Parágrafo SUPLEMENTO LITERÁRIO | DIRECTOR RICARDO PINTO … · 2019. 5. 31. · suplemento...

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ponto final SEXTA 31 DE MAIO, 2019 Parágrafo + ANTOLOGIA DE FICÇÃO CIENTÍFICA CHINESA PAG.6-7 SUPLEMENTO LITERÁRIO | DIRECTOR RICARDO PINTO | EDITORA SARA FIGUEIREDO COSTA #42 SEXTA 31 DE MAIO. 2019 A adolescência e as suas turbulências atravessaM o novo livro de Ana Pessoa e Joana Estrela. PAG.4-5

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  • ponto final • SEXTA 31 DE MAIO, 2019

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    +ANTOLOGIA DE FICÇÃO CIENTÍFICA CHINESAPAG.6-7

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    A adolescência e as suas turbulências atravessaM o novo livro de Ana Pessoa e Joana Estrela.PAG.4-5

  • suplemento literário • SEXTA 31 DE MAIO, 2019 ponto final • SEXTA 31 DE MAIO, 2019

    ADMINISTRADOR /DIRECTOR: Ricardo Pinto EDITORA: Sara Figueiredo Costa COLABORADORES: David Ehrlich, Stacey Qiao, Yao FengILUSTRAÇÃO: Rui Rasquinho, C_L_A DESIGN /PAGINAÇÃO: Catarina Lopes Alves

    Propriedade, administração e distribuição: Praia Grande Edições, Lda Impressão: Tipografia Welfare Ltd.• O Parágrafo é um suplemento do jornal Ponto Final e não pode ser vendido separadamente.0 Rua de Camilo Pessanha No. 21, R/C, Macau % [email protected] ! 2833 9566 / 28338583 < 2833 9563

    B R E V E S E D I T O R I A L

    Chico Buarque venceu o Prémio Camões e, um pouco por todo o mundo, mas especialmente em Portugal e no Brasil, as reacções de júbilo

    sucederam-se. Não há como não sentir essa

    felicidade de ver distinguido um talento

    que supera todas as mestrias técnicas,

    alcançando aquela rara qualidade de ser

    capaz de tocar emocional e afectivamente

    as vidas de tanta gente. Pouco importa se

    o prémio se deve à obra literária do autor

    ou à mais conhecida obra musical, porque

    Chico Buarque faz com as palavras aquilo

    que poucas pessoas, em romances, poemas,

    crónicas ou letras de canções, souberam

    fazer de modo sublime ao longo das eras

    que já levamos de palavra escrita. Se não

    rejubilarmos com isto, quase nada nos fará

    celebrar.

    Em destaque nesta edição, um livro para

    os mais novos que vem confirmar aquilo

    que qualquer leitor de mente aberta há

    muito sabe: os livros podem ser criados a

    pensar num determinado leitor, ou numa

    faixa etária particular, mas o mais certo

    é que chegarão aos olhos, à cabeça e ao

    coração de qualquer pessoa se aquilo que

    guardam entre páginas for capaz de deitar

    por terra essa etiquetagem de arrumação

    livreira. Aqui É Um Bom Lugar, de Ana

    Pessoa e Joana Estrela (Planeta Tangerina) é

    seguramente um desses livros.

    Olhamos ainda para a mais recente

    antologia de ficção científica chinesa,

    recentemente publicada em inglês pela

    mão de Ken Liu, um dos autores incluídos

    no livro e um divulgador incansável deste

    género literário, e particularmente da sua

    produção em língua chinesa, no estrangeiro.

    Ao longo de quase quinhentas páginas,

    Broken Stars reúne alguns dos autores que

    estão a definir o cânone da contemporânea

    ficção científica chinesa. Acompanhá-los

    será tarefa imprescindível para os próximos

    tempos e não apenas para os apreciadores

    dedicados do género.

    S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

    E S C R I T A N A B R I S A T E X T O E F O T O G R A F I A Y A O F E N G

    O poetaO poeta corre, salta e mergulha na palavra para

    lhe medir a dimensão, a altura e a profundidade.

    O poeta bebe o fogo para ter mais sede. Bebe a

    solidão para se sentir bem acompanhado. Bebe

    o vazio para tornar o coração um pouco maior

    do que o universo.

    O poeta precisa de muletas antes das asas

    porque percorre o seu caminho mais na terra do

    que no céu.

    O poeta escreve no papel, na terra, nas águas,

    na pedra, no corpo, na palma da mão ou nas

    nuvens sentado no cimo da chaminé.

    O poeta vive de pé mas ajoelha-se quando

    chegar a Musa.

    O poeta não canta no coro.

    O poeta não só canta como rouxinol mas

    também grita em voz de ferida, mesmo com o

    nó na garganta.

    O poeta faz com que uma árvore corra para fugir

    ao machado ou uma cadeira seja enraizada na

    terra para voltar a ser árvore.

    O poeta escreve sempre na primeira pessoa

    mesmo quando conjuga o verbo na terceira

    pessoa.

    O poeta é um bom tradutor do silêncio.

    O poeta não dorme mas sonha.

    O poeta pode jantar com o presidente ou chegar

    a ser o seu amigo mas não pode servir-lhe como

    um funcionário, o que nāo funciona para ser

    poeta

    O poeta consegue fazer um poema depois de

    rasgar relatórios.

    Booker para Jokha AlharthiFoi a primeira escritora nascida em

    Omã a ser traduzida para o inglês e o

    livro em causa acabou por vencer o Man

    Booker Prize deste ano. Celestial Bodies,

    editado pela Sandstone Press, narra a

    vida de três irmãs na cidade de al-Awafi,

    acompanhando-lhes os percursos e as

    diferenças. Jokha Alharthi vai dividir

    o prémio de 50.000 libras com a sua

    tradutora, a norte-americana Marilyn

    Booth, co-responsável pela chegada do

    primeiro romance originalmente escrito em

    língua árabe a vencer o prestigiado galardão

    literário.

    Manga no MuseuA resistência de espaços artísticos mais

    tradicionais à presença da banda desenhada

    tem sido contrariada lentamente, com

    algumas exposições a ocuparem museus

    e outras instituições. O mais recente

    exemplo dessa abertura chega de Londres,

    onde o Museu Britânico acolhe uma

    grande exposição dedicada à manga, a

    narrativa gráfica de origem japonesa que

    se transformou, nas últimas décadas,

    numa linguagem consumida e imitada

    também no Ocidente, lugar de origem das

    suas influências e, agora, lugar de regresso.

    De Jiro Taniguchi a Toriyama Akira, os

    autores integrados em Manga āāā revelam a

    pluralidade de temas, géneros e estilos da

    banda desenhada japonesa, bem como a sua

    imensa popularidade, no Japão e fora dele.

