PAREM A · Cada uma das palavrinhas ... assim que ele se for, considero mais que justo que eu venha...

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Art to come PAREM A Tradução de CLAUDIO FIGUEIREDO

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Art to comeArt to come

PAREM A

Tradução de CLAUDIO FIGUEIREDO

PAREM A

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-O que reservou para nós dessa vez, Ivy?

Dei uma pancadinha no bolso do meu vestido e respondi:

– “Pétalas ao vento.” É terrivelmente comovente, tem tudo a

ver com cair morto e sair flutuando, carregado por uma brisa

quentinha.

Ezra Snagsby assentiu com a cabeça, fazendo com que as pa-

padas do seu queixo balançassem gloriosamente.

– Muito bom.

Então ele me examinou com certa apreensão, seus olhos me

fitando sob as matas selvagens das suas espessas sobrancelhas.

– Você vai ler como está escrito, não vai, Ivy?

– Claro, querido. Cada uma das palavrinhas, por mais chatas

que sejam.

Ele assentiu novamente, mas dessa vez estava se dirigindo a

Mamãe Snagsby, que tinha uma aparência terrivelmente digna.

Mesmo quando a carruagem passava em cima de um buraco, fa-

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zendo com que fôssemos sacudidos como bonecas de pano, Ma-

mãe Snagsby não mexia um milímetro.

– Tenho de agradecer à srta. Carnage por “Pétalas ao vento”

– continuei, desamassando meu mais chique vestido azul-royal

(com a faixa branca). – Ela assumiu o posto depois que o sr. Aber-

crombie desapareceu. Ele foi visto pela última vez em algum

lugar entre Mitos Gregos e Literatura Francesa. Tudo muito mis-

terioso. A srta. Carnage está na biblioteca há apenas poucas sema-

nas, mas já tem a maior simpatia por mim, simplesmente me

adora.

– Muito interessante, Ivy – disse Ezra, soltando um longo

suspiro. Ele apoiou a cabeça na parede da carruagem. Suas pálpe-

bras pesadas se fecharam. O velho começou a roncar quase ins-

tantaneamente.

– Mais rápido, cocheiro! – berrou a Mamãe Snagsby, batendo

com a sombrinha no teto da carruagem. – Não temos o dia todo!

Antes da srta. Frost me mandar para Londres para viver com

os Snagsby três meses antes, eu tinha pouca experiência em maté-

ria de ser uma filha. Não lembrava de nada a respeito da minha

verdadeira mãe. Só sabia que ela havia morrido. Sabia que a srta.

Frost tinha me encontrado quase que por acidente, encolhida no

colo dela, que já estava sem vida, em alguma casa sinistra. Porém,

a verdade é que sou muito boa nisso.

– Você tem um chicote, homem! Use esse negócio! – trovejou

Mamãe Snagsby, pondo a cabeça para fora da janela. – Ou vou ter

de subir e fazer isso eu mesma?

Os Snagsby formavam um casal adorável. Antiquíssimos. As

cabeças pareciam melões ligeiramente passados. O que combinava

com as corcovas das costas. Eram, porém, incrivelmente afetuo-

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sos. Fantasticamente fofos. Gretel, a filha deles, estava terminan-

do a faculdade em Paris, então dispunham de toneladas de amor

para despejar em cima de mim. Seria possível dizer que eu era a

menina dos olhos deles. O sol que iluminava suas vidas.

– Pare de forçar a vista desse jeito, jovenzinha – disse rispida-

mente a Mãe Snagsby, fuzilando-me com um olhar desconfiado.

– Faz você parecer um batedor de carteira.

Mamãe Snagsby sempre era pródiga comigo na hora de distri-

buir essas pequeninas amostras de conselhos e afetos maternais.

Chamando a minha atenção para como eu poderia me aperfei-

çoar. Ou como poderia ser ligeiramente menos horrenda. O que

era adorável.

– Senta direito – ordenou ela. – Quando uma garota não é

abençoada com um rosto bonito ou com um cabelo encantador,

ela tem de apelar para outros recursos: manter boa postura, ser

refinada ao falar, ter maneiras impecáveis.

