Parecer Sistema Carcerário - Versão Final
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Prof. Dr. Juarez Tavares
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PARECER
1. Consulta-me o ilustre Professor Doutor Daniel Sarmento, Coordenador da Clnica
de Direitos Fundamentais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e
doravante identificado como consulente, acerca da relao entre as condies concretas
de funcionamento do sistema prisional brasileiro e o alcance dos objetivos manifestos da
pena, bem como sobre a viabilidade de o Poder Judicirio levar em conta tais condies
nos momentos da fixao e execuo das penas privativas de liberdade e medidas
cautelares de priso.
2. O consulente apresenta, de forma objetiva, as seguintes indagaes:
1. O atual cenrio do sistema prisional brasileiro compromete a realizao dos objetivos normalmente atribudos pena de priso? 2. Quais so os efeitos do cumprimento da pena, nessas condies, sobre a segurana pblica? 3. Pode-se dizer que a pena cumprida nessas condies se afigura, na prtica, mais gravosa ao apenado do que aquela prevista em lei e imposta pelo Poder Judicirio? 4. Neste caso, deve o Poder Judicirio levar em considerao esta natureza mais gravosa da sano, ao fixar a pena e ao decidir os incidentes da execuo penal? 5. Estas condies degradantes devem ser levadas em considerao tambm na imposio de medidas cautelares penais?
3. No presente parecer, busca-se esclarecer algumas questes controvertidas acerca
do funcionamento do sistema carcerrio, de forma tambm a propor instrumentos
poltico-dogmticos de conteno de tendncias autoritrias do poder de punir. A resposta
aos quesitos seguir, em sntese, o seguinte roteiro argumentativo: (i) inicialmente,
discorrer-se- brevemente acerca das funes manifestas da pena e da sua atual
relevncia para uma discusso sobre eficcia; (ii) na sequncia, levando em conta Parecer pro bono, redigido em face da relevncia da matria para o direito brasileiro. Gostaria de agradecer, nesta oportunidade, a Ademar Borges, Joo Marcos Braga de Melo, Patrick Cacicedo, Rafael da Escossia e Tiago Joffily pela colaborao inestimvel na pesquisa, coleta de informaes e sugestes relacionadas ao tema.
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especialmente as teorias da preveno especial positiva e negativa, confrontar-se-o tais
elaboraes discursivas com dados concretos de funcionamento do sistema carcerrio
nacional; (iii) por fim, na penltima seo deste parecer, desenvolver-se-o os conceitos
de pena real, pena ficta e tambm o princpio da flexibilidade da pena, bem como a
relao entre culpabilidade e individualizao da pena, de forma a no contexto da
produo de sentenas, imposio de medidas cautelares e incidentes da execuo penal
propor estratgias de conteno da sistemtica violao aos direitos fundamentais de
centenas de milhares de pessoas submetidas ao sistema carcerrio brasileiro.
I As funes manifestas da pena em vista do contexto carcerrio nacional
4. Acerca da primeira indagao realizada pelo consulente, devem ser traados, para
fins metodolgicos, alguns questionamentos acessrios:
(i) Quais so os objetivos normalmente atribudos pena de priso? No contexto de tais objetivos (ou funes manifestas) da pena, quais possuem relevncia terica para a discusso ora apresentada? (ii) Qual a atual situao do sistema carcerrio nacional? (iii) Qual relao pode ser estabelecida entre os questionamentos (i) e (ii)?
5. Em um primeiro momento, necessrio que se esclaream os possveis sentidos
de que se pode valer a atuao punitiva. Embora consciente da pluralidade de adeses
tericas que o tema vem adquirindo, ao longo dos anos, reserva-se este parecer a
apresentar uma breve digresso histrica do discurso jurdico-penal de legitimao da
pena.
6. No decorrer da evoluo do sistema punitivo, encontram-se, de um lado, as
chamadas teorias absolutas, cuja expresso se consubstancia nos conceitos de expiao
ou compensao da culpabilidade;1 de outro, identificam-se as teorias relativas ou
1 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal Parte Geral. 5.ed. Florianpolis: Conceito Editorial, 2012, p. 419.
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preventivas , estas destrinchveis nas correntes da preveno geral (positiva ou
negativa) e da preveno especial (tambm positiva ou negativa).
7. As teorias absolutas, independente da dificuldade em resumi-las em uma nica
formulao, esto sempre, de algum modo, vinculadas a um mero juzo formal2 ou a
certos pressupostos normalmente enunciados pela doutrina corrente, tais como o prvio
cometimento do crime3 ou o problemtico iderio abstrato de justia.4 Pode-se dizer,
assim, que as concepes absolutas historicamente dispersas no pretendem afirmar,
em princpio, qualquer tipo de argumento utilitrio da pena.5 Para todos os efeitos, no
parece lgico que se recorra a dados objetivos de criminalizao a fim de se aferir a
eficcia concreta (ou as condies para tanto) da sano orientada retributivamente, uma
vez que o seu objetivo reside, de maneira tautolgica, na prpria represso.6 Depois da
Segunda Guerra Mundial, especialmente com a edificao de Estados regidos por uma
Constituio, cuja guarda foi cometida s Cortes Constitucionais, as quais passaram a
enfatizar a subordinao do poder de punir demonstrao de sua efetiva utilidade para a
pessoa humana e a sociedade (princpio da idoneidade), a doutrina penal vem
demonstrando certo desprezo pelas teorias absolutas ou retributivas. Assim, ROXIN
enumera os seguintes argumentos contra sua adoo: a) a teoria no explica quando se
tenha que punir, seno afirma sempre a necessidade da punio; b) fracassa diante de
traar um limite ao poder de punir; c) no impede que se inclua no Cdigo Penal qualquer
conduta e, d, assim, um cheque em branco ao legislador para criminalizar tudo o que 2 TAVARES, Juarez. La racionalidad, el derecho penal y el poder de penar: los lmites de la intervencin penal en el Estado Democrtico. In: Racionalidad y derecho penal. Lima: Idemsa, 2014, p. 133. 3 BOSCHI, Jos Antonio Paganella. Das penas e seus critrio de aplicao. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014, p. 88. 4 ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. Coleo Vega Universidade: Lisboa, 1986, p. 16. 5 Opta-se aqui, pois, por uma adeso tcita o que no se confunde com concordncia ao sentido categorial de punio proposto por Immanuel Kant. A saber: ZAFFARONI, Eugenio Ral; BATISTA, Nilo, et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume Teoria Geral do Direito Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 114. 6 evidente que a busca pela noo abstrata de proporcionalidade pode resultar na coerente indagao acerca da gravidade em concreto da punio frente ao grau de intensidade da leso do bem jurdico. Mais adiante neste parecer, no entanto, tal questo ser abordada sob outro enfoque, qual seja, o do atendimento aos princpios constitucionais e internacionais de proteo pessoa. Para todos os efeitos, tal perquirio no se situa na seara da teleologia e, portanto, no objeto da atual controvrsia.
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quiser; d) insustentvel a tese de compensao de culpabilidade, pois se baseia num
atributo indemonstrvel, que a liberdade de vontade; e) mesmo se admitindo a
possibilidade de uma retribuio, essa ideia s pode ser considerada plausvel mediante
um ato de f, porque no ser racional pretender excluir um mal por meio de outro mal,
que sofrer a pena. Relativamente ao ltimo argumento, assim se pronuncia ROXIN: 7
Certamente, est claro que tal procedimento corresponde ao arraigado impulso de vingana humana, do qual surgiu historicamente a pena; mas que a assuno de retribuio pelo Estado seja algo qualitativamente diverso da vingana, que a retribuio elimine a culpa de sangue do povo, expie o delinquente, etc., tudo s concebido por um ato de f, que, conforme nossa Constituio, no pode ser imposto a ningum, nem vlido para a fundamentao, vinculante a todos, da pena estatal.
8. Esses argumentos so encampados pela doutrina penal contempornea, que no se
v autorizada a descartar que ao Estado democrtico cumpre o papel de evitar a vingana
e buscar todos os recursos a tornar exequvel a convivncia. A crtica de ROXIN
pertinente, mas, ao contrrio do que enuncia, no corresponde a uma suposta natureza
humana a subsistncia de um impulso de vingana. Mais correta, nesse ponto, a
considerao de FROMM, em oposio chamada etologia de LORENZ, no sentido de
que o ser humano no est cunhado naturalmente por um instinto agressivo, o qual nada
mais do que a expresso das contradies sociais que se desenvolvem em seu contexto.8
Essa assertiva, ainda que sob outros enfoques, vem sendo corroborada, com estudos de
psicologia experimental, efetuados, principalmente, pela Escola de Psicologia de Yale,
que descartaram a origem instintiva da agresso e consequentemente do chamado
impulso de vingana.9
7 ROXIN, Claus. Fundamentos poltico-criminales del derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2008, p. 52 e ss. 8 FROMM, Erich. Anatomia da destrutividade humana, Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 22. 9 MEILI/ ROHRACHER. Lehrbuch der experimentellen Psychologie, Stuttgart/ Wien: Hans Huber, 1972, p. 323 e ss.
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9. Apesar das deficincias das teorias absolutas, centradas na retribuio, h um
movimento moderno de recuper-las, no sentido de uma teoria de retribuio negativa,
limitadora, que serviria ao postulado de reduo do poder punitivo sob a gide de uma
textura tica. Para tanto, indispensvel valer-se, inicialmente, da teoria do bem jurdico
e s admitir a punio de uma conduta quando se tratar de leso ou de perigo a bens
essenciais pessoa humana; tambm, ao se contrapor tendncia das teorias relativas ou
preventivas, que pretendem excluir o conceito de culpabilidade e substitu-lo pela
periculosidade, o que implicaria uma ampliao desmedida do leque das punies;
finalmente, deve-se sedimentar a ideia de que uma teoria retributiva s ter validade na
medida em que esteja vinculada a um conceito substancial de fato punvel, restringido
quelas hipteses de uma efetiva leso de bens jurdicos essenciais. Assim, diz
NAUCKE:10
A proposio de que a pena deve ser retribuio justa no uma forma simples com a qual o mbito de punio, a partir do Direito positivo, ou mesmo a pena possam ser justificados. Essa proposio tem um significado bastante preciso, exigindo ela um conceito determinado de delito. No pode ser uma teoria absoluta da pena sem um conceito estrito de delito.
