Parte 8 - Cinema e Televisão

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PARTE 8 Cinema e Televisão

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P A R T E 8

Cinema e Televisão

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Pequeno panorama atual do cinema sobre o Brasil na BélgicaS u s a n a r o s s b e r g

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a Bélgica tem uma tradição pictural importante, e o cinema belga não escapa a essa tendência. Quando cheguei em Bru-

xelas, em 1967, eram os documentaristas da televisão belga que iam filmar no Brasil. Muitos deles, como roger Beeckmans e an-dré Dartevelle, são conhecidos e respeitados.

entrei na escola de cinema INSaS (Institut National Supé-rieur des Arts du Spectacle) ao mesmo tempo que duas cariocas, eunice gutman, documentarista que retornou ao Brasil, e regina Veiga ribeiro. estudávamos edição de filmes. Penso que fomos os primeiros brasileiros nessa escola, mas outros passariam por lá assim como por outras instituições: gustavo Mesquita de Siquei-ra, atualmente diplomata; o diretor de fotografia edgar Moura; o editor antonio Carlos Bernardes, que se tornou diretor de teatro infantil no rio; dois latino-americanos que se radicaram em São Paulo: o diretor de fotografia argentino Hugo Kovensky e a edi-tora equatoriana Veronica Saëns. estudou igualmente no INSaS aube Dierckx, belga criada em São Paulo, que se tornou editora, depois chefe do departamento de edição na televisão rTl, assim como dois de seus sobrinhos, Veronica e Felipe Dierckx, ambos

brasileiros, que se formaram no INraCI (Institut National de Ra-dioélectricité et Cinématographie).

a Bélgica, um pequeno país, possui muitas escolas de cinema. O interesse pelo Brasil, na Bélgica, é crescente. atualmente existe um programa de intercâmbio, Visões Cruzadas, entre alunos de cinema da Universidade de São Paulo (USP) e das escolas belgas INSaS e Sint lukas.

Poucos dos que aqui estudaram permaneceram, mas nos últi-mos anos chegou uma nova leva de cineastas, tais como Barbara Ferreira avelino, Cristina Dias, Diego Tchole e Heron Ferreira. Maïa Martins, que estudou no IaD (Institut des Arts de Diffu-sion), tornou-se diretora na televisão belga rTBF. além dela e de mim, que fiz carreira sobretudo como editora, poucos conse-guem viver de cinema. Felipe Mafasoli acaba de terminar seus estudos de diretor na escola flamenga rITCS, e também atua como ator. ermeson Vieira, chegado há pouco, após estudos de direção em londres, está começando a lançar sua carreira aqui. Como no Brasil, trabalhar em cinema na Bélgica, em tempos de crise, não é fácil.

Acima, “Capoeira”, e à direita “Cantores com Fabinho” (fotos de Simone Krunas).

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“Capoeira, Bel Horizon”B a s i l e S a l l u s t i o

O Brasil sempre interessou aos belgas, ávidos assistentes de um projeto cinematográfico chamado Exploração do Mundo, criado em 1950. No entanto, a maioria dos diretores cujos filmes são ain-da hoje apresentados é francesa.

Diversos antropólogos belgas se empolgaram pelo Brasil e fize-ram filmes como parte de seu trabalho – por exemplo, Dominique Tilkin gallois, professora na USP, e gustaaf Verswijver, curador do Museu de arte africana de Tervuren, na Bélgica. ambos tra-balham com indígenas brasileiros. Outros cineastas belgas, tais como Damien Chemin, Nicodème de renesse e Nicolas Hallet, se radicaram no Brasil e construíram suas vidas lá.

Seguem depoimentos de algumas dessas pessoas, cineastas experimentados ou principiantes. Nota-se que os documenta-ristas belgas que filmaram no Brasil tendem a ser politicamente

engajados e preocupados com os problemas sociais do nosso país.Uma das grandes lacunas nessa série de depoimentos é Jean -

-Pierre Dutilleux, eminente documentarista, particularmente in-teressado pelas tribos indígenas. Seu documentário Raoni, feito em 1978, muito premiado, foi candidato a um Academy Award nos estados Unidos. Dutilleux fez diversos filmes na amazônia e escreveu um livro, Raoni, les Mémoires d’un Chef Indien, infeliz-mente ainda não traduzido para o português.

Outra lacuna é a falta de um depoimento de andré Dartevelle, infelizmente doente e incapacitado de escrever. Dartevelle reali-zou dois documentários que nos dizem respeito: um, nos anos de 1980, sobre o retorno do sindicalista José Ibrahim, refugiado na Bélgica, ao Brasil; o outro, sobre a grande seca de 1984 no Nor-deste e as revoltas da fome que dela resultaram.

Fui confrontado pela primeira vez com a capoeira em 1994 durante o festival Couleur Café, por intermédio de um amigo

participante dessa arte, e fui conquistado por ela. O que me im-pressionou, como todo neófito face ao espetáculo desses dançari-nos-acrobatas, foi a beleza bruta dos corpos lustrosos viravoltando ao rés do chão e no espaço. este encontro teria permanecido como a lembrança de um bom momento visual artístico no qual se mes-clam cantos subjugantes, músicas enérgicas e piruetas estéticas se os membros do grupo que se apresentava não estivessem movidos por um projeto social destinado a ajudar crianças de rua em Belo Horizonte, Minas gerais.

a ideia do filme nasceu da conjunção desses dois elementos: a beleza do gesto artístico, baseado numa filosofia de busca de equi-líbrio do indivíduo, aliado à generosidade de um projeto social. Todos os ingredientes necessários e reunidos para que eu iniciasse um filme, o que me faltava era realizá-lo.

Durante a elaboração do roteiro e, em seguida, do filme, eu não devia apresentar a capoeira como a panaceia para os pro-blemas que afrontam as megalópoles brasileiras no que se refere ao destino das crianças abandonadas e tudo o que diz respeito à sua educação. Precisava apresentá-la como uma ação positiva e construtiva destinada a recuperar, às vezes até inculcar, nos adolescentes e nas crianças os fundamentos de uma identidade pela cultura, sem a qual é bem difícil chegar a se posicionar na sociedade.

Não se tratava, tampouco, de fazer uma apologia da violên-cia dos bairros vulneráveis de Belo Horizonte, e de se comprazer numa espécie de voyeurismo doentio, mas de expor um método, de abordar o problema da educação das crianças e, sobretudo, de divulgar os resultados e as esperanças encorajadores obtidos pela utilização da arte e, em particular, da capoeira. Cartaz do filme “Capoeira, Bel Horizon”, de Basile Salusttio.

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a associação brasileira “Porto de Minas”, em Belo Horizonte, propunha não somente um complemento possível ao sistema edu-cativo, que o apresentava desde 1984, de uma maneira original, como propunha um novo estilo de colaboração dentro da socie-dade. O procedimento utilizava todas as características do setor informal – eficiência, entusiasmo, o método de “dar um jeito” –, mas cultivava, no entanto, a ambição de consolidar sua estrutura, a fim de assegurar a perenidade do projeto.

Três eixos principais regeram a fabricação desse filme. em primeiro lugar, o aspecto de descobrimento que representa a ca-poeira. Poucos estrangeiros, hoje em dia, conhecem o fenômeno brasileiro, a sua origem e a sua evolução durante os séculos. em segundo lugar, o aspecto “retorno à nossa sociedade”, ou seja, de que maneira as sociedades ocidentais eram e ainda são solicitadas pela capoeira. é por intermédio de seus praticantes brasileiros que a encontramos, que a descobrimos, e, particularmente através do

percurso de um jovem capoeirista de Belo Horizonte, que a “ex-porta” para a europa, que a seguimos em Bruxelas. em terceiro lugar, esse filme, que se debruça sobre a problemática das crian-ças de rua no Brasil, não as mostra sob os tristes chavões, como frequentemente certos documentários e certas revistas os fazem, isto é, como delinquentes, ladrões, drogados e assassinos. essa dura realidade não é iludida no filme, porém, esse aspecto não podia ser considerado como a única verdade. Capoeira, Bel Horizon é, nesse sentido, uma resposta a essa situação, e uma tentativa de reequilibrar a informação.

enfim, trata-se principalmente de um filme que nos faz ver protagonistas generosos e, sobretudo, portadores de uma ideia de esperança. No mundo (audiovisual) no qual vivemos, feito, mais do que no passado, de abundância e ebulição de imagens, preci-samos e muito de imagens construtivas e positivas.

(Tradução Susana Rossberg)

No avião que me leva paro o Brasil, estou sentado entre Pierre Manuel e um jornalista alemão do qual esqueci, rapidamen-

te, o nome. Partimos para uma reportagem para o programa 9 Mi-lhões, da Westdeutscher Rundfunk – WDr. Não me lembro da data exata. Só sei que o Brasil está vivendo sob a ditadura de Castelo Branco, pouco depois do golpe de estado militar, com a bênção dos estados Unidos. estamos em plena guerra Fria e a ditadura evoca a luta contra o comunismo em nome da segurança nacional.

O que sei do Brasil, para onde vou pela primeira vez? De No-va York até o rio, tenho o tempo de me informar e de sonhar. Conheço o Cinema Novo, lima Barreto e glauber rocha. Vi O Cangaceiro e Deus e o Diabo na Terra do Sol, li Jorge amado, Do-na Flor e seus dois maridos, antes, ou depois, dessa viagem. Tive a sorte, mais tarde, de encontrar Jorge amado duas vezes. li os re-latos sobre filmagens no Brasil de um dos meus autores favoritos, Blaise Cendrars. eu conheceria Brasília, capital criada em pleno deserto, durante uma segunda viagem.

Descubro primeiro os cartões postais do rio: o Pão de açú-car e a praia de Copacabana. logo em seguida, com o jornalista alemão, “o exército ao serviço da população” em Minas gerais e, com Pierre Manuel, o Sertão, os nordestinos e Dom Helder Câmara. a Teologia da libertação fez dele um adversário do regime. Padres ao seu redor, engajados na luta para devolver a dignidade aos pobres, foram assassinados. Dom Helder nos emprestou seu jeep para irmos filmar nos vilarejos nordestinos.

as primeiras imagens do Nordeste me parecem familiares por

tê-las visto no cinema. No primeiro dia, cruzamos com um jeep militar. Deitado em cima do capô estende-se um homem morto. Um camponês. Filmamos, e nos inteiramos da violência que rei-na na região. O que me impressiona nos vilarejos é a pobreza, as casas de terra pisada e os cemitérios com lápides de mármore. a explicação nos é dada rapidamente: vive-se na terra, na miséria, durante 40 ou 50 anos, e no paraíso eternamente. regressamos com essa reportagem, dedicada a essa luta.

Voltei várias vezes para o Brasil, com o apoio da Unicef. Filmei crianças procurando comida no lixo, no meio da indiferença ge-ral. O que revoltava os transeuntes era a presença de uma equipe de televisão, necessariamente estrangeira. Íamos dar, novamente, uma imagem negativa do país, enquanto havia tanta coisa bonita para mostrar. Coisas que também filmei, para o programa Visa pour le monde.

No Brasil, reencontrei Maurice Vaneau. Maurice tinha partido com a companhia teatral Rideau de Bruxelles, como ator e dire-tor. estabeleceu-se no Brasil, nos teatros do rio e de São Paulo, e tornou-se diretor do Teatro Brasileiro de Comédia – TBC. Seu trabalho, durante anos, numa novela, o tornaram célebre. Sua fa-ma nos foi bem útil. graças a ele, pude filmar jovens prostitutas nas ruas de recife.

Com Marc augé e Jean-Paul Colleyn, filmei o candomblé, as idas e voltas religiosas entre a África e o Brasil, em Belém, onde pude contemplar o amazonas, esse rio lendário, majestoso.

(Tradução Susana Rossberg)

O meu Brasilr o g e r B e e c k m a n s

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as questões indígena e ambientalTe x t o s o b r e B a b i av e l i n o

Nascida em 1975, em São Paulo, e graduada em Ciências da Comunicação, Babi avelino sempre esteve interessada na

imagem fotográfica e audiovisual. Depois de atuar, em 1996 e 1997, como fotógrafa publicitária, lança-se no fotojornalismo, tra-balhando como free-lance para diversos jornais e revistas de São Paulo e da europa, na Bélgica, na Holanda e na França.

em 1999, surge-lhe a ideia de estudar cinema. Babi decide deixar o Brasil e muda-se para Bruxelas. Como autodidata, come-ça a realizar vídeos documentários independentes. Seu primeiro trabalho, São 9.859,47 km, é um documentário filmado no Brasil e na Bélgica, em 2004-2005, cujo título evoca a distância exata entre a cidade de liège e a megalópole de São Paulo, dois luga-res, em ambos os lados do atlântico, onde Babi vive e trabalha.

em 2002, depois de uma viagem ao coração do país natal, cresce nela o desejo de mostrar e divulgar o Brasil. assim, torna-se

artista membro da ONg Nhandeva, que incentiva projetos para o resgate das tradições do povo guarani M’bia do rio de Janeiro. Desde então, seu trabalho é um espelho militante da causa indí-gena e da questão da diversidade cultural.

Desenvolve a instalação fotográfica Mensagens, apresentada pela primeira vez na 5ª Bienal Internacional de Fotografia e artes Visuais de liège, que é o resultado do encontro, em 2004, com diversas nações indígenas do Brasil. em 2006, Babi torna-se tam-bém membro da ONg belga ICra International, que luta pelos direitos dos povos indígenas ao redor do mundo.

De 2006 a 2008, Babi avelino realiza um segundo docu-mentário independente, denominado Elo, em parceria com o videasta Marica Kuikuro e o músico Douglas Froemming. este trabalho foi exibido em diversos centros culturais da europa e no programa A’UWE da TV Cultura, destacando-se pelo fato de traçar, através de múltiplos pontos de vista, um retrato da re-lação extremamente frágil entre os indígenas e as áreas rurais e urbanas do Mato grosso.

Há dez anos, Babi avelino está plenamente envolvida com a questão indígena e ambiental no Brasil, enfocando em seu tra-balho de artista/documentarista (foto e vídeo), as questões socio-ambientais. em Amazonien, exposição individual apresentada na 5ª Bienal Internacional do Design de liège, em dezembro de 2010, Babi divulga fotos e vídeos questionando nossa relação com a diversidade cultural dos povos indígenas e com a natureza, tão degradada pela ação do não indígena. essa mesma exposição foi apresentada em dezembro de 2011, no âmbito do festival euro-palia.Brasil, no espace Senghor, em Bruxelas, para a abertura do concerto de Marlui Miranda.

em outubro de 2011, Babi finaliza, com o apoio da Fundação leopold III para a Conservação da Natureza de Bruxelas, um novo projeto documentário independente em vídeo, A Visita do Rei.

Cartaz do filme “La visite du Roi”, design gráfico de Deborah Avelino e fotos de Leopoldo III e Babi Avelino.

“Ikp 2”, de Babi Avelino.