– E você mesma sabe exibir essas qualidades melhor do que

ninguém, querida – respondi, abrindo meu sorriso mais compre-

ensivo. – A maneira generosa como usa o pó de arroz é fantástica.

Nunca alguém conseguiu fazer tanto com tão pouca matéria-

-prima.

Mamãe Snagsby sacudiu a cabeça como se eu fosse uma com-

pleta idiota.

– O que raios passou na cabeça da srta. Frost quando largou

você na porta lá de casa?

– A srta. Frost é incrível – retruquei. – De alguma forma, ela

sabia que nós duas fomos feitas uma para a outra.

Mamãe Snagsby sacudiu a cabeça de novo. Certamente ten-

tando evitar que lágrimas de alegria transbordassem de seus olhi-

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nhos brilhantes e acabassem por afogar a todos nós. Os Snagsby

raramente faziam alguma menção à srta. Frost. Eles mal a conhe-

ciam. Pensavam que se tratava de alguma governanta itinerante.

De algum jeito a srta. Frost ficara sabendo que estavam sondando

o mercado em busca de uma filha. Eles jamais perguntaram como

eu tinha conhecido a senhorita ou o que estava fazendo em But-

terfield Park. Na verdade, os Snagsby não haviam demonstrado

nenhum interesse na minha vida anterior.

– Ajeite sua trança – disse Mamãe Snagsby. – Parece que você

acabou de sair de um vendaval.

– O que não deixa de ser verdade – respondi, começando a

arrumar meu cabelo. – Enquanto estava lá fora hoje de manhã,

buscando o leite, comprando o pão, arranjando o bacon para o

café da manhã de vocês e levando seus sapatos para o conserto,

começou uma enorme ventania. Vi quando um vendedor de fru-

tas foi levantado no ar e atirado contra uma carruagem. O pobre

coitado se partiu em três pedaços. Uma tragédia completa.

– Quanta bobagem – rosnou Mamãe Snagsby.

– Não para ele, querida – falei num tom solene. – E pense na

esposa e nos onze filhos dele.

Os Snagsby não sabiam absolutamente nada a respeito do

Diamante Relógio. Eu ficava incrivelmente tentada a contar para

eles. Era um segredo tão aterrorizante quanto delicioso, mas pro-

metera à srta. Frost não fazer isso. Além do mais, os Snagsby eram

pessoas simplórias. Ingênuas, mesmo. Tão sofisticados como um

ovo mexido. Teriam ficado horrorizados em saber que eu usava

um colar mortífero e de valor inestimável.

– Isso aqui não é para ser um passeio pelo parque! – berrou

a pobre velha. – Acelera!

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Parece que estávamos com pressa. E tudo aquilo por causa de

uma morte. Meu vestido azul mais bonito. O poema no meu bol-

so. A fita métrica em volta do pescoço ossudo de Ezra. Os Snags-

by ganhavam a vida confeccionando caixões. A empresa Snagsby

Funerais Econômicos, um negócio que prosperava, era especiali-

zada em descontos generosos para caixões sob medida.

– A sala de velório estava num estado lastimável esta manhã –

disse Mamãe Snagsby, olhando-me com uma afeição maternal.

– Quando terminarmos este serviço, você vai limpar aquela sala

até ficar brilhando. Entendeu bem, mocinha?

– Difícil dizer, querida – retruquei. – Você tende a murmurar

as coisas, para mim é mais fácil apenas imaginar o que você falou

e a partir daí concluir o resto.

Antes que Mamãe Snagsby pudesse explodir de alegria, a car-

ruagem estancou de repente. Ezra foi jogado para a frente, seu

cor po esquelético aterrissou aos meus pés, como uma montanha.

O pobre coitado acordou com o solavanco, emitindo na mesma

hora uma lamúria dolorida. Levou a mão às costas, enquanto se

levantava lentamente.

– Vai logo, Ezra. Não temos o dia todo – esbravejou sua espo-

sa, espiando do lado de fora para uma fileira de casinhas de as-

pecto deprimente.