10. Mas NAUCKE, por seu turno, admite que o direito penal atual se orienta por
finalidades, da concebendo que, ao lado de um direito penal retributivista, subsista um
direito penal utilitrio.11 Este parece ser, assim, o ponto principal a ser enfrentado: como
superar as teorias retributivistas e como manejar a teoria preventiva, no sentido utilitrio,
sob o lema da proteo do sujeito.
11. A anlise das teorias relativas ou preventivas aquelas cuja pena criminal se
justifica em virtude dos conceitos de segurana social e preveno do crime 12 conduz,
10 NAUCKE, Wolfgang. O alcance do direito penal retributivo em Kant. In: Greco/Tortima (org.). O bem jurdico como limitao do poder estatal de incriminar? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 95. 11 NAUCKE, Wolfgang. Op. cit., p. 97. 12 BRUNO, Anbal. Direito Penal: Parte Geral, Tomo 3o Pena e Medida de Segurana. Editora Forense: So Paulo, 1956, p. 34.
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como consequncia, investigao mais pormenorizada acerca do funcionamento das
agncias punitivas, especialmente do sistema carcerrio. Com isso ser possvel
identificar as condies efetivas da execuo, bem como da eficcia da pena sobre a vida
futura do condenado e sobre o prprio processo criminalizador.
12. As teorias preventivas tm como caracterstica se estenderem a toda a
coletividade (preveno geral negativa ou positiva), mediante um ato de coao
decorrente da ameaa de pena, e tambm aos autores dos fatos punveis (preveno
especial negativa ou positiva), com sua execuo. Convm observar, todavia, que no
existe uma teoria preventiva exclusiva. Todas esto mescladas com asseres retributivas
ou relativas. As teorias da preveno geral negativa (ou dissuaso) foram constitudas,
sobretudo, pelas contribuies de FEUERBACH, ROMAGNOSI e BENTHAM. 13
Conforme indicam ZAFFARONI e NILO BATISTA,14 as teorias da preveno geral
negativa ora se acossam de contedo retributivo,15 ora assumem teor relativo16 mais
evidente. Em ambas as situaes, a medida da pena uma moderao da
exemplarizao. 17
13. Indagaes acerca da eficcia de tal efeito dissuasrio, no entanto, encontram-se
fora da anlise das condies concretas do sistema prisional18 e devem ser perquiridas
mediante um estudo conjunto da extenso da programao criminal, da gravidade em
abstrato das cominaes e da populao carcerria em termos numricos. A avaliao
13 BRUNO, Anbal. Op. cit., p. 38. 14 ZAFFARONI, Eugenio Ral; BATISTA, Nilo, et al. Op. cit., pp. 115-116. 15 Aproximam-se da retribuio, pois, em duas verses (conforme indicam os autores): quando pretendem dissuadir para assegurar os bens daquelas que poderiam ser futuras vtimas de outros, postos em perigo pelo risco da imitao da leso aos direitos da vtima e, por isso, carentes de retribuio na medida da injustia e da culpabilidade pelo ato ou ainda para introduzir obedincia ao estado, lesionado por uma desobedincia objetiva apenada na medida adequada retribuio do injusto. Idem, p. 115. 16 Assim, quando a dissuaso persegue tanto a obedincia ao estado quanto a segurana dos bens daqueles que no so vtimas, o delito um sintoma de dissidncia (inferioridade tica) e a medida da pena deve ser a retribuio por essa conduo desobediente da vida. Idem, pp. 115-116. 17 Idem, p. 116. 18 de se destacar, ainda mais, que a aproximao do teor retributivo, conforme j foi indicado, implica uma menor potencialidade de verificao teleolgica. Assim, a relevncia da presente investigao deveria, ainda que hipoteticamente, restringir-se ao sentido mais utilitrio possvel acerca do termo dissuaso.
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acerca da eficcia desse efeito pedaggico geral da pena, de cuja legitimidade se deve
seriamente duvidar,19 no faz parte do objetivo do presente parecer.20
14. Na seara da preveno especial, a variante negativa visa, fundamentalmente,
neutralizao (ou inocuizao) do condenado, consistente na incapacitao para
praticar novos crime durante a execuo da pena 21 , o que corresponde a um dos
enunciados do Programa de Marburg, apresentado por VON LISZT.22 Uma corrente mais
radical postula ainda a eliminao (orgnica) do sentenciado.23 Aqui, cabe atentar para
dois pontos fundamentais: (i) o primeiro consiste na inviabilidade constitucional, em vista
dos princpios de proteo pessoa,24 de sustentao do paradigma organicista de
eliminao do sentenciado, tal como se encontra em GAROFALO;25 (ii) o segundo,
parte de qualquer indagao acerca da legitimidade legal ou terica de tal corrente
preventiva, corresponde aferio concreta da ocorrncia de crimes durante o
19 A preveno geral negativa, defendida por Feuerbach, segundo a qual o objetivo final da norma a intimidao geral, por meio da anulao do impulso da sensualidade de todas as aes delituosas, tambm seriamente criticada, sendo pertinente o alerta de que a preveno geral no oferece limites ao poder punitivo do Estado (QUEIROZ, Paulo. Funes do direito penal. 2.ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 36). Essa teoria, ademais, est baseada na mxima de que a intimidao cuja eficcia bastante discutvel atingida com a imposio de um mal a algum para que os outros se omitam de cometer outro mal. No h fundamento vlido de legitimao da aplicao da pena para o desviante. A legitimao estaria fora do fato e do sujeito concreto. Em suma, a teoria poltico-criminalmente discutvel e carece de legitimao (Idem, p. 36). 20 Esboa-se aqui, todavia, a ineficcia da ameaa penal para coibir comportamento criminosos. Tal afirmativa, entretanto, comporta raras hipteses passveis de comprovao, tais quais conforme indicam Zaffaroni e Nilo Batista (Op. cit., p. 118) os crimes de menor gravidade, em que a comprovao emprica do efeito dissuasrio completamente excepcional e nem sequer o prprio protagonista poderia afirm-la com certeza ou ainda os estados de terror caracterizados por penas cruis e indiscriminadas, estas naturalmente vedadas pelo ordenamento ptrio (art. 5o, XLVII, CF). Nesse sentido, ainda: SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 427. 21 SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 424. 22 LISZT, Franz von. Der Zweckgedanke im Strafrecht, in ZStW, vol. 3 (1883), p. 1-47. 23 GAROFALO, Raffaele. Criminologia. Studio sul delitto e sulla teoria de la repressione, 1891, p. 158. 24 Assim, TAVARES, Juarez. Culpabilidade e Individualizao. In: Cem anos de reprovao. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011, p. 132. 25Vide dispositivo constitucional: Art. 5o [...] XLVII - no haver penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de carter perptuo; c) de trabalhos forados; d) de banimento; e) cruis;
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cumprimento de pena.26 Relativamente ao Programa de Marburg, ressalta BAURMANN
que, independentemente de seu sentido preventivo, que aparentemente implicaria um
direito penal substancialmente orientado para a proteo de bem jurdico, padece de, pelo
menos, dois defeitos: a preferncia pelos interesses da sociedade e do Estado, em
desconsiderao dos direitos e interesses do condenado e do efetivo benefcio que esse
poderia obter com a execuo da medida, portanto, no sentido puramente epistemolgico
e intelectualista, e a vinculao da pena a um sistema de valores, que expressam
sentimentos de pura moralidade.27
15. No setor das teorias relativas associadas ao sujeito, autor da infrao, desde a
influncia exercida nos pases ibero-americanos pelo correcionalismo, vm se
destacando, cada vez mais, as teorias da preveno geral positiva, as quais, ora reforam
simbolicamente internalizaes valorativas do sujeito no delinquente para conservar e
fortalecer os valores tico-sociais elementares em fase de aes que lesionam bens
jurdicos e se encaminham contra esses valores, 28 ora pretendem reforar
simbolicamente a confiana do pblico no sistema social (criar consenso), a fim de que
este possa superar a desnormalizao provocada pelo conflito ao qual deve responder a
pena, na medida necessria para obter o reequilbrio do sistema.29 Essas duas variantes
correspondem a modelos tericos diferenciados. Enquanto a primeira est vinculada
obra de WELZEL, 30 a segunda decorre das proposies funcionalistas, desde
DURKHEIM 31 at JAKOBS. 32 Em qualquer dos casos, a eficcia almejada, seja
simblica, seja preventivo-integralmente, no pode ser aferida a partir de uma anlise 26 Embora seja comum uma noo ampla de criminalidade possivelmente imiscuda do conceito de delinquncia , opto por restringir o estudo ao cometimento de crimes durante o perodo de encarceramento. No considerarei, portanto, a prtica genrica de faltas como evidncia da ineficcia do projeto preventivo especial negativo. 27 BAURMANN, Michael. Kriminalpolitik ohne Ma. Zum Marburger Programm Franz von Liszts, in Liszt Vernunft, Kriminalsoziologische Bibliographie, 1984, p. 54-79. 28 ZAFFARONI, Eugenio Ral; BATISTA, Nilo, et al. Op. cit., p. 116. 29 Idem, ibidem. 30 WELZEL, Hans. Derecho penal alemn, traduo de Juan Bustos Ramrez e Sergio Yaez Perez. Santiago: Editorial Jurdica de Chile, 1970, p. 12. 31 DURKHEIM, Emile. La divisin del trabajo social, traduo de Carlos Posada, Barcelona: Planeta-Agostini, 1993, p. 136. 32 JAKOBS, Gnther. Norm, Person, Gesellschaft. Berlin: Duncker & Humblot, 1997, p. 52.
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exclusiva da populao carcerria (e de suas condies de vida), seno mediante uma
ampla aferio sociolgica.