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O filme relata de maneira singular a história de um rei belga em visita à região do Xingu em 1964. Quarenta e cinco anos depois, Babi avelino, com algumas fotos da época debaixo do braço, parte em busca destes personagens, testemunhas de uma história des-conhecida. em junho de 2012, o filme é premiado como melhor direção de média-metragem na 7ª edição do Festival Cine MuBe Vitrine Independente de São Paulo.

De modo geral, utilizando a fotografia e o vídeo como fer-ramentas para transmitir reflexões sobre questões ecológicas e a diversidade cultural, Babi avelino documenta, com imagens plás-ticas, estéticas e com certa fascinação por planos fechados, o uni-verso contemporâneo dos povos indígenas do Brasil, mostrando assim toda sua sensibilidade de artista/documentarista engajada.

Sua última obra audiovisual, Dimension Nord, é um curta- -metragem documentário realizado no âmbito de um seminário com o documentarista belga Thierry Michel, em 2012, na Ulg Universidade de liège.

Considerando-se pluridisciplinar, Babi avelino está em cons-tante busca, criando espaços para expressar, da maneira mais au-têntica possível, as experiências vividas em suas imagens. Já não lhe basta a imagem propriamente dita; por isso Babi avelino se aproxima do transdisciplinar, participando de oficinas e de algu-mas residências na academia real de Belas artes de liège, onde o vídeo e a escultura se fundem para proporcionar novas possibili-dades criativas em videoarte. Trabalha, assim, a imagem fotográfi-ca e audiovisual de maneira mais plástica e não menos engajada.

Babi é uma artista belgo-brasileira. após oito anos de casamen-to com um belga, torna-se mãe. ela vive e trabalha entre liège e São Paulo.

Fotografia “Interior”, de Babi Avelino.

Abaixo, fotografia “Mão”, de Babi Avelino.

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a mensagem poética de Oscar NiemeyerM a r c - H e n r i Wa j n b e r g

Marc-Henri Wajnberg e Oscar Niemeyer. Um gesto arquitetural, para Niemeyer, devia se traduzir numa mensagem poética.

após ter realizado um filme sobre o fotógrafo judeu soviético evguény Khaldéi, que tirou a foto símbolo do fim da Segunda

guerra Mundial, aquela na qual se vê um soldado soviético segu-rando uma bandeira no alto do reichstag, procurei novamente um assunto sobre um homem para o qual a vida, a obra e a história de seu país estavam intimamente ligadas.

Foi assim que tive a ideia de fazer um filme sobre Oscar Nie-meyer. Me surpreendi, pois não existia um verdadeiro filme so-bre ele. Havia numerosas reportagens, mas um filme que falasse de sua vida, de seu aprendizado em arquitetura, da arquitetura moderna, do rio de Janeiro, do seu amor pelas mulheres, de sua relação com Juscelino Kubitschek, da ditadura, do Tropicalismo etc., esse filme ainda não tinha sido feito. O caminho estava livre, me precipitei nele com muito interesse.

Como não ter prazer fazendo um filme num país cuja sim-ples evocação do nome, Brésil, Brazil, rio, Pampulha, faz via-jar, sonhar, dançar. e, quando o guia se chama Oscar ribeiro de almeida Niemeyer Soares, todos os componentes da mesti-çagem, do gênio, da poesia, do humor, do exotismo e da consci-ência estão presentes para fazer uma viagem, uma bela viagem inteligente pela história de um país que afrontou a ditadura, que inventa, que pulsa.

O filme que fizemos juntos, Oscar Niemeyer, un Architecte En-gagé dans le Siècle (Oscar Niemeyer, um arquiteto engajado no Século) deu a volta ao mundo, recebeu muitos prêmios interna-cionais, mas nunca foi mostrado na américa latina ou na américa do Norte. O produtor brasileiro preferiu utilizar o material filmado para fazer outros filmes sobre Oscar, como, por exemplo, Oscar

Niemeyer, o arquiteto do século, que significa outra coisa que não um arquiteto “engajado no século”.

Uma relação muito amigável se formou com Oscar. Dez anos após ter realizado o filme, em 2010, voltei para o rio, com mi-nha filha lucie, para cumprimentá-lo. Imediatamente, ele sugeriu que fizéssemos um novo filme juntos. a ideia me entusiasmou; enquanto o primeiro falava de Niemeyer, de sua obra e de seu compromisso político, o novo, independente do primeiro, falaria da galáxia de engenheiros, técnicos e arquitetos que gravitavam em torno de Oscar.

era fascinante ver esse homenzinho, de 103 anos, desenhar um projeto que, em seguida, era discutido tecnicamente e filoso-ficamente com seus colegas e amigos arquitetos e poetas: Haron Cohen, Jair Valera e muitos outros. Porque um gesto arquitetural, para Oscar, não se limitava a uma obra arquitetural, mas devia, igualmente, se traduzir numa mensagem poética.

Oscar se empolgou pelo projeto e as pessoas que o cercavam igualmente: Vera, Jair, Haron. eles sentiam a excitação de Oscar por esse novo trabalho. Cada encontro cotidiano trazia consigo no-vas ideias. Fiquei fascinado em ver que ele não esquecia nada do que tínhamos dito. Não hesitava em voltar a falar de ideias discu-tidas na véspera; tinha refletido, e me propunha novas perspectivas de roteiro. Filmei essas entrevistas com Oscar, provavelmente as últimas longas entrevistas que ele tenha aceitado fazer. Já estava doente, um colete cingia-lhe o peito. Não achei financiamento para esse novo filme. Uma pena, uma grande pena.

Obrigado, amigo Oscar, pela confiança que me deste.(Tradução Susana Rossberg)

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em 1998, a Casa da américa latina de Paris pediu-me para participar, como fotógrafo, da exposição organizada pelos 500

anos da descoberta do Brasil. Fui enviado ao Brasil para trazer de volta à Bélgica a minha visão do país: sozinho, passei seis meses viajando pelo Brasil inteiro. Pensava, na época, que a melhor ma-neira de representar a essência dessa cultura era mostrando o rosto dos artistas do país.

aprendi o português e tive a sorte de encontrar muita gente, sobretudo artistas, diretores de cinema, escritores e cantores. Todos tinham uma vida relativamente confortável. Praticavam sua arte inconscientes, ou pior, não se sentindo concernidos pelo que es-tava acontecendo fora de seu círculo protegido. Saí desse meio, e foi então que encontrei a “fauna” perigosa, sobre a qual ninguém falava, ou somente de leve. Pessoas normais, trabalhadores, crian-ças, mulheres, gente sem teto...

Fotografei cenas de pobreza, crianças de rua, a brutalidade e a repressão da polícia, e só o que vi foram pessoas abandonadas ao seu destino. ao rever os artistas que tinha conhecido, minha decepção aumentou, pois percebi que, após ter visto tantos con-trastes no país, nenhum deles sentia-se tocado pela miséria à qual eu tinha assistido. Por que nenhum deles se revoltava contra esse

flagrante racismo e essas injustiças sociais? Na verdade, tinha en-contrado uma pessoa consciente e que reagia a tudo isso, o can-tor de samba Bezerra da Silva, muito conhecido no Brasil, mas posto de lado pelas mídias justamente por causa de suas posições julgadas muito críticas.

ao regressar à europa, decidi mostrar minha visão do Brasil, mas não aquela dos retratos de artistas e sim aquela dos “esque-cidos” desse país gigantesco. No contexto brasileiro, me refiro à maioria da população, principalmente aos afro-brasileiros. Cons-ciente dos chavões habituais de praia, futebol e corpos bronzeados, abri a janela para o crime e a pobreza que fazem parte integrante do cotidiano brasileiro. Fotografei todos com o mesmo cuidado em respeitar cada um, fosse qual fosse sua classe social e o cenário no qual evoluíam.

Um amigo, que trabalha em favelas no Brasil, me pediu um dia para fazer o papel de intérprete de um cantor de rap brasileiro que passava por Paris, para uma conferência. Foi quando encontrei o lamartine. ele me contou o que fazia no Brasil, como estava ten-tando transformar a sociedade, se servindo da música como meio de expressão. Fiquei admirado com seu empenho, seu compro-misso com a causa. Na sua luta encontrava-se a expressão de toda

Sobre as “pessoas sem voz” no Brasill a z h a r i a b d e d d a ï m

Foto “Sombras no Muro”, de Lazhari Abdeddaïm: um cinema sobre juventude e justiça.

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uma geração de pessoas conscientemente excluídas das grandes decisões políticas de um país.

examinando mais de perto como lamartine e o seu movi-mento, o MHHOB, se serviam da cultura como um “instrumento de transformação social”, me veio à mente as imagens de outro movimento nascido nos anos 1970, nos estados Unidos, o Black Panther Party. Só que estava acontecendo hoje, como herdeiro espiritual, com o MHHOB, no Brasil.

Foi na Bélgica que decidi realizar um filme sobre o compro-misso dessa juventude sofrendo de dor de justiça. O produtor, que eu tinha encontrado durante uma formação de escrita de documentários, me propôs trabalharmos juntos no projeto, que o interessava. após meses de escrita, de contatos e de encontros, che-gamos a um acordo. Tínhamos a opção de sermos acompanhados por uma produção local, mas, por motivos de leveza de filmagem e de discrição, preferi evitar essa possibilidade.

Fiz as primeiras viagens sozinho, acompanhado, quando ne-cessário, por uma técnica de som brasileira. a ideia era ser ul-tradiscreto, pois a maioria das filmagens ocorria nas favelas. No entanto, não era por segurança pessoal, pois quando chegávamos nesses bairros, ditos sensíveis pela imprensa, éramos muito bem recebidos. Foi quando compreendi que a favela era composta de uma população de renda baixa, e não de bandidos de todo tipo,

prestes a tirar-nos a vida para obter um par de tênis novos! Muito ao contrário, os habitantes das favelas são formigas que permitem ao gigante econômico se desenvolver, e não os marginais que se vê, todas as noites, nos programas sensacionalistas que seguem as equipes de polícia. eu ia de surpresa em surpresa. evidentemente, vivemos situações de tensão, mas poucas, afinal, comparadas com o que tínhamos imaginado.

eu tinha uma porção de perguntas, e devia achar elementos de respostas na aventura documentária que iniciei. O hip-hop brasilei-ro poderia, um dia, fazer parte da máquina política? Caso afirmati-vo, se tornaria um partido político tradicional? Ou: lamartine veria seu sonho se tornar realidade graças ao seu movimento, ou seja, um fator de melhora das condições de vida de milhões de pessoas?

Confesso que encontrei, diante de muitas perguntas e dúvidas que eu tinha, respostas bem mais complicadas do que esperava. em todo caso, tive a sorte de ser testemunha privilegiada do desen-volvimento do MHHOB, por ter obtido sua confiança. Continuo esperando, profundamente, que sua experiência tenha um alcance que vá além das fronteiras brasileiras, e que esse filme possa, mo-destamente, contribuir para isso. ele transmite as palavras destas pessoas “sem voz” e, sobretudo, oferece uma visão de uma parte do Brasil muito pouco conhecida.

(Tradução Susana Rossberg)

Paixão pelo NordesteJ o h n E r bu e r

Cheguei ao Brasil pela primeira vez em 2002. Só tinha cin-co dias para filmar o festival recBeat em recife. Não falava

nem uma palavra de português e, exceto o fato de conhecer um pouco sobre a música, não sabia quase nada sobre o país. Não sa-bia que essa viagem seria o começo de uma paixão cultural que nunca me deixaria.

a história do Mangue Beat, na rádio 1 da Bélgica, tinha me interessado muito e eu esperava descobrir mais na programação do festival recBeat. Chico Science, o líder carismático desse mo-vimento do início dos anos 1990 – que foi mais do que música! – havia morrido em 1997, mas, surpresa, depois de cinco anos o Mangue Beat ainda estava onipresente na periferia da cidade. Nunca havia imaginado que as influências tradicionais que tinha ouvido, nos diferentes estilos do Mangue Beat, se apresentassem todas nas ruas do carnaval: Maracatu, Frevo, Forró, Ciranda, Pí-fanos, Bumba Meu Boi, afoxé ...

Voltando para a Bélgica, com 13 horas de gravações e a cabe-ça cheia de impressões confusas, não parava de falar do Nordeste do Brasil com todos os meus amigos. Utilizei meus contatos pro-fissionais para divulgar a cultura nordestina através da história do Mangue Beat. Junto com os produtores da rádio, Zjakki Willems e Jeroen revalk, organizei apresentações nos clubes de música,

um “vídeo jam” com o DJ Dolores (Hélder aragão) e convenci a banda belga Think of One a voltar comigo para gravar um CD em recife. Desta maneira fiz contatos com muitos músicos de recife e Olinda, em Pernambuco, e comecei a aprender o português na rua. realizei um documentário, O Som do Maracatu, um curta para o CD e, nos anos seguintes, mais um clipe em Olinda e gra-vações no Porto Musical – Womex.

Depois de um encontro em recife com o belga Bart Vet-suypens, que já tinha trabalhado durante cinco anos em projetos sociais com jovens, comecei a dar oficinas de vídeo e fotogra-fia, como voluntário, no Centro de Comunicação e Juventude – CCJ. em 2008 fiz um documentário sobre o recBeat, misturado com a realidade que tinha encontrado durante o meu trabalho social nas favelas.

Meu interesse pela música continuou, mas meu envolvimen-to social aumentou a cada viagem. em recife há muitas fave-las no mangue, perto dos rios, e os problemas aumentam com o aquecimento global. Quando o mar avança sobre a cidade, a água entra nas favelas com todo o lixo que a cidade joga nos rios. Documentei isso, com fotografias, num projeto de arte, Yemanjá, rainha de todos as águas.

em 2009 participei da Caravana de Comunicação e Juventu-

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des de recife, atravessando Pernambuco, Ceará, Piauí, Maranhão, até chegar ao Fórum Social, em Belém, no Pará. No Pará, filmei um curta sobre a poluição causada pela indústria de alumínio na área de Barcarena, em terras dos ribeirinhos. Com o jornalista lie-ven Verstraete, da televisão belga, fiz um curta sobre as crianças catadoras de lixo durante o carnaval.

O festival belga europalia.Brasil me convidou para fazer um projeto de arte com dez pequenos vídeos, Retratos Brasileiros. rea-lizei isso através de uma oficina para o CCJ de recife. Os vídeos fo-ram mostrados durante quatro meses no Club Brasil em Bruxelas.

Na “Zwarte Zaal”, da academia de arte KaSK, em gand, con-videi o artista de rua brasileiro José Cleiton Carbonel para criar comigo uma instalação, Rua na Rua, no final de 2011. em 2012 continuei esse trabalho na galeria de arte contemporânea Crox-

hapox, enquanto se formava uma turma itinerante, no Brasil, da exposição Rua na Rua.

Hoje estou iniciando um novo projeto de arte social. Copa Favela 2014 é um projeto de arte contemporânea, uma interven-ção na cidade, que será fabricada sem dinheiro, sem ajuda es-trutural – uma pesquisa sobre o poder das ideias na arte popular das comunidades. Também é uma plataforma para reunir tudo que tem a ver com a Copa do Mundo no Brasil e o povo da peri-feria. enquanto a FIFa está divulgando as boas notícias sobre a Copa do Mundo 2014, Copa Favela 2014 vai mostrar as realida-des das comunidades e os impactos no meio ambiente. a ideia seria unir essa iniciativa ao projeto Welvaert, ao lado do museu MaS, em antuérpia.