– Se suas costas estão te incomodando, tenho um excelente

remédio – intervi, ao abrir a porta da carruagem. – Tudo de que

preciso é de uma xícara de banha de porco, um novelo de algo-

dão, três cenouras e um camundongo do campo.

Ezra começou a rir, o que era terrivelmente desnecessário.

Mamãe Snagsby revirou os olhos, empurrando o marido para fo-

ra da carruagem. Então me encarou fixamente.

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– Esta é uma casa da morte – disse ela num tom sério –, então

você sabe muito bem como deve se comportar. Não se meta em

nada até que precisemos de você e trate de fazer seu trabalho

quando for chamada. Entendido?

Assenti com a cabeça.

Mamãe Snagsby saltou da carruagem e eu me apressei a ir

atrás dela.

– Graças a Deus que vocês estão aqui!

A sra. Blackhorn era uma criatura maravilhosa: barriga enor-

me, bochechas gordas, hálito horrível. Mas era o que se encontra-

va em cima da sua cabeça que realmente chamava a atenção. Uma

gloriosa coroa de cachos dourados que ficavam caindo pela testa

enquanto ela se movimentava em torno do leito do marido ado-

entado. Toda hora ela puxava os cachos para cima.

– Estava contando os minutos! – berrou, agarrando seu lenço

absolutamente seco, enquanto nos colocava para dentro do quar-

to sombrio. – O pobre sr. Blackhorn não vai durar muito. O mé-

dico disse que seu coração finalmente desistiu. Cuidei dele dia e

noite. Um anjo, era assim que ele me chamava.

– Está mais para demônio! – grunhiu o homem moribundo,

levantando do travesseiro sua cabeça esbranquiçada. – Estou con-

denado a morrer nessa cama nojenta, cheia de pulgas e calombos,

enquanto você torra o meu dinheiro em fitinhas bonitinhas e ca-

chinhos idiotas.

Ezra pegou sua fita métrica e se entregou à tarefa infame de

tomar as medidas do sr. Blackhorn.

– Depressa, meu caro – disse a sra. Blackhorn, cobrindo a

cabeça do marido com um pano úmido. – É a febre que está fa-

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zendo ele falar desse jeito, entende. Eu continuarei a amá-lo até

o fim dos tempos, mas, assim que ele se for, considero mais que

justo que eu venha a desfrutar de algumas coisas boas. Cuidar do

meu cabelo adorável e coisas assim. – Ela deu algumas pancadi-

nhas nos cachos, como se fossem feitos de ouro. – Os cachos são

naturais, é claro.

Eu ri. De maneira nada discreta. A sra. Blackhorn se vi -

rou para me encarar, mas seus cachinhos não acompanharam o

movimento. Então seu rosto encantadoramente redondo sumiu

atrás de cachos embolados. Enquanto a pobre criatura recolhia os

seus cabelos, Mamãe Snagsby me puxou para perto do leito de

morte.

– A jovenzinha aqui escolheu um poema que pode proporcio-

nar algum consolo, sr. Blackhorn – disse ela, bem alto. – É um

novo serviço que agora oferecemos a todos os nossos clientes,

sem qualquer custo extra.

O sr. Blackhorn afastou o pano da própria cara. A vela na

cabeceira projetava sombras fantasmagóricas sobre a pele dele. As

bochechas estavam afundadas. As suíças, grisalhas. Mas os olhos

retinham algum brilho.

– Já não sofri o suficiente?

Sua esposa se virou e o observou com uma expressão deso-

lada.

– Isso será um consolo para a irmã dele, quando eu lhe escre-

ver contando que as últimas palavras ouvidas por George foram

alguns versos de um poema adorável. Vá em frente, mocinha.

– Últimas palavras? – gaguejou o sr. Blackhorn. – Ainda não

morri, Martha. Então pode dizer para esses papa-defuntos darem

o fora daqui! Há dias não me sinto tão bem.

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– Não está bem, não! – ralhou sua esposa com certa energia.