    Extradição em revistaA revista bilingue 聲韻詩刊 Voice & Verse Poetry Magazine, de Hong Kong,

    está a receber contribuições para o seu

    número de Agosto e Setembro, dedicado ao

    tema “Extradição”. As colaborações estão

    limitadas à poesia, em língua inglesa ou

    chinesa, e podem ser enviadas

    para o mail [email protected]

    até ao fim de Junho.

    II Fórum Literário China-PortugalNo próximo dia 12 de Junho, Pequim acolhe a segunda edição do

    Fórum Literário Portugal-China, integrado na celebração dos 40 anos

    do restabelecimento das suas relações diplomáticas entre os dois

    países. Depois de uma primeira edição realizada em Lisboa, em 2017,

    este Fórum acontece no âmbito do Memorando de Entendimento

    entre a República Portuguesa e a República Popular da China no

    domínio do Livro e da Literatura, assinado em 2015, em Pequim,

    que prevê o apoio à divulgação recíproca da literatura chinesa e

    portuguesa, através do apoio à tradução e de Fóruns Literários que

    envolvem escritores chineses e portugueses, a organizar regularmente

    pela Associação Chinesa de Escritores e pela Direção-Geral do Livro,

    dos Arquivos e das Bibliotecas. O Fórum decorrerá no Museu Nacional

    da Moderna Literatura Chinesa e contará com a presença dos

    escritores Bruno Vieira Amaral, Isabela Figueiredo (na imagem),

    José Luís Peixoto, Lu Min, Liu Zhenyun e Xu Zechen, num painel

    moderado pelo também escritor Qiu Huadong.

  • suplemento literário • SEXTA 31 DE MAIO, 2019 ponto final • SEXTA 31 DE MAIO, 2019

    adolescência é o momento em que experimen-

    tamos o mundo com a nossa sensibilidade, sem

    sabermos muito bem ainda quem somos, o que

    viemos cá fazer. É um espaço de dúvida e de in-

    segurança. E de enorme procura, também. Tudo

    é novo e intenso. Eu quero escrever sobre isso,

    mas na verdade não fico a pensar muito sobre a

    adolescência, se é isto ou aquilo. É o que é. É ex-

    plosivo, sobretudo. Se calhar sou um bocado ado-

    lescente neste processo.

    E é isso que te interessa em termos narrativos,

    o facto de ser um período de experimentação e

    erro? Pergunto isto pelo facto de escreveres, de

    facto, muito a partir do olhar da adolescência.

    AP: Sem dúvida. Essa confusão constante, os

    momentos explosivos, os erros, as mágoas, a pos-

    sibilidade de mudares, de cresceres, de te encon-

    trares. Ainda não és cínico/a. Ainda não tens a

    sensação de que viste tudo. Essa energia criadora,

    inventiva, é o que me interessa.

    Sem querer entrar em perguntas pessoais, ou

    naquele jogo de descobrir o que é “verdade” no

    livro, foram à vossa própria adolescência buscar

    algum material?

    AP: Vou folhear o livro para tentar perceber

    isso...não. É tudo muito ficcionado.

    JE: Da minha parte não, a não ser que os 20 ain-

    da contem como adolescência tardia...

    AP: Mas estou aqui a ver que a minha infância,

    sim, está presente no livro.

    É inevitável que se usem esses vestígios da infân-

    cia quando se escreve na voz de uma persona-

    gem, mesmo que não tenha muito que ver com a

    pessoa que somos?

    AP: A mim interessa-me sempre muito perce-

    ber de onde vêm estas personagens. Que expe-

    riências tiveram? Que mágoas? Que conquistas?

    Somos sempre o resultado de tudo o que aconte-

    ceu. Adoro este regresso ao passado. Somos essas

    pessoas todas ao mesmo tempo, a que andava de

    bicicleta aos oito anos, a que se apaixona pelo

    professor de Educação Física, a que apanha o me-

    tro, a que escreve sobre isso...

    JE: Acho que há um filtro por onde passa tudo

    o que fazemos, mesmo o trabalho que é ficcional.

    E esse filtro é feito pelas nossas experiências, per-

    sonalidade... deve ser difícil que algumas dessas

    coisas não passem para o que escrevemos ou de-

    senhamos.

    AP: A escrita permite esse encontro: o que fo-

    mos, o que somos

    É um regresso ao passado sem saudosismo, mas

    com um olhar consciente do presente e do futuro

    em aberto, também?

    AP: Acho que é um regresso muito saudosista.

    Ou melhor, muito... romântico. Literário, talvez.

    Escrevo por cenas, acho, momentos que estão

    de certa forma congelados: a fotografia dos oito

    anos, a adolescente à janela, as frases da mãe, os

    momentos de escrita (insónias, por exemplo).

    Isto no caso deste livro, mas penso que se aplica

    este processo a todos eles. Há qualquer coisa de

    cinematográfico nisto, também, imagens muito

    visuais, que não são bem a vida como ela é. São

    representações. Símbolos.

    A memória é uma matéria infinita, sempre a pro-

    jectar-se nos tempos todos, passados, presentes

    e futuros?

    AP: Para mim, tem sido. Estou sempre à espera

    que ela acabe, mas ela não acaba.

    I L U S T R A Ç Ã O D A C A P A J O A N A E S T R E L A

    O lugar turbulento e meigo da adolescência

    Agora para a Joana, especificamente: foi difícil

    criar um universo visual tão íntimo, tão centrado

    naquilo que se passa dentro da cabeça, para uma

    personagem que foi criada por outra pessoa?

    JE: Não, na verdade, não foi difícil, porque eu

    acho que também a criei, pelo menos em parte.

    Dei-lhe a cara e desenhei a casa dela e os amigos...

    Havia toda uma dimensão que eu podia explorar

    por mim, com desenhos, e acho que houve pou-

    cas páginas em que tenha ficado sem saber o que

    poderia desenhar. Mas aconteceu, por exemplo,

    numa em que a protagonista fala da concretiza-

    ção pessoal e era suposto desenhar algo que re-

    presentasse concretização pessoal. No final, dese-

    nhei um pacote de batatas fritas e acho que isso

    era uma piada muito ao jeito da Tereza.

    AP: Já foram vários os leitores que nos disseram

    que tiveram dificuldade em perceber o que tinha

    nascido antes: se o texto, se a ilustração.

    Então, por um lado houve uma identificação pes-

    soal com a personagem que a Ana Pessoa criou e,

    por outro houve novas camadas que a ajudaram

    a ficar como nós, leitores, a conhecemos, é isso?

    JE: Sim. Eu senti que, quando o livro me chegou

    às mãos, faltava uma metade, por isso a Tereza

    não é uma personagem que estivesse completa-

    mente definida e a quem eu tive de me adaptar.

    A adolescência é um bom lugar?

    JE: Ui, a minha não foi!

    AP: É um bom lugar, sim! A vida adulta é uma seca.

    A infância tem longa tradição de presença, en-

    quanto tema e tempo de formação de memória,

    na literatura e nas artes. A adolescência ocupa

    um lugar igualmente definidor naquilo que po-

    demos vir a ser?