O Brasil vive em mim, nunca me largará.

Filmagem de John Erbuer no Morro da Conceição. “Rumbanda”, de John Erbuer.

em busca de uma arte globalI c a r o a l b a

Sou da família de Francisco de almeida Fleming, cineasta considerado entre os primeiros a realizar filmes mudos, fala-

dos, coloridos, fora de estúdios, além de outros pioneirismos no Brasil. Sou formado pela escola de Comunicações e artes da Universidade de São Paulo (eCa-USP), que possui, desde sua fundação, reconhecida vocação multicultural e multimídia. ao estudar rádio e TV, tínhamos cursos paralelos com a turma de Cinema, Jornalismo, artes Plásticas e Teatro, além de frequentar as faculdades de arquitetura, Teologia e Filosofia. Daí talvez o amor à criação em equipe, multidisciplinar, à imagem em suas diversidades, interrogando tabus, contando histórias ou docu-mentando. Sem fronteiras, sem ‘pré’ conceitos.

a decisão de trocar o Brasil pela Bélgica, para continuar a es-

tudar e trabalhar a confluência das artes plásticas, teatro, dança, literatura e filme, deveu-se a diversas razões essenciais: primeiro devido aos sacrifícios e desapontamentos políticos crescentes de nossa geração, filhos que éramos dos restos da ditadura militar, esperançosos e lutadores pelas “Diretas Já”, logo frustrados com a morte de Tancredo Neves. Obrigados a engolir na sequência trágica: José Sarney e Fernando Collor de Mello, presidentes do Brasil, com seus costumeiros escândalos, corrupções, planos eco-nômicos aberrantes, levando o Brasil ao caos e provocando o im-peachment final, oferecendo a posse presidencial ao apocalíptico vice-presidente, Itamar Franco. Neste ciclo infértil, degenerado, repetitivo e autodestrutivo, a criatividade ficava comprometida pelo pessimismo, pelo sectarismo ou ainda pela ironia. Para so-

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breviver, mudar, necessitávamos fugir para novos sonhos, mais realizáveis de imediato. Foi assim, ainda de cara pintada após uma manifestação anti-Collor, que veio a decisão definitiva – nada fácil – de partir.

Foi o saudoso bailarino baiano ricardo Carvalho, do grupo Plan K, através de sonhados projetos conjuntos, sempre ligados à pós-modernidade, um dos primeiros, ainda no Brasil, a me apre-sentar as potencialidades teatrais da vida na Bélgica. a Bélgica seduzia, despertava os instintos criativos, independentemente da meteorologia, justamente por sua qualidade de vida – humana e profissional – acostumada às vanguardas artísticas; talvez devido à sua posição geográfica estratégica na europa, próxima e acessí-vel, permitindo o contato saudável, franco e aberto entre culturas divergentes. a Bélgica, através do Kaaitheater, apresentou-se de imediato como uma opção muito provável e desafiante ao nos convidar e acolher, após a apresentação da peça El Señor Presi-dente, adaptação teatral do livro de Miguel angel astúrias, com o grupo Boi Voador, em Hamburgo.

Na Bélgica, residências, projetos, estágios, cursos e treinamen-tos artísticos eram contínuos, o ambiente favorecia o trabalho con-sistente e era catalisador de intercâmbio europeu e internacional. Verdade é que aos vinte e poucos anos as oportunidades vinham de todos os lados, todas interessantes, e não havia porque perdê-las. Tais como foram as vivências com os grupos: la Fura Dels Baus, Odin Teatret e com diretores inovadores como robert Wilson, lev Dodin, Peter Brook, Peter Stein, grotowski, luca ranconi, giorgio Strehler, Dario Fo, Ingmar Bergman, entre tantos outros mestres das artes cênicas e visuais.

Foram seguramente os amigos antigos e novos que fizeram da Bélgica um porto estratégico para aprofundar, iniciar e apren-der. Como esquecer o apoio da escritora Martine renouplez e da tradutora angela Munhoz nas intermináveis noites de inverno?

Quando aqui cheguei, “eu nada entendia”, deste país dividido, que parecia condenado eternamente ao surrealismo, sem uma única coerência nacional interna. Talvez justamente devido a isso, oferecia uma liberdade de expressão extrema, ideal para a criação, um “no man’s land”, sem os constrangimentos nacionalistas mo-fados, exaltados, que viriam com tudo, por todas as partes, anos mais tarde.

Outra razão de morar na Bélgica foi a possibilidade de reali-zar o mestrado no Centro de estudos Teatrais da Universidade de louvain la Neuve, sobre a obra dramática de Pina Bausch e seu companheiro igualmente cenógrafo, rolf Borzik. a relativa pro-ximidade em trem da Bélgica até Wuppertal facilitaria as idas e vindas de estudos e trabalhos ao lado da mestra do teatro-dança e toda sua equipe. esta tese universitária se tornou, a pedido de Pina Baush, o primeiro livro publicado pela companhia de Wuppertal sobre a influência determinante do multidisciplinar artista rolf Borzik em sua inovadora linguagem (Rolf Borzik Und Das Tanz-theater. Paris: l’arche, Wuppertal: Tanztheater, 2000).

assim como nos meus filmes iniciantes para a TV Cultura de São Paulo, os filmes produzidos na Bélgica foram feitos, quase sempre, em relação, a propósito, ou no contexto das criações de teatro, dança, ópera ou artes plásticas. Na busca de uma arte glo-bal, total. O conceito é simples: usar a tecnologia atual, temáticas atuais, universais ou particulares, recaminhando, no entanto, em rotas bem traçadas e sinalizadas pela tradição teatral, via a tragédia grega, via Shakespeare, via Wagner ou Nietzsche.

No filme-teatro-dança-concerto Macbeth, com o grupo la Fu-ra Dels Baus, nos Matadouros de anderlecht e de Bruxelas, reali-zamos, ou melhor, nos aproximamos deste difícil equilíbrio, onde imagens ao vivo de três simultâneas apresentações teatrais, em três cidades, via satélite, relacionavam-se com atores reais e imagens gravadas. Nesta lógica, também filmamos para instalações de arte contemporânea, em diversas proporções, como foram os trabalhos conjuntos com a premiada artista belga Marie Jo lafontaine.

Fizemos o megafilme I Love The Word para a abertura da copa de futebol da alemanha, em Frankfurt, exibido nos arranha-céus da cidade transformados em telas, num raio de quatro quilôme-

Icaro Alba e a capa baseada na original de Arthur Bispo do Rosario em um filme-teatro- -conferência.

Icaro Alba e Coral Pastoreaux, coral infantil belga de música erudita, no Brasil.

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tros. Mais intimista, sempre com Marie Jo, fizemos o filme-ins-talação-artística The Ball, na qual recriamos uma sala de baile, com telas envolvendo o público, obra exposta em diversos museus pelo mundo, tendo como sujeito diversas modalidades de danças confluentes: o flamenco, a dança do ventre, o dervish e o tango.

ainda no mesmo objetivo, a peça Opera Canibal, que escrevi e dirigi, foi toda filmada em Bruxelas, editada em Kortrijk em cola-boração direta com a empresa Barco, especialista em telas digitais panorâmicas. Usamos para este trabalho, apresentado durante o Festival d’avignon, cinco telas gigantes que dialogavam entre si. Testando sempre os limites da linguagem cênica, da tradição, do sentimento e da tecnologia, realizamos também o filme-teatro- -conferência abordando a vida e a obra do brasileiro arthur Bispo do rosario, que foi apresentado no espace Senghor em Bruxelas.

recentemente, com o grupo Pastoureaux, coral infantil belga de música erudita, estamos experimentando a utilização de filmes temáticos, com cores e imagens de natureza, distribuídos pela sala em telas cinematográficas durante as apresentações de seus con-certos. Numa viagem pelo Brasil com o coral, por nós organizada, filmamos, em colaboração com a TV Cultura e a rede globo, uma participação especial na homenagem aos meninos de rua

O megafilme I love The Word realizado para a abertura da copa de futebol da Alemanha, em Frankfurt, por Ícaro Alba e Marie Jo Lafontaine.

assassinados na porta da igreja da Candelária, violência mundial-mente conhecida como Chacina da Candelária. esta homenagem uniu uma vez mais Bélgica e Brasil, países que historicamente sempre se encontram.

Sem-TerraJ e a n T i m m e r m a n

Fui atraído para o Brasil pela música, mas o músico que me fascinava na época era norte-americano, estava começando

a tocar saxofone e meu modelo era Stan getz, isso foi em 1982 e eu tinha 25 anos. aproveitei uma filmagem no Peru, em 1987, na qual era técnico de som, para prolongar minha estada sul-a-mericana ao Brasil. eu tinha um contato no Brasil, a rosa Bran-dão, uma carioca que se tornou brasiliense. Seu pai, igualmente folclorista e poeta, foi um dos construtores da nova capital. rosa, cantora lírica, tinha estudado música em Bruxelas, tornou-se mi-nha companheira e, dois anos depois, deu-nos duas filhas mara-vilhosas, Iara e Cecy.

as meninas tinham apenas três meses quando atravessaram o atlântico pela primeira vez. Sempre cuidei para que elas e o irmão mais velho, gabriel, de um primeiro casamento da rosa, pudes-sem explorar suas duas culturas. Íamos para o Brasil a cada dois anos. Como as viagens eram caras e eu queria conhecer o país, sobretudo a amazônia, resolvi “profissionalizá-las”.

em 1991, em Brasília, tive a sorte de encontrar dois grandes es-pecialistas em amazônia, ezequías Heringer Filho, dito Xará, an-tropólogo, e Victor leonardi, historiador da Universidade de Brasí-lia. graças a eles obtive contatos em todas as regiões da amazônia que, em seguida, visitei. Deixamos as meninas com um irmão de rosa e partimos para nossa primeira experiência amazônica.

Visitamos outro irmão de rosa, andré, médico que tinha fu-

gido da ditadura, e que trabalhava “lá onde se precisava de mé-dicos”. Se estabeleceu em São Félix do Xingu, no sul do Pará, e construiu um hospital fora do comum, no meio da amazônia. Foi lá que encontrei, pela primeira vez, indígenas, os Kayapós. anos depois, levaria minhas filhas.

Dois anos mais tarde, penetrei muito mais profundamente na floresta. Fomos a Tabatinga, fronteira entre o Brasil, a Colômbia e o Peru, região onde se explora a madeira preciosa. Foi onde re-digi meu primeiro dossiê de produção de filmes, O Preço da Ma-deira, que tratava do trabalho escravo dos lenhadores. O projeto interessou a um ateliê de produção belga, mas não se chegou a um acordo interno para fazê-lo. Foi talvez o que me salvou a vida, porque o assunto era muito barra pesada.

Nesse meio tempo, recebi uma subvenção europeia para es-crever um projeto cinematográfico em rondônia. O Banco Mun-dial emprestava, pela segunda vez, dinheiro para a região, para “reparar” os desgastes causados pelo primeiro empréstimo, para o asfaltamento da Br-364 entre Cuiabá e Porto Velho. eu tinha intitulado o projeto de On the Road again, e imaginava o filme como um “road-movie” sobre a Br-364.

estava fazendo prospecção para o filme em 1995 quando ocor-reu o massacre de Santa elina, em Corumbiara (rO). Um Coman-do de Forças especiais, com a ajuda de jagunços, tinham expulsa-do, a mão armada, centenas de famílias de camponeses sem-terra

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que estavam ocupando as partes improdutivas de uma fazenda. Fui para Corumbiara com um responsável sindical da CUT.

em rondônia, segundo as regras do Instituto para a Coloniza-ção e a reforma agrária-Incra, não deveriam existir propriedades de mais de 2.000 ha. a Santa elina tinha 20.000 ha. encontran-do as famílias sobreviventes alojadas às centenas nos porões da igreja de Colorado do Oeste, resolvi consagrar o projeto à ques-tão agrária. Um ano depois, em 1996, voltei para filmar. Minha estada duraria três meses. Foi o ano do massacre de eldorado de Carajás, no sul do Pará. Minha equipe, inteiramente brasileira, estava esperando o meu sinal. era fim de junho; deveríamos co-meçar a filmar em agosto.

eu me perguntava se não filmasse no Pará, onde tinha havido o massacre, mas em rondônia eu poderia mostrar aspectos mais variados da reforma agrária. Nem todas as famílias tinham sido inscritas num plano de reforma agrária. as que estavam inscritas precisaram ir para o norte do estado, a mais de 800 km de Co-rumbiara. estavam acampadas, isoladas, esperando a divisão dos lotes. Sem ajuda financeira, teria sido impossível sobreviver até a primeira colheita. Perto de lá havia um grupo ocupando terras improdutivas de um latifúndio composto, em parte, de sobreviven-tes do massacre de 1995. eu poderia mostrar as dificuldades da reforma agrária, que não pode limitar-se à distribuição de terras. Poderia mostrar a luta dos que tentam beneficiar-se dessa reforma fazendo ocupações, e poderia mostrar também a violência das re-lações com as vítimas do massacre.

Fui para Theobroma, perto de Jaru, onde se encontravam fa-mílias que tinham recebido terras. estavam no fim de uma pista traçada na floresta por exploradores de floresta com uma escava-deira para terraplenagem. Todas as passagens naturais de água tinham sido aterradas. esses aterros iam certamente ser levados no início da estação das chuvas, e a pista tornaria-se impraticável. as famílias ficariam, então, isoladas até a estação seca. Foi o que aconteceu, e uma criança faleceu por falta de tratamentos.

eu sabia que chegaria a filmar ações sociais. Foi o caso, por um lado, durante a ocupação de uma fazenda, e, por outro, por

causa da ocupação da sede do Incra em Jaru, com um refém que, afinal, não estava sendo totalmente forçado.

Filmamos tudo isso. apesar de muita prudência, fomos pressio-nados. Uma família citadina de Theobroma foi ameaçada porque nos ajudava. atiraram na direção do técnico de som e de mim, para nos intimidar, em Jaru. No entanto, estávamos alojados na casa de uma amiga, então candidata nas listas do PT! a maior pressão que sentimos foi na sede do Incra: sabíamos que, a qualquer momen-to, uma operação policial podia ocorrer, e que podia ser violenta. eu mandava para fora as fitas magnéticas na medida em que as terminávamos, para colocá-las a salvo. Houve muitas armadilhas, tanto durante a filmagem quanto durante a pós-produção, mas o filme existe e se intitula, simplesmente, Sem-Terra.

agora a rosa e eu estamos separados, as crianças cresceram e viajam sozinhas. Tenho menos razões para voltar ao Brasil, mas uma parte de mim tornou-se brasileira. é indelével – axé Brasil!

após o massacre de Corumbiara, dois sem-terras foram con-denados pela morte de dois policiais durante a ação. Um deles, Claudemir ramos, vive, desde então, na clandestinidade, fugin-do dos jagunços e da justiça. em 10 de agosto de 2011, 16 anos depois do massacre, o Congresso Nacional decretou a anistia para todos os sem-terras incriminados. O pai de Claudemir foi assas-sinado, no mesmo ano, após a denúncia de extração de madeira ilegal em rondônia.

