Parágrafo SUPLEMENTO LITERÁRIO | DIRECTOR RICARDO PINTO … · 2019. 5. 31. · suplemento...
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ponto final • SEXTA 31 DE MAIO, 2019
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+ANTOLOGIA DE FICÇÃO CIENTÍFICA CHINESAPAG.6-7
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A adolescência e as suas turbulências atravessaM o novo livro de Ana Pessoa e Joana Estrela.PAG.4-5
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suplemento literário • SEXTA 31 DE MAIO, 2019 ponto final • SEXTA 31 DE MAIO, 2019
ADMINISTRADOR /DIRECTOR: Ricardo Pinto EDITORA: Sara Figueiredo Costa COLABORADORES: David Ehrlich, Stacey Qiao, Yao FengILUSTRAÇÃO: Rui Rasquinho, C_L_A DESIGN /PAGINAÇÃO: Catarina Lopes Alves
Propriedade, administração e distribuição: Praia Grande Edições, Lda Impressão: Tipografia Welfare Ltd.• O Parágrafo é um suplemento do jornal Ponto Final e não pode ser vendido separadamente.0 Rua de Camilo Pessanha No. 21, R/C, Macau % [email protected] ! 2833 9566 / 28338583 < 2833 9563
B R E V E S E D I T O R I A L
Chico Buarque venceu o Prémio Camões e, um pouco por todo o mundo, mas especialmente em Portugal e no Brasil, as reacções de júbilo
sucederam-se. Não há como não sentir essa
felicidade de ver distinguido um talento
que supera todas as mestrias técnicas,
alcançando aquela rara qualidade de ser
capaz de tocar emocional e afectivamente
as vidas de tanta gente. Pouco importa se
o prémio se deve à obra literária do autor
ou à mais conhecida obra musical, porque
Chico Buarque faz com as palavras aquilo
que poucas pessoas, em romances, poemas,
crónicas ou letras de canções, souberam
fazer de modo sublime ao longo das eras
que já levamos de palavra escrita. Se não
rejubilarmos com isto, quase nada nos fará
celebrar.
Em destaque nesta edição, um livro para
os mais novos que vem confirmar aquilo
que qualquer leitor de mente aberta há
muito sabe: os livros podem ser criados a
pensar num determinado leitor, ou numa
faixa etária particular, mas o mais certo
é que chegarão aos olhos, à cabeça e ao
coração de qualquer pessoa se aquilo que
guardam entre páginas for capaz de deitar
por terra essa etiquetagem de arrumação
livreira. Aqui É Um Bom Lugar, de Ana
Pessoa e Joana Estrela (Planeta Tangerina) é
seguramente um desses livros.
Olhamos ainda para a mais recente
antologia de ficção científica chinesa,
recentemente publicada em inglês pela
mão de Ken Liu, um dos autores incluídos
no livro e um divulgador incansável deste
género literário, e particularmente da sua
produção em língua chinesa, no estrangeiro.
Ao longo de quase quinhentas páginas,
Broken Stars reúne alguns dos autores que
estão a definir o cânone da contemporânea
ficção científica chinesa. Acompanhá-los
será tarefa imprescindível para os próximos
tempos e não apenas para os apreciadores
dedicados do género.
S A R A F I G U E I R E D O C O S T A
E S C R I T A N A B R I S A T E X T O E F O T O G R A F I A Y A O F E N G
O poetaO poeta corre, salta e mergulha na palavra para
lhe medir a dimensão, a altura e a profundidade.
O poeta bebe o fogo para ter mais sede. Bebe a
solidão para se sentir bem acompanhado. Bebe
o vazio para tornar o coração um pouco maior
do que o universo.
O poeta precisa de muletas antes das asas
porque percorre o seu caminho mais na terra do
que no céu.
O poeta escreve no papel, na terra, nas águas,
na pedra, no corpo, na palma da mão ou nas
nuvens sentado no cimo da chaminé.
O poeta vive de pé mas ajoelha-se quando
chegar a Musa.
O poeta não canta no coro.
O poeta não só canta como rouxinol mas
também grita em voz de ferida, mesmo com o
nó na garganta.
O poeta faz com que uma árvore corra para fugir
ao machado ou uma cadeira seja enraizada na
terra para voltar a ser árvore.
O poeta escreve sempre na primeira pessoa
mesmo quando conjuga o verbo na terceira
pessoa.
O poeta é um bom tradutor do silêncio.
O poeta não dorme mas sonha.
O poeta pode jantar com o presidente ou chegar
a ser o seu amigo mas não pode servir-lhe como
um funcionário, o que nāo funciona para ser
poeta
O poeta consegue fazer um poema depois de
rasgar relatórios.
Booker para Jokha AlharthiFoi a primeira escritora nascida em
Omã a ser traduzida para o inglês e o
livro em causa acabou por vencer o Man
Booker Prize deste ano. Celestial Bodies,
editado pela Sandstone Press, narra a
vida de três irmãs na cidade de al-Awafi,
acompanhando-lhes os percursos e as
diferenças. Jokha Alharthi vai dividir
o prémio de 50.000 libras com a sua
tradutora, a norte-americana Marilyn
Booth, co-responsável pela chegada do
primeiro romance originalmente escrito em
língua árabe a vencer o prestigiado galardão
literário.
Manga no MuseuA resistência de espaços artísticos mais
tradicionais à presença da banda desenhada
tem sido contrariada lentamente, com
algumas exposições a ocuparem museus
e outras instituições. O mais recente
exemplo dessa abertura chega de Londres,
onde o Museu Britânico acolhe uma
grande exposição dedicada à manga, a
narrativa gráfica de origem japonesa que
se transformou, nas últimas décadas,
numa linguagem consumida e imitada
também no Ocidente, lugar de origem das
suas influências e, agora, lugar de regresso.
De Jiro Taniguchi a Toriyama Akira, os
autores integrados em Manga āāā revelam a
pluralidade de temas, géneros e estilos da
banda desenhada japonesa, bem como a sua
imensa popularidade, no Japão e fora dele.
Extradição em revistaA revista bilingue 聲韻詩刊 Voice & Verse Poetry Magazine, de Hong Kong,
está a receber contribuições para o seu
número de Agosto e Setembro, dedicado ao
tema “Extradição”. As colaborações estão
limitadas à poesia, em língua inglesa ou
chinesa, e podem ser enviadas
para o mail [email protected]
até ao fim de Junho.
