os motivos
determinantes e a consecução dos fins legais, e (b) axiológicos, como a
obediência aos princípios da moralidade, da razoabilidade/proporcionalidade,
do interesse público e da motivação, que protegem a todos contra investidas
infundadas ou ilegítimas do Estado ern sua esfera de liberdade, como vem
ocorrendo na aplicação da mencionada Portaria Interministerial 11° 2/2011
pelo Ministro do Trabalho e Emprego.
84 Maria Sylvia Zanella Dl PIETRO, Discricionariedade Administrativa na Constituição de
85 Mesmo o ato discricionário no pressuposto de fato, será vinculado em aspectos comocompetência, que decorre de previsão legal, ou forma, se a forma determinada for condição devalidade do ato, por isso se diz que não existem atos totalmente discricionários. Exige-sesempre que o ato seja editado por agente competente, revestido de forma legal e que obedeçaa finalidade pública. Cf. Hely Lopes MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro cit., pp.150-154.
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RESPOSTA
Diante da argumentação exposta, concluímos:
a. A inclusão do Cadastro de Empregadores que tenham
submetido trabalhadores a condição análogas à de escravo nos
moldes estabelecidos pela Portaria Interministerial 11° 2, de 12 de
maio de 2011, é um ato que compete ao Ministro de Estado do
Trabalho e Emprego ou ao Secretário de Fiscalização do Trabalho?
O Ministro do Trabalho e Emprego é a autoridade administrativa
competente para fiscalizar as condições de trabalho e aplicar as sanções legais
pertinentes (como a inclusão no Cadastro de Empregadores que tenham
submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo), de acordo com o
artigo 21, XXIV da Constituição e o artigo 27, XXI, 'c' da Lei n° 10.683/2003.
b. A capitulação contida nos autos de infração com base em
dispositivo legal da Consolidação das Leis do Trabalho, sem qualquer
menção à Portaria Interministerial n° 2, de 12 de maio de 2011, é
suficiente para assegurar o devido processo legal, contraditório e
ampla defesa no que toca à inscrição da empresa no Cadastro de
Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condição
análoga à de escravo?
Á capitulação sem qualquer menção ao fundamento legal não é
suficiente, pois haveria necessidade de uma capitulação específica e
fundamentada com base na Portaria Interministerial n° 2, de 12 de maio de
2011. Não é admissível, inclusive, conforme exposto, que haja inscrição da
empresa no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores
a condição análoga à de escravo sem que se assegure o direito ao contraditório
e à ampla defesa, sob pena de violação do devido processo legal. A Lei de
Processo Administrativo (Lei n° 9.784/1999), que tem aplicação subsidiária i ,
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GILBERTO BERCOVICIProfessor Titular de Direito Económico e Economia Política da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo
IRENE PATRÍCIA NOHARAProfessora Livre-Docente em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade
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aos procedimentos específicos (artigo 69), prevê, no seu artigo 50, II, a
obrigatoriedade de motivação com indicação dos fundamentos de fato e de
direito de atos administrativos que "imponham e agravem deveres, encargos e
sanções",
c. À luz da Portaria Interministerial n° 2, de 12 de maio de
2011, haveria a necessidade de um ato administrativo formal e
específico, posterior à decisão final prevista no artigo 2°, que
determine a inclusão da Empresa no Cadastro de Empregadores que
tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo?
Sim. Haveria a necessidade de um ato administrativo formal e
específico, garantindo o contraditório e a ampla defesa antes da medida de
inclusão do nome da empresa no Cadastro de Empregadores que tenham
submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo. Tal exigência
legal é extraída do artigo 38 da Lei n° 9.784/1999, que assegura ao interessado
o direito de "antes da tomada de decisão, juntar documentos e pareceres,
requerer diligências e perícias, bem como aduzir alegações referentes à matéria
objeto do processo".
d. Haveria a necessidade de um ato administrativo formal e
específico para comunicar ou intimar à empresa de que ela seria
incluída no Cadastro de Empregadores que tenham submetido
trabalhadores a condições análogas à de escravo por força de
interpretação conferida pela fiscalização trabalhista?
Sim. Á não comunicação ou a não intimação da empresa por ato formal
e específico antes da imposição de sanção que agrava sua situação jurídica
configura uma prática arbitrária e violadora das garantias constitucionais. É
orientação do Supremo Tribunal Federal, em decisão com repercussão geral,
conforme exposto, eme aualouer ato administrativo nue tiver o condão de
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prévio procedimento em que se assegure ao interessado o efetivo exercício do
contraditório e da ampla defesa. Haveria, por conseguinte, a necessidade de
um ato de dar ciência à empresa, especificamente motivado, para que ela
pudesse se defender.
e. Compete ao agente físcalizador, ao julgar os autos de
infração com capitulação apenas nas normas trabalhistas, imputar à
Empresa, por analogia, a prática de trabalho escravo nos moldes da
Portaria Interministerial n° 2, de 12 de maio de 2011, sem que a
autuada se defenda e tenha conhecimento da possibilidade de
inclusão no Cadastro de Empregadores?