– Você está morrendo, George, pare de lutar contra isso. – Ela

piscou os olhos e arfou o peito. – Tudo que desejo é que meu

querido marido repouse em paz.

Mamãe Snagsby acenou para mim com a cabeça e pesquei

o poe ma de dentro do meu bolso e comecei:

Enquanto meu verdadeiro amor se dissolve na luz do entardecer,

Sua alma vai se dispersar, eu sei, como pétalas ao vento.

Em toda vida as estações se sucedem e temos todos de nos sub-

meter

Temos de nos render à morte, pétalas ao vento.

Era um poema medonho. Tremendamente chato, pretensioso

e deprimente. Era monstruoso! E foi por esse motivo que tratei

de arrumar uma continuação para ele:

A sra. Blackhorn jura que seu amor jamais irá murchar,

Mas a pobre perua não chegou a derramar uma lágrima, apesar

de tentar.

A sra. Blackhorn engasgou e cobriu a boca com as mãos. O sr.

Blackhorn começou a gargalhar e a bater palmas. O que era algo

terrivelmente promissor!

Fui em frente:

O pobre sr. Blackhorn terá paz, longe das pulgas e desse colchão,

E sua adorada esposa, uma nova peruca, assim que o Velho Bode

estiver no caixão.

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– Pare com isso agora mesmo! – sussurrou a Mamãe Snagsby,

que se voltou para a sra. Blackhorn. – Peço desculpas pela meni-

na. Ela foi alertada para não inventar seus próprios versos.

– Achei maravilhoso – declarou o sr. Blackhorn.

A esposa havia caído sentada na cama, gritando alguma coisa

nada lisonjeira na minha direção. Mamãe Snagsby tentou con-

solá-la, enquanto Ezra me empurrava para uma cadeira num can-

to do quarto.

– Sente aqui, Ivy – instruiu ele –, enquanto cuidamos de tudo.

Quando a sra. Blackhorn parou de guinchar, ela saiu do re-

cinto para se recompor e arrumar a peruca. Uma empregada apa-

receu, trazendo um bule de chá para os Snagsby e um copo de

leite morno para mim. Geralmente, odeio leite morno. É repulsi-

vo. Porém, por alguma razão, Mamãe Snagsby insistia para que eu

bebesse, enquanto ela e Ezra se ocupavam da última parte de toda

visita ao leito de um moribundo: discutir detalhes a respeito do

caixão e todas essas coisas.

– Que vergonha – disse Mamãe Snagsby em tom de repri-

menda ao me passar o copo. – O que fez foi imperdoável. Beba

o leite e fique de bico calado.

Por uma vez na vida, fiz o que tinham me mandado.

– Acorde.

Eu estava tremendo. Ou melhor, uma mão havia agarrado

meu ombro e agora me sacudia.

– Acorde, estou mandando. – Era a Mamãe Snagsby. – Acorde

agora mesmo!

Abri os olhos. Sentia uma coisa queimando no meu peito.

Olhei à minha volta, piscando bastante. Então bocejei como uma

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criança e estiquei os braços. Levei um momento ou dois até com-

preender onde estava. No medonho quarto do sr. Blackhorn.

A não ser pelo fato de que não era mais o quarto dele. Pois ele

estava morto. Um lençol cobria o corpo sem vida. Ao meu lado,

a esposa dele soluçava lágrimas verdadeiras.

– Mas pensei... O sr. Blackhorn havia dito que estava se sen-

tindo melhor – falei baixinho.

– Ele estava enganado – respondeu a Mamãe Snagsby.

– Por quanto tempo eu dormi?

– Tempo suficiente – disse a Mamãe Snagsby, apanhando o

copo de leite já vazio na mesa ao meu lado. – Isso está se tornan-

do um hábito, mocinha. Você não está conseguindo dormir de

noite?

– Durmo feito um bebê, querida – respondi, ficando de pé.