II Fórum Literário China-PortugalNo próximo dia 12 de Junho, Pequim acolhe a segunda edição do
Fórum Literário Portugal-China, integrado na celebração dos 40 anos
do restabelecimento das suas relações diplomáticas entre os dois
países. Depois de uma primeira edição realizada em Lisboa, em 2017,
este Fórum acontece no âmbito do Memorando de Entendimento
entre a República Portuguesa e a República Popular da China no
domínio do Livro e da Literatura, assinado em 2015, em Pequim,
que prevê o apoio à divulgação recíproca da literatura chinesa e
portuguesa, através do apoio à tradução e de Fóruns Literários que
envolvem escritores chineses e portugueses, a organizar regularmente
pela Associação Chinesa de Escritores e pela Direção-Geral do Livro,
dos Arquivos e das Bibliotecas. O Fórum decorrerá no Museu Nacional
da Moderna Literatura Chinesa e contará com a presença dos
escritores Bruno Vieira Amaral, Isabela Figueiredo (na imagem),
José Luís Peixoto, Lu Min, Liu Zhenyun e Xu Zechen, num painel
moderado pelo também escritor Qiu Huadong.
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suplemento literário • SEXTA 31 DE MAIO, 2019 ponto final • SEXTA 31 DE MAIO, 2019
adolescência é o momento em que experimen-
tamos o mundo com a nossa sensibilidade, sem
sabermos muito bem ainda quem somos, o que
viemos cá fazer. É um espaço de dúvida e de in-
segurança. E de enorme procura, também. Tudo
é novo e intenso. Eu quero escrever sobre isso,
mas na verdade não fico a pensar muito sobre a
adolescência, se é isto ou aquilo. É o que é. É ex-
plosivo, sobretudo. Se calhar sou um bocado ado-
lescente neste processo.
E é isso que te interessa em termos narrativos,
o facto de ser um período de experimentação e
erro? Pergunto isto pelo facto de escreveres, de
facto, muito a partir do olhar da adolescência.
AP: Sem dúvida. Essa confusão constante, os
momentos explosivos, os erros, as mágoas, a pos-
sibilidade de mudares, de cresceres, de te encon-
trares. Ainda não és cínico/a. Ainda não tens a
sensação de que viste tudo. Essa energia criadora,
inventiva, é o que me interessa.
Sem querer entrar em perguntas pessoais, ou
naquele jogo de descobrir o que é “verdade” no
livro, foram à vossa própria adolescência buscar
algum material?
AP: Vou folhear o livro para tentar perceber
isso...não. É tudo muito ficcionado.
JE: Da minha parte não, a não ser que os 20 ain-
da contem como adolescência tardia...
AP: Mas estou aqui a ver que a minha infância,
sim, está presente no livro.
É inevitável que se usem esses vestígios da infân-
cia quando se escreve na voz de uma persona-
gem, mesmo que não tenha muito que ver com a
pessoa que somos?
AP: A mim interessa-me sempre muito perce-
ber de onde vêm estas personagens. Que expe-
riências tiveram? Que mágoas? Que conquistas?
Somos sempre o resultado de tudo o que aconte-
ceu. Adoro este regresso ao passado. Somos essas
pessoas todas ao mesmo tempo, a que andava de
bicicleta aos oito anos, a que se apaixona pelo
professor de Educação Física, a que apanha o me-
tro, a que escreve sobre isso...
JE: Acho que há um filtro por onde passa tudo
o que fazemos, mesmo o trabalho que é ficcional.
E esse filtro é feito pelas nossas experiências, per-
sonalidade... deve ser difícil que algumas dessas
coisas não passem para o que escrevemos ou de-
senhamos.
AP: A escrita permite esse encontro: o que fo-
mos, o que somos
É um regresso ao passado sem saudosismo, mas
com um olhar consciente do presente e do futuro
em aberto, também?
AP: Acho que é um regresso muito saudosista.
Ou melhor, muito... romântico. Literário, talvez.
Escrevo por cenas, acho, momentos que estão
de certa forma congelados: a fotografia dos oito
anos, a adolescente à janela, as frases da mãe, os
momentos de escrita (insónias, por exemplo).
Isto no caso deste livro, mas penso que se aplica
este processo a todos eles. Há qualquer coisa de
cinematográfico nisto, também, imagens muito
visuais, que não são bem a vida como ela é. São
representações. Símbolos.
A memória é uma matéria infinita, sempre a pro-
jectar-se nos tempos todos, passados, presentes
e futuros?
AP: Para mim, tem sido. Estou sempre à espera
que ela acabe, mas ela não acaba.
I L U S T R A Ç Ã O D A C A P A J O A N A E S T R E L A
O lugar turbulento e meigo da adolescência
Agora para a Joana, especificamente: foi difícil
criar um universo visual tão íntimo, tão centrado
naquilo que se passa dentro da cabeça, para uma
personagem que foi criada por outra pessoa?
JE: Não, na verdade, não foi difícil, porque eu
acho que também a criei, pelo menos em parte.
Dei-lhe a cara e desenhei a casa dela e os amigos...
Havia toda uma dimensão que eu podia explorar
por mim, com desenhos, e acho que houve pou-
cas páginas em que tenha ficado sem saber o que
poderia desenhar. Mas aconteceu, por exemplo,
numa em que a protagonista fala da concretiza-
ção pessoal e era suposto desenhar algo que re-
presentasse concretização pessoal. No final, dese-
nhei um pacote de batatas fritas e acho que isso
era uma piada muito ao jeito da Tereza.
AP: Já foram vários os leitores que nos disseram
que tiveram dificuldade em perceber o que tinha
nascido antes: se o texto, se a ilustração.
Então, por um lado houve uma identificação pes-
soal com a personagem que a Ana Pessoa criou e,
por outro houve novas camadas que a ajudaram
a ficar como nós, leitores, a conhecemos, é isso?
JE: Sim. Eu senti que, quando o livro me chegou
às mãos, faltava uma metade, por isso a Tereza
não é uma personagem que estivesse completa-
mente definida e a quem eu tive de me adaptar.
A adolescência é um bom lugar?
JE: Ui, a minha não foi!
AP: É um bom lugar, sim! A vida adulta é uma seca.
A infância tem longa tradição de presença, en-
quanto tema e tempo de formação de memória,
na literatura e nas artes. A adolescência ocupa
um lugar igualmente definidor naquilo que po-
demos vir a ser?
AP: São turbulências fundamentais. Estamos
tão preocupados com a nossa existência... é tudo
tão intenso.
JE: Sim. E acho que é quando começamos a en-
tender melhor a nossa identidade, o nosso lugar
no mundo. Há esse crescimento interno, claro,
mas acho que também abana muitas coisas na
maneira como te relacionas com as pessoas à tua
volta, com o teu mundo
AP: Também penso que sim, mas eu escrevo
sobre isso, não teorizo. A minha relação com a
adolescência é uma relação de espontaneidade e
de vida. Não tenho propósitos. Não quero definir.