Não. O agente fiscalizador não poderia ampliar o espectro de aplicação
das sanções previstas na área trabalhista para, por analogia, reconhecer a
prática de trabalho escravo, sem garantir o direito ao contraditório. A
ampliação da aplicação de sanções por parte do agente fiscalizador também
não pode ter por fundamento um ato infralegai, tendo em vista que a pena
não pode ser aplicada sem prévia cominação legal (nullum crimen, nulla
poena sine legé). A portaria é considerada um ato infralegal que não pode
inovar a ordem jurídica, com a previsão de nova e mais gravosa cominação,
tendo em vista o princípio constitucional da legalidade (artigo 5°, II e artigo
37, caput da Constituição).
f. Haveria a necessidade de um processo específico para esse
tipo de imputação, de forma a garantir ao particular o contraditório
e a ampla defesa, de acordo com a Portaria Ministerial n° 2, de 12 de
maio de 2011?
Sim. Haveria a necessidade de um processo específico com as devidas
garantias do contraditório e da ampla defesa para uma imputação de maior
gravidade nos termos da Portaria Interministerial n°2/2011. A inclusão no
Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições57
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análogas à de escravo afeta indiscutivelmente o nome da empresa e provoca
sérios prejuízos à sua imagem. Esta inclusão pode ser fatal ao próprio
desenvolvimento das suas atividades empresariais, dando causa, inclusive, à
suspensão de financiamentos públicos.
g. A condenação final em processo administrativo decorrente
de autos de infração que têm por objeto apenas infrações
trabalhistas, com aplicação de multa, pode resultar na inclusão do
nome do Cadastro de Empregadores que tenham submetido
trabalhadores a condições análogas à de escravo, a teor do que
dispõe a Portaria Intenninisterial n° 2, de 12 de maio de 2011?
Não. O Ministério do Trabalho e Emprego exorbita de suas faculdades
discricionárias ao praticar excesso de poder, tomando medidas que violam a
própria proporcionalidade e adequação dos seus atos. Uma eventual medida
de inclusão no Cadastro de Empregadores que tenham submetido
trabalhadores a condições análogas à de escravo é excessivamente gravosa,
isto é, desnecessária para o alcance do resultado que se objetiva. Há flagrante
violação do princípio da proteção à confiança legítima ('Vertrauensschutz'*) ,
dado que a colaboração das empresas vem sendo entendida como uma
infundada confissão de cometimento de ato ilícito, sem que fosse assegurado
o mais elementar direito de defesa. Ao agir com excesso, o Ministério do
Trabalho e Emprego rompe com a confiança e a boa-fé da Administração
Pública, além de não cumprir com a determinação legal que estipula que o
administrado deve "ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores,
que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas
obrigações" (artigo 3°, I da Lei n° 9.784/1999). Trata-se, portanto, de medida
excessiva e, portanto, contrária à lei e às garantias constitucionais dos
administrados.
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ds São Paulo
h. Na axisência de atribuição de competência específica para
a prática do ato formal de inclusão de nome no Cadastro de
Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições
análogas à de escravo, responderá pelas ilegalidades o Ministro de
Estado do Trabalho e Emprego?
Sim. De acordo com o artigo 87, parágrafo único, inciso I da
Constituição, bem como os artigos 19, 20, 25 e 26 do Decreto-Lei n° 200/1967,
a decisão administrativa final em qualquer processo administrativo em um
Ministério é do Ministro responsável. Â Constituição de 1988 é explícita ao
determinar que compete aos Ministros de Estado "exercer a orientação,
coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na
área de sua competência" (artigo 57, parágrafo único, inciso I). Não há,
portanto, ausência de atribuição de competência específica. O Ministro do
Trabalho c Emprego é a autoridade administrativa competente para fiscalizar
as condições de trabalho e aplicai1 as sanções legais pertinentes (como a
inclusão no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores
a condições análogas à de escravo), de acordo com o artigo 21, XXIV da
Constituição e o artigo 27, XXI, 'c' da Lei 11° 10.683/2003.
Este é o nosso parecer.
São Paulo, 22 de dezembro de 2014.
Irene Patrícia Nohara
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