Senti a cabeça rodopiar furiosamente e tratei de me sentar de

novo. Tinha mesmo pegado no sono várias vezes nos últimos me-

ses. Sempre depois de ler um poema na cabeceira de algum re-

cém-falecido. O que era estranho. E outra coisa. Sentia um calor

horrível no meu peito. Levei a mão ao meu coração. Mas não era

meu peito que estava quente. Era o Diamante Relógio. Tinha cer-

teza de que havia alguma explicação razoável para aquilo. Só não

sabia qual era.

Ezra, atrapalhado, se voltou para a sra. Blackhorn e ofereceu

seus pêsames.

Mas a Mamãe Snagsby não. Ela entregou à sra. Blackhorn

a conta pelos serviços prestados.

– Dentro de uma hora meus funcionários estarão aqui para

buscar o corpo. – Seu tom ao falar com a viúva enlutada era frio

e profissional. – A morte age rapidamente, sra. Blackhorn, de mo-

do que aconselharia a não espiar debaixo da mortalha. Procure se

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lembrar de seu marido do jeito que ele era, e a nossa empresa,

a Snagsby Funerais Econômicos, cuidará do resto.

A sra. Blackhorn concordou com a cabeça, em silêncio.

– Ele está em paz – disse Ezra. – Isso deveria ser um consolo.

– Pensei que seria – respondeu a sra. Blackhorn, docilmente.

Mamãe Snagsby agarrou sua sombrinha e acenou para Ezra

e para mim.

– Vamos embora – chamou ela, já se apressando em direção

à porta. – Terminamos o serviço aqui.

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Os Snagsby desapareciam todas as manhãs de domingo, às

nove horas em ponto. O que era um grande alívio. Tudo por cau-

sa de Adelaide Snagsby, a irmã favorita de Ezra. Uma vez por se-

mana, os Snagsby vestiam suas roupas mais chiques e iam para a

pensão de Adelaide, em Bayswater. Mas eu não era convidada.

Para todos os efeitos, eu não existia.

Aparentemente, o fato de descobrir que seu irmão tinha ado-

tado uma criada de doze anos de origem duvidosa deixaria aquela

bitolada cabeça de bagre aborrecida. Portanto, minha existência de -

veria permanecer em segredo. Era deixada para trás com uma lis ta

de tarefas domésticas, enquanto os Snagsby partiam para se en-

tupirem com tortas de creme e jogar conversa fora sobre o clima.

Algumas vezes eu armava um escândalo. Mas não hoje. Ma-

mãe Snagsby ainda estava uma fera comigo por causa do poema

do sr. Blackhorn. Tinham se passado dois dias, e ela mal havia me

dirigido a palavra.

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– Vamos nos atrasar – murmurou Ezra ao chegar, afobado,

vindo da sua oficina de trabalho. Na cocheira, nos fundos da ca-

sa, Ezra confeccionava todos os caixões vendidos a preços redu-

zidos. Ainda que passasse um bom tempo cochilando à sombra da

amendoeira.

– Mamãe Snagsby está na cozinha – falei, recolhendo a pá de

lixo e a minha vassoura para deixá-lo passar.

A casa dos Snagsby era estreita, alta e adorava acumular poei-

ra. O andar de baixo era reservado para o negócio dos funerais:

a sala para os velórios e o escritório para receber os clientes eram

aposentos bonitos e elegantes. A parte de cima era para morar:

esses aposentos tinham um aspecto decadente, deteriorado e me-

lancólico (com exceção do quarto de Gretel).

Ezra lançou um olhar na direção da cozinha e coçou a papada.

– Bacon?

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– Ela está no terceiro prato – respondi enquanto assentia com a cabeça.

Mamãe Snagsby tinha uma queda nada saudável por bacon. Comia toneladas daquilo. A pobre sra. Dickens (a arrumadeira e cozinheira) toda hora estava me mandando até o açougue para buscar mais um quilo.

O velho soltou um suspiro e sentou sob o retrato da sua filha, Gretel. Havia pinturas pela casa inteira mostrando sua figura, in-clusive na cozinha: um retrato para cada ano, desde a época em que era uma menininha até os dezoito anos, quando foi enviada para estudar em Paris. Mamãe Snagsby pintara cada um deles. Ela até que tinha talento com os pincéis. No retrato acima da ca-reca de Ezra, Gretel parecia ter uns dez ou onze anos, estava mon-tada num cavalo e tinha uma expressão bastante feliz.