Acho que não me estou a explicar muito bem... A
Este é um livro criado a quatro mãos, com a par-
ticularidade de não ser exactamente um livro
ilustrado, mas antes uma narrativa em fragmen-
tos onde texto e imagem são interdependentes,
ambos contribuindo decisivamente para o avan-
çar da narrativa. Como foi o processo de traba-
lho, tendo em conta que o texto foi escrito antes?
Ana Pessoa: Há uns anos fiz uma recolha de
textos que tinha escrito e no ano passado percebi
que não tinha de salvar textos, mas antes peda-
ços, fragmentos. Foi um trabalho muito invulgar,
mergulhar dentro de cadernos e de textos do blo-
gue. Depois de acabar o texto, falei das minhas
dúvidas com a Joana e logo depois falámos com o
Planeta Tangerina.
Joana Estrela: O texto e a imagem foram feitos
em fases diferentes. Acho que o facto de o resul-
tado final ter ficado tão interdependente foi, pri-
meiro que tudo, graças à Ana, que deixou muito
espaço no texto, ou no livro, para ser explorado
por mim nas ilustrações. Então, quando comecei
a trabalhar no livro, o texto já estava acabado, ou
quase acabado, e o que eu fiz foi um processo pa-
recido com o da Ana, de recolha pelos meus diá-
rios gráficos
E esses fragmentos eram coisas dispersas ou já
tinham sido pensados neste registo diarístico,
colocado na voz desta personagem?
AP: Nenhum dos textos foi pensado para este
registo diarístico, mas muitos textos nasceram
nesse registo (nos meus cadernos, no blogue).
Eram temas recorrentes. A chuva, o vento, a noite.
JE: E, no meu caso, muitos dos desenhos do li-
vro são coisas que já tinha desenhado nos meus
diários e que achei que ficavam bem com o texto.
Houve outras coisas que desenhei de propósito.
AP: A certa altura, comecei a achar que estes
fragmentos podiam ser um diário gráfico. Mas
não sabia como dialogar com a imagem. Como é
que se escreve sem desenhar? E a Joana, para me
ajudar nesse processo, enviou-me uns desenhos.
No fim do livro, há uma referência ao facto de
os cadernos, e da estima que ambas nutrem por
eles, terem sido fundamentais para o nascimen-
to desta história.
AP: Os cadernos foram mesmo fundamentais
para este livro. No caso dos textos, o facto de na-
vegar pelos cadernos permitiu-me criar associa-
ções que não existiam antes. Ou criar interrup-
ções inesperadas (cortar as unhas dos pés, fazer
uma pergunta fora do contexto, etc).
Podemos dizer que os cadernos são, para ambas,
um objecto fundamental de criação, reflexão,
registo, e que isso ajudou muito a construir este
livro, ainda que este livro conte a história de uma
rapariga que não é nenhuma de vocês?
AP: Sim! Há qualquer coisa nesta relação com
o caderno que, para mim, é fundamental. É um
espaço de intimidade, de experimentação. E tam-
bém de oração, quase: escrevo muitas vezes as
mesmas frases. Isto só acontece quando escrevo
à mão. No computador, não é assim. Não racio-
nalizo muito este processo, só sei que faz parte do
meu processo.
JE: Sim, para mim também são importantes,
como um sitio onde posso falhar e fazer desenhos
menos bons ou mais rápidos.
AP: Isto também fez parte da construção do li-
vro. Queríamos que ele fosse o mais próximo pos-
sível de um caderno, daí os cantos redondos e o
facto de todo o texto ser escrito à mão (pobre Joa-
na...). Também não tem numeração de páginas.
JE: Sim, eu queria que parecesse credível como
diário gráfico
Ana Pessoa e Joana Estrela criaram o diário ficcional de uma adolescente
e nele resgataram, entre textos, imagens e fragmentos inventados, essa
lenta agitação que nos marca a vida de uma forma tão intensa.
O texto de Aqui É Um Bom Lugar venceu o Prémio Maria Rosa Colaço de literatu-ra juvenil em 2018. Depois da distinção, Ana Pessoa desafiou Joana Estrela a integrar uma
nova fase desta história, criando as imagens que
transformariam uma narrativa com palavras num
livro onde texto e imagem surgem intrinsecamen-
te ligados. Aqui É Um Bom Lugar, editado pela
Planeta Tangerina, passou a ser este objecto difícil
de catalogar: não é um livro ilustrado, não é uma
banda desenhada, não é uma história que viva
inteiramente da narrativa. O que é, então? Talvez
um diário feito de palavras e imagens, umas vezes
desenhadas, outras recortadas e coladas. O registo
quotidiano de Tereza, uma rapariga de 17 anos, a
caminho dos 18, que partilha as suas inquietações
mais profundas lado a lado com as observações
mais insignificantes, os abismos emocionais do
crescimento e da chegada à vida adulta misturados
com a espuma dos dias e os episódios que hão-de
cair no esquecimento. É um livro que é um cader-
no, recolhendo peças soltas e alguns estilhaços que
vão dando forma, não exactamente a uma história,
mas aos momentos que se sucedem na vida desta
rapariga. As livrarias hão-de arrumar o volume em
formato quase de bolso e cantos arredondados na
secção infanto-juvenil, como quase sempre acon-
tece aos livros que têm adolescentes como perso-
nagens. Faz sentido que assim seja, talvez, para
que os leitores mais novos, capazes de se identifi-
carem com Tereza, não o percam de vista, mas se-
ria justo que não ficasse encerrado numa qualquer
gaveta etária. Afinal, os leitores adultos também já
tiveram dezassete anos e aquilo que neste livro se
enuncia é matéria intemporal, memória e inven-
ção, medo e descoberta, aquela mesma matéria de
que continuamos a ser feitos mesmo que muitas
décadas tenham passado sobre o impacto desses
primeiros abalos da alma.