16. Os problemas das teorias da preveno especial positiva residem em dois pontos:
na incapacidade emprica de se obter do condenado um compromisso com a ordem
jurdica, de no mais delinquir, de aceitar, portanto, as regras de comportamento social
impostas pelo direito, por um lado, e na impossibilidade jurdica de se exigir dele que
ajuste sua personalidade e sua concepo do mundo quelas que lhe so ofertadas na
priso. Se o Estado democrtico se funda na proteo da dignidade humana e na
liberdade, a qual engloba no apenas a de ir e vir, seno tambm a de crena, de
conhecimento, de concepes polticas e outras, no ser possvel exigir-se de ningum,
nem mesmo do condenado, que acolha a ideologia dominante do sistema. A chamada
ressocializao do condenado e sua reinsero social devem ser delimitadas por atos que
o possam orientar para a convivncia e a tolerncia. To s. Os demais so acessrios que
podem lhe ser ofertados como complementos aos procedimentos de reinsero. As teorias
da preveno especial positiva no podem servir funo de reparar a inferioridade
perigosa da pessoa para os mesmos fins, diante dos mesmos conflitos,33 como se a
pessoa do condenado fosse um objeto desprovido de individualidade e personalidade.
Isso corresponderia ideologia de um estado autoritrio bem prximo ao fascismo. O que
o sistema pode e deve fazer empreender esforos para que o condenado possa conviver,
em primeiro lugar, com os demais, sem violar seus direitos subjetivos, depois,
mostrando-lhe as regras vigentes para que no se aventure a novamente infringir a lei
penal. Observe-se que, independentemente de qualquer regime ou de qualquer efeito
supostamente benfico que essa tarefa possa produzir no comportamento do condenado, a
pena constitui sempre uma humilhao, que no desaparece nunca de sua vida futura.
Como informa FABRICIUS, a humilhao j decorre da prpria publicidade de sua
imposio. Por sua vez, a humilhao gera o sentimento de vergonha, que se manifesta
diante de todos e o qual jamais poder representar um papel juridicamente positivo,
33 ZAFFARONI, Eugenio Ral; BATISTA, Nilo, et al. Op. cit., p. 116.
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porque sempre associado a um juzo de reprovao, o qual fortalece cada vez mais os
traumas internos e impede o procedimento de reinsero.34 O grande passo, portanto, da
preveno positiva evitar que as regras e tarefas ressocializadoras se transformem em
mais um puro e simples elemento de represso.
17. Desde a primeira verso do Cdigo Penal de 1940, advinda da comisso composta
por NELSON HUNGRIA, ROBERTO LIRA e NARCELIO DE QUEIROS, o Brasil
demonstra a preferncia por uma teoria mista da pena, ora calcada no classicismo italiano
de vis retribucionista, ora nos preceitos preventivistas, enunciados pelo positivismo. A
primitiva redao do art. 42, da antiga Parte Geral, expressava bem essa postura. O
legislador de 1984, que procedeu alterao da atual Parte Geral, tambm estava,
primeira vista, orientado por essa concepo, ao dispor no art. 59 que a pena deve ser
individualizada conforme seja necessrio e suficiente para reprovao e preveno do
delito. Convm observar, todavia, que, apesar dessa terminologia sustentar essa antiga
tendncia, uma viso integral da nova da Parte Geral e da ordem jurdica pode indicar que
aqui se adota uma teoria dialtico-unificadora da pena: no momento da cominao
(ameaa), prepondera um carter preventivo geral; no momento da aplicao
(individualizao), desponta o carter preventivo especial positivo e negativo; no
momento da execuo da pena, sobreleva a funo preventiva especial positiva. Essa
concluso pode ser bem justificada pela anlise do diploma inspirador do cdigo. A regra
fixada no art. 59 do Cdigo Penal tem seus antecedentes no Projeto Alternativo alemo,
de 1966, em cujo 2 (1) estava consignado que a pena deveria ser aplicada de modo a
servir para a proteo de bem jurdico e para a reinsero do autor na comunidade
jurdica. A referncia a essas finalidades descartava, portanto, a adoo de uma teoria
retributiva da pena. A pena deveria ter uma finalidade utilitria, de ser apta proteo do
bem jurdico e de conduzir o condenado a uma condio que pudesse conviver na
comunidade jurdica. Essa consigna, no entanto, pelos termos do prprio projeto, que foi
elaborado por uma pliade de catedrticos renomados, estava associada a um pressuposto
34 FABRICIUS, Dirk. Kriminalwissenschaften: Grundlagen und Grundfragen, II. Mnster: Lit Verlag, 2011, p. 299 e ss.
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indeclinvel imposto pela ordem jurdica, de que a pena no poderia, em qualquer caso,
superar os limites da culpabilidade. Isso significa que, no controle do crime e em sua
preveno, geral ou especial, o Estado no poder atuar desmedidamente, nem quanto
definio das condutas e cominao das sanes, nem relativamente aos projetos de
ressocializao. H, portanto, um limite para a chamada ressocializao. Esse limite
imposto, desde logo, pela escala da culpabilidade.
18. Ainda que a culpabilidade constitua um limite da pena, isso no suficiente para
estabelecer as condies que devero afetar o sujeito, uma vez condenado e submetido
sua execuo. O Projeto Alternativo vinculou essas condies a um processo de
reinsero social do autor, quer dizer, queles procedimentos a convenc-lo de poder
conviver com os demais, uma vez livre da sano.
19. Est claro que o art. 59 do Cdigo Penal no instituiu uma frmula to incisiva
como seu antecedente alemo, mas pode comportar uma interpretao conforme a
Constituio. Ao afirmar, inicialmente, em termos de gradao, que a pena deve ser
aplicada tendo em vista a culpabilidade do agente, j indicou o caminho para sua prpria
limitao: a pena no pode ultrapassar os limites da culpabilidade. Nem teria sentido
outra concluso, porque, ento, de nada valeria a definio e a prpria configurao da
culpabilidade, que, em lugar de constituir um elemento funcional da ordem jurdica,
passaria a ser um simples pressuposto formal da condenao.
20. Observada unicamente a expresso contida no art. 59 do Cdigo Penal, de que a
pena dever ser aplicada de modo a ser necessria e suficiente para a reprovao e
preveno do crime, poder-se-ia entender, primeira vista, que aqui se adotou tambm
uma teoria retributiva da pena. Ocorre, porm, que a Constituio estabeleceu como
objetivo da Repblica a promoo do bem de todos, sem preconceitos de origem, raa,
sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de descriminao (art. 3, IV). Isso
significa que esse objetivo alcana no apenas as pessoas no condenadas, mas tambm
aquelas que estejam respondendo a processos, que tiverem sido condenadas e estiverem
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cumprindo pena. Nesse aspecto, a perda ou a restrio de liberdade do sujeito no pode
implicar sua eliminao como pessoa, a qual deve merecer do Estado todos os benefcios
destinados aos demais. A adoo de uma teoria retributiva, que pudesse decorrer da
expresso represso, no pode se contrapor aos objetivos traados pela Constituio, ou
seja, o Estado no pode simplesmente reprovar o sujeito e nem subordin-lo a um
procedimento preventivo exclusivo, sem atentar para seu prprio bem. A fim de
compatibilizar os termos do art. 59 do Cdigo Penal com a Constituio, deve-se
entender que a expresso represso est a indicar a exigncia de que a medida da pena
se oriente em funo de critrios de proporcionalidade e no de uma retribuio moral.
Da ser importante reconstruir o prprio contedo da culpabilidade e de sua relao com a
medida da pena.
21. Na moderna concepo da teoria do delito, a culpabilidade no pode estar
desvinculada do fato injusto. Essa vinculao uma consequncia do princpio da
legalidade. O juiz, ao aplicar a pena, ao dos-la, no pode criar por si prprio as
condies e o contedo da culpabilidade. A culpabilidade, como elemento ltimo da
configurao da conduta como ao criminosa, extrai seu contedo do que a lei
expressamente estabelea. Norteia-se, assim, inicialmente, pela excluso da
imputabilidade (art. 26, CP) ou do conhecimento do ilcito (arts. 20, 1, e 21, CP), pelos
motivos de exculpao legalmente previstos (coao irresistvel e obedincia hierrquica)
ou decorrentes da ordem jurdica (excesso escusvel de legtima defesa, estado de
necessidade exculpante, coliso exculpante de deveres e inexigibilidade de outra conduta)
e se delimita pelo contedo do injusto. No ter sentido afirmar-se a culpabilidade do fato
doloso, por exemplo, sem levar em conta a diferenciao, feita no injusto, entre dolo
direto e dolo eventual. O juiz no pode criar parmetros de medida da culpabilidade sem
atender ao contedo do injusto, que, por sua vez, est amparado na respectiva definio
do delito e seus elementos.
22. Por seu turno, se a culpabilidade constitui o limite mximo da pena, os demais
elementos referidos no art. 59 do Cdigo Penal no podem implicar um aumento alm
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desse limite, salvo nos casos expressos em lei, como ocorre com as qualificadoras e as
causas de especial aumento, que esto legalmente previstas, ou das agravantes, respeitado
o limite da cominao. Nesse ponto, os propsitos preventivos no podem levar em
conta, por exemplo, a conduta social do ru para aumentar a pena. Em primeiro lugar,
esse aumento extrapola os limites do injusto, impostos pelo princpio da legalidade. Em
segundo lugar, viola os termos do art. 3, IV, da Constituio, porque ir avaliar contra o
ru suas condies de existncia, o que representa uma ntida discriminao. A
discriminao, aqui, ademais de impor reprimenda ao condenado alm do que a prpria
lei estabelece, tem tambm outros efeitos malficos, os quais se refletem em todo o
processo de sua readaptao social.