    AP: São turbulências fundamentais. Estamos

    tão preocupados com a nossa existência... é tudo

    tão intenso.

    JE: Sim. E acho que é quando começamos a en-

    tender melhor a nossa identidade, o nosso lugar

    no mundo. Há esse crescimento interno, claro,

    mas acho que também abana muitas coisas na

    maneira como te relacionas com as pessoas à tua

    volta, com o teu mundo

    AP: Também penso que sim, mas eu escrevo

    sobre isso, não teorizo. A minha relação com a

    adolescência é uma relação de espontaneidade e

    de vida. Não tenho propósitos. Não quero definir.

    Acho que não me estou a explicar muito bem... A

    Este é um livro criado a quatro mãos, com a par-

    ticularidade de não ser exactamente um livro

    ilustrado, mas antes uma narrativa em fragmen-

    tos onde texto e imagem são interdependentes,

    ambos contribuindo decisivamente para o avan-

    çar da narrativa. Como foi o processo de traba-

    lho, tendo em conta que o texto foi escrito antes?

    Ana Pessoa: Há uns anos fiz uma recolha de

    textos que tinha escrito e no ano passado percebi

    que não tinha de salvar textos, mas antes peda-

    ços, fragmentos. Foi um trabalho muito invulgar,

    mergulhar dentro de cadernos e de textos do blo-

    gue. Depois de acabar o texto, falei das minhas

    dúvidas com a Joana e logo depois falámos com o

    Planeta Tangerina.

    Joana Estrela: O texto e a imagem foram feitos

    em fases diferentes. Acho que o facto de o resul-

    tado final ter ficado tão interdependente foi, pri-

    meiro que tudo, graças à Ana, que deixou muito

    espaço no texto, ou no livro, para ser explorado

    por mim nas ilustrações. Então, quando comecei

    a trabalhar no livro, o texto já estava acabado, ou

    quase acabado, e o que eu fiz foi um processo pa-

    recido com o da Ana, de recolha pelos meus diá-

    rios gráficos

    E esses fragmentos eram coisas dispersas ou já

    tinham sido pensados neste registo diarístico,

    colocado na voz desta personagem?

    AP: Nenhum dos textos foi pensado para este

    registo diarístico, mas muitos textos nasceram

    nesse registo (nos meus cadernos, no blogue).

    Eram temas recorrentes. A chuva, o vento, a noite.

    JE: E, no meu caso, muitos dos desenhos do li-

    vro são coisas que já tinha desenhado nos meus

    diários e que achei que ficavam bem com o texto.

    Houve outras coisas que desenhei de propósito.

    AP: A certa altura, comecei a achar que estes

    fragmentos podiam ser um diário gráfico. Mas

    não sabia como dialogar com a imagem. Como é

    que se escreve sem desenhar? E a Joana, para me

    ajudar nesse processo, enviou-me uns desenhos.

    No fim do livro, há uma referência ao facto de

    os cadernos, e da estima que ambas nutrem por

    eles, terem sido fundamentais para o nascimen-

    to desta história.

    AP: Os cadernos foram mesmo fundamentais

    para este livro. No caso dos textos, o facto de na-

    vegar pelos cadernos permitiu-me criar associa-

    ções que não existiam antes. Ou criar interrup-

    ções inesperadas (cortar as unhas dos pés, fazer

    uma pergunta fora do contexto, etc).

    Podemos dizer que os cadernos são, para ambas,

    um objecto fundamental de criação, reflexão,

    registo, e que isso ajudou muito a construir este

    livro, ainda que este livro conte a história de uma

    rapariga que não é nenhuma de vocês?

    AP: Sim! Há qualquer coisa nesta relação com

    o caderno que, para mim, é fundamental. É um

    espaço de intimidade, de experimentação. E tam-

    bém de oração, quase: escrevo muitas vezes as

    mesmas frases. Isto só acontece quando escrevo

    à mão. No computador, não é assim. Não racio-

    nalizo muito este processo, só sei que faz parte do

    meu processo.

    JE: Sim, para mim também são importantes,

    como um sitio onde posso falhar e fazer desenhos

    menos bons ou mais rápidos.

    AP: Isto também fez parte da construção do li-

    vro. Queríamos que ele fosse o mais próximo pos-

    sível de um caderno, daí os cantos redondos e o

    facto de todo o texto ser escrito à mão (pobre Joa-

    na...). Também não tem numeração de páginas.

    JE: Sim, eu queria que parecesse credível como

    diário gráfico

    Ana Pessoa e Joana Estrela criaram o diário ficcional de uma adolescente

    e nele resgataram, entre textos, imagens e fragmentos inventados, essa

    lenta agitação que nos marca a vida de uma forma tão intensa.

    O texto de Aqui É Um Bom Lugar venceu o Prémio Maria Rosa Colaço de literatu-ra juvenil em 2018. Depois da distinção, Ana Pessoa desafiou Joana Estrela a integrar uma

    nova fase desta história, criando as imagens que

    transformariam uma narrativa com palavras num

    livro onde texto e imagem surgem intrinsecamen-

    te ligados. Aqui É Um Bom Lugar, editado pela

    Planeta Tangerina, passou a ser este objecto difícil

    de catalogar: não é um livro ilustrado, não é uma

    banda desenhada, não é uma história que viva

    inteiramente da narrativa. O que é, então? Talvez

    um diário feito de palavras e imagens, umas vezes

    desenhadas, outras recortadas e coladas. O registo

    quotidiano de Tereza, uma rapariga de 17 anos, a

    caminho dos 18, que partilha as suas inquietações

    mais profundas lado a lado com as observações

    mais insignificantes, os abismos emocionais do

    crescimento e da chegada à vida adulta misturados

    com a espuma dos dias e os episódios que hão-de

    cair no esquecimento. É um livro que é um cader-

    no, recolhendo peças soltas e alguns estilhaços que

    vão dando forma, não exactamente a uma história,

    mas aos momentos que se sucedem na vida desta

    rapariga. As livrarias hão-de arrumar o volume em

    formato quase de bolso e cantos arredondados na

    secção infanto-juvenil, como quase sempre acon-

    tece aos livros que têm adolescentes como perso-

    nagens. Faz sentido que assim seja, talvez, para

    que os leitores mais novos, capazes de se identifi-

    carem com Tereza, não o percam de vista, mas se-

    ria justo que não ficasse encerrado numa qualquer

    gaveta etária. Afinal, os leitores adultos também já

    tiveram dezassete anos e aquilo que neste livro se

    enuncia é matéria intemporal, memória e inven-

    ção, medo e descoberta, aquela mesma matéria de

    que continuamos a ser feitos mesmo que muitas

    décadas tenham passado sobre o impacto desses

    primeiros abalos da alma.