Além de escritora, com quatro livros publicados
até ao momento, Ana Pessoa é tradutora, ofício
que exerce em Bruxelas, e escreve regularmente no
blog belgavista.blogspot.com. Mary John, Supergi-
gante e O Caderno Vermelho da Rapariga Karateca,
todos com edição Planeta Tangerina, antecederam
este Aqui É Um Bom Lugar e firmaram o seu nome
na constelação dos autores de literatura para os
mais jovens. Joana Estrela vive no Porto e o seu
trabalho anda pelos territórios da banda desenha-
da e da ilustração. Propaganda, A Rainha do Norte
ou Os Vestidos de Tiago são alguns dos livros que
publicou e uma boa montra para se conhecer a
diversidade de estilos, registos e modos narrativos
com que trabalha. Vivendo as autoras em lugares
distantes, não foi possível juntá-las para uma en-
trevista presencial. As tecnologias da comunicação
engendraram outra hipótese para que pudésse-
mos ouvir falar deste livro na primeira pessoa: uma
conversa a três, via internet, sem tempo medido
nem constrangimentos formais. O resultado é este,
sem outros filtros que não o apagamento de alguns
emojis que acompanharam comentários mais ani-
mados sobre problemas técnicos (rapidamente re-
solvidos).
ponto final • SEXTA 31 DE MAIO, 2019
Ana Pessoa [ Fotografia Henrique Bandarra ] Joana Estrela [ Fotografia Victor Bravo Lobo ]
P O R S A R A F I G U E I R E D O C O S T A
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suplemento literário • SEXTA 31 DE MAIO, 2019 ponto final • SEXTA 31 DE MAIO, 2019
P O R S T A C E Y Q I A O
Diaosou, e Cat Country, de Lao She,
mas o género só começa a ser aceite e
apreciado por um grande número de
leitores muito recentemente, com a
publicação da trilogia The Three Body
Problem, de Liu Cixin’s (劉慈欣), em 2010. Com milhões de exemplares
vendidos, a trilogia tornou-se um
tema de discussão permanente para
os fãs da ficção científica, mas igual-
mente para leitores de outros géner-
os, cientistas, professores e até CEO’s
de grandes empresas tecnológicas.
Em 2015, a versão inglesa da obra,
traduzida por Ken Liu, venceu o Hugo
Award para melhor romance, trans-
formando-se no primeiro romance
asiático, e também no primeiro ro-
mance traduzido de outro idioma, a
merecer o galardão. No ano seguinte,
é a vez do livro Folding Beijing, de
Hao Jingfang’s (郝景芳), vencer o Hugo Award na categoria de melhor
novela. A tradução foi igualmente as-
sinada por Ken Liu e, depois destes
dois livros, muitas outras obras do
género chegaram aos leitores de lín-
gua inglesa pela mão de Ken Liu,
confirmando e ampliando o sucesso
da ficção científica chinesa no palco
literário internacional.
Há três anos, Ken Liu publicou uma
primeira antologia de ficção científica
chinesa em inglês, Invisible Planets.
Agora, surge um novo volume, Broken
Stars: Contemporary Chinese Science
Fiction in Translation, com edição da
inglesa Tor Books. Broken Stars permite
um olhar abrangente sobre este género
literário e o modo particular como tem
sido desenvolvido na China, reunindo
dezasseis contos assinados por catorze
autores, o dobro daqueles que integra-
vam Invisible Planets. «Editei Broken
Stars com a preocupação de expandir
a pluralidade de vozes autorais incluí-
das, bem como a paleta emocional e
os estilos narrativos», escreve Liu na
introdução do livro. «Escolhi escritores
consagrados – a perspicácia mordaz de
Han Song (韓松) surge aqui em duas narrativas – bem como novas vozes –
acredito que mais leitores deveriam
conhecer o trabalho de Gu Shi (顧適), Regina Kanyu Wang (王侃瑜) e Anna Wu (吳霜). Também inclui proposita-damente algumas histórias que talvez
sejam consideradas menos acessíveis
aos leitores ocidentais: a viagem no
tempo de Zhang Ran (張冉), que tira partido de um conjunto de tropos
unicamente chineses, ou o conto de
Baoshu’s (寶樹), cuja ressonância emo-tiva se torna mais clara para o leitor em
função do que este conhecer da mod-
erna história chinesa.»
Quando comparada com Invisible
Planets, esta nova antologia não faz
qualquer esforço por ser “representa-
tiva” ou por ser uma espécie de “best
of”, como o próprio editor admite,
reflectindo, em vez disso, o seu gosto
pessoal: «O critério mais importante
que utilizei foi este: gostei da história
e achei-a memorável.» E os contos
incluídos neste Broken Stars são, de
facto, memoráveis, apresentando mo-
dos de narrar e subgéneros narrati-
vos muito variados e confirmando a
notável vitalidade da ficção científica
na China. Os leitores de língua inglesa
encontrarão aqui subgéneros famili-
ares, como a hard SF, o ciberpunk ou o
space opera, bem como alguns temas e
modos específicos da cultura chinesa,
como o chuanyue, viagens no tempo
em direcção ao passado, ambienta-
das num período histórico concreto e
reconhecível.
O primeiro conto do livro, “Good-
bye, Melancholy”, de Xia Jia, apresenta
um olhar profundamente imaginativo
sobre o legado do matemático Alan
Turing, relacionando de modo ma-
gistral dois tópicos aparentemente
afastados, a inteligência artificial e a
depressão.
No conto que dá título à antologia,
assinado por Tang Fei, uma narrativa
difícil de categorizar acompanha uma
jovem rapariga e o seu confronto com
a relevância das estrelas no destino
individual. Sobre este conto, Ken Liu
diz que «o mundo é estranho e difícil
de perceber e as pessoas que o habi-
tam têm contornos complexos e gar-
ras afiadas. No centro do mundo está
a escuridão, o que ficou depois das
estrelas se terem apagado.» No conto
de Liu Cixin, “Moonlight”, um homem
olha para a lua quando recebe um tele-
fonema de si próprio, ligando do futu-
ro – em 2123 – e pedindo-lhe que faça
algo para alterar o rumo da história,
salvando a Terra de ser destruída pelo
uso excessivo de combustíveis fósseis.
Antes que a personagem possa fazer al-
guma coisa, sucedem-se novas chama-
das telefónicas, obrigando-a a imag-
inar um modo de afastar a Espada de
Dâmocles que pende sobre as cabeças
da humanidade. Liu Cixin exibe a sua
mestria na ficção científica mais tradi-
cional sem deixar de recorrer a um
tópico tão actual, o do esgotamento
dos recursos naturais, comum a vários
dos seus textos.
Ao longo das quase quinhentas pá-
ginas desta antologia, não faltam con-
tos absolutamente notáveis. E como
tradutor de quase todos eles, Ken Liu
contribui de modo ímpar para manter
a vivacidade de cada prosa, respeitan-
do-lhe o tom e o suspense do enredo,
respeitando as nuances e os jogos de
palavras do original chinês e reconstru-
indo estilos e vozes autorais com apenas
uma ou outra nota de rodapé, quando
é absolutamente essencial fornecer al-
gum contexto cultural ou histórico.