(Tradução Susana Rossberg)

“Sem-Terra”, de Jean Timmerman, filmado em 1996, ano do massacre de Eldorado dos Carajás.

“A aula”, cena de filme de Jean Timmerman, “Sem Terra”.

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Descobertas do Brasil entre o som e a antropologiaN i c o d è m e d e r e n e s s e

Cresci na Bélgica entre pessoas de teatro, com as quais aprendi muito e herdei um insaciável desejo de conhecer e compre-

ender aquilo que desconheço e não compreendo por aí, mundo afora. adolescente, quando comecei a fazer meus próprios expe-rimentos, que incluem experiências de cinema, descobri que re-gistrar sons era uma maneira de explorar o mundo. O som passou então a ocupar o centro dos meus interesses, embora nunca por si só, sem fazer uma ponte com outros domínios.

Não estudei o som, mas antropologia. Ingressei na Universida-de livre de Bruxelas (UlB), cursei dois anos e parei para passar um ano na rússia, onde trabalhei, entre outros, com Catherine Mon-tondo, uma cineasta belgo-americana que fazia filmes em Moscou. Finalmente voltei para a Bélgica e prossegui meus estudos. Foi no final desse período que o Brasil surgiu no meu caminho.

Posso dizer que conheci o Brasil, em grande parte, pelos ou-vidos. em 18 anos, aprendi a encontrar os lugares e as pessoas, e a conhecê-las, pelos sons. Meu itinerário no Brasil começa em recife, Pernambuco. em 1994, eu e minha mulher, alessandra, viemos passar uma temporada junto de sua família com nossa filha recém-nascida. eu tinha 22 anos e estava ainda no último ano de graduação em antropologia na UlB. Pretendia aproveitar a viagem para coletar os dados do meu mémoire de licence, uma monografia obrigatória de conclusão de curso, e tinha levado um gravador DaT para esse fim. andava com ele por todo lugar, na mochila ou a tiracolo.

Dessa época, guardo a gravação de momentos que nunca saí-ram da minha memória: uma cantiga de sapos numa lagoa no-turna do agreste pernambucano, um canavial em fogo e um coco de roda puxado por Seu Sedo, pescador, poeta e tirador de coco, numa praia de Olinda (coco é um ritmo e uma dança da região). À medida que meu português ia melhorando e que eu compreendia o que tinha gravado, a magia do coco, sua poesia e seu ritmo me se-duziram. Decidi que o coco de roda seria o tema do meu mémoire.

Passei a percorrer morros e ladeiras à procura dos puxadores de coco, gravando fartas histórias e cocos. Olinda era, neste as-pecto, na parte popular atrás do farol, um verdadeiro ninho. Vol-tamos para a Bélgica, concluí a monografia e meu orientador, Didier Demolin, um etnomusicólogo e eminente linguista que, bem mais tarde, por coincidência, também veio ao Brasil para ensinar na Universidade de São Paulo (USP), me propôs gravar um disco de coco.

Com o material que eu já possuía, produzi dois programas de rádio para a BrT (Bélgica) e para a VPrO (Holanda) graças aos quais financiamos a viagem. em 1996, com equipamento em-prestado, voltei para o Brasil para gravar o disco com Dona Sel-ma, num terreiro no alto de Olinda. O disco foi lançado em 1997 pela Fonti Musicali, gravadora belga especializada em músicas do mundo.

“Lampião, sonhos de bandido”, de Nicodème de Renesse e Damien Chemin, foi produzido pela produtora Tarantula na Bélgica.

Durante esses anos, do Brasil só conheci o Nordeste. No iní-cio de 1998 voltamos ao Brasil com nossas filhas para trabalhar num filme documentário sobre a cena musical de recife nos anos 1990, de Helder aragão (DJ Dolores) e Sérgio Oliveira. eu devia fazer o som direto, porém as filmagens pararam logo por falta de financiamento. Fiquei rapidamente sem dinheiro e decidi descer para São Paulo, onde fui hospedado por um amigo fotógrafo. Vivi meu período de migrante nordestino e descobri um outro Brasil. Comecei a trabalhar como técnico de som direto em filmes co-merciais, documentários e de ficção, longas e curtas, com andrés Bukowinski, Ugo giorgetti, edgar Navarro e outros.

ao mesmo tempo, passei a captar e fornecer sons para diversas produções. Com o renascimento do cinema brasileiro, alguns edi-tores, na finalização, careciam de sons específicos que não podiam produzir facilmente em estúdio e não encontravam em bancos de sons, pois não existem coletâneas de sons brasileiros, ou mesmo porque envolvem ambientes muito particulares. Tive a chance de chegar exatamente nesse período. Míriam Biderman e, mais tarde, Waldir Xavier me passaram algumas encomendas.

Foi assim que, a partir de 1999, voltei a fazer o que eu mais gostava, isto é, percorrer becos e estradas em busca de sons: um Brasil campestre do século XIX para o filme Memórias Póstumas de Brás Cubas; sons da caatinga para Eu, Tu, Eles; ruas popu-lares no rio de Janeiro dos anos 1920 para Madame Satã etc. Para mim, esses trabalhos eram verdadeiras explorações sonoras do mosaico de camadas históricas e sociológicas que compõem o Brasil; não apenas porque era preciso uma boa noção acústica daquilo que se buscava, mas porque, toda vez, era preciso com-preender a organização sonora do real para encontrar os lugares e os horários adequados.

À medida que os anos iam passando, procurei outras aborda-gens. em Lampião, um documentário que codirigi com Damien

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Chemin em 2005, produzido por Tarantula, na Bélgica, deixei de fazer o som para experimentar uma outra maneira de explorar o mundo, um outro ponto de vista.

aos poucos, comecei a cultivar o desejo de retomar o caminho deixado para trás e voltar para a antropologia. Nas minhas andan-ças, descobri um Brasil indígena que eu desconhecia e, em 2009, entrei na USP com um projeto de mestrado em etnologia indíge-

na que evoluiu para um projeto de doutorado em 2012. Por coin-cidência, minha orientadora, Dominique Tilkin gallois, seguiu um percurso parecido: graduou-se em antropologia na UlB, antes de migrar para o Brasil nos anos 1970, onde prosseguiu com um mestrado e um doutorado na USP, até tornar-se professora nessa universidade. Quanto a mim, a questão de saber de que lado ficar ainda não recebeu uma solução definitiva.

lampião, sonhos de bandidoDa m i e n C h e m i n

Foi durante minha primeira viagem para Pernambuco que fi-quei intrigado pelo personagem. Quis saber mais sobre ele, sa-

ber por que fascinava tantos brasileiros, qual era a parte de lenda e qual a parte de história. Com Nicodème de renesse, antropólogo, técnico de som e diretor, que já vivia no Brasil, resolvemos fazer um documentário para tentar captar o personagem, não do ponto de vista histórico, mas do ponto de vista sociológico.

Foi a dimensão imaginária do personagem que nos interessou particularmente. é, pois, através do encontro com diversas persona-lidades, todas apaixonadas pelo cangaço, que o filme procura fazer um retrato coletivo e subjetivo de lampião. No final, é o sonho de liberdade que ele leva consigo, mais do que a sua história fac tual, que nos interessou, porque ela se refere a aspirações universais.

O filme, produzido principalmente por Joseph rouschop, da produtora Tarantula, de liège, é uma coprodução de três socieda-des francófonas belgas, de um apoio oficial e de uma coprodução flamenga. No Brasil, tivemos a colaboração de uma produtora de São Paulo. O técnico de som foi um belga instalado no Brasil, Ni-colas Hallet, e a edição de som foi feita por uma editora brasileira que vive na Bélgica, Susana rossberg.

O filme é distribuído no Brasil. Foi mostrado no Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo, em festivais de Fortaleza e Salvador e participou de um programa itinerante, sobre o tema do cangaço, em diversas cidades brasileiras. Foi, igualmente, apre-sentado em diversas manifestações e festivais europeus.

Sergipe

Foram encontros feitos durante a filmagem de Lampião, so-nhos de bandido que me deram vontade de voltar para o Brasil, para conhecer melhor a cultura nordestina. eu tinha sido marca-do, particularmente, pelo forró pé-de-serra, tal qual é praticado nos povoados do interior de Sergipe. essa região é pouco conhecida e pouco valorizada, sem dúvida por causa da proximidade dos gi-gantes culturais vizinhos, Bahia e Pernambuco.

Colaborei novamente com Nicolas Hallet e Nicodème de re-nesse para gravar diversos músicos e aboiadores da região. a maio-ria deles era pouco conhecida do público; nós queríamos valorizar

essa cultura musical e poética forte. Felizmente, uma editora de discos parisiense, dirigida por um especialista do acordeão, Philip-pe Krümm, se interessou pelas gravações, e editou em CDs dois volumes chamados Forró Acústico vol. 1 e vol. 2. Os CDs tiveram uma grande difusão internacional, sem dúvida por causa da qua-lidade dos artistas, como também pelo caráter autêntico das gra-vações, feitas nos lugares onde os artistas viviam, o que causou o sucesso inesperado dos discos.

este trabalho apaixonante me convenceu a me instalar em aracaju, onde comecei a trabalhar, entre outros, para a televisão pública local, aperipê TV, para a qual dirigi diversos programas documentários.

Também colaborei com diversas produtoras locais, como di-retor ou diretor de fotografia, sempre continuando meu trabalho de diretor de filmes de ficção para a produtora belga Tarantula.

Uma vez instalado, produzi, a pedido de Philippe Krümm, um novo CD, consagrado inteiramente ao virtuoso sanfoneiro Cobra Verde, um dos artistas mais marcantes do CD Forró Acústico. esse CD, distribuído, como os anteriores, por L’Autre Planète, ocasio-nou, em maio de 2010, uma turnê do grupo Forró de Cobra Verde à Bélgica e à França. Foi, para mim, motivo de grande felicidade o fato de ter criado esse encontro e de ver a excelente recepção que o grupo recebeu do público belga e francês.

“A Pelada”, de Damien Chemin, com os atores Kika Farias, Mariana Serrão e Bruno Pêgo, produtora Tarântula, Bélgica.

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a Pelada

Depois de viver vários anos em aracaju, escrevi um filme ins-pirado em histórias e personagens dessa cidade muito pouco co-nhecida. Trata-se de uma comédia romântica, chamada A Pelada, que conta os desgostos de um jovem casal, de origem modesta, tentando dar uma nova vida ao seu casamento, meio encalhado. Fiz o filme inteiramente em aracaju no início de 2012.

essa obra é o fruto de uma coprodução inédita entre a Bélgica e Sergipe, entre Tarantula e Wg Produções, de Sergipe, com a aju-da de órgãos oficiais e estaduais dos dois países. a equipe técnica

é composta principalmente de atores e técnicos de Sergipe, com a participação de alguns atores mais conhecidos na área nacional, como Tuca andrada, Karen Junqueira, edmilson Barros e luci Pereira. Nos papéis principais, temos Bruno Pêgo e Kika Farias.

Foi, mais uma vez, uma ocasião para unir a Bélgica e o Brasil, pois o diretor de fotografia Marc de Backer e os produtores Joseph rouschop e Michel de Backere estiveram presentes durante a fil-magem no Brasil. a pós-produção inteira foi feita na Bélgica. Mais uma vez, o belga Nicolas Hallet, que mora no Brasil, fez o som, em colaboração com sua esposa, Simone Dourado.

(Tradução Susana Rossberg)

“A Pelada”, de Damien Chemin, com os atores Bruno Pêgo e Tuca Andrada.

Baiano, brasileiro e bruxelloisD i e g o S a n ta n a C l a u d i n o

acho difícil falar sobre a minha relação com a Bélgica sem perder um pouco a imparcialidade que inibe julgamentos

apressados. O momento em que escrevo não é o mesmo que vivi quando cheguei, nem é igual ao que está por vir.

eu e a Bélgica somos um casal que se conhece muito bem e que teve uma bela jornada com pontos bem altos e mergulhos bem baixos. O que nos segura juntos é o respeito que temos um pelo

outro. amor? Não sei, diria que não, ou melhor, que sim. Tenho um amor sem tesão pela Bélgica. Mas sim, por que não amor? ela faz parte de mim e respira comigo. Chego a criticar, mas sempre a defendo. Somos família. e como toda relação familiar, temos lá nossos problemas. Mas, sim, nos amamos.

Nos amamos, mas não morreria por ela. enquanto visse fogo nos seus olhos, lutaria ao seu lado até o fim. e isso é o que creio

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faltar aqui. Fogo, chama, calor, autoconfiança. a Bélgica te in-centiva pela dúvida e não pela confiança cega. e acho que isso se reflete na atitude das pessoas, na integração do país como um todo e na sua arte em geral. a Bélgica precisa se amar mais.

Cheguei à Bélgica por amor e resolvi ficar por teimosia. lar-guei um trabalho em ascensão no Brasil, na prestigiada O2 Fil-mes, onde era editor e assistente de direção, por amor a uma jovem belga que conheci no rio de Janeiro e por amor à aven-tura. Pelo desejo de enfrentar o desconhecido. Pela curiosidade infantil que pulsa dentro de mim e faz coro à minha ode ao “por que não?”. e de “por que não?” em “por que não?”, estou aqui há seis anos.

Às vezes me pergunto como seria a minha vida se não tivesse tomado tal decisão. Mas a certeza de que certamente não seria

Cenas de trabalhos realizados por Diego Santana Claudino na Bélgica.

quem sou acalma essa recorrente dúvida. Na Bélgica aprendi quão pequeno é o mundo, e como não há limite para o que podemos fazer; basta querer. Na Bélgica me assumi artista, me comprometi comigo mesmo e aprendi a apreciar a jornada muito mais que o seu destino. Tomei gosto pelas curvas da estrada, mesmo como o impaciente e inconformado que sou. Hoje eu sou “eu”. e parte desse eu devo à Bélgica. e mais que um diretor de filmes, me con-sidero um artista, e me expresso nos meios que me convêm: foto, desenho, pintura e filme. No momento, flerto com os pincéis e as telas enquanto bailo sobre as teclas que coreografam o que pode algum dia se tornar o roteiro de um longa-metragem. Sou Diego Santana Claudino. Baiano, brasileiro e bruxellois.

link: www.selfishbastards.tumblr.com e www.vimeo.com/dieego

Documentário e mal-entendido: retorno sobre uma primeira filmagem no Brasil

J e r e m y H a m e r s

em 2003, Dorothée luczak, então diretora artística da Bie-nal Internacional de Fotografia e de artes Visuais de liège,

me propôs coproduzir um projeto de filme documentário que eu queria dirigir no Brasil. Naquela época, eu já tinha viajado para a região de goiás a fim de passar algumas semanas com os traba-lhadores rurais sem-terra de lá.