– Não pode fazer bem – disse Ezra, baixinho – todo esse bacon.

– Eu não ficaria preocupada com isso, querido – respondi, limpando as mãos no abominável avental que Mamãe Snagsby insistia que eu usasse. – Na época em que eu trabalhava para os Midwinters, a srta. Lucy só comia nabos o inverno inteiro. – Ofe-reci a Ezra um sorriso tranquilizador. – Aquilo não fez mal ne-nhum a ela, na verdade. Bem, tirando o fato de a pele dela ter ficado verde. E, se bem me lembro, ela acabou perdendo a sensi-bilidade no rosto. Tirando isso, ficou elegante como um violino.

– Levante, Ezra! – disse Mamãe Snagsby ao avançar pelo cor-redor estreito.

Ezra se pôs de pé na mesma hora; era terrivelmente obediente.Mamãe Snagsby limpou do queixo um pouco da gordura do

bacon e me olhou friamente. – Por que está parada aí, mocinha? A poeira não vai sumir do

corredor com algum passe de mágica.

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– Sinto-me na obrigação de observar que, na qualidade de sua filha, não acho que seja apropriado que eu fique por aí tirando pó, polindo e varrendo tudo como uma espécie de Cinderela em miniatura. Sem falar em atender a porta, trazer eternamente bu-les de chá e limpar suas diabólicas roupas de baixo.

– E onde você estaria se Ezra e eu não tivéssemos acolhido você? – Mamãe Snagsby pôs um par de luvas verdes (combinando com o verde claro de seu vestido). – Esta casa é um local de tra-balho e todos devem fazer a sua parte, mesmo as filhas.

Difícil dizer ao certo qual era a idade da Mamãe Snagsby. Ela tinha um rosto bastante interessante. Pele cheia de pelotes e re-vestida com uma grossa camada de pó branco. Linhas finas con-tornavam seus cintilantes olhos azuis e sua boca pequena. Cabelos pretos com uma mecha branca na frente. E uma magnífica ver-ruga, pousada bem em cima do lábio superior, como um pudim de Natal.

– Mas não é possível que a vida seja só isso, querida – falei, apanhando a pazinha de lixo. – Por que nunca podemos ter com-panhia por aqui? Vocês não têm amigos? – perguntei com alguma emoção. – Tenho certeza que têm! Poderíamos fazer um chá en-cantador e convidar algumas garotas da minha idade. Pensem só como seria agradável ter aqui pessoas que não tivessem vindo só para ver um corpo morto.

– Em hipótese alguma. – Foi a dura resposta de Mamãe Snags-by. – Mas como você anda ansiosa por companhia, mocinha, depois de terminar suas tarefas, pode ir até a biblioteca para sele-cionar alguns poemas apropriadamente lúgubres. Nada de ficar in-ventando coisas. É inadequado.

Ezra pôs o chapéu e abriu a porta da frente. – Trate de seguir pelas ruas principais, Ivy – instruiu ele, co-

mo sempre fazia. – Nada de pegar atalhos, entendeu?

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– Entendi, querido – respondi, soltando um suspiro.

Então os Snagsby saíram da casa para a manhã ensolarada

e se foram.

O longo trajeto de Paddington até a biblioteca sempre decorria

como se eu estivesse em transe. Era a hora que eu tinha para pen-

sar. E havia muita coisa na minha mente. Estava repleta de segre-

dos. Os Snagsby não faziam a menor ideia das minhas aventuras

em Paris ou da minha viagem à Inglaterra com a srta. Always, nem

dos acontecimentos de Butterfield Park. Mamãe Snagsby não

apro vava a maneira como eu tirava o pó da casa, então eu nem

podia imaginar como receberia a notícia de que eu estava morta.

Ou meio morta.