A juntar aos contos, Broken
Stars inclui também três ensaios de
académicos chineses (alguns deles,
igualmente autores de ficção) que se
revelam fundamentais no traçar de
uma genealogia da ficção científica na
China. Assinados por Regina Kanyu
Wang, Mingwei Song e Fei Dao, os en-
saios são o complemento certeiro para
uma antologia como esta, uma mara-
tona de leitura que celebra a riqueza e
a vivacidade da ficção científica chine-
sa contemporânea, cada vez mais um
género reconhecido pelos leitores de
outras paragens.
Broken Stars: A ficção científica chinesa
em antologia
Prémios internacionais, traduções em língua inglesa e um reconhecimento crescente por parte de leitores de todo o mundo. Assim vai a ficção científica criada por escritores chineses, agora reunida em antologia por um dos seus maiores entusiastas, Ken Liu.
Na cerimónia de 2014 do Xingyun Award for Global Chinese Fiction, a escritora e académica japonesa Tachihara Tāya
disse que «a razão pela qual a ficção
científica japonesa não exerce a mes-
ma influência internacional que a
chinesa se deve ao facto de não termos
um Ken Liu.» Pode parecer exagera-
do atribuir a emergência de todo um
género literário a uma só pessoa, mas
Ken Liu merece o reconhecimento.
Escritor distinguido com vários pré-
mios, nacionais e internacionais – o
seu conto “The Paper Menagerie” foi
a primeira obra de ficção a arrecadar
simultaneamente os prémios Nebula,
Hugo e Word Fantasy Awards – Liu é ig-
ualmente tradutor de vários romances
e contos de ficção científica. Foi ele, na
verdade, o responsável por levar estas
ficções para o mundo dos leitores an-
glófonos, colocando a ficção científi-
ca chinesa no centro das atenções do
mundo.
Os primeiros textos chineses que
podemos arrumar sem conflito no
campo da ficção científica são do in-
ício do século XX, entre eles os livros
Colony of the Moon, de Huangjiang
MA
CA
UC
LOSE
RMA
CA
UC
LOSE
R
MA
CA
UC
LOSE
R
Já à venda
Faces of diversity多元面孔Talented foreigners making up creative tapestry of th city
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suplemento literário • SEXTA 31 DE MAIO, 2019 ponto final • SEXTA 31 DE MAIO, 2019
Aquela em que ele foge da bola gigante? A do
homem com a espada, que ele simplesmente dá
um tiro? Não, nenhuma?!
- Não sei do que o senhor está falando.
- Inacreditável. Simplesmente inacreditável.
O homem até acendeu um novo cigarro para
se acalmar. Mas eu continuava curioso.
- E o que vão filmar aqui? – Perguntei.
- Não pude ler o roteiro, mas parece que é
uma cena em que o Indiana Jones foge de uma
gangue em Xangai.
Ao ouvir aquilo, foi a minha vez de arregalar
os olhos e ficar transtornado.
- Xangai?! – Gritei – Mas aqui é Macau!
- Não reclame comigo, reclame com a
produção. Eu sou apenas um assistente da
equipe.
- Mas por que filmariam o filme aqui em
Macau se eles querem que se passe em Xangai?!
- Ouvi dizer que é porque esta região da cidade
parece a Xangai dos anos 30. – Ele reparou que
eu não entendi o que ele quis dizer com aquilo
– Indiana Jones se passa nos anos 30! Época dos
nazistas e coisas assim!
- Nazistas em Xangai? – Cada novo detalhe
que aquele homem me contava do filme fazia ele
me parecer ainda pior.
- Não nazistas em Xangai, é só na mesma
época! No primeiro filme ele enfrentou nazistas!
Neste ele enfrenta outros vilões.
Acenei, começando a entender.
- E por que vão filmar o filme na Pensão Sun
Sun Hotel? – Continuei perguntando.
- Sun Sun o que? – O homem nem sabia o
nome da pensão, precisei apontar na direção do
prédio – Ah, o Club Obi Wan?
- Aquele lugar não se chama Club Obi Wan! –
Protestei.
- Eu sei que não se chama, é o nome que vai
aparecer no filme. Estão usando este lugar apenas
como cenário.
- Inacreditável. – Foi a minha vez de dizer. Eu
Em que ano foi mesmo? 1983, se não me
engano. Consegue checar isso neste
seu telefoninho? É isso mesmo? Que
bom, minha memória não está ainda
tão ruim quanto minha esposa diz que está.
É, 1983. Eu tinha 45 anos então, e trabalhava
próximo à Praça de Ponte e Horta. Não, não vou
dizer com o que, o senhor quer saber da história
do filme ou quer saber da minha?!
Enfim, era tarde da noite, e eu estava me
preparando para voltar para casa quando noto
uma multidão fazendo uma barulheira perto
do que naquela época era a Pensão Sun Sun
Hotel. E, enquanto me perguntava o que estava
acontecendo, mais e mais pessoas aproximavam-
se do local. Uma delas passou correndo perto de
mim e resolvi perguntar:
- O que está acontecendo aqui?
- Estão filmando um filme! – A pessoa
respondeu ainda correndo – Um filme americano!
Achei aquilo bem estranho. Entenda,
atualmente o governo arrumou os prédios
antigos daquela região, mas naquela época não
era um lugar de aparência muito agradável.
Eu próprio só trabalhava lá por necessidade. E
geralmente estes filmes americanos quando vem
para cá querem lugares bonitos, exóticos. Como
em “O Homem da Pistola Dourada”.
Mas deixa-me falar, como o senhor quer me
entrevistar se me interrompe a cada minuto?!
Não te ensinam isso no curso de jornalismo?!
Ah, primeiro o senhor disse que queria saber do
filme, agora diz que quer um personagem? Ora!
Mas é verdade, eu não gostava mesmo de assistir
filmes! Eu te disse quando o senhor propôs a
entrevista! O que? Ah, mas um de vez em quando
acabava assistindo quando todo mundo falava
dele, embora geralmente saísse decepcionado.
“O Homem da Pistola Dourada” foi um desses.
Outro que me decepcionou? Vejamos, “A Colina
da Saudade” assisti quando tinha 17 ou 18 anos, e
foi um que me decepcionou bastante. Ainda mais
R U I R A S Q U I N H O
C O N T O
D A V I D E H R L I C H
I L U S T R A Ç Ã O
não entendia nada de como filmes são feitos, e
tudo aquilo me soava cada vez mais complicado –
E por que Club Obi Wan? Obi Wan não quer dizer
nada em mandarim, aliás, nem em cantonês.