23. Essas assertivas correspondem proteo dos direitos das pessoas privadas de
liberdade, tutelados fundamentalmente na Conveno Americana sobre Direitos
Humanos (Pacto de So Jos da Costa Rica), a qual entrou em vigor em julho de 1978 e
que atualmente vinculante para os Estados membros da Organizao dos Estados
Americanos OEA , da qual o Brasil faz parte.35 No item 5.6 da referida Conveno,
ressalta-se que a reforma e a readaptao dos condenados, como finalidade essencial
das penas privativas de liberdade, so garantias da segurana cidad e direitos das
pessoas privadas de liberdade.36 Assim:
Artigo 5. Direito integridade pessoal [...] 6. As penas privativas de liberdade tero como finalidade essencial a reforma e a readaptao social dos condenados.
24. Dessa forma, ao menos normativamente,37 parece-me que a preveno especial
positiva tal como descrita no dispositivo supracitado e amplamente prevista na
35 COMISSO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Informe sobre los derechos humanos de las personas privadas de libertad en las Amricas. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 64. 31 deciembre 2011. Disponvel em: www.cidh.org, p. 9. 36 Idem, p. 8. 37 Cabe sublinhar, a propsito, que o disposto no item 5.6 do Pacto de So Jos da Costa Rica, norma supralegal, prevalece sobre o disposto no artigo 59 do Cdigo Penal brasileiro. O tema concernente
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legislao,38 na jurisprudncia39 e na doutrina nacionais deve ser o ponto de partida
norteador da avaliao do sistema carcerrio nacional.40 Frise-se, em acrscimo, que o
Subcomit para a Preveno da Tortura e Outros Tratos ou Penas Cruis, Desumanos ou
Degradantes da Organizao das Naes Unidas, em informe de 2013, afirmou que
objetivo da execuo penal propiciar as condies (sejam elas educativas, religiosas,
materiais, sociais) mnimas para que os condenados se reintegrem harmoniosamente
sociedade, de forma a se evitar a reiterao da prtica criminosa.41
25. Seguindo, ainda, as recomendaes propostas pela Comisso Interamericana de
Direitos Humanos, notrio que o crcere est inserido no grupo das chamadas
instituies totais, isto , estabelecimentos onde se detm controle sobre a maior parte da
vida das pessoas que l se encontram.42 Tal domnio cronolgico, fsico e epistemolgico
na locuo de Foucault43 representa, em vista dos princpios constitucionais de
proteo pessoa e das mencionadas diretrizes internacionais de reforma e
ressocializao dos apenados, a obrigao de o Estado zelar pela integridade fsica, moral
e psquica dos internos, bem como de seus visitantes.44 Isso significa, finalmente, o
reconhecimento de que as pessoas encarceradas se encontram em posio de
vulnerabilidade e, portanto, devem ser objeto da ateno estatal, de forma a confrontar a
funo primordial da pena de priso deve ter como balizamento normativo, portanto, a norma convencional. 38 A Lei de Execuo Penal, por exemplo: Art. 1 A execuo penal tem por objetivo efetivar as disposies de sentena ou deciso criminal e proporcionar condies para a harmnica integrao social do condenado e do internado. 39 STJ - HC: 216711 RJ 2011/0200425-3, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 10/12/2013, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicao: DJe 03/02/2014; STJ - HC: 277496 SP 2013/0315374-3, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 17/12/2013, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicao: DJe 03/02/2014); STJ - AgRg no HC: 283010 PE 2013/0387154-4, Relator: Ministro SEBASTIO REIS JNIOR, Data de Julgamento: 17/12/2013, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicao: DJe 03/02/2014; TJ-RS - AC: 70052584968 RS , Relator: Jorge Lus Dall'Agnol, Data de Julgamento: 27/03/2013, Stima Cmara Cvel, Data de Publicao: Dirio da Justia do dia 01/04/2013. 40 Proponho-me, para todos os efeitos, a fazer comentrios passageiros acerca da eficcia da preveno neutralizadora, nos moldes do que j foi anteriormente proposto. 41 Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes Adicin, de autoria da Organizao das Naes Unidas, p. 3. 42 Vide: GOFFMAN, Erving. Manicmicos, Conventos e Prises. So Paulo: Editora Perspectiva, 2001; e COMISSO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit., p. 19. 43 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurdicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2013, pp. 117-123. 44 COMISSO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit., p. 17.
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norma incriminadora com os preceitos de garantia individual centro de convergncia de
toda a ordem jurdica.45
El Estado, al privar de libertad a una persona, se coloca en una especial posicin de garante de su vida e integridad fsica. Al momento de detener a un individuo, el Estado lo introduce en una institucin total, como es la prisin, en la cual dos diversos aspectos de su vida se somete a una regulacin fija, y se produce un alejamiento de su entorno natural y social, un control absoluto, una prdida de intimidad, una limitacin del espacio vital y, sobre todo, una radical disminucin de las posibilidades de autoproteccin. Todo ello hace que el acto de reclusin implique un compromiso especfico y material de proteger la dignidad humana del recluso mientras est bajo su custodia, lo que incluye su proteccin frente a las posibles circunstancias que puedan poner en peligro su vida, salud e integridad personal, entre otros derechos.46
26. Tambm a Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu que as medidas
privativas de liberdade se acompanham inevitavelmente de sofrimento e de humilhao.
Se se trata de um estado de fato indeclinvel que, de per se, no se traduz em uma
violao do artigo 3, que impe, no obstante, ao Estado garantir que todo prisioneiro
seja detido em condies compatveis com o respeito dignidade humana, que a
modalidade de execuo da pena no insira o interessado em uma situao de
desconforto ou a um grau de intensidade tal que exceda o nvel inevitvel de sofrimento
inerente deteno e que, em considerao das exigncias prticas da recluso, a sade
e o bem-estar do detido sejam garantidos de maneira adequada; de outro modo, as
medidas tomadas no mbito da deteno devem ser necessrias ao cumprimento dos fins
legtimos perseguidos47.
27. Levando em conta, portanto, os direitos sociais da educao, da sade, da
alimentao, do trabalho, da moradia, do lazer (art. 6o, CF); os direitos individuais e
45 TAVARES, Juarez. La racionalidad, el derecho penal y el poder de penar: los lmites de la intervencin penal en el Estado Democrtico. In: Racionalidad y derecho penal. Lima: Idemsa, 2014, p. 124. 46 COMISSO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit., p. 19. 47 CEDU, deciso n. 19606/08, Pavet contra Frana, de 20 de janeiro de 2011.
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coletivos tais como a proteo aos locais de culto (art. 5o, VI, CF), intimidade e
honra (art. 5o, X, CF); o atendimento inexorvel dignidade da pessoa humana (art. 1o,
III, CF) e as recomendaes propostas pela Comisso Interamericana de Direitos
Humanos e pelo Subcomit para a Preveno da Tortura e Outros Tratos ou Penas Cruis,
Desumanos ou Degradantes da ONU, necessrio concluir que um pressuposto
necessrio para a efetivao das metas ressocializadoras da pena reside precisamente na
configurao de um ambiente carcerrio que no viole os direitos fundamentais dos
apenados. Ademais, imperioso que se verifique o trabalho continuado dos mencionados
empresrios morais, isto , acompanhamento psicolgico e social de qualidade. sobre
essa perspectiva, portanto, que dever se orientar, para os fins especficos do presente
trabalho, a anlise das condies concretas do funcionamento do sistema carcerrio
brasileiro.48 No faz parte do objetivo deste parecer, como se depreende dos termos da
consulta, o exame da crise de legitimidade do discurso penal. O problema, tal como
identificado para os presentes fins, situa o confronto entre a defesa da pessoa humana, por
48 Quando se chega a esse ponto, as indagaes parecem conduzir a outras perspectivas, que no podem ficar adstritas a sintomas puramente jurdicos. O jurdico praticamente desaparece como algo imutvel e duradouro para se transformar, rapidamente, em preceitos de justificao poltica. Cabe, mais uma vez, verificar se vale a pena manter o sistema penal. Quando se fala em alterar o sistema penal ou mesmo de o abolir, afloram argumentos por sua manuteno. Esses argumentos, independentemente de sua variedade, podem ser dispostos em dois grandes segmentos: ora so argumentos de base emprica, ora de base moral. Os argumentos de base emprica trabalham com critrios de verdade; os de base moral, com critrios de validade. Mas, a alterao ou mesmo a superao do sistema penal no pode ser tratada como uma questo de superestrutura, mas, sim, como uma expresso das relaes que se processam no mbito das respectivas formaes sociais. A norma penal, como expresso desse sistema, no nem boa nem m, apenas um instrumento de manuteno de poder. Quando se invoca a norma penal como meio de proteo da pessoa, estar-se- tambm legitimando o poder e, consequentemente, aceitando e mantendo as relaes sociais do sistema capitalista. pura ingenuidade pretender modificar o Estado ou proteger eficazmente as pessoas por meio da norma penal. No fundo, os mesmos elementos de desigualdade e de comprometimento sistmico continuam presentes em sua aplicao, que jamais deixar de ser seletiva e exclusivista. A chamada cruzada moral em prol da punio dos culpados, como forma de estruturao de uma sociedade democrtica, no passa de um discurso ideolgico sedimentado no simblico ou, pior do que isso, de um discurso legitimante em face de um sistema intrinsecamente destruidor da pessoa. Esse discurso ideolgico porque busca convencer de que a norma, como instituio, pode solucionar definitivamente problemas de relacionamento, sem qualquer demonstrao emprica. simblico porque orientado por mitos de verdade e validade. Se falta ao discurso uma base emprica (e a evidncia de que essa base emprica falsa), no se poder comprovar sua verdade. Se, por outro lado, o discurso pronunciado sem que todos possam dele participar em igualdade de condies e critic-lo com eficincia, no poder gerar uma pretenso de validade. Quando se chega a esse ponto, parece que toda a discusso em torno da racionalidade ou legitimidade de uma norma penal s poder ter cabimento com a alterao estrutural das relaes sociais e do prprio poder. Muitos grupos e movimentos sociais tm em comum o objetivo de alterar as estruturas econmicas e, como consequncia, o prprio poder.