    Além de escritora, com quatro livros publicados

    até ao momento, Ana Pessoa é tradutora, ofício

    que exerce em Bruxelas, e escreve regularmente no

    blog belgavista.blogspot.com. Mary John, Supergi-

    gante e O Caderno Vermelho da Rapariga Karateca,

    todos com edição Planeta Tangerina, antecederam

    este Aqui É Um Bom Lugar e firmaram o seu nome

    na constelação dos autores de literatura para os

    mais jovens. Joana Estrela vive no Porto e o seu

    trabalho anda pelos territórios da banda desenha-

    da e da ilustração. Propaganda, A Rainha do Norte

    ou Os Vestidos de Tiago são alguns dos livros que

    publicou e uma boa montra para se conhecer a

    diversidade de estilos, registos e modos narrativos

    com que trabalha. Vivendo as autoras em lugares

    distantes, não foi possível juntá-las para uma en-

    trevista presencial. As tecnologias da comunicação

    engendraram outra hipótese para que pudésse-

    mos ouvir falar deste livro na primeira pessoa: uma

    conversa a três, via internet, sem tempo medido

    nem constrangimentos formais. O resultado é este,

    sem outros filtros que não o apagamento de alguns

    emojis que acompanharam comentários mais ani-

    mados sobre problemas técnicos (rapidamente re-

    solvidos).

    ponto final • SEXTA 31 DE MAIO, 2019

    Ana Pessoa [ Fotografia Henrique Bandarra ] Joana Estrela [ Fotografia Victor Bravo Lobo ]

    P O R S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

  • suplemento literário • SEXTA 31 DE MAIO, 2019 ponto final • SEXTA 31 DE MAIO, 2019

    P O R S T A C E Y Q I A O

    Diaosou, e Cat Country, de Lao She,

    mas o género só começa a ser aceite e

    apreciado por um grande número de

    leitores muito recentemente, com a

    publicação da trilogia The Three Body

    Problem, de Liu Cixin’s (劉慈欣), em 2010. Com milhões de exemplares

    vendidos, a trilogia tornou-se um

    tema de discussão permanente para

    os fãs da ficção científica, mas igual-

    mente para leitores de outros géner-

    os, cientistas, professores e até CEO’s

    de grandes empresas tecnológicas.

    Em 2015, a versão inglesa da obra,

    traduzida por Ken Liu, venceu o Hugo

    Award para melhor romance, trans-

    formando-se no primeiro romance

    asiático, e também no primeiro ro-

    mance traduzido de outro idioma, a

    merecer o galardão. No ano seguinte,

    é a vez do livro Folding Beijing, de

    Hao Jingfang’s (郝景芳), vencer o Hugo Award na categoria de melhor

    novela. A tradução foi igualmente as-

    sinada por Ken Liu e, depois destes

    dois livros, muitas outras obras do

    género chegaram aos leitores de lín-

    gua inglesa pela mão de Ken Liu,

    confirmando e ampliando o sucesso

    da ficção científica chinesa no palco

    literário internacional.

    Há três anos, Ken Liu publicou uma

    primeira antologia de ficção científica

    chinesa em inglês, Invisible Planets.

    Agora, surge um novo volume, Broken

    Stars: Contemporary Chinese Science

    Fiction in Translation, com edição da

    inglesa Tor Books. Broken Stars permite

    um olhar abrangente sobre este género

    literário e o modo particular como tem

    sido desenvolvido na China, reunindo

    dezasseis contos assinados por catorze

    autores, o dobro daqueles que integra-

    vam Invisible Planets. «Editei Broken

    Stars com a preocupação de expandir

    a pluralidade de vozes autorais incluí-

    das, bem como a paleta emocional e

    os estilos narrativos», escreve Liu na

    introdução do livro. «Escolhi escritores

    consagrados – a perspicácia mordaz de

    Han Song (韓松) surge aqui em duas narrativas – bem como novas vozes –

    acredito que mais leitores deveriam

    conhecer o trabalho de Gu Shi (顧適), Regina Kanyu Wang (王侃瑜) e Anna Wu (吳霜). Também inclui proposita-damente algumas histórias que talvez

    sejam consideradas menos acessíveis

    aos leitores ocidentais: a viagem no

    tempo de Zhang Ran (張冉), que tira partido de um conjunto de tropos

    unicamente chineses, ou o conto de

    Baoshu’s (寶樹), cuja ressonância emo-tiva se torna mais clara para o leitor em

    função do que este conhecer da mod-

    erna história chinesa.»

    Quando comparada com Invisible

    Planets, esta nova antologia não faz

    qualquer esforço por ser “representa-

    tiva” ou por ser uma espécie de “best

    of”, como o próprio editor admite,

    reflectindo, em vez disso, o seu gosto

    pessoal: «O critério mais importante

    que utilizei foi este: gostei da história

    e achei-a memorável.» E os contos

    incluídos neste Broken Stars são, de

    facto, memoráveis, apresentando mo-

    dos de narrar e subgéneros narrati-

    vos muito variados e confirmando a

    notável vitalidade da ficção científica

    na China. Os leitores de língua inglesa

    encontrarão aqui subgéneros famili-

    ares, como a hard SF, o ciberpunk ou o

    space opera, bem como alguns temas e

    modos específicos da cultura chinesa,

    como o chuanyue, viagens no tempo

    em direcção ao passado, ambienta-

    das num período histórico concreto e

    reconhecível.

    O primeiro conto do livro, “Good-

    bye, Melancholy”, de Xia Jia, apresenta

    um olhar profundamente imaginativo

    sobre o legado do matemático Alan

    Turing, relacionando de modo ma-

    gistral dois tópicos aparentemente

    afastados, a inteligência artificial e a

    depressão.

    No conto que dá título à antologia,

    assinado por Tang Fei, uma narrativa

    difícil de categorizar acompanha uma

    jovem rapariga e o seu confronto com

    a relevância das estrelas no destino

    individual. Sobre este conto, Ken Liu

    diz que «o mundo é estranho e difícil

    de perceber e as pessoas que o habi-

    tam têm contornos complexos e gar-

    ras afiadas. No centro do mundo está

    a escuridão, o que ficou depois das

    estrelas se terem apagado.» No conto

    de Liu Cixin, “Moonlight”, um homem

    olha para a lua quando recebe um tele-

    fonema de si próprio, ligando do futu-

    ro – em 2123 – e pedindo-lhe que faça

    algo para alterar o rumo da história,

    salvando a Terra de ser destruída pelo

    uso excessivo de combustíveis fósseis.

    Antes que a personagem possa fazer al-

    guma coisa, sucedem-se novas chama-

    das telefónicas, obrigando-a a imag-

    inar um modo de afastar a Espada de

    Dâmocles que pende sobre as cabeças

    da humanidade. Liu Cixin exibe a sua

    mestria na ficção científica mais tradi-

    cional sem deixar de recorrer a um

    tópico tão actual, o do esgotamento

    dos recursos naturais, comum a vários

    dos seus textos.