- É uma piada interna, uma referência ao... – O
homem parou no meio da frase – Espere, o senhor
não sabe quem é Obi Wan Kenobi?! – Acenei que
não – O senhor assistiu algum filme nos últimos
anos?! Qualquer um?!
- Não gosto de filmes, acho chatos.
- O senhor quer dizer, filmes no geral?! Como
alguém pode não gostar de filmes?! Eu amo filmes!
Amo tanto que sou capaz de fazer qualquer coisa
para participar de um. Mesmo que seja apenas
como carregador de rolos de película.
Do lado de dentro do bloqueio, outro homem
branco, que devia ser outro membro da equipe de
filmagem, acenou para o homem com quem eu
estava conversando aproximar-se. Ele acenou de
volta e apagou o cigarro que fumava com o pé.
- Parece que tenho que ir, vão começar a filmar
agora. – Ele olhou para mim – Escute, se der tudo
certo hoje, amanhã de noite iremos filmar outra
cena, mas dessa vez em uma avenida de... Almei-
Alguma-Coisa... Não fica longe daqui...
- Almeida Ribeiro?
- Sim, isso! Vão bloquear três quadras da
avenida para as filmagens, não sei falar os nomes...
– Ele me mostrou uma folha de papel que estava
guardada no bolso dele e apontou com o dedo um
trecho do que estava escrito. Dizia que o bloqueio
seria na Avenida de Almeida Ribeiro, entre a
Travessa do Mastro e a Travessa do Barbeiro –
Enfim, não sei exatamente onde vou estar e nem
quanto tempo ficarei trabalhando, mas se eu
conseguir alguma folga podemos continuar com
nossa conversa, o que acha, senhor...?
- Chan.
- Senhor Chan. Ainda estou incrédulo.
Alguém que não gosta de filmes... Bem, até mais!
– Ele já estava entrando no bloqueio quando
que tinha chamado uma garota pela qual estava
apaixonado na época para assistir. Digamos que
o encontro não deu muito certo...
Mas voltando ao que o senhor queria saber.
De fato, eu não gostava de assistir filmes, mas
fiquei curioso diante daquela comoção. Sempre
fui do tipo que fica curioso com comoções.
Quando jovem até me perguntavam por que eu
não tentava ser jornalista, porque onde quer que
houvesse uma manifestação ou um acidente, lá
estava eu. O senhor também é assim? Como não?!
Onde já se viu jornalista que não gosta de ver
sangue? Mas o senhor para chegar nesta posição
em que está agora não teve que antes ficar em
porta de delegacia? Ora, não acredito!
De qualquer forma, resolvi me aproximar, e
já havia centenas de pessoas gritando e fazendo
alvoroço próximo à pensão. Não dava para ver
nada. Tentei dar a volta para ver melhor, mas onde
quer que eu fosse tinha pessoas e mais pessoas.
Até que finalmente me afastei tanto que só havia
alguns seguranças bloqueando a rua. Porém, do
lado de fora do bloqueio, vi um homem branco
fumando um cigarro. Supus que era alguém da
equipe de filmagem. Felizmente, eu sabia um
pouco de inglês, e fui perguntar para ele:
- Que filme estão filmando aqui?
- É o novo Indiana Jones. – Ele respondeu.
Pelo tom de voz dele, imagino que ele nem
considerava a possibilidade de alguém não saber
quem era Indiana Jones. Acontece, porém, que eu
estava fora das considerações dele.
- Indiana o que? – Eu disse.
O homem arregalou uns olhos como se eu
fosse um alienígena ou algo assim. Ele ficou tão
transtornado que deixou o cigarro cair no chão, e
nem conseguia mais falar direito.
- Indiana Jo... Todo mundo já pelo menos
ouviu falar de Indiana Jones! Foi o maior sucesso
dois anos atrás! Indiana Jones, Harrison Ford!
Como o senhor pode não ter assistido?! Ao menos
alguma cena o senhor tem que reconhecer. > > >
Senhor Chan
-
suplemento literário • SEXTA 31 DE MAIO, 2019 ponto final • SEXTA 31 DE MAIO, 2019
se virou para mim – Mas se não conseguirmos
conversar, pelo menos assista ao filme quando
for lançado! Vai se chamar “Indiana Jones e o
Templo Amaldiçoado”! Raramente digo isso dos
filmes nos quais trabalho, mas este promete ser
bem bom!
E enfim ele foi embora. Foi só então que
percebi que tinha me esquecido completamente
de perguntar pelo nome dele. Está certo que ele
também se esqueceu de me contar, e eu estava
ainda atordoado pela conversa, mas enquanto
ia embora me senti bastante mal-educado por
aquilo. Tive inclusive dificuldade mais tarde em
dormir, de vergonha.
Enquanto me afastava, passei pela Praça de
Ponte e Horta, que agora estava rodeada de tantas
pessoas que mal dava para sair de lá. E todas elas
olhavam para cima, em direção ao último andar
da Pensão Sun Sun Hotel.
Assim que me virei para olhar naquela
direção, dois atores saltaram do último andar e
começaram a cair em uma série de toldos que
foram instalados nas varandas da Pensão. Sim,
sim, instalados, a Pensão não tinha toldos nas
varandas! Não, não tinha reparado antes, achei
que era algo novo da própria Pensão, mas quando
vi os atores caindo em cima deles e rasgando-os
percebi que devia ser algo próprio do filme. Que
nem a placa brilhante escrito Club Obi Wan, que
o homem com quem conversei tinha citado. Foi
só então que notei aquilo.
Quando os dois atores saltaram toda aquela
multidão prendeu a respiração ao mesmo tempo.
Parecia inclusive uma cena de filme. Mas assim
que eles caíram em cima do último toldo e este
não rasgou, e eles puderam se segurar na beirada
sem cair no chão, a multidão inteira suspirou
aliviada. Sim, também ao mesmo tempo. Eu?
Confesso que também fiquei apreensivo pelos
dois, mas assim que eles ficaram bem fui embora,
enquanto todo mundo aplaudia a cena. Não
estava com muita vontade de ver aquilo, e ainda
estava envergonhado de não ter perguntado o
nome daquele homem.
Na noite seguinte, de fato bloquearam a
Avenida de Almeida Ribeiro, exatamente o trecho
que ele tinha me apontado. Mas não fui lá me
encontrar com aquele homem para conversar.
Sendo honesto com o senhor, no dia seguinte
toda aquela conversa me deixou com raiva. Fazer
Macau se passar por Xangai! Chamar a Pensão
Sun Sun Hotel de Club Obi Wan! Aquilo tudo
passava dos limites da minha compreensão!