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um lado, e os interesses punitivos, de outro, como uma questo de superestrutura mal
resolvida. Embora essa no seja a perspectiva que adotamos,49 nada impede a anlise da
questo exclusivamente sob esse ponto de vista, com o objetivo imediato exclusivo de
garantir o respeito aos direitos fundamentais dos presos, o que, no contexto brasileiro,
certamente impe a adoo de um programa de deflao penitenciria.
28. Para tanto, utilizar-se-o os seguintes critrios inferidos dos dispositivos
constitucionais supracitados e das mencionadas recomendaes da Comisso
Interamericana de Direitos Humanos e do referido Subcomit das Naes Unidas: (a)
vida e integridade fsica, (b) educao, (c) sade, (d) alimentao, (e) trabalho,
(f) moradia, (g) lazer, (h) liberdade de culto, (i) intimidade e honra e, por fim,
(j) acompanhamento psicolgico e social.
29. Neste parecer sero utilizados os dados concernentes ao sistema de inspees
prisionais realizado pelo Ministrio Pblico em maro de 2013, 50 bem como as
informaes acerca dos nmeros da populao carcerria apresentados em 2014 pelo
49 Enfocada a questo como uma crise de legitimidade, pode-se, ento, entender que o discurso penal um discurso de justificao do sistema, tanto quando o enaltece, como quando procura sua correo por meio da prpria estrutura normativa. Em qualquer dos casos, no h verdadeira oposio de ideias, h apenas compromissos. Quem se aventure a acreditar que possa resolver questes penais apenas no mbito normativo e que, com isso, estar exercendo uma atividade de crtica social, no pode fugir do dilema de ter que se conformar com o prprio sistema, ou repudi-lo integralmente. Para repudi-lo, ter que negar o sistema, mas, com isso, ter que negar tambm seus prprios argumentos. Se quiser manter seus argumentos, ter que aceitar o sistema. No h como fugir desse dilema. o dilema prprio do sistema capitalista e de seus desdobramentos. medida que esse discurso se solidifica, tambm se fortalece o sistema, com as consequncias marcantes da ampliao das bases punitivas, da inflao legislativa e, inclusive, dos movimentos de emancipao calcados na esperana de que possam obter sucesso mediante o emprego da pena criminal. O direito penal, portanto, como condensao normativa do poder punitivo, elevado a uma categoria transcendental, como se fosse superior a todas as contradies do sistema e sobrepairasse aos prprios antagonismos de classe. Nunca na histria do desenvolvimento dos poderes do Estado se deu tanta importncia ao direito penal, que, por artes de uma internalizao simblica de ideais frustrados, ou por fora de uma projeo externa sobre os outros, os chamados inimigos, de recalques paranoides, passa a se solidificar como uma nova modalidade de ideologia. 50 CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. A viso do Ministrio Pblico brasileiro sobre o sistema prisional brasileiro. Braslia: CNMP, 2013. Disponvel em: http://goo.gl/4iWhVi.
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Conselho Nacional de Justia,51 o Informe sobre los derechos humanos de las personas
privadas de libertad en las Amricas,52 de autoria da Comisso Interamericana de
Direitos Humanos, o Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin
de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes, proveniente
da Organizao das Naes Unidas, os relatrios de inspeo em 2014 no Centro de
Deteno Provisria de Pinheiros IV e no Centro de Deteno Provisria de Santo Andr,
ambos de autoria da Defensoria Pblica do Estado de So Paulo, e, por fim, o relatrio de
auditoria governamental do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (processo
TCE/RJ n 116.234-9/13).
(a) Vida e Integridade Fsica
30. Dos 1.598 (mil quinhentos e noventa e oito) estabelecimentos penitencirios
respondentes s inspees realizadas pelo Ministrio Pblico em 2013,53 foi registrado
um total de 83 (oitenta e trs) suicdios, 110 (cento e dez) homicdios, 3.443 (trs mil,
quatrocentos e quarenta e trs) presos com ferimentos e 2.772 (duas mil, setecentas e
setenta e duas) leses corporais. Agregam-se a esses nmeros, ademais, as consideraes
da Comisso Interamericana de Direitos Humanos, as quais indicam que as principais
situaes de risco para a vida de pessoas encarceradas consistem na violncia entre
internos,54 de que so exemplos os mais de 70 (setenta) motins ocorridos em 2006 na
cidade de So Paulo, assim como os eventos sucedidos na Casa de Deteno Jos Mrio
Alves da Silva, o Urso Branco, em Porto Velho; no Centro de Deteno Provisria
Raimundo Vidal Pessoa, em Manaus;55 no Complexo Penitencirio de Pedrinhas, em So
Lus; 56 e, ainda, no Presdio Professor Anbal Bruno, em Recife (este ltimo
51 Novo Diagnstico de Pessoas Presas no Brasil, de autoria do Departamento de Monitoramento e Fiscalizao do Sistema Carcerrio e do Sistema de Execuo de Medidas Socioeducativas DMF. Disponvel em: http://goo.gl/vh2LC9. 52 COMISSO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit., prefacio. 53 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 73. 54 COMISSO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit., p. 6. 55 Idem, p. 65. 56 Idem, p. 110.
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caracterizado, sobretudo, pela presena de pessoal paralelo de segurana e organizao,
os denominados chaveiros). 57
31. O Subcomit para a Preveno da Tortura e Outros Tratos ou Penas Cruis,
Desumanos ou Degradantes da ONU registrou, ainda, a ocorrncia de inmeros casos de
maus-tratos, humilhaes, insultos, sanes arbitrrias, espancamentos e privao de
comida e gua nos estabelecimentos penitencirios pesquisados, sobretudo como forma
de castigo ou punio.58 Alm disso, o mesmo Subcomit ressaltou a complacncia da
magistratura brasileira em relao ao grave quadro de sistemtica prtica de tortura e
maus-tratos em estabelecimentos prisionais.59 Da porque recomendou encarecidamente
aos juzes brasileiros que rechacem as confisses quando haja motivos razoveis para
acreditar que tenham sido obtidas mediante tortura ou maus-tratos, ao tempo em que
recomendou, ainda, que os juzes passem a notificar de imediato o Ministrio Pblico
para que possa abrir investigaes sobre os casos de tortura nos mais diversos
estabelecimentos prisionais. A magistratura brasileira no simples coadjuvante no
processo de sistemtica violao aos direitos fundamentais dos presos, seno seu
elemento propulsor medida que contribui ativamente para um projeto de ampla
encarcerizao acionando voluntariamente a ordem jurdica vigente para estender, por
via interpretativa, a aplicao de penas privativas de liberdade e de prises cautelares ,
ao mesmo tempo em que consente, ainda que por omisso, a ofensa, por parte do Estado,
aos direitos mais bsicos dos presos. Cabe ao rgo de cpula do Judicirio brasileiro, o
Supremo Tribunal Federal, exigir da magistratura o cumprimento das recomendaes do
Subcomit da ONU, de modo a eliminar a constante violao dos direitos fundamentais
da populao carcerria, a includos tambm os presos provisrios.
32. Apenas para que se tenha uma ideia concreta da contribuio decisiva do Poder
Judicirio na consolidao de um estado de autorizado menoscabo dos direitos bsicos 57 Idem, p. 153. 58 Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes, de autoria da Organizao das Naes Unidas, pp. 15 e 21. 59 Idem, p. 7.
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dos presos brasileiros, vale mencionar, a ttulo de exemplo, a postura adotada pela cpula
do Tribunal de Justia do Estado de So Paulo a propsito da matria. Em 7 de maro de
2014, o Presidente desse importante Tribunal suspendeu deciso proferida por magistrado
de primeira instncia que determinara, a pedido da defensoria pblica, a implantao, em
45 dias, de duas equipes mnimas de sade na Penitenciria Masculina de Ribeiro Preto
e o fornecimento dos medicamentos necessrios ao tratamento dos presos.60 Invocou-se,
para tanto, o argumento de que a providncia estatal determinada pelo juiz exporia a risco
grave a ordem pblica, por comprometer a regular implementao da poltica pblica
em curso no Estado de So Paulo e servir de paradigma para situaes relacionadas
com outros estabelecimentos prisionais. Em 2 de dezembro de 2013, o Presidente
antecessor do mesmo Tribunal de Justia paulista suspendeu deciso de primeira
instncia que determinara ao Estado, tambm a pedido da defensoria pblica, a
disponibilizao em todas as suas unidades prisionais, no prazo de seis meses, de
equipamentos para banho dos presos em temperatura adequada.61 Argumentou-se, para
suspender os efeitos dessa deciso, que os prdios antigos e aqueles adaptados para
servir como estabelecimento penal no possuam rede eltrica planejvel e compatvel
com as exigncias especficas de consumo de gua necessrias para suportar chuveiros
nas celas e que a instalao dos cogitados equipamentos exigiria interveno no
estabelecimento prisional que no se faria sem o deslocamento dos detentos nele
custodiados, o que no se apresenta plausvel, tendo-se em vista o dficit de vagas no
sistema penitencirio paulista.
60 Tribunal de Justia do Estado de So Paulo, Pedido de Suspenso de Liminar n. 2031991-72.2014.8.26.0000. 61 Tribunal de Justia do Estado de So Paulo, Pedido de Suspenso dos Efeitos da Tutela Antecipada n. 0203905-78.2013.8.26.0000.
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(b) Educao
33. Do total mencionado de estabelecimentos penitencirios respondentes s
inspees realizadas pelo Ministrio Pblico,62 60% registraram a ausncia de bibliotecas
para os internos.63 O j indicado Subcomit da ONU, em acrscimo, destacou que, no
complexo de Viana, no Esprito Santo, a maior parte dos internos no tinha acesso a
programas de atividade e lazer, sendo que, quando ofertados, os livros no poderiam ser
escolhidos segundo suas preferncias pessoais.64 A indisponibilidade de tais atividades
foi verificada, segundo o Subcomit, em diversos outros estabelecimentos.
34. J no que se refere especificamente ao Centro de Deteno Provisria de
Pinheiros IV, em So Paulo, a Defensoria Pblica destacou a inexistncia, por completo,
de atividades educacionais na unidade.