    Ao longo das quase quinhentas pá-

    ginas desta antologia, não faltam con-

    tos absolutamente notáveis. E como

    tradutor de quase todos eles, Ken Liu

    contribui de modo ímpar para manter

    a vivacidade de cada prosa, respeitan-

    do-lhe o tom e o suspense do enredo,

    respeitando as nuances e os jogos de

    palavras do original chinês e reconstru-

    indo estilos e vozes autorais com apenas

    uma ou outra nota de rodapé, quando

    é absolutamente essencial fornecer al-

    gum contexto cultural ou histórico.

    A juntar aos contos, Broken

    Stars inclui também três ensaios de

    académicos chineses (alguns deles,

    igualmente autores de ficção) que se

    revelam fundamentais no traçar de

    uma genealogia da ficção científica na

    China. Assinados por Regina Kanyu

    Wang, Mingwei Song e Fei Dao, os en-

    saios são o complemento certeiro para

    uma antologia como esta, uma mara-

    tona de leitura que celebra a riqueza e

    a vivacidade da ficção científica chine-

    sa contemporânea, cada vez mais um

    género reconhecido pelos leitores de

    outras paragens.

    Broken Stars: A ficção científica chinesa

    em antologia

    Prémios internacionais, traduções em língua inglesa e um reconhecimento crescente por parte de leitores de todo o mundo. Assim vai a ficção científica criada por escritores chineses, agora reunida em antologia por um dos seus maiores entusiastas, Ken Liu.

    Na cerimónia de 2014 do Xingyun Award for Global Chinese Fiction, a escritora e académica japonesa Tachihara Tāya

    disse que «a razão pela qual a ficção

    científica japonesa não exerce a mes-

    ma influência internacional que a

    chinesa se deve ao facto de não termos

    um Ken Liu.» Pode parecer exagera-

    do atribuir a emergência de todo um

    género literário a uma só pessoa, mas

    Ken Liu merece o reconhecimento.

    Escritor distinguido com vários pré-

    mios, nacionais e internacionais – o

    seu conto “The Paper Menagerie” foi

    a primeira obra de ficção a arrecadar

    simultaneamente os prémios Nebula,

    Hugo e Word Fantasy Awards – Liu é ig-

    ualmente tradutor de vários romances

    e contos de ficção científica. Foi ele, na

    verdade, o responsável por levar estas

    ficções para o mundo dos leitores an-

    glófonos, colocando a ficção científi-

    ca chinesa no centro das atenções do

    mundo.

    Os primeiros textos chineses que

    podemos arrumar sem conflito no

    campo da ficção científica são do in-

    ício do século XX, entre eles os livros

    Colony of the Moon, de Huangjiang

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  • suplemento literário • SEXTA 31 DE MAIO, 2019 ponto final • SEXTA 31 DE MAIO, 2019

    Aquela em que ele foge da bola gigante? A do

    homem com a espada, que ele simplesmente dá

    um tiro? Não, nenhuma?!

    - Não sei do que o senhor está falando.

    - Inacreditável. Simplesmente inacreditável.

    O homem até acendeu um novo cigarro para

    se acalmar. Mas eu continuava curioso.

    - E o que vão filmar aqui? – Perguntei.

    - Não pude ler o roteiro, mas parece que é

    uma cena em que o Indiana Jones foge de uma

    gangue em Xangai.

    Ao ouvir aquilo, foi a minha vez de arregalar

    os olhos e ficar transtornado.

    - Xangai?! – Gritei – Mas aqui é Macau!

    - Não reclame comigo, reclame com a

    produção. Eu sou apenas um assistente da

    equipe.

    - Mas por que filmariam o filme aqui em

    Macau se eles querem que se passe em Xangai?!

    - Ouvi dizer que é porque esta região da cidade

    parece a Xangai dos anos 30. – Ele reparou que

    eu não entendi o que ele quis dizer com aquilo

    – Indiana Jones se passa nos anos 30! Época dos

    nazistas e coisas assim!

    - Nazistas em Xangai? – Cada novo detalhe

    que aquele homem me contava do filme fazia ele

    me parecer ainda pior.

    - Não nazistas em Xangai, é só na mesma

    época! No primeiro filme ele enfrentou nazistas!

    Neste ele enfrenta outros vilões.

    Acenei, começando a entender.

    - E por que vão filmar o filme na Pensão Sun

    Sun Hotel? – Continuei perguntando.

    - Sun Sun o que? – O homem nem sabia o

    nome da pensão, precisei apontar na direção do

    prédio – Ah, o Club Obi Wan?

    - Aquele lugar não se chama Club Obi Wan! –

    Protestei.

    - Eu sei que não se chama, é o nome que vai

    aparecer no filme. Estão usando este lugar apenas

    como cenário.

    - Inacreditável. – Foi a minha vez de dizer. Eu

    Em que ano foi mesmo? 1983, se não me

    engano. Consegue checar isso neste

    seu telefoninho? É isso mesmo? Que

    bom, minha memória não está ainda

    tão ruim quanto minha esposa diz que está.

    É, 1983. Eu tinha 45 anos então, e trabalhava

    próximo à Praça de Ponte e Horta. Não, não vou

    dizer com o que, o senhor quer saber da história

    do filme ou quer saber da minha?!

    Enfim, era tarde da noite, e eu estava me

    preparando para voltar para casa quando noto

    uma multidão fazendo uma barulheira perto

    do que naquela época era a Pensão Sun Sun

    Hotel. E, enquanto me perguntava o que estava

    acontecendo, mais e mais pessoas aproximavam-

    se do local. Uma delas passou correndo perto de

    mim e resolvi perguntar:

    - O que está acontecendo aqui?

    - Estão filmando um filme! – A pessoa

    respondeu ainda correndo – Um filme americano!

    Achei aquilo bem estranho. Entenda,

    atualmente o governo arrumou os prédios

    antigos daquela região, mas naquela época não

    era um lugar de aparência muito agradável.

    Eu próprio só trabalhava lá por necessidade. E

    geralmente estes filmes americanos quando vem

    para cá querem lugares bonitos, exóticos. Como

    em “O Homem da Pistola Dourada”.

    Mas deixa-me falar, como o senhor quer me

    entrevistar se me interrompe a cada minuto?!

    Não te ensinam isso no curso de jornalismo?!

    Ah, primeiro o senhor disse que queria saber do

    filme, agora diz que quer um personagem? Ora!

    Mas é verdade, eu não gostava mesmo de assistir

    filmes! Eu te disse quando o senhor propôs a

    entrevista! O que? Ah, mas um de vez em quando

    acabava assistindo quando todo mundo falava

    dele, embora geralmente saísse decepcionado.

    “O Homem da Pistola Dourada” foi um desses.

    Outro que me decepcionou? Vejamos, “A Colina

    da Saudade” assisti quando tinha 17 ou 18 anos, e

    foi um que me decepcionou bastante. Ainda mais

    R U I R A S Q U I N H O

    C O N T O

    D A V I D E H R L I C H

    I L U S T R A Ç Ã O

    não entendia nada de como filmes são feitos, e

    tudo aquilo me soava cada vez mais complicado –

    E por que Club Obi Wan? Obi Wan não quer dizer

    nada em mandarim, aliás, nem em cantonês.