E ainda havia a questão do Diamante Relógio. A pedra mági-

ca e amaldiçoada que deveria ter me matado na primeira vez em

que a usei há alguns meses. Pois era esse o seu grande poder. Ela

rouba almas, deixando para trás a carcaça ressequida dos tolos

ingênuos que tinham posto o colar. Exatamente como havia feito

com a pobre Rebecca.

O colar também oferecia visões do passado, do presente e do

futuro. Mas eu tinha ficado desapontada desde que pusera os pés

pela primeira vez na porta dos Snagsby. Não havia tido nenhuma

visão. Nada, até eu acordar no quarto do sr. Blackhorn sentindo

o calor da pedra contra a minha pele.

Naquele momento me ocorrera que o diamante poderia ter

alguma coisa para me mostrar. Então, assim que cheguei em casa,

corri até o meu quarto para olhar no interior da pedra. Será que

ela estaria prestes a me mostrar algum relance do meu passado

trá gico? Ou do meu glorioso futuro? Talvez se tratasse de uma pis-

ta tentadora sobre por que o Diamante Relógio não me matara,

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como havia acontecido com todos que o tinham usado. Mas não.

Tudo o que via era o presente: o sol do fim da tarde se pondo

sobre Londres. Foi um golpe cruel para mim.

Passei pelas portas imponentes e adentrei o ambiente fresco

da Biblioteca de Londres. Era como uma colmeia fervilhando

com todo tipo de atividades, todas relacionadas a livros. Pessoas

liam com evidente prazer. Outras carregavam pilhas de livros, fa-

lando aos sussurros. O que raios eu esperava encontrar ali? Cer-

tamente não a srta. Frost. Não esperava que ela aparecesse e me

carregasse dali para viver alguma aventura emocionante. Na esta-

ção de trem de Suffolk, ela me prometera que, ainda que eu não

pudesse vê-la, estaria por perto. Mas eu tinha minhas dúvidas.

Mesmo a srta. Always, perigosamente maluca, havia desapa-

recido. Não punha os olhos naquela perua louca desde que pulara

do telhado em Butterfield Park. Se ela realmente acreditava que

eu era a Dual (a salvadora que acabaria por curar a peste que vinha

matando o seu povo), então por que ainda não havia aparecido?

Ou tentado me agarrar e me arrastar para Prospa (o misterioso

mundo de onde ela e a srta. Frost tinham sido chamadas)? Talvez

a srta. Frost tivesse razão a respeito de Londres ser o único lugar

da Terra em que a srta. Always não pensaria em me procurar.

– Está no lugar errado, Ivy.

Sorri.

– Estou?

A srta. Carnage mostrou a placa na minha frente: “Misticis-

mo e Ciências Ocultas.”

– A seção de poesia fica no andar de cima. – Ela cutucou meu

braço. – Você, mais do que qualquer pessoa, devia saber disso.

Fazia apenas algumas semanas que conhecia a srta. Carnage,

mas ela era tudo que alguém poderia esperar de uma bibliotecária.

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PA RE M A i v y p o c ket

Malvestida. Óculos de lentes assustadoramente grossas. Cabe-los grisalhos puxados num coque formal. Nariz encurvado. Quei-xo enorme. Dentes grandes o bastante para que gravassem uma inscrição neles. Era gorducha e andava feito um pato, gingando ao dar uns passinhos.

– Tem razão – respondi. – Estava com a cabeça em outro lugar.– Fico um pouco preocupada que você gaste tanto tempo

procurando poemas mórbidos – disse a srta. Carnage com grande convicção. – Não é da minha conta, mas não considero saudável o fato de uma menina ter de ficar lendo poemas para moribun-dos, não acho nem um pouco saudável.

Suspirei e concordei com a cabeça. – Não é nem de longe tão divertido quanto você poderia ima-

ginar. A srta. Carnage deu uma espiada no corredor estreito repleto

de livros. – E não acho que tenha sido por distração que você veio pa-

rar aqui nesta seção da biblioteca. “Misticismo e Ciências Ocul-tas” devem exercer certo fascínio sobre você, Ivy, levando em conta a natureza do trabalho dos seus pais.