(c) Sade
35. Destaca-se que, do total supramencionado de estabelecimentos penitencirios
respondentes s inspees realizadas pelo Ministrio Pblico:65
- Aproximadamente 55% indicaram a inexistncia de farmcias;66
- Aproximadamente 56% no apresentaram enfermarias; 67
- Aproximadamente 76% afirmaram no haver procedimentos especficos
para troca de roupas de cama e banho e uniforme em face de patologias
de presos/as; 68
62 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 81. 63 O equivalente a 968 (novecentos e sessenta e oito) estabelecimentos penitencirios. 64 Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes, de autoria da Organizao das Naes Unidas, p. 19. 65 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 69. 66 O equivalente a 886 (oitocentos e oitenta e seis) estabelecimentos penitencirios. 67 O equivalente a 899 (oitocentos e noventa e nove) estabelecimentos penitencirios.
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- Aproximadamente 66% assumiram no serem prestados atendimentos pr-
natais s internas gestantes.69
(d) Da alimentao
36. A avaliao presencial do Parquet 70 indicou ainda que, em 29% dos
estabelecimentos penitencirios, a alimentao foi considerada regular71 ou ruim.72 Vale
chamar ateno, em acrscimo, para o elevado nmero de avaliaes subjetivas
chanceladas sob a rubrica no se aplica, equivalente a 20% do total. Conjectura-se, a
esse ponto, se tal dado guarda relao com a informao apresentada pela Comisso
Interamericana de Direitos Humanos de que parte dos insumos destinados alimentao
dos reclusos so comercializados ilegalmente pelas autoridades penitencirias, no
chegando definitivamente aos internos.73
37. No que tange ao Centro de Deteno Provisria de Santo Andr, a Defensoria
Pblica do Estado de So Paulo verificou que os alimentos oferecidos so sempre os
mesmos, bem como [] comum que a comida chegue at [os internos] azeda,
estragada ou mal cozida. O mesmo quadro foi descrito no relatrio de inspeo
concernente unidade de Pinheiros IV.
(e) Trabalho
38. A partir dos dados apresentados pelo rgo ministerial, pode-se inferir a ausncia
generalizada de oficinas de trabalho nos crceres respondentes, uma vez que, quando da
avaliao pessoal, 68% dos estabelecimentos penitencirios apresentaram a avaliao
68 O equivalente a 1.220 (mil duzentos e vinte) estabelecimentos penitencirios. 69 O equivalente a 1.508 (mil quinhentos e oito) estabelecimentos penitencirios. 70 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 120. 71 O correspondente a 23% das avaliaes. 72 O correspondente a 6% das avaliaes. 73 COMISSO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit., p. 183.
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subjetiva no se aplica 74. A situao, que j grave, vem se tornando cada dia mais
grave. No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, segundo o Relatrio de Auditoria
Governamental do respectivo Tribunal de Contas (TCE/RJ n 116.234-9/13), a
porcentagem dos detentos que laboram diminui de 80,85%, em 2009, para 32,11%, em
2013.
(f) Moradia
39. A pena de priso, por evidente, implica a leso de certos direitos imediatamente
correlatos privao de liberdade. Isso, entretanto, no pode acarretar a negao da
potencialidade de desenvolvimento pessoal pilar constitucional que , mediante a
inobservncia de condies mnimas de sobrevivncia digna (art. 1o, III, CF) e honrosa
(art. 5o, X, CF), tais como higiene, ventilao, iluminao e temperatura adequada.
- Quanto higiene, a avaliao presencial do Ministrio Pblico75 indicou que,
em 58% dos estabelecimentos penitencirios, as instalaes sanitrias foram
consideradas regulares76 ou ruins.77 A ONU, na mesma esteira, afirmou serem
as condies sanitrias dos crceres inspecionados profundamente
deficientes.78
- Quanto ventilao,79 57% dos estabelecimentos apresentaram instalaes
igualmente regulares80 ou ruins.81
74 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 60. 75 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 118. 76 O correspondente a 34% das avaliaes. 77 O correspondente a 24% das avaliaes. 78 Primera respuesta del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes a las respuestas del Brasil a las recomendaciones y solicitudes de informacin formuladas por el Subcomit para la Prevencin de la Tortura en su informe sobre su primera visita peridica al Brasil, de autoria da Organizao das Naes Unidas, p. 15. 79 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 117. 80 O correspondente a 31% das avaliaes. 81 O correspondente a 26% das avaliaes.
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- No que se refere iluminao,82 56% dos estabelecimentos trouxeram, da
mesma forma, avaliaes regulares ou ruins.83
- Por fim, no que se refere temperatura,84 59% das avaliaes mostraram
resultados regulares85 ou ruins.86
40. No que tange em especfico aos Centros de Deteno Provisria de Santo Andr e
Pinheiros IV, as inspees realizadas pela Defensoria Pblica do Estado de So Paulo
indicaram srios problemas estruturais, dentre os quais: deficincias no sistema de
aerao e iluminao, racionamento desmedido de gua, existncia de percevejos e
insetos nos colches e pssimo odor nas celas.
(g) Lazer
41. A partir das informaes apresentadas pelo Ministrio Pblico,87 ressalto que, em
957 (novecentos e cinquenta e sete) estabelecimentos penitencirios o equivalente a
aproximadamente 60% dos 1.598 (mil quinhentos e noventa e oito) crceres respondentes
pesquisa realizada , no estavam sendo desenvolvidas atividades culturais e de lazer
poca das inspees.
42. Os informes apresentados pelo Subcomit para a Preveno de Tortura e Outros
Tratos ou Penas Cruis, Desumanos ou Degradantes da ONU foi menos otimista, ao
afirmar que nem todos os presdios inspecionados dispunham da hora diria reservada ao
banho de sol exigida pelas normas nacionais e internacionais. Segundo o Subcomit, os
internos do centro Ary Franco no Rio de Janeiro costumavam passar at trs semanas
82 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 117. 83 Avaliaes regulares corresponderam a 33%; enquanto as avaliaes ruins, a 23%. 84 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 117. 85 O correspondente a 33% das avaliaes. 86 O correspondente a 26% das avaliaes. 87 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 81.
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encerrados em celas pouco iluminadas, sujas e mal ventiladas, sem a necessria hora
diria no ptio para atividades fsicas.88
(h) Liberdade de culto
43. Em conformidade com os dados apresentados pelo Ministrio Pblico, 89
constatou-se, ainda, que 54%90 dos estabelecimentos penitencirios no possuam local
apropriado realizao de cultos religiosos.
(i) Intimidade e Honra
44. Quanto intimidade e honra, imperioso denunciar alguns dos mais
caractersticos problemas do sistema prisional brasileiro: a superlotao e as (quase
sempre inexistentes) separaes entre as diversas clientelas carcerrias.
45. Nesse sentido, ressalta-se que, das 563.52691 (quinhentas e sessenta e trs mil,
quinhentas e vinte e duas) pessoas encarceradas em 2014, apenas 357.219 (trezentas e
cinquenta e sete mil, duzentas e dezenove) se encontravam dentro da capacidade mxima
do sistema, restando, pois, um dficit total de 206.307 (duzentas e seis mil, trezentas e
sete) vagas.92,93 No mesmo sentido, ressaltam as Naes Unidas que deve ser respeitada
uma metragem por metro quadrado mnima para cada detento,94 o que, segundo o
Subcomit, no foi observado em inmeros estabelecimentos pesquisados. Assim:95
88 Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes, de autoria da Organizao das Naes Unidas, p. 19. 89 Idem, p. 91. 90 O equivalente a 878 (oitocentos e setenta e oito) estabelecimentos penitencirios. 91 No foram consideradas as pessoas em cumprimento de priso domiciliar. 92 Disponvel em: http://goo.gl/JGju25. 93 Em se considerando, ainda, as 147.937 (cento e quarenta e sete mil, novecentas e trinta e sete) pessoas em cumprimento de priso domiciliar, o Brasil se ala terceira posio mundial em nmero absoluto de encarcerados. 94 Segundo o Subcomit (Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes - Adicin, p. 7): La Resolucin No 9 establece adems que la capacidad de cada bloque de celdas no deber exceder de 200 reclusos. Asimismo, estipula
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El Subcomit considera que el hecho de someter a los detenidos a condiciones de hacinamiento extremas constituye una forma grave de malos tratos. El Estado parte debe adoptar medidas inmediatas para prevenir los niveles extremos de hacinamiento descritos. En todas las dependencias policiales del pas debe respetarse estrictamente una superficie mnima por detenido, de conformidad con las normas internacionales.
46. A ttulo ilustrativo, de se destacar que segundo informaes da Defensoria
Pblica do Estado de So Paulo os Centros de Deteno Provisria de Santo Andr e
Pinheiros IV apresentaram, quando das inspees realizadas, uma superlotao de
respectivamente 338% e 345% de suas capacidades.
47. Ressalta a ONU, em acrscimo, que o problema da superlotao com especial
nfase para os crceres Nelson Hungria, em Belo Horizonte, e Ary Franco, no Rio de
Janeiro est amplamente associado falta de privacidade dos internos, ao realizarem
tarefas bsicas de higiene, e s putrefatas condies de salubridade das celas, muitas
habitadas tambm por baratas e outros insetos.96
48. Levando em conta, ainda, a pesquisa realizada pelo Ministrio Pblico em 2013,97
79%98 dos estabelecimentos penitencirios no apresentavam separao entre os presos
que todos los centros penitenciarios y las crceles municipales dotados de celdas colectivas debern asegurarse de que al menos el 2% de las celdas individuales estn disponibles en caso de que sea necesario separar reclusos. Asimismo, establece que cada celda individual deber contar con una cama y un espacio de higiene personal con al menos un lavabo y un inodoro, adems de una zona para circular; como mnimo, las celdas individuales debern medir 6 m2. Las celdas colectivas podrn albergar hasta ocho reclusos y debern tener una superficie de al menos 13,85 m2 []. 95 Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes, de autoria da Organizao das Naes Unidas, p. 14. 96 Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes, de autoria da Organizao das Naes Unidas, p. 18. 97 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 57. 98 O equivalente a 1.243 (mil duzentos e quarenta e trs) estabelecimentos penitencirios.