    - É uma piada interna, uma referência ao... – O

    homem parou no meio da frase – Espere, o senhor

    não sabe quem é Obi Wan Kenobi?! – Acenei que

    não – O senhor assistiu algum filme nos últimos

    anos?! Qualquer um?!

    - Não gosto de filmes, acho chatos.

    - O senhor quer dizer, filmes no geral?! Como

    alguém pode não gostar de filmes?! Eu amo filmes!

    Amo tanto que sou capaz de fazer qualquer coisa

    para participar de um. Mesmo que seja apenas

    como carregador de rolos de película.

    Do lado de dentro do bloqueio, outro homem

    branco, que devia ser outro membro da equipe de

    filmagem, acenou para o homem com quem eu

    estava conversando aproximar-se. Ele acenou de

    volta e apagou o cigarro que fumava com o pé.

    - Parece que tenho que ir, vão começar a filmar

    agora. – Ele olhou para mim – Escute, se der tudo

    certo hoje, amanhã de noite iremos filmar outra

    cena, mas dessa vez em uma avenida de... Almei-

    Alguma-Coisa... Não fica longe daqui...

    - Almeida Ribeiro?

    - Sim, isso! Vão bloquear três quadras da

    avenida para as filmagens, não sei falar os nomes...

    – Ele me mostrou uma folha de papel que estava

    guardada no bolso dele e apontou com o dedo um

    trecho do que estava escrito. Dizia que o bloqueio

    seria na Avenida de Almeida Ribeiro, entre a

    Travessa do Mastro e a Travessa do Barbeiro –

    Enfim, não sei exatamente onde vou estar e nem

    quanto tempo ficarei trabalhando, mas se eu

    conseguir alguma folga podemos continuar com

    nossa conversa, o que acha, senhor...?

    - Chan.

    - Senhor Chan. Ainda estou incrédulo.

    Alguém que não gosta de filmes... Bem, até mais!

    – Ele já estava entrando no bloqueio quando

    que tinha chamado uma garota pela qual estava

    apaixonado na época para assistir. Digamos que

    o encontro não deu muito certo...

    Mas voltando ao que o senhor queria saber.

    De fato, eu não gostava de assistir filmes, mas

    fiquei curioso diante daquela comoção. Sempre

    fui do tipo que fica curioso com comoções.

    Quando jovem até me perguntavam por que eu

    não tentava ser jornalista, porque onde quer que

    houvesse uma manifestação ou um acidente, lá

    estava eu. O senhor também é assim? Como não?!

    Onde já se viu jornalista que não gosta de ver

    sangue? Mas o senhor para chegar nesta posição

    em que está agora não teve que antes ficar em

    porta de delegacia? Ora, não acredito!

    De qualquer forma, resolvi me aproximar, e

    já havia centenas de pessoas gritando e fazendo

    alvoroço próximo à pensão. Não dava para ver

    nada. Tentei dar a volta para ver melhor, mas onde

    quer que eu fosse tinha pessoas e mais pessoas.

    Até que finalmente me afastei tanto que só havia

    alguns seguranças bloqueando a rua. Porém, do

    lado de fora do bloqueio, vi um homem branco

    fumando um cigarro. Supus que era alguém da

    equipe de filmagem. Felizmente, eu sabia um

    pouco de inglês, e fui perguntar para ele:

    - Que filme estão filmando aqui?

    - É o novo Indiana Jones. – Ele respondeu.

    Pelo tom de voz dele, imagino que ele nem

    considerava a possibilidade de alguém não saber

    quem era Indiana Jones. Acontece, porém, que eu

    estava fora das considerações dele.

    - Indiana o que? – Eu disse.

    O homem arregalou uns olhos como se eu

    fosse um alienígena ou algo assim. Ele ficou tão

    transtornado que deixou o cigarro cair no chão, e

    nem conseguia mais falar direito.

    - Indiana Jo... Todo mundo já pelo menos

    ouviu falar de Indiana Jones! Foi o maior sucesso

    dois anos atrás! Indiana Jones, Harrison Ford!

    Como o senhor pode não ter assistido?! Ao menos

    alguma cena o senhor tem que reconhecer. > > >

    Senhor Chan

  • suplemento literário • SEXTA 31 DE MAIO, 2019 ponto final • SEXTA 31 DE MAIO, 2019

    se virou para mim – Mas se não conseguirmos

    conversar, pelo menos assista ao filme quando

    for lançado! Vai se chamar “Indiana Jones e o

    Templo Amaldiçoado”! Raramente digo isso dos

    filmes nos quais trabalho, mas este promete ser

    bem bom!

    E enfim ele foi embora. Foi só então que

    percebi que tinha me esquecido completamente

    de perguntar pelo nome dele. Está certo que ele

    também se esqueceu de me contar, e eu estava

    ainda atordoado pela conversa, mas enquanto

    ia embora me senti bastante mal-educado por

    aquilo. Tive inclusive dificuldade mais tarde em

    dormir, de vergonha.

    Enquanto me afastava, passei pela Praça de

    Ponte e Horta, que agora estava rodeada de tantas

    pessoas que mal dava para sair de lá. E todas elas

    olhavam para cima, em direção ao último andar

    da Pensão Sun Sun Hotel.

    Assim que me virei para olhar naquela

    direção, dois atores saltaram do último andar e

    começaram a cair em uma série de toldos que

    foram instalados nas varandas da Pensão. Sim,

    sim, instalados, a Pensão não tinha toldos nas

    varandas! Não, não tinha reparado antes, achei

    que era algo novo da própria Pensão, mas quando

    vi os atores caindo em cima deles e rasgando-os

    percebi que devia ser algo próprio do filme. Que

    nem a placa brilhante escrito Club Obi Wan, que

    o homem com quem conversei tinha citado. Foi

    só então que notei aquilo.

    Quando os dois atores saltaram toda aquela

    multidão prendeu a respiração ao mesmo tempo.

    Parecia inclusive uma cena de filme. Mas assim

    que eles caíram em cima do último toldo e este

    não rasgou, e eles puderam se segurar na beirada

    sem cair no chão, a multidão inteira suspirou

    aliviada. Sim, também ao mesmo tempo. Eu?

    Confesso que também fiquei apreensivo pelos

    dois, mas assim que eles ficaram bem fui embora,

    enquanto todo mundo aplaudia a cena. Não

    estava com muita vontade de ver aquilo, e ainda

    estava envergonhado de não ter perguntado o

    nome daquele homem.

    Na noite seguinte, de fato bloquearam a

    Avenida de Almeida Ribeiro, exatamente o trecho

    que ele tinha me apontado. Mas não fui lá me

    encontrar com aquele homem para conversar.