Foi durante esse primeiro périplo brasileiro que tive a oportu-nidade de descobrir um fenômeno que ocuparia uma parte essen-cial do meu projeto documentário chamado A Verdade do Gato (2005): a queima noturna dos campos de cana de açúcar. Cada ano, durante os seis meses da colheita, se produzia um espetáculo interessante: quilômetros de campos queimavam durante a noite. Durante a noite que precede a colheita, coloca-se fogo na cana

que vai ser cortada no dia seguinte, para eliminar as folhas que quase não produzem suco.

Obcecado por esse espetáculo, que eu tinha visto somente de longe durante minha primeira viagem, comecei a preparar a roda-gem de um filme sobre a produção de biocombustível na região de goiás. Naquela época, minha intenção era dupla. Por um lado, eu me interessava por essa produção que, tal era minha esperança, nos permitiria, a longo prazo, libertar-nos da hegemonia das gran-des sociedades petrolíferas. Por outro lado, e após diversas conver-sas com Benoît e Inès rixen, um casal de agrônomos belgas que tinha trabalhado durante anos na região, queria denunciar a con-dição dos cortadores de cana de açúcar, essencialmente trabalha-dores sazonais, que sofriam, de maneira evidente, em condições

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de trabalho catastróficas: eram empregados por um recrutador (chamado “gato”) que tinha um estatuto jurídico totalmente nebu-loso, com um salário proporcional ao metro de cana cortado, sem direitos sociais, com uma deterioração da saúde devido ao trabalho cotidiano num cinzeiro gigante. Uma condição que lembrava, sem ambiguidade, o tratamento infligido aos trabalhadores das minas de carvão imigrados na Bélgica alguns decênios antes.

O projeto estava, pois, marcado por uma contradição que eu achava interessante, e que deveria me permitir escapar ao regis-tro maniqueísta da reportagem televisual clássica. a produção do biocombustível oferecia ao Brasil uma independência financei-ra que achávamos de excelente agouro no cenário do primeiro mandato presidencial de lula e, concomitantemente, a explora-ção da cana de açúcar ocorria em condições sociais e ecológicas amedrontadoras.

No anteprojeto do filme, que nos proporcionou algum finan-ciamento, as coisas eram apresentadas de maneira muito simples. O filme seria composto de imagens da colheita manual e da cre-mação dos campos, ambas espetaculares (penso, hoje, que é o que causa, em parte, o sucesso do filme nos festivais). Naquela época, eu recusava toda Voice Over clássica e toda entrevista, que conside-

rava como recursos da reportagem tradicional, infiéis a uma situa-ção complexa. Contava com o que diriam as pessoas que ia filmar.

No entanto, apesar do aprendizado do português ter consti-tuído uma parte importante da preparação para a filmagem pela equipe inteira, não tínhamos nos preocupado com a relação com as pessoas que íamos encontrar. estava unicamente inquieto com a liberdade que teríamos para filmar os trabalhadores labutando. Porém, chegando lá, todas as portas foram abertas com uma fa-cilidade desconcertante. Tudo podia ser filmado. Nunca tivemos que usar estratagemas, ou sermos discretos, para filmar o trabalho.

Passado nosso primeiro entusiasmo, percebemos que parecia impossível estabelecer qualquer comunicação com os sazonais. Sempre sorridentes, dispostos a repetir um gesto quando julgáva-mos necessário para a filmagem, brincalhões apesar do trabalho extenuante, eles nos davam a impressão de estar interpretando uma opereta num filme que tinha a pretensão de ser uma ópera.

Uma primeira explicação dessa estranha situação nos veio de nosso encontro, no terceiro dia de filmagem, com o diretor da exploração agrícola na qual filmávamos. alguns minutos de con-versa informal foram suficientes para compreender que o homem nos considerava como poderosos meios de retransmissão publi-

Cena de A Verdade do Gato, de 2005, de Jeremy Hamers, sobre a cremação noturna nos campos de cana de açúcar.

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citária vindos de uma europa (onde tinha feito seus estudos) e que fantasiávamos, então, a propósito dos biocombustíveis. antes da nossa chegada, tinha encarregado os contramestres de anun-ciar nossa visita aos cortadores. eu nunca teria imaginado que o peso das categorizações clichês pesaria tanto na nossa relação com os sazonais.

a este primeiro mal-entendido, que nunca conseguimos des-construir totalmente (mesmo em situação de entrevista anônima, a prudência dos trabalhadores era impressionante), juntou-se um segundo problema. Frequentemente, diante da câmera, os traba-lhadores paravam de trabalhar e assumiam uma pose. retrospec-tivamente, essa situação problemática (afinal, estávamos lá para filmar o movimento do trabalho) me parece totalmente interes-sante, na medida em que espelhava minha própria ingenuidade. evidentemente, eu não podia pedir a esses homens que fossem naturais, que agissem como se eu não estivesse lá.

a carga aviltante desse tipo de injunção contraditória e grotes-ca é evidente. Hoje me parece que, adotando um comportamento que eu achava absurdo e inadequado, esses homens responderam à minha intrusão ingênua no seu cotidiano de trabalhadores. até hoje não tenho a certeza de ter podido estabelecer a origem de tal comportamento. No entanto, acompanhando um grupo de cortadores a uma sessão de televisão que encerrava o dia, me pa-receu que o imobilismo que eles ofereciam à câmera, em certas circunstâncias, me lembrava as encenações extremamente petrifi-cadas das telenovelas melodramáticas que consumiam em massa.

Mais tarde, quando o filme foi mostrado no povoado de Car-mo do rio Verde, onde tínhamos filmado, informaram-me que a maioria dos cortadores tinha ficado desapontada com o documen-tário, constatando que nele não acontecia nada. Quase no mesmo momento, leon Cakoff, que eu tinha tido a sorte de encontrar

Jeremy Hamers: “Sabemos que a história do documentário está repleta de tentativas de não levar em conta o abismo que separa a pessoa que filma daquilo que é filmado”.

durante a Mostra de Cinema de São Paulo, mencionava A Verda-de do Gato como um dos filmes imperdíveis da seleção oficial.1 essas duas recepções brasileiras de meu filme sintetizam bem o abismo que minha ingenuidade tinha eliminado mesmo antes do primeiro dia de filmagem.

atualmente penso que a filmagem de A Verdade do Gato no Brasil repousou num conjunto de mal entendidos e de elementos a priori, com os quais um documentarista – certo de suas boas in-tenções – pode se aproximar de um lugar, de uma situação e de uma comunidade que lhes são estrangeiros. Sabemos que a história do documentário está repleta de tentativas de não levar em con-ta o abismo que separa a pessoa que filma daquilo que é filmado.

alguns documentários camuflam esse problema para colocar a matéria filmada unicamente a serviço de um relato. Outros tentam implicar o filmado para fazer um filme a duas, ou mais, vozes, na tradição dos autores que revolucionaram o documentário etno-gráfico a partir dos anos 1950. Mais raros são os que colocam essa relação no centro de sua obra, problematizando-a e tornando-a o assunto do filme, sem jamais perder de vista a causa que defendem. Me parece que a filmagem de A Verdade do Gato deveria ter che-gado a tal problematização. em vez disso, o filme se refugia numa encenação que transforma o cortador numa silhueta, num robô, num escravo sem personalidade, para sublinhar, por falta de coisa melhor, a exploração humana que está na origem de um sistema. Nesse sentido, o filme não trai os trabalhadores da cana de açúcar. Mas ele constitui somente uma primeira etapa no caminho de um tratamento real do que é o encontro entre dois mundos.

(Tradução Susana Rossberg)

Notas1. http://media.terra.com.br/imprime/0,,OI1220750-eI7774,00.html

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em 1992, o tocador de harmônica belga Toots Thielemans gra-vou The Brasil Project, álbum que descobri, com alegria, quan-

do voltei para a Bélgica, após um longo périplo pelo Brasil. este encontro magnífico entre um artista belga e uma irmandade de músicos brasileiros se tornaria o símbolo da minha busca artística.

em 1992 eu acabava de completar 18 anos. O Brasil tinha co-locado um violão nas minhas mãos e dito “vai, canarinho belga, canta!” eu tinha deixado rochefort, minha cidadezinha natal bel-ga de cinco mil habitantes, sem olhar para trás, para me encontrar num palco em São Paulo, no Teatro Bela Vista, onde descobriria as bases da minha criação artística atual.

Fazia parte de uma companhia de teatro brasileira onde apren-dia, de improviso, o violão, o canto, a interpretação do ator e a ce-nografia. Uma formidável escola! Com essa companhia aprendi a nadar me jogando na água, encarando a dura realidade da cultura alternativa no meio de uma megalópole, me virando diariamente, sem subsídios do governo, com somente fé e coragem.

eu fazia fotos, e a fotografia me permitiu afrontar cara a cara “a dura poesia concreta” de São Paulo. graças à imagem foto-gráfica, tentava resolver o enigma que essa cidade me colocava: “Decifra-me, ou devoro-te!” Percorria as ruas do Bexiga, onde fo-tografava tudo o que não se parecia comigo: tudo me parecia tão estranho... Felizmente, já havia para mim a canção Sampa, de Caetano Veloso, a minha mais completa tradução: “Alguma coi-sa acontece no meu coração que só quando cruza a Ipiranga com a avenida São João...”

Foi durante essa experiência fundadora na escola da vida que encontrei meus irmãos e irmãs de coração, minha família brasilei-

ra, que continuam até hoje a alimentar minha inspiração. Flavio Maciel de Souza, arlene rocha, emilia rocha, Simone lima, Vanderlan Marques e Paulinho da Cuíca, que voltaram comigo para a Bélgica para apresentar El Retablillo de Don Cristobal, uma farsa de garcia lorca, no Festival do riso de rochefort, em 1994. após algumas deambulações na espanha, a companhia se estabe-leceu, finalmente, em Bruxelas, onde seus projetos não pararam de se multiplicar, e de raiar pela europa inteira.

Por minha parte, comecei a estudar cinema na École de Re-cherche Graphique (erg, Bélgica) e no Institut National Supé-rieur des Arts du Spectacle (INSaS, Bélgica), mas compreendi, rapidamente, que ia me sentir constrangido entre os muros de uma escola. Por isso, preferi fundar minha própria produtora de filmes e música: Grimoire asbl. em 1996, compus minhas primei-ras canções e dirigi meus primeiros curtas-metragens, ainda muito influenciados pela cultura brasileira. “Os Fogos do Céu”, conto pastoral, entre ficção e documentário, lançava uma ponte entre os fogos de São João no Brasil e a queima das corcundas de palha, durante o carnaval no Borinage, na Bélgica.

em 1998, voltei ao Brasil com minha esposa, para fazer uma prospecção fotográfica e sonora dos últimos mamulengueiros do estado de Pernambuco. Viajantes sedentários, tomamos o tempo que nos parecia necessário para encontrar os habitantes e viver com eles no ritmo da terra e da água estagnada. Não chovia no Sítio do açude grande fazia dois anos. No entanto, torrentes de ondas surdas tinham-se abatido sobre as terras áridas do Nor-deste, trazendo o risco de afogar, pouco a pouco, as palavras de seus habitantes.

“Primeira vez que eu ouvi Bluesette, tinha eu dezessete, ah foi bom, meu coração ficou feliz...”*

r e y n a l d H a l l o y

Acima, esquerda: Iniciação de meu irmão Arnaud Halloy, antropólogo, num quarto de santo de um candomblé de Recife, registrado no documentário “Iyawo” (2004), consumido por um incêncio. Experiência inédita de “antropoesia”. Acima, direita: Reynald Halloy.

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a chegada da eletricidade nesse vilarejo isolado havia, igual-mente, permitido a chegada da televisão. Zé lopes, mamulenguei-ro em glória do goita, nos falava de sua dificuldade para transmi-tir sua arte à jovem geração, que preferia os jogos televisuais aos jogos de rua. estelita, artesã que criava flores cortando garrafas de Coca-Cola, sonhava também em comprar esse movelzinho lumi-noso para ocupar suas noites. Severino sonhava em construir, para sua esposa, uma casa de tijolo com uma cozinha equipada, como nas telenovelas. ele morava numa casa de taipa, feita pelas suas mãos, com terra que tinha achado sob seus pés.

Nossa prospecção fotográfica e sonora se tornou um documen-tário, “Ondas Surdas”, em torno da influência devastadora das mídias em meio rural. Depois de ter apresentado o filme no Bilan du film ethnographique, de Jean rouch, eu quis voltar ao vilarejo para mostrá-lo aos habitantes – na sua nova televisão. Talvez tivesse sido uma maneira de despertar o olhar crítico deles. Infelizmen-te, a aldeia tinha desaparecido. Os habitantes tinham ido viver na cidade e suas casas tinham sido engolidas novamente pela terra, como se nada tivesse, jamais, existido. Sem saber, tínhamos feito um filme de arquivo sobre os últimos representantes de 300 anos de tradição oral em terras da cultura do açúcar.

Severino na sua casa de barro: um filme de arquivo sobre os últimos representantes de 300 anos de tradição oral em terras da cultura do açúcar. “Ondas Surdas”, 2000. Estelita e foto do Zé Mudo, cena de “Ondas Surdas”, 2000, de Reynald Halloy.

em seguida filmei um documentário do qual não me restou nem um rastro. em 2005 “Iyawo” desapareceu num incêndio, junto com meu apartamento, em Bruxelas. era consagrado à ini-ciação de meu irmão arnaud, antropólogo, num candomblé de recife. Filmado na intimidade do culto dos orixás, esse filme teria sido pioneiro na história do cinema etnográfico, uma experiência inédita de “antropoesia”.

O grande roteirista desse filme era Ifá, o oráculo que, através do jogo de búzios, autorizaria, ou não, a filmagem das sequências rituais. Meu irmão antropólogo, seu pai de santo e eu ficamos sur-presos, pois o oráculo nos abria todas as portas, até a do Quarto do Santo, onde nenhuma câmera nunca tinha penetrado. O segredo do culto talvez não devesse ser revelado; o mistério devia, e deve, provavelmente permanecer inteiro!

O Brasil foi o berço da minha inspiração musical e cinema-tográfica, a terra onde nasci artista, entre encanto e desencanto. (Músicas, filmes e fotografias na internet: www.reynaldhalloy.be)

(Tradução Susana Rossberg)

Notas* extrato de “Bluesette” de Toots Thielemans, The Brasil Project, Private Music, 1992.

O Brasil, terra de energia e de cinemaTh i e r r y M i c h e l

O Brasil foi primeiro, nos anos 1970, na Bélgica, uma extraor-dinária mobilização do que hoje se chama a sociedade ci-

vil, para manifestar contra uma grande feira comercial que estava havendo em Bruxelas, e que se chamava Brazil export. Fazíamos questão, nesses tempos longínquos, no qual o fundo do ar era vermelho, de denunciar a ditadura dos generais no Brasil e as re-lações estreitas que ela tinha com numerosos poderes ocidentais,

que negavam as aspirações do povo brasileiro à democracia, assim como os direitos humanos elementares.