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provisrios e os presos em cumprimento definitivo de pena. A mesma informao
constou do informe produzido pelo referido Subcomit das Naes Unidas.99
(j) Acompanhamento psicolgico e social
49. Frise-se que, do total mencionado de estabelecimentos respondentes pesquisa
realizada pelo Ministrio Pblico,100 aproximadamente 67%101 afirmaram inexistir uma
equipe de assistentes sociais que acompanhasse os internos, bem como 60%102 no
apresentaram recintos adequados para a atividade de assistncia social. No foram
obtidos dados acerca de eventual acompanhamento psicolgico.
50. (iii) Considerado esse lamentvel quadro ftico, faz-se necessrio retomar a
primeira questo apresentada na consulta: o atual cenrio do sistema prisional brasileiro
compromete a realizao dos objetivos normalmente atribudos pena de priso?
51. Por evidente, a indagao se situa em nvel de verificao da eficcia das funes
manifestas da pena, as quais, oportunamente, devem ser agrupadas em duas vertentes: as
teorias da preveno especial negativa e positiva.
52. Quanto primeira forma a variante negativa , a presente investigao deve-se
centrar conforme j mencionado linhas atrs na aferio da prtica de delitos durante
o perodo de encarceramento.
53. Se, por um lado, os j mencionados nmeros de homicdios e leses corporais
registrados pelo Ministrio Pblico em 2013 indicam uma certa relativizao do objetivo
99 Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes, de autoria da Organizao das Naes Unidas, p. 13. 100 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 87. 101 O equivalente a 1.069 (mil e sessenta e nove) estabelecimentos penitencirios. 102 O equivalente a 974 (novecentos e setenta e quatro) estabelecimentos penitencirios.
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supostamente neutralizador da pena de priso, por outro, Juarez Cirino dos Santos103
atenta corretamente para o fato de que a incapacitao seletiva de indivduos
considerados perigosos constitui efeito evidente da execuo da pena porque impede a
prtica de crimes fora dos limites da priso.104
54. Dessa forma, extraem-se, acerca da variante negativa da preveno especial, duas
concluses: em relao ao ambiente intramuros, a pena de priso tem sua eficcia
neutralizadora relativizada, uma vez que a reiterada ocorrncia de delitos violentos
demonstra o dficit emprico de eficcia do projeto preventivo especial, isto para no
mencionar a notria e ramificada estrutura de corrupo e as mais distintas formas de
negociaes ilegais que existem em qualquer cadeia; quanto ao ambiente extramuros,
sem desconsiderar o acerto da lio de Juarez Cirino dos Santos, convm observar que os
efeitos do confinamento no podem ser tomados em conta apenas no que toca estrita
conduta do indivduo encarcerado. O encarceramento produz outros efeitos no mbito
social, os quais podem corresponder prtica de outros delitos por parte do prprio
encarcerado e de pessoas a ele vinculadas, ainda que fora do estabelecimento prisional. O
problema do trfico de drogas, para suprir a demanda de consumo interno dos presos, por
exemplo, acaba tornando ineficaz a finalidade preventiva atribuda pena, na medida em
que companheiras e familiares daqueles so diuturnamente utilizados como mecanismo
para introduzir drogas e outros objetos ilcitos nas prises. Nesse sentido o aumento
vertiginoso de mulheres condenadas por trfico de drogas no Brasil est diretamente
relacionado a esse mecanismo de alimentao do consumo por parte daqueles que j
esto presos. Ademais, as tarefas de preveno de delito mediante pura e simples
segregao no podem descurar-se da proteo dos direitos fundamentais do encarcerado,
que no pode ser tratado como uma coisa inservvel nas prateleiras bolorentas dos
almoxarifados ou de um arquivo morto. Deve-se observar, todavia, que mesmo o
encarceramento mais rigoroso, ainda que vedado o uso de telefones, ou controladas as
correspondncias, jamais impediu a comunicao com o mundo externo. H, nesse
103 SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 425. 104 Mesmo que se assuma, entretanto, a ocorrncia de delitos relacionados ao uso de celulares, por exemplo.
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aspecto, inclusive, uma antinomia entre a pena de priso e a prpria condio do sujeito.
Ainda que o condenado esteja privado ou suspenso de alguns direitos, entre os quais o
direito de liberdade, est ele inserido num mundo, onde a comunicao constitui o
elemento formador da prpria sociedade. Uma sociedade sem comunicao no
sociedade, apenas um amontoado quantitativo de corpos animados. Da ser impossvel,
empiricamente, a restrio a outras formas de comunicao, as quais so inerentes
condio social.
55. J no que se refere s teorias da preveno especial positiva, foco principal da
discusso, impe-se concluir tendo em vista os dados apresentados anteriormente que
o sistema prisional brasileiro no apresenta as condies mnimas para a realizao
do projeto tcnico-corretivo de ressocializao, reeducao ou reinsero social do
sentenciado. Como ressaltado pela Corte constitucional italiana, um tratamento penal
inspirado em critrios de humanidade pressuposto necessrio para uma ao
reeducativa do condenado (sentenas 12/1996, 376/1997 e 279/2013).105 Nessa esteira,
ainda, ressalte-se a relevante considerao da Comisso Interamericana de Direitos
Humanos acerca dos dados colhidos no referido Informe sobre los derechos humanos de
las personas privadas de libertad en las Amricas:106
La naturaleza de los problemas identificados en el presente informe revela la existencia de serias deficiencias estructurales que afectan gravemente derechos humanos inderogables, como ele derecho a la
105 No mesmo sentido, o Tribunal de Veneza: Sulle disposizioni costituzionali che si assumono violate, ritiene il Tribunale che la norma in questione si ponga in contrasto innanzitutto con lart. 27 della Costituzione sotto il duplice profilo del divieto di trattamenti contrari al senso di umanit e del finalismo rieducativo. Sul punto si osserva la prevalenza in ogni caso del primo dei valori affermati rispetto al secondo: mentre la pena infatti non pu consistere in un trattamento contrario al senso di umanit, essa nel contempo deve tendere alla rieducazione del condannato con ci significando che mentre la finalit rieducativa rimane nellambito del dover essere e quindi su un piano esclusivamente finalistico (deontico) - la pena legale anche se la rieducazione verso la quale deve obbligatoriamente tendere non viene raggiunta - viceversa la non disumanit attiene al suo essere medesimo (piano ontico) - la pena legale solo se non consiste in trattamento contrario al senso di umanit - di talch la pena inumana non pena e dunque andrebbe sospesa o differita in tutti i casi in cui si svolge in condizioni talmente degradanti da non garantire il rispetto della dignit del condannato. (Tribunale di Sorveglianza di Venezia, ordinanza di rimessione, 13.02.2013, in www.penalecontemponraneo.it.) 106 COMISSO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit., prefacio.
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vida y la integridad personal de los reclusos, e impiden que en la prctica de las penas privativas de la libertad cumplan con la finalidad esencial que establece la Convencin Americana: la reforma y la readaptacin social de los condenados.
56. Concluso semelhante foi alcanada pelo Subcomit para a Preveno da Tortura
e Outros Tratos ou Penas Cruis, Desumanos ou Degradantes da ONU.107
Preocupa particularmente al Subcomit [] Que las garantas establecidas a nivel jurdico y normativo no se vean reflejadas, respetadas ni aplicadas en los centros de detencin del Brasil. [] El Subcomit subray en su informe sobre la visita al Brasil que el ordenamiento jurdico del pas es ampliamente adecuado para prevenir los casos de tortura (prrafo 22 del informe). El Subcomit desea reiterar y enfatizar que, con mucha frecuencia, la proteccin y las salvaguardias que contempla la ley no se cumplen en la prctica. [] La principal preocupacin del Subcomit reside en que la aplicacin de las leyes y salvaguardias pertinentes es, en este momento, insatisfactoria.
57. Sem desprezar o dficit de racionalidade da proposta segundo o qual a pena de
priso tem como finalidade a readaptao social dos condenados considerada a evidente
falta de comprovao emprica da realizao desse objetivo , h certo entendimento,
reforado pela compreenso da Comisso Interamericana de Direitos Humanos, de que a
pena detentiva, quando respeitosa de um standard mnimo de humanidade e civilidade,
pode, eventualmente, ser capaz de fornecer ao condenado uma informao de como deve
comportar-se na sociedade e conviver com as demais pessoas. O Tribunal de Apelao de
Veneza, na Itlia, decidiu que a pena executada em condio inumana no pode mais
realizar plenamente a sua finalidade reeducativa, porque a restrio em espaos mnimos
produz invalidao de toda a pessoa.108 medida que aumenta no espao pblico a
conscincia de que a ideia de reeducao ou de tratamento dos condenados por meio da 107 Primera respuesta del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes a las respuestas del Brasil a las recomendaciones y solicitudes de informacin formuladas por el Subcomit para la Prevencin de la Tortura en su informe sobre su primera visita peridica al Brasil, de autoria da Organizao das Naes Unidas, pp. 4 e 7. 108 Tribunale di Sorveglianza di Venezia, ordinanza di rimessione, 13.02.2013, in www.penalecontemponraneo.it.