    Sendo honesto com o senhor, no dia seguinte

    toda aquela conversa me deixou com raiva. Fazer

    Macau se passar por Xangai! Chamar a Pensão

    Sun Sun Hotel de Club Obi Wan! Aquilo tudo

    passava dos limites da minha compreensão!

    Mas não ter ido vê-lo naquela noite, me

    causou um remorso ainda maior, e, portanto,

    prometi a mim mesmo que faria pelo menos

    uma das coisas que aquele homem pediu para eu

    fazer: No ano seguinte, quando lançaram o filme,

    eu fui ao cinema assistir o tal “Indiana Jones e o

    Tempo Amaldiçoado”. Na noite de estreia, sim!

    Foi uma experiência estranha, eu tinha apenas

    46 anos e era provavelmente o mais velho na sala

    inteira! Nem mesmo agora com 80 anos me sinto

    tão velho quanto me senti naquela noite!

    Eu fui à sessão pronto para odiar o filme. Tudo

    que aquele homem havia me dito a respeito dele

    me fazia querer odiá-lo.

    Porém assim que o filme começou, algo

    estranho aconteceu comigo, algo que não

    imaginava que iria acontecer após tantos meses

    dizendo a mim mesmo que aquele filme seria

    horrível: Eu comecei a me divertir. Sim, me

    divertir! Logo nos primeiros minutos do filme,

    com aquela dança, e aquele encontro do Indiana

    Jones com o líder mafioso, e depois toda aquela

    cena de ação... Eu estava achando tudo aquilo

    muito divertido! Soltei algumas das gargalhadas

    mais sinceras da minha vida durante aquele

    filme!

    Eu não conseguia acreditar: Durante minha

    vida inteira odiei filmes. Todas as vezes que

    tentei assistir um, me decepcionei. E lá estava

    eu, assistindo um filme, com todos os barulhos e

    cores que nunca suportei... E eu estava adorando

    aquela experiência! Tudo que eu conseguia

    pensar era: Como é que ninguém fez este filme

    antes?!

    Heim? Qual parte mais gostei? Ora, isso o

    senhor pode adivinhar muito bem, é lógico que

    foi a perseguição por “Xangai”. Coloque aspas em

    Xangai quando for escrever isso tudo que estou

    te dizendo. Foi uma experiência estranha, ver

    aquele carro passando por aquelas ruas que eu

    conhecia bem, e por aquelas lojas que eu conhecia

    bem. Toda vez que eu reconhecia uma me dava

    vontade de apontar o dedo para a tela e gritar “Ei,

    olhem só!”. A cena inteira durou menos de cinco

    minutos, mas foi o que bastou para aquele filme

    tornar-se algo... Como posso dizer... Escapa-me

    a palavra agora, mas algo que é próximo a mim,

    sabe? Algo com que eu me identifico. Mesmo

    com aquela história de Xangai, eu me sentia...

    Representado naquele filme, é isso! Como se eu

    próprio fosse uma daquelas pessoas andando na

    rua enquanto o carro passava.

    Enfim, assisti do começo ao fim, sem dormir,

    sem olhar para os lados, eu nem me lembro de

    ter piscado! Fiquei até terminarem os créditos

    finais. Li-os tentando descobrir qual poderia ser

    o nome daquele homem com quem conversei,

    mas infelizmente a lista de nomes da equipe de

    produção era gigantesca, seria impossível dizer

    com certeza qual daqueles era o que eu estava

    procurando.

    Quando saí da sala de cinema, era como

    se eu tivesse me transformado em uma nova

    pessoa. Nunca tinha imaginado que o fato de eu

    não gostar de filmes até então era uma parte tão

    marcante do que eu considerava ser eu mesmo,

    e então lá estava, um filme que eu tinha gostado!

    De repente me sentia trinta anos mais jovem,

    novamente aquele adolescente que gostava de

    tudo, antes de virar um adulto que detestava tudo.

    Os filmes eram apenas a parte mais evidente, mas

    a verdade era que aos 46 anos eu já era um velho

    rabugento... Até então.

    Sim, sim, claro! No cinema, devo ter assistido

    ao filme... Hum... Dez vezes no total. Todo fim de

    semana eu dava um jeito de ir assisti-lo. Lembro-

    me de inclusive ter assistido no sábado e de volta

    no domingo! Assisti com minha esposa, assisti

    com meus filhos, chamava amigos do trabalho

    para assistirmos juntos. Se eu conversava com

    alguém e a pessoa me dizia que ainda não tinha

    assistido “Indiana Jones e o Templo Amaldiçoado”,

    eu dizia “Como não?! Vamos assistir agora!”, e no

    mesmo dia eu arrastava a pessoa até o cinema.

    Sim, isso mesmo que o senhor disse.

    Aquele filme me foi inspirador. Minha vida

    tinha caminhado a um percurso errado, e ele

    mudou o rumo dela. Por um breve instante, me

    fez inclusive querer me tornar um diretor de

    cinema... Ou viajar pelo mundo de chapéu na

    cabeça e chicote na mão. Foi uma experiência tão

    épica que até agora quando viajo, imagino aquela

    música tocando e um mapa mostrando o traçado

    da minha viagem.

    Heim? Bom, como vê, não me tornei diretor,

    nem uso chapéu. Mas Desde então pelo menos

    uma vez por semana vou ao cinema assistir algum

    filme. Meus favoritos? Os estrelando Harrison

    Ford, é claro! Esses eu sempre assisto na noite de

    estreia, mesmo que sejam ruins.

    Ah, sim, verdade, sou de fato o “Senhor

    Indiana Jones”, como dizem por aí. Sempre

    que algum estudante de cinema vem aqui para

    Macau e quer conhecer os locais de filmagem

    de “Indiana Jones e o Templo Amaldiçoado”, é

    a mim que indicam como guia turístico. Sim,

    sim, vários! Eu não sei quem é que contou

    essa história de que a cena da perseguição foi

    filmada na Rua da Felicidade, mas eu diria que...

    Hum... Uns dois terços dos jovens que guio me

    perguntam a respeito dela. Aí tenho que explicar

    que não, não foi na Rua da Felicidade, foi na

    Avenida de Almeida Ribeiro, às vezes até peço

    para eles procurarem a cena no telefoninho

    deles e andamos juntos pela avenida, e vou

    mostrando as lojas que aparecem. A Pensão?

    Sim, muitos são os que ficam decepcionados

    que ela foi demolida e substituída pelo Best

    Western Hotel Sun Sun. Mas alguns aceitam

    que a cidade mudou e lá para cá, e um ou outro

    inclusive se hospeda no Hotel, como se a Pensão

    original ainda mantivesse alguma espécie de

    aura naquele lugar.