Conscientemente, eu participava, no início dos meus vinte anos, e levado pelos entusiasmos militantes da época, destas ma-nifestações de solidariedade com um povo que pouco conhecia, exceto pelo cinema e a lembrança de um dos raros filmes que fa-zem com que um dia alguém decida de tornar-se cineasta: Orfeu

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negro, visto quando eu era adolescente, e do qual a música con-tinuava a me trotar na cabeça. O filme falava, evidentemente, de amor, tendo como fundo o rio, as favelas e o carnaval.

essa grande manifestação, Brazil export, me levou, igualmen-te, à Cinemateca de Bruxelas, onde descobri, com avidez, os fil-mes de glauber rocha, Carlos Diegues, ruy guerra e Nelson Pereira dos Santos, todos inspirados no cinema social neorrealista italiano e na liberdade de tom da “nouvelle vague” francesa. Dois filmes me impressionaram particularmente: Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em transe.

Foi também o que me orientou, alguns anos depois, a ler um escritor belga, além do mais de liège, coroado com um prestigio-so prêmio literário, o Prêmio renaudot, por seu livro L’herbe à brûler. O livro falava da Bélgica profunda, aquela que eu conhecia, aquela que fazia parte da minha identidade, a Bélgica das contes-tações políticas, aquela do conflito linguístico flamengo e valão, aquela da divisão da Universidade de louvain, na época leuven, em duas universidades – enfim, o pão de cada dia deste pequeno país sujeito à guerras étnicas de baixa intensidade. Mas o livro fa-lava, igualmente, de um envolvimento num país dito do terceiro

mundo, do envolvimento, no Brasil, de um jovem belga que partiu com um ideal religioso, mas sobretudo social, e que, no Brasil, ia se imergir na luta contra a ditadura, ao ponto de arriscar sua vida, de ser preso, torturado, expulso. Foi um dos poucos livros que me abalou e, num dado momento da minha carreira, eu quis fazer dele uma obra de ficção cinematográfica. Me baseando nesse li-vro, parti para o Brasil pela primeira vez.

Meu desejo era preparar essa grande ficção, essa adaptação do romance de Conrad Detrez. Mas, como se tratava de uma obra ficcional, igualmente muito autobiográfica, me pus, desde que cheguei no rio, a buscar as pessoas reais sobre as quais o romance nos contava a história, a resistência, a oposição política, a coragem, a abnegação. Foi assim que pude encontrar vários companheiros e camaradas de Conrad Detrez, que haviam compartilhado sua luta e os sofrimentos da repressão. Foram eles que me fizeram desco-brir o rio profundo, o das favelas, das prostitutas, das lutas polí-ticas, da emergência do que se tornaria o grande partido político no poder, o Partido dos Trabalhadores; mas igualmente o Brasil dos grupos de traficantes de drogas que reinavam sobre os bairros pobres, das prostitutas organizadas em sindicatos, dos padres bra-

Cena do filme “Gosses de Rio”, de Thierry Michel.

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sileiros missionários no seu próprio país, no coração das zonas e dos bairros mais violentos da cidade, das escolas de samba; e essa cultura brasileira feita de energia, de criatividade, de solidarieda-de profunda, sobretudo nas classes populares, do sentido da festa, e de uma liberdade da qual compreendi melhor como ela pôde embriagar o jovem Conrad Detrez, que tinha deixado as ordens religiosas para afirmar sua revolta e sua homossexualidade.

Nunca fiz o filme de ficção para o qual partira ao Brasil, mas trouxe de volta, nas minhas malas, vários projetos documentários que me permitiriam imergir no mais profundo da vida brasileira, e de ser um cronista internacional dela. Fiz dois filmes: A fleur de terre, focado sobretudo na vida cotidiana da favela Mangueira, cuja escola de samba venceu diversas vezes o desfile do carnaval. Trouxe, igualmente, um segundo filme, feito quase sem querer, Gosses de Rio, que teve uma fabulosa carreira internacional, di-vulgado por quase 30 televisões no mundo, e que contava a vida de um grupo de crianças de rua do bairro da lapa, no âmago do rio.

Inicialmente, filmando as crianças de rua, eu somente queria mostrar, no filme sobre as favelas, que também havia os excluídos da miséria, os mais miseráveis dentre os pobres, essas crianças re-jeitadas dos bairros populares e das favelas para ir sobreviver, por seus próprios meios, nos centros das cidades. Durante a edição percebemos que essa parte inteira da filmagem de A fleur de terre poderia fazer um filme em si, porque as crianças exalavam a ver-dade, a vida, o entusiasmo, a energia mas, igualmente, carregavam consigo um destino trágico.

Tive outros projetos no Brasil, seja o retrato de Joãozinho Trin-ta, um dos mais prestigiosos mestres de carnaval, ou o retrato de padres missionários brasileiros empenhados, no Pará, pela causa dos trabalhadores rurais sem-terra, expulsos pelos grandes proprie-tários latifundiários. Também desenvolvi um retrato do conflito no

seio da igreja católica, entre os defensores da Teologia da liber-tação, na linha de Monsenhor Dom Hélder Câmara, arcebispo de recife, engajado ao lado dos mais pobres, e da igreja oficial, decidida a combater, sob ordens do Papa, esses padres turbulen-tos, socialmente engajados, que batalhavam sem dó contra a ins-tituição de uma igreja próxima demais do poder e das oligarquias.

esses projetos, e muitos outros, nunca os realizei – assim é o destino. Voltando do rio, de Salvador, de recife, de Belém, parti para o Congo/Zaire, onde deviam ocorrer eventos excepcionais devido ao fim do reinado do Marechal Presidente Fundador guia Supremo Mobutu Sese Seko, que ia perder o poder, e do qual eu queria filmar o tombo. Mas o ditador não caiu e fui embarcado na história tumultuosa desse país, do qual sou hoje, e há mais de vinte anos, uma testemunha e um cronista cinematográfico privilegiado.

No entanto, o Brasil permanece ancorado profundamente no meu coração, meu espírito, minha cultura, minha maneira de ser, de ver a vida. revejo regularmente Israel Tavares, um dos diretores da Mangueira, emigrado na Suíça há muitos anos. O Brasil con-tinua, continuará sendo um país do qual me sinto próximo, um país e um povo cúmplice e amigo, onde espero, num dia futuro, imergir novamente, com a câmera em punho.

(Tradução Susana Rossberg)

Cena do filme “A fleur de terre”, de Thierry Michel.

Thierry Michel filmando “Gosses de Rio”.

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Foram quase cinco anos de universidade e trabalho em em-presas de engenharia. Não aguentava mais as integrais e as

derivadas, as máquinas e seus protocolos, as redes e seus proces-sos repetitivos. Queria o humano, o palpável, as histórias, as ima-gens invisíveis neste mundo em que me havia colocado. Percebia mais claramente que não seria esta profissão que iria exercer no futuro e que Porto alegre, rio grande do Sul, estava ficando pequena demais.

estamos em 1997, “águas de março fechando o verão é pro-messa de vida no teu coração”. embalado por uma carioca que havia conhecido em um encontro de capoeira em São Paulo, jun-to com a vontade de retornar à minha cidade natal, decido minha mudança para o rio de Janeiro, cidade dos contrastes, minha terra, Morro do estácio, Santa Teresa, onde aterriso depois de 18 anos. Tinha cinco anos quando partimos para Porto alegre.

Trabalho como técnico em Telecomunicações na empresa Victory. Considerava este emprego temporário, pois estava à pro-cura do que queria fazer – talvez estudar Cinema. Conversando com amigos, decido fazer um curso de vídeo no Senac, durante dois meses, todas as noites. Trabalhamos do VHS ao Betacam, edi-tamos em mesas de edição linear etc. O professor superaplicado percebe meu interesse e, ao terminar o curso, me indica para fazer uma formação de assistente de câmera 16 mm e 35 mm, minis-trado por Cesar elias, na Fundição Progresso, no centro do rio.

Termino dois anos mais tarde, depois de ter assistido ao curso de Cinema na UFF (Universidade Federal Fluminense) como aluno ouvinte e ter seguido os cursos de assistente de câmera e de diretor de fotografia na Fundição Progresso e no Templo glau-ber. Continuo trabalhando com alguns fotógrafos que conheci

nos documentários “além Mar” e “Música do Brasil”, dos quais participei como assistente de câmera e assistente de produção.

Ingresso num curso de assistente de Direção I e II, ministrado pelo mestre Jorge Monclair, no Instituto Templo glauber, em Bo-tafogo. No final dos estudos, escolhemos a peça de Plínio Marcos, “O abajur lilás”, e a adaptamos para o cinema. Cada aluno dirige duas sequências do filme de 30 minutos, com atores profissionais e todo o trabalho de a até Z. Depois disso escrevo, produzo, filmo e dirijo alguns curtas-metragens e documentários com um grande amigo e cineasta, rodrigo Infante.

Minha ida à Bélgica deu-se por causa de uma amiga do rio que fazia doutorado em antropologia na UFF e que estava de férias em liège. a ideia era passar três meses visitando amigos espalhados pelo continente europeu, e liège fazia parte do ro-teiro. Depois de ter visitado Marselha, gênova, roma, Milão e Paris, decidi passar o final do meu visto em terras belgas. Bruxelas me impressionou com suas línguas e suas cores diferentes. Fiquei curioso e interessado em falar melhor a língua; comecei um curso de francês na VUB (Universidade livre de Bruxelas).

em setembro de 2004, na embaixada do Brasil, descubro que existe um encontro da comunidade brasileira todas as quintas-fei-ras. Fico conhecendo pouco a pouco a comunidade e os artistas residentes, entre eles Sidney Tendler, Susana rossberg, Inêz Olu-dê e outros. através desta nova rede, sou contratado para organizar o primeiro festival Cine Brasil, em 2005, no Cinema Aventure.

De visita ao rio de Janeiro, no outono de 2005, juntamente com um amigo videasta napolitano, gigi Mette, criamos a Não Tem Zoom Autoproduções, a NTZ. a ideia motriz deste coletivo é estar próximo das situações mais interiores e tão perto quanto

Mover-se com a câmera, mudar o ponto de vistaH e r o n Fe r r e i r a

Heron Ferreira diante do Museum of Modern Art. Cartaz de “Esse pequeno vislumbre”, de Heron Ferreira.

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possível da realidade, sem a necessidade de lidar com zoom re-moto. a realidade é mais “real” quando estamos próximos dela.

Nosso primeiro filme juntos aconteceu em junho de 2006. gigi veio me visitar em Francorchamps, no sul da Bélgica, per-to de Verviers, onde ocorrem as corridas de automóvel. era um dia ensolarado, o segundo dia do verão. estava levantando uma graninha extra, trabalhando como garçom. O restaurante tinha um belo lago redondo no centro. estava quase na hora de abrir o serviço do jantar quando um cozinheiro me pede para ajudá-lo. era para preparar um esquentador de pratos, no qual um gel-com-bustível era utilizado para manter a comida quente. Coloquei a quantidade a olho e tentei acender e nada. O cozinheiro me disse que era necessário colocar mais gel no copo para que o gel-com-bustível permanecesse durante todo o jantar. Sinto um frio que me atravessa, mas sigo suas ordens. Quando viro o galão de três litros a flama sobe e explode no meu rosto. Só tenho o reflexo de levantar a cabeça e de me jogar no lago. a partir de lá, muita dor, o fim do verão, e o nascimento de um filme sobre meu acidente, Le Même Chapeau Que Toi (2007), Prêmio especial do Juri no Festival CinesquemaNovo 2007.

anoto no cartaz do filme: “Vítima da explosão de um esquen-tador de pratos, Heron Ferreira é queimado em segundo e tercei-ro graus no rosto, pescoço e mãos. Para não cair no desespero e em depressão, decide filmar o que aconteceu com ele. as trocas de curativos e os cuidados diários, um encontro nos corredores do hospital e sua recuperação vão ajudar a recuperar a esperan-ça e a confiança.”

O pequeno elias e seu pai, o incentivo da doutora anne Pier-lot e de sua equipe, o apoio da família e o trabalho conjunto com gigi Mette na câmera e na edição foram fundamentais na reali-zação deste filme.

em setembro de 2006, ingresso na Académie de Dessin et Arts Visuels de Molenbeek Saint-Jean, Bruxelas, em Videografia, onde estudo durante dois anos. O interessante desta escola é que você é quase forçado a ter o seu próprio projeto, a descobrir o seu olhar sobre o mundo. O singular dentro do plural. aprendi muito, tive cursos com Thierry Zeno sobre crítica, e com Jean Timmerman sobre a importância do som.

em junho de 2007 conheço Jean-Pierre e seus companhei-ros. eles vivem em autogestão nas bordas do Canal Saint-Mar-tin, na décima circunscrição administrativa de Paris, desde 2006. exigem a garantia dos direitos fundamentais, o monitoramento da saúde em todos os acampamentos de Paris e a existência de um acampamento permanente, assim como o direito de viver de uma forma diferente. após o encontro com Marianne Col nasce um fragmento do cotidiano deste acampamento no coração de Paris, Sans Doute Fous (Sem Dúvida loucos), em 2007. Um mês após as filmagens eles foram despejados e nunca mais tivemos notícias de Jean-Pierre.

em fevereiro de 2008, Este pequeno vislumbre dos Balcãs de-corre de um projeto comum, e de um movimento composto por muitos olhos, mãos e vozes. Tudo começa e termina nas margens do Danúbio, com o encontro de três estrangeiros durante uma

noite de embriaguez: gigi Mette, napolitano, Heron Ferreira, brasileiro, e Nikola Buric, servo-bósnio. Naquela noite nasce um curta-metragem que conta a história de um menino da Sérvia, na verdade a história de muitos jovens sérvios. O filme rodou o mundo e foi premiado em 2010, em Belgrado. após o festival, foi guardado na videoteca nacional de Belgrado para lembrar que a Sérvia esteve um dia fora do espaço Shengen (aderiu em 2009).

em fevereiro de 2009, fui convidado pela jornalista belga Ma-rie-Martine Buckens para acompanhá-la na pesquisa para seu do-cumentário, Sementes, na amazônia. em Manaus, entrevistamos escritores, responsáveis ambientais, artistas e ribeirinhos. Seu fil-me questiona a relação do homem com a natureza e as reservas ambientais, das quais o homem que ali vive deve se retirar para preservar a natureza.

No mesmo ano, em Paris, entrevistamos Franz Krajberg, que nos falou da sua fuga do ser humano, da guerra e de seu re-nasci-mento quando conheceu o Brasil e a floresta. Foi emocionante.

em meados de março de 2010, fui convidado pela associação Vision e por ZinTV para fazer um filme sobre um grupo de jovens de Bruxelas, de origem marroquina, que partiriam para Quebec para aprender teatro e improvisação. através dessa viagem eles descobrem um país, uma cultura e aprendem a arte do entreteni-mento. além da improvisação e, sobretudo, da troca, a comunica-ção entre os jovens está no centro do projeto. O filme, rodado em Bruxelas, Montreal e Nova York, se chama Au Coin de Ma Rue (Na esquina da Minha rua).