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pena de priso possui um carter ilusrio, seno mesmo fraudulento, pode-se valer da
norma convencional que estabelece como funo da pena a reforma e readaptao social
do condenado como uma ideia capaz de opor um freio certamente insuficiente, mas til
situao de total incivilidade jurdica do sistema carcerrio brasileiro.109 Isso porque,
a despeito da finalidade de readaptao social atribuda pena de priso, esta deve ter
uma natureza humanitria, que a nossa Constituio exige por meio da vedao de
tratamentos desumanos ou degradantes (art. 5, III). Essa uma clusula de salvaguarda
que opera em todos os momentos de manifestao do monoplio da fora pelo Estado:
em sede cautelar e em sede de execuo penal. Ainda que no se comprove,
empiricamente, a relao de causalidade entre pena condizente com o senso de
humanidade e o cumprimento da sua finalidade de reinsero social do detento,
evidente que o respeito da dignidade do condenado implica per se a exigncia de respeito
s condies bsicas de privacidade, higiene, integridade fsica e segurana.110
II A eficcia invertida do projeto ressocializador da priso e os seus impactos na
segurana pblica brasileira
58. Apresenta o consulente, ainda, interessante questo acerca do impacto do
cumprimento da pena, nas precrias condies antes mencionadas, sobre a segurana
109 Como ressaltado pela Corte constitucional italiana, a pena deve tender reeducao do condenado, admitindo-se a possibilidade de no adeso do detento ao processo reeducativo (sentena 313/1990). O condenado tem o direito oferta de tratamento ou reeducao (sentena 79/2007), mas livre para aderir ou no ao processo de readaptao social. obrigatrio, segundo essa viso, garantir que o sistema penitencirio produza as condies objetivas de incentivo ao processo reeducativo, sem, porm, impor-lhe a livre autodeterminao do detento. 110 A esse respeito, o Tribunal constitucional alemo como se tem especificado, sempre se faz referncia dignidade humana e aos direitos fundamentais, no tanto como simples princpios que, em conjunto com outros, integram a norma sobre a execuo da pena, mas como uma medida e critrio objetivo para a verificao concreta da deteno singular em face dos fins de uma correta execuo da pena e para uma avaliao dos rgos jurisdicionais ao darem seguimento ao recurso de um detento. Sobre isso, diante de fatores que indicam uma leso da dignidade humana derivada das condies do espao do encarceramento, se sublinha ter em conta, em primeiro lugar, a superfcie por detento e a situao das plantas sanitrias, sobretudo a diviso e a ventilao dos banheiros. Pode ser indicada, como fator que atenua a situao carcerria, a reduo do tempo cotidiano de arresto. Portanto, quanto organizao dos espaos, necessrio que se assegure uma superfcie mnima para cada detento, de modo particular quando o interno esteja submetido a uma deteno coletiva no mesmo local. Bundesverfassungsgericht, (1 BvR 1403/09).
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pblica. Surge aqui, no obstante, um problema metodolgico sobre o que se deve
entender por segurana pblica. Por bvio, dos fins acadmico-processuais da presente
consulta resulta a adoo de um conceito de criminalidade, o qual em vista da
fundamental expresso do princpio da legalidade, bem como da inviabilidade de o
Estado melhorar pessoas segundo critrios morais prprios 111 deve ser
compreendido restritivamente, isto , como consequncia de um processo de
criminalizao. No existe, na verdade, uma criminalidade, como entidade ontolgica,
como resultado quantitativo e qualitativo de infraes penais cometidas em uma
determinada sociedade. A criminalidade dado fictcio, extrado pelas agncias seletivas
e punitivas para justificar a imposio de medidas privativas de liberdade. Dessa forma,
atribui-se expresso segurana pblica, para os fins deste estudo, diversamente do
sentido comum de preveno de cometimento de crimes, o conjunto de elementos que
do base ao processo criminalizador. Com isso, quer-se dizer que a segurana pblica no
depende da atribuio de responsabilidade s pessoas individuais, mas, sim, da atuao
do Estado, primeiramente, na seleo das condutas criminosas; depois, na tarefa de ter
que enfrentar o aumento desmedido de encarceramento por fora da ampliao do
processo criminalizador. medida que o Estado aumenta o nmero de atos que devem
estar submetidos pena criminal, quer mediante a configurao de novos crimes, quer
pela sistemtica de condenaes, mais debilita a segurana pblica, por no ser capaz de
conter as infraes, nem fazer com que seus autores se ajustem s proibies ou
comandos. Portanto, em face desse enfoque, no ser possvel afirmar que,
empiricamente, a priso possa implicar o fortalecimento da segurana pblica. Com o
crescente encarceramento, a priso ser sempre um depsito de presos, sem qualquer
perspectiva de reintegrao social.
59. Nessa esteira, pode-se reformular a questo nos seguintes termos: quais so os
efeitos do cumprimento da pena, nas condies em que se encontra o sistema prisional
brasileiro, sobre a ocorrncia de crimes? Ressalte-se, ademais, que a adoo generalizada
111 SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 425.
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de uma concepo preventiva especial positiva implica que tal questionamento deva se
direcionar unicamente para a clientela carcerria e no para o conjunto da
populao. Dessa forma, pode-se concluir que a atual controvrsia situa-se,
precipuamente, no mbito da discusso acerca da reincidncia.
60. Embora a inexistncia de um estudo nacional sistematizado que apresente dados
razoavelmente confiveis acerca do assunto conduza a drsticos problemas
metodolgicos, podem ser realizadas algumas conjecturas mais ou menos seguras e
extensveis ao conjunto do sistema prisional. Para tanto, utilizar-se-o trs conjuntos de
dados.
61. O primeiro est relacionado taxa de reincidncia em processos concernentes a
adolescentes submetidos a medidas socioeducativas de internao. Dados apresentados
em 2012 pelo Conselho Nacional de Justia112 indicaram um elevado valor de 56% nos
processos analisados.
62. O segundo, relativo dosimetria das penas, indica que a reincidncia a
circunstncia agravante mais frequente, incidente em 97,37% dos casos. 113
63. Por fim, o terceiro conjunto de dados, concernente especificamente ao municpio
do Rio de Janeiro, apresenta uma elevada taxa de internos anteriormente condenados,
qual seja, 39,13% entre os detentos do regime semiaberto e 48,67% entre os sentenciados
em cumprimento de pena no regime fechado.114
64. Fazendo, pois, uma anlise congruente dos dados apresentados, pode-se
conjecturar que o sistema carcerrio, alm de no apresentar as condies mnimas para a
112 Panorama nacional de 2012 sobre a execuo das medidas socioeducativas de internao. Disponvel em: http://goo.gl/TEKwbR, p. 28. 113 SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 532. 114 PRADO, Geraldo Luiz Mascarenhas. Lei de execuo penal. Srie Pensando o Direito, vol. 44. Braslia: Ministrio da Justia, 2012, p. 49.
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concretizao do projeto de reinsero previsto nas normas nacionais e internacionais,
ineficaz quanto a tal objetivo manifesto e, frise-se, apresenta uma atuao deformadora115
e estigmatizante 116 sobre o condenado. Tal suposio conta tambm com o
reconhecimento explcito do carter crimingeno do crcere pela Exposio de Motivos
da nova Parte Geral do Cdigo Penal,117 bem como com a recente manifestao do
Ministro Gilmar Mendes, ao afirmar que a reincidncia no Brasil situa-se na faixa dos
70%.118
65. Nesse sentido, ainda, a Comisso Internacional de Direitos Humanos.119
[...] cuando las crceles no reciben la atencin o los recursos necesarios, su funcin se distorsiona, en vez de proporcionar proteccin, se convierten en escuelas de delincuencia y comportamiento antisocial, que propician la reincidencia en vez de la rehabilitacin.
66. Na mesma toada:
La condena importa siempre un malestar psicolgico duradero, como resultado de la humillacin contenida en el juicio condenatorio, la cual no puede ser superada por el retorno a su trabajo, por la obtencin de una ocupacin lcita o por la propia declaracin del afectado que se siente resocializado120.
115 SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 531. 116 Vide Labeling Approach in BARATTA, Alessandro. Criminologia Crtica e Crtica do Direito Penal: introduo sociologia do direito penal., 6. ed., Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011. 117 A saber: Uma poltica criminal orientada no sentido de proteger a sociedade ter de restringir a pena privativa da liberdade aos casos de reconhecida necessidade, como meio eficaz de impedir a ao crimingena cada vez maior do crcere. 118 Disponvel em: http://goo.gl/TEKwbR. 119 COMISSO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit., 4. 120 TAVARES, Juarez. Los objetos simblicos de la prohibicin: lo que se devela a partir de la presuncin de evidencia. In: Racionalidad y derecho penal. Lima: Idemsa, 2014, p. 39.
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67. Ademais, a ONU acerca das faces criminais existentes dentro dos crceres
brasileiros121:
En casi todas las crceles visitadas, el Subcomit observ la presencia de bandas criminales. Los reclusos estaban alojados en distintos recintos o pabellones en funcin de la banda a la que supuestamente pertenecan. A este respecto, el Subcomit constat que en los expedientes de los reclusos de Ary Franco figuraba una declaracin firmada por la que aceptaban ser asignados a un pabelln controlado por una faccin determinada y se hacan responsables de su propia seguridad al respecto. El Estado parte debe velar por la separacin efectiva entre los presos preventivos y los presos condenados, de conformidad con sus obligaciones derivadas del derecho internacional de los derechos humanos. El Subcomit reitera la preocupacin y la recomendacin que ya expres el Relator Especial sobre las ejecuciones extrajudiciales, sumarias o arbitrarias en el sentido de que las crceles deben estar a cargo de los guardias y no de los reclusos. La prctica de obligar a los presos recin llegados que nunca pertenecieron a una banda a elegir una es cruel y engrosa las filas de las bandas. La asignacin de una celda o un pabelln debe basarse en criterios objetivos.
68. Isso posto, quanto segunda indagao feita pelo consulente, concluo que o
encarceramento no Brasil, levando em conta a sua atual configurao, contribui
ao contrrio do que se apregoa manifestamente para o aumento da prtica delitiva
e, por sua vez, impacta negativamente na segurana pblica.
III Estratgias jurisdicionais de superao do estado de sistemtica violao dos
direitos fundamentais dos presos no contexto brasileiro
69. Diante de um contexto de grave superpopulao carcerria situao que, por si
s, representa uma violao do direito dos presos a um tratamento digno , no possvel
cogitar de uma soluo interna do prprio sistema penitencirio, saturado e incapaz de
reestabelecer a legalidade do encarceramento. De fato, a situao generalizada de
121 Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes, de autoria da Organizao das Naes Unidas, pp. 16-17.
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manuteno de pessoas presas alm da capacidade do sistema impe a adoo, de um
lado, de remdios compensativos, mediante os quais o detento possa obter uma reparao
pela