    Era isso que o senhor queria saber? Ora,

    eu é que agradeço pela oportunidade de ser

    entrevistado! Desejo-lhe boa sorte para escrever

    o seu livro! Mas diga-me, quem foi que te disse

    sobre mim? Ah, sim, sim. É que imaginei que

    eu tinha sido indicado por alguns dos jovens

    que guiei, mas aquela parte sobre eu não gostar

    de assistir filmes antes de “Indiana Jones”

    geralmente não saio contando por aí, então achei

    estranho o senhor saber disso antes mesmo da

    entrevista... O que?! Ele... O senhor falou com

    ele?! E ele se lembrava de mim? Eu... Eu... Só um

    minuto, deixe-me me recompor. Ele ainda está

    vivo então? E ele se lembrava de mim... Eu...

    Poderia... Poderia por favor me dizer o nome

    dele? Puxa, um nome tão simples, como pude

    não perguntar? E... Se o senhor puder... Teria

    como me passar o contato dele? Acho que... Acho

    que tenho muito que gostaria de conversar com

    ele. Sobre filmes...

    > > >

    C O N T O

    O primeiro andar da livraria é quase inteiramente dedicado aos mais pequenos, para esta ocasião quisemos torná-lo ainda mais aconchegante e proporcionar um momento mágico, promovendo uma maior intimidade das crianças com o universo dos livros. Se frequentar uma livraria já é um óptimo programa, poder passar a noite entre os livros é uma aventura muito incrível!

    É uma excelente oportunidade para estimular a leitura e o imaginário e para criar memórias especiais com os amigos. Queremos ajudar a formar futuros adultos para quem pegar num livro é tão natural como pegar num tablet, ler uma história é tão entusiasmante como ver um filme. Queremos ajudar a formar adultos que gostam de ler e de frequentar livrarias!

    Assim que anunciámos esta actividade tivemos uma excelente reação da parte de todos, miúdos e graúdos, de tal forma que tivemos de criar um segundo grupo e estamos a planear no futuro repetir as noites na Livraria, com noites temáticas, com grupos de crianças, com crianças mais pequenas acompanhadas dos pais e até com grupos de adultos (que ficaram cheios de inveja por não poder participar!)

    ESTE ANO A LIVRARIA PORTUGUESA QUER ASSINALAR O DIA DA CRIANÇA DE FORMA MUITO ESPECIAL, COM UM CONVITE À AVENTURA...

    ATREVES-TE A PASSAR UMA NOITE NA LIVRARIA?... SERÁ QUE DE NOITE OS LIVROS GANHAM VIDA E CONVERSAM UNS COM OS OUTROS?! VEM DESCOBRIR CONNOSCO!

  • suplemento literário • SEXTA 31 DE MAIO, 2019

    Navegar é preciso

    www.openculture.com

    O site Open Culture percorre com regularidade várias bibliotecas ou colecções de livros e revistas disponibilizadas integralmente na internet. Uma visita ao seu espaço virtual permite perceber que a promessa de a internet ser uma espécie de biblioteca universal, aquele quase paraíso sonhado por Jorge Luis Borges, não anda muito longe da realidade. Entre as últimas entradas, destaque para a que se dedica aos livros infantis, remetendo para a colecção recentemente disponibilizada pela norte-americana Library of Congress, acessível em qualquer computador. Entre os livros desta colecção, datados dos séculos XIX e XX, há clássicos da literatura infantil, biografias, não-ficção, rimas e lenga-lengas. E há algumas obras-primas, como a edição de The Raven, de Edgar Allan Poe, ilustrada por Gustave Doré, ou a Complete Collection of Pictures & Songs, ilustrada por Randolph Caldecott. A colecção da Library of Congress chegou à internet coincidindo com a efeméride dos cem anos da Children’s Book Week, uma série de eventos realizados anualmente, na última semana de Abril, para promover a leitura entre os mais novos. E como diz Lee Ann Potter, a responsável pela secção de aprendizagem e inovação da Library of Congress, ao site Open Culture, «é extraordinário pensar que quando a primeira Chindren’s Book Week foi celebrada, todos os livros desta colecção digital já existiam. Agora, existem também online, não apenas graças à tecnologia que permite digitalizar, disponibilizar e partilhar, mas sobretudo graças às pessoas que cuidadosamente garantiram que esses livros sobreviviam.»No site Open Culture podem consultar-se entradas mais antigas dedicadas a outros arquivos digitais de temática semelhante, abrindo as portas para uma viagem potencialmente infinita pelo universo dos livros para os mais novos, quase todos ilustrados, quase todos essenciais para percebermos o modo como o conceito de infância mudou tanto nos últimos dois séculos.

    M O N T R A D E L I V R O S

    Três edições bilingues da Clepsydra, juntando o português ao inglês, ao francês e ao espanhol, dão a ler Camilo Pessanha e a sua obra emblemática. Com edição de texto de Paulo Franchetti, introdução de Helena Buesco, ilustração de André Carrilho e traduções de Jeff Childs, Jeronimo Pizarro e María De Las Mattas.

    Camilo PessanhaClepsydraLisbon Poets & Co.

    AAVVDo Éden ao Divã: Humor JudaicoTinta da China

    Com organização de Moacyr Scliar, Patricia Finzi e Eliahu Toker, esta antologia reúne textos e excertos que vão do Talmude a Philip Roth, passando por Woody Allen, pelo humor científico de Einstein e por vários divãs psicanalíticos.

    Kjell RingiO VencedorBruaá

    Do autor sueco Kjell Ringi, a Bruaá publica um clássico sem palavras para os mais novos. Neste duelo entre páginas, a sanha vai crescendo na inversa proporção da razão, até se perceber que nem sempre saber quem ganha a contenda é o mais importante.

    Xuan Juliana WangHome Remedies: StoriesHogarth Press

    Um livro de contos onde a faixa etária das personagens é tema comum, reflectindo sobre a juventude chinesa contemporânea na China e noutros países onde uma segunda geração de emigrantes procura encontrar raízes entre a herança dos pais, por vezes tão longínqua, e o lugar onde nasceram e cresceram.

    Gabriel García MárquezO Escândalo do SéculoDom Quixote

    Meia centena de textos que ilustram o percurso jornalístico que Gabriel García Márquez também teve. Como dizia o autor colombiano, «o jornalismo é a profissão que mais se parece com o pugilismo, com a vantagem de que a máquina ganha sempre e a desvantagem de que não nos é permitido atirar a toalha ao chão.»

    Everton V. MachadoO orientalismo português e as Jornadas de Tomás RibeiroBiblioteca Nacional de Portugal/Centro de Estudos Comparatistas FLUL

    Numa edição dupla, volta a publicar-se a obra Jornadas, de Tomás Ribeiro, originalmente publicada em 1873, acompanhada de um volume dedicado à reflexão sobre a presença portuguesa na Índia e a dimensão cultural e política de Tomás Ribeiro.

    Frank KasellChinese Street Food: A Field Guide for the Adventurous DinerBlacksmith Books

    Um guia para acompanhar a descoberta do que se come pelas ruas chinesas, longe de restaurantes e lugares sentados. Em inglês, mas com os nomes de cada prato em chinês (em caracteres e pinyin), o livro de Kasell percorre 53 cidades e dá a conhecer centenas de especialidades locais.