Nosso coletivo de autoproduções audiovisuais, Não Tem Zoom, procura contar fragmentos da realidade. O desejo de experimen-tar, aprender, participar e criar comparações tem muito a ver com a capacidade de mudar seu ponto de vista: o mesmo objeto, even-to, pessoa, pode-se ver de uma maneira diferente, dependendo dos óculos que usamos e da perspectiva em que estamos. é preciso se aproximar ou se afastar, se inclinar ou dar alguns passos para ver o mesmo fenômeno de maneiras diferentes e entender sua com-plexidade. afinal, a chave é uma questão de atitude: a gente pode se mover com a câmera, mas não adiantará nada se não se é capaz de mudar seu ponto de vista, dentro de si.

Cartaz de “Le meme chapeau que toi”, de Heron Ferreira.

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O filme Nanook of the North, de 1922, descreve a vida quoti-diana de Nanook e de sua família Inuit, no Polo Norte cana-

dense. apesar de algumas sequências terem sido encenadas, foi o primeiro longa-metragem etnográfico digno desse nome. Durante os decênios seguintes, muitos documentários magníficos e valiosos foram feitos sobre povos do mundo. Na maioria eram documentos isolados, produzidos por cineastas independentes.

O canal britânico Granada Television escolheu outra opção quando, em 1970, produziu uma verdadeira série de documentá-rios sobre sociedades tribais. Para cada episódio, um cineasta de Disappearing World (1970-1993) trabalhava em conjunto com um antropólogo especializado. a série conheceu um sucesso inespera-do, de modo que a BBC resolveu lançar, igualmente, sua série, Un-der the Sun (1989-2002), que se consistiu de mais de 80 episódios.

graças ao sucesso das duas séries britânicas, nos anos 1980 e 1990 muitos documentários etnográficos foram difundidos, nos melhores horários, em muitas televisões europeias e americanas. Nunca antes culturas diferentes haviam obtido tanta atenção nos países ocidentais. editoras aproveitaram essa tendência para pu-blicar magníficos livros de fotografias, nos quais um povo era, a cada vez, posto em evidência.

Mas essa atenção foi passageira e hoje em dia documentários sobre povos indígenas são mostrados raramente nas televisões eu-ropeias e americanas. O papel desses povos parece servir agora sobretudo como cenário das séries ditas “de realidade”, nas quais brancos, de preferência totalmente despreparados, são jogados no meio de uma suposta sociedade “primitiva”, e gradualmente tor-nam-se membros da tribo.

Isso não exclui, evidentemente, que ainda sejam feitos docu-mentários etnográficos esplêndidos. Muito pelo contrário, como se vê pelo sucesso dos festivais etnográficos internacionais organi-zados anualmente. Característico, nas produções recentes, é o fato de que as populações filmadas participam ativamente da decisão do conteúdo dos filmes.

Foi na série Disappearing World que, em 1987, o primeiro do-cumentário sobre os índios Kayapó, do Brasil Central, viu a luz. eu mesmo tinha feito uma pesquisa antropológica entre os Kayapó entre 1974 e 1981. Teria gostado de filmar durante essas viagens, mas era praticamente impossível, porque não dispunha dos meios financeiros para comprar a custosa aparelhagem e também por-que, naquela época, filmar não era tão fácil quanto agora. ainda se trabalhava com grandes câmeras, colocadas em pesados tripés, e o som tinha de ser gravado com outro aparelho. era a época das bobinas de filme em 8 mm e 16 mm, grandes e de manejo complicado. Também era extremamente difícil conservá-las em circunstâncias tropicais. a época digital ainda era uma ficção, e de estabilizadores de imagem, DVD ou HD, ainda não se tinha ouvido falar. Visto que eu sempre viajava sozinho nessas regiões

de difícil acesso, percebia que a pesquisa antropológica não com-binava bem com filmagens.

Durante o período de 1974 a 1981 permaneci, ao todo, 37 me-ses com os Kayapó. Trabalhava numa aldeia onde uma só pessoa falava um pouco de português, de modo que fui, literalmente, obrigado a aprender a linguagem indígena. Foi um aprendizado lento, mas a necessidade de comunicar continuamente me apro-ximou muito das pessoas. Os laços com uma certa família torna-ram-se mais fortes do que com as outras; depois de mais de um ano de pesquisa de campo me deram alguns nomes indígenas e fui, lentamente, adotado pela família. Os direitos assim adquiridos eram, evidentemente, ligados a obrigações: esperava-se, sobretudo, uma contribuição na área econômica e ritual.

Passaram-se muitos anos antes que eu conseguisse atingir mi-nha ambição de filmar os Kayapó. Foi em 1989, quando mais de 600 Kayapó juntaram-se na cidade de altamira para protestar con-tra a construção de uma grande barragem na região. Com lode Cafmeyer, um cineasta independente belga, produzi então The Green Puzzle of Altamira, filme que foi indicado ao festival Mar-garet Mead, em Nova York, em 1993.

Depois ainda contribui com diversos programas de televisão, tais como o relatório da viagem aos Kayapó de Vera Dua, ministro flamengo do Meio ambiente, e cinco documentários de longa- -metragem, dos quais o foco central era sempre um ritual Kayapó diferente. essa escolha era consciente, porque os rituais Kayapó são apresentações impressionantes, durante as quais os dançarinos aparecem com pinturas corporais diferentes e complexas, assim como uma série de adornos, inclusive imponentes cocares.

Filmando nas aldeias Kayapóg u s ta a f Ve r s w i j v e r

Durante o ritual kuarup, os Mehinako enfeitam o tronco que representa o Rei Leopoldo III da Bélgica, Aldeia Utawana, Parque Indígena do Xingu, Gustaaf Verswijver.

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De todas as filmagens das quais participei, duas merecem menção especial. Trata-se do longa-metragem The Feathers from the Sky (2001), que produzi com lode Cafmeyer e a produtora ITP, de Bruxelas; e de certas sequências do programa de interesse humano Napels Zien (2002), da produtora Woestijnvis, no qual se segue algumas pessoas flamengas que empreendem uma via-gem que vai mudar suas vidas. Nesses filmes igualmente destaca-vam-se os rituais Kayapó, mas o excepcional foi que meus filhos foram celebrados durante esses rituais. atendendo a um pedido dos Kayapó, eu tinha dado aos meus dois filhos nomes Kayapó: para Kyra ‘Nhàktu’, e para Filip ‘Bepgogoti’. Segundo a tradição kayapó, minha esposa, Martine, e eu deveríamos organizar uma cerimônia de nomeação antes das crianças atingirem a idade de, mais ou menos, 12 anos. a maioria dos grandes rituais kayapó são cerimônias de nomeação que, de certa maneira, podem ser con-sideradas festas de batismo. Os Kayapó diferenciam diversas cate-gorias de nomes pessoais que são ligados a cerimônias específicas.

Para Martine e para mim, isto resultou que tivemos de patro-cinar duas festas: a “festa das mulheres pintadas” para nossa filha e a “festa da onça” para nosso filho. Tudo isso era orquestrado e decidido pela minha família Kayapó adotiva.

Cerimônias de nomeação são grandes eventos, e os diversos rituais ocorrem durante várias semanas, às vezes meses. Para cada uma das duas festas me dirigi para uma aldeia Kayapó com mi-nha família, durante algumas semanas, a fim de acompanhar a celebração das crianças. aconteceram em junho e julho de 1997 e em julho e agosto de 2002.

Nosso patrocínio subentendia o estabelecimento de um longo laço econômico com as comunidades que organizavam as festas, como também com uma série de pessoas que preenchiam certos papéis durante os rituais. atualmente, 15 anos depois, o processo continua em andamento, e os Kayapó ainda exigem, regularmen-te, compensações de Martine e de mim.

Honrar crianças brancas, num ritual indígena, ocorre muito raramente, porque significa que a sociedade indígena investe nas crianças, dando-lhes, assim, seu próprio lugar, dentro da rede da sociedade. Trata-se de uma avançada forma de adoção.

Desse ponto de vista, as imagens que filmamos durante as celebrações de meus filhos são exclusivas. Mesmo assim, foram pouco difundidas, de maneira que esses fatos passaram pratica-mente sem serem notados. Talvez isso esteja relacionado com a falta de ostentação belga; nós, os belgas, somos demasiadamente modestos, e não ousamos mostrar devidamente as nossas reali-zações. Vivenciei isso novamente, em agosto de 2012, quando os índios Mehinako, do Parque Indígena do Xingu, organizaram uma homenagem muito especial para honrar a memória do rei leopoldo III, da Bélgica, no grande ritual chamado kuarup. O so-berano havia visitado o território em 1964 e tinha tido um papel importante na história daquele Parque Nacional, que mais tarde se tornou um ícone brasileiro, em termos de respeito às culturas originais do país.

Somente seis brasileiros tinham sido homenageados da mesma maneira pelos índios do Parque do Xingu; o rei leopoldo III fora a primeira pessoa não brasileira incluída na seleta lista de brancos assim honrados. Quando se honra um brasileiro dessa maneira, o fato é difundido, detalhadamente, na mídia nacional. No entanto, no caso do rei leopoldo III, tudo se desenrolou serenamente, sem jornalistas ou câmeras de televisão. assim, o fato não foi destacado e passou despercebido.

as imagens que filmamos durante as celebrações de meus fi-lhos podem não ser conhecidas nos países ocidentais, mas elas têm um sucesso enorme entre os Kayapó. São os documentários que eles mais assistem nas aldeias. esse sucesso tem a ver com o fato que ambos foram filmados em um momento no qual, segundo os Kayapó, as tradições ainda eram seguidas de maneira bastante es-trita, justo antes de uma série de profundas mudanças. aos olhos dos Kayapó, essas imagens são o último testemunho de “como era antigamente”, o que provoca certa nostalgia.

(Tradução Susana Rossberg)

Martine sentada ao lado de Kyra ‘Nhàktu’ e Filip ‘Bepgogoti’ durante a festa das ‘mulheres pintadas’, Aldeia Pukanu (Kayapó), 1997, Gustaaf Verswijver.

O fascínio pelo Nordeste N i c o l a s H a l l e t

Quando estudava na Bélgica, eu morava numa república estu-dantil de um projeto humanitário da ONg OXFaM, organi-

zação que trabalha com os países do Sul numa relação de comér-

cio justo (fair trade) com pequenas comunidades, na Universidade de louvain-la-Neuve, onde estudei geografia e Sociologia. Nessa república estudantil havia gente do mundo inteiro. Um dia convi-

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c i n e m a a t u a l

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dei um amigo brasileiro, Paulinho lupifieri, para almoçar na casa de meus pais, uma casa velha e bagunçada no interior da Bélgica.

ele ficou impressionado com a quantidade de objetos do Brasil que havia lá: quadro do Pão de açúcar, Santo antônio de madeira, boneca negra da Bahia... esses objetos não haviam me chamado a atenção antes. Foi quando minha mãe esclareceu a relação da família com o Brasil. Minha bisavó, augusta leclercq, havia imi-grado da américa do Sul em 1910. ela nasceu em 1888 na provín-cia do Hainaut. Depois da adolescência mudou-se para Bruxelas, onde era modiste, fabricava chapéus e participava de um grupo de teatro, La Compagnie Du Bois Sacré. Frequentava a boemia de Bruxelas, onde começou a cantar acompanhada de um pianista. Numa relação com um homem da burguesia teve um filho, meu avô, Jean lebrun leclercq. Como ele não assumiu a relação, ela deixou a criança sob a guarda da avó materna e pegou um navio para a américa latina, somente com a roupa do corpo.

No Brasil, começou uma nova vida como cantora fazendo tur-nês de Belém do Pará a Buenos aires, na argentina, sob o nome artístico de Irene De Nangy. Quando a Primeira guerra Mundial começou, ela foi buscar seu filho e se instalaram no rio de Janeiro. lá, ela construiu o Hotel Bélgica na rua das laranjeiras, e com

ele a riqueza chegou. Nunca se casou, era uma mulher indepen-dente já no início do século XX.

Voltaram para a Bélgica no final dos anos 1920. ela transfor-mara todos os seus bens em diamante e mandara costurar uma cinta para sair do país com essa fortuna clandestinamente, pois, nesse período, o Brasil não permitia a saída de valores. assim que chegou à Bélgica, comprou três casarões em Bruxelas.

Morreu em 1942, provavelmente de um câncer, e meu avô foi morar na mata para se esconder dos alemães, que recruta-vam jovens para trabalhar nas usinas de armas durante a Segunda guerra Mundial.

Meu avô morreu em 1973 com muitas saudades do Brasil, sem nunca ter voltado. Cheguei ao Brasil em 1997 com 26 anos, mais ou menos a idade em que meu avô saíra do Brasil, no final da dé-cada de 1920. eu já tinha viajado bastante pelo leste europeu, Oriente Médio e África, porém nesses países nunca me senti em casa, a diferença cultural era muito grande.

Cheguei ao rio de Janeiro e, no dia seguinte ao desembarque, peguei um ônibus para Salvador, Bahia, a fim de conhecer uma cidade de tamanho mais humano e talvez de tamanho mais “bel-ga”. O rio me parecia uma enorme “Paris Tropical”.

Bisavó de Nicolas Hallet, Irene de Nangy (3ª pessoa sentada da esquerda para a direita), na chegada do navio ao Brasil.

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O primeiro contato com o Nordeste acendeu em mim uma sensação diferente. Senti-me como um imigrante de última gera-ção e não exatamente como um estrangeiro. Faço muitas fotos e um dos meus grandes trabalhos de fotografia, que resultou em um livro, Nordeste feito à mão, foi feito durante a filmagem de uma série de documentários sobre o artesanato nordestino. rodamos mais de 40 mil quilômetros. Nessa viagem descobri a riqueza, a cultura, a música e as tradições do Nordeste. Cheguei a Salvador num momento-chave. era a retomada do cinema baiano, após dez anos sem que quase nada tivesse sido rodado. a maioria dos técnicos tinha ido embora para o Sudeste do país ou mudado de profissão. Nesse contexto, acabei me especializando em captação de som e direção de fotografia. Tinha feito, em Bruxelas, um cur-so de cinema na Académie des Beaux Arts de Molenbeek, que me ajudou muito. Produtores locais tinham interesse em profissionais locais, sem ter de chamar pessoas do eixo rio–São Paulo cada vez que um filme era rodado. em Salvador, nessa época, havia duas tendências na produção cinematográfica: a tendência industrial, criando “set de filmagem com equipe grande e uma certa hierar-quia entre as pessoas”, e outra tendência, mais próxima da vídeo- -arte ou da turma do super 8 dos anos 1980.

rodamos muito, operei muitas câmeras 16 mm e gravadores de som DaT. Foi um processo doloroso; nessa época não havia os incentivos culturais que existem hoje, os filmes demoravam muito para ficar prontos. em todas as áreas do cinema as pessoas estavam começando ou recomeçando a filmar. estourava-se os orçamentos. Às vezes nem havia orçamento. a gente bancava três latas de nega-tivos 16 mm e pronto. e a revelação? e a telecinagem? e a mixa-gem? Tem filmes, curtas e longas-metragens, que demoraram mais de três anos entre o momento de serem filmados e a finalização.