– Na verdade, não, querida – respondi e dei de ombros. – Os livros aqui dizem respeito a assuntos realmente som-

brios – disse a srta. Carnage, ignorando completamente o que eu acabara de dizer. – Coisas com as quais você não está familiariza-da, como comunicações com o plano do espírito, objetos amaldi-çoados e visitas fantasmagóricas.

– Não estou familiarizada? – Bufei. – Srta. Carnage, já tive mais visitas fantasmagóricas do que você teve noites solitárias junto à lareira.

– Cruzes. – A srta. Carnage empurrou os óculos para cima do nariz curvo. – Você tem visto fantasmas, fantasmas de verdade?

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C a l e b K r i s p

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– Dezenas deles. Uns vingativos. Outros tristes. Ou perdidos.

– Fascinante! – A srta. Carnage me puxou pelo corredor entre

as estantes, examinando as lombadas dos livros enquanto passá-

vamos. – Neste caso, existem alguns livros aqui que podem vir a

te interessar muitíssimo. É claro que alguns deles são tão revolu-

cionários que costumam ser malvistos. – Ela olhou para um lado

e para o outro do corredor, como se esperasse que um trem fosse

passar por ali. – Acredito que a biblioteca tenha alguns desses li-

vros escondidos por aqui, ainda que estejam há muito esquecidos,

sobre assuntos relacionados a fantasmas, a mundos dentro de ou-

tros mundos... esse tipo de coisa.

A srta. Carnage ficou me olhando, como se esperasse que eu

fosse fazer alguma coisa.

– Para ser sincera, querida, de modo algum eu...

– Aqui está! – declarou ela, puxando da estante cinco volu-

mes com a velocidade de um raio. – Se fantasmas andam te per-

turbando, a única solução é você se armar com recursos para se

livrar deles. – Entusiasmada, a srta. Carnage empilhou os livros

nos meus braços. – Esse aqui de cima é o mais interessante, Fan-

tasmas famosos da Escócia e do País de Gales, da srta. Geraldine

Always.

– Criaturinha desprezível. – Eu me peguei falando.

– Conhece a autora?

Fiz que sim com a cabeça.

– A verdade é que pensei que fôssemos amigas, amigas para

valer, entende? Mas estava terrivelmente enganada. Já aconteceu

com você, querida?

Silêncio.

Levantei os olhos. Não havia nem sinal da srta. Carnage em

parte alguma.

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PA RE M A i v y p o c ket

No mesmo instante escutei o piso de madeira rangendo atrás

de mim. Eu me virei, esperando ver a afável bibliotecária. Mas

o corredor estava deserto. O que era muito estranho. Talvez por-

que eu estivesse pensando na srta. Always. Ou talvez por me en-

contrar sozinha naquele interminável e sombrio corredor. Não

importava o motivo, tratei de sair dali rapidamente.

Uma sensação vergonhosa de alívio tomou conta de mim quan -

do deixei o corredor. Meus olhos se fixaram no bem-vindo bur-

burinho emitido pela multidão que ocupava as mesas de leitura.

Motivo pelo qual não reparei no pé que alguém estendeu no meu

caminho. E que me acertou os tornozelos. Tropecei e caí no chão.

Os livros se esparramaram à minha volta numa barulhenta sinfo-

nia que quebrou o silêncio.

Enquanto me punha de joelhos, percebi um par de sapatos

pretos e a bainha de uma bela saia lilás.

– Francamente, querida – falei, recolhendo os volumes do

chão –, você devia olhar por onde anda. Se não fosse a filha ado-

rada de um casal terrivelmente íntegro de fabricantes de caixões,

poderia acertar agora mesmo sua cabeça com um livro sobre fan-

tasmas vingativos.

Com incrível dignidade me pus de pé e olhei de frente aquela

que havia me atacado. Não tive tempo de controlar o suspiro que

escapou da minha boca.

Matilda Butterfield estava olhando para mim, mas seus olhi-

nhos negros faiscavam de um jeito sombrio.

– Oi, Pocket.