Mas não ter ido vê-lo naquela noite, me
causou um remorso ainda maior, e, portanto,
prometi a mim mesmo que faria pelo menos
uma das coisas que aquele homem pediu para eu
fazer: No ano seguinte, quando lançaram o filme,
eu fui ao cinema assistir o tal “Indiana Jones e o
Tempo Amaldiçoado”. Na noite de estreia, sim!
Foi uma experiência estranha, eu tinha apenas
46 anos e era provavelmente o mais velho na sala
inteira! Nem mesmo agora com 80 anos me sinto
tão velho quanto me senti naquela noite!
Eu fui à sessão pronto para odiar o filme. Tudo
que aquele homem havia me dito a respeito dele
me fazia querer odiá-lo.
Porém assim que o filme começou, algo
estranho aconteceu comigo, algo que não
imaginava que iria acontecer após tantos meses
dizendo a mim mesmo que aquele filme seria
horrível: Eu comecei a me divertir. Sim, me
divertir! Logo nos primeiros minutos do filme,
com aquela dança, e aquele encontro do Indiana
Jones com o líder mafioso, e depois toda aquela
cena de ação... Eu estava achando tudo aquilo
muito divertido! Soltei algumas das gargalhadas
mais sinceras da minha vida durante aquele
filme!
Eu não conseguia acreditar: Durante minha
vida inteira odiei filmes. Todas as vezes que
tentei assistir um, me decepcionei. E lá estava
eu, assistindo um filme, com todos os barulhos e
cores que nunca suportei... E eu estava adorando
aquela experiência! Tudo que eu conseguia
pensar era: Como é que ninguém fez este filme
antes?!
Heim? Qual parte mais gostei? Ora, isso o
senhor pode adivinhar muito bem, é lógico que
foi a perseguição por “Xangai”. Coloque aspas em
Xangai quando for escrever isso tudo que estou
te dizendo. Foi uma experiência estranha, ver
aquele carro passando por aquelas ruas que eu
conhecia bem, e por aquelas lojas que eu conhecia
bem. Toda vez que eu reconhecia uma me dava
vontade de apontar o dedo para a tela e gritar “Ei,
olhem só!”. A cena inteira durou menos de cinco
minutos, mas foi o que bastou para aquele filme
tornar-se algo... Como posso dizer... Escapa-me
a palavra agora, mas algo que é próximo a mim,
sabe? Algo com que eu me identifico. Mesmo
com aquela história de Xangai, eu me sentia...
Representado naquele filme, é isso! Como se eu
próprio fosse uma daquelas pessoas andando na
rua enquanto o carro passava.
Enfim, assisti do começo ao fim, sem dormir,
sem olhar para os lados, eu nem me lembro de
ter piscado! Fiquei até terminarem os créditos
finais. Li-os tentando descobrir qual poderia ser
o nome daquele homem com quem conversei,
mas infelizmente a lista de nomes da equipe de
produção era gigantesca, seria impossível dizer
com certeza qual daqueles era o que eu estava
procurando.
Quando saí da sala de cinema, era como
se eu tivesse me transformado em uma nova
pessoa. Nunca tinha imaginado que o fato de eu
não gostar de filmes até então era uma parte tão
marcante do que eu considerava ser eu mesmo,
e então lá estava, um filme que eu tinha gostado!
De repente me sentia trinta anos mais jovem,
novamente aquele adolescente que gostava de
tudo, antes de virar um adulto que detestava tudo.
Os filmes eram apenas a parte mais evidente, mas
a verdade era que aos 46 anos eu já era um velho
rabugento... Até então.
Sim, sim, claro! No cinema, devo ter assistido
ao filme... Hum... Dez vezes no total. Todo fim de
semana eu dava um jeito de ir assisti-lo. Lembro-
me de inclusive ter assistido no sábado e de volta
no domingo! Assisti com minha esposa, assisti
com meus filhos, chamava amigos do trabalho
para assistirmos juntos. Se eu conversava com
alguém e a pessoa me dizia que ainda não tinha
assistido “Indiana Jones e o Templo Amaldiçoado”,
eu dizia “Como não?! Vamos assistir agora!”, e no
mesmo dia eu arrastava a pessoa até o cinema.
Sim, isso mesmo que o senhor disse.
Aquele filme me foi inspirador. Minha vida
tinha caminhado a um percurso errado, e ele
mudou o rumo dela. Por um breve instante, me
fez inclusive querer me tornar um diretor de
cinema... Ou viajar pelo mundo de chapéu na
cabeça e chicote na mão. Foi uma experiência tão
épica que até agora quando viajo, imagino aquela
música tocando e um mapa mostrando o traçado
da minha viagem.
Heim? Bom, como vê, não me tornei diretor,
nem uso chapéu. Mas Desde então pelo menos
uma vez por semana vou ao cinema assistir algum
filme. Meus favoritos? Os estrelando Harrison
Ford, é claro! Esses eu sempre assisto na noite de
estreia, mesmo que sejam ruins.
Ah, sim, verdade, sou de fato o “Senhor
Indiana Jones”, como dizem por aí. Sempre
que algum estudante de cinema vem aqui para
Macau e quer conhecer os locais de filmagem
de “Indiana Jones e o Templo Amaldiçoado”, é
a mim que indicam como guia turístico. Sim,
sim, vários! Eu não sei quem é que contou
essa história de que a cena da perseguição foi
filmada na Rua da Felicidade, mas eu diria que...
Hum... Uns dois terços dos jovens que guio me
perguntam a respeito dela. Aí tenho que explicar
que não, não foi na Rua da Felicidade, foi na
Avenida de Almeida Ribeiro, às vezes até peço
para eles procurarem a cena no telefoninho
deles e andamos juntos pela avenida, e vou
mostrando as lojas que aparecem. A Pensão?
Sim, muitos são os que ficam decepcionados
que ela foi demolida e substituída pelo Best
Western Hotel Sun Sun. Mas alguns aceitam
que a cidade mudou e lá para cá, e um ou outro
inclusive se hospeda no Hotel, como se a Pensão
original ainda mantivesse alguma espécie de
aura naquele lugar.
Era isso que o senhor queria saber? Ora,
eu é que agradeço pela oportunidade de ser
entrevistado! Desejo-lhe boa sorte para escrever
o seu livro! Mas diga-me, quem foi que te disse
sobre mim? Ah, sim, sim. É que imaginei que
eu tinha sido indicado por alguns dos jovens
que guiei, mas aquela parte sobre eu não gostar
de assistir filmes antes de “Indiana Jones”
geralmente não saio contando por aí, então achei
estranho o senhor saber disso antes mesmo da
entrevista... O que?! Ele... O senhor falou com
ele?! E ele se lembrava de mim? Eu... Eu... Só um
minuto, deixe-me me recompor. Ele ainda está
vivo então? E ele se lembrava de mim... Eu...