Dessa época saíram filmes como As três histórias da Bahia, de Sergio Machado, José araripe Júnior e edyala Iglesias, em 35 mm, ou, na tendência mais experimental, Capitália, de Danillo Barata, em 16 mm. Fui microfonista no primeiro e diretor de fo-tografia no segundo.

Hoje a realidade no Nordeste é bem diferente, trabalhamos muito com a formação dos profissionais de cinema. Fui professor do Centro audiovisual Norte e Nordeste – Canne –, durante anos ministrei cursos de curta duração para quem já tinha “um pé na área” do audiovisual. esses cursos e a criação de editais melhora-ram muito a qualidade dos filmes do Nordeste.

O que me chamou para ficar no Nordeste foram as pessoas, essa liberdade de pensamento, apesar de uma realidade “pesada” em comparação com a Bélgica. O filme de Damien Chemin e Nicodème de renesse, Lampião, sonho de bandido, retrata bem esse universo livre e pouco racional.

Com Simone Dourado, minha esposa, além de dividir a capta-ção de som, como no filme de Kleber Mendonça Filho, O som ao redor, melhor som no festival de gramado, faço filmes documen-tários do tipo observacional, como o Carro de boi, melhor filme do festival 5 Minutos de Salvador, ou o Seca Verde, melhor filme baiano do festival Cachoeiradoc. Nesse filme acompanhamos a família de um pequeno agricultor, dentro do seu quotidiano, du-rante um mês.

Hoje estamos morando em Olinda e participando, em recife e Salvador, de vários grupos de cineastas. Um belo exemplo desse cinema coletivo é o filme O menino do 5, de Wallace Nogueira e Marcelo Matos, melhor curta do festival de gramado 2012, no qual fiz o som, a fotografia, junto com o Wallace, e a Simone fez a direção de arte.

Trocar a Bélgica pelo Brasil, no meu caso pelo Nordeste, me fez arriscar uma aventura de vida mais livre, menos convencional, baseada na fascinação que eu tenho pelo Nordeste, que o cinema me possibilitou conhecer a fundo. Não consigo ficar muito tempo nas grandes cidades, é o interior que me dá as chaves das grandes questões da vida.

Nicolas Hallet trabalhando no filme “O Som ao Redor”.

Cartaz de Irene de Nangy, bisavó de Nicolas Hallet.

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Cena 1: “O maior problema da Favela da Rocinha não é o tráfico de drogas. É a falta de oportunidade”, assim uma das

moradoras da comunidade tentava explicar à equipe de TV belga os desafios de um país cheio de desigualdade, como é o Brasil.

Cena 2: “Nosso momento é agora. Faremos deste país campeão na Rio 2016”, explicou à mesma equipe o presidente da Confede-ração Nacional de Natação, um dos esportes em que o Brasil tem tradição de medalha olímpica (para além do “futebol-indústria” e do judô, nos quais o Brasil é celeiro de bons atletas).

Cena 3: “Avisa ele que pupunha crua é veneno”, pediu o fei-rante do tradicional mercado popular Ver o Peso, em Belém, no Pará, ao ver o chef de cuisine belga levar à boca essa fruta típica da região, normalmente consumida após cozida em água e sal e apreciada sem casca, acompanhada de um cafezinho.

Cena 4: “O que me surpreende é o otimismo do povo mesmo diante dos problemas”, do presidente da Unizo, organização para pequenas e médias empresas na Bélgica, ao conhecer algumas ex-periências brasileiras na área de tecnologia e empreendedorismo.

Cena 5: “Vou comentar sobre o politeísmo no Brasil”, tentativa belga de compreender o sincretismo religioso no país, felizmente esclarecido antes da TV filmar o comentário.

Cena 6: “Isto é uma loucura”, comentário de um artista plásti-co belga ao visitar o Instituto Cultural Inhotim, em Brumadinho, Minas gerais, local que reúne em suas instalações e em seu jar-dim botânico obras dos mais renomados artistas contemporâneos do mundo.

Cena 7: “Menina, cê tá de parabéns! Nunca ninguém traduziu tão bem o que eu falo!”, do cantor e compositor brasileiro Tom Zé, a quem aqui vos escreve, durante entrevista para a equipe de TV belga que tentava em vão entender suas complexas explicações sobre a Tropicália, importante movimento artístico brasileiro ini-ciado em 1967, do qual foi um dos idealizadores.

Cena 8: “Ah, eu adoro ter um marido machão”, frase repetida à exaustão à equipe de TV belga que buscava entender o fenômeno (ultrapassado) do latin lover, sem perceber que a mulher brasilei-ra ganha autonomia, e que um homem machão não é o mesmo que um machista.

Cena 9: “É tanta água que a poluição da cidade se dilui”, bió-loga tentando dar ideia da imensidão do rio amazonas, após, diante da equipe de TV belga, coletar água do rio em Manaus para análise.

Cena 10: “Vamos tratar do populismo no Brasil”, proposta inicial da equipe belga para tentar explicar a política do então presidente luiz Inácio lula da Silva e seus projetos sociais. De-pois de esclarecido, o termo “populismo” foi trocado por “gover-no popular”.

Todas as cenas acima aconteceram nos bastidores das filma-gens da série de documentários Brazilië voor Beginners, levada ao ar pelos canais belgas flamengos TV Canvas (2010) e eén (2011).

a ideia de revelar o Brasil para o público belga integrou um projeto dedicado aos países do Bric. Depois de China voor Begin-ners e India voor Beginners, foi a vez do Brasil, seguido da rússia. O formato consistia em ter uma apresentadora que ajudasse um especialista belga flamengo a compreender o país. eu fui a jor-nalista escolhida para apresentar o Brasil aos “experts” belgas que viajaram a uma determinada capital para conhecer o tema da sua especialidade no Brasil e, evidentemente, para travar contato com uma realidade distinta da belga flamenga.

Foram quatro meses de filmagem que me permitiram ir a re-cantos onde nunca havia chegado. e, se até para brasileiro é difícil entender o Brasil com sua diversidade e suas contradições, para alguns estrangeiros isso se torna, a curto prazo, quase impossível. Pois até o roteiro da série às vezes metia os pés pelas mãos... Uma das pérolas estava logo no primeiro script, que explicava que os militares da ditadura só saíram do poder em troca de latifúndios, e sugeria que esses coronéis até hoje determinam os rumos polí-ticos do país... Poderia até ser verdade se a ditadura militar não tivesse acontecido entre 1964 e 1985, e os chamados coronéis de engenho do Nordeste, vivido no Brasil Colônia, período áureo de exportação de açúcar, entre os séculos 16 e 17.

apesar do esforço, nem sempre os episódios da série se revela-ram verdadeiramente esclarecedores ao público espectador. País dos contrastes, o Brasil naturalmente desperta sentimentos múlti-plos a seu respeito... entre reportagens e resenhas publicadas na

t e l e v i s ã o

a difícil e prazerosa tarefa de traduzir o Brasil para os belgasDa n i e l a r o c h a

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época da série de TV, tomei de forma aleatória dois exemplos. enquanto uma revista (Uit Magazine) anunciava na capa Brazilië is Hot, que remetia a um dossiê de 12 páginas com reportagens sobre o país, uma das resenhas críticas sobre a série foi publica-da pelo site Humo.be com o sugestivo título de Cartões Postais do Inferno (ansichtkaarten uit de hel). Compreensível, uma vez que o primeiro episódio a ser levado ao ar teve como tema a criminalidade no rio de Janeiro, com imagens (de arquivo) de tiroteio nas favelas, e entrevistas com policiais, criminalistas e educadores que vivem uma realidade de grande violência física e psicológica...

Chegaram a me explicar que para que o público belga enten-desse a situação no rio de Janeiro eu deveria compará-lo à Faixa de gaza... eu acreditava que essa comparação mais confundia que esclarecia (porque os conflitos urbanos do rio de Janeiro não têm natureza de guerra civil); felizmente essa frase foi descartada.

Depois desse tema, os outros foram bem mais amenos e mos-travam um Brasil que, apesar das adversidades, esbanjava criativi-dade e bom humor, tanto nos negócios e empreendimentos das mais variadas naturezas, como na liberdade de culto do chama-do maior país católico (“não praticante”) do mundo, ou na sua culinária amazônica de peixes e temperos locais, contrastado ao universo musical que derruba fronteiras, ou no ajuste da relação entre homens e mulheres em uma sociedade que já foi patriarcal.

Convidada a escrever um livro com o mesmo título e os mes-mos temas da série, vi nele a oportunidade de revelar várias situa-ções, inclusive cômicas, que vivi nesse rico convívio de diálogo entre Brasil e Bélgica. Tive como meta dar a minha visão de bra-sileira sobre o meu país e publicar entrevistas que realizei mesmo quando as câmeras estavam desligadas e que renderam momentos emocionantes. Um deles foi a conversa que tive com um biólogo do Ibama de Manaus sobre a trágica morte de um filhote de peixe boi que atrapalhava o abate de sua mãe durante a temporada de pesca desse grande mamífero de água doce, tradição no amazonas que colocou a espécie em risco de extinção. Outro, foi a história de um caçador de macacos que agradeceu por ser preso e confessou que tinha pesadelos com os gritos das fêmeas e filhotes ao verem os machos mortos a tiros cairem das árvores e serem recolhidos das águas do rio amazonas. Ou ainda minha conversa com uma família do Movimento dos Trabalhadores rurais Sem-Terra em rezende (rJ), e me surpreender com o nível de participação e de destemor das crianças, politizadas desde o berço, na busca pela reforma agrária. Outro ainda foi minha curiosidade para enten-der a realidade da violência urbana no rio de Janeiro e de poder confessar o meu medo em entrar à noite com a equipe de TV em uma das maiores favelas da cidade para realizar uma entrevista com um ex-traficante e ex-usuário de crack. existem territórios onde a licença para entrar não significa garantia de segurança. Mas felizmente, no momento em que chegamos, fomos “recepciona-dos” por uma chuva torrencial e não havia vivalma nas ruelas da rocinha, quase às dez horas da noite.

Durante as filmagens, em nenhum momento houve censura ou restrição imposta à equipe belga. O máximo que ocorreu foi

um pedido do diretor do presídio de Bangu I para que não filmás-semos os presos nas celas (para garantir o direito à privacidade deles). Mesmo assim, eles foram filmados, e seus rostos, exibidos, sem que isso trouxesse problemas posteriores.

Pensei com meus botões: em que país do mundo uma equipe de TV estrangeira ousaria pedir à polícia aérea para acompanhar seus voos em helicóptero por tempo ilimitado, além de realizar em inglês entrevistas em terra e em ar, respondendo questões que iam da criminalidade das ruas à corrupção nas corporações da polícia... Os policiais do gaM (grupamento aéro-Marítimo) do rio de Janeiro fizeram tudo isso e chegaram a emprestar seus uniformes oficiais para uso da equipe a ser filmada e do diretor.

essa abertura, essa sinceridade, esse gosto pela exposição, típicos do Brasil, foram registrados, mas nem sempre bem apro-veitadas na edição final na TV... Porque, para muito além da criminalidade, que foi o tema mais controverso da série, o meio ambiente, a religião, a política, o empreendedorismo, a gastro-nomia, o esporte, a sexualidade, a música e as artes do Brasil se revelavam um campo imenso a ser explorado e mostrado, com seus personagens que aos olhos belgas pareciam tão estranhos que logo se tornavam simpáticos.

No episódio sobre a sexualidade, houve espanto em ver que homens e mulheres falam sobre sua intimidade com tamanha desinibição... ali, perdeu-se a oportunidade de mostrar como a sociedade brasileira vive um tuning point, com mulheres que con-quistaram autonomia financeira e sexual, definindo parceiros, nú-mero de filhos e quando tê-los. em paralelo, o homem, que antes era o provedor, tenta se reposicionar e aprender um novo papel que, entretanto, não está claro para ele.

em empreendedorismo, o espanto ocorre porque, aos olhos belgas, seria impensável iniciar um negócio com quase nada de recurso financeiro. e o Brasil mostra que muitas das experiências que começam precárias conseguem apoio para corrigir seus pro-dutos e ingressam no mercado com excelente retorno a médio prazo. a cultura de arregaçar as mangas e ir à luta, aceitando os riscos, surpreendeu os belgas. Por outro lado, o jeitinho brasileiro de improvisar ou de pensar que no final tudo vai dar certo prova que o país precisa aprender que planejamento e pesquisa urgem em fazer parte da rotina de quem quer entrar em um mercado cada vez mais competitivo.

a percepção da música brasileira na série, tema filmado em São Paulo, optou por mostrar uma música de raiz, do folclore, um pouco do samba, do jazz, do hip-hop, do rock e da MPB, que re-velou um belo recorte no caldeirão de sons e ritmos paulistas. Na gastronomia, a opção foi registrar a fantástica culinária amazônica, conhecida principalmente por quem é da região, já que demanda ingredientes locais e peixes frescos encontrados apenas ali.

Minha pesquisa sobre a comida amazônica foi intensa, já que eu mesma, nascida no estado de São Paulo, pouco conhecia dos sabores amazônicos. Tive dificuldade em decorar tantos nomes de origem indígena das frutas, ervas, temperos e pratos típicos, e mais ainda em descrever o sabor e o preparo deles, já que até o açaí de polpa congelada servido com guaraná em todo o Brasil não tinha

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nada a ver com o creme do açaí fresco consumido na região com farinha de mandioca.

a série de TV e o livro Brazilië voor Beginners não satisfizeram por completo a curiosidade dos belgas para entender o país. ao longo do ano de 2011, fui chamada a fazer dezenas de palestras, em português, inglês e francês, para belgas em antuérpia, gand, Bruges, Oostende, aalst e Bruxelas. alguns já haviam visitado o Brasil ou tinham familiares por lá. Outros, pouco sabiam, mas que-riam entender que tipo de fenômeno é esse, de um país que, em algumas décadas, deixa de ser considerado de terceiro mundo e passa a figurar entre as oito maiores economias do planeta (e ganha status e poder nas mesas de negociação), um país que inicia um caminho por maior inclusão social, um país que possui um estra-tégico mercado consumidor, um país que é percebido como amea-ça aos outros quando o tema é agrobusiness ou biocombustível.

De repente, notei nos belgas que eles mesmos deixaram os estereótipos sobre o Brasil de lado (o carnaval, o futebol e a cai-pirinha eram meras alegorias, e deixaram de ser o main issue que traduziu durante tantos anos o Brasil). Sem negá-los, busquei con-tar da minha experiência, assumindo as precariedades, mas sem ocultar o orgulho que tenho das conquistas do país.

Um dos comentários que mais me chamou atenção foi de um dos participantes em Bruges. “Pensava que você não tinha muita coisa a dizer. Mas quando você fala, parece que a gente encontra, enxerga e sente o Brasil.”

Daniela Rocha é jornalista, autora do livro Brazilië voor Beginners (Witsand Uitgevers) e apresentadora da série de TV de mesmo título exibida pela TV Canvas em 2010.

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