Poderia... Poderia por favor me dizer o nome
dele? Puxa, um nome tão simples, como pude
não perguntar? E... Se o senhor puder... Teria
como me passar o contato dele? Acho que... Acho
que tenho muito que gostaria de conversar com
ele. Sobre filmes...
> > >
C O N T O
O primeiro andar da livraria é quase inteiramente dedicado aos mais pequenos, para esta ocasião quisemos torná-lo ainda mais aconchegante e proporcionar um momento mágico, promovendo uma maior intimidade das crianças com o universo dos livros. Se frequentar uma livraria já é um óptimo programa, poder passar a noite entre os livros é uma aventura muito incrível!
É uma excelente oportunidade para estimular a leitura e o imaginário e para criar memórias especiais com os amigos. Queremos ajudar a formar futuros adultos para quem pegar num livro é tão natural como pegar num tablet, ler uma história é tão entusiasmante como ver um filme. Queremos ajudar a formar adultos que gostam de ler e de frequentar livrarias!
Assim que anunciámos esta actividade tivemos uma excelente reação da parte de todos, miúdos e graúdos, de tal forma que tivemos de criar um segundo grupo e estamos a planear no futuro repetir as noites na Livraria, com noites temáticas, com grupos de crianças, com crianças mais pequenas acompanhadas dos pais e até com grupos de adultos (que ficaram cheios de inveja por não poder participar!)
ESTE ANO A LIVRARIA PORTUGUESA QUER ASSINALAR O DIA DA CRIANÇA DE FORMA MUITO ESPECIAL, COM UM CONVITE À AVENTURA...
ATREVES-TE A PASSAR UMA NOITE NA LIVRARIA?... SERÁ QUE DE NOITE OS LIVROS GANHAM VIDA E CONVERSAM UNS COM OS OUTROS?! VEM DESCOBRIR CONNOSCO!
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suplemento literário • SEXTA 31 DE MAIO, 2019
Navegar é preciso
www.openculture.com
O site Open Culture percorre com regularidade várias bibliotecas ou colecções de livros e revistas disponibilizadas integralmente na internet. Uma visita ao seu espaço virtual permite perceber que a promessa de a internet ser uma espécie de biblioteca universal, aquele quase paraíso sonhado por Jorge Luis Borges, não anda muito longe da realidade. Entre as últimas entradas, destaque para a que se dedica aos livros infantis, remetendo para a colecção recentemente disponibilizada pela norte-americana Library of Congress, acessível em qualquer computador. Entre os livros desta colecção, datados dos séculos XIX e XX, há clássicos da literatura infantil, biografias, não-ficção, rimas e lenga-lengas. E há algumas obras-primas, como a edição de The Raven, de Edgar Allan Poe, ilustrada por Gustave Doré, ou a Complete Collection of Pictures & Songs, ilustrada por Randolph Caldecott. A colecção da Library of Congress chegou à internet coincidindo com a efeméride dos cem anos da Children’s Book Week, uma série de eventos realizados anualmente, na última semana de Abril, para promover a leitura entre os mais novos. E como diz Lee Ann Potter, a responsável pela secção de aprendizagem e inovação da Library of Congress, ao site Open Culture, «é extraordinário pensar que quando a primeira Chindren’s Book Week foi celebrada, todos os livros desta colecção digital já existiam. Agora, existem também online, não apenas graças à tecnologia que permite digitalizar, disponibilizar e partilhar, mas sobretudo graças às pessoas que cuidadosamente garantiram que esses livros sobreviviam.»No site Open Culture podem consultar-se entradas mais antigas dedicadas a outros arquivos digitais de temática semelhante, abrindo as portas para uma viagem potencialmente infinita pelo universo dos livros para os mais novos, quase todos ilustrados, quase todos essenciais para percebermos o modo como o conceito de infância mudou tanto nos últimos dois séculos.
M O N T R A D E L I V R O S
Três edições bilingues da Clepsydra, juntando o português ao inglês, ao francês e ao espanhol, dão a ler Camilo Pessanha e a sua obra emblemática. Com edição de texto de Paulo Franchetti, introdução de Helena Buesco, ilustração de André Carrilho e traduções de Jeff Childs, Jeronimo Pizarro e María De Las Mattas.
Camilo PessanhaClepsydraLisbon Poets & Co.
AAVVDo Éden ao Divã: Humor JudaicoTinta da China
Com organização de Moacyr Scliar, Patricia Finzi e Eliahu Toker, esta antologia reúne textos e excertos que vão do Talmude a Philip Roth, passando por Woody Allen, pelo humor científico de Einstein e por vários divãs psicanalíticos.
Kjell RingiO VencedorBruaá
Do autor sueco Kjell Ringi, a Bruaá publica um clássico sem palavras para os mais novos. Neste duelo entre páginas, a sanha vai crescendo na inversa proporção da razão, até se perceber que nem sempre saber quem ganha a contenda é o mais importante.
Xuan Juliana WangHome Remedies: StoriesHogarth Press
Um livro de contos onde a faixa etária das personagens é tema comum, reflectindo sobre a juventude chinesa contemporânea na China e noutros países onde uma segunda geração de emigrantes procura encontrar raízes entre a herança dos pais, por vezes tão longínqua, e o lugar onde nasceram e cresceram.
Gabriel García MárquezO Escândalo do SéculoDom Quixote
Meia centena de textos que ilustram o percurso jornalístico que Gabriel García Márquez também teve. Como dizia o autor colombiano, «o jornalismo é a profissão que mais se parece com o pugilismo, com a vantagem de que a máquina ganha sempre e a desvantagem de que não nos é permitido atirar a toalha ao chão.»
Everton V. MachadoO orientalismo português e as Jornadas de Tomás RibeiroBiblioteca Nacional de Portugal/Centro de Estudos Comparatistas FLUL
Numa edição dupla, volta a publicar-se a obra Jornadas, de Tomás Ribeiro, originalmente publicada em 1873, acompanhada de um volume dedicado à reflexão sobre a presença portuguesa na Índia e a dimensão cultural e política de Tomás Ribeiro.
Frank KasellChinese Street Food: A Field Guide for the Adventurous DinerBlacksmith Books
Um guia para acompanhar a descoberta do que se come pelas ruas chinesas, longe de restaurantes e lugares sentados. Em inglês, mas com os nomes de cada prato em chinês (em caracteres e pinyin), o livro de Kasell percorre 53 cidades e dá a conhecer centenas de especialidades locais.